CintiaMarassiBarros - Gozo e Religião

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  • RELIGIO E GOZO

    O que a religio nos diz sobre o gozo contemporneo

    Cntia Marassi Barros

    Rio de Janeiro Maro/2006

    Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-graduao em Teoria Psicanaltica, no Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Teoria Psicanaltica. Orientador: Waldir Beividas

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    RELIGIO E GOZO

    O que a religio nos diz sobre o gozo contemporneo

    Cntia Marassi Barros Orientador: Waldir Beividas

    Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-graduao em Teoria Psicanaltica do Instituto de Psicologia - Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Teoria Psicanaltica.

    Aprovada por:

    Prof. Dr. Waldir Beividas (Orientador)

    Prof. Dr. Rosaura Oldani Flix

    Prof. Dr. Anna Carolina Lo Bianco

    Rio de Janeiro Maro/2006

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    Barros, Cntia Marassi. Religio e gozo o que a religio nos diz sobre o gozo contemporneo/ Cntia Marassi Barros. Rio de Janeiro: UFRJ/IP, 2006.

    120f. Orientador: Waldir Beividas Dissertao Mestrado Universidade Federal do Rio de Janeiro/ Instituto de Psicologia/ Programa de Ps-graduao em Teoria Psicanaltica, 2006. Referncias Bibliogrficas: f. 119-123. 1. Religio. 2. Gozo. 3. Cultura. 4. Psicanlise. I. Beividas, Waldir. II. UFRJ/IP. III. Ttulo.

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    AGRADECIMENTOS

    A Waldir Beividas, pelo privilgio de t-lo como orientador e pelo estmulo e crdito

    quanto ao dilogo da psicanlise com outros saberes.

    A Anna Carolina Lo Bianco, pela colaborao no trabalho e a oportunidade da experincia

    na graduao.

    A Rosaura Oldani Flix, pelo incentivo e toda contribuio desde o incio deste trabalho na

    graduao como minha orientadora.

    A Maurcio Jos DEscragnolle Cardoso por ter acreditado neste trabalho ainda na

    graduao.

    A Andr, meu marido, pela pacincia na minha falta de tempo e ateno.

    A minha me e meu irmo por sempre estimularem meus estudos.

    A Tiago Ravanello e Ana Carolina Lynch pela amizade.

    A todos os amigos do programa de ps-graduao em Teoria Psicanaltica.

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    RESUMO

    RELIGIO E GOZO

    O que a religio nos diz sobre o gozo contemporneo

    Cntia Marassi Barros Orientador: Waldir Beividas

    Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-graduao em Teoria Psicanaltica do Instituto de Psicologia - Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Teoria Psicanaltica.

    Esta pesquisa aborda a religio contempornea e sua relao com o gozo. Trabalha a

    antropologia e sociologia de Louis Dumont, Anthony Giddens e Zygmunt Bauman como

    apoio para chegar configurao cultural atual. Propomos partir de Freud e seu estudo da

    religio, considerando-a como reforadora da renncia pulsional e neurose obsessiva

    coletivizada. Discutimos a noo de gozo de Lacan, principalmente no Seminrio 7 A

    tica da psicanlise e no Seminrio 17 O avesso da psicanlise. Percorremos o ensino de

    Lacan sobre a religio, e sobre o Nome-do-pai. Discutimos as conexes entre gozo, Nome-

    do-pai, religio e cultura. Falamos sobre a religio contempornea e sua relao com a

    terapia, a partir de reflexes de J. A. Miller, e que a psicanlise pode escapar dessa

    classificao.

    Palavras chave: Religio, gozo, cultura, psicanlise.

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    RSUM RELIGION ET JOUISSANCE

    Quest ce que la religion dit-nous sur la jouissance contemporaine

    Rsum du Mmoire de Matrise soumis lcole Doctorale en Thorie Psychanalytique de lInstitut de Psychologie de lUniversit Fdrale de Rio de Janeiro comme lune des exigences pour lobtention du titre de Matre en Thorie Psychanalytique.

    Nous abordons dans ce mmoire la religion contemporaine et sa relation avec la

    jouissance. On travaille lanthropologie et la sociologie de Louis Dumont, Anthony

    Giddens e Zygmunt Bauman comme soutien pour arriver la constitution culturel actuel.

    Nous nous proposons comme point de dpart Freud et son tude de la religion, considere

    comme renoncement la satisfaction pulsionnelle et comme nvrose obsessionnelle

    coletivis. Nous discutons la notion de la jouissance, dans le Seminaire 7 Lthique et

    dans le Seminaire 17 Lenvers. Nous parcourons lanalyse Lacan, dans son enseignement

    sur la religion et le Nom-du-pre. Nous discutons les connexions entre jouissance, Nom-du-

    pre, religion et culture. Nous parlons sur la religion contemporaine et sa relation avec la

    thrapie, partir de la rflexion de J. A. Miller, et comme la psychanalyse peut chapper au

    classement au titre de thrapie.

    Mots clefs: religion, jouissance, culture, psychanalyse.

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    SUMRIO

    INTRODUO .....................................................................................................................1

    I. INDIVIDUALISMO, TRADIO E SURTO DE ACONSELHAMENTOS .............12

    I.1. A ideologia individualista e a idia de indivduo ......................................................... 12 I.1.1 O corte da cincia ....................................................................................................... 20 I.2. A compulso e o vcio no lugar da tradio ................................................................. 22 I.3. Bauman e o surto de aconselhamentos ..................................................................... 30

    II. CONSIDERAES ACERCA DA RELIGIO EM FREUD ...................................... 38 II.1. A religio como rito .................................................................................................... 38

    II.1.1 Religio e renncia pulsional .................................................................................... 41 II.1.2 A religio como perpetuao do complexo edpico .................................................. 45 II.1.3 O sentimento ocenico .............................................................................................. 47 II.1.4 A religio como sedativo ........................................................................................... 50 II.1.5 A religio como Weltanschauung ............................................................................. 55 II.1.6 A cincia moderna ..................................................................................................... 57

    III. O GOZO: DO GOZO INTERDITADO AO MAIS-DE-GOZAR ................................ 61 III.1. Das Ding .....................................................................................................................

    61 III.1.2 O projeto: Freud e das ding ...................................................................................... 62 III.1.3 Kant com Sade e os mitos freudianos ...................................................................... 69 III.2. Do paradoxo do gozo ao paradoxo de Freud ............................................................. 75

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    IV. LACAN E A RELIGIO ............................................................................................. 81 IV.1. A religio como vu .................................................................................................. 81 IV.2 Cincia e verdade ....................................................................................................... 89 IV.3. O Nome-do-Pai ......................................................................................................... 94 IV.3.1 Os Nomes-do-pai .................................................................................................... 96

    V. MILLER E A RELIGIO ............................................................................................ 102 V.1. Da tica ao avesso ..................................................................................................... 102 V.2. Religio e gozo .......................................................................................................... 104

    V.3. Terapizao da religio ............................................................................................. 107

    CONCLUSO .................................................................................................................. 112

    BIBLIOGRAFIA .............................................................................................................. 119

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    INTRODUO

    A religio contempornea nos desperta uma srie de questionamentos. A busca pelo

    conforto religioso ressurge com grande impacto, e cada dia so inventadas novas Igrejas e

    seitas de diversas orientaes. Contudo, todas parecem atuar no mesmo ponto: prometem dar

    conta de toda vida do sujeito, e operam numa esfera antes no explorada. A promessa recai

    diretamente na resoluo da angstia e do sofrimento humano, e tambm na melhora das

    condies de vida do sujeito.

    Dessa forma, para nos situarmos na emergncia do discurso religioso, tomaremos

    como ponto de organizao de nossa pesquisa o que consideramos trs momentos da religio,

    que podemos circunscrever a partir de Freud, Lacan e Miller.

    At a modernidade, a promessa de felicidade oferecida pela religio remetia a uma

    outra vida, que seria um mundo espiritual pleno e verdadeiro. O mundo terreno era

    concebido como inferior, apenas meio necessrio para atingir a plenitude da vida espiritual.

    Para conseguir essa conquista, o sujeito devia renunciar as suas satisfaes. Alm disso,

    obedecer a Igreja e efetuar sacrifcios e mortificaes. Toda renncia e abnegao eram

    realizadas em prol de uma verdade na qual a religio se organiza.

    Na poca medieval, temos um mundo com fortes encarnaes culturais da funo

    paterna, e Deus era o principal Nome-do-pai que dava sentido a esse mundo. O sujeito estava

    submetido a severas restries e coeres, principalmente a sua sexualidade e liberdade. Mas

    estava diante de um panorama cultural que lhe conferia segurana, dentro de uma rotina

    previsvel. Assim, tinha-se tempo para temer o destino e morte. A morte que trazia

    insegurana. A religio operava como dispositivo de alvio diante da angstia e medo da

    morte, e assim prometia felicidade na vida espiritual.

    O impacto da modernidade e o estabelecimento do discurso cientfico mudaram

    completamente a configurao cultural. A cincia emerge para tentar controlar a natureza, a

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    morte, a doena, que caracterizavam a imprevisibilidade da vida neste perodo. Surge com o

    objetivo de fornecer todas as respostas e dar conta do sofrimento humano. A religio sofre

    ento um forte abalo, e entra em conflito com a cincia que a considera indigna de crdito.

    diante desse panorama que Freud constri sua teoria e clnica. A religio se

    encontrava abalada, e a prpria cincia se revelava producente de mal-estar. Surge do

    movimento cientfico um sujeito que Lacan denomina sujeito da cincia, que a dimenso

    que a cincia tenta ignorar e suturar. A cincia foraclui a dimenso da verdade do sujeito, no

    quer saber sobre a origem e o campo do gozo, justamente o campo sobre o qual opera a

    psicanlise. A operao cientfica foraclui a dimenso que possibilita o sujeito assumir sua

    posio subjetiva, implicado em seu sintoma. A psicanlise surge para responder a essa

    posio subjetiva.

    A religio que Freud presenciou e descreveu em seus artigos era a religio como

    dispositivo cultural para reforar a renncia pulsional e impor restries. Ao mesmo tempo,

    fornecia consolo para o sofrimento resultante das coibies culturais, conferindo uma

    explicao para a falta de gozo. Contudo, a cincia assume o lugar e o privilgio que a

    religio teve outrora.

    A nosso ver, Freud em sua crtica religio no pretendia destru-la, apenas mostrar

    seus limites. Sua inquietao se relacionava religio como sedativo para o mal-estar e sua

    disputa com a cincia pela posse da verdade acerca da origem da vida e do universo.

    Assim, a religio em Freud a religio da renncia pulsional, do cerimonial e do rito,

    que ele considera como neurose obsessiva coletivizada. Descarta a possibilidade de um

    sentimento religioso original (1930) e a considera uma criao humana, iluso construda

    frente ao desamparo infantil. Iluso nos transmite a idia de algo que necessariamente falha e

    leva decepo.

