GV executivo 65
FATOR HUMANO: CINCO DCADAS DE RH
Cinco dcadasde RH
histria da gesto de pessoas no Brasil pode ser contadatendo como marcos as diversas solues, por ela desenvol-vidas, para atender s necessidades das organizaes. Des-
de o departamento de pessoal at a gesto de recursos humanos, agesto de pessoas sofreu profundas transformaes. No entanto, ape-sar de ter avanado nos conceitos e nas prticas, ainda persistem con-tradies prprias dos modelos de gesto de pessoas, agravadas portraos culturais brasileiros como paternalismo e autoritarismo.
A
por Beatriz Maria Braga Lacombe FGV-EAESP e Pedro F. Bendassolli USP
FATOR HUMANO
Observadores da gesto de pessoas costumam ressaltar
que um trao de identidade forte dessa funo a con-
tradio. Uma das contradies mais importantes rela-
ciona-se com o duplo compromisso com os indivduos
e com o negcio. Como um pndulo, ora a nfase das
aes oscila para a ponta humanista (o canto dos indi-
vduos, da qualidade de vida no trabalho e da motiva-
o), ora descola-se para a ponta instrumental (o canto
do alinhamento estratgico e da busca de resultados).
Ao longo do tempo, a gesto de pessoas e a rea espec-MARC
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fica de RH vm buscando encontrar solues para essa
contradio.
Pr-histria. As primeiras notcias sobre gesto de pes-soas no Brasil datam do final do sculo XIX e comeo do
sculo XX. No contexto internacional, ocorria um movi-
mento de industrializao e mecanizao. No Brasil, a eco-
nomia era dominada pelas atividades agrcolas e o nvel
de industrializao era incipiente, mas o pas se urbanizava
e a migrao interna crescia vigorosamente.
O fim da escravido gerava um enorme contingente
de indivduos sem trabalho, enquanto imigrantes euro-
peus completavam a fora de trabalho disponvel. De for-
ma geral, o nvel de qualificao era baixo e a atitude ge-
ral, dcil. A autoridade dos patres era sagrada e a distn-
cia entre patro e empregado, intransponvel.
Nesse contexto predominavam as empresas familia-
res, paternalistas e autocrticas, e a gesto de pessoas apre-
sentava grandes variaes caso a caso. O departamento de
pessoal, ainda em estado embrionrio de desenvolvimento,
tinha como principal, seno nica, atividade a manuteno
de um livro de registros, no qual se anotavam os nomes,
salrios, contrataes e demisses dos empregados.
Era Vargas. A alterao desse quadro s vai ocorreralgumas dcadas mais tarde, no perodo entre-guerras. No
mundo, os governos passam a intervir cada vez mais na
economia. Sindicatos so organizados e pressionam o po-
der pblico pela promulgao de leis favorveis aos traba-
lhadores. No Brasil, durante o governo Getlio Vargas,
ocorre a criao do Ministrio do Trabalho e da CLT. En-
tretanto, apesar de os sindicatos terem tambm aqui se
fortalecido, viviam no Brasil uma situao diferente da
existente em outros pases, em funo de sua relao de
dependncia do Estado.
A industrializao avana e inicia-se a disseminao
dos princpios de administrao cientfica e dos manuais
de tempos e movimentos. Nesse perodo, a gesto de pes-
soas ainda se caracteriza pelo perfil paternalista e autocr-
tico do perodo anterior. As grandes empresas procura-
vam padronizar a produo e minimizar custos. nesse
momento que surgem no Brasil os departamentos de pes-
soal, chefiados por advogados ou engenheiros, que pas-
sam a cuidar das rotinas trabalhistas, da seleo e demis-
so, e da folha de pagamento. De seu lado, as pequenas
empresas so conduzidas de maneira informal, com pou-
ca ateno s questes relacionadas gesto de pessoas.
Ps-guerra. O perodo posterior ao trmino da Se-gunda Guerra Mundial marcado pelo crescimento eco-
nmico na Europa e nos Estados Unidos. O modelo de
Estado de Bem-Estar Social se dissemina, tendo como
base pactos firmados entre governo, empresrios e sin-
dicatos. Tal condio favorvel para as empresas, que
vem sua produo e vendas au-
mentarem, o que lhes permite pa-
gar salrios cada vez maiores. Para
os empregados, a situao tambm
favorvel, havendo poucas gre-
ves e conflitos.
Enquanto isso, no Brasil, in-
veste-se pesadamente em obras ci-
vis e de infra-estrutura. A inds-
tria cresce, e o pas recebe filiais
de diversas multinacionais. No en-
tanto, o crescimento econmico
no acontece de forma contnua.
Problemas com a balana de pagamentos, aliados aos pro-
blemas polticos do final da dcada de cinqenta e incio
da dcada de sessenta, trazem instabilidade para o mer-
cado de trabalho. O contexto mais complexo gera refle-
xos na gesto de pessoas, que se torna mais sofisticada.
