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Agosto, 2015
Tese de Doutoramento em Cincias da Comunicao
CINEMA E EDUCAO
ESTUDOS DE CASO NO BRASIL E EM PORTUGAL
Raquel Pacheco Mello Cunha
II
III
Declaro que esta tese o resultado da minha investigao pessoal e
independente. O seu contedo original e todas as fontes consultadas esto
devidamente mencionadas no texto, nas notas e na bibliografia.
A candidata,
Lisboa, 14 de agosto de 2015
Declaro que esta Dissertao se encontra em condies de ser apreciada (o) pelo
jri a designar.
A Orientadora,
Lisboa, 14 de agosto de 2015
A Coorientadora,
Lisboa, 14 de agosto de 2015
IV
V
Dissertao apresentada para cumprimento dos requisitos necessrios
obteno do grau de Doutor em Cincias da Comunicao, realizada
sob a orientao cientfica da Professora Doutora Cristina Ponte em
regime de cotutela com a Universidade Federal Fluminense, Brasil,
sob a responsabilidade da Professora Doutora ndia Mara Martins.
Apoio financeiro da FCT - Fundao para a Cincia e Tecnologia
SFRH/BD/81345/2011
VI
VII
A todos que acreditam, investem, facilitam, defendem e,
principalmente, praticam uma educao horizontal entre educadores
e educandos, entre elite e povo.
No basta saber ler que Eva viu a uva. preciso compreender qual a posio que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para
produzir a uva e quem lucra com esse trabalho. Paulo Freire
VIII
AGRADECIMENTOS
So tantas pessoas envolvidas neste processo, tanta generosidade, confiana,
cooperao, troca, partilha, amizades, tantos sentimentos e movimentos que seria
injusto se, por acaso, e isso com certeza acontecer, eu esquecer de agradecer
algum ou alguns.
Deste modo quero deixar aqui meu sentimento de gratido por ter conseguido
realizar e, principalmente, terminar esta tese.
Professora Cristina Ponte, orientadora de todas as horas, agradeo pela
generosidade, confiana, partilha, por apoiar e cooperar para a existncia desta
dissertao, sendo uma verdadeira mestra, no grau mximo que define esta
palavra.
Professora Roslia Duarte e Professora ndia Mara Martins por terem sido
minhas co-orientadoras no Brasil.
Universidade Nova de Lisboa FCSH, PUC-Rio (Pontifcia Universidade Catlica
do Rio de Janeiro Programa de Ps Graduao em Educao), Universidade
Federal Fluminense IACS (Curso de Cinema e Vdeo), ao CIMJ e CICS.NOVA,
GRUPEM e Observatrio Jovem.
FCT - Fundao para a Cincia e Tecnologia.
A todos os professores, colegas e funcionrios destas instituies, muito obrigada.
A todos aqueles (meus pares) que trabalham com Cinema e Educao em
Portugal, no Brasil e no mundo, somos todos uma grande rede.
todas as crianas e jovens que fizeram parte deste trabalho.
Ao Jos Pacheco, Teresa Garcia, Pierre Marie, Ana Eliseu, Ins (e toda a equipe de
Os Filhos de Lumire), Pedro Flix, Ana Jorge, Ldia Marpo, Maria Jos Brites,
IX
Daniel Meirinho, Daniel Cardoso, Conceio Costa, Snia Lamy, Jos Ribeiro,
Carlos Viana (e a Associao AoNorte), Ricardo Campos, Vitor Reia-Baptista, Ana
Catarina Pereira, Ilana Ele, Marcia Silva (e todos que participaram dos Encontros
de Mdia e Educao de UEPG), Eliany Salvatierra Machado, Alexandra Bujokas
Siqueira, Ana Dillon, Fernanda Miranda, toda a equipe do Imagens em Movimento,
Adriana, Alessandra de Pinho, Maria Mazzillo, Bete Bullara, Claudia Mogadouro,
Joo Leocdio, Paulo Carrano, Coletivo Mate com Angu, Tadeu Lima, Luana
Pinheiro, toda a equipe da Escola Livre de Cinema de Nova Iguau, Casaro dos
Prazeres Santa Teresa (e toda a equipe), Maria Ins Delorme, Marcos Tavares,
Beatriz Porto, Regina de Assis, Adriana Fresquet, Adriana Hoffman, Milene
Gusmo, Raquel Costa (e toda a equipe do Janela Indiscreta), Andra Mota (e toda
a equipe do CineCabea), Marlom Meirelles, Juliana Doretto, Vander Casaqui,
Moira Toledo, Auira Ariak, Flavia Candido, Alice Gouveia, Marcia Correa e Castro e
Ins Teixeira.
Lucia Boaventura, Constana Urbano de Sousa, Claudia de Castro, Carlota Flieg e
Ana Gariso vocs foram fundamentais.
Angela Pacheco, que desde muito cedo me ensinou a olhar uma flor, observar
um bichinho e ouvir msica clssica. Ao meu pai que me possibilitou o gosto pela
aventura. bisa Elza, Rafael e Gabriel, Adelina e Zafer, Cristina Travassos, Claudia
Pacheco (uma inspirao), Daniele Sally e Gustavo, Gilvane Bispo, Mnica, Rafaela,
Dina, Snia, Claudine, Cibele, Alexandre e Beatris Brando, Eduardo e Mnica
Martins, Patricia Oliveira, Nancy, Paula Costa e famlia.
Sem o afeto dirio, a fora, a partilha, o ombro, a compreenso, a verdade e a
cumplicidade de Marcelo, Ana Clara e Arthur, no existiria esta tese.
Agradeo a Deus, por todo este amor, fora e sade e por esta conquista que
pessoal e coletiva, mas principalmente pela chegada do pequeno/grande
Matheus.
X
RESUMO
CINEMA E EDUCAO. ESTUDOS DE CASO NO BRASIL E EM PORTUGAL
Raquel Pacheco Mello Cunha
PALAVRAS-CHAVE: cinema e educao, educao para os media/mdia educao, literacia meditica, jovens, pedagogias.
O interesse poltico da UE pela literacia cinematogrfica, a nova Lei do
Cinema e Audiovisual e a criao do Plano Nacional de Cinema (PNC) em Portugal, a nova Lei Cristovam Buarque de Cinema no Brasil juntamente com nossa experincia no campo, contriburam para identificarmos a necessidade de que fosse desenvolvida uma investigao mais profunda na rea da literacia meditica, com o foco voltado para o campo do cinema e educao.
Ao longo deste trabalho pesquisamos o campo do cinema e educao, levando em considerao as realidades de Brasil e Portugal, num esforo de sistematizao, clarificao, identificao e compreenso dos seus elementos essenciais e das relaes entre eles. Para isso, desenvolvemos um trabalho etnogrfico no campo que teve a durao de 11 meses, cinco em Portugal e seis no Brasil. Este trabalho possibilitou conhecer diferentes projetos de cinema e educao, suas metodologias, pedagogias, com que frequncia eles so implementados. Analisar o papel das polticas pblicas existentes na rea e compreender o que adultos (normalmente no papel de coordenadores e educadores), e jovens (normalmente no papel de educandos) pensam sobre os projetos em que participam, o que desenvolvido e o que resulta da sua implementao. possvel identificar que a maior parte dos projetos de cinema e educao no permitem que os jovens se expressem livremente, e que os mantm presos repetio da narrativa clssica, atravs de mecanismos j conhecidos e utilizados pela pedagogia tradicional. Estes projetos tambm no estimulam uma participao plena dos jovens e h uma ausncia de reflexo e dilogo com os jovens sobre o cinema enquanto uma arte imbuda de pensamentos e questes ideolgicas (feita por pessoas e/ou grupos), ou sobre os dispositivos ideologicamente construdos ao longo dos anos. Reconhecemos que os projetos de cinema e educao exibem e trabalham tecnicamente filmes que os educandos no teriam oportunidade de assistir em outra ocasio. Por sua vez, os jovens educandos declararam gostar das aulas de cinema, e que se sentem contentes por estarem a participar destes projetos. De um modo geral, dizem que depois que comearam a participar das oficinas de cinema vem o cinema com mais ateno e com outros olhos.
XI
ABSTRACT
CINEMA AND EDUCATION. CASE STUDIES IN BRAZIL AND PORTUGAL
Raquel Pacheco Mello Cunha
KEY WORDS: cinema and education, media education, media literacy youth, pedagogy.
EUs political concern on media literacy, the new Law of Cinema and Audiovisual and the creation of the National Cinema Plan (PNC) in Portugal, the new Cristovam Buarque Cinema Law in Brazil, together with our experience in this field, all contributed for us to identify the need to develop a deeper research in this media literacy field, focusing particularly on the cinema and education field.
Throughout this work we researched the field of cinema and education, taking into account the realities of Brazil and Portugal, in an effort to systematize, clarify, identify and understand their core elements and the relations between them. For that purpose, we developed an ethnographic field work that lasted 11 months, five of which in Portugal and six in Brazil. This work allowed us to know different projects on cinema and education, their methods, pedagogies, how often they are implemented. Also to analyze the role of existing public policies in this area and understand what adults (usually in the role of coordinators and educators), and young people (usually in the role of students) think about the projects in which they participate, whats developed and what are the results from their implementation. It is possible to identify that most projects on cinema and education dont allow young people to express themselves freely, keeping them stuck on the repetition of the classic narrative, through mechanisms already well known and used by traditional pedagogy. These projects also do not encourage full participation of young people and there is an absence of reflection and dialogue with young people about cinema as an art filled with thoughts and ideological issues (made by individuals and/or groups), or about the ideological devices built over the years. We acknowledge that cinema and education projects exhibit and work technically with films that the students would not have the opportunity to watch any other time or place. On their turn, young students stated having enjoyed cinema classes and that they feel happy for taking part on these projects. In general, they say that after they began participating in the cinema workshops they watch films more attentively and with different eyes.