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    Lacan estava num cenrio distinto de Freud. O iderio individualista conquistava cada

    vez mais espao. A religio reagia a seu desmoronamento na modernidade e comeava a

    lanar mo de outros dispositivos para se sustentar. J no se mostrava to coibidora e seu

    principal atrativo era a verdade de que somente ela seria possuidora. Lacan analisa ento as

    religies monotestas, fundamentadas numa doutrina teolgica. Define a religio como vu,

    como encobridora de uma verdade do sujeito, que a castrao. A religio nega, portanto, a

    dimenso do sujeito que o lugar da angstia. A religio ainda vale pela verdade que possui,

    a cura est em segundo plano. Lacan no chega a se deparar com as seitas, mas na

    entrevista o Triunfo da religio (2005) aposta na sua constituio, ao falar das falsas

    religies.

    Dentro das religies monotestas, e do prprio Freud, Lacan retira a noo de Nome-

    do-pai. a psicanlise que reintroduz Deus como significante (Regnault, 1930). No perodo

    medieval, Deus era o significante que organizava o mundo. Sua retirada foi iniciada com a

    tradio crist, que torna Deus acessvel f individual. Ao contrrio do Judasmo, o cristo

    no est fortemente vinculado a seu povo, a sua histria ou tradio, mas apenas a sua prpria

    famlia. Com o pensamento cientfico, Deus expulso definitivamente, o que produz

    conseqncias culturais afetando a subjetividade. Esta a preocupao de Lacan ao explorar

    nos seus seminrios a frase Deus est morto. Deus est morto desde sempre, e somente

    por isso que reaparece to vivo e forte nas tradies religiosas. Assim, trabalha os textos

    freudianos sobre cultura e religio para entender a irrupo de gozo que se depara na clnica,

    noo que constri baseado no mal-estar freudiano.

    Na contemporaneidade, estamos diante da radicalizao do individualismo, da

    exigncia de satisfao e prazer a qualquer custo. O sujeito deve ser independente e guiar

    sozinho sua vida. Caso no tenha sucesso, recorre a servios de auto-ajuda e a Igrejas que

    pregam o alcance do que desejar, caso queiram. O fracasso responsabilidade nica do

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    sujeito. Sem as antigas encarnaes culturais da castrao, que explicam a falta de gozo, o

    fracasso da satisfao recai somente no prprio sujeito que deve se virar para encontrar uma

    resposta para tal. Assim, o sujeito se encontra deriva, diante das inmeras ofertas e

    promessas de obteno do gozo pleno. Desloca-se de objeto em objeto, exerccios, dietas,

    busca do corpo perfeito, trabalho excessivo, drogas, tudo para aliviar sua angstia. Reduz-se

    somente a seu prprio sintoma.

    A religio acompanha as mudanas culturais e passa a ressaltar a potncia humana.

    o que temos nas novas Igrejas e seitas, que prometem todo fim do sofrimento. Ressaltam que

    o homem, como filho de Deus, tudo pode. Prometem desde o fim do sofrimento e doenas

    melhora da vida financeira. Contudo, a aposta na potncia humana aparente, pois exigem

    dos fiis que abram mo de liberdade, dinheiro, sexualidade. O religioso totalmente

    submetido s determinaes do pastor e da Igreja. O alvio imediato que obtm o paralisa e

    no faz com que se posicione frente a seu sintoma e sofrimento. A nosso ver, recai no

    sofrimento, pois um sujeito submetido Igreja e vivendo s voltas com medo do demnio

    est tambm em sofrimento. o que veremos com Miller, e a terapizao da religio, ou

    seja, vale mais pelos seus efeitos de bem-estar. neste ponto que psicanlise e religio, como

    veremos, podem coincidir.

    Assim, pretendemos abordar a religio pela via do gozo. Como opera sobre o gozo na

    contemporaneidade? O que causa a forte desregulao de gozo hoje? O estudo do sujeito

    religioso pode nos dizer algo sobre o sujeito que atendemos nos consultrios? Para atingir

    nosso objetivo, alm da psicanlise, lanamos mo da antropologia e da sociologia, com

    Dumont, Bauman e Giddens.

    Sabemos da importncia em marcar que antropologia e sociologia so saberes distintos

    da psicanlise, mas defendemos que outros saberes podem servir de apoio, para delimitarmos

    as mudanas culturais fundamentais e para compreendermos o sujeito hoje. Beividas lamenta

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    que o dilogo, to necessrio poca do nascimento, parea tornar-se nocivo na maturidade

    de uma disciplina (Beividas, 2001, p.13). Aprendemos com Beividas a valorizar esse tipo de

    intercmbio, o que no anula ou prejudica a teoria e clnica psicanaltica, caso seja feito de

    forma cuidadosa.

    Assim, no primeiro captulo, faremos um mapeamento de toda concepo freudiana

    acerca da religio, desde Atos obsessivos e prticas religiosas (1907) at A questo de uma

    Weltanschauung (1933). No nos estenderemos neste captulo at Moiss e o Monotesmo

    (1939), pois, devido a sua importncia, articularemos os principais desenvolvimentos

    freudianos neste texto j juntamente com Lacan, no quarto captulo.

    No primeiro captulo, partiremos do primeiro texto freudiano sobre religio, no qual

    esta comparece como neurose obsessiva coletiva. Nele, aparece pela primeira vez a renncia

    pulsional como fundamento da cultura. Freud coloca que os atos obsessivos, suas proibies e

    expiaes, aproximam-se muito dos rituais e proibies religiosas. Ambos se sustentam no

    sentimento inconsciente de culpa.

    Em Moral sexual civilizada e doena nervosa moderna (1914), Freud prolonga-se na

    renncia pulsional, e em Totem e tabu transforma a precariedade da satisfao pulsional em

    mito. Ainda em 1914, fala atravs do mito sobre o surgimento da cultura e a sustenta na

    religiosidade.

    Em Futuro de uma Iluso, define a religio como perpetuao do Complexo edpico.

    O sujeito cria a religio de forma ilusria devido a seu desamparo infantil, fruto do medo do

    destino quando percebemos que permanecemos crianas para sempre. em Mal-estar na

    civilizao que a religio considerada uma das satisfaes substitutivas obtidas pelo sujeito.

    A religio um dos dispositivos culturais que efetuam exigncia de renncia pulsional. Freud

    localiza nessa renncia a hostilidade do sujeito em relao cultura. Essa hostilidade tambm

    se relaciona noo de pulso de morte que torna impossvel o projeto cultural de conter a

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    agressividade. para det-la que a cultura impe limitaes, fora a identificaes, propaga o

    mandamento de amar o prximo como a si mesmo.

    tambm neste texto que Freud descarta a possibilidade de um sentimento religioso

    primitivo e original. O sentimento ocenico est relacionado a uma fase primitiva do eu, e

    somente se vincula a religio posteriormente. a cultura que fornece a religio, no uma

    necessidade natural ou uma pulso religiosa como defendia Pfister (2003). Finalmente, em

    A questo de Weltanschauung (1933), a religio comparece como uma viso de mundo junto

    com a cincia.

    No segundo captulo, trabalharemos com trs autores da sociologia e antropologia:

    Louis Dumont (1993), Anthony Giddens (1997) e Zygmunt Bauman (1998). No primeiro

    tpico, veremos com Dumont a predominncia da vontade individual que se destaca na

    contemporaneidade e que teve seu incio, segundo ele, com o surgimento do Cristianismo.

    Com esse pressuposto, partiremos da contribuio de Dumont no estudo do surgimento do

    individualismo. o iderio individualista na cultura ocidental que Dumont coloca como

    sendo produto de um processo que se inicia com Judasmo e se completa com o Cristianismo.

    Pretendemos ento circunscrever como o mito cristo produz a relao do sujeito como

    indivduo isolado com Deus. O sujeito no possui estreita ligao com um povo, raa ou

    histria, j que o mundano concebido como uma vida inferior inevitvel para que se chegue

    vida espiritual verdadeira e plena.

    No segundo tpico, veremos como Giddens lana mo da psicanlise para explicar a

    dinmica da contemporaneidade, que denomina de alta modernidade com ordem ps-

    tradicional. Com ele, veremos como a tradio substituda pela compulso e o vcio no

    perodo da alta modernidade.

    A tradio para Giddens a cola que une as ordens sociais pr-modernas e que possui

    carter repetitivo. Est envolvida com o controle de tempo. uma orientao para o passado,

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    para ter influncia no presente e organizar o futuro. Quando algo caracterizado como

    tradicional, pressupe-se alguma persistncia, ou seja, algo que resiste mudana.

    Giddens parte do pressuposto de que, na contemporaneidade, a tradio dissolvida

    pela compulso e pelo vcio. Ele insere a psicanlise para compreender a incapacidade de

    escapar do passado. Na poca de Freud, a tradio comeava a ceder com o impacto da

    modernidade, transformando-se em compulso. Assim, a estrutura neurtica da repetio

    substitui o que era organizado nas sociedades tradicionais pela tradio. O passado continua

    vivo, mas em vez de ser reconstrudo pela tradio, domina a ao com a repetio. Essa a

    sociedade ps-tradicional.

    Para o que Freud coloca como compulso, Giddens usa o termo vcio. O termo

    esclarece o que seria a sociedade ps-tradicional. Ele indica a dissoluo da tradio, no fato

    de que, na atualidade, o tornar-se viciado em qualquer aspecto considerado estilo de vida,

    como drogas, sexo, trabalho e exerccios. So sadas que o sujeito busca para dar conta da

    angstia.

    As principais idias a serem trabalhadas so como o vcio comparece ento como

    limitao da deriva pulsional, devido a ofertas de objetos fornecidos pela cultura e ausncia de

    mediadores que expliquem a falta de gozo.

    No terceiro tpico, com Zygmunt Bauman, pretendemos analisar sua descrio do

    processo percorrido pela religio desde a Idade Mdia at a contemporaneidade, fornecendo

    assim bases para pensarmos qual seria o carter da religio hoje. Ele aponta como as Igrejas

    exigiam do sujeito renncias s suas satisfaes. Utilizava dispositivos como a confisso para

    que os fiis trabalhassem pela mortificao no mundo, em favor da vida espiritual em outro

    mundo. A outra vida era digna de alto valor, ao contrrio da vida mundana, concebida como

    inferior e passageira. As igrejas utilizavam dispositivos para que seu trabalho fosse

    considerado indispensvel, colocando a mortificao como um dever do indivduo para atingir

  • 8

    a salvao e a vida espiritual. O sujeito temendo a vida aps a morte, que poderia ser repleta

    de punies, dependendo da vida levada na Terra, passava a recorrer ao pastor.

