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Circulação e difusão de idéias urbanísticas no Brasil: o caso das Cidades-jardins Anna Rachel B. Eduardo 1 Angela L. de A. Ferreira 2 George A. F. Dantas 3 Alenuska K. G. Andrade 4 “Proceda a construção de Garden Cities” Matta, 1916, p.91. A afirmação acima, enunciada pelo médico Alfredo da Matta na “Geographia e Topographia Médica de Manáos” 5 de 1916, revela o grau de aprofundamento dos estudos de higiene e salubridade realizados em fins do século XIX e princípios do século XX e a afinidade destes com as discussões teóricas em torno da questão urbana. De “recenseadoras das mortes” no século XVIII (VIGARELLO, 1985, p.115) as geografias médicas consolidam-se, mais tarde, como diagnóstico e conjunto de propostas sistematizadas de reforma das cidades em alternativa aos constantes quadros epidêmicos. O aumento do volume e mobilidade do ar, para se evitar a estagnação e a conseqüente origem de enfermidades, foi parecer quase unânime nestes tratados. No caso particular do estudo para a capital amazônica, merece destaque, dentre as várias observações e recomendações, a importância, ressaltada pelo médico Alfredo da Matta, dos grandes parques e jardins para a vida ao ar livre e para a saúde da população das cidades inglesas e norte-americanas. O estímulo aos exercícios físicos e à prática de esportes, bem como, a obtenção do ar puro para o bom funcionamento dos “pulmões das cidades” são atrativos vinculados aos jardins (e, em sua opinião, às garden-cities) e importantes ferramentas de um desenvolvimento saudável das futuras gerações. 1 Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da EESC-USP. E-mail: [email protected] 2 Departamento de Arquitetura e Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFRN. E-mail: [email protected] 3 Curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário de João Pessoa-PB. E-mail: [email protected] 4 Base de Pesquisa Estudos do Habitat – DARQ/UFRN. E-mail:[email protected] 5 As Geografias Médicas, surgidas no século XVIII na Europa, são tratados que analisam e observam o espaço urbano, fundamentando-se na relação entre os ambientes natural e construído e a origem de enfermidades (Ferreira, Eduardo e Dantas, 2003).

Circulação e difusão de idéias urbanísticas no Brasil a “grande apostasia”, como lembra Peter Hall, para a posterior consecução de espaços urbanos com resultados bizarros

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Circulação e difusão de idéias urbanísticas no Brasil: o caso das Cidades-jardins

Anna Rachel B. Eduardo1 Angela L. de A. Ferreira2

George A. F. Dantas3 Alenuska K. G. Andrade4

“Proceda a construção de Garden Cities” Matta, 1916, p.91.

A afirmação acima, enunciada pelo médico Alfredo da Matta na “Geographia e

Topographia Médica de Manáos”5 de 1916, revela o grau de aprofundamento dos estudos

de higiene e salubridade realizados em fins do século XIX e princípios do século XX e a

afinidade destes com as discussões teóricas em torno da questão urbana. De “recenseadoras

das mortes” no século XVIII (VIGARELLO, 1985, p.115) as geografias médicas

consolidam-se, mais tarde, como diagnóstico e conjunto de propostas sistematizadas de

reforma das cidades em alternativa aos constantes quadros epidêmicos. O aumento do

volume e mobilidade do ar, para se evitar a estagnação e a conseqüente origem de

enfermidades, foi parecer quase unânime nestes tratados. No caso particular do estudo para

a capital amazônica, merece destaque, dentre as várias observações e recomendações, a

importância, ressaltada pelo médico Alfredo da Matta, dos grandes parques e jardins para a

vida ao ar livre e para a saúde da população das cidades inglesas e norte-americanas. O

estímulo aos exercícios físicos e à prática de esportes, bem como, a obtenção do ar puro

para o bom funcionamento dos “pulmões das cidades” são atrativos vinculados aos jardins

(e, em sua opinião, às garden-cities) e importantes ferramentas de um desenvolvimento

saudável das futuras gerações.

1 Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da EESC-USP. E-mail: [email protected] 2 Departamento de Arquitetura e Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFRN. E-mail: [email protected] 3 Curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário de João Pessoa-PB. E-mail: [email protected] 4 Base de Pesquisa Estudos do Habitat – DARQ/UFRN. E-mail:[email protected] 5 As Geografias Médicas, surgidas no século XVIII na Europa, são tratados que analisam e observam o espaço urbano, fundamentando-se na relação entre os ambientes natural e construído e a origem de enfermidades (Ferreira, Eduardo e Dantas, 2003).

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A afirmativa mostra-se como uma síntese das suas recomendações mais gerais que,

como uma marca do ambiente técnico-intelectual brasileiro da época, estavam

propugnando não apenas os elementos para a reforma urbana mas, principalmente, para a

reforma social (e racial) do Brasil. Em suma, como se apreende da ação de muitos

intelectuais, médicos, engenheiros e urbanistas sanitaristas, só um meio urbano saudável

possibilitaria a superação das dificuldades atávicas da nação. Escreve da Matta (1916,

p.92): “E somente assim serão conseguidos o vigor e o aperfeiçoamento da nossa raça e a

defesa e a segurança de nossas terras; o poder, a prosperidade e a riqueza do Brasil”.

Esse episódio da história das idéias e das práticas sobre as cidades no Brasil permite

delinear algumas das questões que estruturam o presente estudo6. A discussão sobre o

processo de circulação e difusão do termo cidade-jardim no Brasil, enfatizando a forma de

materialização desse conjunto de idéias em projetos e obras realizadas, conforma o

objetivo deste trabalho. Com este intuito, interessa, em especial, estabelecer algumas

considerações sobre os pontos comuns e as dessemelhanças na apropriação do termo tanto

para os bairros-jardins quanto para os “planos gerais” de cidades.

