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O ensino de valores através da mídiaO filme Avatar e a educação antropológica
Vitor Pachioni BRUMATTI – Mestrando em Comunicação – UNESP Bauru-SP / Especialista em Antropologia – USC Bauru-SP [i]
Renato VALDERRAMAS – Especialista em Antropologia – USC Bauru-SP [ii]
Caroline Guimarães Martins VALDERRAMAS – Mestre em Pedagogia da Motricidade Humana – UNESP Bauru-SP [iii]
Resumo
O presente artigo tem por finalidade discutir o uso de filmes de grande
bilheteria – também conhecidos como blockbusters – na educação de jovens. Através
de uma análise pontual de alguns momentos do filme Avatar de James Cameron,
propõe-se uma reflexão crítica dos valores discutidos durante a narrativa da obra. A
proposta se fundamenta no interesse dos discentes por tais filmes e na oportunidade
que esse interesse abre aos docentes para a discussão sobre temas como:
etnocentrismo, racismo, mitologia, transculturação, entre outros temas. Aprofundando
a discussão a respeito das temáticas desenvolvidas em plataformas mais próximas aos
discentes, como no caso o cinema, torna-se possível contextualizar esses valores
relacionando-os com acontecimentos e fatos contemporâneos e sua ligação com
teorias estudadas ao longo das disciplinas dos seus respectivos cursos. Essa análise
comparativa permite identificar a aplicação dessas teorias, bem como compreender
suas causas e principalmente suas consequências ao delimitarmos o foco de estudo
dentro do tripé proposto como temática desse debate unindo educação, cultura e
mídia.
Palavras-chave: Cinema; Avatar; Discussão; Valores
Abstract:
This article aims to discuss the use of blockbuster films in the education of
young people. Through an analysis of some parts of the James Cameron movie
Avatar, we propose a critical reflection of the values accosted in the narrative. The
proposal is based on the interests of students by such films and in the opportunity
opened by this interest to the teachers can discuss topics such as ethnocentrism,
racism, mythology, transculturation, among others. At deepen discussion on the
thematics developed on platforms more nearby to students, such as cinema, it
becomes possible to contextualize these values relating them to events and
contemporary facts and their connection with theories studied during the classes of
their respective courses. This comparative analysis permit to identify the application
of these theories as well understand its causes and above all, its consequences when
we defined the focus of study inside the tripod as proposed theme of this debate
linking education, culture and media.
Keywords: Cinema; Avatar; Discussion; Values
Introdução
Os meios de comunicação, na maioria das vezes, são vistos como instrumentos
de um processo educativo negativo, que insere pouco ou quase nenhum valor social e
moral em relação aos seus usuários e espectadores. Isso se deve, em parte, pela grande
discussão da indústria cultural promovida Adorno e Horkheimer (1985) durante seus
estudos na Escola de Frankfurt, onde o processo de produção cultural ligado aos
veículos de comunicação de massa foi hostilizado e responsabilizado por uma
produção de baixa qualidade. Em diversos momentos os estudiosos da Escola de
Frankfurt tratam a popularização e possível democratização da cultura, como um
agente de alienação popular. Diferentemente, os estudiosos da Escola de Chicago
(WOLF, 2005) defendem que o processo de comunicação ligado a utilização dos
veículos de comunicação de massa podem proporcionar um grande salto cultural para
a população que anteriormente não tinha acesso ao conteúdo chamado cultural.
Dentro dessa perspectiva encontramos o cinema como um dos mais antigos e
principais agentes de propagação cultural presente em nossa sociedade. Com seu
surgimento no final do século XIX e amplamente divulgado e difundido durante o
século XX sendo tratado como sétima arte1 o cinema é responsável atualmente por
grande parte das tendências em linguagens e formatos audiovisuais em todo o mundo.
