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O ensino de valores através da mídia O filme Avatar e a educação antropológica Vitor Pachioni BRUMATTI – Mestrando em Comunicação – UNESP Bauru-SP / Especialista em Antropologia – USC Bauru-SP [i ] Renato VALDERRAMAS – Especialista em Antropologia – USC Bauru-SP [ii ] Caroline Guimarães Martins VALDERRAMAS – Mestre em Pedagogia da Motricidade Humana – UNESP Bauru-SP [iii ] Resumo O presente artigo tem por finalidade discutir o uso de filmes de grande bilheteria também conhecidos como blockbusters na educação de jovens. Através de uma análise pontual de alguns momentos do filme Avatar de James Cameron, propõe-se uma reflexão crítica dos valores discutidos durante a narrativa da obra. A proposta se fundamenta no interesse dos discentes por tais filmes e na oportunidade que esse interesse abre aos docentes para a discussão sobre temas como: etnocentrismo, racismo, mitologia, transculturação, entre outros temas. Aprofundando a discussão a respeito das temáticas desenvolvidas em plataformas mais próximas aos discentes, como no caso o cinema, torna-se possível contextualizar esses valores relacionando-os com acontecimentos e fatos contemporâneos e sua ligação com teorias estudadas ao longo das disciplinas dos seus respectivos cursos. Essa análise comparativa permite identificar a aplicação dessas teorias, bem como compreender

Cinema e o ensinorevistajurisfib.com.br/artigos/1297389015.doc · Web viewDiferentemente, os estudiosos da Escola de Chicago (WOLF, 2005) defendem que o processo de comunicação

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O ensino de valores através da mídiaO filme Avatar e a educação antropológica 

Vitor Pachioni BRUMATTI – Mestrando em Comunicação – UNESP Bauru-SP / Especialista em Antropologia – USC Bauru-SP [i]

Renato VALDERRAMAS – Especialista em Antropologia – USC Bauru-SP [ii]

Caroline Guimarães Martins VALDERRAMAS – Mestre em Pedagogia da Motricidade Humana – UNESP Bauru-SP [iii]    

Resumo

O presente artigo tem por finalidade discutir o uso de filmes de grande

bilheteria – também conhecidos como blockbusters – na educação de jovens. Através

de uma análise pontual de alguns momentos do filme Avatar de James Cameron,

propõe-se uma reflexão crítica dos valores discutidos durante a narrativa da obra. A

proposta se fundamenta no interesse dos discentes por tais filmes e na oportunidade

que esse interesse abre aos docentes para a discussão sobre temas como:

etnocentrismo, racismo, mitologia, transculturação, entre outros temas. Aprofundando

a discussão a respeito das temáticas desenvolvidas em plataformas mais próximas aos

discentes, como no caso o cinema, torna-se possível contextualizar esses valores

relacionando-os com acontecimentos e fatos contemporâneos e sua ligação com

teorias estudadas ao longo das disciplinas dos seus respectivos cursos. Essa análise

comparativa permite identificar a aplicação dessas teorias, bem como compreender

suas causas e principalmente suas consequências ao delimitarmos o foco de estudo

dentro do tripé proposto como temática desse debate unindo educação, cultura e

mídia.

Palavras-chave: Cinema; Avatar; Discussão; Valores

Abstract:

This article aims to discuss the use of blockbuster films in the education of

young people. Through an analysis of some parts of the James Cameron movie

Avatar, we propose a critical reflection of the values accosted in the narrative. The

proposal is based on the interests of students by such films and in the opportunity

opened by this interest to the teachers can discuss topics such as ethnocentrism,

racism, mythology, transculturation, among others. At deepen discussion on the

thematics developed on platforms more nearby to students, such as cinema, it

becomes possible to contextualize these values relating them to events and

contemporary facts and their connection with theories studied during the classes of

their respective courses. This comparative analysis permit to identify the application

of these theories as well understand its causes and above all, its consequences when

we defined the focus of study inside the tripod as proposed theme of this debate

linking education, culture and media.