    No entanto, com o impacto da modernidade, a inquietao sobre os propsitos da vida

    foi sendo retirada completamente da vida cotidiana. O individualismo, a busca pelo prazer,

    pela liberdade e igualdade, juntamente com as constantes mudanas da sociedade nas quais o

    sujeito se v obrigado a tentar se adaptar, no permite que sobre tempo para inquietaes

    sobre algo espiritual. A idia de auto-suficincia humana passa a chamar a ateno para as

    experincias que podem ser vivenciadas nesta vida. Assim, a religio perderia sua utilidade.

    Dessa maneira, as regras difceis de seguir foram substitudas nas Igrejas. No se

    poderia exigir renncia satisfao, pois se entraria em choque com o ideal perseguido e

    exigido da cultura. A vida aps a morte foi deixada de lado, j que a vida terrena que produz

    incertezas e mal-estar. Giddens e Bauman apontam a atual era como a dos especialistas em

    solucionar problemas. Os homens e mulheres de hoje precisam de algo que transforme sua

    incerteza em auto-segurana. Por isso, este momento foi descrito por Bauman como que

    tomado por um surto de aconselhamentos. Portanto, a incerteza no geraria a procura da

    religio, e sim a procura por especialistas. O sujeito que no consegue se adaptar ao modelo

    da sociedade deve procurar alguma tcnica para se livrar de entraves psquicos e liberar

    impulsos reprimidos. Por isso, a abundncia de servios de auto-ajuda na atualidade,

    prometendo dar conta da insuficincia humana. O que pretendemos destacar como a religio

    mudou seus dispositivos de acordo com as mudanas culturais para continuar sendo

    necessria, como as Igrejas evanglicas.

    No terceiro captulo, partiremos principalmente do Seminrio 7 (1997) e do Seminrio

    17 (1992) para desenvolver a noo de gozo. No Seminrio 7, Lacan constri uma articulao

    entre Das Ding, gozo e Lei. Das ding o objeto causa do desejo que se mantm distncia,

    pois o gozo mtico inatingvel. Lacan retoma neste seminrio as questes trabalhadas por

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    Freud em Totem e Tabu e Mal-estar na Cultura. Enfatiza o gozo mtico como impossvel. O

    parricdio no libera a via para o gozo que o pai supostamente interditava, mas refora a

    interdio. O mito assim aponta para uma perda de gozo, que constitui a cultura e o sujeito.

    Para Lacan, Freud refora essa tese em Mal-estar na cultura. Lacan retoma a Lei de

    interdio do incesto que culmina numa renncia de gozo enquanto Das Ding representado

    pela me. Portanto, o pai era o nome da falta de gozo e da causa do desejo. Na medida em que

    um objeto interditado, a lei orienta o desejo em direo ao mesmo. Por isso ele ressalta que

    sem a Lei a Coisa estaria morta. A lei , portanto, paradoxal, pois interdita o objeto, exige

    renncia ao gozo e ao mesmo tempo estabelece o desejo em direo ao objeto perdido.

    no seminrio do Avesso que fundamentaremos o paradoxo de Freud demonstrado

    por Lacan. No Seminrio 17 Lacan retoma as questes elaboradas no Seminrio 7, em torno

    do lugar do pai na obra freudiana. Ele prope uma retomada da obra freudiana pelo avesso.

    Freud na construo de seus mitos, dipo e o pai da horda, cr desmoronar a religio.

    Contudo, a sustenta em sua obra, e Lacan introduz o que est velado no mito do pai da horda:

    que o pai castrado. Assim sendo, Freud mantm o ato do assassinato como primrio,

    anterior Lei e castrao. Para Lacan, s pode se ter ato com a incidncia do significante,

    ou seja, no poderia haver ato antes da linguagem. A linguagem a origem da Lei e do

    sujeito, e no o pai. Temos uma estrutura anterior formada pela linguagem e a castrao. A

    linguagem instaura assim a castrao como Lei. A funo do pai como agente da castrao

    uma funo secundria, efeito da incidncia do significante (linguagem). Por isso Lacan

    articula que no se pai de significantes, -se pai por causa de (1992, p.122). neste

    seminrio ainda que Lacan destaca a questo do gozo que no o flico.

    No quarto captulo, intitulado Lacan e a religio, veremos a definio de Lacan da

    religio como tentativa de reduo da falta e de reencontro com das Ding. Ainda em Discurso

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    aos Catlicos (1964/2005) e a entrevista o Triunfo da religio (1974/2005), Lacan aposta no

    triunfo da religio, que perceber sua chance nas produes perturbadoras da cincia.

    No segundo tpico desse captulo, a partir do texto Cincia e verdade, veremos que

    Lacan define a religio em seu aspecto de causa final, j que denega ao sujeito o acesso

    verdade enquanto causa do desejo. A partir da definio do discurso da psicanlise, discurso

    da cincia e discurso da religio, percorreremos o artigo para diferenciarmos esses discursos.

    No terceiro tpico, trabalharemos brevemente a noo de Nome-do-pai desde o

    Seminrio 3 at o Seminrio 17. No incio, o Nome-do-pai era um significante primordial

    que, ausente, faria o sujeito cair na psicose. Posteriormente Lacan vai se afastando do pai real

    da famlia nuclear at chegar ao seu estatuto lgico. Isso culminar com sua pluralizao em

    Nomes-do-pai. Neste Seminrio dos Nomes-do-pai, ainda trabalharemos a operao de

    mascaramento efetuado pelo mito cristo. Analisando os escritos bblicos, veremos como est

    presente a origem animal do homem, lugar de angstia e castrao que a religio vela.

    Finalmente, no ltimo e quinto captulo, trabalharemos a contribuio de Miller (2004)

    acerca da religio contempornea. A religio perdeu seu estreito vnculo com uma verdade de

    que seria possuidora. O que vem tona so seus efeitos de bem-estar, a verdade quando vem

    apenas acrscimo. So algumas novas Igrejas Evanglicas e seitas.

    Pensaremos tambm onde religio e psicanlise podem coincidir. A nosso ver,

    quando a psicanlise representa um moralismo mais compreensvel do que nenhum outro

    existente at hoje (Lacan, 1960/1997, p.13). Isso ocorre quando exercida para restituir a lei

    perdida ou salvar o pai, e ainda domar o gozo perverso. Assim, a psicanlise percorre a via

    da terapia e pode se encontrar prxima da religio contempornea. Nossa proposta tentar

    compreender o que ocorre com o sujeito hoje a partir da religio, e conseqentemente o

    sujeito que recebemos na clnica. Para tal, tambm faremos uma anlise da cultura, mas sem

  • 11

    patologiz-la, classificando-a como doente, ou perversa, o que acreditamos que apenas

    introduz uma nostalgia intil.

  • 12

    I. INDIVIDUALISMO, TRADIO E SURTO DE ACONSELHAMENTOS

    Neste captulo, realizaremos um mapeamento da posio da antropologia e da

    sociologia acerca da cultura moderna e contempornea. Para tal, lanaremos mo da obra de

    Louis Dumont, Anthony Giddens e Zygmunt Bauman. Articularemos a psicanlise com a

    sociologia, pois acreditamos que seja pertinente a aproximao entre diferentes campos do

    saber, desde que esta articulao seja feita de maneira cuidadosa. fundamental pontuarmos

    que a psicanlise e a sociologia so saberes distintos, mas defendemos que outros campos do

    saber podem nos servir de auxlio e apoio para que possamos construir uma anlise da cultura

    e assim compreendermos o sujeito contemporneo, j que consideramos que os sintomas so

    construdos de acordo com as possibilidades culturais.

    I.1. A ideologia individualista e a idia de indivduo

    Articularemos a predominncia da vontade individual que se destaca na

    contemporaneidade e que teve como seu principal fermento, segundo Louis Dumont (1993), o

    surgimento do Cristianismo. Com esse pressuposto, partiremos da contribuio de Dumont

    com a hiptese do surgimento do individualismo e sua vinculao com o Cristianismo.

    Em 1930, Freud deduz como a cultura estaria sedimentada futuramente. Em Mal-estar

    na Cultura (1930) aponta para o conflito entre a vontade individual e a vontade coletiva. Ele

    sustenta como a cultura exige que o sujeito realize renncias pulsionais, em favor da vontade

    coletiva. No entanto, Freud aposta que, posteriormente, o sujeito se destacaria da coletividade,

    sendo sua vontade preponderante. Assim, o sujeito se tornaria cada vez mais semelhante a

    Deus. o resultado de um processo iniciado com o Judasmo que culmina com o Cristianismo

    e o Protestantismo. O produto desse processo o individualismo. O Judasmo rompe

  • 13

    parcialmente com a magia ao constituir um pai unificado que delega ao povo a transmisso de

    sua f, o que mantm, portanto, a relao do sujeito com o coletivo, pois este pertence a uma

    histria e uma tradio. A magia mantida no judasmo com os rituais cabalsticos, mas so

    restritos a alguns membros. O Cristianismo fecharia o processo, na medida em que o cristo

    se responsabiliza por sua f individualmente, ele um indivduo em relao com Deus. De

    modo que o cristo no est estreitamente vinculado a um povo ou uma tradio, e sim apenas

    a sua famlia.

    Pretendemos ento circunscrever como o mito cristo produz a relao do sujeito

    como indivduo isolado com Deus. O sujeito no est vinculado com um povo, raa ou

    histria. O mundano concebido como uma vida inferior inevitvel para que se chegue a vida

    espiritual verdadeira e plena. Como expe Lacan acerca do sujeito contemporneo aquele em

    que se afirma sua independncia em relao, no s a todo senhor, mas tambm a todo deus,

    aquele de sua irredutvel autonomia como indivduo, como existncia individual (

    1956/2002, p.150).

    Dumont pensa a gnese do iderio individualista e fundamenta seu surgimento na

    histria. Para ele, algo do individualismo moderno j est esboado nos primeiros cristos.