Juntamente a isso estão alocados os valores culturais desenvolvidos dentro das
temáticas dos filmes. Por isso a análise de filmes que provocam grande debate faz-se
de grande importância, pois são filmes como o longa-metragem Avatar que criam
novos momentos dentro da indústria cinematográfica. Essa análise possibilita levantar
e debater como os valores sociais e antropológicos que estão sendo tratado, o que está 1 O termo sétima arte foi dado por Riccioto Canudo no Manifesto das Sete Artes, em 1911.
sendo valorizado, o que tem seu valor diminuído e principalmente qual a função
educativa aplicada na forma de conduzir esses fatores.
Situação-problema
Acredita-se que haja uma reincidente crítica por parte do mundo acadêmico,
em relação aos filmes hollywoodianos – especialmente os caracterizados como
blockbusters2 – no que tange ao conteúdo educacional. Na maioria das vezes, tais
obras cinematográficas são apreciadas a uma luz intransigente, enquadradas como
obras que possuem uma produção rica, mas que transmitem um conteúdo pobre.
Não perdendo a objetividade desta análise e buscando sempre evidenciar os
elementos arquetípicos da construção narrativa, propõe-se uma análise do filme
Avatar de James Cameron sob a ótica da aproximação do público para com a
discussão de certos valores evidenciados em diversos momentos pontuais durante o
desenvolvimento do filme, tais como: choque cultural, valores sociais, relações inter-
pessoais, relacionamento o ser e o meio ambiente e o processo de transformação
cultural em que o ser está constantemente submetido. Com isso pretende-se analisar a
utilização do cinema no processo de aprendizagem de fatores antropológicos e sociais
presentes em nossa sociedade.
Fundamentação teórica
Ao realizar uma análise sobre as temáticas propostas para esse trabalho alguns
autores e suas obras surgem com extrema relevância dentro que relacione: educação,
cultura e mídia. Sendo assim as discussões decorrem principalmente dentro dos
embates epistemológicos das obras de Pierre Lévy (2005), trabalhando as questões do
processo cognitivo e sua relação entre o eu e o meio em que se encontra inserido.
Analisando os aspectos ilustrados na produção cinematográfica em questão e a
sociedade contemporânea.
Estão muito presente também os pensamentos de Joseph Campbell (1990) em
sua excelente obra: “O poder do mito”, desenvolvida em parceria com Bill Moyers,
realizada alguns anos antes em um formato de documentário e posteriormente
2 Tradução literal: bomba (tipo Arrasa-quarteirão). No caso da indústria cinematográfica é utilizado como sinônimo para grande sucesso de cinema.
transcrito para o formato impresso. Nessa obra diversos aspectos surgem como pontos
válidos de análise e comparação com a obra cinematográfica, entre eles analisados
principalmente a necessidade do surgimento do mito ou herói, no formato do
predestinado em busca de grandes realizações ou mensagens a serem compreendidas
posteriormente. Outro ponto importante é a aceitação social em que os indivíduos são
constantemente submetidos e que está presente de maneira muito significativa no
filme. Com isso podemos presenciar dois fatores que se relacionam e constituem boa
parte dos aspectos sócio-culturais dos grupos sociais analisados
Para uma contextualização entre essas ideias faz-se necessário a utilização de
autores e obras que complementem o pensamento e demonstrem a ligação das
temáticas em questão, como por exemplo, Marshall Mcluhan (1969), Ray Kurzweil
(2007), Darcy Ribeiro (1995), que em seus estudos e análises contribuem para o
desenvolvimento da relação entre os temas e possibilitam a análise posterior.
Justificativa
O presente tema se justifica pela aproximação do objeto analisado – uma obra
cinematográfica de ficção científica concorrendo a diversos Oscars3 em 2010 – com o
grande público, em especial com estudantes do ensino fundamental, médio e ingressos
do ensino superior. O interesse instigado pela mídia, à divulgação massiva do filme e
o sucesso de bilheteria seriam justificativas mais que exemplares a se propor uma
discussão teórica mais profunda de pontos importantes abordados pela narrativa da
obra, em especial os pontos que costuram os valores individuais e coletivos das
personagens.