Keywords: Cinema; Avatar; Discussion; Values

Introdução

Os meios de comunicação, na maioria das vezes, são vistos como instrumentos

de um processo educativo negativo, que insere pouco ou quase nenhum valor social e

moral em relação aos seus usuários e espectadores. Isso se deve, em parte, pela grande

discussão da indústria cultural promovida Adorno e Horkheimer (1985) durante seus

estudos na Escola de Frankfurt, onde o processo de produção cultural ligado aos

veículos de comunicação de massa foi hostilizado e responsabilizado por uma

produção de baixa qualidade. Em diversos momentos os estudiosos da Escola de

Frankfurt tratam a popularização e possível democratização da cultura, como um

agente de alienação popular. Diferentemente, os estudiosos da Escola de Chicago

(WOLF, 2005) defendem que o processo de comunicação ligado a utilização dos

veículos de comunicação de massa podem proporcionar um grande salto cultural para

a população que anteriormente não tinha acesso ao conteúdo chamado cultural. 

Dentro dessa perspectiva encontramos o cinema como um dos mais antigos e

principais agentes de propagação cultural presente em nossa sociedade. Com seu

surgimento no final do século XIX e amplamente divulgado e difundido durante o

século XX sendo tratado como sétima arte1 o cinema é responsável atualmente por

grande parte das tendências em linguagens e formatos audiovisuais em todo o mundo.

Juntamente a isso estão alocados os valores culturais desenvolvidos dentro das

temáticas dos filmes. Por isso a análise de filmes que provocam grande debate faz-se

de grande importância, pois são filmes como o longa-metragem Avatar que criam

novos momentos dentro da indústria cinematográfica. Essa análise possibilita levantar

e debater como os valores sociais e antropológicos que estão sendo tratado, o que está 1 O termo sétima arte foi dado por Riccioto Canudo no Manifesto das Sete Artes, em 1911.

sendo valorizado, o que tem seu valor diminuído e principalmente qual a função

educativa aplicada na forma de conduzir esses fatores.

Situação-problema

Acredita-se que haja uma reincidente crítica por parte do mundo acadêmico,

em relação aos filmes hollywoodianos – especialmente os caracterizados como

blockbusters2 – no que tange ao conteúdo educacional. Na maioria das vezes, tais

obras cinematográficas são apreciadas a uma luz intransigente,  enquadradas como

obras que possuem uma produção rica, mas que transmitem um conteúdo pobre.

Não perdendo a objetividade desta análise e buscando sempre evidenciar os

elementos arquetípicos da construção narrativa, propõe-se uma análise do filme

Avatar de James Cameron sob a ótica da aproximação do público para com a

discussão de certos valores evidenciados em diversos momentos pontuais durante o

desenvolvimento do filme, tais como: choque cultural, valores sociais, relações inter-

pessoais, relacionamento o ser e o meio ambiente e o processo de transformação

cultural em que o ser está constantemente submetido. Com isso pretende-se analisar a

utilização do cinema no processo de aprendizagem de fatores antropológicos e sociais

presentes em nossa sociedade.

Fundamentação teórica

Ao realizar uma análise sobre as temáticas propostas para esse trabalho alguns

autores e suas obras surgem com extrema relevância dentro que relacione: educação,

cultura e mídia. Sendo assim as discussões decorrem principalmente dentro dos

embates epistemológicos das obras de Pierre Lévy (2005), trabalhando as questões do

processo cognitivo e sua relação entre o eu e o meio em que se encontra inserido.

Analisando os aspectos ilustrados na produção cinematográfica em questão e a

sociedade contemporânea.

Estão muito presente também os pensamentos de Joseph Campbell (1990) em

sua excelente obra: “O poder do mito”, desenvolvida em parceria com Bill Moyers,

realizada alguns anos antes em um formato de documentário e posteriormente

2 Tradução literal: bomba (tipo Arrasa-quarteirão). No caso da indústria cinematográfica é utilizado como sinônimo para grande sucesso de cinema.