    Para tal hiptese, baseia a diferena entre uma sociedade tradicional holista e uma sociedade

    individualista. A palavra indivduo denota duas possveis interpretaes, como ressalta

    Dumont:

    Assim, quando falamos de indivduo, designamos duas coisas ao mesmo tempo: um objeto fora de ns e um valor. A comparao obriga-nos a distinguir analiticamente esses dois aspectos: de um lado, o sujeito emprico que fala, pensa e quer, ou seja, a amostra individual da espcie humana, tal como a encontramos em todas as sociedades; do outro, o ser moral independente, autnomo e, por conseguinte, essencialmente no social, portador dos nossos valores supremos, e que se encontra em primeiro lugar em nossa ideologia moderna do homem e da sociedade. Deste ponto de vista, existem duas espcies de sociedades. Quando o

  • 14

    indivduo constitui o valor supremo, falo de individualismo; no caso oposto, em que o valor se encontra na sociedade como um todo, falo de holismo. (DUMONT, 1993, p.37)

    Podemos nomear uma sociedade partindo de seu valor preponderante, ou seja, aquele

    que a sociedade destaca como principal. A sociedade holista aquela em que o valor supremo

    a sociedade como um todo. Assim, a vontade coletiva se destaca e predomina. Dessa forma,

    o individualismo caracterizado por uma sociedade oposta sociedade holista, ou seja, nele,

    o valor mais importante o indivduo e sua vontade. Encontramos uma importante descrio

    do holismo que utilizaremos como ilustrao, em Totem e Tabu (1914). Freud indica que aps

    o parricdio, estabelecido o totemismo, que seria o primrdio da organizao social e

    religiosa. Na sociedade totmica (holista), o cl se encontrava identificado com o totem.

    Assim, nessa dinmica no se pode destacar o indivduo como ser autnomo, independente. O

    cl est constantemente referido ao totem, pois possui um vnculo sagrado com ele. Os

    festivais nos quais o ato do parricdio repetido uma tentativa de reforar essa identificao

    com o totem e uns com os outros. Quando o cl devora o totem, incorpora seus atributos, seu

    poder. Portanto, tem-se como principal referencial, o todo, o coletivo; no h indivduo

    independente e destacado do coletivo ou a vontade individual, e sim, o totem. O cl e cada

    membro deste o totem.

    Qual seria o processo atravessado pela cultura que resultou no individualismo

    moderno? Dumont parte do exemplo da sociedade de castas na ndia, considerada uma

    sociedade de tipo tradicional e na qual est presente o ascetismo. Nele, o homem renuncia a

    sua vida social e basta a si mesmo. O sujeito nessa condio nomeado indivduo-fora-do-

    mundo. Assim, na sociedade holista, o individualismo comparece como oposio mesma,

    com o indivduo extramundano, o asceta. J na cultura ocidental moderna o sujeito est

    circunscrito a um ideal no qual ele deve bastar a si mesmo e buscar o mximo de

  • 15

    independncia e autonomia. Mas esse sujeito se encontra mesmo assim inserido na cultura,

    por isso Dumont o define como indivduo-no-mundo. Assim:

    O renunciante basta-se a si mesmo, s se preocupa consigo mesmo. O pensamento dele semelhante ao do indivduo moderno, mas com uma diferena essencial: ns vivemos no mundo social, ele vive fora deste. Foi por isso que chamei ao renunciante indiano um indivduo-fora-do-mundo. Comparativamente, ns somos indivduos-no-mundo, indivduos mundanos; ele um indivduo extramundano. (DUMONT, 1993, p.38)

    Assim sendo, este indivduo-fora-do-mundo que est presente no incio do

    Cristianismo. O homem um indivduo-em-relao-com-Deus e, portanto, extramundano. Os

    cristos renem-se em Cristo, e a alma individual se relaciona filialmente com Deus. O

    esforo para atingir a perfeio voltado para o interior do indivduo. Desenha-se um

    dualismo, pois o valor do indivduo a desvalorizao do mundo e assim se estabelece um

    confronto no Cristianismo entre verdade e realidade. H uma diferena entre a vida real do

    homem e aquela prometida pela religio. A vida mundana e tudo que dela se derivava poderia

    ser um empecilho ou um meio de alcanar a verdade, que o reino de Deus. O mundano se

    desvaloriza em detrimento de uma outra vida, espiritual e verdadeira. Ento, nesse momento,

    tem-se o indivduo extramundano, ou fora-do-mundo, j que o mundo concebido como

    inferior a uma outra vida.

    A converso do indivduo-fora-do-mundo em indivduo-no-mundo foi vivel pelas

    transformaes sofridas na prpria Igreja. A Igreja se tornou mais mundana, e como

    conseqncia, implicou mais o sujeito no mundo. Antes desse processo, as relaes entre o

    indivduo e Deus eram preponderantes, assim como a fraternidade da Igreja. A vida mundana

    relativizada. Ela um meio inevitvel para salvao, e ao mesmo tempo um obstculo.

    Assim, a vida mundana teria importncia somente em relao a seu objetivo, a felicidade em

    outro mundo com Deus. Como aponta Dumont:

  • 16

    Decorre dos ensinamentos do Cristo e, em seguida, de Paulo, que o cristo um indivduo-em-relao-com-Deus. (...) A Alma individual recebe valor eterno de sua relao filial com Deus e nessa relao se funda igualmente a fraternidade humana: os cristos renem-se no Cristo, de quem so os membros. Essa extraordinria afirmao situa-se num plano que transcende o mundo do homem e das instituies sociais, ainda que estas procedam tambm de Deus. O valor infinito do indivduo , ao mesmo tempo, o aviltamento, a desvalorizao do mundo tal como existe: postulado um dualismo, estabelece-se uma tenso que constitutiva do cristianismo e atravessar toda a histria. (DUMONT, 1993, p.43)

    Essa tenso opera como o fermento que iniciar a descolagem do sujeito com a vida

    mundana. A preocupao com a vida espiritual sedimentada com a desvalorizao do

    mundo. aqui que se constitui uma distino absoluta entre a vida prometida ao homem e

    aquela que de fato, a dele (1993, p.43). Dumont estabelece outro importante ponto

    diferencial entre a cultura atual e o incio do cristianismo, no que se refere relao entre o

    homem e as coisas. Na contemporaneidade, vemos a dissoluo de laos slidos do sujeito

    com a cultura, e sua acoplagem aos inmeros objetos fornecidos pela cultura como detentores

    do gozo. Temos ento a valorizao da relao do sujeito com as coisas, enquanto que no

    Cristianismo inicial, as coisas mundanas so vistas como obstculos para a salvao, e a

    relao entre homens baseada em indivduos iguais em relao com Deus.

    O episdio histrico que marcou a Igreja tornando-a mais mundana foi converso do

    Imperador Constantino ao Cristianismo. Ento:

    Em primeiro lugar, a converso ao cristianismo do imperador Constantino, no incio do sculo IV, alm de obrigar a Igreja a unificar-se mais, abriu um problema temvel: o que seria um Estado cristo? Voluntariamente ou no, a Igreja estava colocada frente a frente com o mundo. Estava feliz por ver que se punha fim s perseguies e tornava-se uma instituio oficial prodigamente subvencionada. (DUMONT, 1993, p.53).

  • 17

    Desponta o Estado Cristo, que mantm sua inferioridade em relao Igreja. Dumont

    apresenta a teoria formulada pelo Papa Gelsio I aps dois sculos de existncia da Igreja

    oficialmente no imprio, por volta de 500. Essa teoria passou a ditar as relaes entre a Igreja

    e o Imperador. Nela, a autoridade sagrada estaria submetida ao rei somente nos assuntos

    mundanos. Assim, apreendemos que sua superioridade foi mantida, pois o sacerdote seria

    inferior somente num nvel mundano.

    Contudo, o Papado reivindica participao no poder poltico, para que o divino

    reinasse no somente nos assuntos espirituais, mas no mundano e na vida do povo

    integralmente. Para tal, no sculo VII, os Papas rompem com Bizncio e assumem o poder

    temporal do ocidente. Quando a Igreja passa a ditar os rumos do poder poltico, torna-se

    mundana alm de espiritual. A doutrina de Gelsio substituda por uma monarquia

    espiritual, na qual o poder espiritual superior ao temporal. Assim:

    Com a reivindicao de um direito inerente ao poder poltico, introduz-se uma mudana na relao entre o divino e o terreno: o divino pretende agora reinar sobre o mundo por intermdio da Igreja, e a Igreja torna-se mundana num sentido em que no o era at ento. Os Papas, por uma opo histrica, anularam a formulao lgica por Gelsio da relao entre a funo religiosa e a funo poltica e escolheram uma outra. (DUMONT, 1993, p,60).

    A diferena entre a funo poltica e a espiritual seria apenas em grau. O Papa

    posteriormente delegaria o poder temporal ao Imperador, que seria apenas seu representante.

    Dessa forma, identifica-se como o cristo comea a se implicar mais no mundo e

    conseqentemente, a poltica tambm participa mais dos valores absolutos.

    Este o incio do individualismo. Como marca Dumont sobre o processo:

  • 18

    O que acontecer na histria que o valor supremo exercer presso sobre o elemento mundano antittico que ele encerra. Por etapas, a vida mundana ser assim contaminada pelo elemento extramundano at que, finalmente, a heterogeneidade do mundo dissipa-se por completo. Todo o campo estar ento unificado, o holismo ter desaparecido da representao, a vida no mundo ser concebida como suscetvel de harmonizar-se totalmente com o valor supremo, o indivduo fora-do-mundo se converter no moderno indivduo-no-mundo. Est a a prova histrica do extraordinrio poder da disposio inicial. (DUMONT, 1993, p.45)

    Outra etapa foi atravessada para a definitiva passagem de indivduo extramundano

    para o mundano, com Lutero e a Reforma Protestante, culminando com Calvino. Com Lutero

    e a Reforma Protestante, Deus afastado do mundo, mas ainda acessvel conscincia

    individual pela f. Lutero contestou o domnio da Igreja sobre o sujeito e expulsa Deus do

    mundo.

    Com Calvino, o indivduo est no mundo devido superao do mundano como

    contrrio. Para ele, Deus vontade e est mais afastado do que estava em Lutero. Havia para

    Calvino homens que seriam eleitos, pois estariam investidos de graa divina. Assim sendo,

    a tarefa dos homens trabalhar para a realizao da vontade divina, e eles eram totalmente

    sujeitos a Deus. a sujeio que ser fundamental para a transio em direo ao indivduo

    no mundo. Anteriormente, o sujeito no reconhecia a submisso, apenas reconhecia no mundo

    um valor oposto. O sujeito passa a agir identificado com a vontade divina, e implanta o outro

    mundo no mundo real. Assim, a extramundanidade est concentrada na vontade do indivduo

    e o reino de Deus deve ser construdo na Terra pelos eleitos.

    A idia de que a Igreja deve controlar o Estado e toda atividade social mantida por

    Calvino. Esse pressuposto deriva do mesmo princpio que surgiu a independncia do

    indivduo, e no um trao do holismo. O controle deve ser exercido para preservar a eleio.

    Assim, os elementos fundamentais da doutrina calvinista so as concepes de Deus como

    vontade, da predestinao e da cidade crist como o objetivo precpuo da vontade do

  • 19

    indivduo. Para Calvino, Deus essencialmente vontade e majestade. Isso implica uma

    distncia: Deus est, neste caso, mais longe do que precedentemente. (Dumont, 1993, p.64).

