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Universidade de Aveiro 2008 Departamento de Línguas e Culturas CLÁUDIA MARISA OLIVEIRA LEITE Corpo: Vegetação de Ruína Em Nome da Terra, de Vergílio Ferreira –

CLÁUDIA MARISA Corpo: Vegetação de Ruína OLIVEIRA LEITE …A companhia que tenho é a memória de ti, para lá do horror e da degradação. Sim, sim. A companhia que me dá uma

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Universidade de Aveiro 2008

Departamento de Línguas e Culturas

CLÁUDIA MARISA OLIVEIRA LEITE

Corpo: Vegetação de Ruína – Em Nome da Terra, de Vergílio Ferreira –

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Universidade de Aveiro

2008 Departamento de Línguas e Culturas

CLÁUDIA MARISA OLIVEIRA LEITE

Corpo: Vegetação de Ruína – Em Nome da Terra, de Vergílio Ferreira

Dissertação apresentada à Universidade de Aveiro para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Estudos Portugueses,realizada sob a orientação científica da Prof.ª Doutora Isabel Cristina Saraiva Assunção Rodrigues, Professora Auxiliar do Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro

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Ao exemplo mais profundo de ruína... a ti, Cristiana.

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o júri

presidente Prof. Doutor António Manuel dos Santos Ferreira professor associado com agregação da Universidade de Aveiro.

Prof. Doutor José Cândido de Oliveira Martins professor auxiliar da Faculdade de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa – Centro Regional de Braga.

Profª. Doutora Isabel Cristina Saraiva de Assunção Rodrigues professora auxiliar da Universidade de Aveiro. (Orientadora)

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agradecimentos

Correndo o risco de cometer alguma injustiça, não queria deixar de invocar aqueles que, de alguma forma, contribuíram para a realização do presente trabalho. A todos eles manifesto o meu mais profundo agradecimento. Aos funcionários da Biblioteca Municipal Dr. Renato Araújo de São João da Madeira, pela atenção e disponibilidade. À Doutora Maria Fátima Pereira Pinto, pela partilha de conhecimentos e, sobretudo, por me ter incutido o gosto pela leitura da obra vergiliana. À Professora Doutora Isabel Cristina Saraiva Assunção Rodrigues, da Universidade de Aveiro, pela orientação motivante, conhecimento, comentários críticos, sugestões, atenção e disponibilidade. Aos meus pais, pelo simples facto de existirem na minha vida, tornando-a útil. Ao Tiago, pelo apoio, dedicação e paciência ao longo de todo o processo de elaboração do trabalho.

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palavras-chave

Corpo, ruína, degradação, harmonia, perfeição.

resumo

O presente trabalho pretende demonstrar que o corpo é o alicerce edificantedo romance Em Nome da Terra, de Vergílio Ferreira. Ao olhar do leitor, o corpo irrompe ora grosseiro, repulsivo e decadente, ora deslumbrante, perfeito e ágil. Por isso, o romance esculpe o corpo deformado, degradado e envelhecido, assim como belo, esplêndido e jovem, mostrando, dessa forma, a beleza que pode existir na velhice de um corpo.

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keywords

Body, ruin, degradation, harmony, perfection.

abstract

The present work intends to demonstrate that the body is the edifying structure of Vergílio Ferreira’s novel Em Nome da Terra. In the reader’s perspective, the body either irrupts rude and decadent, or sumptuous, perfect and agile. Therefore, the roman portraits the unshaped, old and deformed body, as well as the beautiful, splendid and young, clarifying the beauty that can emerge from getting old.

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mots-clés

Corps, dégradation, harmonie, perfection.

résumé

Le présent travail prétend démontrer que le corps est la fondation édifiante du roman Au nom de la Terre, de Vergílio Ferreira. Au regard du lecteur, le corps éclate néanmoins brut, répulsif et décadent, néanmoins éblouissant, parfait et agile. Donc, le roman sculpte le corps déformé, dégradé et vieilli, ainsi que beau, splendide et jeune, en montrant, de cette forme, la beauté qui peut exister dans la vieillesse d'un corps.