XII
XIII
NDICE
INTRODUO ........................................................................................................ 1
CAPTULO I UMA DISCUSSO EPISTEMOLGICA SOBRE A PEDAGOGIA.
PERSPECTIVAS E PRESSUPOSTOS PEDAGGICOS ............................................ 13
A pedagogia criada pela filosofia .......................................................... 15
Escolstica: a ideia da transmisso do conhecimento .................................. 18
Escola, cultura e educao no Estado Moderno ........................................... 24
A emergncia de uma nova conceo de infncia ........................................ 29
Outras metodologias educativas ........................................................ 33
A educao republicana de Durkheim e a educao moral de Dewey ......... 38
Paulo Freire e a pedagogia da libertao do indivduo ......................... 42
Reflexes finais ............................................................................................. 50
CAPTULO II EDUCAO PARA OS MEDIA: PROMOVER A CONSCINCIA SOBRE
A LIBERDADE DE EXPRESSO OU TRANSMITIR CONHECIMENTO TCNICO ...... 55
O poder dos media ...................................... 56
O percurso histrico da Media Education .................................................... 65
Uso dos media: apelo consumista e construo da identidade ..... 72
Os media no contexto escolar ...................................................................... 78
Pela tica da produo, participao e da autoria de crianas e jovens ... 82
Reflexes finais ............................................................................................ 86
CAPTULO III CINEMA COMO BASE DA EDUCAO AUDIOVISUAL ............... 89
Breve histria do cinema antes do cinema ................................................. 90
Relaes do cinema com a arte e o entretenimento .................................. 96
O cinema como instrumento poltico e ideolgico ................................... 100
O projeto Cinema: Cem Anos de Juventude .............................................. 117
XIV
Reflexes finais ........................................................................................ 122
CAPTULO IV CINEMA E EDUCAO: O DESENHO METODOLGICO DE UMA
PESQUISA SOBRE DOIS CAMPOS ................................................................... 125
Pesquisas qualitativas com crianas e jovens................................ 126
Abordagens metodolgicas da pesquisa etnogrfica ... 129
Anlise do material recolhido a luz da reviso de literatura ... 134
O processo de investigao .................... 139
O trabalho de campo antes do campo ........................ 143
Reflexes finais ... 149
CAPTULO V CONTEXTUALIZANDO INICIATIVAS DE CINEMA E EDUCAO NO
BRASIL E EM PORTUGAL ................................................................................ 153
Cinema e educao em Portugal ............................................................. 154
Cenrio atual dos projetos de cinema e educao em Portugal ............. 174
A busca por legitimar o campo do cinema e educao no Brasil ......... 176
Experincias e projetos de cinema e educao no Brasil........ 183
Lei Cristovam Buarque de Cinema ................ 192
O trabalho de prospeco no Brasil e em Portugal ................................ 193
CAPTULO VI DESCODIFICANDO OS DADOS RECOLHIDOS ......................... 203
Apresentando os projetos e oficinas pesquisados .................................. 204
Que jovens e que lugar ocupam nos projetos? ....................................... 219
Modelos pedaggicos utilizados nos projetos de cinema e educao . 234
Um exemplo de pedagogia da participao ..................250
A produo de filmes e sua importncia ................... 256
Desafios da pesquisa ........ 263
SNTESE DESTE PERCURSO DE TESE ............................................................... 271
XV
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .............................................................................. 281
XVI
1
INTRODUO
Tenho a lembrana do tempo do colgio quando os professores diziam que
iramos assistir a um filme, era como se o nosso mundo dentro da escola
finalmente fosse se abrir e o dia enfadonho de aulas se transformasse num dia
especial. Vamos todos para o auditrio que hoje assistiremos a um filme disse,
certa vez, a professora de educao moral e cvica. Nesta altura, com mais ou
menos 12 anos de idade, fomos todos para o auditrio que na nossa fantasia j
havia se transformado em sala de cinema. Abre-se ento a caixa de madeira, onde
ficava guardada a televiso, e coloca-se uma fita cassete (VHS) no aparelho de
videocassete, nada dito, a professora no diz sobre o que fala o filme, s diz que
temos que ter ateno ao que vamos assistir e que temos que fazer silncio.
O filme inicia e o que aparece no ecr da TV algo muito distante da nossa
realidade, sombrio, triste e degradante. Uma bela jovem alem, um pouco mais
velha que o grupo, com 13 anos, viciada em herona e que se prostitui. Estvamos
a assistir o filme Eu, Christiane F., drogada e prostituda1. O filme nos causou uma
sensao muito ruim, onde toda a magia daquele momento se transformava em
uma sensao de repulsa e ao mesmo tempo de identificao. Os sofrimentos
daquela adolescente, que ainda tinha as feies de uma menina, todo aquele
abandono e suas vivncias no submundo de Berlim, no nos fizeram ter uma boa
experincia com aquela atividade proposta pela professora.
Assistimos ao filme at tocar o sinal para nos avisar de que era hora de
irmos para casa, no foi possvel terminar de assisti-lo, e nunca mais voltei a faz-
lo. Sa daquela sala questionando os motivos que teriam levado a professora a nos
colocar para assistir aquele filme. Mas o que hoje, aps tantos anos, concluo
que houve uma ausncia de informao, debate, dilogo e comunicao entre a
professora e os alunos, houve uma relao de educao bancria, mesmo sendo
o cinema o recurso didtico escolhido para aquela aula. Com uma postura de
1 Em Portugal Christiane F., Os Filhos da Droga
2
quem olha de cima para baixo, a professora exibiu um filme (polmico) para uma
turma inteira sem comentar sobre o que se tratava, sem prepar-la para aquilo
que iria assistir e sem uma conversa/debate/dilogo no final.
A questo que talvez seja a mais sria de todas: Ser que aqueles alunos
estavam preparados para assistir aquele filme? Ser que eu estava preparada
para assistir ao filme? No foi o meu caso. Mas este foi um dos poucos filmes de
fico (este era baseado na realidade e no livro homnimo, escrito pela prpria
Christiane F.) que assistimos neste colgio catlico; de resto eram muitos
documentrios sobre a vida e obra de Dom Bosco, alm de alguns documentrios
para ilustrar as aulas de Histria e Geografia.
Muitos anos depois, sa da Universidade Federal Fluminense, no Brasil,
levando em baixo do brao o diploma de licenciatura em Cinema e Vdeo e
experincias em cinema, televiso, vdeo e publicidade, realizadas dentro e fora
do contexto universitrio. Participei de muitas atividades na rea do cinema,
muitos trabalhos realizados no Brasil, mas de todos os trabalhos realizados, o que
mais me encantou foi a utilizao do cinema no contexto da educao. No no
contexto acadmico da universidade, nem to pouco nos cursos para adultos, mas
a utilizao do cinema na educao de crianas e jovens, principalmente aqueles
em situao de vulnerabilidade social.
No ano de 2004, iniciei o mestrado na Universidade Nova de Lisboa, e foi
nesta altura que tive a oportunidade de desenvolver meu primeiro trabalho de
investigao no contexto do cinema e educao com jovens. A ideia inicial foi dar
um sentido afirmativo e transformador aos fenmenos ligados violncia,
pobreza e misria, utilizando a metodologia da pesquisa participativa no
contexto da educao para os media com a finalidade de trabalhar essas
questes.
Para entender o olhar dos jovens, desenvolvemos uma pesquisa
etnogrfica, durante 6 meses, e utilizamos como campo uma escola secundria
situada dentro da zona urbana de Lisboa. O objetivo desta investigao foi
3
perceber como os jovens se viam e pensavam ser vistos pela sociedade (o que
inclui o cinema, os media, etc.) da qual faziam parte. Foi utilizado como principal
ferramenta de registo de pesquisa o Dirio de Campo, retratando o dia-a-dia na
escola.
A filosofia deste trabalho de campo baseou-se na pedagogia dialtica de
Paulo Freire. Foi atravs do dilogo problematizante desenvolvido,
principalmente aps a exibio de filmes, nas aulas e nos encontros, de uma
maneira geral, que estimulamos o questionamento e a problematizao; foi a
partir de questes, opinies e ideias, que os alunos realizaram um vdeo.
Deste trabalho surgiu o livro Jovens, Media e Esteretipos. Dirio de
Campo numa Escola dita Problemtica (2009), o projeto e o blogue Media e
Literacia, desenvolvido no contexto portugus, como atividade extracurricular
para jovens e cursos de formao de professores. Este projeto teve como filosofia
principal a formao de jovens educandos e educadores, no contexto da educao
para os media, utilizando o cinema e educao.
Desde a realizao desta investigao temos questionado e trabalhado
sobre o campo da educao para os media em Portugal e no Brasil. A partir desta
experincia identificamos a necessidade de que fosse desenvolvida uma
investigao mais profunda na rea da literacia meditica, com o foco voltado
para a rea do cinema e educao.
Deste modo, realizamos esta pesquisa de doutoramento, que teve como
objetivo conhecer de maneira mais aprofundada este campo e que inclui:
caracterizar como diferentes projetos de cinema e educao funcionam no seu
dia-a-dia; identificar que tipo de pedagogias e metodologias so utilizados; saber
o que estes projetos significam e de que forma contribuem para e com os jovens
que deles participam e para sua educao enquanto sujeitos de direito; e, por fim,
perceber o papel das polticas pblicas nesta rea. Para isso realizamos um
trabalho de campo no Brasil e em Portugal onde desenvolvemos um processo
4
metodolgico que inclui a pesquisa etnogrfica atravs da observao
participante e outros mtodos relacionados a pesquisa qualitativa.
Ao longo deste trabalho procuramos pesquisar e construir uma teoria no
campo do cinema e educao num esforo de sistematizao, de clarificao, de
identificao e de compreenso dos seus elementos essenciais e das relaes
entre eles. No nada fcil investigar, classificar, analisar e descrever a histria,
dinmica e modi operandi de um mesmo campo, em dois pases to distintos, e
que na verdade nem se veem como campo.