Inicialmente, pode-se apontar que a menção à cidade-jardim que aparece na

publicação da Geografia Médica de Alfredo da Matta, datada de 1916, antecede aquele que

é referenciado como o evento mais decisivo, e que mais influências deixou, para a

propagação do ideário cidade-jardim no Brasil: a atuação de Barry Parker no país entre

1917 e 1919.

Não se pretende aqui revelar outros antecedentes ou apontar um novo momento

primeiro de referência ao ideário cidade-jardim no Brasil. Ao contrário, a citação à cidade-

jardim no texto do médico revela o inegável êxito e abrangência da difusão desse ideário

não só na Europa, mas também nas Américas e mesmo na Ásia e Oceania (Cf. WARD,

1992). Êxito que se deve tanto à “combinação única” de propostas reformistas que

Ebenezer Howard publicou em 1898 e a sua intensa ação para pô-las em prática e

viabilizá-las, ação que está na raiz do que se poderia considerar uma internacional cidade-

jardim (ANDRADE, 1998), quanto à adaptação do ideário howardiano realizada por

Raymond Unwin, no projeto para Hampstead (1909), em direção à noção de subúrbio-

jardim. A propósito, essa passagem (de cidade-jardim a subúrbio-jardim), além da

posterior defesa da construção de satellite-towns por Unwin, seria considerada um evento

6 O presente trabalho foi estruturado tendo como base, embora aqui propondo outros eixos investigativos, o artigo “The diffusion of the term ‘garden city’: some issues on the transfer process of town planning models in Brazil”, elaborado pelos mesmos autores e publicado em julho de 2004 nos Anais da The 11th International Planning History Society Conference.

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decisivo, a “grande apostasia”, como lembra Peter Hall, para a posterior consecução de

espaços urbanos com resultados bizarros e, por vezes, até mesmo catastróficos (HALL,

1995, p.04, 124-157).7

A citação de Alfredo da Matta pode revelar também uma relação dialética crucial

para entender os processos de transferências. Por um lado (da emissão), embora gestadas

num tempo histórico e espaço geográfico específicos – e são para eles que se voltam

inicialmente –, as propostas de transformação urbana e social têm invariavelmente uma

pretensão universalizante, de expandir-se, transportar-se para realidades distintas

(CHOAY, 1992). Howard, por exemplo, construiu esquemas e delineou considerações

gerais com o intuito explícito de criar uma referência que fosse adaptável. As ressalvas –

como “plan must depend upon site selected” ou “plan cannot be drawn until site selected”

– que acompanham os diagramas que ilustram o seu livro são um pequeno exemplo dessa

assertiva.

Não se deve olvidar que, como ressaltou Lewis Mumford, Howard não precisou

detalhes arquitetônicos ou urbanísticos na sua proposta porque não desejava que as

questões essenciais discutidas fossem confundidas ou misturadas a qualquer imagem visual

(MUMFORD, 1998, p.559). E, acrescente-se, embora enfatizasse a primazia do sítio sobre

o plano, não preconizou um “urbanismo pitoresco”, de respeito à topografia, dos traçados

sinuosos, da arquitetura de inspiração medievalista, etc., como o faria Unwin em Town

Planning in Practice, de 1909. Ademais, como está indicado na variante à primeira edição

do livro de Howard, as modernas técnicas de engenharia poderiam tornar desnecessária

essa primazia: “à medida que avançam a ciência e a arte da engenharia, tornam-se em

menor consideração os obstáculos naturais, e cada vez mais o intelecto se converte em

senhor do problema, e o domina e o submete a serviço do homem”(HOWARD, 1996,

p.203).

Por outro lado (da recepção), as idéias e modelos importados só vicejam se

encontram uma “comunidade de sentidos”, como discute Murilo de Carvalho (1990), que

lhes validem conceitos e elementos (centrais e/ou periféricos); isto é, se atendem e, de

alguma forma, coadunam com as questões colocadas pelo ambiente técnico e cultural pré-

existente. Assim, as transferências inscrevem-se no tempo de cada cidade, região ou país e

dependem, em grande medida, das trajetórias individuais, numa perspectiva da história

7 Frederic J. Osborn, por exemplo, apontava que embora Unwin tenha sido um dos primeiros a entender o ideário howardiano, foi também responsável pela cristalização do “pattern of the universal suburban development” (1949, p.10).

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sócio-cultural, dos técnicos e dos mediadores culturais que se debruçaram sobre o

problema das cidades (SALGUEIRO, 2001).

No Brasil, em especial, o modelo cidade-jardim encontraria e produziria

ressonâncias no ideal de salubridade urbana que marcou a atuação dos profissionais do

“urbanismo sanitarista”. E, pode-se aventar a partir da apropriação do termo na geografia

médica de Manaus, constituiu-se como referência síntese para pensar a possibilidade de

construção de uma cidade saudável sob os trópicos.

Eixos investigativos

Em 1949, Frederic J. Osborn propôs, no prefácio à terceira edição inglesa do livro de

Howard, uma definição para o termo cidade-jardim, baseada naquela adotada pela Garden

Cities and Town Planning Association, em 1919:

A Garden City is a Town designed for healthy living and industry; of a size that makes possible a full measure of social life, but not larger; surrounded by a rural belt; the whole of the land being in public ownership or held in trust for the community (OSBORN, 1949, p.26).

Como o próprio Howard foi consultado para essa espécie de verbete, percebe-se a

ênfase no caráter urbano de sua proposta, a necessidade do cinturão verde agricultável e da

propriedade pública da terra.

