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Clínica - A Palavra Negada

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  • PUBLICAO QUADRIMESTRAL EDITADA PELO

    Centro Brasileiro de Estudos de Sade (CEBES)Diretoria Nacional

    Fundao Oswaldo Cruz (FIOCRUZ)Avenida Brasil, 4036 sala 802 Manguinhos21040-361 Rio de Janeiro RJ BrasilTel.: (21) 3882-9140, 3882-9141Cel.: (21) 9695-7663 Fax.: (21) 2270-1793E-mail: [email protected] page: http://www.ensp.fiocruz.br/parcerias/cebes/cebes.html

    DIREO NACIONAL (GESTO 2000-2002)

    PresidenteSarah Escorel (RJ)1O Vice-PresidenteArmando de Negri Filho (RS)2O Vice-PresidenteEduardo Freese de Carvalho (PE)3O Vice-PresidenteCarlos Botazzo (SP)4O Vice-PresidenteAlcides Silva de Miranda (CE)1O SuplenteRogrio Renato Silva (SP)2O SuplenteMaria Jos Scochi (PR)

    CONSELHO FISCAL

    Anamaria Testa Tambellini (RJ), Paulo Duarte de Carvalho Amarante (RJ) &Ary Carvalho de Miranda (RJ)

    CONSELHO CONSULTIVO

    Antnio Ivo de Carvalho (RJ), Antnio Srgio da Silva Arouca (RJ),Emerson Elias Merhy (SP), Lia Giraldo da Silva Augusto (PE),Luiz Augusto Facchini (RS), Gasto Wagner de Souza Campos (SP),Gilson de Cssia M. de Carvalho (SP), Jorge Antnio Zepeda Bermudez (RJ),Jos Ruben de Alcntara Bonfim (SP), Roberto Passos Nogueira (DF),Jos Gomes Temporo (RJ), Luz Carlos de Oliveira Cecilio (SP) &Paulo Srgio Marangoni (ES)

    CONSELHO EDITORIAL

    CoordenadorPaulo Duarte de Carvalho Amarante (RJ)

    Ana Maria Malik (SP), Clia Maria de Almeida (RJ), Francisco de Castro Lacaz (SP),Guilherme Loureiro Werneck (RJ), Jairnilson da Silva Paim (BA),Jos da Rocha Carvalheiro (SP), Lgia Giovanella (RJ), Luis Cordoni Jr. (PR),Maria Ceclia de Souza Minayo (RJ), Naomar de Almeida Filho (BA),Nilson do Rosrio Costa (RJ), Renato Peixoto Veras (RJ),Ronaldo Bordin (RS) & Sebastio Loureiro (BA)

    SECRETARIA EXECUTIVA

    Ana Cludia Gomes GuedesRenata Machado da Silveira

    RESPONSVEL PELA EDIO

    Ana Cludia Gomes Guedes

    REVISO DE TEXTO

    Carlos Frederico Manes Guerreiro portugusJuliana Monteiro Samel ingls

    FOTOS DA CAPA

    Alvaro Funcia Lemme

    CAPA, DIAGRAMAO E EDITORAO ELETRNICA

    Adriana Carvalho & Carlos Fernando Reis da Costa

    IMPRESSO E ACABAMENTO

    Armazm das Letras Grfica e Editora

    TIRAGEM

    3.000 exemplares

    Apoio:

    Indexao:

    Literatura Latino-Americana e do Caribe

    em Cincias da Sade (LILACS)

    A Revista Sade em Debate associada

    Associao Brasileira de Editores Cientficos

  • Rio de Janeiro v.25 n.58 maio/ago. 2001

    RGO OFICIAL DO CEBES

    Centro Brasileiro de Estudos de Sade

    ISSN 0103-1104

    CONCEITUALMENTE A CAPA EXPRESSA A RICA PRODUO POLTICA,ARTSTICA E CULTURAL DO MOVIMENTO DE REFORMA PSIQUITRICA

    FONTE LABORATRIO DE ESTUDOS E PESQUISAS EM SADE MENTAL (LAPS/FIOCRUZ)

  • 2 Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 23, n. 53, p. XX-YY, set./dez. 1999

    SUMRIO

    EDITORIAL 3

    ARTIGOS ORIGINAIS

    Desinstitucionalizao em Sade Mental: consideraes sobre o paradigma emergenteDeinstitutionalization in Mental Health: considerations on the emergent paradigmJacileide Guimares, Soraya Maria de Medeiros, Toyoko Saeki &Maria Ceclia Puntel de Almeida 5

    As Conferncias Nacionais de Sade Mental e as premissas do Modo PsicossocialThe National Conferences of Mental Health and the premises of the psychosocial wayAblio da Costa-Rosa,Cristina Amlia Luzio & Silvio Yasui 12

    A constituio de novas prticas no campo da Ateno Psicossocial: anlise de doisprojetos pioneiros na Reforma Psiquitrica no BrasilThe forming of new practices in the Psychiatric-social care: review of two pioneer projects in thePsychiatric Reform in BrazilPaulo Duarte de Carvalho Amarante & Eduardo Henrique Guimares Torre 26

    Da avaliao em sade avaliao em Sade Mental: gnese, aproximaestericas e questes atuaisFrom health assesment to mental Health Assesment: birth, theoretical approaches andcurrent issuesPatty Fidelis de Almeida & Sarah Escorel

    35

    Ambiente construdo e comportamento espacial na instituio psiquitrica: questesticas em Observao ParticipanteBuilt environment and spatial behaviour in psychiatric institution: ethical issues inParticipative ObservationMirian de Carvalho

    48

    Lares Abrigados: dispositivo clnico-poltico no impasse da relao com a cidadeSheltered Homes: a political-clinical apparatus in the locked relationship with the cityRegina Benevides de Barros & Silvia Josephson

    57

    O usurio de psicofrmacos num Programa Sade da FamliaThe psycopharmic user in a Family Health ProgramMaria Clia F. Danese & Antonia Regina F. Furegato

    70

    A construo da diferena na assistncia em Sade Mental no municpio: aexperincia de So Loureno do Sul RSThe construction of difference in Mental Health assistance in municipalities: the experience ofSo Loureno do Sul RSChristine Wetzel & Maria Ceclia Puntel de Almeida 77

    Qualidade de vida de pessoas egressas de instituies psiquitricas:o caso de Ilhus BAQuality of life in patients discharged from psychiatric institutions: the Ilhus BA, caseRozemere Cardoso de Souza & Maria Ceclia Morais Scatena 88

    Clnica: a palavra negada sobre as prticas clnicas nos servios substutivos deSade MentalClinical ptractice: denied words on clinical practices in Mental Health substitutive servicesRosana Onocko Campos 98

  • Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 23, n. 53, p. XX-YY, set./dez. 1999 3

    EDITORIAL

    Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 3, maio./ago. 2001 3

    Este nmero da Sade em Debate dedicado SadeMental e ser lanado por ocasio da III Confern-cia Nacional de Sade Mental, em Braslia, no perodo

    entre 11 e 15 de dezembro de 2001.

    Desde os primrdios da Reforma Sanitria, no in-

    cio do CEBES que completa 25 anos, o campo da Sade

    Mental tm sido vanguarda e integrante do movimento

    sanitrio, resguardando suas especificidades que in-

    tegram o Movimento da Reforma Psiquitrica no Bra-

    sil e, ao mesmo tempo, inserindo objetos, teorias,

    temas, atores e arenas no movimento mais geral que

    luta pela transformao das condies de sade da

    populao brasileira.

    Desnecessrio enfatizar a importncia da III Confe-

    rncia Nacional de Sade Mental, desejada h mais de

    uma dcada e que se realiza num contexto nacional e

    internacional auspicioso. H cerca de dez anos vm

    sendo implantados servios substitutivos e novas pr-

    ticas assistenciais e este um bom momento para ava-

    liar avanos e impasses. Depois de muitos anos tra-

    mitando no congresso, e de muita luta do movimento

    social por uma sociedade sem manicmios, foi apro-

    vada a Lei da Reforma Psiquitrica abrindo possibili-

    dades de inovao e de regulao. A OMS declarou 2001

    o ano da Sade Mental com a proposta cuidar sim,

    excluir no. Mas, estas boas novas inserem-se no velho

    e conhecido cenrio de pobreza e extremas desigual-

    dades sociais. Portanto, h que se pensar nas necessi-

    dades especficas de proteo social dos portadores de

    sofrimento psquico no interior do contexto de recons-

    truo de um efetivo sistema de proteo social.

    Este nmero a contribuio do CEBES aos importan-

    tes debates da III Conferncia Nacional de Sade Men-

    tal. Desinstitucionalizao, novas prticas, prticas cl-

    nicas nos servios substitutivos, avaliao, relaes dos

    lares abrigados com a cidade, uso de psicofrmacos no

    PSF, experincias municipais de assistncia em sade

    mental e qualidade de vida dos egressos de instituies

    psiquitricas so os temas abordados alm do artigo

    que recupera as conferncias anteriores na rea de Sa-

    de Mental que nos lembra e relembra que a Reforma

    Sanitria em geral, e a Reforma Psiquitrica em parti-

    cular, so processos, nem contnuos nem lineares e que

    dependem da participao de todos os segmentos para

    alcanar efetivamente os objetivos desejados: incluso,

    solidariedade e cidadania emancipada.

    A Diretoria Nacional

  • 4 Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 23, n. 53, p. XX-YY, set./dez. 1999

    QUEM SOMOS

    Desde a sua criao, em 1976, o CEBES tem como centro de seu projeto a

    luta pela democratizao da sade e da sociedade. Nesses 25 anos, como

    centro de estudos que aglutina profissionais e estudantes, seu espao esteve

    assegurado como produtor de conhecimentos com uma prtica poltica concreta,

    seja em nvel dos movimentos sociais, das instituies ou do parlamento.

    Durante todo esse tempo, e a cada dia mais, o CEBES continua empenhado

    em fortalecer seu modelo democrtico e pluralista de organizao; em orientar

    sua ao para o plano dos movimentos sociais, sem descuidar de intervir nas

    polticas e prticas parlamentares e institucionais; em aprofundar a crtica e

    a formulao terica sobre as questes de sade; e em contribuir para a

    consolidao das liberdades polticas e para a constituio de uma sociedade

    mais justa.

    A produo editorial do CEBES tem sido fruto de um trabalho coletivo. Estamos

    certos que continuar assim, graas a seu apoio e participao.

  • Desinstitucionalizao em Sade Mental: consideraes sobre o paradigma emergente

    Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001 5

    ARTIGOS ORIGINAIS

    Desinstitucionalizao em Sade Mental: consideraes sobre oparadigma emergente1

    Deinstitutionalization in Mental Health: considerations on the emergent paradigm

    Jacileide Guimares2

    Soraya Maria de Medeiros3

    Toyoko Saeki4

    Maria Ceclia Puntel de Almeida5

    1 Trabalho elaborado a partir da disciplina

    Seminrios de Sade Mental do Mestrado

    de Enfermagem Psiquitrica e Sade

    Mental da Escola de Enfermagem de

    Ribeiro Preto da Universidade de So

    Paulo EERP/ USP, 1999.

    2 Mestranda em Enfermagem Psiquitrica

    e Sade Mental na Escola de Enfermagem

    de Ribeiro Preto da Universidade de So

    Paulo EERP/USP.