Esta tese foi organizada em seis captulos. No primeiro captulo - Uma
discusso epistemolgica sobre a pedagogia (perspetivas e pressupostos
pedaggicos) - compreendemos a importncia dos diferentes modelos
pedaggicos e o modo pelo qual a pedagogia pode e deve ser recriada ao longo
do tempo, de acordo com a realidade, cultura, poltica, contextos, modos de vida
e organizaes sociais. Esta reviso de literatura contribui para uma maior
compreenso da pedagogia dos meios e dos projetos de cinema e educao.
O captulo segue o caminho de uma reviso historiogrfica, mas sem a
pretenso de dar conta de toda a histria da pedagogia, onde nossa pergunta
principal se cruza com aquela que ousaramos dizer ser a mais importante
pergunta pedaggica: Como que se ensina? Neste momento, no qual a reviso
bibliogrfica a nossa proposta metodolgica principal, optamos por autores e
pensadores que mais influenciaram a pedagogia atual.
Desenvolvemos uma discusso sobre diferentes perspetivas do processo
de ensino-aprendizagem, com o objetivo de perceber como estes modelos
pedaggicos podero orientar o campo e os projetos de cinema e educao.
Destacamos que o ato pedaggico pode ser visto como sujeito de poder, tanto
para manipular como para libertar. Algumas pedagogias indicam como o sujeito
deve olhar e pensar, outras se colocam na posio daquele que ajuda a pensar e
outras ainda se propem a ensinar a pensar.
Entretanto, quando pensamos na educao tradicional (educao
bancria) torna-se fcil compreender como nos contentamos com as
5
representaes do mundo (normalmente) propostas pelos media. Este tipo de
educao habitua crianas e jovens (e em breve adultos), a aceitarem o que j
est formatado, como um dado certo e inquestionvel, alm de no estimular no
sujeito um sentimento individual de responsabilidade e reflexo.
No segundo captulo - Educao para os media: promovendo a conscincia
sobre a liberdade de expresso e/ou transmitindo o conhecimento tcnico
fazemos um trabalho de reflexo sobre os media, assim como um trabalho de
definies tericas sobre seus conceitos e fundamentos. H uma reflexo sobre a
questo que d ttulo a este captulo, que considerada central para este campo
e que suscita muitas discusses e pesquisas: ser que a educao para os media
d conta de promover o direito liberdade de expresso e o uso consciente dos
media? Ou ser que fica apenas na experincia de ensinar a utilizar a tcnica das
novas tecnologias para promover uma incluso digital apenas tecnolgica?
As formas como frequentemente os media retratam a infncia e a
juventude fazem com que Feilitzen e Carlsson (2002) nos chamem a ateno para
dois modos diretos de influncia e afirmao de esteretipos que podem ser
reforados pelos media: as representaes simblicas e distorcidas de crianas e
jovens nos media, que so chamadas pelas investigadoras de opresso cultural
infantil; e a violncia presente de forma quase que impercetvel quando os media
mostram muitas outras construes distorcidas de gnero, classe, raa etc., que
so referentes aos interesses dos prprios media e de certos grupos.
O ambiente meditico do qual crianas e jovens fazem parte esto com
suas fronteiras cada vez mais difusas. Entretanto os media contemporneos se
dirigem a crianas e jovens como se estes fossem consumidores altamente
letrados mediaticamente. Enquanto o debate pblico sobre a relao entre as
crianas, os jovens e os media fica em torno da preocupao de defend-los dos
media, a indstria os trata como consumidores extremamente sofisticados e
exigentes (Buckingham, 2007). Entretanto, pela lgica capitalista, caracterizada
pela velocidade com que os novos media so desenvolvidos, os jovens
encontram-se particularmente expostos, alvejados constantemente pelos media,
que apenas os vem como consumidores (Gonnet, 2007:14).
6
Em contrapartida, Orozco Gomez (2005) sublinha que uma forma
importante que distingue as sociedades atuais das anteriores precisamente sua
dependncia meditica mltipla: cognitiva, emocional e prtica. Temos ento um
dilema, provocado por esta ascenso meditica, que feita em condies
assimtricas de poder: enquanto os media esto em uma situao crescente de
poder, vemos uma situao crescente de ausncia de poder das suas audincias.
Falar apenas de uma educao para os media uma iluso: estudos nos
mostram que existem muitas e diferentes maneiras de se educar para os media;
cada contexto, cada grupo, cada escola e cada realidade pode construir sua
prpria maneira de criar e desenvolver literacia meditica. Mas existem
metodologias mais eficazes que outras? A resposta a esta pergunta pode ser:
depende do que esperamos e do que entendemos por educao para os media.
O cinema e sua pedagogia so os temas que constituem o terceiro captulo
Cinema como base da educao audiovisual. Neste captulo buscamos perceber
como que o conhecimento sobre a linguagem, a esttica e os ambientes do
cinema podem favorecer a literacia meditica que hoje passa por ambientes de
convergncia. Para isso, o captulo foi dividido em duas partes. A primeira discute
o cinema como ambiente e as suas relaes com a arte, o entretenimento e a
poltica. Na segunda parte estudamos a pedagogia do cinema.
Autores como Charles Musser (1990), Ismail Xavier (2005), Robert Stain
(1981) e Arlindo Machado (1997) nos mostram que, por um lado, no cinema
existe uma conhecida e muito bem divulgada narrativa clssica. E por outro,
existiram e ainda existem movimentos de desconstruo deste discurso clssico,
movimentos de subverso, seja atravs dos Cinemas Novos: Neo Realismo
Italiano, Nouvelle Vague Francesa, Cinema Novo Brasileiro, Novo Cinema Alemo;
seja pelas vanguardas (anos 1920), Cinema Underground (anos 1960) etc.
Analisamos o papel discursivo do cinema e conclumos que durante sua
existncia ele foi utilizado como um instrumento poltico e ideolgico. Ao se
produzir um filme, seja ele longo ou curto, de fico, ou para documentar ou
retratar algum, objeto ou situao, por mais simples ou complexo que seja, o
7
documento audiovisual produzido, foi realizado com um fim, um intuito
humano atravs de um discurso e uma linguagem.
Neste captulo nos damos conta do papel importantssimo e pioneiro que
o BFI - British Film Institute teve nesta rea, nomeadamente aquilo a que
podemos chamar, segundo Vitor Reia-Baptista (2011:771-772), de pedagogia
flmica. E que o cinema fonte de conhecimento e de auto conhecimento e este
processo se d porque o cinema se exprime atravs de sons e imagens que
transmitem e suscitam sentimentos.
Refletimos tambm sobre a expresso cinefilia que o amor pelo
cinema. Ser que um adulto seria capaz de fazer uma mediao entre o cinema e
uma criana ou um jovem, para que este conhea e aprecie o cinema como arte
(ou obra de arte) a ponto de ter amor por ele? Como acontece o percurso entre
educador e educando dentro deste processo? Estas questes podem ser
consideradas o calcanhar de Aquiles de quase todos os projetos de cinema e
educao, pois representam o abismo que existe neste campo entre a teoria e a
prtica (realidade). Nos questionamos tambm sobre como possvel
desenvolver um amor pelo cinema, e qual ento o processo metodolgico para
o desenvolvimento deste amor.
Em Frana, Alain Bergala criou o programa Cinema: Cent Ans de Jeunesse
(Cinema: Cem Anos de Juventude) que envolve turmas das escolas, desde o
primeiro ano do ensino escolar (crianas com mais ou menos 6 anos) ao ltimo
(jovens com mais ou menos 17 anos), de vrias regies da Frana e de meios
sociais contrastantes. Depois o programa expandiu-se para Guadalupe e
Martinica, alm de pases como Portugal, Espanha, Itlia, Reino Unido, Cuba e
Brasil.
Com uma grande bagagem prtica e terica sobre cinema e educao,
Bergala (2008) afirma que existe um prazer que deve ser construdo no crebro,
de preferncia quando ainda se criana, e que deve ser estimulado e trabalhado
por toda a vida, como o caso do bom filme. Este no necessariamente um
prazer imediato e sem esforo, e neste tipo de aquisio e/ou construo a escola
pode e deve ter um papel importante.
8
Em nossa sociedade materialista de consumo encontramos venda muitos
e diferentes tipos de prazer. A maior parte dos media, enquanto disseminadores e
mantenedores deste sistema, cria e refora a todo momento a necessidade
humana de buscar a felicidade, enquanto vendem uma felicidade hedonista,
efmera, externa, vazia e muito material. Tudo que a sociedade civil prope
maioria das crianas so mercadorias culturais rapidamente consumidas,
rapidamente perecveis e socialmente obrigatrias, nota Bergala (2008:32).
Cinema e educao: o desenho metodolgico de uma pesquisa sobre dois
campos o quarto captulo, onde abordamos as metodologias que foram
utilizadas nesta tese. Consideramos os principais objetivos da pesquisa,
identificamos os diferentes projetos de cinema e educao e abordamos alguns
aspetos importantes da pesquisa etnogrfica realizada durante o trabalho de
campo no Brasil e em Portugal.
Neste captulo levantamos a questo de que, apesar do indicativo de um
aumento nas pesquisas qualitativas envolvendo crianas e jovens, de modo geral
este nmero ainda baixo e na maior parte das vezes estas pesquisas continuam
a no considerar como uma prioridade ouvi-los ou dar-lhes voz. Embora no seja
nossa inteno discutir sobre a Conveno sobre os Direitos da Criana (que j
existe h 25 anos), consideramos importante sublinhar e identificar dois direitos
que aparecem na Conveno e que devem estar presentes quando investigamos
projetos que envolvem crianas e jovens: o direito expresso e o direito
participao.