    Dessa maneira, a Igreja perde seu carter de salvao, e a predestinao supera a

    Igreja. A Igreja passa a ser uma instituio disciplinadora. Torna-se, portanto, uma associao

    composta de indivduos, que com consentimento mtuo delegam a autoridade a um agente de

    governo. A Igreja no pode ser mais salvadora, pois o indivduo auto-suficiente em relao a

    Deus.

    A predestinao est ligada ao investimento da vontade divina sobre certos homens

    que so eleitos, enquanto outros esto condenados reprovao. O eleito tem como dever

    trabalhar para glorificao de Deus no mundo. afirmado com firmeza a impotncia do

    sujeito frente onipotncia divina.

    At ento, com efeito, o indivduo era obrigado a reconhecer no mundo um fator antagnico, um outro irredutvel que ele no podia suprimir mas to-somente subordinar, englobar. Essa limitao desaparece com Calvino e vemo-la substituda, de certo modo, pela sujeio muito especial vontade divina. (DUMONT, 1993, p.66).

    Isso no caracterizaria uma limitao do individualismo. Como afirma Dumont (1993,

    p.65), quando se demarca a inferioridade do sujeito em relao a Deus, por outro lado, se

    intensifica a relao do sujeito com o mundo, o que funda a doutrina Calvinista como marca

    definitiva do indivduo mundano. Assim, estaremos inevitavelmente reconhecendo na

    sujeio do eleito graa de Deus a condio necessria legitimizao dessa transio

    decisiva. (1993, p.66).

    A predestinao faz com que o sujeito supere a prpria Igreja. o crente que a

    constri, e no o contrrio, para preservao da eleio.

  • 20

    I.1.1 O corte da cincia

    A cincia moderna opera um corte, que a foracluso de Deus. Deus era o nome-do-

    pai organizador da cultura, o significante que d sentido ao mundo. a psicanlise que

    demonstra que Deus tambm um Nome-do-pai (Regnault, 1993). A mensagem de Deus que

    organizava a cultura medieval pela tradio e autoridade de Deus desmorona (Antunes, 2002,

    p.23). Segundo Regnault (1993), o Deus estabelecido no cogito diferente do Deus medieval.

    O Deus de Descartes situado como exceo. Deus causa de tudo, mas se situa fora do

    mundo e do universo. S assim a cincia se constitui.

    O Deus judaico antigo possui lao com os fiis, um Deus que fala e transmite

    mensagens ao seu povo, enquanto que o Deus cristo no fala diretamente com seu povo,

    somente atravs da Igreja, seus sacerdotes e os santos. Com a Reforma protestante e Calvino,

    retirada ainda a mediao feita anteriormente pela Igreja. , portanto, aprofundada com o

    Cristianismo a ruptura de Deus com o mundo. Posteriormente, o cogito cartesiano completa

    todo o processo e foraclui Deus do mundo. Segundo Lacan (1956/2002, p.221) a cincia

    moderna silencia o significado, ao foracluir Deus. A natureza no possui significado, seus

    fenmenos no provm de Deus. So postos em frmulas matemticas.

    Assim, tem-se na cultura ocidental da contemporaneidade, o resultado do processo que

    se iniciou nos primeiros cristos. No atual panorama cultural, cabe ao sujeito ser autnomo,

    independente e, conseqentemente, sem referenciais e laos mais slidos com a cultura em

    que est inserido. Parte-se do pressuposto de que o sujeito, dentro dessa dinmica, encontra-se

    sem apoio, perdido. A cultura exige dele liberdade, igualdade, e que atinja o mximo de

    prazer e satisfao. Propaga a no renncia e o alcance do gozo pleno. Assim sendo, sem

    referenciais slidos, e diante das inmeras ofertas e possibilidades de gozo, o sujeito se v

    capturado na procura da resposta para tal, individualmente. O fracasso pulsional localizado

    no prprio sujeito, o que conduz a uma invaso excessiva de gozo que produz sofrimento.

  • 21

    Dessa maneira, com a falta de uma referncia coletiva, o sujeito no encontra sustentaes

    coletivas para sua estruturao egica assim como Freud mostra em Psicologia de grupo e

    analise do ego (1921). Os ideais de liberdade, igualdade e busca por prazer ilimitado

    produzem conseqncias difceis de suportar. Sem laos sociais mais slidos, cada indivduo

    dirige a prpria vida e o nico responsvel por si prprio.

    Houve uma troca da segurana por liberdade, e o indivduo sujeito s constantes

    mudanas na sociedade se v obrigado a se adaptar de alguma forma a elas. Com o

    afastamento de Deus, o Deus suprimido (Latour, 1994) e enfraquecimento de mediadores

    que expliquem a falta de gozo, exigido ainda que o sujeito se assemelhe ao prprio Deus.

    o Deus de prtese, que Freud indica como fermento de conseqncias difceis de suportar

    (Freud, 1930). importante ressaltarmos que o termo indivduo no uma categoria

    psicanaltica, j que no implica a diviso subjetiva. O seu uso no presente trabalho se refere

    como a cultura o instalou como principal referente e exigncia. A assimilao do sujeito como

    indivduo caracterstica da cultura. Assim, marcamos justamente o fracasso de tal ideologia,

    j que estamos diante de um sujeito dividido, que no pode ser reduzido categoria de

    indivduo, e por isso consideramos que o iderio individualista ocasiona irrupo de gozo.

    Discutiremos posteriormente a compulso instaurada na contemporaneidade, o que faz

    com que o sujeito recorra a sadas para alvio da angstia.

  • 22

    I.2. A compulso e o vcio no lugar da tradio

    Anthony Giddens (1997) lana mo da psicanlise para explicar a dinmica da

    contemporaneidade, que ele denomina de alta modernidade com ordem ps-tradicional. Com

    ele, ser visto como a tradio diante o impacto do que denominado alta modernidade,

    fragilizada pela compulso e o vcio.

    Ele aponta para esse perodo de transio que a sociedade vivencia. um perodo de

    finalizaes. Giddens define a contemporaneidade como um perodo de desorientao,

    relacionado aos processos de mudanas que se iniciaram no comeo do desenvolvimento da

    modernidade, tornando-se intensas na poca atual.

    Assim, pretende pensar a tradio hoje, e define a sociedade atual como de ordem ps-

    tradicional, devido ao que ele evidencia como uma dissoluo da tradio.

    Para Giddens, esse perodo de transio se caracteriza pela influncia da vida

    individual nos resultados globais, e tambm o seu reverso. As instituies modernas penetram

    na vida cotidiana. Assim, a experincia global da modernidade est interligada, e as

    experincias da vida pessoal cotidiana refletem o papel da tradio.

    Giddens no se limita a colocar a modernidade simplesmente em oposio tradio:

    A modernidade, quase por definio, sempre se colocou em oposio tradio; no verdade que a sociedade moderna tem sido ps-tradicional? No, pelo menos da maneira que me proponho falar aqui da sociedade ps-tradicional. Durante a maior parte da sua histria, a modernidade reconstruiu a tradio enquanto a dissolvia. Nas sociedades ocidentais, a persistncia e a recriao da tradio foram fundamentais para a legitimao do poder, no sentido em que o Estado era capaz de se impor sobre sujeitos relativamente passivos (GIDDENS, 1997, p.73).

  • 23

    Assim sendo, o processo de modernizao reconstruiu a tradio e os processos de

    mudana da atualidade so conseqncias do mesmo. Para Giddens, pode-se delimitar nesse

    processo de mudana, duas esferas de transformao. As esferas seriam, primeiramente, a

    difuso extensiva das instituies modernas, universalizadas por meio dos processos de

    globalizao. Por outro lado, h os processos de mudana intencional, que podem ser

    conectados radicalizao da modernidade.

    Giddens denomina a poca atual como alta modernidade com uma ordem ps-

    tradicional. Para que essa denominao seja compreensvel, faz-se necessrio entender o que

    tradio para ele, e o que uma sociedade tradicional, para que posteriormente possamos

    chegar contemporaneidade.

    fundamental a compreenso do que seria a tradio para Giddens. Para ele, a

    tradio a cola que une as ordens sociais pr-modernas e que possui carter repetitivo (1997,

    p.80). Devido a esse carter, a tradio est envolvida com o controle de tempo. Assim, a

    tradio uma orientao para o passado, para ter influncia no presente e organizar o futuro.

    Quando algo caracterizado como tradicional, pressupe-se alguma persistncia, ou seja,

    algo que resiste de certa forma mudana.

    Como a tradio se refere organizao do passado em relao ao presente, a memria

    tambm se insere neste fator. A tradio se relaciona com a memria, no apenas como

    conservao de estados psquicos inconscientes, mas como reconstruo do passado. Dessa

    forma, a memria um processo social e no apenas lembrana. A memria, enquanto

    processo social, sempre repetida, e isso lhe d continuidade. A tradio, portanto, um meio

    organizador da memria coletiva.

    Outra caracterstica da tradio marcada por Giddens o ritual (1997, p.82). A

    tradio envolve um ritual, que parte das estruturas sociais que preservam a integridade das

    tradies O ritual preserva as tradies atravs da prtica, reconstruindo continuamente o

  • 24

    passado. Dessa forma, o ritual isolado das tarefas rotineiras. As prticas cotidianas no

    possuem a autonomia temporal conferida s prticas, crenas e objetos rituais.

    A tradio possui tambm contedo normativo e moral:

    Finalmente, todas as tradies tm um contedo normativo ou moral que lhes proporciona um carter de vinculao. Sua natureza moral est intimamente relacionada aos processos interpretativos por meio dos quais o passado e o presente so conectados. A tradio representa no apenas o que feito em uma sociedade, mas o que deve ser feito. Isto no significa, claro, que os componentes normativos da tradio sejam necessariamente enunciados. A maioria deles no o : so interpretados nas atividades ou orientaes dos guardies. ... Suas bases psquicas so afetivas. H, em geral, profundos investimentos emocionais na tradio, embora estes sejam mais indiretos que diretos; eles se originam dos mecanismos de controle da ansiedade proporcionados pelos modos tradicionais de ao e crena (GIDDENS, 1997, p.82)

    Assim sendo, pode-se compreender o investimento emocional dirigido tradio

    devido a seu carter de controle da angstia. A pergunta a ser feita, neste ponto, como o

    sujeito busca regular sua angstia a partir do momento que, como define Giddens, a tradio

    se encontra dissolvida na contemporaneidade. Retornaremos a isso posteriormente.

    Dessa forma, a sociedade de ordem tradicional, seria aquela na qual a tradio teria um

    papel dominante, possuindo caractersticas como: persistncia continuamente reconstruda,

    memria, ritual e contedo normativo e moral. Outras caractersticas fundamentais seriam as

    noes de verdade formular, e o guardio da tradio (a figura do xam, do curandeiro, do

    religioso) que veremos a seguir.