    3 Professora Doutora do Departamento de

    Enfermagem da Universidade Federal do

    Rio Grande do Norte.

    e-mail: [email protected]

    4 Professora Doutora do Departamento de

    Enfermagem Psiquitrica e Cincias

    Humanas da EERP/USP.

    e-mail: [email protected]

    5 Professora Doutora do Departamento

    de Materno Infantil e Sade Pblica da

    EERP/USP.

    e-mail: [email protected]

    RESUMO

    O presente artigo tem como objetivo analisar a ps-modernidade

    epistemolgica, social e poltica do saber/fazer psiquitrico no Brasil. Para

    tanto partimos dos pressupostos do Paradigma Emergente no mbito

    epistemolgico e dos Novos Movimentos Sociais (NMS) no mbito social e

    poltico ambos segundo Santos (1997a, 1998), acrescido das experincias

    prticas da assistncia em sade mental no Brasil nas duas ltimas dcadas

    (1979-1999). Verificamos a congruncia existente entre os movimentos de

    mudana da ateno psiquitrica e as prerrogativas do paradigma

    emergente, podendo-se destacar a complexidade e complementariedade

    exigida por esse paradigma e defendida pelas experincias brasileiras de

    desinstitucionalizao de orientao basagliana.

    PALAVRAS-CHAVE: desinstitucionalizao; sade mental; paradigma emergente.

    ABSTRACT

    This essay aims to analyze the epistemological, social and political post-

    modernity of psychiatric knowledge/performance in Brazil. With that objective,

    we started from the presuppositions of the Emergent Paradigm in the

    epistemological level and of the New Social Movements in the social level,

    both according to Santos (1997a, 1998), in addition to practical experience

    on mental health care in Brazil in the past two decades (1979-1999). We

    observed the congruence that exists between both movements related to

    psychiatric health care change and the prerogatives of the emergent

    paradigm. The complexity and complementarity required by such paradigm,

    which is defended by the Brazilian deinstitutionalization experiences based

    on the theories of Basaglia, can be highlighted.

    KEY WORDS: deinstitutionalization; mental health; emergent paradigm.

  • GUIMARES, J. et al.

    6 Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001

    INTRODUO

    O presente artigo tem como ob-

    jetivo analisar a ps-modernida-

    de epistemolgica, social e polti-

    ca do saber/fazer psiquitrico no

    Brasil nas duas ltimas dcadas

    (1979 - 1999).

    Santos (1998: 37) define as

    transformaes epistemolgicas no

    modo de se fazer/ver cincia ou o

    Paradigma Emergente como um

    paradigma de um conhecimento

    prudente para uma vida decente

    assim atestando a novidade de que

    a cincia comporta, simultaneamen-

    te ao aspecto estritamente investi-

    gativo, o aspecto social da vida das

    pessoas. Com base neste pensamen-

    to tecido como um discurso sobre

    as cincias e introduo a uma ci-

    ncia ps-moderna, este autor de-

    fende um conjunto de teses que tm

    em comum a superao do paradig-

    ma dominante1, sobre o que nos in-

    teressa citar sucintamente:

    1. Todo o conhecimento cientfico-

    natural cientfico-social;

    2. Todo o conhecimento local

    e total;

    3. Todo o conhecimento autoco-

    nhecimento;

    4. Todo o conhecimento cient-

    fico visa constituir-se em sen-

    so comum.

    A primeira tese Todo o conhe-

    cimento cientfico-natural cient-

    fico-social fudamenta-se na su-

    perao das dicotomias na no-du-

    alidade do conhecimento, abolin-

    do-se assim o sentido que continha

    interpretaes estanques como, por

    exemplo, natureza/cultura, natural/

    artificial, observador/observado,

    sade/doena, razo/desatino. A

    segunda tese Todo o conhecimen-

    to local e total visa a um co-

    nhecimento interdisciplinar que

    una ao que estudamos (SANTOS,

    1998: 53). A quarta tese Todo o

    conhecimento cientfico visa cons-

    tituir-se em senso comum , por

    fim, visa ao dilogo entre o conhe-

    cimento cientfico e o senso comum

    enquanto possibilidade qualitativa

    de ampliao do fenmeno obser-

    vado e em detrimento do autorita-

    rismo e dominao de um sobre o

    outro, ou seja, do primeiro sobre

    o segundo.

    Ressalta-se a importncia deci-

    siva do desvelamento pelo paradig-

    ma emergente, da chamada neutra-

    lidade cientfica preconizada pelo

    paradigma dominante na qual o

    observador separado, cindido do

    observado atuava sobre este sem

    no entanto responsabilizar-se so-

    cialmente, enquanto que o obser-

    vado por sua vez, possua um lu-

    gar passivo e coisificado no proces-

    so de investigao.

    No mbito social e poltico, San-

    tos (1997a) atesta um estado ps-

    moderno dos acontecimentos atra-

    vs dos denominados Novos Mo-

    vimentos Sociais (NMSs), presen-

    tes em todo o mundo, principal-

    mente nas dcadas de 70 e 80, de

    forma mais ou menos intensa con-

    forme o estgio de desenvolvimen-

    to econmico local.

    Os NMSs so os movimentos ti-

    picamente ps-industriais que de-

    1 Dentre vasta bibliografia sobre o paradigma cientfico dominante, pode-se consultar o prprio Santos (1989, 1998).

    perceba a totalidade dos aconteci-

    mentos especficos, complexifican-

    do-os e assim enriquecendo-os. A

    terceira tese - Todo o conhecimen-

    to auto-conhecimento - refere-se

    a integrao e intencionalidade en-

    tre sujeitos e no entre um sujeito

    e um objeto, assim trata-se de um

    conhecimento compreensivo e n-

    timo que no nos separe e antes nos

    NO MBITO SOCIAL E POLTICO,SANTOS (1997A) ATESTA UM ESTADOPS-MODERNO DOS ACONTECIMENTOSATRAVS DOS DENOMINADOS NOVOSMOVIMENTOS SOCIAIS (NMSS)

  • Desinstitucionalizao em Sade Mental: consideraes sobre o paradigma emergente

    Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001 7

    nunciam as formas de opresso

    cotidianas contidas na violncia,

    na poluio, no sexismo, no racis-

    mo e no produtivismo, dentre ou-

    tras formas de excluso. Para San-

    tos (1997a: 258), os NMSs trazem

    como novidade maior tanto uma

    crtica da regulao social capita-

    lista como uma crtica da emanci-

    pao social socialista tal como

    foi defendida pelo marxismo.

    Assim denunciando com uma ra-

    dicalidade sem precedentes os ex-

    cessos de regulao da moderni-

    dade e contribuindo para a cons-

    truo, no dizer deste autor, de

    uma equao que comungue si-

    multaneamente subjetividade, ci-

    dadania e emancipao.

    Segundo Santos (1997a: 257), a

    Amrica Latina destaca-se dos de-

    mais pases perifricos e semiperi-

    fricos com relao a atuao dos

    NMSs, sendo que aqui estes movi-

    mentos so peculiarmente nutridos

    por inmeras energias que compi-

    lam desde reivindicaes ps-ma-

    terialistas a lutas por condies b-

    sicas de sobrevivncia, diferente-

    mente do que se passa nos pases

    centrais onde os movimentos so

    puros ou bem definidos.

    Com relao ao Brasil particu-

    larmente, tem-se na dcada de se-

    tenta e de oitenta um notvel flo-

    rescimento de NMSs (Santos,

    1997a), atente-se para o momento

    poltico de luta pela transio de-

    mocrtica ps-ditadura que se de-

    lineava. Vale situar esse momento

    crucial para a transformao da

    sociedade brasileira, denominado

    por Sader (1990) como entre o ve-

    lho e o novo. Segundo Sader (1990:

    48), o ponto de partida da transi-

    o claro: uma ditadura militar

    permeada por uma ideologia de se-

    gurana nacional favorvel ao

    grande capital monopolista e finan-

    ceiro nacional e internacional. J o

    ponto de chegada menos claro:

    um regime hbrido, em que deixaram

    de existir as leis de exceo, em que

    pacote de medidas que revogava dis-

    posies que limitavam os direitos

    polticos estabelecidos pela ditadu-

    ra militar (Sader, 1990: 48).

    Mas, revelia da menor clareza

    do ponto de chegada da transio,

    no se pode negar o surgimento de

    algo novo que se podia dizer germe

    da redemocratizao do pas:

    A chamada Nova Repblica foi

    sendo instaurada assim como uma

    mistura hbrida entre o velho e o

    novo. Inegavelmente se trata de um

    novo regime. A forma de domina-

    o poltica foi modificada, subs-

    tituindo as instncias militares

    por formas parlamentares: a nova

    Constituio fortaleceu o papel do

    Congresso, as liberdades individu-

    ais foram ampliadas, o direito de

    organizao poltica foi explicita-

    do, introduziram-se direitos da ci-

    dadania que antes no constavam

    de nosso sistema jurdico, tem vi-

    gncia, ao menos teoricamente, um

    Estado de direito, baseado em leis

    votadas por um Parlamento eleito

    pelo voto universal e direto (Sader,

    1990: 54).

    Assim finalizamos a dcada de

    70 e adentramos a dcada de 80 com

    um Brasil efervescente, manifesta-

    das as contradies e reduzido o

    poder ditatorial das elites dirigen-

    tes. A sociedade civil despertava de

    um pesadelo que durara vinte e um

    anos e havia muito o que ser ques-

    tionado. Emergem denncias e in-

    dignao acerca da questo psiqui-

    trica no mbito da sade.

    os partidos polticos, as associaes

    civis e a grande imprensa no en-

    contram limitaes do ponto de vis-

    ta legal. Os prprios militares se re-

    tiraram do centro da cena poltica

    para um lugar mais discreto. Dei-

    xou de haver presos polticos, os r-

    gos de segurana tiveram seu pa-

    pel diminudo, foram restabelecidos

    os mecanismos eleitorais na sua ple-

    nitude. Antes mesmo da nova Cons-

    tituio, o Congresso j havia remo-

    vido o que considerou como entu-

    lhos autoritrios, aprovando um

    PARA SANTOS (1997A: 258),OS NMSS TRAZEM COMO NOVIDADE

    MAIOR TANTO UMA CRTICA DA REGULAOSOCIAL CAPITALISTA COMO UMA CRTICA DA

    EMANCIPAO SOCIAL SOCIALISTA TALCOMO FOI DEFENDIDA PELO MARXISMO

  • GUIMARES, J. et al.

    8 Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001

    O PROCESSO SADE/DOENA MENTAL:A DESINSTITUCIONALIZAO SOB O SIGNO

    DO PARADIGMA EMERGENTE

    Feita esta breve localizao te-

    rico-metodolgica luz do Paradig-

    ma Emergente e dos Novos Movi-

    mentos Sociais conforme Santos

    (1997a, 1998), retomamos o recor-

    te das duas ltimas dcadas no Bra-

    sil no mbito das polticas e prti-

    cas em sade mental.

    A sade mental brasileira nas

    duas ltimas dcadas, mais precisa-

    mente de 1979 a 1999, passou por

    transformaes atravs de avanos

    que constituram e constituem o pro-

    cesso contemporneo desta prtica.