Preocupado com a disseminação de muitas propostas e termos que se originaram a

partir do livro de Howard e, pior, com as “perversions of good words by commercial and

demagogic interests” (OSBORN, 1949, p.28), a terminologia compilada por Osborn revela

um esforço para sistematizar e separar, pelo menos na literatura urbanística, o ideário

original das vertentes que, legitimamente ou não, daí se originaram. O tema da perversão

ou degeneração, chave no debate historiográfico sobre o processo de transferência e

apropriação de idéias e modelos urbanísticos, pode revelar também as disputas políticas

pelos saberes e pelos poderes sobre as cidades e, ademais, as possibilidades de

concretização de cada ideário e modelo frente à realidade de cada cidade, região ou país.

Assim, não se pretende ler neste trabalho as várias formas de apropriação do termo

cidade-jardim como meros desvirtuamentos em relação ao credo original. Ao contrário, os

dois eixos investigativos propostos – um discute como foi pensada a possibilidade de

materializar nos trópicos a cidade-jardim, o outro inquire as formulações em torno do

bairro-jardim) – ajudam a entender que esse processo significou, aventa-se como hipótese,

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muito mais do que uma redução conceitual, uma ampliação dos sentidos do próprio termo

e das condições para materialização do ideário original – mesmo que se distanciando de

vários fundamentos.

Conquanto não interesse adentrar os meandros dessa discussão, deve-se ressaltar que

o episódio da vinda do arquiteto Barry Parker ao país, no final da década de 1910,

estabeleceu uma referência significativa de realizações urbanísticas para o meio técnico

local8 e, em conseqüência, influenciou, direta ou indiretamente, a formação de novos

profissionais, a exemplo do engenheiro Jorge de Macedo Vieira. A apropriação do modelo

cidade-jardim no debate técnico-intelectual brasileiro, e pelos urbanistas de formação

politécnica em especial (tal é o caso de Lincoln Continentino) revela como, para além das

propostas reformistas de transformação social, interessou sobremaneira um “esquema

ambiental de desenho urbano” (WARD, 1992) de qualidade que atendia às necessidades e

conveniências da cultura urbanística moderna em formação no Brasil. A cidade-jardim foi

tomada como uma idéia de fácil apropriação e com possibilidades claras de execução.

Tornou-se, portanto, mais um elemento de fundamentação e legitimação no debate

profissional local; um poderoso instrumento para a construção de cidades salubres e belas.

No Brasil, o debate baseou-se tanto no conhecimento e na referência a um ideário

urbanístico sólido e difundido pelo mundo, assim como não deixou de ser influenciado

pelas muitas vertentes de desenvolvimento do modelo cidade-jardim. Parker, por exemplo,

ajudou a consolidar a idéia de subúrbio-jardim – particularmente bairro-jardim, no Brasil –,

solução de desenho urbano adotada e divulgada por ele e seu sócio Unwin em Hampstead.

Apesar das críticas ao abandono da essência howardiana, esse processo de transposição da

idéia de cidade-jardim para subúrbio-jardim, encetada fundamentalmente nas formulações

teóricas de Unwin em 1909, possibilitou, para o caso brasileiro, a caracterização de uma

forma urbana inovadora, principalmente com a concretização dos princípios de traçado e

de desenho estabelecidos por Parker nos bairros-jardins de São Paulo, a exemplo do Jardim

América (Figura 01). Se não promoveu o planejamento da cidade global e auto-suficiente –

como proposto originalmente por Howard –, direcionou o olhar dos técnicos e das

autoridades administrativas para a ocupação de áreas de expansão urbana (ANDRADE,

1998) e representou a apropriação de uma tipologia específica.

8 Como discute o prof. Carlos de Andrade (1998), a contratação de Barry Parker pela Cia. City constituiu a principal via de inserção do ideário cidade-jardim no Brasil, mesmo que nesse momento já mediada pela leitura do subúrbio ou bairro-jardim.

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Assim, como primeiro eixo investigativo, busca-se revelar a aplicação do conceito

cidade-jardim no Brasil numa perspectiva integral. Mesmo não atribuindo a esta concepção

de cidade uma abrangência regional, a cidade foi pensada de modo global, articulando-se

os sistemas de circulação a um ambiente planejado, salubre e com abundância de áreas

verdes. Neste sentido, como já mencionado, destacam-se as características peculiares de

um novo desenho urbano e do próprio modo de conceber a cidade (marcadamente pautada

na racionalidade técnica e funcional das redes de saneamento e da adequação do traçado ao

sítio) que viriam assinalar uma leitura inovadora do urbano. As cidades projetadas pelos

engenheiros Jorge de Macedo Vieira e Lincoln Continentino exemplificam bem essa nova

concepção urbana e servem de mote para a discussão proposta.

O “deslizamento” do termo cidade-jardim para bairro-jardim marca o segundo eixo

investigativo. Por um lado, analisa-se a criação de bairros-jardins como partes integrantes

de projeto globais e essenciais para se pensar a cidade como um todo (a partir do novo

desenho urbano e dos benefícios das áreas verdes), como se pode observar nas discussões

em torno do Plano Geral de Sistematização de Natal, elaborado pelo arquiteto greco-

italiano Giacomo Palumbo entre 1929 e 1930. A cidade-jardim Piratininga, núcleo

residencial proposto pelo engenheiro-arquiteto Attílio Côrrea Lima no plano de extensão

de Niterói de 1931, é outro exemplo aqui abordado que traz para o debate uma nova

compreensão de cidade pautada em um modelo de gestão diferenciado.