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ÍÍNNDDIICCEE

Introdução

11

Capítulo I Representações da Ruína em Vergílio Ferreira

23

I. 1 Uma semiologia da Ruína

25

I. 2 O esplêndido na Ruína romanesca 30

I.2.1 A Ruína da Diegese 30

I.2.2 A Ruína do Espaço 48

I.2.3 A Ruína da Presença de Deus 55

I.2.4 A Ruína da Comunicação

62

Capítulo II Corpo – Figuração de Plenitude e Beleza

69

II. 1 Corpo: presentificação sagrada do “tu”

II. 2 Cântico ao esplendor físico

71

75

Capítulo III A Ruína como poética do corpo 85

III. 1 Corpo: inscrição da fugacidade do tempo

III. 2 Cântico à ruína do corpo

87

97

Conclusão

109

Bibliografia:

114

1. Activa

a. Ficção

b. Ensaio

c. Diário

115

115

115

115

2. Passiva

116

3. Teórica 118

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MMEEUU PPOOBBRREE CCOORRPPOO.. ÉÉ UUMM CCOOMMPPLLIICCAADDOO SSIISSTTEEMMAA DDEE EESSGGOOTTOOSS.. SSÃÃOO NNOOVVEE BBUURRAACCOOSS

PPOORRQQUUEE UUMM SSÓÓ NNÃÃOO CCHHEEGGAAVVAA PPAARRAA DDAARR VVAAZZÃÃOO.. TTEENNSS TTAANNTTOO QQUUEE EELLIIMMIINNAARR..

((……)) EENNQQUUAANNTTOO DDUURRMMOO AABBRROO MMÃÃOO DDAA MMIINNHHAA VVIIGGIILLÂÂNNCCIIAA,, TTUU AAPPRROOVVEEIITTAASS

EE AACCUUMMUULLAASS UUMMAA LLIIXXEEIIRRAA MMEEDDOONNHHAA.. CCRREESSCCEE OO PPÊÊLLOO OONNDDEE NNÃÃOO DDEEVVEE

CCOOMMOO UUMMAA VVEEGGEETTAAÇÇÃÃOO DDEE RRUUÍÍNNAA ((……)) SSÓÓ OO CCHHEEIIRROO,, AAHH,, TTUU

CCHHEEIIRRAASS TTÃÃOO MMAALL.. ÉÉ OO TTEEUU MMOODDOO IIMMEEDDIIAATTOO DDEE FFAALLAARR,,

DDEE TTEE AANNUUNNCCIIAARREESS..

Vergílio Ferreira, Invocação ao Meu Corpo

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IINNTTRROODDUUÇÇÃÃOO

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IINNTTRROODDUUÇÇÃÃOO ________________________________________________________________________________________________________

O romance, género em constante devir, aparece no século XX como

transgressor de uma ordem estabelecida, na medida em que mina e pulveriza

formas consagradas pela tradição. A evolução do romance contemporâneo

conferiu uma nova perspectiva face ao problema da imposição de fronteiras

entre ficção e poesia, uma vez que o romance começa a ser entendido

como um género literário que se encontra em contínua mutação, não

somente ao nível da técnica de construção textual, como ao nível temático,

tal como assinalam Carlos Reis e Ana Cristina Lopes: “(…) o romance tem

revelado uma extraordinária capacidade de rejuvenescimento técnico e de

renovação temática(…)”1. Do mesmo modo, Vítor Aguiar e Silva reforça, na

sua obra Teoria da Literatura, esta mesma ideia, quando afirma que o

“romance não cessa, enfim, de revestir novas formas e de exprimir novos

conteúdos, numa singular manifestação da perene inquietude estética e

espiritual do homem.”2

A escrita romanesca, ao jeito do nouveau roman, passa a ser laborada

a partir de um monólogo de cariz emocional do tempo presente, sempre

alternado com surpreendentes evocações de um tempo passado, graças à

memória que se dissemina através de diversas divagações e reflexões

tecidas pelo narrador-personagem principal. Deste modo, a acção

simplifica-se nas imprecisas lembranças subjectivas do “eu” narrador,

1 Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes, Dicionário de Narratologia, 7ª edição,

Coimbra, Almedina, 2000, p. 356 (negrito dos autores). 2 Vítor Manuel Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, 8ª edição, Coimbra, Almedina,

2000, p. 684.

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abolindo as coordenadas temporais, uma vez que estas convergem no ápice

singular da escrita.

Vergílio Ferreira introduziu dimensões originais à sua obra literária: nos

seus romances, as suas personagens, simultaneamente narradores da

diegese, vivem sintomas de angústia e de impaciente procura de um sentido

existencialista:

(…) os narradores tentam contar-se, mas já não se lembram,

sentem que tudo se esboroa, que nada vale a pena, nada tem

sentido – e, no entanto, não cessam de falar, (…) enchem de

palavras o vazio.3

Assim sendo, a obra ficcional vergiliana encontra-se no limite da negação

do romance como história, como narrativa de uma acção situada num

determinado tempo. Ou seja, a narrativa brota da memória subjectiva e

intemporal da voz narrativa, em cujas aventuras emotivas o leitor é levado a

participar.