    Em 1979, o Brasil recebe a visi-

    ta do psiquiatra italiano Franco Ba-

    saglia, cujo discurso sobre a desins-

    titucionalizao do aparato psiqui-

    trico repercute no meio social e

    poltico que passa por contestaes

    e desejos de mudana em uma soci-

    edade que vivencia um processo de

    abertura aps anos de regime mili-

    tar ditatorial. Surge o Movimento

    dos Trabalhadores em Sade Men-

    tal ento um NMS que fortaleci-

    do pela sociedade civil organizada

    e pelas primeiras experincias de

    desinstitucionalizao, destacada-

    mente a experincia santista, cul-

    mina em 1989 com o movimento de

    Reforma Psiquitrica, a criao do

    Projeto de Lei 3657 de autoria do

    deputado federal Paulo Delgado (PT-

    MG) que dispe sobre a supera-

    o do manicmio e a construo

    de assistncia substitutiva e com

    a Luta Antimanicomial. Em janeiro

    de 1999, o referido projeto foi apro-

    vado no Senado, devendo, para tor-

    nar-se lei, ser aprovado em nova

    votao na Cmara. Em abril deste

    ano (2001) foi aprovado e sancio-

    nado pelo Presidente da Repblica,

    tornando-se lei. Temos passado

    pouco mais de duas dcadas (1979

    1999), marcadas por indignao,

    contestao, lutas e conquistas sig-

    nificativas de um processo que se

    Amarante (1999: 48) destaca a

    dualidade do processo epistmico

    cientfico dominante onde

    a natureza de um conceito ou teoria

    cientfica significa uma determinada

    forma pela qual o homem se relacio-

    na com a natureza. A cincia moder-

    na, de base predominantemente po-

    sitivista, vem exercitando um proces-

    so de objetivao da natureza, em que

    a relao que se estabelece entre

    sujeitos epistmicos, de um lado, e

    de coisas e objetos de outro.

    Esse autor ressalta o pensamen-

    to de Franco Basaglia, que diz que

    preciso pr a doena, e no o homem,

    entre parnteses, assim invertendo

    a tradio psiquitrica e cientifica-

    mente moderna de objetivao do

    sujeito. Com tal inverso, se estabe-

    lece uma ruptura operada pela Luta

    Antimanicomial e pela Reforma Psi-

    quitrica brasileira, de orientao

    basagliana, com o mtodo da cin-

    cia moderna. No dizer de Amarante

    (1999: 48), podemos conferir:

    Neste sentido, o que vimos deno-

    minando como Luta Antimanicomial,

    ou como Reforma Psiquitrica, tem

    como princpio bsico uma ruptura

    com essa tradio cientfica [a cin-

    cia moderna ou paradigma dominan-

    te]. Em primeiro lugar, por romper com

    o processo de objetivao da loucura

    e do louco (inscrevendo a questo ho-

    mem-natureza ou a questo do nor-

    mal-patolgico em termos ticos, isto

    , de relao e no de objetivao). Em

    segundo lugar, por romper com o pro-

    cesso de patologizao dos comporta-

    inspira em um conhecimento que

    pressupe o dilogo como instru-

    mento da contratualidade estabe-

    lecida nos inter-relacionamentos,

    sendo assim, um processo delibe-

    radamente contra a opresso, onde

    seguro afirmar a presena decisi-

    va dos pressupostos deste estudo

    ou seja, do Paradigma Emergen-

    te e da atuao dos Novos Movi-

    mentos Sociais segundo Santos

    (1997a, 1998) no mbito da sa-

    de mental brasileira.

    A SADE MENTAL BRASILEIRA NAS DUASLTIMAS DCADAS, MAIS PRECISAMENTE

    DE 1979 A 1999, PASSOU PORTRANSFORMAES ATRAVS DE AVANOS

    QUE CONSTITURAM E CONSTITUEM OPROCESSO CONTEMPORNEO DESTA PRTICA

  • Desinstitucionalizao em Sade Mental: consideraes sobre o paradigma emergente

    Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001 9

    mentos humanos, com base em um

    pressusposto teleolgico ou ontolgi-

    co de normalidade. Da advm o prin-

    cpio de colocar a doena mental en-

    tre parnteses, como forma de inver-

    ter a tradio psiquitrica, que a de

    colocar o homem entre parnteses para

    se ocupar da doena, como ressaltou

    Basaglia (Amarante, 1999: 48).

    E relembrando as quatro teses de

    Santos (1998), vejamos o que ain-

    da nos diz Amarante (1999: 49) so-

    bre a dmarche de colocarmos a

    doena entre parnteses:

    Colocar um fenmeno entre pa-

    rnteses representa uma importante

    demarcao epistemolgica no mbi-

    to da tradio do pensamento filos-

    fico existencial: consiste na idia de

    que o fenmeno no existe em si,

    mas construdo pelo observador,

    um constructo da cincia, e s existe

    enquanto inter-relao com o obser-

    vador. E, portanto, se o observador,

    sujeito do conhecimento, constri o

    fenmeno, este parte do primeiro,

    parte de sua cultura e de sua sub-

    jetividade (Amarante, 1999: 49).

    Da a complexidade e a comple-

    mentariedade da mudana em sa-

    de mental acentuada por Amaran-

    te (1999: 50), em pelo menos qua-

    tro campos: a) o terico-conceitu-

    al; b) o tcnico-assistencial; c) o

    jurdico-poltico e d) o scio-cultu-

    ral. Ou seja, trata-se de uma inter-

    relao de reconstruo de concei-

    tos; de espaos substitutivos de

    sociabilidade de possibilidades plu-

    rais e singulares concretas para

    sujeitos concretos; de direito ao tra-

    balho, famlia, aos amigos, ao

    cotidiano da vida social e coletiva;

    de solidariedade e incluso de su-

    jeitos em desvantagem social.

    Assim o processo de desinstitu-

    cionalizao da psiquiatria brasilei-

    ra, enquanto conhecimento e prti-

    ca centrados no paradigma emer-

    gente, inscreve-se na contra-mo do

    (1997b: 117), as imagens desesta-

    bilizadoras so os veculos, no tem-

    po presente, portadores das inter-

    rogaes poderosas tomadas de

    posies apaixonadas, capazes de

    sentidos inesgotveis. As imagens,

    potencializam as interrogaes ao

    flagrarem o fato de que tudo de-

    pende de ns e tudo podia ser dife-

    rente e melhor.

    PARA UM CONCEITO EMERGENTEDE SADE MENTAL

    Para um conceito de sade men-

    tal assentado no paradigma emer-

    gente seguro indicar a necessida-

    de fundamental de se conhecer a

    historicidade da chamada psiquia-

    tria moderna, resguardando as suas

    conquistas e superando os limites

    por ela determinados, atendo-se no

    dizer de Santos ao paradigma de

    um conhecimento prudente para

    uma vida decente. Aqui faz-se

    oportuno reiterarmos a necessida-

    de de uma vigilncia constante con-

    tra o atavismo manicomial real ou

    travestido na psiquiatrizao do

    cotidiano ou no institucionalismo

    sutil, sobre o qual Amarante (1999:

    49) ressalta a importncia de estar-

    mos atentos e munidos com estra-

    tgias de enfrentamento capazes de

    identificar e propugnar um certo

    olhar que classifica desclassifican-

    2 Sobre esta questo confira por exemplo: FERNANDES, M. I. A.; SCARCELLI, I. R. & COSTA, E. S. (Orgs.), 1999. Fim de sculo: aindamanicmios? So Paulo: IPUSP.

    projeto cientfico, poltico e econ-

    mico dominante: o neoliberalismo2.

    Uma novidade fruto da concepo

    epistemolgica que se assenta na

    idia de que no h s uma forma

    de conhecimento, mas vrias, e de

    que preciso optar pela que favore-

    ce a criao de imagens desestabi-

    lizadoras e a atitude de inconformis-

    mo perante elas. Para Santos

    ...NO H S UMA FORMA DECONHECIMENTO, MAS VRIAS,

    E DE QUE PRECISO OPTAR PELA QUEFAVORECE A CRIAO DE IMAGENS

    DESESTABILIZADORAS E A ATITUDE DEINCONFORMISMO PERANTE ELAS

  • GUIMARES, J. et al.

    10 Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001

    do, que inclui excluindo, que nomeia

    desmerecendo, que v sem olhar.

    No seria fcil a luta e manu-

    teno de um tal paradigma emer-

    gente. No entanto, a sade mental

    brasileira, nas duas ltimas dca-

    das, tem demonstrado que poss-

    vel. Hoje, embora o projeto neolibe-

    ral seja dominante e pululem trans-

    tornos/sofrimentos mentais e o gas-

    to pblico com internaes psiqui-

    tricas que conforme dados do Mi-

    nistrio da Sade em apenas seis

    anos aumentou de 224 milhes de

    dlares em 1991 para aproximada-

    mente 370 milhes de dlares em

    1996 (Ministrio da Sade apud

    Dad Jnior, 1999: 65-6) vemos a

    reduo palpvel do hospitalocen-

    trismo psiquitrico e a implemen-

    tao de servios substitutivos em

    26 dos 27 Estados do Brasil (Alves,

    1999). Servios substitutivos, ou

    seja, servios que, mais do que al-

    ternativas, preconizam a substitui-

    o do modelo manicomial, notoria-

    mente iatrognico. Servios substi-

    tutivos pautados numa nova cidada-

    nia e numa nova tica, que superem

    a cidadania social e a tica poltica

    da responsabilidade liberal voltada

    apenas para a reciprocidade entre

    direitos e deveres, buscando uma ci-

    dadania que, somada subjetivida-

    de emancipatria, seja nova e esteja

    atenta s novas formas de excluso

    social (Santos, 1997a).

    Apontamos como possibilidade

    de ampliao das estratgias de

    enfrentamento em prol desta nova

    cidadania, as imagens desestabili-

    zadoras e as interrogaes pode-

    rosas de que fala Santos (1997b:

    117-8), que, alm de comprometi-

    das com a transformao do real,

    lanam um desafio que potencializa

    a indignao, o inconformismo e a

    ao qualitativamente emancipat-

    ria. As interrogaes poderosas

    so as que nos fazem refletir sobre

    realidade que poderia ser melhor.

    Imagens desestabilizadoras no nos

    falta no mbito da sade mental

    brasileira e as interrogaes pode-

    rosas, felizmente, esto em nosso

    meio, pelo menos, h duas dcadas.

    De tais imagens e interrogaes nas-

    ce o vrtice do trip: a realizao de

    uma nova prtica.