Por outro lado, investiga-se a proposta destes bairros também como núcleos isolados

na cidade, em parte, ícones de valorização do mercado imobiliário. Os atrativos naturais a

eles associados, quer sejam a proximidade de bosques, a predominância de áreas verdes ou

até mesmo o contato com o mar, contribuíram para sua consolidação e propagação,

sobretudo, pela caracterização especulativa do chamado urbanismo de companhias. Busca-

se, todavia, ressaltar que mesmo afastados do conceito originário, a gradativa e marcante

presença de tais empreendimentos em algumas cidades brasileiras, contribuiu sobremaneira

para a configuração de uma nova paisagem urbana no país. Se se tomou um termo pelo

outro, permanece a ênfase do jardim na cidade como sinônimo de um espaço urbano

adequado às exigências de conforto da vida moderna.

O ideal de cidade moderna e salubre nos trópicos O engenheiro Jorge de Macedo Vieira, um expoente do modelo cidade-jardim no

Brasil, é considerado discípulo e continuador da obra de Parker. Quando este atuou junto à

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City, Vieira era estagiário naquela companhia. Sobre essa convivência Vieira, em

depoimento, admite ter sido fundamental para sua vida profissional futura, resolvendo

desde então se dedicar à “urbanização de glebas de terrenos” (STEINKE, 2002, p.83).

Uma breve análise da obra de Vieira demonstra sua ativa participação na construção

da cidade de São Paulo, como de outras cidades brasileiras, entre 1917 e 1967. Difundiu o

tipo residencial bairro-jardim e, dentre outras obras, executou na cidade de São Paulo os

projetos: Jardim Japão, Parque da Moóca, Vila Maria, Nova Manchester, Jardim da Saúde.

Aqui, interessa discutir as suas propostas para construção de cidades (cuja reflexão

evoluiria a partir da sua experiência na elaboração de projetos de bairros-jardins). No

Paraná, principalmente, desenvolveu os planos urbanísticos de Maringá, Pontal do Sul,

Cianorte, etc. Destaque-se, como exemplo, o plano urbanístico para a cidade balneária

Águas de São Pedro-SP (Figura 02), no qual evidencia-se o traçado sinuoso adaptado à

topografia movimentada do local, uma “park way” ao longo de dois parques e áreas

destinadas à arborização (STEINKE, 2002, p.155).

Os relatórios de seus projetos revelam alguns dos princípios formais urbanos

adotados ao longo de sua atuação. Neles, destacam-se aspectos ligados ao tema da

salubridade urbana e referências à expansão das cidades, como: orientação das quadras e

lotes para obter melhor insolação; redução do movimento de terra; definição do traçado a

partir da topografia do terreno; aproveitamento de visuais; presença de jardins, praças e

parques; vias restritas a pedestres, etc. Nos projetos de estâncias hidrominerais propagou a

baixa densidade e a predominância de espaços ao ar livre, para passeios e práticas de

esporte. Cabe ainda mencionar que o traçado sinuoso, freqüente nos projetos de Vieira, não

representou um padrão imutável. O terreno plano, ou com pouca declividade, possibilitava

a concepção de desenhos geométricos originais como em Pontal do Sul (Figura 03).

Contudo, em seus dizeres, Vieira declara o porquê do afastamento, em parte, da

ortogonalidade em suas propostas urbanas:

Porque o xadrez não se admite mais, é inadmissível, não se pode construir; olha, quando se estuda uma estrada de rodagem – também não deixa de ser um urbanismo, não é? – procura-se acompanhar o terreno, porque não num emaranhado de estradas de rodagem, que é o que se faz numa cidade, não se haveria de acompanhar o terreno também? (STEINKE, 2002, p.99).

Apesar da influência de Parker e da City na formação de Vieira, essa afirmação

ilustra a importância de um arcabouço técnico precedente deste profissional, formado

como engenheiro civil pela Escola Politécnica de São Paulo (1917), revelando

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justificativas próprias e peculiares para a adoção do termo cidade-jardim. A aceitação dos

princípios do urbanismo moderno por Vieira é relacionado, também, ao conhecimento de

obras como as de Camillo Sitte, Stübben, Howard, Unwin e Nelson Lewis, presentes em

sua biblioteca particular (STEINKE, 2002).

Neste processo de modernização urbana e de aplicação de uma série de elementos

vinculados ao ideário da cidade-jardim no Brasil, cabe ainda uma atenção especial à

atuação de Lincoln Continentino, formado em engenharia civil, em 1923, pela Escola Livre

de Engenharia de Belo Horizonte e com cursos de especialização em Engenharia sanitária

pela Universidade de Havard, entre 1927 e 1929 (LEME, 1999). Sua formação como

engenheiro sanitarista, provavelmente, proporcionou uma visão peculiar no que se refere à

assimilação do modelo cidade-jardim, incorporado à discussão corrente acerca da

insalubridade urbana.

Continentino defendia em seus projetos a adequação do traçado ao sítio, evitando

grandes movimentos de terra (“que dão impressão desagradável” e geram custos elevados)

e um sistema de arruamento adequado às redes de saneamento, favorecendo o

aproveitamento do terreno loteável e a drenagem das águas. Buscava ainda produzir um

ambiente são e higiênico, com ruas arborizadas, freqüência de ventos e movimentação das

águas, preceitos amplamente difundidos pela engenharia sanitária e pela medicina à época.

Muitos desses conceitos arraigados à tradição do ideário sanitarista desde fins do século

XIX no Brasil perduraram no século subseqüente nos debates acerca dos problemas

urbanos e, particularmente associados, pelos profissionais locais, ao modelo cidade-jardim.

Na década de 1930, a propósito, o Escritório Saturnino de Brito, ao elaborar o Plano Geral

de Obras para Natal, fundamentaria a proposta de um bairro residencial tanto nas

vantagens do traçado à Radburn quanto, e principalmente, na adequação desse desenho aos

ideais de salubridade.