É a memória de um passado irrecuperável que “arrasta os elementos

narrativos num caudal poético-reflexivo”4, dos quais se destaca um estilo

marcadamente obsessivo de imagens e um ritmo particularmente poético. A

frase nominal e incompleta, que responde à posição contemplativa perante

um real suspenso, e a preponderância das formas verbais no presente,

devido à memória afectiva que torna presente tudo quanto recorda e revive,

manifestam a oscilação entre o tempo presente (da escrita) e o tempo

passado (sensação de vivificar os acontecimentos do passado). O mesmo

significa dizer que a memória é o único elo de ligação entre o passado

apenas vivificado e o presente fugaz em que é recordado, o que imprime

ritmo à diegese – elemento de capital importância, utilizado até à exaustão,

3 Jacinto do Prado Coelho, “Vergílio Ferreira: um estilo de narrativa à beira do

intemporal”, in Ao Contrário de Penélope, Lisboa, Bertrand, 1976, p. 285. 4 Idem, Ibidem, p. 286.

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para a configuração do romance lírico, visto que estimula a imaginação do

mais profundo do ser humano – “Estou cansado na minha memória”5:

A companhia que tenho é a memória de ti, para lá do horror e da

degradação. Sim, sim. A companhia que me dá uma certa ajuda

é a memória do que passou e existe agora num estranho irreal.6

Os romances vergilianos aproximam-se, de certa forma, à simultânea

duplicidade de ritmos emotivos: por um lado, o romance Em Nome da Terra

exalta a beleza corporal de Mónica e, por outro lado, a sua degradação

física: há, portanto, uma pluralidade de sensações que intensificam a

subjectividade do romance vergiliano.

O narrador conserva uma estreita relação com a necessidade de

verbalização manifestada pelo Homem na relação íntima com suas

experiências. Projectar em direcção ao outro uma selecção de factos e

ideias que tornem presente a sua memória, numa tentativa de ludibriar o

tempo, transforma, para o Homem, a narrativa numa colectivização do seu

carácter experimental, através de um olhar (re)ordenador, criando novas

possibilidades de superação do tempo pela recriação do real na escrita.

Assim, narrar não é, apenas, “contar” os factos como efectivamente

acontecem, mas deixar-se tomar por um olhar (re)criador que instaure a

pluralidade e permita a deformação desse “contar”, a ponto de tornar os

factos tão inverosímeis quanto verdadeiros.

Note-se que os romances edificados por Vergílio Ferreira encontram-

-se dilacerados7, uma vez que a sua diegese se encontra articulada com as

5 Vergílio Ferreira, Em Nome da Terra, 9ª edição, Lisboa, Bertrand Editores, 2004, p.

243. 6 Idem, Ibidem, p. 45. 7 À semelhança do nouveau roman, o romance vergiliano deprecia a intriga como

trajecto munido de coerência interna, daí que se assista a uma reorganização do fio

temporal, abolindo a rígida cronologia da escrita dos acontecimentos e, de certa

forma, aceitando a dissolução cronológica da diegese. Ora, esta modelização

temporal está intimamente ligada ao facto de as personagens serem detentoras de

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experiências vividas de acordo com o olhar subjectivo e fragmentário do

narrador-personagem, resultando num mosaico de recordações avulsas que,

pelo contrário, não simboliza uma estrutura imperfeita, mas sim a

exteriorização presente da memória passada do sujeito enunciativo. Deste

modo, pode asseverar-se que o herói vergiliano não possui apenas um

caminho firme a trilhar, mas sim contornar as dificuldades apresentadas por

becos e ruelas interiores, que tortuosamente formam esquinas aterradoras:

daí que o encontro não esteja já marcado com o outro, mas principalmente

consigo mesmo, com o seu “eu” mais profundo.

Por isso, perante um real (que deixa de ser uno e compacto)

fragmentado e fluido, denunciador de um olhar multifacetado e perplexo do

Homem sobre si próprio, a obra de Vergílio Ferreira provoca um anúncio aos

gritos de uma moderna inquietação, tecida por um Deus que não se basta e

não se sustenta.

Na obra vergiliana, a perturbadora projecção da condição humana

sobre uma idealizada perspectiva do porvir é o ponto de partida para uma

melhor e acabada compreensão do olhar apresentado pelo romance, a

respeito da relação que se estabelece entre o princípio da realidade e o

espaço ali destinado ao Homem. Como condensadora do texto vergiliano,

pode-se mencionar a seguinte afirmação retirada de Húmus, de Raul

Brandão: “Melhor: a vida é um simulacro”8. Efectivamente, Vergílio Ferreira

toma partido da posição literária investida por Raul Brandão, isto porque

ambos engrandecem a beleza que existe em sentimentos tão adversos como

a angústia, o absurdo e a mixórdia da existência humana.

uma crise de índole existencialista, que as conduz à busca contínua do seu próprio

“eu”. (cf. Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes, Dicionário de Narratologia, 7ª

edição, Coimbra, Almedina, 2000, p. 362). 8 Raul Brandão, Húmus, 1ª edição, Vilarinho das Cambas, Edições Húmus, 2004,

[1917] p. 21.