3 Formalmente Academy Awards (Prêmios da Academia) é o nome pelo qual são popularmente conhecidos os prêmios da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos da América, fundada em Los Angeles, na Califórnia, em 11 de maio de 1927.i[?] Mestrando em Comunicação pela Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação. Especialista em Antropologia. Graduado em Comunicação Social - Hab. Publicidade e Propaganda. Atualmente é docente e coordenador da Agência Experimental de Publicidade e Propaganda da Universidade Sagrado Coração. [email protected].
ii[?] Cursando Especialização em Antropologia. Graduado em Desenho Industrial - Hab. Comunicação Visual. Atualmente é docente dos cursos de Publicidade e Propaganda e Design de Moda da Universidade Sagrado Coração. [email protected].
iii[?] Mestre em Pedagogia da Motricidade Humana pela Universidade Estadual Paulista (UNESP - Rio Claro) - Especialista em Educação Escolar pela FECAP/Integrale - Bauru. Graduada em Educação Física pela Universidade Estadual Paulista (UNESP - Bauru). [email protected].
Objetivos
Objetivo geral
Sugerir a apreciação de filmes como ferramenta de observação crítica da
realidade e de discussão de valores no ambiente educacional, pontuando a existência
de temáticas menos superficiais e mais subjetivas na narrativa cinematográfica.
Propõe-se a complementaridade e/ou aprofundamento a respeito dos temas dos pontos
supracitados – com a discussão junto aos alunos a partir de textos acadêmicos que
possam ser utilizados para o melhor entendimento do assunto.
Objetivos específicos
Recortar, dentro do decorrer da obra, algumas situações-chave para o
apontamento de problemas de valores éticos, morais e até mesmo espirituais de forma
a suscitar a importância de uma leitura mais profunda das obras cinematográficas em
si, podendo criar uma consciência apreciativa mais crítica por parte do receptor.
Metodologia
Foi desenvolvida uma pesquisa bibliográfica exploratória, analisando e
comparando os autores relevantes às temáticas desenvolvidas e posteriormente foi
aplicada uma análise qualitativa em imagens extraídas do longa-metragem Avatar
(AVATAR, 2009) que retratam momentos-chave relacionados aos temas educação,
mídia e cultural, dentro da análise antropológica.
A escolha das imagens foi realizada em um processo de amostragem por
conveniência e a análise foi embasada na pesquisa bibliográfica exploratória.
Resultados e Discussão
1. A transferência do corpo
Figura 1 - O eu e sua auto-imagem no plano real. (AVATAR, 2009)
No início do filme, o personagem principal tem sua mente transportada
voluntariamente para um corpo biologicamente projetado pelos humanos. Uma vez
conectado – através de uma câmara, e diversos equipamentos que possibilitem essa
conexão –, o personagem assume sua forma alienígena enquanto o corpo oficial,
humano, repousa conectado aos aparelhos. Esse momento é apresentado na obra como
um evento bastante corriqueiro para os cientistas do projeto, uma vez que estes já
estavam habituados a tal transferência; mas esse mesmo momento gera uma grande
exaltação por parte do personagem que é paraplégico, em seu corpo humano, e pode
se locomover naturalmente, como Na'vi, como se estivesse controlando um
personagem em um jogo. Muito se estuda nas ciências da comunicação sobre os meios
como extensão do homem (MCLUHAN, 1969), sobre o jogo e sua função social: "Os
jogos são modelos dramáticos de nossas vidas psicológicas, e servem para liberar
tensões particulares. São formas artísticas populares e coletivas, que obedecem a
regras estritas".