Durante o trabalho etnogrfico que desenvolvemos, o Dirio de Campo
foi o mtodo que nos permitiu registar o dia-a-dia dos projetos, o papel dos
educadores, suas pedagogias e metodologias, e tambm o lugar ocupado pelos
jovens educandos dentro desta dinmica educacional.
Na busca por encontrar e escolher as perguntas, os objetos e os campos
mais apropriados para desenvolvermos um estudo etnogrfico na rea do cinema
e educao, sentimos a necessidade de conhecer as atividades que estavam a ser
desenvolvidas no nosso campo de interesse. Concomitantemente ao trabalho de
9
leitura e de pesquisa realizado no gabinete, fomos conhecer diferentes projetos
realizados, participar em congressos, seminrios, palestras, festivais de cinema,
mostras, grupos de pesquisa e reunies sobre nossa temtica e assuntos a ela
relacionados, tanto no Brasil como em Portugal. Foi atravs deste trabalho no
campo antes do trabalho de campo, que comeamos a pensar as melhores
metodologias para o trabalho emprico etc.
Esta uma das etapas que faz parte das metodologias compreensivas
(Guerra, 2012). Estas metodologias so consideradas como um processo que vai
desde a busca pelo objeto at anlise de contedo, rompendo com as muito
utilizadas metodologias hipottico-dedutivas. Esta mudana de paradigma tem
consequncias importantes em todo o processo de pesquisa. Ela representa a
substituio do raciocnio hipottico-dedutivo, tambm conhecido como
cartesiano, para o raciocnio indutivo.
Baseados nesta metodologia compreensiva indutiva, dividimos e
sintetizamos o trabalho emprico em duas etapas complementares, que
aconteceram de forma semelhante tanto no Brasil como em Portugal: a primeira
foi a prospeo do que era o campo, um reconhecimento in loco daquilo que
queramos investigar; e a segunda foi o trabalho de campo atravs da pesquisa
etnogrfica.
Realizamos um trabalho de campo que teve a durao total de 11
meses, sendo cinco em Portugal e seis no Brasil. Se durante o nosso trabalho de
mestrado, a inteno foi dar voz aos jovens, nesta investigao de doutoramento
a inteno foi conhecer diferentes projetos de cinema e educao, suas
metodologias, pedagogias, com que frequncia eles so implementados, as
polticas pblicas existentes na rea e tentar perceber o que adultos
normalmente no papel de coordenadores e educadores - e jovens normalmente
no papel de educandos pensam sobre os projetos em que participam, o que
desenvolvido e o que de facto resulta da sua implementao.
O trabalho que chamamos o campo antes do campo, que uma
contextualizao do campo do cinema e educao no Brasil e em Portugal faz
10
parte do quinto captulo - Contextualizando iniciativas de cinema e educao no
Brasil e em Portugal. Neste captulo abordamos o surgimento e desenvolvimento
do campo do cinema e educao no Brasil e em Portugal at aos dias de hoje. No
intuito de sistematizar as informaes e dados encontrados durante a nossa
pesquisa terica e no campo, optamos por dividir este captulo em trs partes: a
primeira aborda esta temtica em Portugal; a segunda aborda a temtica no
Brasil; e, na terceira parte descrevemos o nosso trabalho de prospeo no campo.
Sistematizamos os contextos histricos, dando um maior destaque s
polticas pblicas desenvolvidas ao longo dos anos at os dias de hoje. Refletimos
e analisamos acerca dos motivos e movimentos que impulsionaram e que
continuam a impulsionar estes campos, assim como aquilo que os retrai e que
limita seu crescimento ao longo dos anos. Por fim, damos destaque a alguns
projetos de cinema e educao e nossa experincia no campo do cinema e
educao, durante o tempo que desenvolvemos esta investigao (sendo que esta
parte do captulo tem uma abordagem de carter mais etnogrfico).
durante o sexto e ltimo captulo, intitulado Descodificando os dados
recolhidos, que iremos articular o material recolhido no campo atravs do Dirio
de Campo de Portugal (DCP), Dirio de Campo do Brasil (DCB), das entrevistas, das
conversas e questionrios, com os captulos anteriores. Faremos aqui uma leitura
analtica destes dados e para isso buscamos ferramentas atravs de ideias,
discursos, conceitos e experincias no material at ento escrito.
Nosso objetivo dialogar com estes dados, expondo aquilo que
experienciamos e as diferentes vozes que fizeram parte deste percurso e destes
campos. Atravs deste trabalho analtico pretendemos dar resposta s
problematizaes que levantamos ao longo desta tese. Vamos conhecer e analisar
os projetos acompanhados atravs de uma anlise sobre as experincias
vivenciadas na prtica, no dia-a-dia; perceber seus dramas e suas conquistas, suas
dificuldades e pontos positivos, apresentando vozes e discursos por vezes
antagnicos.
11
O trabalho de pesquisa e anlise qualitativa exigem do investigador um
grande envolvimento a nvel intelectual, emocional e psicolgico. Quando nos
propomos a investigar sobre um tema atravs da pesquisa qualitativa, onde a
etnografia a ferramenta principal, preciso fazer um exerccio de vivenciar
aquilo que estamos a pesquisar e de nos doarmos (de corpo e alma) para este
trabalho. Passamos a nos envolver de forma horizontal e bastante prxima com as
realidades e situaes que buscamos desvendar, conhecer e estudar. So
momentos de alegrias, conquistas, vitrias, descobertas, trocas, envolvimentos,
mas tambm de frustraes, de fracassos, de incertezas, neste vai e vem da vida
ininterrupta.
Na ltima parte: Concluses, Reflexes e Recomendaes, desenvolvemos
as ideias finais desta tese. Dos questionrios respondidos pelos jovens para esta
investigao, ficamos a saber que mais de 90% dos jovens de Portugal que j
haviam ido ao cinema afirmaram que na primeira vez, na vida, que foram ao
cinema, assistiram um filme realizado nos EUA. E no Brasil, 80% dos jovens que j
haviam ido ao cinema o primeiro filme que assistiram tambm foi realizado nos
EUA. So dados como estes que impulsionaram e continuam a impulsionar as
polticas pblicas no campo do cinema e educao em Portugal e no Brasil. Por
isso os projetos de cinema e educao devem questionar-se se so capazes de
capacitar crianas e jovens com habilidades sociais e competncias culturais
necessrias para que sejam cidados participantes nos ambientes mediticos
contemporneos. Para que eles sejam letrados/alfabetizados num mundo
global interconectado e multicultural.
12
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CAPITULO I
UMA DISCUSSO EPISTEMOLGICA SOBRE A PEDAGOGIA
PERSPETIVAS E PRESSUPOSTOS PEDAGGICOS
Se voc no voltar a ser como uma criana no entrar no reino encantado da pedagogia... Em vez de procurar esquecer a infncia, acostume-se a reviv-la; reviva-a com os alunos, procurando compreender as possveis diferenas originadas pela diversidade de meios e pelo trgico dos acontecimentos que influenciam to cruelmente a infncia contempornea. Compreenda que essas crianas so mais ou menos o que voc era h uma gerao. Voc no era melhor do que elas, e elas no so piores do que voc; portanto, se o meio escolar e social lhes fosse mais favorvel, poderiam fazer melhor do que voc, o que seria um xito pedaggico e uma garantia de progresso. Para isso, nenhuma tcnica conseguir prepar-la melhor do que aquela que incita as crianas a se exprimirem pela palavra, pela escrita, pelo desenho e pela gravura. O jornal escolar contribuir para a harmonizao do meio, que permanece um fator decisivo da educao. O trabalho desejado, a que nos entregamos totalmente e que proporciona as alegrias mais exaltantes, far o resto. E o sol brilhar... (Freinet, [1949] 2004:24-25)
Nos questionamos sobre a escolha de iniciarmos esta tese com um
captulo sobre pedagogia, pois afinal esta uma dissertao sobre cinema e
educao. Mas acreditamos que este captulo poder ser muito caro para
compreendermos a importncia dos diferentes modelos pedaggicos e o modo
pelo qual a pedagogia pode e deve ser recriada ao longo do tempo, de acordo
com a realidade, cultura, poltica, contextos, modos de vida e organizaes
sociais.
O pedagogo Miguel Arroyo ajuda-nos a justificar esta nossa escolha
quando diz que as relaes entre as cincias da humanidade e a pedagogia so
aproximaes que revelam dificuldades e logros nessa empreitada comum do
conhecimento e do trato da infncia. As cincias interrogam a pedagogia sobre
suas verdades e esta no deixa de trazer interrogaes para as verdades das
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cincias (2008:120). Por acreditarmos na importncia desse dilogo,
consideramos que seja interessante verificar alguns pontos de aproximao e de
distanciamento nessa relao. Este exerccio poder contribuir para
compreendermos, mais frente, a pedagogia dos meios e dos projetos de cinema
e educao propriamente ditos. Se observarmos com ateno, perceberemos
que essas teorias se completam, complementam, se recriam e reescrevem, nesse
movimento de ir e vir pedaggico.
Este captulo segue o caminho de uma reviso historiogrfica, mas sem a
pretenso de dar conta de toda a histria da pedagogia. Aqui, nossa pergunta
principal se cruza com aquela que ousaramos dizer ser a mais importante
pergunta pedaggica: Como que se ensina? Vamos circulando por apenas alguns
momentos dessa historiografia, nos permitindo fazer escolhas baseadas em
pressupostos. Neste momento, no qual a reviso bibliogrfica a nossa proposta
metodolgica principal, optamos por autores e pensadores que mais
influenciaram a pedagogia atual, cientes de que havero buracos e brechas
temporais que simplesmente sero ignoradas e at negligenciadas.
Assim, colocamo-nos nesta tarefa talvez no muito fcil para os
comunicadores de mergulhar nesse universo da pedagogia, que nos permite,
como bem articulado na epgrafe por Freinet, voltar a ser criana e tentar entrar
nesse mundo s vezes no to encantado.