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A condição humana é apresentada a partir de uma perspectiva

sintetizadora da dor de quem observa e vive, de forma angustiada e

angustiante, revestindo-se, tal perspectiva, de um carácter metafísico.

Romance e Homem fundem-se, são um único corpo, padecem dos mesmos

males, vivem as mesmas indefinições, as mesmas angústias, as mesmas

dores, reconhecendo-se, por isso mesmo, diante da morte indefinidamente

transformadora:

A destruição dos quadros do romance tradicional (que é um

aspecto da destruição dos moldes tradicionais do pensar e do

sentir) facilmente levou à ideia de que a “desorganização” é um

critério de modernidade. (...) Aqui ainda, pois, o que define Raul

Brandão é o pressentimento de um novo mundo e a informe,

indisciplinada, contradição em que se move.9

O húmus de que Vergílio Ferreira nutre a sua obra literária é o Homem

– na sua fragilidade diante da vida e da morte; na sua dor incontrolável, que

lhe arranca as certezas e o condena ao caos continuamente reformulado –,

mas é também o Romance, como forma de um empreendimento literário

inovador, muito menos ratificador de verdades e muito mais uma construção

multifacetada, um mosaico consequente de um Homem irremediavelmente

dilacerado.

À imagem do romance Em Nome da Terra, a superação da rigidez das

instâncias temporal, espacial e de enunciação, através de uma escrita

imbuída de poesia, culmina na configuração de um romance marcado por

um tempo que lá está para se tornar eterno; no descanso inquietante num

lugar específico – a casa de repouso10 – que é todos os lugares, comuns na

9 Vergílio Ferreira, Espaço do Invisível II, Lisboa, Arcádia, 1975, pp. 211-212. 10 Sendo uma das principais categorias da narrativa, o espaço traçado por Vergílio

Ferreira encontra-se estreitamente unido às suas personagens, isto porque revela

ambientes densos e perturbadores, devido à situação de humilhação, angústia e

opressão vividos por essas mesmas personagens. Atente-se na definição proposta

por R. Gullón: o espaço é “como cenário da luta íntima e como voz cindida da

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ausência da sensação de acolhimento que possam apresentar; é a

irradiação de uma voz que se desdobra em ecos que dialogam, aos gritos,

no limiar fértil das dolorosas incertezas de que o narrador é vítima, ou seja, o

quarto deve ser entendido como espaço de evasão do narrador de Em Nome

da Terra, uma vez que aí encontra o alívio e consolo para a sua condição

física e emocional.

Com foi já referido, clara é a ruptura que a “ficção poética” tecida por

Vergílio Ferreira estabelece com os modelos tradicionais da escrita

romanesca, mas também se torna flagrante o seu alargamento das

abordagens estéticas presentes na obra de Raul Brandão, privilegiando-se a

amplitude do olhar dirigido àquilo que não está totalmente à vista, ao

limítrofe. É o que comenta J. Cândido Martins, em “A presença de Raul

Brandão na concepção romanesca de Vergílio Ferreira”:

Justamente com Húmus, de Raul Brandão, assiste-se à

desagregação das tradicionais categorias do romance

realista/naturalista, em favor de um romance de natureza mais

lírica, e, sobretudo de inspiração filosófica e indagação

metafísica. (...) Por conseguinte, pode-se declarar que, com

Raul Brandão, o romance abandona definitivamente o objectivo

de mimésis fotográfica do real, para se transformar numa

representação simbólico/metafísica.11

Enveredando, numa fase inicial, pela vida literária vincada à arte

social, segundo os preceitos neo-realistas, Vergílio Ferreira insistiu,

personagem (…) que comunica com galerias de sombra”. Ora, ao mesmo se

assiste no romance Em Nome da Terra: a casa de repouso e, mais especificamente,

o quarto onde vive João acaba por ser o espelho da condição do narrador, porque

é o seu único confidente perante a sua condição de abandono, solidão e

decadência. (Apud Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes, Dicionário de Narratologia,

7ª edição, Coimbra, Almedina, 2000, p. 136 e 137) 11J. Cândido Martins, “A presença de Raul Brandão na concepção romanesca de

Vergílio Ferreira”, in Ao Encontro de Raul Brandão, Porto, Lello Editores, 2000, p.

462.