    Na sociedade tradicional, a tradio se diferencia do mero costume e hbito; separa-se

    das tarefas cotidianas e rotineiras por possuir uma importncia impactante que combina

    contedo moral e emocional. A tradio tem importncia quando no compreendida como

  • 25

    tal. As culturas em que a tradio tem importncia exacerbada so aquelas que sequer

    possuem uma palavra especfica para denomin-la. Assim, a tradio to invasiva nessas

    culturas que no diferenciada de outras formas de conduta.

    Os conceitos de noo formular de verdade e de guardio se referem ao fato de

    que a tradio envolve uma verdade formular, a que poucas pessoas tm acesso. uma

    verdade sagrada, que somente est ao alcance de seres especiais, como o guardio. Assim, o

    ritual tem que ser interpretado, e essa tarefa no est nas mos do sujeito comum, e sim do

    guardio, um ser especial dotado de sabedoria. A linguagem desses rituais pode conter

    aspectos incompreensveis, que s podem ser traduzidos pelo guardio.

    Giddens marca que a tradio um meio de identidade, pois ela discrimina entre o

    iniciado e o outro. Esse outro quem est de fora, no participando do ritual e da

    aceitao da verdade formular. Por isso, a ameaa integridade da tradio vivenciada

    como ameaa ao prprio eu do sujeito. Assim, fortes ligaes emocionais se estabelecem em

    relao tradio, pois esta faz parte da identidade individual e grupal e, como vimos, possui

    carter regulador da angstia. No Cristianismo, esse limite entre iniciados e no iniciados

    marcado pelos crentes e pagos. Assim, delimita-se o estranho, que o representante do

    desconhecido, sendo exterior ao que familiar.

    Voltando caracterstica de persistncia da tradio, como algo que se repete

    continuamente, Giddens considera que na atualidade a tradio repetio (1997, p.85), e

    ressalta que ela compartilha algo com a compulso repetio, compulso compreendida

    como inclinao para a repetio de maneira inconsciente e pouco compreendida pelo sujeito.

    Na sociedade de ordem tradicional, a tradio possua caractersticas como verdade formular,

    guardio, ritual, e era sempre reconstruda e ligada a uma significao sagrada dotada de

    importncia, o que dissolvido na contemporaneidade. Como veremos, a tradio torna-se o

  • 26

    costumeiro e o habitual, ligada mera definio de papis que as pessoas assumem em

    determinadas ocasies cerimoniais.

    Qual o lugar na contemporaneidade para o ritual, o guardio, a verdade formular? Ao

    contrrio das sociedades tradicionais, tem-se o destaque do especialista (1997, p.83), que no

    corresponde ao guardio. Para o especialista, a competncia se destaca como principal, ao

    contrrio do guardio, que se vincula ao status, importncia de sua posio e a sua

    sabedoria. Na contemporaneidade, no h uma sabedoria especial fora do alcance do leigo.

    Dessa forma, na estrutura atual, o sujeito pode ter acesso ao que desejar, basta que adquira o

    conhecimento para tal. A tradio, ao contrrio, est ligada autoridade. Essa autoridade

    possui duplo sentido: autoridade que um indivduo ou grupo tem sobre os outros ou como

    referncia de conhecimento. Por isso guardio e especialista no devem ser confundidos. O

    guardio de uma cultura tradicional uma autoridade devido ao seu acesso verdade

    formular. Assim, seu conhecimento pode ser denominado como sabedoria. O especialista o

    sujeito que possui habilidades especficas e conhecimentos que o leigo no possui. O leigo

    pode adquirir o conhecimento do especialista. O mesmo no ocorre com o guardio, que

    possui uma sabedoria que o diferencia da comunidade.

    Giddens delimita essa diferena:

    (...) Primeiro, a especializao desincorporadora; em contraste com a tradio, em um sentido fundamental no tem local determinado e descentralizada. Segundo, a especializao no est ligada a verdade formular, mas uma crena na possibilidade de correo do conhecimento, uma crena que depende de um ceticismo metdico. Terceiro, o acmulo de conhecimento especializado envolve processos intrnsecos de especializao. Quarto, a confiana em sistemas abstratos, ou em especialistas, no pode ser imediatamente gerada por meio de sabedoria esotrica. Quinto, a especializao interage com a reflexividade institucional crescente, de tal forma que ocorrem processos regulares de perda e reapropriao de habilidades e conhecimentos do dia-a-dia (GIDDENS, 1997, p.105).

  • 27

    As relaes de confiana entre leigos e especialistas se constituem diferentemente da

    confiana projetada no guardio. Nas sociedades tradicionais, a confiana se estabelecia

    devido ao respeito dado ao guardio por ele ter acesso verdade formular. No caso do

    especialista, a confiana lhe dirigida pela suposio de sua competncia. Assim, com a

    destruio da tradio, o sujeito no se vincula a verdades formulares, e sim a um estilo de

    vida. Dessa forma, as relaes de confiana so questionadas. Portanto, Giddens entende a

    compulsividade como confiana congelada.

    Assim sendo, Giddens coloca que a tradio repetio, uma compulso que se

    configura como incapacidade para escapar do passado. Ele faz ento uma articulao entre a

    psicanlise freudiana e a sociologia.

    Destaca como Freud estava preocupado com a questo do destino, que se relaciona

    com a tradio. Em sua poca, a tradio estava comeando a ceder com o impacto da

    modernidade, ou seja, estava se transformando em compulso. Assim sendo, a estrutura

    neurtica de repetio substitui o que era organizado nas sociedades tradicionais pela

    tradio. Freud descobre ento a cultura tradicional em desintegrao.

    Na modernidade compulsiva, o passado continua vivo, mas em vez de ser reconstrudo

    de acordo com a tradio, domina a ao com a repetio. A compulso , portanto, tradio

    sem tradicionalismo, repetio que atrapalha a autonomia. Assim, Giddens permite-nos

    pensar se na atualidade as formas de smbolo e ritual ainda compem tradies, pois se trata

    de uma repetio que perdeu sua conexo com a verdade da tradio, ou seja, uma mera

    continuidade de preceitos, aceitos de modo inquestionvel. Para se ter tradio, necessrio

    estar articulado a suas caractersticas, como o ritual, o guardio, e a verdade formular. Assim,

    na contemporaneidade, o tradicional passa a ser o costumeiro e o habitual, e certas cerimnias

    e rituais passam a se constituir apenas como definies de papis sociais que o sujeito deve

  • 28

    assumir em determinado momento de sua vida. No h, portanto, conectividade com o

    sagrado.

    Ao que Freud coloca como compulso, Giddens usa o termo vcio. No entanto,

    daremos preferncia para a denominao freudiana. Isso significa que na atualidade o tornar-

    se viciado em qualquer aspecto, considerado estilo de vida, como drogas, sexo, trabalho e

    exerccios (1997, p.90). So sadas que o sujeito busca para aliviar a angstia. A vida

    cotidiana oferece uma multiplicidade de possibilidades para o sujeito, e a essa

    multiplicidade que ele recorre como resposta ao gozo, j que com a dissoluo da tradio se

    desfaz tambm seu carter regulador da angstia, que conferia ao sujeito um referente.

    Assim sendo, a cultura no lhe oferece suporte, fazendo com que o sujeito busque o

    suporte sozinho, ligando-se aos aspectos da vida diria, como alimentao, exerccios fsicos e

    trabalho na tentativa de aliviar a angstia, produzida pela alta modernidade como um perodo

    de constantes transformaes e srias conseqncias para o sujeito. estabelecida a

    compulso repetio inconsciente que impossibilita a autonomia subjetiva. O perodo de

    transio atravessado contemporaneidade, no qual tudo est sendo questionado, deve-se a um

    esvaziamento da tradio e da verdade formular e instaurao da compulso repetio.

    Com o esvaziamento, o sujeito procura sozinho encontrar a resposta para o gozo, podendo se

    viciar em qualquer aspecto da vida diria.

    Assim, a tradio resiste na ordem ps-tradicional atravs da estrutura neurtica de

    repetio. As tradies que resistem dissoluo da tradio se apresentam alteradas.

    Permanecem como relquias (1997, p.124), valorizando artefatos ou prticas das tradies

    passadas como algo sagrado. A tradio investe o passado de divindade, e assim a verdade

    formular liga o sagrado tradio. Os monumentos transformam-se em relquias quando as

    verdades formulares so questionadas ou descartadas.

  • 29

    O ritual tambm no desaparece. Nas sociedades tradicionais, o ritualismo estava

    ligado verdade formular, ou seja, a noes msticas. J na sociedade ps-tradicional, tem-

    se a ritualizao, quando a cultura tem uma forma padronizada como modo de definio dos

    papis que as pessoas representam em ocasies cerimoniais.

    Giddens coloca em questo o trabalho analtico. A anlise enfatiza a escolha. At o

    vcio seria uma escolha. No entanto, a escolha limitada pelo inconsciente, pela rotinizao

    da vida cotidiana e pelas relaes de poder. Assim sendo, as escolhas so limitadas por fatores

    externos ao indivduo, e internos, como aponta a psicanlise. Na ordem ps-tradicional, a

    questo da escolha se tornou uma exigncia no cotidiano. O sujeito deve exercer ao mximo

    sua capacidade de escolha e deciso para atingir o mximo de prazer e satisfao, sem limites

    (Dumont, 1993). Isso acarreta conseqncias que veremos mais adiante. O que queremos

    marcar neste momento a aposta de Giddens no dispositivo psicanaltico. Sem ele, o sujeito

    ao buscar a resposta para a angstia, pode se entregar compulso, estando sujeito violncia

    e ao fundamentalismo religioso. O vcio a possibilidade de limitao da economia de gozo,

    fruto do cenrio cultural que oferece novos objetos a cada momento, sem mediadores que

    expliquem a falta de gozo.

    No pretendemos no mbito deste trabalho nos aprofundar na questo do

    fundamentalismo religioso, mas importante marcarmos que, para Giddens, o

    fundamentalismo se constitui como a tomada da verdade formular de maneira radical, sem

    levar em conta as conseqncias. Essa tomada radical se deve ao peso da responsabilidade

    delegada ao sujeito, que deve ser auto-suficiente e buscar o mximo de prazer. O

    fundamentalismo seria o grito dos excludos da sociedade de consumo, que ditam que o

    homem deve ser guiado, conduzido, ao contrrio do que prega a sociedade de iderio

    individualista, predominante em nossa cultura, na qual o valor principal a vontade individual

    e no a vontade da comunidade.

  • 30

    No prximo tpico, exporemos a contribuio de Zygmunt Bauman, que fornece os

    dados acerca da passagem da religio da Idade Mdia at a contemporaneidade, o que nos

    auxiliar a pensar a religio hoje.