Continentino, em clara associação de princípios técnicos da engenharia e da higiene,

vincula o tema cidade-jardim a aspectos de valorização de áreas verdes e jardins,

fundamentais na concepção de cidades salubres, bem como, evidencia a importância da

engenharia para a construção de uma cidade ao mesmo tempo funcional e aprazível:

As ruas secundárias podem apresentar trechos em curvas que constituem um obstáculo ao tráfego intenso de automóveis e ao mesmo tempo um derivativo para o sistema monótono de ruas em xadrez ou outras formas geométricas. Nos casos recomendáveis pela técnica é eficiente, econômico e higiênico o sistema de arruamento em ‘cul-de-sac’. Para zonas residenciais recomenda-se os tipos de arruamentos de ‘Cidades-jardim’.

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Deve-se reduzir ao mínimo o uso antiquado e colonial de muros confinantes (CONTINENTINO, 1937, p.324).

Além de solução urbanística para a concretização do ideal de salubridade, inúmeras

vezes direcionado ao centro habitado, o modelo cidade-jardim viria a ser, na concepção do

engenheiro, adaptável também a espaços considerados anti-higiênicos e “perigosos” à

população urbana, tal é o caso dos leprosários. De modo singular, a adoção desse modelo

no seu projeto para a Colônia de Lázaros Santa Isabel (1931-1932), “que se situaria no

município de Santa Quitéria a 45 km de Belo Horizonte”, evidencia uma preocupação de

relevância ao propor uma intervenção urbana que vinculava a aplicação do ideário cidade-

jardim à regeneração dos enfermos, sem desconsiderar aspectos econômicos de

manutenção do local, como descrito por ele:

Na zona de habitação, seja de doentes ou de pessoal administrativo, convém adotar-se arruamento do tipo ‘Cidades-jardim’ (onde haja faixas gramadas e canteiros no centro ou junto aos passeios) ou ainda melhor do tipo de Bairros (‘neighbourhood units’), [...].

Estes sistemas, além de tornarem mais agradável o ambiente, conduzem a uma economia considerável, pela diminuição da área pavimentada das ruas. [...] Acresce ainda notar que a conservação dos grammados e canteiros pode ficar a cargo dos doentes, constituindo magnífico passatempo para os mesmos, sem ônus para a administração (CONTINENTINO, 1937, p.250).

Esse exemplo reforça, na atuação de Continentino, a existência de aspectos comuns

entre os princípios higienistas e sanitaristas e as especificidades do conceito de cidade-

jardim para o caso brasileiro. Contudo, cabe mencionar, que apesar de identificada essa

relação peculiar, muitas de suas propostas fundamentaram-se nas lições do que chamou “os

maiores urbanistas hodiernos” como Thomaz Adams, Bartholomew, Nolen, Unwin,

Hubbard, Ford, Agache, Benoit-Levy, além de urbanistas brasileiros como Armando

Godoy, Anhaia Melo, Prestes Maia e Washington Azevedo (CONTINENTINO, 1937). No

memorial descritivo do Plano de urbanismo da Cidade Industrial de Monlevade (Figura

04), de 1934, que, segundo ele, obedeceu às características fundamentais de uma cidade

jardim industrial moderna, destacou a importância das cidades jardins norte-americanas

“belas, confortáveis, alegres, salubres e preenchendo integralmente aos altos objetivos

visados pelos seus organizadores” (CONTINENTINO, 1937, p.348). Letchworth e

Welwyn, na Inglaterra, e Radburn, nos Estados Unidos, foram também, como afirmou,

considerados na confecção desse Plano.

O bairro-jardim como parte integrante das cidades

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As características do ideário cidade-jardim, com forte relação de salubridade e

preocupações sócio-econômicas, também despertaram interesse na produção urbanística

brasileira do início do século XX de um engenheiro-arquiteto em particular: Attílio Corrêa

Lima, formado pela Escola Nacional de Belas Artes em 1925. O Avant-projet

d´amegnement et d´extension de la ville de Niteroi de 1931 merece destaque nesta análise

por incluir num plano de extensão de cidades a concepção de um núcleo residencial não só

filiado ao ideário cidade-jardim pela relação morfológica a ele associado posteriormente mas,

sobretudo, por lançar questionamentos e discussões sobre sua implantação em uma cultura

urbana e sócio-cultural existente. Mais ainda, por propor estabelecer, mesmo que de forma

sumária, a autonomia administrativa e econômica deste núcleo.

É importante destacar que, segundo Henri Prost, no prefácio do memorial de exposição

do projeto, os princípios que nortearam a concepção do plano pautaram-se no espírito dos

planos regionais franceses nos quais o desenvolvimento das aglomerações modernas visa à

distribuição da população primando por melhores condições de higiene moral e física e de

acordo com as necessidades econômicas – para ele, bases essenciais de toda obra de

urbanismo (CÔRREA LIMA, 1933). Tratou-se, em sua essência, de se pensar o

desenvolvimento de Niterói como uma extensão da cidade do Rio do Janeiro, então Capital

Federal.

A “cidade-jardim Piratininga” (Figura 05) foi criada num espaço de terras existente

entre a lagoa de mesmo nome e o mar, numa área de praia ainda selvagem e inabitada de

Niterói. Em seu plano, Attílio Côrrea Lima estabeleceu que o limite de terras voltado para a

lagoa e a cidade seria destinado exclusivamente a habitações. Propôs para este núcleo, uma

praça ajardinada que formaria um pequeno centro – atravessado por uma avenida de 30 m de

largura por onde se faria a grande circulação.Paralelamente a esta, à beira-mar, uma extensa

avenida de passeio de 60 metros de largura permitiria a implantação de hotéis e, segundo ele,

de habitações mais abastadas. Após o saneamento da lagoa seria possível a prática de esportes

náuticos bem como se pensou no estabelecimento de uma estação de hidroaviões visando o

desenvolvimento do turismo na área. A cidade-jardim se desenvolveria também em uma

pequena parte em semicírculo em uma região na encosta da montanha que se ligaria à primeira

por pontes sobre o canal, destinando-se a área ao comércio e a habitações (dispostas nos

flancos das montanhas).