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sabiamente, desde Mudança (1949) no romance como a forma mais viável

para expressar um humanismo de índole existencialista.

O autor insinua, na sua ficção, uma posição doutrinal que transcorre

uma evidente questionação metafísica, traduzida na evidente problemática

da morte, da angústia, do absurdo e da transcendência divina. A

problemática existencial, por si ficcionada, harmoniza-se com a construção

de personagens cuja trajectória de vida se encontra estigmatizada pela

experiência de problematização da identidade do Outro, da

incomunicabilidade e ruína humanas e da morte.

Normalmente, Vergílio associa a ruína humana às questões da velhice,

da solidão, da doença e, sobretudo, da corrupção corporal, tal como se

verifica na obra Em Nome da Terra (1990).

Desta forma, a doutrina de índole existencialista passa a desempenhar

um papel determinante na temática ficcional vergiliana, assim como a

memória, que passa a traçar todo o processo narrativo, encontrando-se

este, por isso mesmo, destituído de valores cronológicos. Por isso, Vergílio

envereda pelo nouveau roman12, tematizando o absurdo, destituindo as

personagens de centralidade e introduzindo uma nova dimensão espácio-

-temporal, a partir do fio condutor da sua memória. As personagens13, por si

12 Segundo Ronaldo Costa Fernandes, o nouveau roman é uma nova forma de

encarar o mundo através da linguagem e da imaginação. Ou seja, a criação

romanesca ultrapassa a ideia da Literatura como documento, uma vez que como o

Impressionista deve valorizar sobretudo a cor, a luz e o olhar, também o escritor do

nouveau roman deve constituir como elemento fundamental da narrativa o

momento, a descrição e o olhar. Daí que o escritor possa “mudar de ângulo, de

hora, de luz e verá, sem comentários (…) a mesma peça ou a mesma construção

com olhos diferentes.” De facto, o nouveau roman destaca a análise da psicologia

da personagem e a diegese atravessada por dois fios temporais distintos: o

presente da escrita e o pretérito da recordação. (cf. Ronaldo Costa Fernandes, “O

Ciúme e o Nouveau-Roman, de Alain Robbe-Grillet”, in

www.revista.agulha.nom.br/rcfernandes1.html.) 13 Despindo as personagens de tudo quanto fosse tradição, o nouveau roman

concebe-as como objecto da acção, porque as personagens passam a dialogar

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arquitectadas, concentram-se em torno do próprio discurso do narrador,

visto que existem de acordo com a voz enunciativa do narrador. Pode,

então, asseverar-se que as personagens vergilianas caminham no sentido

de valorização contínua do seu próprio interior, enquanto sujeitos

subjectivos.

À imagem de Vergílio Ferreira, as suas personagens surgem com a

pretensão de questionamento e, consequentemente, de superação das suas

inquietações e angústias, daí o romance vergiliano contemporâneo abrir-se

ao domínio da reflexão, possibilitando ao Homem a confrontação com a

precariedade da sua própria condição.

No romance-problema14, Vergílio tende a encontrar respostas e

soluções para os problemas relativos à condição precária do Homem,

porque “a questionação metafísica esgota-se na esfera da interrogação

pura”15, ou seja, o autor apresenta as ideias, mas não as resolve. O mesmo

acontece perante os problemas relacionados com a corrupção do ser

com as coordenadas temporais e espaciais da diegese, visto que “age, reage, grita

ou compactua com outros personagens, ama, viaja, mata ou morre em ambientes

fechados, em campos de batalha, em jardins, em torres de castelo ou casas

burguesas.”, tal como afirma Ronaldo Costa Fernandes no artigo citado na nota

anterior. 14 O romance adquire o estatuto de romance-problema na medida em que toda a

diegese se fundamenta no questionamento sobre os problemas do Eu em relação

ao Mundo em que vive. Vergílio Ferreira, em Um escritor apresenta-se, elucida: "-

Romance filosófico é uma expressão equívoca. Não se pode fazer romance com

forma de filosofia. O que acontece é que, a meu ver, há dois tipos de romance: o

romance-espectáculo que quer dar uma imagem do real que nos circunda e o

romance-problema, chamado o romance-ensaio, cujo saldo é uma reflexão. Este

romance tem como objectivo fundamental pôr um problema. (…) A obra filosófica

ensina, enquanto aquilo a que chamo o romance-problema interroga. Temos

também de distinguir o romance-problema do romance-tese que é uma coisa

horrível. O romance não pretende demonstrar nada. Além do mais, o romance joga

com valores vivenciais e estéticos e a filosofia, genericamente, não. Na filosofia

teoriza-se, no romance vive-se." (Vergílio Ferreira, Um escritor apresenta-se,

Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1981, p.112). 15 Isabel Cristina Rodrigues, A poética do romance em Vergílio Ferreira, Lisboa,

Edições Colibri, 2000, p.61.