transcrito para o formato impresso. Nessa obra diversos aspectos surgem como pontos

válidos de análise e comparação com a obra cinematográfica, entre eles analisados

principalmente a necessidade do surgimento do mito ou herói, no formato do

predestinado em busca de grandes realizações ou mensagens a serem compreendidas

posteriormente. Outro ponto importante é a aceitação social em que os indivíduos são

constantemente submetidos e que está presente de maneira muito significativa no

filme. Com isso podemos presenciar dois fatores que se relacionam e constituem boa

parte dos aspectos sócio-culturais dos grupos sociais analisados

Para uma contextualização entre essas ideias faz-se necessário a utilização de

autores e obras que complementem o pensamento e demonstrem a ligação das

temáticas em questão, como por exemplo, Marshall Mcluhan (1969), Ray Kurzweil

(2007), Darcy Ribeiro (1995), que em seus estudos e análises contribuem para o

desenvolvimento da relação entre os temas e possibilitam a análise posterior.

Justificativa

O presente tema se justifica pela aproximação do objeto analisado – uma obra

cinematográfica de ficção científica concorrendo a diversos Oscars3 em 2010 – com o

grande público, em especial com estudantes do ensino fundamental, médio e ingressos

do ensino superior. O interesse instigado pela mídia, à divulgação massiva do filme e

o sucesso de bilheteria seriam justificativas mais que exemplares a se propor uma

discussão teórica mais profunda de pontos importantes abordados pela narrativa da

obra, em especial os pontos que costuram os valores individuais e coletivos das

personagens.

3 Formalmente Academy Awards (Prêmios da Academia) é o nome pelo qual são popularmente conhecidos os prêmios da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos da América, fundada em Los Angeles, na Califórnia, em 11 de maio de 1927.i[?] Mestrando em Comunicação pela Universidade Estadual Paulista  - Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação. Especialista em Antropologia. Graduado em Comunicação Social - Hab. Publicidade e Propaganda. Atualmente é docente e coordenador da Agência Experimental de Publicidade e Propaganda da Universidade Sagrado Coração. [email protected].

ii[?] Cursando Especialização em Antropologia. Graduado em Desenho Industrial - Hab. Comunicação Visual. Atualmente é docente dos cursos de Publicidade e Propaganda e Design de Moda da Universidade Sagrado Coração. [email protected].

iii[?] Mestre em Pedagogia da Motricidade Humana pela Universidade Estadual Paulista (UNESP - Rio Claro) - Especialista em Educação Escolar pela FECAP/Integrale - Bauru. Graduada em Educação Física pela Universidade Estadual Paulista (UNESP - Bauru). [email protected].

Objetivos

Objetivo geral

Sugerir a apreciação de filmes como ferramenta de observação crítica da

realidade e de discussão de valores no ambiente educacional, pontuando a existência

de temáticas menos superficiais e mais subjetivas na narrativa cinematográfica.

Propõe-se a complementaridade e/ou aprofundamento a respeito dos temas dos pontos

supracitados – com a discussão junto aos alunos a partir de textos acadêmicos que

possam ser utilizados para o melhor entendimento do assunto.

Objetivos específicos

Recortar, dentro do decorrer da obra, algumas situações-chave para o

apontamento de problemas de valores éticos, morais e até mesmo espirituais de forma

a suscitar a importância de uma leitura mais profunda das obras cinematográficas em

si, podendo criar uma consciência apreciativa mais crítica por parte do receptor.

Metodologia

Foi desenvolvida uma pesquisa bibliográfica exploratória, analisando e

comparando os autores relevantes às temáticas desenvolvidas e posteriormente foi

aplicada uma análise qualitativa em imagens extraídas do longa-metragem Avatar

(AVATAR, 2009) que retratam momentos-chave relacionados aos temas educação,

mídia e cultural, dentro da análise antropológica.

A escolha das imagens foi realizada em um processo de amostragem por

conveniência e a análise foi embasada na pesquisa bibliográfica exploratória.

