Cinco décadas de RH A - rae.fgv.brrae.fgv.br/sites/rae.fgv.br/files/artigos/3486.pdf · A partir de um dado momento, o profissional ... gestão de pessoas, ... o grande desafio da

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    FATOR HUMANO: CINCO DCADAS DE RH

    Cinco dcadasde RH

    histria da gesto de pessoas no Brasil pode ser contadatendo como marcos as diversas solues, por ela desenvol-vidas, para atender s necessidades das organizaes. Des-

    de o departamento de pessoal at a gesto de recursos humanos, agesto de pessoas sofreu profundas transformaes. No entanto, ape-sar de ter avanado nos conceitos e nas prticas, ainda persistem con-tradies prprias dos modelos de gesto de pessoas, agravadas portraos culturais brasileiros como paternalismo e autoritarismo.

    A

    por Beatriz Maria Braga Lacombe FGV-EAESP e Pedro F. Bendassolli USP

    FATOR HUMANO

    Observadores da gesto de pessoas costumam ressaltar

    que um trao de identidade forte dessa funo a con-

    tradio. Uma das contradies mais importantes rela-

    ciona-se com o duplo compromisso com os indivduos

    e com o negcio. Como um pndulo, ora a nfase das

    aes oscila para a ponta humanista (o canto dos indi-

    vduos, da qualidade de vida no trabalho e da motiva-

    o), ora descola-se para a ponta instrumental (o canto

    do alinhamento estratgico e da busca de resultados).

    Ao longo do tempo, a gesto de pessoas e a rea espec-MARC

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    fica de RH vm buscando encontrar solues para essa

    contradio.

    Pr-histria. As primeiras notcias sobre gesto de pes-soas no Brasil datam do final do sculo XIX e comeo do

    sculo XX. No contexto internacional, ocorria um movi-

    mento de industrializao e mecanizao. No Brasil, a eco-

    nomia era dominada pelas atividades agrcolas e o nvel

    de industrializao era incipiente, mas o pas se urbanizava

    e a migrao interna crescia vigorosamente.

    O fim da escravido gerava um enorme contingente

    de indivduos sem trabalho, enquanto imigrantes euro-

    peus completavam a fora de trabalho disponvel. De for-

    ma geral, o nvel de qualificao era baixo e a atitude ge-

    ral, dcil. A autoridade dos patres era sagrada e a distn-

    cia entre patro e empregado, intransponvel.

    Nesse contexto predominavam as empresas familia-

    res, paternalistas e autocrticas, e a gesto de pessoas apre-

    sentava grandes variaes caso a caso. O departamento de

    pessoal, ainda em estado embrionrio de desenvolvimento,

    tinha como principal, seno nica, atividade a manuteno

    de um livro de registros, no qual se anotavam os nomes,

    salrios, contrataes e demisses dos empregados.

    Era Vargas. A alterao desse quadro s vai ocorreralgumas dcadas mais tarde, no perodo entre-guerras. No

    mundo, os governos passam a intervir cada vez mais na

    economia. Sindicatos so organizados e pressionam o po-

    der pblico pela promulgao de leis favorveis aos traba-

    lhadores. No Brasil, durante o governo Getlio Vargas,

    ocorre a criao do Ministrio do Trabalho e da CLT. En-

    tretanto, apesar de os sindicatos terem tambm aqui se

    fortalecido, viviam no Brasil uma situao diferente da

    existente em outros pases, em funo de sua relao de

    dependncia do Estado.

    A industrializao avana e inicia-se a disseminao

    dos princpios de administrao cientfica e dos manuais

    de tempos e movimentos. Nesse perodo, a gesto de pes-

    soas ainda se caracteriza pelo perfil paternalista e autocr-

    tico do perodo anterior. As grandes empresas procura-

    vam padronizar a produo e minimizar custos. nesse

    momento que surgem no Brasil os departamentos de pes-

    soal, chefiados por advogados ou engenheiros, que pas-

    sam a cuidar das rotinas trabalhistas, da seleo e demis-

    so, e da folha de pagamento. De seu lado, as pequenas

    empresas so conduzidas de maneira informal, com pou-

    ca ateno s questes relacionadas gesto de pessoas.