A referência aos princípios de Howard é notadamente expressa por Côrrea Lima em

seus dizeres. Ele assim afirma, ao estabelecer que a cidade-jardim Piratininga deveria

subsistir por seus próprios meios e com uma população limitada de 20.000 habitantes. Dos

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500 hectares disponíveis, a zona urbana ocuparia 200 ha e os 300 ha restantes seriam

destinados à zona agrícola. Segundo ele, em Letchworth a relação entre a zona urbana e a

zona agrícola que era de 1/6 seria modificada em Niterói para uma relação de 2/5. Essa

redução de área é por ele justificada quando alega que, diferente do caso inglês no qual a

agricultura trazia rendimentos essenciais à sociedade, em Niterói pensou-se nos grandes

hotéis balneários como fornecedores de rendimentos que suplantariam estes dos terrenos

agrícolas. Tudo se organizaria em uma Societé, procedendo-se a compra das terras da

seguinte forma: as zonas de terreno pertencentes à Municipalidade, ao Estado ou à União

seriam cedidas gratuitamente em vista dos benefícios trazidos pelo saneamento da lagoa;

por outro lado, a Sociedade faria a emissão de ações para compra de terrenos pertencentes

a particulares e para os trabalhos na lagoa. Para a melhoria da lagoa se contrataria uma

hipoteca pagável em 30 anos. Os fundos para amortização da dívida, para a manutenção

dos serviços públicos, etc seriam obtidos por meio do aluguel de terras. Toda a mais valia

predial deveria ser revertida para a comunidade a qual seria empregada no

aperfeiçoamento dos serviços urbanos.

Nota-se neste exemplo uma preocupação pouco explorada até então no que concerne

a procedimentos de aplicabilidade da idéia do ponto de vista econômico e considerando a

agregação de terras públicas. Por outro lado, é notória também a preocupação de avaliar a

ressonância de uma concepção em um meio local distinto do meio fundador – o que exigiu

a necessidade de adaptações e rearranjos. Cabe dizer que o plano de expansão de Niterói

foi concebido por Attílio Corrêa Lima como trabalho final do curso no Institut

d´Urbanisme de Paris e o elevado nível de seu estudo rendeu-lhe a publicação pela

instituição, em 1933. É interessante levar a questionamento se o âmbito de criação do

projeto – o meio acadêmico –, um pouco mais distante das decisões e pressões políticas e

especulativas reais, resultou num maior “comprometimento” com o ideário (mesmo que

também assumindo a postura refutada por Howard de criar núcleos isolados numa cidade

existente)? Esse exemplo pode reafirmar, ainda, que o processo de circulação das idéias é

também “facilitado”, sobretudo, pelo grau de operacionalização destas.

Outro exemplo que se destaca nesta análise é o Plano Geral de Sistematização da

cidade de Natal (Figura 06). Quando a engenheira Carmem Portinho9 foi chamada a

apresentar o Plano no IV Congresso Panamericano de Arquitetura, em junho de 1930, na

9 Carmem Portinho formou-se em engenharia pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro, em 1929; teve papel importante no movimento feminista no Brasil e, ao lado do seu marido, o arquiteto Affonso Eduardo Reidy, participou ativamente do processo de consolidação da arquitetura moderna brasileira entre 1930 e 1960.

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cidade do Rio de Janeiro, interessou-lhe marcar as divisões que uma cidade moderna

deveria ter e que o Plano atendia. Dentre essas divisões, a de um bairro jardim novo, “em

moldes semelhantes aos ingleses” (PORTINHO, 1930, p.01). Mas, semelhante como?

Embora tenha somente apresentado e não elaborado o Plano, essas observações se baseiam

sobremaneira nas suas referências teóricas precedentes do que nas informações escritas

sobre a proposta para Natal.

Semelhante porque, entendia-se, haveria o controle demográfico por meio da

aplicação rigorosa do “zoning moderno”, evitando a superpopulação; além disso,

esboçava-se um princípio de auto-gestão na qual os moradores seriam chamados a se

“pronunciarem sobre a administração do bairro, fixando o número e a localização de lojas

e armazéns” (PORTINHO, 1930, p.02). Da mesma forma que no bairro operário proposto,

também “transformado” em um bairro-jardim, os lotes permitiriam a plantação e o cultivo

de jardins ou pomares particulares.

Buscava-se disseminar esses novos padrões higiênicos na forma de habitar a casa e

viver a cidade. Assim, fazer uma cidade-jardim significava espraiar o verde. Não o verde

exuberante da paisagem natural circundante, mas a disposição metódica e controlada,

baseada na distribuição gratuita de mudas por parte do horto municipal, de áreas verdes e

permeáveis e zonas sombreadas ao longo dos espaços urbano e privado de cada habitação.

É principalmente com Palumbo, autor do Master Plan, que se percebe essa sobreposição

entre cidade-jardim e bairro-jardim. O que seria uma redução do conceito a princípio, o

“environmental imagery” da noção de bairro-jardim vai, num caminho inverso, extrapolar

os limites das partes isoladas ou desarticuladas da cidade para servir como referência à

reforma urbana como um todo.