Para os mais jovens – ou para os adultos mais atentos à evolução da científica
– a transferência corpórea já não é mais assunto tão distante visto que já existem
tecnologias atuais que transferem os movimentos do corpo do jogador para dentro da
tela do aparelho de televisão (Nintendo Wii4). Para os pensadores mais otimistas
(KURZWEIL, 2007) em aproximadamente 90 anos no futuro será difícil separarmos o
humano da máquina, tanto em relação ao corpo, quanto em relação ao pensamento.
O que fica mais claro, em relação a este trecho do filme, Figura 1, é o aspecto
da transferência; a ilusão do um, mente e corpo humanos de Jake Sully (personagem
principal do filme Avatar), para dois, mente de Jake Sully humana no corpo
4 Console de videogame doméstico produzido pela empresa Nintendo, que proporciona como grande diferencial a interação e jogabilidade entre usuário e console.
biologicamente construído de seu Avatar, do caminhar constante que sua mente
realiza durante o decorrer do filme pelos dois corpos e que acaba levando-o a
constantes avaliações de seus conceitos e, principalmente de seus pré-conceitos
humanos em relação à cultura na qual ele virá a se integrar ao longo do filme.
2. Transculturação e dominação
Figura 2 - Um humano no corpo de um Na'vi, por
sua vez vestido de humano. (AVATAR, 2009)
Figura 3 - A dominação de um povo sobre o outro.
(AVATAR, 2009)
Quando em contato com povos, ou indivíduos de outras culturas, o homem
tende a observar os hábitos e valores do outro e avaliá-los a partir de seu próprio
repertório (Figura 2). Essa avaliação é normalmente preconceituosa, chegando mesmo
a ser danosa, em especial quando um grupo considera-se superior a outro. O contato
inicial com o povo Na'vi – até esse momento não retratado na obra, mas mencionado
por uma de suas personagens – deixa uma primeira impressão de se tratar de um povo
menos evoluído, primitivo e pouco disposto ao diálogo, uma vez que os humanos
tentaram estabelecer um contato pacífico para com eles, oferecendo-lhes tecnologia,
habitação e outros elementos culturais muito pertinentes à cultura humana, mas
completamente insignificantes a cultura Na'vi, que os repeliu completamente.
Essa visão etnocêntrica gera a base do discurso do General Miles Quaritch –
personagem que tem como principal missão garantir a segurança da expedição e
remover os Na'vi do clã Omaticaya da árvore de onde vivem – que não vê problema
algum em usar a força bélica para sua expulsão (Figura 3). Se refizermos um percurso
histórico, encontramos traços de situações semelhantes que aconteceram entre
habitantes de nosso próprio planeta, como o massacre do povo Azteca por Hernán
Cortez, por exemplo, onde o explorador europeu detinha – em grande grau de
superioridade – a primazia bélica.
Ao se refletirmos sobre essa passagem, observa-se que existem, dentro do
grupo das personagens humanas, aquelas que repudiam a civilização Na'vi, aquelas
que a defendem a todo custo, e a personagem central que por estar inicialmente
inserida numa situação cultural, acaba passando – com a convivência junto ao povo
Na'vi – por um processo de transculturação, ou seja, assimila elementos da cultura do
outro por passar por um processo de aproximação diferenciado, não mais observando
a nova cultura como externa ao seu meio, mas inserindo-se no meio em que vive o
outro, passando assim a ter um contato muito próximo dos elementos sociais,
históricos e ambientais que formam e forjam essa cultura, não apenas entendendo-a,
mas principalmente vivendo imerso nela.