    I.3. Bauman e o surto de aconselhamentos

    Bauman inicia seu questionamento acerca da religiosidade na contemporaneidade: ser

    que estamos diante de um declnio ou renascimento da religiosidade? A nosso ver, ele aposta

    em seu renascimento e busca os fundamentos que culminaram no seu intenso

    restabelecimento.

    Na contemporaneidade, o sujeito diante de constantes mudanas sobre as quais ele

    deve se adaptar, soma-se, como vimos na primeira e segunda parte deste captulo, o iderio da

    cultura individualista. Assim, exigida auto-suficincia, capacidade de adaptao imediata s

    constantes mudanas culturais e extremo poder de deciso acerca de sua vida. Bauman se

    pergunta como, diante desse panorama, ainda restaria tempo para preocupaes como a

    finalidade da vida, vida aps a morte e, conseqentemente, a busca por religio. Assim:

    Ns chegamos a acreditar nas igrejas de toda parte que, sempre que pressionadas, insistem em que proporcionam o servio de que necessita o irresistvel impulso humano de obter respostas para as questes fundamentais da finalidade da vida (...) Admiramo-nos, contudo: h pouco, na rotina diria, que incite essa investigao escatolgica (...) Antes de se ter tempo de pensar na eternidade, a hora de dormir est chegando e, depois um outro dia transbordante de coisas a serem feitas ou desfeitas. Admiramo-nos: bem pode ser que as igrejas, como outros produtores de bens e servios, tivessem de se ocupar, primeiro, da produo de seus prprios consumidores: tinham, se no de criar, ento pelo menos de ampliar e aguar as necessidades destinadas a serem satisfeitas pelos seus servios e, desse modo, tornar seu trabalho indispensvel. (Bauman, 1998, p.210).

  • 31

    Dessa forma, podemos questionar a alegao das Igrejas de que proporcionam resposta

    para um impulso inerente ao sujeito, impulso que necessita de resposta para questes sobre a

    finalidade da vida e a espiritualidade. Diante da queda da busca por religio na modernidade

    ante o aguado pensamento cientfico, as Igrejas precisaram criar ou aumentar a necessidade

    de religio. Para tal, lanaram mo de outros dispositivos. A nosso ver, a idia de Bauman

    coincide com Freud, que descarta a possibilidade de um sentimento religioso original e

    interior ao sujeito. Como veremos no segundo captulo, o sentimento ocenico usado pelas

    Igrejas como justificativa para a necessidade de religio, para Freud vinculado

    posteriormente, na medida em que a cultura fornece a religio como indispensvel. Assim,

    importante definirmos os dispositivos usados pelas Igrejas, da Idade Mdia at a

    contemporaneidade, e a modificao nos mesmos para a sua sobrevivncia.

    O dispositivo que podemos destacar nas Igrejas at a modernidade a

    mortificao, um afastamento do mundo e desvalorizao do mesmo (Bauman, 1998,

    p.210). O mundo aqui inferior vida verdadeira e espiritual, por isso a vida terrena

    concebida como uma morte diria. O sujeito, ao aceitar a mortificao como dever, pode ter

    como recompensa a salvao e a garantia da sonhada vida espiritual. Assim, a mortificao

    consiste em renncia s satisfaes, realizao de expiaes e confisses.

    Bauman descarta a religiosidade como fruto do interior do sujeito. Nas suas

    palavras:

    Proponho que o caso do carter inato, da presena natural da propenso religiosa na situao humana universal, no modo de estar no mundo associado espcie, no foi comprovado. Foi apenas implacavelmente insinuado: explicitamente, mediante a aceitao da forma de autolegitimao eclesistica como a explicao da religiosidade (...). (BAUMAN, 1998, p.211).

    O sujeito recorre ao pastor e ao padre, com objetivo de obter um ensaio para a

    prxima vida. Contudo, essa preocupao com a outra vida produzida no sujeito, ou seja,

  • 32

    no parte de seu interior e sim lhe oferecido e estimulado culturalmente. Aps a produo

    da demanda, o sujeito passa a precisar da Igreja e temer a punio pstuma. A inquietao

    acerca da salvao domina toda atividade da vida do sujeito, graas s Igrejas.

    A mortificao pressupe, portanto, a idia central de insuficincia humana. O

    homem considerado fraco e falho, incapaz de controlar e decidir sua vida sozinho, sem

    obedecer aos preceitos religiosos. Mas como se sustenta a mortificao com o impacto da

    modernidade e a concepo da auto-suficincia humana? Com essa concepo, eliminar-se-ia

    o domnio da religio. Quando o sujeito deve ser independente e exercer ao mximo sua

    capacidade de escolha e deciso, sua ateno dirigida para as questes da vida terrena, e no

    para uma suposta vida espiritual. Assim:

    A revoluo moderna consistiu precisamente na rejeio desse ltimo tipo de inquietao, ou retirando-o completamente da agenda, ou elaborando a agenda da vida de tal modo que pouco ou nenhum tempo foi deixado para cuidar de tais inquietaes. (BAUMAN, 1998, p.212).

    Quando o iderio individualista ainda exige a obteno do mximo de prazer e

    satisfao, o resultado toda concentrao do sujeito nesta vida, sem sobra de tempo para a

    pstuma. A vida aps a morte no se encaixa nessas novas exigncias e ideais. A retirada de

    Deus como Nome-do-pai que organizava o mundo e fornecia sustentaes coletivas para o

    sujeito muda completamente a posio do sujeito diante da vida.

    A religio perde sua utilidade e se mantm fragilizada na modernidade, ante o

    impacto da cincia e os novos ideais culturais. Bauman define a religio moderna como

    pessoal e secreta, e que dessa maneira pode ser equiparada a uma atividade de lazer. O

    interesse pela vida espiritual no mais uma preocupao central na vida do sujeito, e sim

    uma curiosidade, de que se ocupa nas horas de folga como passatempo. Contudo, e as Igrejas

    e seitas que conseguem na contemporaneidade um crescimento intenso, como podem ser

  • 33

    consideradas meras atividades de lazer? Bauman descreve o que esses segmentos religiosos

    precisaram realizar para se manterem de p. Nas palavras de Bauman:

    O ponto importante que, com o fim de resistir a tal marginalizao, as igrejas e seitas que conseguiram fazer exatamente isso tenham precisado assenhorear-se de outras funes que no a de abastecer a preocupao com os mistrios da existncia e da morte. (BAUMAN, 1998, p.215).

    Diante da exigncia de satisfao e prazer a qualquer custo, e inmeras ofertas e

    possibilidades de gozo fornecidos pela cultura, o dispositivo da mortificao e sua

    conseqente exigncia de abnegao e sacrifcio, penitncias e desprendimento, ficaria restrita

    a poucos sujeitos santos j que o foco do momento era justamente as inclinaes

    pecaminosas (1998, p.215). A preocupao era realizar e construir o mximo nesta vida, e a

    salvao perde a importncia. J que estamos na vida terrena, as preocupaes que o sujeito

    se permite ter so, justamente, a riqueza, a beleza, e o desejo carnal. A modernidade dissolve

    o domnio do Cristianismo e concentra a ateno no aqui e agora. Assim, as regras difceis de

    seguir deveriam ser revistas para as Igrejas preservarem seus fiis. Passam ento, alm da

    preocupao com assuntos espirituais, a tomar conta de toda vida do fiel, pessoal, financeira,

    e prometem a cura de qualquer doena ou problema.

    Dentro desse panorama, outra mudana fundamental se solidifica: a dissoluo da

    morte. Bauman descreve como a morte se torna um problema especializado e desvinculado da

    significao religiosa (1998, p.217). No h uma figura principal, unificada e assustadora, que

    represente a possibilidade de morte moderna; est dissolvida em pequenas ameaas

    cotidianas, como vimos com Giddens. O sujeito recorre alimentao, exerccios, trabalho e

    sexo como forma de dar conta da angstia, e se depara com a morte nas suas tentativas, com a

    alimentao de mais ou de menos, drogas, regimes excessivos, sexo sem preservativo.

    Recorre a extremos, o que causa a invaso de gozo e dor. Todos os modos de vida so

  • 34

    permitidos, mas nenhum seguro. A partir do momento em que no funcionam mais, so

    prontamente substitudos por outros mais elaborados e novos.

    Est tudo ao redor, saliente e tangvel, tudo sobressaindo demais nas habilidades rapidamente envelhecedoras e abruptamente desvalorizadas, em laos humanos assumidos at segunda ordem, em empregos que podem ser subtrados sem qualquer aviso, e nos sempre novos atrativos da festa do consumidor, cada um prometendo tipos de felicidade no experimentados, enquanto apagam o brilho dos j experimentados. (BAUMAN, 1998, p.221).

    A vida na pr-modernidade dava ao sujeito segurana e pouca incerteza, dentro de

    uma rotina previsvel que ele conseguia controlar. Assim, o contedo incerto e assustador que

    escapava a qualquer previso e controle, era a morte, que chegava de repente e sem aviso, sem

    possibilidade de evit-la e san-la.

    Com o progresso da cincia e da medicina, que estabeleceram as causas da morte,

    esta no seria mais algo to misterioso e se torna controlvel (1998, p.219). Assim, havendo-

    se tornado uma ocorrncia natural, absolutamente no-misteriosa e at parcialmente

    administrvel, ela oferece pouco terreno a ruminaes escatolgicas (1998, p.219). a vida

    antes da morte com sua incerteza, com sua fragilidade dos laos humanos que se destaca.

    A insegurana moderna fruto do iderio da potncia humana que, ao contrrio do

    dispositivo da mortificao e a concepo da insuficincia humana, prega que o sujeito seria

    capaz de conseguir tudo com a fora de sua vontade. So as habilidades do sujeito, sua

    capacidade de julgamento e escolha, que decidiro de que forma, diante das inmeras

    possibilidades oferecidas pela cultura, ele viver. Isso constitui para Bauman a identidade

    individual.

    Para Bauman, neste ponto que se concentram as incertezas do sujeito: na sua

    identidade individual, que lhe to exigida pela cultura. Assim, o sujeito ps-moderno

  • 35

    precisa de apoio e ajuda para transformar sua fragilidade em segurana. aqui que nasce o

    surto de aconselhamentos, a era dos especialistas em identificar problemas, dos

    reforadores da personalidade e dos livros de auto-ajuda. A incerteza ps-moderna no

    engendra a procura pela religio, e sim por aconselhamento com especialistas. A ltima coisa

    que o sujeito precisa de pregadores marcando a fraqueza humana. O que ele precisa, pelo

    contrrio, a afirmao de que pode fazer e realizar.