    Retomando as teses de Santos

    (1998: 37-58) sobre o paradigma

    emergente, podemos inferir que:

    todo o conhecimento cientficotransmitido nos rgos forma-

    dores, reproduzido e (re)criado

    nas instituies e entidades que

    atuam com o processo sade/

    doena mental, essencialmen-

    te um conhecimento cientfico-

    social e como tal, no neutro,

    resulta de escolhas cotidianas

    e prtica poltica;

    sendo o conhecimento local e to-tal, quando apreendemos e so-

    cializamos atravs das experi-

    ncias e vivncias de trabalhos

    em sade mental, estamos

    (re)criando esse conhecimento,

    e contribuindo para a mudana

    ou a reproduo do discurso

    competente3 sobre a sade, a

    doena e o doente mental;

    que todo o conhecimento tcni-co-cientfico e tico-poltico so-

    bre sade mental, com o qual

    atuamos, na cotidianidade de

    3 Confira CHAU, M. de S., 1989. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. 4 ed. So Paulo: Cortez.

    o motivo, a causa dos acontecimen-

    tos e trazem em si o trao de serem

    mais relevantes do que as prprias

    respostas como interrogar de

    modo que a interrogao seja mais

    partilhada do que as respostas que

    lhe forem dadas? As imagens

    desestabilizadoras so as que su-

    primem do presente a caracterstica

    de inculpvel, trazendo tona uma

    SERVIOS SUBSTITUTIVOS PAUTADOS NUMANOVA CIDADANIA E NUMA NOVA TICA, QUE

    SUPEREM A CIDADANIA SOCIAL E A TICAPOLTICA DA RESPONSABILIDADE LIBERALVOLTADA APENAS PARA A RECIPROCIDADE

    ENTRE DIREITOS E DEVERES

  • Desinstitucionalizao em Sade Mental: consideraes sobre o paradigma emergente

    Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001 11

    nossa prtica no mbito das ins-

    tituies de ensino, nos servi-

    os de sade e movimentos so-

    ciais, constituem-se como par-

    te do autoconhecimento de nos-

    sas subjetividades e das respec-

    tivas interlocues entre socie-

    dade e indivduo; entre a vida no

    mbito pblico e no privado; en-

    tre os sujeitos sociais e estrutu-

    ras de micro e macro poder pol-

    tico. Dessa forma, podemos in-

    tervir nesse processo, na pers-

    pectiva de melhor-lo, a partir de

    nossas contribuies cotidianas

    individuais e coletivas;

    considerando que todo o conhe-cimento cientfico visa consti-

    tuir-se em senso comum, a pers-

    pectiva de mudana do paradig-

    ma emergente na sade mental,

    caminha no sentido da pro-

    posta de uma viso do ser

    doente mental como sujeito,

    como cidado, respeitado em

    sua alteridade, abandonando a

    viso do doente como um ser

    perigoso, anormal, excludo. En-

    fim, contribuindo para a gera-

    o de um imaginrio coletivo

    onde o trem dos doidos de Bar-

    bacena, o beribri do So Joo

    de Deus, a imensido lotada do

    Juquery, e tantos outros emble-

    mas/realidades similares cruas

    ou maquiadas que conhecemos

    na assistncia ao sofrimento ps-

    quico, no sejam mais toleradas

    na sociedade brasileira.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    ALVES, D. S., 1999. O Ex tentando

    ver o futuro. Cadernos IPUB / Ins-

    tituto de Psiquiatria da UFRJ,

    NO 14: p.21-30.

    AMARANTE, P., 1999. Manicmio e

    loucura no final do sculo e do

    milnio. In: FERNANDES, M. I. A.;

    SCARCELLI, I. R. & COSTA, E. S. (Orgs.)

    Fim de sculo: ainda manic-

    mios? So Paulo: Instituto de

    Psicologia da Universidade de So

    Paulo, p. 47-53.

    CHAU, M. de S., 1989. Cultura e

    Democracia: o discurso competen-

    te e outras falas. 4 ed. So Paulo:

    Cortez, 309p.

    DAD JNIOR, N., 1999. Neoliberalismo,

    luta antimanicomial e ps-

    neoliberalismo. In: FERNANDES, M.

    I. A.; SCARCELLI, I. R. & COSTA, E. S.

    (Orgs.) Fim de sculo: ainda

    manicmios? So Paulo: Instituto

    de Psicologia da Universidade de

    So Paulo, p. 57-73.

    FERNANDES, M. I. A.; SCARCELLI, I. R. &

    COSTA, E. S. (Orgs.) Fim de sculo:

    ainda manicmios? So Paulo:

    Instituto de Psicologia da Univer-

    sidade de So Paulo, 208p.

    SADER, E., 1990. A transio no Brasil:

    da ditadura democracia? 6 ed.

    So Paulo: Atual, 92p. (Srie

    histria viva).

    SANTOS, B. de S., 1989. Introduo a

    uma cincia ps-moderna. Rio de

    Janeiro: Graal, 176p.

    SANTOS, B. de S., 1997a. Pela mo de

    Alice: o social e o poltico na ps-

    modernidade. 3 ed. So Paulo:

    Cortez, 348p.

    SANTOS, B. de S., 1997b. A queda do

    Angelus Novus: para alm da

    equao moderna entre razes e

    opes. NOVOS ESTUDOS

    CEBRAP. No 47: p.103124. Pu-

    blicaco quadrimestral do Centro

    Brasileiro de Anlises e Planeja-

    mento (CEBRAP).

    SANTOS, B. de S., 1998. Um discurso

    sobre as cincias. 10 ed. Porto:

    Afrontamento, 58p.

  • COSTA-ROSA, A. da, LUZIO, C. A. & YASUI, S.

    12 Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001

    ARTIGOS ORIGINAIS

    As Conferncias Nacionais de Sade Mental e as premissas doModo Psicossocial

    The National Conferences of Mental Health and the premises of the psychosocial way

    Ablio da Costa-Rosa1

    Cristina Amlia Luzio2

    Silvio Yasui3

    1 Professor assistente-doutor do

    Departamento de Psicologia Clnica da

    Universidade Estadual Paulista, campus

    Assis, doutor em Psicologia Clnica pela

    Universidade de So Paulo; psicanalista e

    analista institucional.

    e-mail: [email protected]

    2 Professora assistente do Departamento de

    Psicologia Clnica da Universidade

    Estadual Paulista, campus Assis,

    doutoranda em Sade Coletiva na

    Universidade de Campinas.

    e-mail: [email protected]

    3 Professor assistente do Departamento de

    Psicologia Evolutiva, Social e Escolar da

    Universidade Paulista, campus Assis,

    doutorando em Psicologia Social na

    Universidade de So Paulo.

    e-mail: [email protected]

    RESUMO

    O presente artigo pretende analisar as proposies bsicas e os marcos

    conceituais das duas conferncias nacionais de sade mental ocorridas at

    o momento, luz dos parmetros do Modo Psicossocial construdos por

    Costa-Rosa. Pretende-se, tambm, indicar a sua exeqibilidade nos

    dispositivos construdos pelas prticas de Ateno Psicossocial, que tm

    proposto superar a lgica manicomial, observar os avanos e retrocessos do

    processo de estratgia de hegemonia na sade mental. Finaliza apresentando

    alguns pontos para uma proposta de agenda de discusso.

    PALAVRAS-CHAVE: ateno psicossocial; polticas pblicas; conferncias nacionais

    de sade mental.

    ABSTRACT

    The present article intends to analyze the basic propositions and the

    conceptual marks of the two Mental Health National Conferences that have

    occurred up until now, under the light of the Psychosocial Way parameters

    built by Costa-Rosa. It is intended, also, to indicate its feasibility in devices

    built by Psychosocial Attention's practices, that intend to overcome the

    manicomial logic, to observe the progresses and setbacks of the hegemony

    strategy process in mental health. It concludes presenting a few points for a

    proposed discussion.

    KEY WORDS: psychosocial attention; public politics; national conferences of

    mental health.

  • As Conferncias Nacionais de Sade Mental e as Premissas do Modo Psicossocial

    Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 13

    INTRODUO

    Neste artigo retomamos os mar-

    cos conceituais e as proposies

    bsicas das duas conferncias na-

    cionais de sade mental ocorridas

    at o momento, a fim de efetuar-

    mos uma anlise luz dos par-

    metros do Modo Psicossocial (Cos-

    ta-Rosa, 2000:141-168). Pretende-

    mos, ao mesmo tempo, indicar a

    sua exeqibilidade nos dispositivos

    construdos pelas prticas de Aten-

    o Psicossocial que tm proposto

    superar a lgica manicomial.

    PRIMEIRA CONFERNCIA NACIONALDE SADE MENTAL (CNSM)

    Proposies gerais: concepo

    de sade, participao popular, ci-

    dadania e interesses dos usurios.

    Em junho de 1987, como des-

    dobramento da histrica 8a Confe-

    rncia Nacional de Sade de 1986,

    ocorreu, na cidade do Rio de Janei-

    ro, a I Conferncia Nacional de Sa-

    de Mental (CNSM).

    A Conferncia foi realizada em um

    clima de intensas discusses e o seu

    relatrio final ficou para a histria

    do movimento da reforma psiquitri-

    ca, que fez prevalecer suas teses em

    praticamente todos os temas.

    No tema I Economia, Socieda-

    de e Estado: impactos sobre a sa-

    de e doena mental, o relatrio ana-

    lisa o modelo econmico altamen-

    te concentrador brasileiro, apontan-

    do para a necessidade de se ampli-

    ar o conceito de sade, consideran-

    do em seus determinantes as con-

    dies materiais de vida. Destaca-

    mos o seguinte trecho:

    Situando a sade mental no

    bojo da luta de classes, podemos

    afirmar que seu papel tem consis-

    tido na classificao e excluso dos

    incapacitados para a produo

    (...) urgente pois o reconhecimen-

    to da funo de dominao dos tra-

    balhadores de sade mental e a sua

    nico de Sade, com garantia da

    participao popular. No plano as-

    sistencial, aponta para os mesmos

    princpios j consagrados, tais

    como reverso da tendncia hospi-

    talocntrica, com prioridade para o

    sistema extra-hospitalar.

    Por fim, no tema III Cidada-

    nia e Doena mental: direitos, de-

    veres e legislao, o relatrio rea-

    firma, tambm, teses do Movimen-

    to Sanitrio, sugerindo incluses

    no texto constitucional no que se

    refere ao direito sade e propon-

    do reformulaes da legislao or-

    dinria que trata especificamente

    da sade mental, ou seja: Cdigo

    Civil; Cdigo Penal e legislao sa-

    nitria; prope, ainda, modifica-

    es na legislao trabalhista,

    considerando a interface trabalho/

    sade mental.

    O texto do relatrio demonstra

    uma estreita vinculao entre o

    Movimento Sanitrio e o Movi-

    mento da Reforma Psiquitrica.

    Ambos tratam a sade como uma

    questo revolucionria, no eixo da

    luta pela transformao da socie-

    dade. Aponta, especificamente,

    aos trabalhadores de sade men-

    tal, a necessria reviso de seu

    papel de agentes de excluso e de

    dominao, para reorient-lo na

    direo de uma identidade com os

    interesses da classe trabalhadora.

    Esto presentes nesse documento

    oficial, no apenas propostas tc-

    nicas, mas argumentos e proposi-

    es que engajam o processo de

    reviso crtica, redefinindo seu pa-

    pel, reorientando a sua prtica e

    configurando a sua identidade ao

    lado das classes trabalhadoras.

    (BRASIL/MS, 1992:15)

    No tema II Reforma Sanitria

    e reorganizao da assistncia

    sade mental, o relatrio reafirma

    as teses do Movimento Sanitrio,

    introduzindo a especificidade da

    sade mental no contexto de suas

    diretrizes e princpios, apontando

    para a constituio de um Sistema

    EM JUNHO DE 1987, COMODESDOBRAMENTO DA HISTRICA

    8A CONFERNCIA NACIONAL DE SADEDE 1986, OCORREU, NA CIDADE DORIO DE JANEIRO, A I CONFERNCIA

    NACIONAL DE SADE MENTAL (CNSM)

  • COSTA-ROSA, A. da, LUZIO, C. A. & YASUI, S.

    14 Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001

    transformao de um setor espe-

    cifico da sade, a sade mental,

    em uma luta que transcende essa

    especificidade, vinculando-a

    luta pela transformao da socie-

    dade. Mas foi apenas mais um do-

    cumento oficial, talvez o primeiro

    que colocou a questo da sade

    mental nessa perspectiva da luta

    entre os interesses de classes.