3. O momento da predestinação
Figura 4 - O escolhido revela-se. (AVATAR, 2009)
Nossa sociedade está constantemente em busca de heróis, seres capazes de
transcender as limitações humanas e realizar grandes feitos dentro do contexto em que
estão inseridos. O cinema busca através de suas histórias utilizar constantemente
dessa ferramenta como ponto central dos roteiros. Não são poucos os casos de
utilização do herói como ponto central de uma narrativa. Temos por exemplo o
personagem Neo interpretador pelo ator Keanu Reeves no filme Matrix (MATRIX,
1999), bem como personagens mais estereotipados como heróis ou super-heróis,
como, por exemplo no filme Superman (SUPERMAN, 1978), onde o personagem
principal dispõe de poderes supra-humanos que o possibilita a realização de ações
impossíveis a seres humanos comuns. De acordo com Campbell (1990) a existência
do escolhido, ou ser capaz de grandes realizações dentro dos grupos sociais é algo
constante porque faz parte do processo de construção de mitos ao qual a sociedade
atribui explicações e ensina valores a partir da criação e desenvolvimento de
personagens, histórias e enredos.
Ainda de acordo com Campbell (1990), esse heróis, ou mitos, estão inseridos
em um contexto social onde é preciso romper obstáculos, superar barreiras impostas
com a finalidade de alcançar o que aparentemente se mostra intangível. No filme
Avatar podemos analisar, Figura 4, o momento onde o personagem Jake Sully, mostra
diferente e especial dentro de dois contextos, o dos humanos onde ele vivencia uma
experiência tida como impossível pelos especialistas daquela sociedade se inserindo
de maneira intensa no grupo social dos Na'vis e outro contexto relacionado ao próprio
povo Na'vi, que presencia através da personagem Neytiri, o personagem Jake Sully
ser cercado por centenas de sementes da vida, entendidas como sagradas pelos Na'vi.
Esse fato transformou o ponto de vista de Neyriti em relação à Jake Sully a ponto de
ele ser levado para dentro do povo Na'vi e ter a possibilidade de conhecer a cultura,
seus hábitos, costumes e principalmente seus valores.
4. A legitimação social
Figura 5 - Os Na'vis aceitam um Humano-Na'vi como parte de seu grupo. (AVATAR, 2009)
Uma vez dentro do povo Na'vi não bastava apenas estar junto a eles, era
necessário, ser um deles. Por isso Jake Sully passa há vivenciar o dia a dia, bem como
as experiências do grupo. Além do que o próprio grupo passa a também vivenciar a
presença do novo integrante, visto agora como um possível escolhido, inserido dentro
da sociedade, fato que até então não vivenciado por ambas as partes. Segundo
Campbell (1990) essa processo é comum na relação escolhido e/ou herói e suas
sociedade e grupo social. Os escolhidos têm uma missão a ser exercida dentro de cada
grupo, missão essa que pode ser materializada em uma grande conquista, um ato
bravura, ou ainda um ensinamento a ser seguido.
Para atingir esse processo todo grupo social estipula seus ritos ou rituais de
passagem que demonstram segundo suas crenças, a capacidade do indivíduo em fazer
parte daquele grupo, no sentido de realizar as tarefas necessárias a sua função dentro
da hierarquia social, como também participar da cultura em que está assumindo a
partir daquele momento. Na figura 5, vemos o momento em que Jake Sully é recebido
na tribo dos Na'vis após conseguir cumprir as tarefas necessárias para se tornar um
guerreiro do grupo, dessa forma ele é submetido a um ritual de aceitação, onde todos
os indivíduos pertencentes à aquela sociedade passam a enxergá-lo como um deles,
inclusive é possível notar que ele já está vestido como um Na'vi, a partir desse
momento ele passa a ser chamado Jakesully. A partir desse momento todo o grupo o
trata como um integrante e observá-lo a fim de identificar nele a presença ou pré-
destinação do escolhido nele, sendo esse o processo de legitimação social
(CAMPBELL, 1990).
5. A inteligência coletiva
Figura 6 - Conhecimento e sabedoria, os maiores bens de um povo, quando compartilhados.