Encontramos em Gomes e Paschorim, dois modos principais de pedagogia:
a Pedagogia da Participao que valorizada pelo facto de estar
fundamentada nessa prxis e em constante processo interativo de dilogo
com a sociedade, com as crianas, jovens e suas famlias;
e a Pedagogia da Transmisso baseada no modo tradicional de fazer
pedagogia, centrada no conhecimento que se deseja transmitir, ignorando
os contextos e os sujeitos envolvidos no processo de veiculao de saberes
(2007: 274).
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A Pedagogia da Transmisso, denominada por Paulo Freire (1968) como
Concepo Bancria da Educao, fundamenta-se no carter legal das normas e
regulamentos oficiais que serviram e servem para despersonalizar as atividades
dos professores e o trabalho pedaggico desenvolvido na instituio escolar
(Gomes e Paschorim, 2007:276). Esta pedagogia baseada numa via de mo nica,
que a transmisso, tambm pode ser chamada de escolstica, e assim no ser
possvel identificar um autor especfico. Para Gomes e Paschorim (2007), o autor
annimo est presente nos nveis centrais de administrao da educao e nas
diferentes formas de controlo do trabalho pedaggico.
Como veremos ao longo deste captulo, a epistemologia da pedagogia
circula por estes dois modelos principais, e o modelo pedaggico preponderante
em cada poca depender de diversos fatores, como j mencionamos, entre eles
as especificidades nacionais, pelo que inclumos nesta viagem aspetos dos
contextos histricos dos processos pedaggicos em Portugal e no Brasil.
A pedagogia criada pela filosofia
Os gregos antigos, aqueles que inventaram a filosofia do modo como a
pensamos e praticamos at hoje, foram os mesmos que inventaram (entre muitas
outras palavras) a paideia, que significa cultura e educao. A palavra pas est
ligada raiz temtica indo-europeia que tem a ver com alimentao e deu origem
a palavras latinas como pater (= pai, aquele ou quem alimenta) e paidagogos (=
pedagogo, quem conduz a criana) (Kohan, 2008). Pedagogo (paidagogos), diz
Sodr (2012), era o escravo que conduzia a criana e a levava at o local de
instruo, intelectual ou fsica (neste caso, a escola de ginstica).
A paideia surge como modelo de uma educao consciente do esprito,
como um mergulho na cultura poltico-educacional. Uma imerso racionalmente
orientada pelos sofistas, os primeiros profissionais do ensino, tradicionalmente
considerados os inventores da didctica, essa techn de doutrinao que
16
conjugava teoria e arte da educao (Sodr, 2012:110). Para Muniz Sodr (2012),
pode-se interpretar a paideia como uma forma da sntese social grega, na qual j
existe uma diviso como efeito da separao social do trabalho entre cidados e
servos, entre o trabalho intelectual e manual.
Scrates (470-399 a.C.), filsofo ateniense considerado o mestre de todos,
impulsionado por uma forte motivao tico-antropolgica, se consagra ao
trabalho de libertar as conscincias atravs do seu dilogo que ensina a pensar
atravs do estmulo reflexo. metodologia utilizada por Scrates para que
seus interlocutores chegassem a esse estgio de liberdade de conscincia chama-
se maiutica. Nesta poca, em que trabalha para o despertar interior e a liberao
mental e intelectual do indivduo, Scrates entra em conflito com o poder
poltico e religioso da polis, sendo condenado morte por corromper as
conscincias e os jovens (Cambi, 1999).
A chamada pedagogia da conscincia individual (Cambi, 1999), orientada
pela filosofia de Scrates, qualifica-se como, talvez, o modelo mais mvel e
original produzido pela poca clssica. Por muitos sculos, essas caractersticas
tornaram tal modelo paradigmtico e capaz de influenciar profundamente a
tradio pedaggica ocidental. A maiutica socrtica ocupa ainda hoje um lugar
incontestvel na reflexo filosfica sobre mtodos de ensino, uma vez que
responde, de uma perspetiva platnica, ao paradoxo do conhecimento colocado
pelos sofistas: como possvel conhecermos algo do qual no sabemos nada?
(Gottschalk, 2007).
Entre os filsofos gregos, Plato 427-347 a.C., discpulo e herdeiro de
Scrates, era um crtico da educao dominante de seu tempo, da educao
milenar baseada nos poemas de Homero e Hesodo, com os quais eram educados
todos os gregos. Segundo a perspetiva platnica, esses poemas ofereciam
modelos (moralmente) imprprios s crianas, como deuses que mentem e
brigam, que so ciumentos, que cometem crimes contra seus genitores, e como
destaca Omar Koham (2008), esta uma tica muito distante da que Plato
deseja para sua polis. Plato acredita que necessrio afirmar uma [sic] outra
17
educao para a infncia (Koham, 2008:44), e acaba se ocupando ele mesmo
desta tarefa.
Pela perspetiva platnica, a educao tem o fundamento poltico de
determinar o carter justo ou injusto de uma polis, de acordo com o tipo de
educao que implementada. De maneira tal, que Plato, fortemente crtico da
ordem poltica de seu tempo, prope um programa educacional concentrado
numa elite dos melhores, os aristi, para levar a justia a polis (Kohan, 2008:44).
Por esta tica de Plato, podemos concluir que, para ocorrer uma mudana
poltica profunda, ser necessria uma mudana educacional profunda, e o
filsofo investe na educao da elite para que ela possa modificar todo o resto.
Por sua obra, Plato fala-nos sobre a crena de Scrates na imortalidade
da alma, e que esta teria contemplado todas as verdades em outras vidas. Para
ter acesso aos conhecimentos verdadeiros, esquecidos pelos homens, seria
importante um trabalho por meio de perguntas e respostas, submetidas s leis da
dialtica, pois, assim, o discpulo poderia ser conduzido a uma realidade objetiva e
absoluta. Segundo este modelo pedaggico, ignorar ter esquecido e aprender
recordar, por meio de questes formuladas pelo filsofo. Da reformulao das
respostas dadas por seus discpulos e acrescentando novos dados a novas
questes, Scrates e/ou Plato vai conduzindo-os, por este mtodo, a
rememorar os saberes j contemplados por suas almas.
Para Marshall Mcluhan (1964), foi no tempo de Plato que a palavra
escrita criou um novo ambiente que comea a destribalizar o homem. Plato,
como afirma Macluhan,
delineou esse programa para os alfabetizados, um programa baseado nas ideias. Com o alfabeto fontico, o conhecimento classificado tomou o lugar do conhecimento operacional de Homero e Hesodo e da enciclopdia tribal. Desde ento, a educao por dados classificados tem sido a linha programtica no Ocidente ([1964] 2007:11).
18
Escolstica: a ideia da transmisso do conhecimento
No perodo entre a morte de Cristo e a poca constantiniana, a Igreja
organizara suas prprias prticas educativas e sua prpria teorizao pedaggica,
sob a influncia, sobretudo, de uma leitura crist sob os dogmas catlicos , da
cultura helenstica, luz da evoluo das comunidades crists. A Igreja
desenvolvera uma ao educativa sobre toda a comunidade, substituindo cada
vez mais o poder civil, primeiro ligando-se a ele, depois tomando o seu lugar e
fazendo o papel de reguladora formativa e administrativa (Cambi, 1999). esse
aspeto que leva a Igreja de Roma a delinear sua prpria supremacia sobre as
demais religies.
Na idade mdia (476-1492), que tem como incio simblico o fim do
Imprio Romano do Ocidente e seu trmino no ano da descoberta da Amrica
encontramos como linha de fora educacional uma exaustiva restituio teolgica
do saber a Deus. Desenvolver a luz divina que anima o esprito humano tarefa
de um empenho educacional que, em sua plenitude racional, torna-se
primordialmente um processo discursivo (Sodr, 2012:111). Este o discurso da
educao medieval que junta os saberes das coisas divinas aos das coisas
humanas, concebendo o conhecimento como um espelho do universo (Sodr,
2012).
Esta uma poca na qual predomina o monoplio eclesistico da educao
e da difuso de um modelo pseudocristo, como ideal e como uma rede de
instituies educativas.
No centro da formao das elites est a transmisso do saber, que se desenvolve nas escolas organizadas pela Igreja, a qual substituiu gradativamente o Estado neste papel. E o substituiu utilizando um novo modelo de escola, ligado vida monstica, que organiza ensinos de alcance sobretudo religioso, segundo regras e procedimentos rigorosamente fixados, dando vida a um tipo de saber bem diferente do antigo, feito de comentrios e de interpretaes, ligado a textos cannicos, que no descobre a verdade, mas mostra: um saber dogmaticamente fixado e que se trata apenas de esclarecer e de glosar. (Cambi, 1999:158).
19
Encontramos, nesse perodo, uma clara distino de modelos e processos
de formao entre as classes consideradas inferiores e a nobreza. A educao do
povo era realizada basicamente pelo trabalho, fenmeno que j ocorria no mundo
antigo. Era o aprendizado, na oficina ou nos campos, que desde a idade infantil,
dava formao tcnico-profissional e tico-civil ao filho do povo. Nas oficinas, por
exemplo, aprendiam-se tcnicas em nveis mais ou menos altos, segundo um item
articulado e escondido no tempo, sob a direo do mestre e reproduzindo seu
saber tcnico, aceitando sua autoridade, recopiando seu estilo relativo s relaes
sociais (com os aprendizes, com os fornecedores, com os clientes) (Cambi, 1999).
Este modelo se dava para qualquer tipo de oficina, das de arte mecnica at de
pintor.
A escolstica, do latim scholasticus, e este por sua vez do grego
, que pertence escola, foi o mtodo de pensamento dominante no
ensino das universidades medievais europeias entre os anos de 1100 a 1500 (e
prosseguiu at s sociedades modernas como veremos mais frente).