    O Modo Psicossocial e a I ConfernciaNacional de Sade Mental

    Costa-Rosa (2000:151-164),

    conceitua o Modo Psicossocial de

    acordo com quatro parmetros fun-

    damentais, que podemos definir, su-

    cintamente, nos seguintes termos:

    em relao concepo do ob-jeto e dos meios de trabalho

    preconiza a implicao subje-

    tiva do usurio, o que pressu-

    pe a superao do modo de

    relao sujeito-objeto caracte-

    rstico do modelo mdico e das

    disciplinas especializadas que

    ainda se pautam pelas cinci-

    as positivas. Preconiza-se, ao

    mesmo tempo, a horizontali-

    zao das relaes interprofis-

    sionais como condio bsica

    para a horizontalizao das

    relaes com os usurios e a

    populao da rea;

    no que diz respeito s formasde organizao das relaes in-

    trainstitucionais preconiza-se a

    sua horizontalizao, com a

    distino obrigatria entre as

    esferas do poder decisrio, de

    origem poltica e as esferas do

    poder de coordenao, de natu-

    reza mais operativa. Esta reo-

    rientao das relaes intrains-

    titucionais vai na mesma dire-

    o das relaes especificamen-

    te interprofissionais e faz parte

    dos requisitos necessrios para

    o exerccio da subjetivao sin-

    gularizada que meta cara ao

    Modo Psicossocial;

    quanto forma como a insti-tuio se situa no espao geo-

    grfico, no imaginrio e no

    simblico o Modo Psicossocial

    preconiza antes de tudo a in-

    tegralidade das aes no terri-

    trio. Alm disso ao preconizar

    o posicionamento da institui-

    o como espao de interlocu-

    o, como instncia de supos-

    to saber e, ao fazer dela um

    espao de absoluta e intensa

    porosidade em relao ao ter-

    ritrio, praticamente subverte

    a prpria natureza da institui-

    o como dispositivo. A natu-

    reza da instituio como orga-

    nizao fica modificada e o lo-

    cal de execuo de suas prti-

    cas desloca-se do antigo inte-

    rior da instituio para tomar

    o prprio territrio como refe-

    rncia. A instituio, enquan-

    to equipamento, posiciona-se

    num foco em que se entrecru-

    zam as diferentes linhas de

    ao no territrio e para onde

    podem remeter-se as primeiras

    pulsaes da Demanda;

    destacando a tica dos efeitosdas prticas em sade mental,

    o Modo Psicossocial preconiza a

    superao da tica da adapta-

    o, que tem seu suporte nas

    aes de tratamento como rever-

    sibilidade dos problemas e na

    adequao do indivduo ao meio

    e do ego realidade. Ao propor

    suas aes na perspectiva de

    uma tica de duplo eixo, que

    considera por um lado a relao

    sujeito-desejo e por outro a di-

    menso carecimento-Ideais1,

    deixa firmada a meta da produ-

    1 Carecimento, por oposio ao conceito de carncia ou de necessidade, abarca uma dimenso do homem que inclui o desejo (como prope a

    psicanlise) e toda a abertura do homem para os Ideais, possveis ou no de imediato. Mas inclui tambm a abertura para a produo e usufruto

    de todos os bens da produo social, muito alm do preenchimento de necessidades, e que, muito mais que estas, correspondem especificida-

    de humana. Pode-se considerar que aqui esto includas tambm as criaes da Filosofia, da Arte, da Cincia, e at da Religio, mas no sem

    passar pela aspirao pertinente ao usufruto das comodidades socialmente produzidas no mais alto grau da sua evoluo histrica, tal como

    encontrado em Marx nos Manuscritos de 1844. Quanto aos Ideais, na mesma perspectiva do conceito de desejo, preciso sublinhar seu carter

    alm da dimeno teleolgica. (Costa-Rosa, 2000:162)

  • As Conferncias Nacionais de Sade Mental e as Premissas do Modo Psicossocial

    Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 15

    o de subjetividade singulari-

    zada, tanto nas relaes imedi-

    atas com o usurio propriamen-

    te dito, quanto nas relaes com

    toda a populao do territrio.

    Retornando s proposies da I

    CNSM, em primeiro lugar merece

    destaque a proposta de ampliao

    do conceito de sade, incluindo em

    seus determinantes as condies

    gerais de vida. Alm de sua sintonia

    com os princpios gerais da Refor-

    ma Sanitria, podemos indicar, ain-

    da, o alinhamento dessa preocupa-

    o com as do campo da Ateno

    Psicossocial, que insistem, de mo-

    dos diversos, na reformulao da

    concepo do objeto das prticas em

    sade mental. Essa ampliao da

    definio sem dvida um bom pon-

    to de partida para tal reformulao.

    Outra proposio que deve ser

    sublinhada diz respeito exigncia

    da participao popular na sade

    mental. Alm de uma proposta co-

    erente com a tica da participao

    geral do cidado na vida social,

    fundamental percebermos sua coe-

    rncia com a tica da Ateno Psi-

    cossocial. Uma srie de evidncias

    apontam as relaes diretas exis-

    tentes entre as formas da organi-

    zao intrainstitucional e as formas

    como essa instituio (atravs de

    seus agentes) se dirige e se relacio-

    na com a clientela e a populao de

    sua rea de ao. Se nas prticas

    da Ateno Psicossocial a exign-

    cia da superao do paradigma su-

    jeito-objeto um objetivo funda-

    mental, parece mais do que justifi-

    cado que a participao popular nas

    instituies seja elevada catego-

    ria de dispositivo necessrio, no

    apenas contingente. Por outro lado,

    o Modo Psicossocial prope que a

    tica da implicao subjetiva e so-

    ciocultural dos usurios das insti-

    tuies de sade mental nos con-

    flitos e contradies que os atraves-

    sam, fazendo-os procurarem ajuda,

    seja um componente essencial da

    Ateno. Essa implicao do sujei-

    excluso e dominao, ao mesmo

    tempo propondo sua reorientao

    na direo dos interesses da classe

    trabalhadora. Esta mais uma pro-

    posio que ultrapassa os interes-

    ses tico-polticos globais. Sua tra-

    duo nos pressupostos do Modo

    Psicossocial exige um percurso um

    pouco mais complexo. Antes de

    tudo preciso firmarmos uma con-

    ceituao de Sociedade como arti-

    culao de interesses contraditri-

    os, num processo poltico-social que

    Gramsci denominou Processo de

    Estratgia de Hegemonia (PEH). A

    seguir temos de recorrer a uma das

    proposies importantes do Modo

    Psicossocial, que conceitua as pr-

    ticas em sade mental neste mo-

    mento histrico, como conjunto ar-

    ticulado (nos mesmos termos do

    PEH), podendo a designar-se dois

    plos bem configurados e com l-

    gicas contraditrias: o Modo Asilar

    e o Modo Psicossocial. (Costa-Rosa,

    2000:141-168).

    Uma vez colocados na situao

    de trabalhadores de sade mental

    no h como escapar ao alinhamen-

    to com uma dessas lgicas. fcil

    demonstrar que a lgica asilar

    perfeitamente congruente com a do

    Modo Capitalista de Produo, na

    qual os interesses dos usurios so

    inequivocamente subordinados aos

    interesses do Hospital. A proposi-

    o de se alinhar com os interesses

    dos usurios , portanto, uma exi-

    gncia inadivel dos que pretendem

    fazer das prticas em sade men-

    to na sua situao especfica nun-

    ca poderia ser realizada se, no con-

    texto mais amplo da sua existn-

    cia, o exerccio dessa implicao lhe

    fosse negado. No Modo Psicossoci-

    al o engajamento subjetivo e socio-

    cultural so indissociveis da defi-

    nio de sade mental.

    Um terceiro aspecto, que opor-

    tuno sublinhar, refere-se concla-

    mao dos trabalhadores da rea a

    reverem os riscos, ou mesmo, a efe-

    tivao do seu papel de agentes de

    RETORNANDO S PROPOSIESDA I CNSM, EM PRIMEIRO LUGARMERECE DESTAQUE A PROPOSTA DE

    AMPLIAO DO CONCEITO DE SADE,INCLUINDO EM SEUS DETERMINANTES

    AS CONDIES GERAIS DE VIDA

  • COSTA-ROSA, A. da, LUZIO, C. A. & YASUI, S.

    16 Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001

    tal dispositivos alternativos ao

    Modo Asilar; ou seja, prticas ca-

    pazes da produo de subjetivida-

    de singularizada, em que os lucros

    principais das aes de produo de

    sade sejam apropriados pelos usu-

    rios das instituies, como plo

    socialmente subordinado.

    Observamos, de modo geral, como

    parece justo esperar por tratar-se da

    I CNSM, uma nfase em proposies

    na esfera poltico-ideolgica e no

    mbito jurdico. Pode-se notar clara-

    mente, agora, como ali se tratava de

    produzir bases para as propostas e

    experincias prticas que viriam, na

    seqncia, exercitar outras lgicas

    contrrias asilar. Deve-se registrar,

    ainda, que a proposio antimanico-

    mial, que vai atravessar os passos de

    boa parte das prticas da Reforma

    Psiquitrica, at os dias de hoje, j

    se apresenta a bem clara e plena-

    mente afirmada.

    A SEGUNDA CONFERNCIA NACIONALDE SADE MENTAL

    Proposies gerais: Ateno IntegralTerritorializada, direitos e teraputica cidad

    Quatro anos depois, em dezem-

    bro de 1992, foi realizada a II Con-

    ferncia Nacional de Sade Mental

    (II CNSM) com uma organizao di-

    ferente da anterior. Precedida de

    etapas municipais, regionais e es-

    taduais, que contaram com o envol-

    vimento direto de cerca de vinte mil

    pessoas, a etapa nacional contou

    com a participao de quinhentos

    delegados eleitos nas conferncias

    estaduais, com composio parit-

    ria dos dois segmentos: usurios e

    sociedade civil, governo e prestado-

    res de servios.

    Diversos pontos do relatrio,

    aprovados na plenria final, tive-

    ram a defesa emocionada e firme

    dos usurios.

    Foram discutidos trs grandes

    temas: crise, democracia e reforma

    viso integrada das vrias dimenses

    humanas da vida do indivduo, em

    diferentes e mltiplos mbitos de in-

    terveno (educativo, assistencial e de

    reabilitao). (Brasil-MS,1994:13)

    Reafirma os princpios da uni-

    versalidade, integralidade, eqida-

    de, descentralizao, participao

    popular e municipalizao, propon-

    do a substituio do modelo hospi-

    talocntrico por uma rede de servi-

    os, diversificada e qualificada, e a

    intensificao da desospitalizao

    atravs dos programas pblicos de

    lares e penses protegidas. Prope,

    tambm, a articulao com os recur-

    sos existentes na comunidade e a

    necessria transformao das rela-

    es cotidianas entre trabalhadores

    de sade mental, usurios, famlias,

    comunidade e servios, em busca da

    desinstitucionalizao, bem como da

    humanizao das relaes no campo

    da sade mental. (Idem:16)

    Chama a ateno para uma ne-

    cessria construo coletiva de pr-

    ticas e saberes cotidianos que con-

    sidere: o trabalho em equipe, ou-

    tros campos de conhecimento e os

    saberes populares. Por fim, desta-

    ca a relao entre cidadania, Esta-

    do e Sociedade, propondo estimu-

    lar a organizao dos cidados em

    associaes comunitrias, altera-

    es na legislao e aes no cam-

    po da informao e educao.