    Contudo, sempre permanece uma defasagem entre o que buscado e o que

    encontrado, como veremos no prximo captulo, graas particularidade da constituio

    subjetiva e a instaurao do desejo a partir do objeto mtico perdido. Como Freud insiste em

    marcar, no h nada que ajude o sujeito em busca da satisfao e da felicidade, pelo contrrio,

    h impedimentos pela prpria constituio subjetiva mais a coibio cultural, o que implica

    em sofrimento. No caso da contemporaneidade, o fator cultural que pressiona o sujeito e o faz

    sofrer o ideal da potncia humana e o individualismo.

    As Igrejas, anteriormente, passavam aos fiis casos de santidade, de xtase mstico e

    revelaes, que eram privadas a poucos indivduos especiais e santos, como eremitas,

    msticos, monges, que praticavam abstinncia e auto-imolao e se dedicavam a uma vida

    afastada da sociedade. Comunicavam, portanto experincias mximas para quem jamais

    poderia ating-las (1998, p.223). Na cultura ps-moderna, essas experincias foram

    privatizadas e desvinculadas da religio, e assim qualquer sujeito pode alcan-la, caso queira,

    como mais um produto oferecido ao consumidor. Enquanto na religio o xtase podia ser

    atingido por pessoas especiais que abdicavam de sua vida e conforto, ressaltando a

    insuficincia e incapacidade humana, na contemporaneidade, os especialistas invocam o

    poder da mente e do interior do homem, pressupondo a potncia do mesmo e a

    possibilidade de prazer infinito.

  • 36

    Dessa maneira, o que toma o lugar da religio no deve jamais dizer que algo

    inatingvel para o sujeito, e sim propagar que a experincia mxima uma obrigao e uma

    meta a ser perseguida. Caso esse objetivo no fosse atingido, a culpa do prprio sujeito que

    no se esforou para tal.

    As experincias mximas devem se apresentar acopladas aos desejos terrenos to

    ambicionados. Assim:

    Desligado o sonho da experincia mxima das prticas inspiradas na religio, de abnegao e afastamento das atraes mundanas, necessrio atrel-lo ao desejo dos bens terrenos e disp-lo como a fora condutora de intensa atividade como consumidor. Se a verso religiosa da experincia mxima costumava reconciliar o fiel com uma vida de misria e privao, a verso ps-moderna reconcilia seus seguidores com uma vida organizada em torno do dever de um consumo vido e permanente, embora nunca definitivamente satisfatrio. (BAUMAN, 1998, p.224).

    Acena-se ento com a possibilidade experimentar sensaes inditas e cada vez mais

    intensas. Cada sensao deve ser maior e diferente do que a anterior. o papel dos

    movimentos e grupos de auto-aperfeioamento, que procuram desenvolver a potencialidade

    corporal e sensual com exerccios, conselhos, para liberar entraves psquicos e liberar os

    instintos reprimidos. Para adquirir tal capacidade preciso apenas dominar as tcnicas

    certas.

    A religio da mortificao reunificava o sujeito com sua vida sofrida e miservel, ao

    consider-la uma provao necessria. J a contemporaneidade exige do sujeito o dever do

    consumo. E quanto aos excludos do consumo, populao que jamais poder ambicionar

    tentar buscar os objetos oferecidos pela cultura? aqui que Bauman define o surgimento do

    que chama de a religio ps-moderna, fruto das contradies e conflitos culturais: o

    fundamentalismo religioso. Neste trabalho, concentraremo-nos nas Igrejas e seitas ocidentais

    que podem ser consideradas fundamentalistas.

  • 37

    O pblico alvo do fundamentalismo so os excludos do consumo, os consumidores

    falhos (1998, p.227), a clientela perfeita das Igrejas fundamentalistas. Esse pblico evoca a

    insuficincia no lugar da potncia, demonstra a agonia do sujeito condenado a se virar sozinho

    e ser auto-suficiente. Assim, o sujeito no precisa decidir e deve ser guiado e dirigido,

    prevalecendo sempre a vontade e os interesses coletivos. Marca-se novamente a insuficincia,

    mas no da espcie humana em geral, mas a fraqueza do indivduo humano, desvinculado do

    coletivo.

    O fundamentalismo pretende fortalecer os poderes do grupo para compensar a

    fragilidade em que se encontra o sujeito. As escolhas individuais ficam ento submetidas s

    normas do grupo e a uma autoridade suprema. trocada a liberdade pela segurana, a certeza

    est em primeiro lugar, o que exclui a liberdade individual. A religio, no mais uma

    questo individual como qualquer escolha, mas domina e decide a vida do sujeito.

    No prximo captulo, percorreremos a obra freudiana no que concerne religio, e

    assim pensarmos a diferena que Freud e Lacan encontraram cada um em seu momento.

  • 38

    II. CONSIDERAES ACERCA DA RELIGIO EM FREUD

    Neste captulo, trataremos da incurso de Freud acerca da religio e para tal,

    atravessaremos seus artigos desde o primeiro sobre religio Atos obsessivos e prticas

    religiosas, passando pelos artigos sobre cultura como Moral sexual civilizada e doena

    nervosa moderna, Totem e Tabu, Futuro de uma iluso, Mal-estar na civilizao e

    Uma experincia religiosa.

    II.1. A religio como rito

    Iniciaremos nossa exposio com o texto inaugural de Freud no que concerne

    religio e definio da sustentao cultural em torno da renncia pulsional. Desde o texto

    Atos obsessivos e prticas religiosas (Freud, 1907), Freud sedimentou a questo da

    formao de uma religio como correlato da neurose, especificadamente a neurose obsessiva.

    Nesse texto, a primeira incurso de Freud acerca da religio, marca tambm pela primeira vez

    como principal fundamento da cultura a renncia pulsional. neste ponto que a religio e a

    neurose obsessiva coincidiriam. Dessa forma, os atos e proibies obsessivas se

    aproximariam dos rituais e das proibies religiosas, devido ao seu carter de proteo, frente

    a algum mal ou tentao.

    Uma terceira meno presente que devemos ressaltar o sentimento de culpa

    inconsciente, que estaria por trs dos atos obsessivos. Assim sendo, diante de uma tentao

    que remeteria ao recalcado, a angstia seria revivida vinculada sensao de infortnio. Isso

    ocasionaria o cerimonial obsessivo, devido impresso da pulso recalcada, constituindo

    assim os atos para mant-la afastada. O recalque que originou a neurose obsessiva sustenta o

  • 39

    conflito frente sua interminvel possibilidade de fracasso. A partir disso, somente os atos

    obsessivos se configuram infrutferos; preciso ento outro dispositivo para manter afastadas

    as situaes que geram tentao e remetem ao recalcado: as proibies. Portanto, assim como

    a neurose obsessiva, a religio lana mo de atos cerimoniais como medida protetora para o

    crente e constitui proibies para mant-lo afastado das tentaes. Como descreve Freud:

    Afinal, o sentimento de culpa resultante de uma tentao contnua e a ansiedade expectante

    sob a forma de temor da punio divina nos so familiares h mais tempo no campo da religio do que no da neurose. (FREUD, 1907, p.115)

    O sentimento de culpa obsessivo poderia ser comparado ento certeza dos crentes de

    serem miserveis pecadores e assim suas prticas devotas, como oraes e expiaes,

    configurariam protees e medidas autopunitivas. Assim, Freud coloca em primeiro plano a

    atividade estereotipada da religio, o rito, em detrimento da experincia subjetiva individual

    da religiosidade (Miller, 2004). a neurose obsessiva como uma religio na esfera privada do

    sujeito, e uma tese do fenmeno religioso considerado uma neurose obsessiva em seu ngulo

    de cerimonial (Miller, 2004, p.4). A religio seria ento uma neurose obsessiva coletivizada.

    Outro paralelo seria que os atos obsessivos como sintomas representam uma

    substituio da pulso recalcada, e assim sendo, aproximam-se da mesma cada vez mais. Da

    mesma maneira, o crente comete em nome da religio os atos to proibidos e condenados por

    ela. O que Freud ressalta que nas religies antigas, proibies e barbries eram efetivadas

    em nome de Deus. Devido ao retorno do recalcado, o sujeito atribuiria a Deus as pulses

    nocivas e ms para se livrar da impresso destas. Pensamos neste ponto a questo do

    fundamentalismo religioso que, como ocorria com as religies antigas com suas barbries,

    impera com toda fora na contemporaneidade. Este fato nos evoca a questo do Deus dbio.

  • 40

    O mesmo Deus protetor a que o sujeito atribui a justificao de suas renncias pulsionais,

    pode ser permissivo quando o sujeito lhe atribui a expresso de suas pulses.

    Essa permissividade justificada na contemporaneidade nos movimentos religiosos

    fundamentalistas. Giddens (1997) considera que a cultura contempornea com sua mxima de

    liberdade e auto-suficincia engendra excludos que no se enquadram na exigncia cultural.

    Assim sendo, diante da insuportvel tarefa de liberdade e auto-suficincia, o fundamentalismo

    traz de maneira radical a negao desse prisma. Assim, o sujeito no seria auto-suficiente, ele

    precisa ser guiado e dirigido. O sujeito reage cultura pela violncia, e a atribui a Deus e sua

    religio. O sujeito fraco em relao a toda espcie. Dessa forma, o fundamentalismo emerge

    com a promessa de livrar o sujeito da agonia da escolha. Portanto, um remdio radical

    contra a sociedade de consumo, pretendendo subordinar as escolhas individuais a normas em

    nome do coletivo. Assim, retira a carga de responsabilidade atribuda ao sujeito, restringindo

    a liberdade individual que insuportvel.

    importante ressaltar que neste momento da teoria freudiana1 (1907) antes do

    primeiro dualismo pulsional, temos em jogo alm da pulso sexual, a referncia s pulses

    egostas. Estas Freud relacionava religio e cultura. Assim, o que distinguiria os atos

    obsessivos dos cerimoniais religiosos seria a espcie de pulso em jogo; na neurose, pulso

    sexual, e na religio, pulses egostas culturalmente nocivas. De modo que, aqui, a religio

    representava o recalque dessas pulses que no seriam componentes da pulso sexual, mas

    que poderiam estar mescladas a ela. Assim sendo, a religio aparece aqui como reforadora

    do recalque de impulsos egostas do sujeito, a favor do coletivo. O sujeito possuiria

    tendncias egostas, enquanto a cultura tendncias altrustas. A fuso das pulses egostas e

    sexuais explicaria o motivo do recalque da pulso no religioso ser tambm um processo

    interminvel, j que o crente cairia no pecado e na tentao com mais facilidade que o sujeito

    1 O dualismo entre pulso sexual e pulso do eu aparece pela primeira vez em: FREUD, Sigmund. A

    concepo psicanaltica da perturbao psicognica da viso, 1910.

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    no religioso. Podemos esclarecer melhor a questo da teoria da pulso nessa poca quando,

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