(AVATAR, 2009)
Um ponto muito interessante presente na sociedade Na'vi do filme Avatar é a
relação dos integrantes da comunidade com o conhecimento e a sabedoria. Os Na'vis
buscam uma preservação do saber através da multiplicação e contemplação do
mesmo. Eles vivem em uma dualidade onde o conhecimento é ao mesmo tempo
sagrado e pertencente a todos. É muito interessante observar e comparar essa relação
com a nossa sociedade atual. Alguns povos nativos ou também chamados primitivos
também desenvolviam a mesma relação com o saber, como Ribeiro (1995) trata em
seu livro O povo brasileiro, relatando diversas experiências com comunidades
indígenas por todo o Brasil. Onde a sabedoria deveria ser tratada ao mesmo tempo
como algo a ser alcançado, incluindo a busca do sagrado, ao mesmo tempo ele precisa
ser compartilhado para assim perpetuar e transpassar as gerações.
Analisando a realidade contemporânea, encontramos uma relação muito mais
complexa, o conhecimento em nossa sociedade ainda tem um poder muito forte, mas
ele constantemente busca identificar-se e dividir-se muito bem para poder determinar
o que, como e quando deve ser estudado e analisado, além disso, busca-se sim uma
universalização desse saber, ou seja, que ele torne-se aplicável em diversas sociedades
e grupos sociais ao mesmo tempo. Com isso o conhecimento e a sabedoria chamada
popular deram lugar a ferramentas que formatam e tornam acessíveis o conhecimento
em situações, regiões ou mesmo sociedades diferentes. Como resultado disso, vemos
um distanciamento entre a sociedade e o conhecimento, buscando por vezes a
valorização e reduzindo o processo de disseminação do mesmo. Para isso busca-se a
criação de ferramentas capazes de tornar essa disseminação mais rápida e
efetivamente acessível a diferentes níveis e setores da sociedade e dos grupos sociais.
Analisando a relação que acontece no longa-metragem Avatar vemos
claramente a aplicação dos conceitos de Lévy (1995) desenvolvidos em sua obra As
tecnologias da inteligência, quando ele cunha o termo "ecologia cognitiva" que ele
explica da seguinte forma: “As coletividades cognitivas se auto-organizam, se mantém e se transformam através do envolvimento permanente dos indivíduos que as compõem. Mas estas coletividades não são constituídas apenas por seres humanos. Nós vimos que as técnicas de comunicação e de processamento das representações também desempenham, nelas, um papel igualmente essencial. É preciso ainda ampliar as coletividades cognitivas às outras técnicas, e mesmo a todos os elementos do universo físico que as ações humanas implicam”. (Lévy, 1995:144)
Dessa forma vemos que Lévy (1995) que o conhecimento não está ou é
restrito apenas ao ser humano, o eu não é inteligente sozinho, mas pertence a algo
muito maior, uma rede complexa de inter-relações, onde o ser e o meio (ou rede)
relacionam-se de modo a compartilhar o que aprendem e o que podem ensinar, e
assim completar-se (figura 6), ou como o autor trata o processo cognitivo.
6. A transferência da Mente
Figura 8 - O fim e o início encontram-se. (AVATAR, 2009)
Já acostumados, durante o decorrer do filme, às contínuas viagens da mente de
Jake Sully entre seus corpos (humano e Na'vi) o ato da transferência da mente entre
dois corpos passa a ser muito transparente ao espectador. Havíamos passado – já faz
alguns anos – pela frenética viagem mental de Matrix, onde a mente da personagem
Neo viaja entre seu corpo humano e sua forma digital dentro do computador. No
cinema o tema da transferência é bastante comum e chega a ser corriqueiro, mas o
tema circunda a nossa realidade. Pesquisadores da Universidade de Karolinska
(Suécia) fazem experimentos em que um ser humano usa óculos que lhe dá a visão de
um corpo inanimado de um manequim. Quando o corpo deste manequim é ameaçado
por uma faca, por exemplo, o ser humano entra em estado de estresse, pois o cérebro
pensa se tratar de seu próprio corpo 5.