Temas como gerenciamento de carreira, remunerao e
treinamento passam a ser tratados com maior ateno.
A partir de um dado momento, o profissional
do departamento de pessoal passou a ser
visto como excessivamente preso a questes
operacionais e trabalhistas, sem preparo
para assessorar a alta administrao em
questes estratgicas.
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Mudanas na dcada de setenta. Oquadro mantm-se praticamente inalterado
at o incio da dcada de setenta, quando
acontece o choque do petrleo. No mundo,
as bases que permitiram o crescimento se
desestabilizam e a condio de pleno empre-
go colocada em xeque pela recesso. No
Brasil, o ciclo acelerado de crescimento in-
terrompido e passa-se a viver um perodo de
instabilidade econmica, que alterna momen-
tos de crescimento e momentos de estagna-
o. Os sindicatos se fortalecem e assumem
posturas cada vez mais combativas.
A gesto de pessoas se caracteriza por um
forte componente de rotinizao, uma va-
riante da administrao cientfica, que sepa-
ra o planejamento da execuo e do contro-
le. Persistem as lacunas de treinamento e de-
senvolvimento, enquanto cresce o controle
do trabalho por parte de capatazes e
supervisores.
A ao do departamento de pessoal con-
tinua sendo discreta e secundria, embora seu
escopo de trabalho tenha sido ampliado. Suas
atividades so rigidamente condicionadas
pela legislao trabalhista, pelas diretrizes fi-
xadas pela alta direo e pelos condicionan-
tes tecnolgicos da produo.
Avano da retrica na dcada de oi-tenta. As dcadas de oitenta e noventa somarcadas pelo fenmeno da globalizao. No
mundo, a desregulamentao e a queda de
barreiras comerciais obriga as grandes cor-
poraes a reestruturar as operaes mundiais
e a buscar patamares mais altos de competi-
tividade. O mesmo movimento ocorre no Bra-
sil, ainda que com uma dcada de defasagem
em relao aos pases desenvolvidos.
A gesto de pessoas responde ao novo
contexto com mudanas de foco e escopo.
Nas grandes organizaes, o departamento
de pessoal cede espao ao departamento de
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recursos humanos. Populariza-se o conceito de alinha-
mento estratgico da rea de gesto de pessoas com os
objetivos de negcios da empresa. Muitos gerentes e di-
retores de recursos humanos passam a ter voz ativa nas
decises corporativas.
Dois modelos dominantes. Na histria que acabade ser relatada, pode-se notar que as mudanas ambien-
tais apresentaram, em cada poca, desafios essenciais
gesto de pessoas, determinando muitas de suas caracte-
rsticas nas organizaes.
A primeira grande configurao histrica do modelo
de gesto de pessoas foi o chamado Departamento de Pes-
soal (DP), certamente a verso mais popular e dissemina-
da de gesto. A lgica desse modelo estava fundamenta-
da, de um lado, em um controle dos procedimentos e das
tarefas e em um tipo de autoridade paternal e autoritria;
e, de outro, na obedincia, docilidade e baixa qualificao
dos empregados.
Esse modelo comea a dividir espao, no final do pe-
rodo analisado neste texto, com uma nova configurao
de gesto de pessoas nas empresas, agora denominada de
Administrao estratgica de Recursos Humanos (ARH).
Nesse novo modelo, a gesto, apoiada por um departa-
mento de recursos humanos, busca formar alianas com
os empregados que resultem em maior alinhamento e com-
prometimento com os objetivos organizacionais.
Nesse sentido, a ARH se diferenciaria do modelo anteri-
or pela total identificao com os interesses organizacionais e
pelo pressuposto de que gerenciar pessoas como gerenciar
qualquer outro recurso. Esse novo modelo marcou, pelo
So ainda poucas as empresas que se
engajam em reflexes mais profundas sobre
aspectos essenciais da gesto, como liderana
e comunicao, que tm enorme impacto sobre
a realizao do trabalho e seus resultados.
menos no discurso, uma ruptura com seu antecessor. A ARH
tende a substituir a gesto associada ao DP no que esta tem
de viso obediente e submissa da fora de trabalho e de rea
de apoio, com poder reduzido ou nulo de deciso.
Nesse novo modelo, as pessoas precisam desenvolver
habilidades tais como empreendedorismo e criatividade,
e a ARH tem como princpio a agregao da funo a pro-
cessos de mudana organizacional, de tomada de deciso,
de produtividade e de ao gerencial. Um outro marco de
diferenciao o interesse da ARH na manipulao de
valores simblicos e culturais, substituindo formas ante-
cedentes de controle baseadas na obedincia aos interes-
ses organizacionais. Agora, a idia incitar o engajamento
dos funcionrios por meio da gesto de sistemas de valo-
res compartilhados.