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humano, consequência da efemeridade da sua existência e, de um modo

particular, da sua condição física que se degrada a cada momento que

passa. Assim sendo, o narrador de Em Nome da Terra expõe os seus medos

e angústias, uma vez que se depara com a degradação física da esposa e

do seu próprio corpo, contudo não tende a solucionar os problemas que da

velhice advêm, mas antes questioná-los, de modo a compreendê-los.

Aproximando a ideia de decadência física e não descurando a

significação proposta por Almeida Costa e Sampaio e Melo para o termo

“Ruína”16, o presente trabalho pretende abordar a representação da Ruína na

ficção de Vergílio Ferreira, mais especificamente partindo da esfera de Em

Nome da Terra que, de uma forma sublime, destaca o lado belo de um corpo

mutilado e decadente.

Desta forma, o título do trabalho surge associado a uma reflexão,

expressa em Invocação ao Meu Corpo, proposta por Vergílio Ferreira a

propósito do corpo: “Meu pobre corpo. É um complicado sistema de

esgotos. (…) uma vegetação de ruína”17. Ao leitor, o corpo, enquanto

“sistema de esgotos”, é apresentado como um local de predilecção onde se

instala verdadeiramente a ruína, visto que este corpo está certo de que,

desde que exista, caminha sempre em direcção à degradação contínua à

morte. Ou seja, ele é, por excelência, o lugar onde os vestígios de

decrepitude visivelmente se manifestam:

16 De acordo com as significações apontadas pelos autores de o Dicionário da

Língua Portuguesa, o termo ruína, no caso específico deste presente trabalho, deve

ser associado à ideia de resto, destroço e, sobretudo, de decadência e

degradação. (cf. J. Almeida Costa e A. Sampaio e Melo, Dicionário da Língua

Portuguesa, 5ª edição muito corrigida e aumentada, Porto, Porto Editora, s/ data,

p.1262). 17 Vergílio Ferreira, Invocação ao Meu Corpo, 2ª edição, Lisboa, Bertrand Editores,

1994, p.264.

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Meu corpo, meu corpo. Meu saco de enxúndia, de sucos, de

esterco, minha massa de carne pronta a apodrecer, minha rede

de esgotos que cheiras tão mal, e infectas o ar te desfazes em

lixo e não subiste um centímetro do estrume da tua condição

(…) e mesmo em plena saúde és um doente incurável porque a

corrupção é o teu signo, e quando nasces é logo para morreres

(…)18

Apoiando esta perspectiva de Vergílio Ferreira, o mesmo seria dizer

que um corpo jovem e ágil acaba por trair aquele que o possui, isto porque

denunciar-se-á um companheiro limitado “cansado, suado, aflito de

espectros, corroído, trôpego, mutilado”19, uma vez que se encontra

dominado pela corrupção pressagiada pela passagem fugaz do tempo, tal

como se verifica no romance vergiliano em estudo.

Após a leitura das páginas laboradas pela mão de Vergílio Ferreira,

fácil é entender a voz daquele que soube cantar poeticamente a Ruína,

sobretudo a Ruína do ser humano. A presença de vestígios de deterioração

do Homem encontra-se manifestada na ode ao corpo tecida no romance Em

Nome da Terra, pois o corpo surge como meio que veicula o ser humano no

Mundo, ou seja, o Homem é reconhecido pelos outros no Mundo através do

corpo que se manifesta no meio em que se insere e vive.

Deste modo, o leitor é convidado a fazer parte de uma viagem pelos

vestígios de um mundo, a partir do qual o narrador evidencia a beleza e a

poesia que pode existir num corpo debilitado, mutilado e envelhecido.

Apesar da sua mutilação física, João pincela a cor da sua alegria,

destacando isoladamente, a partir de um cenário decadente, a pureza do

corpo esplêndido da esposa. Esse corpo surge isolado de um cenário que o

próprio narrador tende a perder: a ruína corporal de ambos.

(…) mas porque perder-me neste intérmino discretear, meu

corpo, esquecido, no que te limita, de exaltar o que te

18 Idem, Ibidem, p. 267. 19 Idem, Ibidem, p. 269.

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engrandece? (…) ou seja a sublimação do corpo, é o que define

ultimamente o que somos.20

Ao invés de se perder em longas divagações pelas limitações do seu corpo e

do corpo de Mónica, João tende a criar um discurso diegético propício à

exaltação da beleza e do vigor físico de outrora, pois só assim consegue

engrandecer as imagens passadas a partir daquelas que são presentes.