 

Resultados e Discussão

1. A transferência do corpo

Figura 1 - O eu e sua auto-imagem no plano real. (AVATAR, 2009)

No início do filme, o personagem principal tem sua mente transportada

voluntariamente para um corpo biologicamente projetado pelos humanos. Uma vez

conectado – através de uma câmara, e diversos equipamentos que possibilitem essa

conexão –, o personagem assume sua forma alienígena enquanto o corpo oficial,

humano, repousa conectado aos aparelhos. Esse momento é apresentado na obra como

um evento bastante corriqueiro para os cientistas do projeto, uma vez que estes já

estavam habituados a tal transferência; mas esse mesmo momento gera uma grande

exaltação por parte do personagem que é paraplégico, em seu corpo humano, e pode

se locomover naturalmente, como Na'vi, como se estivesse controlando um

personagem em um jogo. Muito se estuda nas ciências da comunicação sobre os meios

como extensão do homem (MCLUHAN, 1969), sobre o jogo e sua função social:  "Os

jogos são modelos dramáticos de nossas vidas psicológicas, e servem para liberar

tensões particulares. São formas artísticas populares e coletivas, que obedecem a

regras estritas".

Para os mais jovens – ou para os adultos mais atentos à evolução da científica

– a transferência corpórea já não é mais assunto tão distante visto que já existem

tecnologias atuais que transferem os movimentos do corpo do jogador para dentro da

tela do aparelho de televisão (Nintendo Wii4). Para os pensadores mais otimistas

(KURZWEIL, 2007) em aproximadamente 90 anos no futuro será difícil separarmos o

humano da máquina, tanto em relação ao corpo, quanto em relação ao pensamento.

O que fica mais claro, em relação a este trecho do filme, Figura 1, é o aspecto

da transferência; a ilusão do um, mente e corpo humanos de Jake Sully (personagem

principal do filme Avatar), para dois, mente de Jake Sully humana no corpo

4 Console de videogame doméstico produzido pela empresa Nintendo, que proporciona como grande diferencial a interação e jogabilidade entre usuário e console.

biologicamente construído de seu Avatar, do caminhar constante que sua mente

realiza durante o decorrer do filme pelos dois corpos e que acaba levando-o a

constantes avaliações de seus conceitos e, principalmente de seus pré-conceitos

humanos em relação à cultura na qual ele virá a se integrar ao longo do filme.

2. Transculturação e dominação

Figura 2 - Um humano no corpo de um Na'vi, por

sua vez vestido de humano. (AVATAR, 2009)

Figura 3 - A dominação de um povo sobre o outro.

(AVATAR, 2009)

Quando em contato com povos, ou indivíduos de outras culturas, o homem

tende a observar os hábitos e valores do outro e avaliá-los a partir de seu próprio

repertório (Figura 2). Essa avaliação é normalmente preconceituosa, chegando mesmo

a ser danosa, em especial quando um grupo considera-se superior a outro. O contato

inicial com o povo Na'vi – até esse momento não retratado na obra, mas mencionado

por uma de suas personagens – deixa uma primeira impressão de se tratar de um povo

menos evoluído, primitivo e pouco disposto ao diálogo, uma vez que os humanos

tentaram estabelecer um contato pacífico para com eles, oferecendo-lhes tecnologia,

habitação e outros elementos culturais muito pertinentes à cultura humana, mas

completamente insignificantes a cultura Na'vi, que os repeliu completamente.

Essa visão etnocêntrica gera a base do discurso do General Miles Quaritch –

personagem que tem como principal missão garantir a segurança da expedição e

remover os Na'vi do clã Omaticaya da árvore de onde vivem – que não vê problema

algum em usar a força bélica para sua expulsão (Figura 3). Se refizermos um percurso

histórico, encontramos traços de situações semelhantes que aconteceram entre

habitantes de nosso próprio planeta, como o massacre do povo Azteca por Hernán

Cortez, por exemplo, onde o explorador europeu detinha – em grande grau de

superioridade – a primazia bélica.

Ao se refletirmos sobre essa passagem, observa-se que existem, dentro do

grupo das personagens humanas, aquelas que repudiam a civilização Na'vi, aquelas

que a defendem a todo custo, e a personagem central que por estar inicialmente

inserida numa situação cultural, acaba passando – com a convivência junto ao povo

Na'vi – por um processo de transculturação, ou seja, assimila elementos da cultura do

outro por passar por um processo de aproximação diferenciado, não mais observando

a nova cultura como externa ao seu meio, mas inserindo-se no meio em que vive o

outro, passando assim a ter um contato muito próximo dos elementos sociais,

históricos e ambientais que formam e forjam essa cultura, não apenas entendendo-a,

mas principalmente vivendo imerso nela.