Formado pela École des Beaux-Arts de Paris na década de 1910, não à toa essa noção

de subúrbio ou de bairro-jardim como elemento de estruturação da cidade aparece na

justificativa de Palumbo para o Master Plan de Natal. Se é certo que a apropriação do

ideário na França esteve vinculado desde o início à noção de subúrbio-jardim,

principalmente devido à publicação de Le Cité Jardin (1905), de Benoit-Lévy, não se

limitou a um esquema de desenho urbano. Ao contrário, fortaleceu a ênfase no

cooperativismo e na abordagem para a reforma urbana e social, reforçando a tradição

francesa do autogoverno local, e, especialmente, a idéia de Cité, “undestood as a

community pattern and citizen matrix”, presente na raiz do desenvolvimento dos esquemas

de bem-estar social e da promoção do town planning (GAUDIN, 1992, p.60).

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Vindo trabalhar no Brasil no início da década de 1920, Palumbo se consolidou como

arquiteto eclético de sólida formação acadêmica, atuando no Rio de Janeiro e, depois de

1925, no Nordeste do país, nas cidades de Natal, João Pessoa e Recife. O Master Plan de

Natal, seu primeiro trabalho urbanístico conhecido, combina assim a tradição classicista de

composição urbana geométrica ao discurso baseado em referências à cidade-jardim. Os

elementos do urbanismo de traçado pitoresco, com ruas sinuosas adaptadas às curvas de

nível – que seria considerado característico do desenho tipo cidade-jardim –, apareceria

apenas nos seus projetos urbanos dos anos 1930, como o loteamento residencial para o

Recreio dos Bandeirantes, na cidade do Rio de Janeiro, ou o bairro-jardim operário de Juiz

de Fora.

Em Natal, a possibilidade de consecução de uma cidade-jardim estava portanto na

delimitação de grandes parques, na construção de um sistema de jardins públicos, na

implantação de uma arborização, de amplos gramados e de sombras aprazíveis que

possibilitassem a vida urbana numa “cidade tropical” (PALUMBO, 1929, p.01).

Numa perspectiva diferenciada, os bairros-jardins produzidos por empresas

imobiliárias surgem como uma possibilidade inovadora de moradia, sobretudo para uma

classe mais abastada, que uniu o fácil acesso à cidade existente aos propalados prazeres de

uma vida tranqüila com abundância de áreas verdes. Os bairros-jardins paulistanos criados

por iniciativa da Cia City e depois propagados pela cidade são modelares como

empreendimentos de claro sucesso imobiliário e que aos poucos se difundiu pelo país.

Dada a aplicabilidade e rentabilidade da idéia, ela se disseminou de modo considerável e

também despertou interesse em profissionais filiados a uma concepção mais global de

cidade. Jorge de Macedo Vieira, cabe dizer, desenvolveu inúmeros projetos de bairros-

jardins não apenas dando continuidade às realizações da Cia City em São Paulo mas

concebendo outros projetos de núcleos residenciais em cidades como Belo Horizonte,

Porto Alegre e Rio de Janeiro, por exemplo (STEINKE, 2002).

Assim, os deslizamentos semânticos e a conseqüente redução ou expansão do

significado original de uma proposta urbanística marcam também os processos de

transferência. No caso da cidade-jardim, é inegável, como já lembrava Osborn em 1949,

que o termo tornou-se muito atrativo, carregando uma série de simbologias que

qualificavam os novos espaços urbanos propostos, independente da qualidade do desenho

urbano ou de qualquer relação com as propostas originais ou com a tradição garden city

desenvolvida ao longo do século XX.

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Para além das apropriações indébitas do termo cidade-jardim – que se pode chamar

hoje de estratégias de propaganda imobiliária que acabaram operando uma cisão entre o

termo e sua base teórica e prática originais e resultando em empreendimentos de

questionável a qualidade urbanística por todo o mundo (WATANABE, 1992) –, interessa

observar um dos deslizamentos mais significativos na sua trajetória de apropriações.

Aquele que enfatizou a presença do jardim ou, melhor, das áreas verdes nas cidades e, em

conseqüência, amarrou o significado do termo cidade-jardim a um padrão de assentamento

urbano diferente, considerado ambientalmente superior ao traçado urbano herdado do

período colonial ou ao traçado caótico, sujeito aos interesses imobiliários privados, das

cidades comerciais e industriais em expansão entre o final do século XIX e o início do XX

no Brasil.10

Algumas considerações finais É inegável que a atuação do arquiteto Barry Parker na cidade de São Paulo no final

dos anos 1910 constituiu-se no principal meio de transferência para a difusão do ideário

cidade-jardim no Brasil. Por meio dos projetos do arquiteto, a Cia City definiu um

parâmetro urbanístico cujo traçado foi reproduzido em seus empreendimentos imobiliários

futuros. Vale ressaltar que essa formulação teve, no Brasil, um campo propício de absorção

e aceitação. Os debates acerca da concepção howardiana e suas releituras circulavam por

reuniões e conferências de classe, sendo as realizações de Barry Parker referência notória

entre os urbanistas.11

Desde então, esse ideário, principalmente na sua vertente bairro-jardim, consolidou-

se como um parâmetro de qualidade para discutir as reformas ou expansões urbanas no

país. De qualquer maneira, os bairros-jardins se tornaram tanto uma referência para o

desenho urbano quanto, como dito, símbolos de valorização para o mercado imobiliário.

Ademais, a permanência de Parker no Brasil por quase dois anos influenciou na formação

de outros profissionais, como Macedo Vieira, que continuaria sua prática urbanística 10 Mumford (1998, p.555-566), entusiasta da proposta e do legado das idéias de Howard, afirmou que o próprio termo cidade-jardim trazia uma contradição em si, pois enfatizava um elemento – o jardim na cidade – que não era o diferencial da proposta. Mais do que Garden City, o termo Green Belt City estaria mais próximo da essência do pensamento howardiano. 11 Parker exerceu em São Paulo influência sobre as autoridades administrativas reivindicando a modificação da legislação municipal que impossibilitava o melhor aproveitamento do sítio e, conseqüentemente, a implementação de seus projetos. Naquele momento, o traçado reticulado era padrão oficial, com larguras e comprimentos específicos das ruas e das quadras, contrariando sua formulação de traçado sinuoso que acompanhava as curvas de nível do terreno (ANDRADE, 1998).