    Em sua segunda parte, o relat-

    rio apresenta inmeras propostas

    relativas ateno em sade men-

    psiquitrica; modelos de ateno

    em sade mental; direitos e cida-

    dania. O relatrio final subdivide-

    se em trs partes: marcos conceitu-

    ais; ateno sade mental e mu-

    nicipalizao; direitos e legislao.

    Em sua primeira parte, o relat-

    rio aponta a ateno integral e cida-

    dania como conceitos direcionado-

    res das deliberaes da Conferncia.

    A ateno integral dever propor

    um conjunto de dispositivos sanitri-

    os e socioculturais que partam de uma

    EM DEZEMBRO DE 1992,FOI REALIZADA A II CONFERNCIANACIONAL DE SADE MENTAL

    (II CNSM) COM UMA ORGANIZAODIFERENTE DA ANTERIOR

  • As Conferncias Nacionais de Sade Mental e as Premissas do Modo Psicossocial

    Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 17

    tal e municipalizao. No captulo

    sobre as recomendaes gerais, alm

    de reafirmar o princpio da munici-

    palizao, acrescentou a proposta de

    utilizao dos conceitos de territrio

    e responsabilidade como dispositivos

    para uma ruptura com o modelo hos-

    pitalocntrico. Finaliza essa segun-

    da parte com propostas para a capa-

    citao dos trabalhadores de sade,

    sobre as relaes no trabalho em ter-

    mos de organizao e conquista de

    direitos, e sobre a promoo de pes-

    quisas voltadas para a investigao

    epidemiolgica e scio-antropolgi-

    cas e para a avaliao da rede de

    ateno em sade mental.

    A terceira parte do relatrio apre-

    senta propostas referentes ao tema

    Direitos e Legislao. So cinco ca-

    ptulos abrangendo os seguintes te-

    mas: questes gerais sobre uma ne-

    cessria reviso legal; direitos civis

    e cidadania; direitos trabalhistas;

    drogas e legislao; direitos dos usu-

    rios. Talvez tenha sido a parte do

    relatrio na qual os usurios parti-

    ciparam de forma mais ativa, espe-

    cialmente na plenria final.

    Realizada em circunstncias

    histricas distintas da I CNSM, cujo

    relatrio apresentava diversas pro-

    posies de carter poltico, o texto

    da II CNSM no foi to contunden-

    te na crtica ao modelo econmico

    nem ao momento poltico que se

    estava vivendo. Embora aquelas

    questes estivessem como pano de

    fundo, o relatrio era muito mais

    extenso e especfico nas questes

    da sade mental.

    A II CNSM foi realizada em um

    momento em que diversas experi-

    ncias j estavam consolidadas e

    espalhando-se pelo pas;2 j exis-

    tia uma lei, aprovada na Cmara

    dos Deputados e tramitando no Se-

    nado, e leis estaduais aprovadas ou

    em tramitao; j existiam dispo-

    sitivos institucionais (portarias mi-

    O Modo Psicossocial e a II ConfernciaNacional de Sade Mental.

    Podemos considerar como de

    significativa relevncia o fato de

    que os marcos conceituais do RE-

    LATRIO DA SEGUNDA CONFE-

    RNCIA NACIONAL DE SADE

    MENTAL, realizada em 1992, este-

    jam perfeitamente em sintonia com

    as premissas gerais do Modo Psi-

    cossocial para os tratamentos ps-

    quicos na Sade Coletiva.

    Ainda que se possa considerar

    que tais marcos conceituais este-

    jam muito mais na perspectiva de

    transformaes na esfera poltico-

    ideolgica, eles podem ser tradu-

    zidos em dispositivos terico-pr-

    ticos, capazes de fazerem de pre-

    ceitos gerais, verdadeiros instru-

    mentos de transformao das pr-

    ticas cotidianas nas instituies

    de sade mental, sobretudo das

    relaes destas com os usurios e

    com a populao das suas reas

    de referncia.

    Seno vejamos:

    1. I. ATENO INTEGRAL E CI-

    DADANIA so conceitos direciona-

    dores das deliberaes da II Confe-

    rncia Nacional de Sade Mental.

    (Brasil/MS,1994:11)

    Definir a integralidade da con-

    cepo e do exerccio dos programas

    e aes implica operar uma srie de

    2 Como exemplo, o Centro de Ateno Psicossocial (CAPS) Luiz Cerqueira j era uma realidade consolidada, o Programa de Sade Mental de

    Santos j era reconhecido internacionalmente como experincia modelar, inclusive pela Organizao Pan-americana de Sade (OPAS).

    nisteriais) que possibilitavam a im-

    plantao de novos servios e au-

    mentavam a fiscalizao dos hos-

    pitais; j existiam diversas associ-

    aes de usurios atuando ativa-

    mente pelo pas. Ou seja, estava em

    curso um processo de transforma-

    o da sade mental no campo te-

    rico, no campo assistencial, no cam-

    po jurdico e no campo cultural.

    ESTAVA EM CURSO UM PROCESSODE TRANSFORMAO DA SADE MENTAL

    NO CAMPO TERICO, NO CAMPOASSISTENCIAL, NO CAMPO JURDICO

    E NO CAMPO CULTURAL

  • COSTA-ROSA, A. da, LUZIO, C. A. & YASUI, S.

    18 Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001

    transformaes no modo de traba-

    lho. Estas transformaes que so

    condio para o exerccio de aes

    integrais, e ao mesmo tempo cons-

    tituem a base para a efetivao de

    um princpio de cidadania nas pr-

    ticas dos trabalhadores de sade

    mental que seja coerente com a

    meta da singularizao.

    Na perspectiva do Modo Psicos-

    social de fundamental importn-

    cia que se tenha proposto a aten-

    o integral e a cidadania como

    conceitos direcionadores, mas no

    se pode perder de vista, por outro

    lado, o conjunto dos passos concre-

    tos que ainda precisam ser dados

    para estar no exerccio efetivo de

    aes integrais em Sade e de cida-

    dania singularizada. Tambm no

    podemos esquecer que a integrali-

    dade, supondo o conceito de Terri-

    trio, deve ocorrer simultaneamen-

    te em extenso e profundidade, su-

    perando as mazelas da Ateno es-

    tratificada por nveis (primrio, se-

    cundrio e tercirio).

    2. II. A democratizao do Es-

    tado com o controle da sociedade ci-

    vil fundamento do direito cida-

    dania e da transformao da legis-

    lao de sade mental. (idem:11)

    Esta diretriz, colocada em m-

    bito de anlise poltica da Forma-

    o Social global muito pertinen-

    te, porm necessrio aproxim-

    la das nossas esferas cotidianas

    de ao. Desse modo, ao preconi-

    zar a democratizao das institui-

    es e de suas relaes com os

    usurios e com a populao, e a

    partir da condio de trabalhado-

    res da Sade, cuida-se da aplica-

    o daquela diretriz. Uma das

    maneiras mais eficazes de cumprir,

    nesta esfera de atuao, a diretriz

    de controle social, pela sociedade

    civil, pondo em prtica disposi-

    tivos como os conselhos gestores

    de unidades de sade e como os

    conselhos comunitrios de sa-

    3. III. O processo sade/doena

    mental dever ser entendido a par-

    tir de uma perspectiva contextuali-

    zada, onde qualidade e modo de vida

    so determinantes para a compre-

    enso do sujeito, sendo de impor-

    tncia fundamental vincular o con-

    ceito de sade ao exerccio de cida-

    dania, respeitando-se as diferenas

    e as diversidades. (idem, idem)

    3.1. Contextualizar o processo

    sade/doena exige vrias opera-

    es articuladas:

    Primeira: o Modo Psicossocial

    preconiza uma definio de sade

    numa perspectiva que a contextua-

    lize em relao a uma concepo de

    sociedade, entendida como conjun-

    to de interesses contraditrios arti-

    culados, possveis de serem descri-

    tos e compreendidos atravs do con-

    ceito de Processo de Estratgia de

    Hegemonia (PEH). Essa contextua-

    lizao, nos termos do PEH, obriga

    a considerar a prpria luta por sa-

    de, tanto entendida como estado

    das condies de vida, quanto en-

    tendida como reivindicao de cui-

    dados de sade, como componente

    da prpria definio de sade.

    Segunda: no Modo Psicossocial

    define-se a especificidade da sade

    mental, de tal modo que se visualiza

    a participao da dimenso sociocul-

    tural como intrnseca ao prprio pro-

    cesso de subjetivao. Desse modo a

    prpria forma de atravessamento da

    dimenso scio-simblica pode ser

    parte constitutiva dos problemas que

    de, alis, instrumentos j garan-

    tidos na constituio do pas. Alm

    disso devemos lembrar que as

    metas de livre trnsito dos usu-

    rios pelas instituies e de sua

    participao direta na instituio,

    preconizadas pelo Modo Psicosso-

    cial, podem ser implementadas cri-

    ando condies para que os con-

    selhos e comisses de usurios e

    populao participem em esferas

    da instituio relacionadas com o

    poder decisrio.

    NA PERSPECTIVA DO MODOPSICOSSOCIAL DE FUNDAMENTAL

    IMPORTNCIA QUE SE TENHAPROPOSTO A ATENO INTEGRALE A CIDADANIA COMO CONCEITOS

    DIRECIONADORES

  • As Conferncias Nacionais de Sade Mental e as Premissas do Modo Psicossocial

    Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 19

    tendem a apresentar-se como tpicos

    ou preponderantes numa determina-

    da conjuntura histrico-social.

    Terceira, o Modo Psicossocial

    inclui em sua caracterizao a

    considerao da especificidade da

    sade mental com a incluso da

    prpria noo de crise como seu

    componente estrutural. Ou seja,

    dada a concepo de sade que

    inclui em sua definio a partici-

    pao ativa do homem na busca

    de melhores condies de vida e

    de melhor atendimento sade, e

    dada a circunstncia histrica de

    que a sociedade liberal - ainda

    mais gravemente nos contextos

    chamados de capitalismos depen-

    dentes - conjuno de interes-

    ses contraditrios, portanto um

    processo que envolve luta e confli-

    to entre esses interesses, ento s

    possvel conceber a sade men-

    tal como um certo modo do posici-

    onamento subjetivo e sociocultu-

    ral dos indivduos na conjuntura

    conflitiva particular que os atra-

    vessa e pela qual so atravessados.

    3.2. Vincular o conceito de sade

    ao exerccio de cidadania, no mbito

    das prticas em Sade, possvel

    apenas em decorrncia da prpria

    contextualizao da definio de sa-

    de nos termos acima propostos. Nes-

    te sentido tambm importante no

    perder de vista algumas nuances in-

    cludas na questo, que podem ser

    capciosas se tomadas em sentido

    muito estrito ou muito genrico.

    Dizer que o exerccio de cidada-

    nia resolutivo e preventivo de

    problemas psquicos e mentais

    pode ser muito pertinente, porm

    isto est longe de significar que

    preveno em sade mental e tra-

    tamento psquico em Sade Cole-

    tiva possam ser reduzidos ao exer-

    ccio de aes de cidadania, qual-

    quer que seja a definio em que

    se tome esta ltima.

    Disso resulta que o mais impor-

    tante especificar quais so as con-

    prisma, no ignoramos as dram-

    ticas condies de vida dos usuri-

    os do hospital psiquitrico, cuja re-

    vogao h muito tarda.