3. O momento da predestinação

Figura 4 - O escolhido revela-se. (AVATAR, 2009)

Nossa sociedade está constantemente em busca de heróis, seres capazes de

transcender as limitações humanas e realizar grandes feitos dentro do contexto em que

estão inseridos. O cinema busca através de suas histórias utilizar constantemente

dessa ferramenta como ponto central dos roteiros. Não são poucos os casos de

utilização do herói como ponto central de uma narrativa. Temos por exemplo o

personagem Neo interpretador pelo ator Keanu Reeves no filme Matrix (MATRIX,

1999), bem como personagens mais estereotipados como heróis ou super-heróis,

como, por exemplo no filme Superman (SUPERMAN, 1978), onde o personagem

principal dispõe de poderes supra-humanos que o possibilita a realização de ações

impossíveis a seres humanos comuns. De acordo com Campbell (1990) a existência

do escolhido, ou ser capaz de grandes realizações dentro dos grupos sociais é algo

constante porque faz parte do processo de construção de mitos ao qual a sociedade

atribui explicações e ensina valores a partir da criação e desenvolvimento de

personagens, histórias e enredos.

Ainda de acordo com Campbell (1990), esse heróis, ou mitos, estão inseridos

em um contexto social onde é preciso romper obstáculos, superar barreiras impostas

com a finalidade de alcançar o que aparentemente se mostra intangível. No filme

Avatar podemos analisar, Figura 4, o momento onde o personagem Jake Sully, mostra

diferente e especial dentro de dois contextos, o dos humanos onde ele vivencia uma

experiência tida como impossível pelos especialistas daquela sociedade se inserindo

de maneira intensa no grupo social dos Na'vis e outro contexto relacionado ao próprio

povo Na'vi, que presencia através da personagem Neytiri, o personagem Jake Sully

ser cercado por centenas de sementes da vida, entendidas como sagradas pelos Na'vi.

Esse fato transformou o ponto de vista de Neyriti em relação à Jake Sully a ponto de

ele ser levado para dentro do povo Na'vi e ter a possibilidade de conhecer a cultura,

seus hábitos, costumes e principalmente seus valores.

4. A legitimação social

Figura 5 - Os Na'vis aceitam um Humano-Na'vi como parte de seu grupo. (AVATAR, 2009)

Uma vez dentro do povo Na'vi não bastava apenas estar junto a eles, era

necessário, ser um deles. Por isso Jake Sully passa há vivenciar o dia a dia, bem como

as experiências do grupo. Além do que o próprio grupo passa a também vivenciar a

presença do novo integrante, visto agora como um possível escolhido, inserido dentro

da sociedade, fato que até então não vivenciado por ambas as partes. Segundo

Campbell (1990) essa processo é comum na relação escolhido e/ou herói e suas

sociedade e grupo social. Os escolhidos têm uma missão a ser exercida dentro de cada

grupo, missão essa que pode ser materializada em uma grande conquista, um ato

bravura, ou ainda um ensinamento a ser seguido.

Para atingir esse processo todo grupo social estipula seus ritos ou rituais de

passagem que demonstram segundo suas crenças, a capacidade do indivíduo em fazer

parte daquele grupo, no sentido de realizar as tarefas necessárias a sua função dentro

da hierarquia social, como também participar da cultura em que está assumindo a

partir daquele momento. Na figura 5, vemos o momento em que Jake Sully é recebido

na tribo dos Na'vis após conseguir cumprir as tarefas necessárias para se tornar um

guerreiro do grupo, dessa forma ele é submetido a um ritual de aceitação, onde todos

os indivíduos pertencentes à aquela sociedade passam a enxergá-lo como um deles,

inclusive é possível notar que ele já está vestido como um Na'vi, a partir desse

momento ele passa a ser chamado Jakesully. A partir desse momento todo o grupo o

trata como um integrante e observá-lo a fim de identificar nele a presença ou pré-

destinação do escolhido nele, sendo esse o processo de legitimação social

(CAMPBELL, 1990).