    Ps-guerra. O perodo posterior ao trmino da Se-gunda Guerra Mundial marcado pelo crescimento eco-

    nmico na Europa e nos Estados Unidos. O modelo de

    Estado de Bem-Estar Social se dissemina, tendo como

    base pactos firmados entre governo, empresrios e sin-

    dicatos. Tal condio favorvel para as empresas, que

    vem sua produo e vendas au-

    mentarem, o que lhes permite pa-

    gar salrios cada vez maiores. Para

    os empregados, a situao tambm

    favorvel, havendo poucas gre-

    ves e conflitos.

    Enquanto isso, no Brasil, in-

    veste-se pesadamente em obras ci-

    vis e de infra-estrutura. A inds-

    tria cresce, e o pas recebe filiais

    de diversas multinacionais. No en-

    tanto, o crescimento econmico

    no acontece de forma contnua.

    Problemas com a balana de pagamentos, aliados aos pro-

    blemas polticos do final da dcada de cinqenta e incio

    da dcada de sessenta, trazem instabilidade para o mer-

    cado de trabalho. O contexto mais complexo gera refle-

    xos na gesto de pessoas, que se torna mais sofisticada.

    Temas como gerenciamento de carreira, remunerao e

    treinamento passam a ser tratados com maior ateno.

    A partir de um dado momento, o profissional

    do departamento de pessoal passou a ser

    visto como excessivamente preso a questes

    operacionais e trabalhistas, sem preparo

    para assessorar a alta administrao em

    questes estratgicas.

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    FATOR HUMANO: CINCO DCADAS DE RH

    Mudanas na dcada de setenta. Oquadro mantm-se praticamente inalterado

    at o incio da dcada de setenta, quando

    acontece o choque do petrleo. No mundo,

    as bases que permitiram o crescimento se

    desestabilizam e a condio de pleno empre-

    go colocada em xeque pela recesso. No

    Brasil, o ciclo acelerado de crescimento in-

    terrompido e passa-se a viver um perodo de

    instabilidade econmica, que alterna momen-

    tos de crescimento e momentos de estagna-

    o. Os sindicatos se fortalecem e assumem

    posturas cada vez mais combativas.

    A gesto de pessoas se caracteriza por um

    forte componente de rotinizao, uma va-

    riante da administrao cientfica, que sepa-

    ra o planejamento da execuo e do contro-

    le. Persistem as lacunas de treinamento e de-

    senvolvimento, enquanto cresce o controle

    do trabalho por parte de capatazes e

    supervisores.

    A ao do departamento de pessoal con-

    tinua sendo discreta e secundria, embora seu

    escopo de trabalho tenha sido ampliado. Suas

    atividades so rigidamente condicionadas

    pela legislao trabalhista, pelas diretrizes fi-

    xadas pela alta direo e pelos condicionan-

    tes tecnolgicos da produo.

    Avano da retrica na dcada de oi-tenta. As dcadas de oitenta e noventa somarcadas pelo fenmeno da globalizao. No

    mundo, a desregulamentao e a queda de

    barreiras comerciais obriga as grandes cor-

    poraes a reestruturar as operaes mundiais

    e a buscar patamares mais altos de competi-

    tividade. O mesmo movimento ocorre no Bra-

    sil, ainda que com uma dcada de defasagem

    em relao aos pases desenvolvidos.

    A gesto de pessoas responde ao novo

    contexto com mudanas de foco e escopo.

    Nas grandes organizaes, o departamento

    de pessoal cede espao ao departamento de

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    recursos humanos. Populariza-se o conceito de alinha-

    mento estratgico da rea de gesto de pessoas com os

    objetivos de negcios da empresa. Muitos gerentes e di-

    retores de recursos humanos passam a ter voz ativa nas

    decises corporativas.