Considerado um mtodo de aprendizagem, a escolstica nasceu nas escolas
monsticas crists, de modo a conciliar a f crist com um sistema de
pensamento racional, especialmente o da filosofia grega. Na escolstica, a
memria, por exemplo, muito mais exercitada do que o pensamento reflexivo,
por exerccios que propiciam a simples memorizao passiva de textos, ou seja,
no acontecem reflexes e crticas sobre esses exerccios, o que no permite o
desenvolvimento da inteligncia. Alm disso, o currculo escolstico valoriza
muito mais o estudo das lnguas clssicas (grego e latim) ao invs de valorizar as
lnguas vernculas ou as lnguas vivas estrangeiras.
As principais caractersticas da escolstica que suscitam crticas,
principalmente por parte dos humanistas so: 1) sendo memorista, no prioriza o
exerccio da razo; 2) sendo emuladora, faz com que no haja uma busca conjunta
da verdade, mas sim uma ferrenha defesa ou refutao de algum ponto de vista;
3) sendo classista, no valoriza o ensino e a aprendizagem das lnguas vernculas;
4) sendo livresca, no procura buscar conhecimento na realidade do mundo; 5)
sendo punitiva, no procura corrigir os possveis equvocos do indivduo pela
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demonstrao racional de seus enganos, mas sim por humilhaes corporais e
morais, com o uso de chibatas e de palmatrias, por exemplo; 6) sendo
intelectualista, o vigor fsico, to importante para se ter tambm boa sade
mental, praticamente esquecido (Alessio, 2002).
Aps sculos de implementao na Europa, com 70 sedes universitrias ao
fim do sculo XIV, a Escolstica e a Universidade, como afirma Alessio (2002), se
confundem tambm em seu declnio comum, abrindo espao para o humanismo
que se mostra mais vigoroso a partir do sculo XV e ser constitudo como uma
cultura livre e radicalmente antiescolstica.
Considerado como o filsofo da educao brasileira, Ansio Teixeira (1959),
afirma que o facto de a cultura europeia no ser uma cultura nativa, mas uma
cultura em sua maior parte herdada das civilizaes antigas, colaborou para que a
educao, sob o pretexto do humanismo, se fizesse sobretudo por meio das
letras gregas e latinas, incluindo-se entre elas, quando muito, a matemtica e a
filosofia natural (2006:43). Entretanto, ser impossvel, segundo Ansio Teixeira
(1959), quantificar o vigor da resistncia das influncias e tradies escolsticas
da Idade Mdia, presentes no sistema escolar da poca moderna e mesmo
contempornea, principalmente no ensino dito mdio e superior. Na segunda
metade do sculo XIX, a cultura chamada de acadmica (de letras) continua a
dominar as universidades inglesas. Nesta poca, somente na Alemanha e na
Frana, comea certa influncia do ensino de cincias e da tecnologia cientfica.
Comenius (Comnio): o pai da didtica
Como j falamos, a Europa viveu durante cinco sculos sob o domnio da
Escolstica, e podemos considerar que Jan Ams Comenius (1592-1670) fez uma
importante contribuio e exerceu influncia nos processos de formao,
educao e pesquisa no perodo em que a sociedade ocidental passou do
feudalismo para o modo de produo capitalista. Comenius nasceu na Morvia
(Europa Central) e foi educado em um ncleo familiar protestante, de influncia
luterana, com razes na seita fundada por Juan Hus.
21
O novo processo comercial e industrial emergente fez surgir nas cidades
um novo tipo de populao conhecida como o pobre urbano, pessoas que se
tornam dependentes da benevolncia dos novos-ricos. Novas exigncias religiosas
colocavam em risco o sistema asctico medieval. A crise do antigo regime forava
e encorajava o surgimento de movimentos de contestao ao Imprio Eclesistico
centrado em Roma. Essas situaes de conflito lanam as bases do movimento da
Reforma, que surge com o intuito de conscientizar o povo sobre as inverdades
propagadas pela Igreja que propunha a salvao mediante dinheiro e conquistas
prprias, o que conflituava com a doutrina da graa de um Deus misericordioso
das Sagradas Escrituras.
Comenius iniciou seus estudos em Teologia em Herborn, em 1611, e a
partir de ento entrou em contacto com as principais figuras do luteranismo do
sculo XVI: Juan Fisher, Juan Henrique Alsted e Juan Valentin Andrea, e tambm
com o pensamento do filsofo ingls Francis Bacon (1561-1626), que foi uma das
suas principais influncias. Bacon e Ratke elaboraram novos mtodos de ensino
com fundamentos mais racionais e naturais, que valorizavam a experincia do
aprendiz e no apenas os estudos meramente lingusticos greco-romanos do
Renascimento (Marques, 2000).
Aps sua sada da universidade, Comenius assumiu o magistrio e iniciou
uma grande reforma educacional. Durante o perodo da Guerra dos Trinta Anos,
Comenius percorre a Europa Central e do Norte. Foi neste exlio em Haia que
escreveu sua tese do saber universal, a Didctica Magna, publicada pela primeira
vez em 1657, que, nas palavras do investigador portugus Joaquim Ferreira
Gomes (s.d.: 32-33), o primeiro tratado sistemtico de pedagogia, de didctica
e at de sociologia escolar.
Ao elaborar Didctica Magna, Comenius confere educao o status de
disciplina autnoma em relao filosofia e teologia, concebendo que, para a
educao desenvolver toda a sua tarefa emancipatria, era necessrio dar
pedagogia uma feio de cincia, de pensamento rigoroso e exaustivo, elaborado
22
sobre critrios e princpios gnosiolgicos e epistemologicamente fundados
(Cambi, 1999:284).
A Didctica Magna prope uma reforma da escola na busca por um
ensino, uma aprendizagem e um mtodo que preparem o indivduo para a
cidadania, partindo da vida religiosa-comunitria e fundamentando-se nas leis e
estruturas da natureza, a Pampaedea, que expe sua reforma educacional, e a
Deliberao universal, na qual ele traa seus propsitos de reformar a sociedade
em consonncia com as reformas educacionais (Comenius, [1657] 2002).
A proposta educacional de Comenius representa uma transio didtico-
pedaggica no processo de ensinar e aprender entre os perodos da Idade Mdia
e o incio da Modernidade. Para Comenius, a educao era o instrumento
apropriado para realizar as reformas sociais necessrias que o momento
turbulento e conflituoso exigia. A educao era, assim, o caminho para se chegar
libertao e salvao de todos. Seu pensamento concebe o ser humano como
criatura de Deus, feito sua imagem e semelhana, e, ao mesmo tempo, como
um ser capaz de construir a si prprio pelo trabalho.
Os estudiosos de suas obras conferem-lhe a qualidade de inovador e
visionrio de problemas e solues inerentes Modernidade. A profunda ligao
entre os problemas gerais do homem e a importncia da educao no cenrio do
desenvolvimento social a base para propor um mtodo de ensino universal que
tivesse a natureza como eixo norteador e a compreenso da educao para toda a
vida, para todos, uma educao para a conciliao entre os povos (Cambi, 1999).
O investigador italiano Franco Cambi (1999) considera que Comenius foi um
esprito luminoso numa poca trgica.
No sculo XVII, o pensador ingls John Locke (1632-1704) desenvolve em
sua obra Alguns Pensamentos sobre a Educao uma nova proposta educacional e
pedaggica. Apesar de sua formao escolar ser basicamente fundada no
currculo escolstico, Locke, a partir de suas reflexes pessoais, prope outro tipo
de currculo pautado principalmente pelo critrio da utilidade, pela insero de
23
disciplinas que incentivem tanto o cultivo da mente quanto o cultivo do corpo
(Locke [1692], 1998).
Para que a educao possa estimular o cultivo do corpo pelo vigor fsico,
Locke prope uma srie de disciplinas curriculares como a natao, a esgrima e a
equitao. Alm disso, defende hbitos no que diz respeito alimentao, ao
vesturio, ao descanso e ao lazer, apresentando tambm a importncia de se
aprender algum ofcio manual, como, por exemplo, a pintura, o trabalho com
lato e ferro, a arte de fazer perfumes, etc.
Locke referia-se mente e no mais ao esprito/alma, mudando a
terminologia que estava no centro do debate, at o momento, sobre o
conhecimento humano, centralizando como questo fundamental a pergunta:
como podemos adquirir conhecimento? (Costa, 2011). O conhecimento para Locke
era consequncia da natureza das experincias adquiridas pela mente a partir do
mundo material em que as ideias simples iriam se transformando em complexas
por meio das associaes, ao longo da existncia.
Para estimular a mente, Locke propunha disciplinas como a Aritmtica, a
Geografia, a Cronologia, a Histria e a Geometria. importante observarmos que
esta pedagogia pensada para ser desenvolvida de maneira individual, uma vez
que Locke repudiava a educao coletiva de sua poca, que ainda era,
predominantemente, a educao escolstica.
Outra peculiaridade sobre as ideias de Locke que estas foram
direcionadas para as crianas da burguesia e da nobreza, o que torna mais vivel a
educao individual preconizada pelo pensador. Trata-se, portanto, de uma
educao que visa atender principalmente aos interesses aristocrticos,
procurando fazer com que a nobreza receba uma educao que se adapte ao
novo mundo burgus, em pleno desenvolvimento da Inglaterra do sculo XVII.
Fazendo certo desvio de percurso do nosso olhar historiogrfico no qual a
pedagogia o eixo articulador, no item que se segue iremos realizar uma pequena
abordagem sociolgica, antropolgica e poltica sobre a escola e a cultura,
24
englobando o Estado moderno e o Estado-Nao, que vai do sculo XVI ao sculo
XIX.
Escola, cultura e educao no Estado Moderno
Em Portugal, Antnio Nvoa (2005), chama o perodo entre o sculo XVI e
meados do sculo XVIII, de Era Moderna, e sublinha que, durante esta poca, na
rea da educao, os jesutas e outras congregaes docentes implementaram um
modelo escolar onde crianas e jovens iam para um espao prprio para
aprender. Neste espao, um local separado da famlia e do trabalho, eles eram
ensinados por um ou vrios mestres que transmitiam conhecimentos sobre
diferentes matrias previamente definidas, atravs de processos didticos.