5. A inteligência coletiva

Figura 6 - Conhecimento e sabedoria, os maiores bens de um povo, quando compartilhados.

(AVATAR, 2009)

Um ponto muito interessante presente na sociedade Na'vi do filme Avatar é a

relação dos integrantes da comunidade com o conhecimento e a sabedoria. Os Na'vis

buscam uma preservação do saber através da multiplicação e contemplação do

mesmo. Eles vivem em uma dualidade onde o conhecimento é ao mesmo tempo

sagrado e pertencente a todos. É muito interessante observar e comparar essa relação

com a nossa sociedade atual. Alguns povos nativos ou também chamados primitivos

também desenvolviam a mesma relação com o saber, como Ribeiro (1995) trata em

seu livro O povo brasileiro, relatando diversas experiências com comunidades

indígenas por todo o Brasil. Onde a sabedoria deveria ser tratada ao mesmo tempo

como algo a ser alcançado, incluindo a busca do sagrado, ao mesmo tempo ele precisa

ser compartilhado para assim perpetuar e transpassar as gerações.

Analisando a realidade contemporânea, encontramos uma relação muito mais

complexa, o conhecimento em nossa sociedade ainda tem um poder muito forte, mas

ele constantemente busca identificar-se e dividir-se muito bem para poder determinar

o que, como e quando deve ser estudado e analisado, além disso, busca-se sim uma

universalização desse saber, ou seja, que ele torne-se aplicável em diversas sociedades

e grupos sociais ao mesmo tempo. Com isso o conhecimento e a sabedoria chamada

popular deram lugar a ferramentas que formatam e tornam acessíveis o conhecimento

em situações, regiões ou mesmo sociedades diferentes. Como resultado disso, vemos

um distanciamento entre a sociedade e o conhecimento, buscando por vezes a

valorização e reduzindo o processo de disseminação do mesmo. Para isso busca-se a

criação de ferramentas capazes de tornar essa disseminação mais rápida e

efetivamente acessível a diferentes níveis e setores da sociedade e dos grupos sociais.

Analisando a relação que acontece no longa-metragem Avatar vemos

claramente a aplicação dos conceitos de Lévy (1995) desenvolvidos em sua obra As

tecnologias da inteligência, quando ele cunha o termo "ecologia cognitiva" que ele

explica da seguinte forma:  “As coletividades cognitivas se auto-organizam, se mantém e se transformam através do envolvimento permanente dos indivíduos que as compõem. Mas estas coletividades não são constituídas apenas por seres humanos. Nós vimos que as técnicas de comunicação e de processamento das representações também desempenham, nelas, um papel igualmente essencial. É preciso ainda ampliar as coletividades cognitivas às outras técnicas, e mesmo a todos os elementos do universo físico que as ações humanas implicam”. (Lévy, 1995:144)

Dessa forma vemos que Lévy (1995) que o conhecimento não está ou é

restrito apenas ao ser humano, o eu não é inteligente sozinho, mas pertence a algo

muito maior, uma rede complexa de inter-relações, onde o ser e o meio (ou rede)

relacionam-se de modo a compartilhar o que aprendem e o que podem ensinar, e

assim completar-se (figura 6), ou como o autor trata o processo cognitivo.

6. A transferência da Mente

Figura 8 - O fim e o início encontram-se. (AVATAR, 2009)

Já acostumados, durante o decorrer do filme, às contínuas viagens da mente de

Jake Sully entre seus corpos (humano e Na'vi) o ato da transferência da mente entre

dois corpos passa a ser muito transparente ao espectador. Havíamos passado – já faz

alguns anos – pela frenética viagem mental de Matrix, onde a mente da personagem

Neo viaja entre seu corpo humano e sua forma digital dentro do computador. No

cinema o tema da transferência é bastante comum e chega a ser corriqueiro, mas o

tema circunda a nossa realidade. Pesquisadores da Universidade de Karolinska

(Suécia) fazem experimentos em que um ser humano usa óculos que lhe dá a visão de

um corpo inanimado de um manequim. Quando o corpo deste manequim é ameaçado

por uma faca, por exemplo, o ser humano entra em estado de estresse, pois o cérebro

pensa se tratar de seu próprio corpo 5.