Mirando o futuro. Se os novos tempos demandam,de todos os tipos de organizaes, novas formas de geren-
ciar pessoas, a pergunta que se coloca : para que possa
contribuir de maneira efetiva para
os resultados organizacionais,
quais so as aes possveis para
a rea especfica de Recursos Hu-
manos? Assim, possvel desta-
car alguns focos que devem ocu-
par a ateno dos profissionais da
rea nos prximos anos.
O primeiro diz respeito s
atividades tradicionais do antigo
DP, basicamente as funes ope-
racionais de seleo, treinamen-
to, desenvolvimento e remunerao, que vm sendo, nas
grandes empresas, cada vez mais terceirizadas. Nas pe-
quenas e mdias empresas, a rea, muitas vezes ainda
denominada DP, continua tendo sua atuao restrita a
um foco tcnico, com pouca participao nas decises
estratgicas.
Um segundo foco de ateno e das aes da rea es-
pecfica de RH nas empresas diz respeito a uma reflexo
conceitual profunda e retomada de uma ao transfor-
madora sobre o novo cenrio organizacional, algo que vai
muito alm de contratar, treinar e remunerar. Inclui-se,
nesse caso, a discusso sobre os limites do modelo da ARH
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e de suas perigosas contradies internas. Isso porque
se, por um lado, ele insufla um novo credo funo de
recursos humanos, baseado em idias de participao,
envolvimento, comportamento humano e qualidade,
por outro tem forte compromisso com a realizao das
estratgias da organizao, que, como se sabe, nem sem-
pre coincidem com essas idias. Isso nos leva conclu-
so de que a ARH pode ser mais forte como discurso,
isto , como resposta em nvel simblico, do que como
prtica.
Portanto, o grande desafio da rea a busca de
explicitao para as contradies presentes nos modelos
conceituais sobre gesto de pessoas, como o modelo da
ARH, e do questionamento sobre o papel que a rea pode-
r, de fato, desempenhar diante dessas contradies, para
que o profissional da rea no seja cobrado, exclusiva-
mente, por alguma coisa que compete a todos na organi-
zao, a saber, a gesto de pessoas. Isso poder ser feito
por meio de uma crtica aos paradoxos e fundamentos
das premissas adotadas, bem como de uma renovao da
gesto de pessoas tradicional. somente a partir dessa
reflexo crtica e da definio do seu papel que os profis-
sionais dessa rea podero encontrar os meios e os recur-
sos para criar um modelo, particular a cada empresa, que
efetivamente consiga lidar com as dificuldades concretas
vivenciadas em seu dia-a-dia. Do contrrio, o discurso
continuar precedendo e contradizendo as prticas que
se busca construir.
Beatriz Maria Braga LacombeProfa. do Departamento de Fundamentos Sociais e Jurdicosdo TrabalhoDoutoranda em administrao na FEA-USPE-mail: [email protected]
Pedro F. BendassolliProf. de Psicologia na Universidade PaulistaDoutorando em psicologia social na USPE-mail: [email protected]
Mudana anunciada
Nosso administrador de pessoal est procurando aperfeioar-se, fazer de sua profisso uma carreira e realizar funes com-patveis com a verdadeira posio que deveria ocupar dentrode uma empresa, industrial ou comercial. Mas ter que percor-rer um longo caminho para chegar a alcanar apenas partedesse objetivo.
(...) em nossos contatos pessoais com administradores de pes-soal de grandes e pequenas firmas, temos notado sempre queaqueles demonstram um certo sentimento de frustrao, causa-do pelo fato de que o prestgio de seu cargo menor do que o deadministradores de produo ou de vendas, por exemplo.
Em segundo lugar, porque temos tambm observado que entrens a preocupao maior, tanto dos dirigentes de empresas comodos ocupantes do cargo, continua a ser de conhecimentos sobrelegislao trabalhista, bastando, para comprovar essa observa-o, a leitura dos anncios em que se procuram diretores, geren-tes, chefes, encarregados ou funcionrios de pessoal.
Em um artigo publicado em 1963 na RAE Revista de Administrao de Empresas, j se discutia qual era, na poca, a funodo administrador de pessoal, antecipando futuros questionamentos sobre o seu papel.
Ainda mais, observamos que a administrao de pessoal naspequenas e mdias empresas inclui tarefas caracterizadas comoperfeitamente rotineiras; e a das grandes empresas inclui tantase to variadas e desconexas atribuies que se chegou a afirmarque seria impossvel encontrar algum que reunisse todas as qua-lificaes necessrias ao exerccio da funo.
Acrescentando a isso a opinio de estudiosos do assunto de queno se pode caracterizar um dirigente como administrador depessoal, pois todos os chefes de empresa devem ser, at certoponto, administradores de pessoal, chegamos, logicamente, sindagaes de Peter Drucker: teria fracassado a administraode pessoal? Estaria ela, por falta de status, sem poder sobre orecurso humano da empresa?
Funes e posio da administrao de pessoal, de CarlosJos Malferrari. In: RAE Revista de Administrao de Empre-sas, v. 3, n. 6, 1963, pp. 13-14.
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