Obviamente que há uma distância muito grande entre a pesquisa supracitada e
a situação apresentada pelo filme, mas o importante neste caso é pensar o
5 www.inovacaotecnologica.com.br/noticias/noticia.php?artigo=realidade-virtual-cria-ilusao-de-troca-de-corpo&id=. Acessado em 17 de fevereiro de 2010.
posicionamento do personagem que teve sua mente transferida para o corpo em
caráter temporário no início da obra e que o fará de forma definitiva – utilizando de
recursos naturais do próprio planeta de Pandora – já no final da obra. Em que
momento da obra ele deixa de ser humano para tornas-se um Na'vi? Apenas durante a
transferência final?
Se observarmos que um ser humano com as condições atmosféricas peculiares
de Pandora não conseguiria sobreviver àquele ambiente sem aparelhos de extensão de
suas capacidades (filtros de oxigênio, por exemplo) ou que, por sua mobilidade
limitada, a personagem teria problemas de locomoção em um ambiente não adaptado,
enfim, se levarmos a conformação física como o primeiro grau de distinção humano-
Na'vi, concluímos que a personagem de Jake Sully nunca faria parte do clã dos
nativos. Entretanto, se levarmos em conta a experiência da aproximação cultural
apreendida pelo intelecto da personagem durante a trajetória da obra, sua vivência
junto ao grupo social e sua plena integração ao ambiente, podemos afirmar que Jake
se torna um autêntico Na'vi muito antes da transferência final, uma vez que ocorre o
processo de aproximação e assimilação cultural durante toda a obra. Outro filme que
apresenta um processo de transculturação bastante intenso é Dança com Lobos
(DANÇA COM LOBOS, 1990) onde o personagem John Dubar (Kevin Costner)
passa a viver em terras habitadas por índios Sioux. Absorvendo os costumes, a língua
e interagindo com o ambiente nativo, chegam mesmo a dizer – na língua Sioux – a
outros homens brancos, que o encontram no final do filme, que seu nome era «Dança
com Lobos» – nome que lhe foi atribuído pelos nativos.
Observando tais momentos, podemos encarar mais criticamente e questionar
certos pré-conceitos como a diferença entre raças, idades, sexos, religiões etc. sob
uma ótica cultural – mais inclusiva e menos segregadora.
Considerações finais
Propor uma apreciação mais séria a obras cinematográficas originalmente
construídas para fins de entretenimento tem suas vantagens. O convite a assistir a um
filme, em especial se este for uma referência de bilheteria, ou estiver dentro do
repertório midiático do grupo de alunos com quem se trabalha é, no mínimo, recebido
com curiosidade por parte deste grupo. A aproximação de temas tidos como
indigestos pelos discentes, sob certos aspectos por falta de interesse, pode ser
transformada em motivo de surpresa e, porque não, de apreciação sobre novos
olhares. A associação do conteúdo narrativo dos filmes a textos mais densos que
discutam o tema mais profundamente pode ser a chave para uma porta que permita ao
docente adentrar ao espaço da curiosidade do discente e iniciar um trabalho de
conexão entre os temas necessários à construção de valores do aluno e ao conteúdo
das mídias como o cinema, por exemplo, transformando este aluno em um espectador
que apreenderá mais a respeito do conteúdo de filmes que verá no futuro.
A investigação de alguns pontos em que o assunto possa suscitar a geração de
discussões para com os discentes foi o intuito do presente artigo – observando apenas
o filme Avatar. A fruição necessária para refazer este percurso em outras obras, não é
complexa. Basta apenas que o docente dialogue um pouco mais com o universo
midiático e cultural do aluno e passe a vê-lo, não mais como o outro, mas como um
integrante de uma civilização que, por vir de um tempo diferente – o futuro – tem uma
cultura midiática e uma vivência em comunicação não de menor qualidade, mas
bastante diferente.
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