Obviamente que há uma distância muito grande entre a pesquisa supracitada e

a situação apresentada pelo filme, mas o importante neste caso é pensar o

5 www.inovacaotecnologica.com.br/noticias/noticia.php?artigo=realidade-virtual-cria-ilusao-de-troca-de-corpo&id=. Acessado em 17 de fevereiro de 2010.

posicionamento do personagem que teve sua mente transferida para o corpo em

caráter temporário no início da obra e que o fará de forma definitiva – utilizando de

recursos naturais do próprio planeta de Pandora – já no final da obra. Em que

momento da obra ele deixa de ser humano para tornas-se um Na'vi? Apenas durante a

transferência final?

Se observarmos que um ser humano com as condições atmosféricas peculiares

de Pandora não conseguiria sobreviver àquele ambiente sem aparelhos de extensão de

suas capacidades (filtros de oxigênio, por exemplo) ou que, por sua mobilidade

limitada, a personagem teria problemas de locomoção em um ambiente não adaptado,

enfim, se levarmos a conformação física como o primeiro grau de distinção humano-

Na'vi, concluímos que a personagem de Jake Sully nunca faria parte do clã dos

nativos. Entretanto, se levarmos em conta a experiência da aproximação cultural

apreendida pelo intelecto da personagem durante a trajetória da obra, sua vivência

junto ao grupo social e sua plena integração ao ambiente, podemos afirmar que Jake

se torna um autêntico Na'vi muito antes da transferência final, uma vez que ocorre o

processo de aproximação e assimilação cultural durante toda a obra. Outro filme que

apresenta um processo de transculturação bastante intenso é Dança com Lobos

(DANÇA COM LOBOS, 1990) onde o personagem John Dubar (Kevin Costner)

passa a viver em terras habitadas por índios Sioux. Absorvendo os costumes, a língua

e interagindo com o ambiente nativo, chegam mesmo a dizer – na língua Sioux – a

outros homens brancos, que o encontram no final do filme, que seu nome era «Dança

com Lobos» – nome que lhe foi atribuído pelos nativos.

Observando tais momentos, podemos encarar mais criticamente e questionar

certos pré-conceitos como a diferença entre raças, idades, sexos, religiões etc. sob

uma ótica cultural – mais inclusiva e menos segregadora.

Considerações finais

Propor uma apreciação mais séria a obras cinematográficas originalmente

construídas para fins de entretenimento tem suas vantagens. O convite a assistir a um

filme, em especial se este for uma referência de bilheteria, ou estiver dentro do

repertório midiático do grupo de alunos com quem se trabalha é, no mínimo, recebido

com curiosidade por parte deste grupo. A aproximação de temas tidos como

indigestos pelos discentes, sob certos aspectos por falta de interesse, pode ser

transformada em motivo de surpresa e, porque não, de apreciação sobre novos

olhares. A associação do conteúdo narrativo dos filmes a textos mais densos que

discutam o tema mais profundamente pode ser a chave para uma porta que permita ao

docente adentrar ao espaço da curiosidade do discente e iniciar um trabalho de

conexão entre os temas necessários à construção de valores do aluno e ao conteúdo

das mídias como o cinema, por exemplo, transformando este aluno em um espectador

que apreenderá mais a respeito do conteúdo de filmes que verá no futuro.

A investigação de alguns pontos em que o assunto possa suscitar a geração de

discussões para com os discentes foi o intuito do presente artigo – observando apenas

o filme Avatar. A fruição necessária para refazer este percurso em outras obras, não é

complexa. Basta apenas que o docente dialogue um pouco mais com o universo

midiático e cultural do aluno e passe a vê-lo, não mais como o outro, mas como um

integrante de uma civilização que, por vir de um tempo diferente – o futuro – tem uma

cultura midiática e uma vivência em comunicação não de menor qualidade, mas

bastante diferente.

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