    4. IV. A vida exige uma aborda-

    gem abrangente no campo da sa-

    de mental, capaz de romper com a

    usual e ainda hegemnica concep-

    o compartimentalizada do sujei-

    to, com as dissociaes mente/cor-

    po e trabalho/prazer .... Refletida

    em: a) Mudana no modo de pen-

    sar a pessoa com transtornos men-

    tais em sua existncia-sofrimento,

    e no apenas a partir do seu diag-

    nstico; b) Diversificao das re-

    ferncias conceituais e operacionais,

    indo alm das fronteiras delimita-

    das pelas profisses clssicas em

    sade mental; c) uma tica da

    autonomia e singularizao que

    rompa com o conjunto de mecanis-

    mos institucionais e tcnicos em

    Sade, que tm produzido, nos lti-

    mos sculos, subjetividades proscri-

    tas e prescritas. (idem:11-12)

    Este talvez seja, entre todos os

    outros, o marco conceitual mais

    complexo. Isto se deve ao fato de a

    se mesclarem, como veremos, as-

    pectos terico-tcnicos e ticos:

    4.1. Para mudarmos nossa ati-

    tude asilar, reformista e tecnicista

    diante da pessoa com transtornos

    psquicos ou mentais, e consider-

    la a partir de sua existncia-sofri-

    mento, faz-se necessrio especificar

    dies das prprias prticas em

    sade mental, capazes de criar os

    meios de exerccio de cidadania nas

    relaes das instituies e dos tra-

    balhadores com os usurios e a po-

    pulao, e, ao mesmo tempo, mos-

    trar como essas condies podem

    estar em sintonia com a tica da ci-

    dadania singularizada e da produ-

    o de subjetividade singularizada,

    explicitadas no Modo Psicossocial.

    importante sublinhar, ainda, que,

    ao tomarmos a questo por esse

    IMPORTANTE SUBLINHAR, AINDA,QUE, AO TOMARMOS A QUESTO

    POR ESSE PRISMA, NO IGNORAMOSAS DRAMTICAS CONDIES DE VIDA

    DOS USURIOS DO HOSPITAL PSIQUITRICO,CUJA REVOGAO H MUITO TARDA

  • COSTA-ROSA, A. da, LUZIO, C. A. & YASUI, S.

    20 Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001

    uma concepo de subjetividade e

    de sade psquica que deixem cla-

    ro qual o lugar e o estatuto das

    crises e dos diferentes desencadea-

    mentos problemticos.

    necessrio dar s crises um

    lugar estrutural (depois de extirpa-

    das de sua poro indesejvel e evi-

    tvel). As crises s tero uma aco-

    lhida como efeitos estruturais e,

    portanto, tambm estruturantes, se

    elas forem concebidas como inte-

    grantes do modo de o sujeito se po-

    sicionar em relao s conjunturas

    conflitivas (subjetivas e sociocultu-

    rais) que os atravessam. Apenas

    numa concepo de sade psquica

    assim formulada ser possvel con-

    siderar seriamente os indivduos

    como existncia-sofrimento.

    Tambm j sabemos que esta

    diretriz da II Conferncia Nacional

    de Sade Mental sai explicitamen-

    te do modelo italiano. Sobre isso,

    Rotelli et al. (1990:28), afirmam

    que para considerar, de fato, o in-

    divduo como existncia-sofrimen-

    to preciso comear a desmontar

    a relao problema-soluo, renun-

    ciando a perseguir aquela soluo

    racional (tendencialmente tima)

    que no caso a normalidade ple-

    namente restabelecida.

    O modelo italiano, do qual tam-

    bm tributrio o Modo Psicosso-

    cial, proclama que

    o mal da Psiquiatria est em haver

    separado um objeto fictcio, a doen-

    a, da existncia global complexa e

    concreta dos pacientes e do corpo so-

    cial. Sobre essa separao artificial

    se construiu o conjunto de aparatos

    cientficos, legislativos, administra-

    tivos (precisamente a instituio),

    todos referidos doena. este con-

    junto que se pretende desmontar (de-

    sinstitucionalizar) para retomar o

    contato com aquela existncia dos

    pacientes, enquanto existncia-sofri-

    mento. (idem, idem).

    O problema no cura (a vida

    produtiva) mas a produo de vida

    sentir o sofrimento do paciente e

    que, ao mesmo tempo, se transforme

    sua vida concreta e cotidiana, que ali-

    menta esse sofrimento (...) Por isso a

    festa, a comunidade difusa, a recon-

    verso contnua dos recursos insti-

    tucionais, e por isso solidariedade e

    afetividade se tornaro momentos e

    objetivos centrais... ( idem:30).

    Esta diretriz est perfeitamen-

    te em sintonia com o que, no Modo

    Psicossocial, se define em termos de

    implicao subjetiva e sociocultu-

    ral dos indivduos que recorrem s

    instituies de sade mental.

    4.2. Para superarmos as refern-

    cias conceituais e operacionais,

    para alm das profisses clssicas,

    sero necessrias pelo menos duas

    operaes articuladas.

    Primeira, ser preciso rever e

    modificar a concepo de sade e

    doena e dos meios de tratamento

    decorrentes dos postulados psiqui-

    tricos, como detentores exclusivos

    ou preponderantes do saber sobre

    o psquico e o humano neste con-

    texto. Isso s poder ser feito rela-

    tivizando a importncia das con-

    tribuies desse campo de saber,

    agregando-lhe de modo bastante

    radical (no apenas como acess-

    rios) uma srie de conceitos e tc-

    nicas geradas no campo da Psica-

    nlise e do Materialismo Histri-

    co, alm de contribuies da Filo-

    sofia (filosofia da Diferena), da

    Arte e da Esttica.

    e de sentido, de sociabilidade, a uti-

    lizao das formas (dos espaos co-

    letivos) de convivncia dispersa

    (idem:30).

    Assim, o modelo italiano assen-

    ta-se em uma redefenio do tra-

    balho teraputico voltado para a re-

    constituio de pessoas enquanto

    pessoas que sofrem, como sujeitos

    (idem:33). Fala-se menos em cura

    do que em cuidado.

    Cuidar significa ...fazer com que

    se transformem os modos de viver e

    O MAL DA PSIQUIATRIA ESTEM HAVER SEPARADO UM OBJETO

    FICTCIO, A DOENA, DA EXISTNCIAGLOBAL COMPLEXA E CONCRETA DOS

    PACIENTES E DO CORPO SOCIAL

  • As Conferncias Nacionais de Sade Mental e as Premissas do Modo Psicossocial

    Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 21

    A segunda operao dever con-

    sistir numa crtica diviso do tra-

    balho tal qual ela est em ao des-

    de o primeiro momento em que se

    congregaram diferentes disciplinas

    no campo do saber e das prticas

    em sade mental. Essa crtica ter

    que passar pela demonstrao

    (como via para a superao) de que

    o modo da diviso do trabalho a

    atuante o mesmo que vige no con-

    texto da produo em geral e que

    tem sido chamado de modo taylo-

    rizado ou linha de montagem,

    (Costa-Rosa, 1987:222-252).

    Nesta linha de raciocnio pos-

    svel demonstrar que essa frag-

    mentao do cliente e da prpria

    subjetividade so os meios atravs

    dos quais se reproduzem as rela-

    es sociais dominantes no contex-

    to social (as relaes sociais de

    produo e de poder). Ao mesmo

    tempo ser possvel demonstrar

    que essas relaes sociais domi-

    nantes (j conhecidas nossas com

    as seguintes fisionomias: como

    trabalho intelectual e decisrio

    versus trabalho de execuo, e sob

    a forma da prpria ciso fragmen-

    tadora do processo de trabalho, por

    exemplo, em termos da separao

    entre momento diagnstico e mo-

    mento teraputico, mas no apenas)

    so alguns dos modos de expropria-

    o, tanto de trabalhadores quanto

    de usurios, do excedente precioso,

    que o equivalente da mais-valia

    no contexto das prticas em sade

    mental. Ou seja, onde h muita re-

    produo h pouca produo; onde

    h subjetividade serializada falta

    subjetividade singularizada.

    Em suma, esta segunda opera-

    o inclui a superao terico-tc-

    nica e ideolgica do modelo taylo-

    rista no processo de trabalho na

    sade mental, e sua substituio

    por outro modo capaz de permitir

    que o saldo mais precioso do pro-

    cesso de trabalho ( a implicao

    subjetiva e a singularizao) seja

    apropriado pelos trabalhadores e

    ciais em sintonia com o agencia-

    mento dos interesses sociais subor-

    dinados (intersubjetividade hori-

    zontal singularizada).

    4.3. Para sustentar na prtica

    uma tica da autonomia e da sin-

    gularizao tambm ser necess-

    rio realizar no mnimo outras duas

    operaes conjugadas.

    A primeira diz respeito auto-

    nomia. A autonomia dos usurios

    s pode estar associada autono-

    mia dos trabalhadores. A autono-

    mia dos trabalhadores e dos usu-

    rios por sua vez associa-se supe-

    rao dos modos de existncia e

    funcionamento das instituies que

    so caractersticas do Modo Asilar.

    A organizao da instituio de

    sade mental como dispositivo se-

    gundo a mesma lgica das institui-

    es tpicas do Modo Capitalista de

    Produo (MCP) produz uma srie

    de efeitos refletidos na sua produ-

    o, que so desastrosos e s ve-

    zes letais. H muito que teorizar e

    transformar a fim de driblar esse

    intermedirio necessrio (j que

    no d para escapar neste momen-

    to histrico da intermediao da

    instituio nas prticas de Ateno)

    da relao dos trabalhadores de

    sade mental e dos usurios. Mas

    o melhor comeo ser, sem dvida,

    reconhecer essa intermediao e

    desvendar-lhe a anatomia para des-

    cobrir as operaes que so neces-

    srias para fazer esse intermedi-

    rio trabalhar a favor da tica que

    pelos usurios e posto a seu servi-

    o ao contrrio do que acontece

    no Modo Asilar, em que o inter-

    medirio, dono dos meios de pro-

    duo e das decises do qu e como

    produzir, quem dele se apropria.

    Convm no perdermos de vista que

    a natureza desse excedente muda

    conforme o seu destinatrio. Num

    caso d-se como reproduo das

    relaes sociais dominantes (sub-

    jetividade capitalista), no outro d-

    se como recriao de relaes so-

    A ORGANIZAO DA INSTITUIO DE SADEMENTAL COMO DISPOSITIVO SEGUNDO A

    MESMA LGICA DAS INSTITUIES TPICASDO MODO CAPITALISTA DE PRODUO

    (MCP) PRODUZ UMA SRIE DE EFEITOSREFLETIDOS NA SUA PRODUO, QUE SO

    DESASTROSOS E S VEZES LETAIS

  • COSTA-ROSA, A. da, LUZIO, C. A. & YASUI, S.

    22 Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001

    preconizamos para nossas prticas

    de Ateno. Quanto a este aspecto

    tambm propomos retomar as di-

    retrizes de Modo Psicossocial em

    relao instituio como disposi-

    tivo, e quanto ao modo de ela se

    situar em relao clientela e ao

    territrio que lhe correspondem.