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baseado nas referências à cidade-jardim e que teria grande ressonância no debate técnico e

cultural local.

Contudo, os processos de transferência devem ser sempre confrontados com as

“estruturas temporais e com as possibilidades materiais de cada lugar” (SALGUEIRO,

2001). As diferentes formas de constituição da disciplina urbanística no Brasil apontam,

em especial, para as distintas formas de apropriação e interpretação de modelos e idéias,

idéias que dependem das condições materiais e das trajetórias individuais dos profissionais.

Desse modo, os eixos de análise propostos neste trabalho tentaram delinear e

distinguir alguns dos principais caminhos da difusão e da materialização de vários

elementos do ideário cidade-jardim no Brasil. Caminhos que revelam as diferentes fontes

nas quais as discussões sobre a cidade-jardim se basearam. Continentino, por exemplo,

buscaria no ideário cidade-jardim alguns elementos eficientes para propor um espaço

urbano adequado aos ideais de salubridade urbana, como defendido pelos urbanistas

sanitaristas.

Se Parker trouxe para o Brasil a tradução – para alguns, uma “redução” – da cidade-

jardim para bairro-jardim, essa não foi a única ou a principal forma de difusão dessa

vertente. A análise do Master Plan de Palumbo, por exemplo, pode sugerir outros caminhos

para discutir essa mudança. Palumbo, ampliando as possibilidades de leitura do termo,

inverteria essa “equação”, elaborando e propondo um novo desenho para a cidade baseado

nas qualidades ambientais do bairro-jardim.

Assim, pode-se afirmar que, mesmo distante das idéias originais howardianas, o

bairro-jardim ajudou a construir a cidade moderna no Brasil.

Referências ANDRADE, C. R. M. de. (1998), Barry Parker: um arquiteto inglês na cidade de São Paulo, São Paulo: FAUUSP, (tese de doutorado).

CARVALHO, J. M. de (1990), A formação das almas :o imaginário da república no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras.

CHOAY, Françoise. O Urbanismo: utopias e realidades. Uma antologia. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.

CONTINENTINO, L. (1937), Saneamento e urbanismo, Belo Horizonte: s.n.

CORRÊA LIMA, Attílio (1933). Avant-Projet d’aménagement et d’extension de la ville de Niterói au Brésil.Paris: Vincent, Fréal et Cie Editeurs.

DANTAS, George A. F. Natal, “Caes da Europa”: o plano geral de Sistematização no contexto de modernização da cidade (1929-1930). Monografia (Graduação em Arquitetura e

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Urbanismo) – Departamento de Arquitetura, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 1998.

MATTA, A. (1916), Geographia e Topographia medica de Manáos, Manaus: Renaud.

MUMFORD, L. (1998/1st ed. 1961) A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas. 4 ed. Tradução de N. R. da Silva. São Paulo: Martins Fontes.

__________. (1949). “The Garden City idea and Modern Planning”. In: HOWARD, E. (1949), Garden Cities of To-morrow. 3 ed. London: Faber & Faber, pp. 29-40.

OSBORN, F. J. (1945). “Preface”. In: HOWARD, E. (1949), Garden Cities of To-morrow. 3 ed. London: Faber & Faber, pp. 09-28.

PALUMBO, G. (1929). “A remodelação de Natal”, A República, Natal, n.44, feb 24, p. 01.

PORTINHO, C. (1930). “A remodelação de Natal”, A República, Natal, n.160, july 13, p. 02.

SALGUEIRO, H. A. (2001). “Introdução: da temática, dos autores e de suas idéias”. In: SALGUEIRO, H. A. (org.) Cidades capitais do século XIX: racionalidade, cosmopolitismo e transferência de modelos, São Paulo: EDUSP, pp. 19-40.

STEINKE, R. Z. (2002), Ruas curvas versus ruas retas: na história das cidades, três projetos do engenheiro Jorge de Macedo Viera, São Carlos: EESC – USP. (Dissertação de Mestrado).

VIGARELLO, G. (1985), O limpo e o sujo: a higiene do corpo desde a Idade Média. Tradução de Isabel St. Aubyn. Lisboa: Fragmentos.

WARD, S. V. (1992). “The Garden City introduced”. In: WARD, S. V., The Garden City: past, present and future, Londres: E & FN Spon, pp. 01-27.

WATANABE, S. (1992). “The Japanese Garden City”. In: WARD, S. V., The Garden City: past, present and future, Londres: E & FN Spon, pp. 69-87.

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FIGURAS REFERENCIADAS

Figura 01 – Projeto para o Jardim América, de Barry Parker, 1913 [?]. Fonte: Andrade, 1998.

Figura 02 – Planta da Cidade balneária de Águas de São Pedro - SP, Jorge de M. Vieira, 1937. Fonte: Steinke, 2002.

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Figura 3 – Planta da cidade balneária de Pontal do Sul – PR, J. de Macedo Vieira, 1950.

Fonte: Steinke, 2002.

Figura 04 – Plano de urbanismo da cidade industrial de Monlevade, L. Continentino - 1936. Fonte: Continentino, 1936.

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Figura 05 – Cidade-Jardim Piratininga, Attílio Côrrea Lima – 1931. Fonte: Côrrea Lima, 1933.

Figura 06 – Plano Geral de Sistematização de Natal. Fonte: Dantas, 1998.