Segundo Jess Martn-Barbero (2003), foi com a formao do Estado
moderno (sculo XVI) at sua consolidao definitiva no Estado-Nao (sculo
XIX), que teve incio e se apoiou a represso das culturas populares na Europa
moderna. Citamos novamente Martn-Barbero (2003:139), quando o autor
questiona sobre os interesses e justificativas envolvidos no processo que
institucionaliza a desvalorizao e desintegrao do popular. Com base nessa
questo e buscando perceber melhor a relao entre escola, cultura e educao,
vamos desenvolver um pouco a temtica durante este perodo da histria
ocidental.
A maior parte dos investigadores considera que o Estado moderno nasceu
na segunda metade do sculo XVI, a partir do desenvolvimento do capitalismo
mercantil em pases como a Frana, a Inglaterra, a Espanha, e mais tarde a Itlia.
As obras de Jean Bodin (Frana), Thomas Hobbes (Inglaterra), e Maquiavel (Itlia),
so reconhecidas como as fundadoras do conceito de Estado moderno e do
pensamento poltico moderno geral. Das ideias destes trs pensadores saram as
matrizes dos trs grandes discursos polticos que dominaram todo o perodo da
histria moderna no Ocidente. De acordo com a ideia de Villar (1981), o Estado
moderno
25
aquele no qual a economia deixa de ser domstica e se converte em economia poltica, aquele que leva a cabo uma primeira unidade do mercado baseada na identificao dos interesses do Estado com o interesse comum e cujo ndice simblico ser a unidade monetria (in Martn-Barbero, 2003:139).
Nessa altura, o Estado afirma sua unidade paradoxalmente no momento
histrico em que emergem as lutas de classes (Martn-Barbero, 2003). Entretanto,
o que possibilitar a passagem da unidade de mercado unidade poltica ser a
integrao cultural, e para superar muitos dos obstculos desta integrao, h
uma grande contribuio pela construo de uma cultura nacional. A
multiplicidade cultural dos grupos e subgrupos, das culturas regionais e locais,
passa a ser um dificultador a esta unidade nacional que sustenta o poder estatal.
Mas o sentimento de in-cultura se produz historicamente s quando a
sociedade aceita o mito de uma cultura universal, que por sua vez o
pressuposto e a aposta hegemnica da burguesia (Martn-Barbero, 2003:146). A
burguesia produz em seu imaginrio o mito da cultura universal pela qual concilia
as classes dentro da sua cultura, excluindo qualquer outra matriz cultural que no
faa parte da sua prpria, realizando assim uma aparente fuso, na qual a cultura
da burguesia a cultura de e para todos (Martn-Barbero, 2003). Passa ento a
existir uma espcie de legitimao da superioridade da cultura da elite sobre a
cultura popular2, do mundo culto sobre o inculto. A Igreja tambm tem o seu
papel, pois se por um lado declara ser a favor do livre arbtrio, por outro exige
uma submisso total hierarquia, baseando-se numa conceo que por si s
detonava as solidariedades tradicionais em que se baseavam as diferentes
culturas populares.
2 Em um trabalho de explicitao e desenvolvimento da conceo gramsciana do popular, Cirese toma por essencial o conceber a popularidade como um uso e no como uma origem, como um fato e no como uma essncia, como posio relacional e no como substncia. Quer dizer que, frente a toda a tendncia culturalista, o valor do popular no reside em sua autenticidade ou em sua beleza, mas sim em sua representatividade sociocultural, em sua capacidade de materializar e de expressar o modo de viver e pensar das classes subalternas, as formas como sobrevivem e as estratgias atravs das quais filtram, reorganizam o que vem da cultura hegemnica e o integram e fundem com o que vem de sua memria histrica (Martn-Barbero, 2003, p. 117).
26
Sodr destaca que Nietzsche, ao se referir sobre como os homens se
utilizam da cultura para fazer dela uma escrava, diz que
em primeiro lugar, o egosmo dos negociantes que tem necessidade do auxlio da cultura e por gratido, em troca, tambm a auxiliam, desejando, bem-entendido, prescrever-lhe, fazendo de si o objetivo e a medida. Da vem o princpio e o raciocnio em voga, de que quanto mais houver conhecimento e cultura, mais haver necessitados, portanto, tambm mais produo, lucro e felicidade eis a a falaciosa frmula (apud Sodr, 2012:32).
Neste contexto, a perseguio s bruxas (tambm poderamos escrever: a
um certo perfil do gnero feminino), o saber astrolgico, medicinal e psicolgico
fica ligado ao conceito popular do mundo. Este saber popular est conectado
diretamente s mulheres: mais de 70% dos acusados, torturados e justiados por
bruxaria foram mulheres (Sodr, 2003:145). Como escreve Martn-Barbero
(2003), este um mundo descentrado, horizontal e ambivalente que no condiz
com os interesses e a nova imagem do mundo que tem na razo vertical,
uniforme e centralizada, sua base existencial. Simboliza para os clrigos e os juzes
civis, para os homens ricos e os cultos, um exemplo do mundo que necessrio
ser extinto.
neste momento que aparece a escola como um importante meio dentro
de todo este processo. Ela o principal mecanismo, aquele que vai introduzir as
crianas nesta nova ordem social. Assim a escola funcionar sobre dois
princpios: a educao como preenchimento de recipientes vazios e a moralizao
como extirpao dos vcios (Martn-Barbero, 2003:145). Na divulgao desta
nova realidade a escola vai desempenhar um papel preponderante, pois ela retira
da criana os modos de persistncia da conscincia popular.
Com a expulso dos jesutas, em 1759, tanto em Portugal como na Europa
catlica, inicia-se um processo histrico de expanso de uma sociedade de base
escolar (Nvoa, 2005:23). Em Portugal, o Marqus de Pombal inicia as reformas
pombalinas, que substituem a tutela religiosa pela do Estado e onde o sistema de
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ensino se divide em trs nveis: o primrio, o secundrio e o superior. Um corpo
de profissionais (docentes) organizado e depender diretamente do Estado.
O Estado passa a centralizar e a inverter o processo de aprendizagem
escolar atravs de uma lgica de racionalizao pensada por mecanismos estatais
prprios. Nesta nova geografia do desenvolvimento, o Estado favorece os centros
urbanos e o litoral do pas.
Na segunda metade do sculo XVIII consolida-se uma determinada forma
de interveno do Estado na educao, quadro que para Nvoa (2005), no
mudar at os dias de hoje. No final desse sculo, o modo de ensino individual
substitudo pelo ensino simultneo, o que significa ensinar muitas pessoas ao
mesmo tempo como se fosse uma s. No princpio do sculo XIX institudo o
modo de ensino mtuo, que permite multiplicar a ao do mestre, com aulas em
que so instrudos centenas de alunos. Os decretos de 1835 e de 1836 estipulam
que o mtodo adotado para o ensino primrio o mtodo do ensino mtuo
(Nvoa, 2005:27).
O modo3 de ensino mtuo promete uma expanso da instruo pblica,
ensinando um grande nmero de alunos em um tempo muito mais reduzido.
Partilhamos da opinio de Nvoa (2005) quando diz que encontra implcito neste
mtodo, um processo de racionalizao que impe uma pedagogia geomtrica
atravs da organizao do espao, da forma como os alunos esto organizados
em sala de aula, da graduao dos estudos e das modalidades de transmisso dos
contedos.
Juntamente com a implementao do modo de ensino mtuo e uma forte
influncia da Revoluo Francesa, surge em Portugal o ensino gratuito, laico e
obrigatrio. A partir de 1835, os pais passam a ter a obrigatoriedade de enviarem
seus filhos, a partir dos 7 anos de idade, s escolas pblicas. Portugal foi um dos
primeiros pases da Europa onde a legislao obrigava as crianas e jovens a
3 Os tericos da pedagogia escrevem inmeros tratados explicando a diferena entre mtodo (maneira de dirigir e guiar o processo ensino-aprendizagem) e modo (maneira de organizar o ensino numa escola). Mas em linguagem corrente, os termos confundem-se (Nvoa, 2005:27).
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frequentarem a escola, mas foi um dos ltimos pases a cumprir na prtica
esta lei. Nvoa (2005) sublinha que as leis sobre educao e ensino, no pas,
nunca traduziram a realidade e nem uma possvel realidade. A escolaridade
obrigatria marca um ciclo histrico que tem o Estado-Nao e o movimento
industrial como os principais elementos do progresso da sociedade e Portugal
divergia em ambos os pontos desse panorama.
Em Portugal, os movimentos democrticos da Escola Moderna foram
sempre minoritrios e associados a projetos pedaggicos de escolas privadas. Mas
depois de 1974 (e sobretudo depois da Lei de Bases do Sistema Educativo, de
1986) o discurso pedaggico dominante, das cincias da educao, tornou-se
menos escolstico, passando a se basear numa educao um pouco mais aberta e
com ideias mais abrangentes do ponto de vista pedaggico.
Embora a consulta pblica sobre a reforma educativa tenha ocorrido em
1980 e a aprovao da lei de bases da educao em 1986, os anos entre a
Revoluo de 1974 e 1980 foram anos de profundas mudanas ao nvel da
educao, sobretudo a primria. Cardoso (2004) ressalta que escola foi atribudo
um papel de elemento fundamental para a formao dos cidados da nova
sociedade que se desejava democrtica e as preocupaes dos responsveis
polticos para a rea da educao foram desde logo sistematizadas, como visvel
no programa do I Governo Provisrio: "democratizar a escola, mas de modo que
funcione com eficincia, garantindo a qualidade da educao, ensino, pesquisa
cientfica e criao cultural".