    A segunda operao a respeito

    da singularizao inclui justamen-

    te a nossa capacidade de criar uma

    mnima sintonia (ainda que com

    concesses tticas inevitveis) en-

    tre a forma de conceber e atuar as

    definies de sade e doena e dos

    meios de tratamento; a forma das

    relaes intrainstitucionais; a for-

    ma da relao da Instituio como

    equipamento com seus usurios e

    com o territrio; e, finalmente,

    como se concebe o estatuto de nos-

    sas aes em termos de performan-

    ce e de tica.

    A meta da singularizao, no

    Modo s poder ser almejada por

    uma concepo do objeto e dos

    meios, e da relao dos dois, que

    seja capaz de atender especifici-

    dade da subjetividade humana, e

    que inclua a prpria ao e autode-

    terminao como constitutivas do

    homem. Ningum trabalhar na

    subjetividade revelia do sujeito,

    a no ser para a produo de efei-

    tos de destituio subjetiva.

    Para ser almejada e alcanada, a

    singularizao depender de que a

    forma das relaes sociais e huma-

    nas na instituio parta da horizon-

    talizao como meta e, em alguma

    medida, seja vivida como exerccio.

    Sem isto no h a menor plausibili-

    dade em propor a implicao subje-

    tiva e sociocultural do usurio e do

    trabalhador; sem estas parece-nos

    que no pode haver teraputica na

    perspectiva da singularizao.

    Apenas poder ser meta realis-

    ta, na medida em que a instituio

    seja capaz de desfazer seu imagi-

    nrio repressivo e segregador (pa-

    trimnio que neste momento hist-

    rico no exclusividade do Hospi-

    so aos usurios e da populao do

    territrio a todos os espaos insti-

    tucionais; criar modelos de recep-

    o e de escuta das primeiras de-

    mandas, que sejam capazes de der-

    rogar os atuais balces e filas de

    espera, construindo uma relao di-

    reta que permita instituio situ-

    ar-se no imaginrio e no simblico

    como sujeito-suposto-saber, ou

    seja, que lhe permita funcionar como

    primeiro interlocutor e at como te-

    rapeuta, se for o caso, ali onde a ins-

    tituio est acostumada a pensar e

    agir apenas como natureza morta

    ou, na melhor das hipteses, como

    suporte das relaes sociais da sua

    produo ali atualizadas.

    Finalmente, a singularizao s

    poder ser almejada como meta ti-

    ca realista se formos capazes de

    superar o modo da tica vigente

    nas prticas atuais do Modo Asi-

    lar. A atitude tica de uma prtica

    em sade mental pode ser decifra-

    da a partir de uma anlise de seus

    efeitos de tratamento e cura e tam-

    bm atravs das finalidades socio-

    culturais para que concorrem es-

    ses efeitos. A tica da singulariza-

    o ter que superar os modelos

    funcionalistas das prticas que tra-

    balham nos eixos da adequao do

    indivduo ao meio e do ego reali-

    dade, e no eixo da relao entre

    carncias e suprimentos da mais

    variada natureza.

    Essa superao s poder ser

    alcanada na perspectiva de uma

    prtica que seja capaz de propor,

    tal Psiquitrico). Isto, por sua vez,

    s ser possvel se os seus agentes

    forem capazes de fazer prevalecer

    aes que tendam a transform-la

    em espao privilegiado de interlo-

    cuo para questes subjetivas e

    socioculturais. Para isso ser neces-

    srio que tais agentes sejam capa-

    zes de rever, de forma drstica, sua

    representao da sintaxe e da se-

    mntica em termos lingsticos e

    em termos dos conjuntos do arqui-

    tetnico e do mobilirio; abrir aces-

    A ATITUDE TICA DE UMA PRTICA EMSADE MENTAL PODE SER DECIFRADA A

    PARTIR DE UMA ANLISE DE SEUS EFEITOSDE TRATAMENTO E CURA E TAMBM

    ATRAVS DAS FINALIDADES SOCIOCULTURAISPARA QUE CONCORREM ESSES EFEITOS

  • As Conferncias Nacionais de Sade Mental e as Premissas do Modo Psicossocial

    Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 23

    como efeito principal das suas

    aes de tratamento, a implicao

    subjetiva como meta radical, na re-

    lao do sujeito com o desejo (por

    oposio ao ego-realidade) e na re-

    lao carecimento-Ideais (por opo-

    sio carncia-suprimento); dese-

    jo e carecimento considerados como

    o que mais essencialmente define

    a especificidade do homem.

    O PROCESSO DE ESTRATGIADE HEGEMONIA NA SADE MENTAL:

    AVANOS E RETROCESSOS

    Muitas das propostas apresen-

    tadas nas duas Conferncias se con-

    cretizaram, como, por exemplo, a

    criao de lei federal, leis estadu-

    ais e municipais, que incorporaram

    as propostas apresentadas no rela-

    trio e a criao da Comisso Naci-

    onal de Reforma Psiquitrica que

    teve, posteriormente, a sua deno-

    minao mudada para Comisso

    Nacional de Sade Mental. Nesse

    sentido, o relatrio da II CNSM

    apontou para a consolidao das

    conquistas e para onde avanar. Os

    avanos, entretanto, parecem ter

    sido mais difceis num dos eixos

    centrais e mais importantes da luta:

    a Lei Paulo Delgado.

    A II CNSM consolidou tambm

    a conquista dos espaos institucio-

    nais. A posio oficial do aparato

    estatal estava alicerada pelas di-

    retrizes propostas e pelos conceitos

    do Movimento da Reforma Psiqui-

    trica. Utilizando-se da mesma es-

    tratgia do Movimento Sanitrio, a

    Reforma Psiquitrica instituciona-

    lizou-se enquanto poltica oficial (se

    que, pelo menos desde os anos

    setenta, em algum momento deixou

    de ser poltica oficial, ao menos no

    discurso). Na guerra de posies

    no interior da construo de um

    processo de hegemonia, o Movi-

    mento da Reforma Psiquitrica con-

    quistou territrios no interior do

    aparelho estatal.

    Primeira inflexo: as crticas ao

    manicmio e sua lgica. Esta

    identificada a do Estado autorit-

    rio naquele momento em uma de

    suas faces mais evidentes; nesse

    momento tambm o modelo econ-

    mico excludente colocado em pa-

    ralelo com o paradigma excludente

    da sade mental e vice-versa. At

    este momento, as lutas contra o

    hospital psiquitrico se mesclam

    inteiramente com as lutas sociais,

    podendo-se dizer que elas se auto-

    reforam. At aqui parecia reagir-

    se contra um adversrio que insis-

    tia em ficar impassvel, embora

    para olhos mais avisados fosse ine-

    quvoco tratar-se sempre das aes

    da contraface hegemnica que, na

    seqncia, ficariam mais evidentes.

    Segunda inflexo: os movimen-

    tos da Reforma Psiquitrica se am-

    pliam, ganhando um novo eco so-

    cial. Agora pode se dizer que a pr-

    pria sociedade se envolve na luta

    contra o manicmio e sua lgica;

    firma-se o Movimento da Luta An-

    timanicomial, cujo lema, por uma

    sociedade sem manicmios, ajuda

    a definir com clareza um preceito

    central das aes dos interesses at

    a subordinados: os trabalhadores

    das instituies de sade mental e

    seus usurios. Na mesma seqn-

    cia vo se firmando vrias experi-

    ncias e prticas, exercitando no-

    vas lgicas e demonstrando sua ca-

    pacidade de substituir o hospital

    psiquitrico; firmam-se novos sig-

    nificantes sociais antimanicmiais:

    Finalmente, poderia ser til subli-

    nharmos que esse processo de lutas

    e conquistas pontuado pelas duas

    CNSM transcorre atravessado por um

    movimento de sinal contrrio, que se

    processa, neste caso, muito mais

    como reao s aes da Reforma

    Psiquitrica, do que como movimen-

    to deliberado capaz de desfraldar sua

    prpria bandeira. No transcurso his-

    trico dessa luta podemos ver dese-

    nhadas algumas inflexes maiores

    que vale a pena sublinhar.

    A II CNSMCONSOLIDOU TAMBM

    A CONQUISTA DOSESPAOS INSTITUCIONAIS

  • COSTA-ROSA, A. da, LUZIO, C. A. & YASUI, S.

    24 Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001

    Centros de Ateno Psicossocial

    (CAPS) e Ncleos de Ateno Psi-

    cossocial (NAPS). Assistimos a al-

    gumas manifestaes oficiais,

    mesmo que ainda tmidas no sen-

    tido de subtrarem espao e pode-

    rio ao hospital psiquitrico. Aqui

    as foras contra-hegemnicas mos-

    tram sua face bem configurada;

    fora que poderamos flagrar na

    sua maior visibilidade se nos deti-

    vssemos na observao dos avan-

    os e retrocessos de uma das pe-

    as mais notveis da luta antima-

    nicomial: a Lei Paulo Delgado. Pa-

    rece-nos que nada poderia ser mais

    indicativo da intensidade e viruln-

    cia das foras contra-hegemnicas

    Reforma Psiquitrica do que a di-

    ferena entre o que se propunha

    como objetivos dessa lei e o que se

    conseguiu transformar em Lei.

    Terceira inflexo: podemos ver

    esboado um momento, de aparn-

    cia mais serena, em que se vo se-

    dimentando novos conceitos e no-

    vos significantes, novas prticas e

    novos movimentos; momento em

    que se destacam os movimentos de

    usurios, dentro da perspectiva da

    participao popular. Tambm ve-

    mos tentativas cada vez mais fre-

    qentes de teorizao das novas

    prticas e de sua lgica terico-tc-

    nica e tica, a ponto de visualizar,

    sem maiores dificuldades, a perti-

    nncia e a possibilidade de novos

    servios na perspectiva de uma te-

    raputica cidad.

    Quanto a esta terceira inflexo

    nas lutas pela Reforma Psiquitri-

    ca, s reaes contra-hegemnicas,

    do tipo que nos familiar, devemos

    acrescentar outras de ordem micro-

    fsica; uma espcie de patrimnio

    sinistro herdado da constncia do

    lugar de subordinado no Processo

    de Estratgia de Hegemonia.

    PONTOS PARA UMA PROPOSTADE AGENDA DE DISCUSSO.

    1. Refletir sobre as atuais estra-

    tgias de fortalecimento do

    movimento de usurios e pro-

    por avanos.

    2. Avanar nas propostas de acom-

    panhamento e avaliao da rede

    de servios substitutivos por

    comisses paritrias de usuri-

    os e gestores e trabalhadores.

    3. Discutir o surgimento de uma

    nova demanda dependncia

    qumica que apresenta uma

    interface com assistncia soci-

    al e judiciria.

    4. Discutir a demanda dos usu-

    rios ex-internos que acabam

    desassistidos sofrendo com

    processo de marginalizao.

    5. Discutir a transinstitucionaliza-

    o criao de outras institui-

    es menores de segregao

    em que so abandonadas as es-

    truturas asilares mas no a pos-

    sibilidade da cronicidade e de

    medicalizao da demanda.

    6. Criao de dispositivos que ga-

    rantam a transferncia dos re-

    cursos financeiros das interna-

    es para os servios substitu-

    tivos em sade mental.

    7. Discusso sobre a reviso da

    formao profissional, com pro-

    posta para a reforma curricular

    dos profissionais da sade con-

    siderando os parmetros da re-

    forma psiquitrica.

    8. Construo de espaos de aco-

    lhimento e cuidado, flexveis e

    que faam uma ponte com ou-