    Dois modelos dominantes. Na histria que acabade ser relatada, pode-se notar que as mudanas ambien-

    tais apresentaram, em cada poca, desafios essenciais

    gesto de pessoas, determinando muitas de suas caracte-

    rsticas nas organizaes.

    A primeira grande configurao histrica do modelo

    de gesto de pessoas foi o chamado Departamento de Pes-

    soal (DP), certamente a verso mais popular e dissemina-

    da de gesto. A lgica desse modelo estava fundamenta-

    da, de um lado, em um controle dos procedimentos e das

    tarefas e em um tipo de autoridade paternal e autoritria;

    e, de outro, na obedincia, docilidade e baixa qualificao

    dos empregados.

    Esse modelo comea a dividir espao, no final do pe-

    rodo analisado neste texto, com uma nova configurao

    de gesto de pessoas nas empresas, agora denominada de

    Administrao estratgica de Recursos Humanos (ARH).

    Nesse novo modelo, a gesto, apoiada por um departa-

    mento de recursos humanos, busca formar alianas com

    os empregados que resultem em maior alinhamento e com-

    prometimento com os objetivos organizacionais.

    Nesse sentido, a ARH se diferenciaria do modelo anteri-

    or pela total identificao com os interesses organizacionais e

    pelo pressuposto de que gerenciar pessoas como gerenciar

    qualquer outro recurso. Esse novo modelo marcou, pelo

    So ainda poucas as empresas que se

    engajam em reflexes mais profundas sobre

    aspectos essenciais da gesto, como liderana

    e comunicao, que tm enorme impacto sobre

    a realizao do trabalho e seus resultados.

    menos no discurso, uma ruptura com seu antecessor. A ARH

    tende a substituir a gesto associada ao DP no que esta tem

    de viso obediente e submissa da fora de trabalho e de rea

    de apoio, com poder reduzido ou nulo de deciso.

    Nesse novo modelo, as pessoas precisam desenvolver

    habilidades tais como empreendedorismo e criatividade,

    e a ARH tem como princpio a agregao da funo a pro-

    cessos de mudana organizacional, de tomada de deciso,

    de produtividade e de ao gerencial. Um outro marco de

    diferenciao o interesse da ARH na manipulao de

    valores simblicos e culturais, substituindo formas ante-

    cedentes de controle baseadas na obedincia aos interes-

    ses organizacionais. Agora, a idia incitar o engajamento

    dos funcionrios por meio da gesto de sistemas de valo-

    res compartilhados.

    Mirando o futuro. Se os novos tempos demandam,de todos os tipos de organizaes, novas formas de geren-

    ciar pessoas, a pergunta que se coloca : para que possa

    contribuir de maneira efetiva para

    os resultados organizacionais,

    quais so as aes possveis para

    a rea especfica de Recursos Hu-

    manos? Assim, possvel desta-

    car alguns focos que devem ocu-

    par a ateno dos profissionais da

    rea nos prximos anos.

    O primeiro diz respeito s

    atividades tradicionais do antigo

    DP, basicamente as funes ope-

    racionais de seleo, treinamen-

    to, desenvolvimento e remunerao, que vm sendo, nas

    grandes empresas, cada vez mais terceirizadas. Nas pe-

    quenas e mdias empresas, a rea, muitas vezes ainda

    denominada DP, continua tendo sua atuao restrita a

    um foco tcnico, com pouca participao nas decises

    estratgicas.

    Um segundo foco de ateno e das aes da rea es-

    pecfica de RH nas empresas diz respeito a uma reflexo

    conceitual profunda e retomada de uma ao transfor-

    madora sobre o novo cenrio organizacional, algo que vai

    muito alm de contratar, treinar e remunerar. Inclui-se,

    nesse caso, a discusso sobre os limites do modelo da ARH

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    FATOR HUMANO: CINCO DCADAS DE RH

    e de suas perigosas contradies internas. Isso porque

    se, por um lado, ele insufla um novo credo funo de

    recursos humanos, baseado em idias de participao,

    envolvimento, comportamento humano e qualidade,

    por outro tem forte compromisso com a realizao das

    estratgias da organizao, que, como se sabe, nem sem-

    pre coincidem com essas idias. Isso nos leva conclu-

    so de que a ARH pode ser mais forte como discurso,

    isto , como resposta em nvel simblico, do que como

    prtica.