Pela primeira vez desde a 1 Repblica, foram elaborados novos
programas para o ensino primrio. A prpria escola muda na sua conceo base,
transformando as suas lgicas pedaggicas, combinando a funo principal de
transmisso de saberes organizados com a tentativa de implementar uma
pedagogia que possa ajudar o aluno a tornar-se crtico, desenvolver a criatividade
e trabalhar em grupo (Cardoso, 2004).
Na segunda metade do sculo XIX, a escola torna-se o principal lugar da
aculturao infantil nas sociedades industrializadas, como destaca Ponte (2012)
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em sua investigao sobre a Emergncia e Afirmao do Conceito Moderno de
Infncia. Em quase toda a Europa industrializada haver um grande investimento
por parte do setor pblico em edifcios, equipamentos, materiais, definies de
currculos e formao de professores (Ponte, 2012).
Se, por um lado, a escola em nome da normatizao foi responsvel por
enquadrar as crianas e suas famlias como sujeitos no mais participantes de sua
cultura local, mas pertencentes a uma cultura universal, desprezando,
perseguindo e marginalizando conhecimentos e culturas vindos de longos anos,
pertencentes a estas populaes; por outro lado, ela proporcionou a mdicos,
socilogos, psiclogos, filantropos e reformadores o uso da sala de aula como
laboratrio para a observao dos alunos (Ponte, 2012).
A escola foi, ento, identificada como a instituio encarregada do
controle social. Nas novas sociedades que nasceram com a grande indstria,
educar e instruir os meninos era sinnimo de escola, que passa a ser o nico lugar
possvel onde acontece o processo educacional de forma conveniente e
convincente. A educao atravs da escola tem um objetivo poltico definido:
produzir operrios disciplinados e produtivos e que aceitavam a ordem burguesa
como um dado natural. Ou seja, a escola tornou-se um instrumento necessrio
para a manuteno da ordem pblica e da reproduo do capital. O professor
juntava-se aos psiclogos e aos moralistas na funo de domesticar as crianas
oriundas do meio operrio. a autoridade moral incontestvel impondo a cultura
e os valores da classe dominante ignorncia popular.
A emergncia de uma nova conceo de infncia
At o sculo XVIII, podemos dizer que a criana era tratada como adulto,
nomeadamente por ingressar cedo no universo social das pessoas mais velhas
atravs do aprendizado de um ofcio, em geral numa outra famlia, sob a tutela de
um mestre. Com a mudana das funes educativas para a escola e para a prpria
30
famlia da criana, a infncia comea e ser vista como um mundo diferente do
mundo dos adultos e torna-se objeto de sentimentos de afeto por parte dos
adultos.
Nessa nova conceo educacional, Rousseau (1712-1778) tem uma
singular importncia, nesse sculo marcado pelo desenvolvimento mais clere
do capitalismo, da democracia, a modernidade epistemolgica da educao
(Sodr, 2012:117). este filsofo que introduz a educao liberal, destacando-a
do campo filosfico, constituindo-a como objeto especfico do conhecimento e
caracterizando a infncia como uma singularidade no estado de natureza,
separada da condio adulta, como podemos observar na sua obra Emlio ou Da
Educao, de 1762.
A valorizao pedaggica da infncia to axial para a modernidade que,
a partir da, nenhum pedagogo ou qualquer pensador educacional deixar de
colocar a condio infantil no centro de suas formulaes, embora em certos
casos a categoria jovem (que privilegia a adolescncia) fosse mais relevante do
que infncia(Sodr, 2012:117).
Apesar de ter a origem do seu pensamento claramente influenciada pelas
ideias de Locke, principalmente acerca da importncia da natureza para a
educao do homem, Rousseau se distancia (e muito) deste. Enquanto Locke
estava preocupado com a educao de uma elite burguesa, Rousseau dava um
enorme salto moral em busca de compreender a criana pobre, aquela que
brincava na rua e que fazia parte da classe trabalhadora.
Rousseau observou que estas crianas que habitavam os bairros pobres de
Paris tinham mais vida e eram mais felizes que as crianas que frequentavam as
rodas burguesas, fez desta observao uma investigao mais aprofundada e
chegou concluso de que a criana deveria ter uma total liberdade fsica, para
poder descobrir sua liberdade interior.
Com o interesse de explicar a desigualdade social e as mazelas vividas
pelos homens de sua poca, acreditava que o homem havia se descaracterizado
da sua personalidade simples e se corrompido no contacto com a civilizao.
31
Considerava a sociedade e sua histria como fonte de todas as desigualdades, e
que a bondade o sentimento original do homem.
Esta abstrao existente na rutura entre o humano e o natural, muito
fortemente presente nas ideias de Rousseau, o que Morin acredita ser o valor
que o filsofo d natureza, ou seja, uma importncia quase matricial, maternal.
() Assim, concebe o mito do homem natural que pressupe no a existncia de
uma espcie de Jardim do den, mas potencialidades humanas inibidas pelas
civilizaes, reprimidas por nossas sociedades (2005:2).
Analisando o projeto educacional de Rousseau em Emlio ([1762] 1999),
observamos que este prope uma educao dividida em quatro perodos
principais: a) o primeiro perodo vai de 0 aos 5 anos, correspondendo a uma vida
puramente fsica, apta a fortificar o corpo sem for-lo; b) o segundo perodo vai
dos 5 aos 12 anos e aquele no qual a criana desenvolve seu corpo e seu carter
no contacto com as realidades naturais, sem interveno ativa de seu precetor; c)
o precetor intervm mais diretamente no terceiro perodo, que vai dos 12 aos 15
anos, perodo no qual o jovem se inicia, essencialmente pela experincia,
geografia, histria e fsica, ao mesmo tempo em que aprende uma profisso
manual ou ofcio; d) dos 15 aos 20 anos compreende-se o quarto perodo, em que
o homem floresce para a vida moral, religiosa e social.
At os 12 anos de idade a educao sentimental deve ser considerada mais
importante do que a educao intelectual, pois para Rousseau ser mais
importante a prtica dos bons atos do que a aquisio de grandes conhecimentos.
No seu artigo Para Alm do Iluminismo, Edgar Morin destaca que, com
Rousseau, o tema da afetividade (da sensibilidade) passa a opor-se ao da razo e
indica que sozinha a razo tem um carter abstrato e quase inumano (2005:2).
Para Rousseau, no terceiro perodo que se inicia uma etapa de maior
socializao, quando o jovem deve ser estimulado a amar a todos os homens,
mesmo aqueles que o menosprezam e que se deve estimular a bondade no
corao dos jovens. Todas as formas de rivalidade, glria e de sentimentos de
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comparao devem ser rechaadas da educao do jovem para no lev-lo ao
sentimento de dio.
Rousseau destaca tambm a importncia de se privilegiar a formao do
educando a partir da observao da experincia dos homens em suas interaes
ao longo dos tempos. Com o estudo da histria, acredita que o homem aprender
a ler o corao do prprio homem. Rousseau diz que para conhecer os homens,
preciso v-los agir. Suas prprias palavras ajudam-nos a apreci-los, pois,
comparando o que fazem com o que dizem, vemos ao mesmo tempo o que so e
o que querem parecer; quanto mais se disfaram, melhor os conhecemos ([1762]
1999:328). A inteno do pensador que os homens tenham uma convivncia
benfica e pacfica que possibilite relaes de cooperao social.
O pensamento de Rousseau e sua importncia poltica e educacional foram
complementados pelas experincias pedaggicas de seu discpulo J. H. Pestalozzi
(1746-1827). Pestalozzi, assim como o alemo Friedrich Froebel (1782-1852),
viveram e produziram seus pensamentos pedaggicos numa poca caracterizada
como a Era das Revolues4, que foi marcada pela Revoluo Francesa, a
Revoluo Industrial, as guerras napolenicas, mas principalmente marcou o
triunfo da indstria capitalista, da liberdade e igualdade para a sociedade
burguesa liberal (Arce, 2002:22).
Embora Pestalozzi seja considerado seguidor de Rousseau, existe uma
diferena fundamental entre suas propostas de ensino: Rousseau valorizou os
interesses imediatos do aluno em relao ao mundo que o cerca. Para ele o
verdadeiro ensino deveria proceder diretamente da vida, da experincia, do
sentimento. J Pestalozzi atribuiu importncia ao ensino como condio para a
ativao das capacidades humanas (Zanatta, 2005:174).
Levando em considerao a ideia de Rousseau sobre as cidades serem
abismos da espcie humana, Pestalozzi prioriza o campo para experimentar
pedagogicamente a natureza. Sodr acredita que Pestalozzi pode ser considerado
4 Termo de autoria de Hobsbawn (1996) e utilizado por Arce, no seu livro A Pedagogia na Era das Revolues (2002).
33
uma espcie de Paulo Freire do sculo XVIII, principalmente quando se leva em
conta seu projeto de encetar uma pedagogia do oprimido junto ao
campesinato europeu (Sodr, 2012: 120). Preocupado com a educao dos
rfos e camponeses, criou os primeiros internatos modelares da modernidade e
vivenciou uma vida no campo, a fim de desenvolver uma escola popular onde
trabalhos manuais coexistiam com os trabalhos intelectuais.
Neste contexto, a ideia de Pestalozzi era a de que o conhecimento fosse
desenvolvido por meio de atividades comuns da vida, e que a criana aprendesse
a fazer e a conhecer, fazendo; para isso o autor valorizava a utilizao de objetos
da natureza e da cincia. Pestalozzi acreditava que do mesmo modo que a
atividade intelectual necessitava de exerccio especial da mente, era indispensvel
para o desenvolvimento de habilidades exteriores exercitar os sentidos e os
membros.
O fundamental para Pestalozzi no era ensinar determinados
conhecimentos, mas desenvolver a capacidade de perceo e observao dos
alunos, que chamou de mtodo intuitivo. Esse princpio no era novo, mas o
maior mrito atribudo ao autor deve-