    Portanto, o grande desafio da rea a busca de

    explicitao para as contradies presentes nos modelos

    conceituais sobre gesto de pessoas, como o modelo da

    ARH, e do questionamento sobre o papel que a rea pode-

    r, de fato, desempenhar diante dessas contradies, para

    que o profissional da rea no seja cobrado, exclusiva-

    mente, por alguma coisa que compete a todos na organi-

    zao, a saber, a gesto de pessoas. Isso poder ser feito

    por meio de uma crtica aos paradoxos e fundamentos

    das premissas adotadas, bem como de uma renovao da

    gesto de pessoas tradicional. somente a partir dessa

    reflexo crtica e da definio do seu papel que os profis-

    sionais dessa rea podero encontrar os meios e os recur-

    sos para criar um modelo, particular a cada empresa, que

    efetivamente consiga lidar com as dificuldades concretas

    vivenciadas em seu dia-a-dia. Do contrrio, o discurso

    continuar precedendo e contradizendo as prticas que

    se busca construir.

    Beatriz Maria Braga LacombeProfa. do Departamento de Fundamentos Sociais e Jurdicosdo TrabalhoDoutoranda em administrao na FEA-USPE-mail: [email protected]

    Pedro F. BendassolliProf. de Psicologia na Universidade PaulistaDoutorando em psicologia social na USPE-mail: [email protected]

    Mudana anunciada

    Nosso administrador de pessoal est procurando aperfeioar-se, fazer de sua profisso uma carreira e realizar funes com-patveis com a verdadeira posio que deveria ocupar dentrode uma empresa, industrial ou comercial. Mas ter que percor-rer um longo caminho para chegar a alcanar apenas partedesse objetivo.

    (...) em nossos contatos pessoais com administradores de pes-soal de grandes e pequenas firmas, temos notado sempre queaqueles demonstram um certo sentimento de frustrao, causa-do pelo fato de que o prestgio de seu cargo menor do que o deadministradores de produo ou de vendas, por exemplo.

    Em segundo lugar, porque temos tambm observado que entrens a preocupao maior, tanto dos dirigentes de empresas comodos ocupantes do cargo, continua a ser de conhecimentos sobrelegislao trabalhista, bastando, para comprovar essa observa-o, a leitura dos anncios em que se procuram diretores, geren-tes, chefes, encarregados ou funcionrios de pessoal.

    Em um artigo publicado em 1963 na RAE Revista de Administrao de Empresas, j se discutia qual era, na poca, a funodo administrador de pessoal, antecipando futuros questionamentos sobre o seu papel.

    Ainda mais, observamos que a administrao de pessoal naspequenas e mdias empresas inclui tarefas caracterizadas comoperfeitamente rotineiras; e a das grandes empresas inclui tantase to variadas e desconexas atribuies que se chegou a afirmarque seria impossvel encontrar algum que reunisse todas as qua-lificaes necessrias ao exerccio da funo.

    Acrescentando a isso a opinio de estudiosos do assunto de queno se pode caracterizar um dirigente como administrador depessoal, pois todos os chefes de empresa devem ser, at certoponto, administradores de pessoal, chegamos, logicamente, sindagaes de Peter Drucker: teria fracassado a administraode pessoal? Estaria ela, por falta de status, sem poder sobre orecurso humano da empresa?

    Funes e posio da administrao de pessoal, de CarlosJos Malferrari. In: RAE Revista de Administrao de Empre-sas, v. 3, n. 6, 1963, pp. 13-14.

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