Por essa razão, tentar-se-á tecer algumas considerações a propósito

da indubitável presença da Ruína na obra Em Nome da Terra, de Vergílio

Ferreira, destacando as duas realidades contraditórias, mas

complementares, aí presentes. Essa dualidade de realidades, também

referida em Invocação ao Meu Corpo, pode ser sintetizada pelas palavras do

próprio Vergílio Ferreira:

(…) frescura de seda pele sem suor, macerada corrompida

mastigada, tão como um hino de manhã juventude eterna –

corpos Primavera em botão imperfeitos apelo ao crime

conspurcação do vício, corpos ao máximo estalando perfeitos

para a luta igual resistentes duros triunfantes exigentíssimos, ou

já na ameaça do envelhecimento que pedem aceitam humildes

serapilheira os pés que se limpam ou a piedade cobrindo-os um

saco de sonhos velhos que ainda se usam um ao outro para

parecer que, sorriso de lástima a esmola que se pede, coros

evacuados à minha memória cansada na noite que se prolonga

ou ao meu desejo que se não cumpriu e se repete

obsessivamente ou à minha ira triste que não tem porquê e

apenas pede se esgote ou ao meu apelo de pacificação e

beleza ou ao meu alarme do tempo e da morte para que na pura

exaltação o tempo se imobilize ou regresse ao tempo em que

não pesava como tempo (…)21

20 Idem, Ibidem, p. 287. 21 Idem, Ibidem, p. 284.

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CCAAPPÍÍTTUULLOO II::

RREEPPRREESSEENNTTAAÇÇÕÕEESS DDAA RRUUÍÍNNAA EEMM VVEERRGGÍÍLLIIOO FFEERRRREEIIRRAA

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[[……]] MMEEUU CCOORRPPOO MMUUTTIILLAADDOO,, NNEESSTTEE DDEEPPÓÓSSIITTOO DDEE EESSTTRRUUMMEE

[[……]] MMIINNHHAA MMÃÃOO AAPPOODDRREECCIIDDAA..

Vergílio Ferreira, Invocação ao Meu Corpo

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II..11 UUMMAA SSEEMMIIOOLLOOGGIIAA DDAA RRUUÍÍNNAA __________________________________________________________________________

Aluimento, desabamento, demolição, desagregação… A ruína diz

respeito a tudo aquilo que acaba por ficar aniquilado, mas também àquilo

que consegue permanecer no meio da destruição: um pedaço de um outro

tempo, pedras de uma outra idade, a presença de uma outra época num

tempo presente nostálgico.

A ruína deixa transparecer a fragilidade de tudo, porque continua a

desintegrar-se como um fragmento de papel que se rasga pouco a pouco. É

pois, por isso, que a ruína proporciona, ao espírito sensível, a meditação

sobre a passagem do tempo e a incerteza de um tempo futuro.

Proveniente do vocábulo latino ruina, o termo “ruína”22 encontra-se

associado a múltiplas acepções. Em termos arquitectónicos, ruína descreve

o resto, o destroço ou o vestígio de uma determinada estrutura. A nível

financeiro, indica a perda de crédito financeiro. Todavia, o vocábulo em

questão não esgota as suas diversas significações, uma vez que designa,

igualmente, decadência, deterioração, degradação, corrupção,

arruinamento, destruição ou decrepitude.

Iconograficamente, a ruína reenvia o Homem para um estado de

melancolia, pois a ruína presentifica-se magistralmente pela derrocada de

pedras, pelas amputações parciais de estátuas e, ainda, pelos vestígios de

pilares encobertos pela imensidão de vegetação, símbolo da ausência do ser

22 Para que o conceito de “Ruína” e a sua evolução no seio da cultura ocidental

seja melhor compreendido, através da sua representação na Arte, leia-se o

catálogo elaborado a partir de uma exposição em Barcelona, cujo tema se centrava

na ruína. (AAVV., El esplendor de la ruina, Barcelona, Fundació Caixa de Catalunya,

2005).

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humano. Neste caso, a ruína revela a vaidade do Homem, uma vez que

representa as ambições humanas como ilusórias, pois a vaidade insiste na

materialidade do ser humano e do miserável milagre da vida (“Eu, homem

corruptível de miséria e loucura. De insensatez.”23): a passagem do Homem

no Mundo é, simultaneamente, fulgurante e precária, daí que o ser humano,

tal como acontece com as construções antigas, seja alvo de uma contínua

degradação, sobretudo corporal, não restando no mundo senão vestígios de

corpos deteriorados, isto porque o corpo humano, à semelhança do tempo,

é fugaz, daí que se corrompa com a passagem do tempo, fruto da velhice e,

por vezes, da doença:

Aleijados de muletas (…) velhos curvados a arrastar os pés,

para onde ides? (…) um não tinha pernas, (…) tortos

estropiados, (…) restos sórdidos da humanidade.24

Em contrapartida, a ruína encarna a grandeza humana, mesmo numa

paisagem ou num corpo destruído, uma vez que dela é possível construir ou

mesmo criar beleza, ainda que essa beleza seja fugaz. Assim, a ruína leva, a

quem a observa, a acreditar na grandeza de um Império, na potência militar

e económica, no acompanhamento artístico e na febre religiosa de uma

colectividade. Saliente-se que a beleza, que da ruína pode advir, deve-se

em grande parte ao facto dessas paisagens aparecerem como vestígios de

um mundo solitário e decadente.

Testemunho da História, a ruína configura saber e imaginação, isto

porque o seu poder de evocação não cessa de fascinar quer escritores quer

artistas plásticos.

Desde o Renascimento, cada época soube projectar a ruína de acordo

com a visão do tempo, da natureza e do destino do ser humano. A Arte

23 Vergílio Ferreira, Até Ao Fim, 8ª edição, Lisboa, Bertrand Editores, 1992, p. 270. 24 Idem, Na Tua Face, 3ª edição, Lisboa, Bertrand Editores, 1993, p. 232.

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Barroca, no século XVII, alegou a renovação do tema da ruína na poesia, na

pintura e, ainda, na escultura. A partir do século XVIII, a Arte, em geral,

passa a evocar a ruína, enquanto consequência do pensamento humanista e

do ascetismo estóico. Estes elementos viriam a modificar profundamente, na

segunda metade do século XVIII, a actividade do Homem Ocidental perante a

ruína e a sua representação pictórica.

No período entre o Renascimento – fascinado pela ruína antiga – e o

Romantismo – ávido de imagens das grandes civilizações esquecidas –, a

pintura e a literatura revelam o seu gosto particular pela ruína, exaltando-a e

protegendo-a de possíveis degradações ulteriores. Desde então, o interesse

pela ruína generalizou-se, daí que um novo olhar pela ruína tenha surgido:

os edifícios e os objectos degradados transformam-se em alvos de reflexão

e, simultaneamente, de contemplação, integrando o tema da ruína num

mundo idílico. O Romantismo encontra na ruína uma verdadeira

fundamentação para a imagem do “mal du siècle”, onde vê aí a verdadeira

alegoria da própria existência do homem romântico.

Nos séculos XVIII e XIX, a simpatia pela ruína toma uma nova

perspectiva: todo o vestígio de ruína – não importa se é de origem grega ou

gótica – é valorizado como estimulante da meditação e do sonho. A partir

deste período, a ruína passa a ser compreendida como corolário do gosto

pelo exotismo.

Figura da fragmentação e de alegoria da temporalidade, a ruína é um

objecto conceptual, visto que a obra expõe um determinado lugar no seio

dos grandes movimentos artísticos.

Evocando um determinado sentimento de nostalgia e,

simultaneamente, de dor pelo passado que nunca mais voltará, a ruína revela

uma determinada angústia vital perante a fugacidade e a efemeridade do

tempo, marcado pela proximidade da morte. Neste sentido, a ruína erige-se

como símbolo aglutinador do tempus fugit.

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A partir do dealbar do século XX, a ruína passa a ser entendida como

expressão do carácter débil do Homem, ou seja, a magnificência da ruína

encontra-se intimamente ligada à decrepitude e à decadência do Homem,

que não sabe utilizar, razoavelmente, as suas capacidades humanas. A ruína

surge, então, a partir do poder que o ser Humano detém para aniquilar o

Mundo, lucrando, portanto, do forte exemplo da guerra e dos múltiplos

conflitos interiores do Homem contemporâneo.

Enquanto metáfora da modernidade, o vocábulo “ruína” associa-se

não só à possibilidade de o Homem se entregar ao (auto)questionamento de

si próprio e das suas confusões interiores, mas também à contemplação de

uma memória pretérita. Por isso, Vergílio Ferreira impele, aos seus

narradores, a necessidade de se servirem da sua memória para fazer emergir

o que de sublime se foi desmoronando através da efemeridade da própria

vida humana. Ou seja, o narrador do romance em estudo – Em Nome da

Terra – rememora a beleza que existia no seu próprio corpo e no corpo da

esposa Mónica, de maneira a perpetuar aquilo que se foi fragmentando com

a passagem do tempo.

De facto, a ruína aponta a fragilidade do Homem, assim como a sua

incapacidade para evitar a efemeridade do tempo, daí a necessidade do ser

humano enfrentar quer a solidão quer a decrepitude e o desgaste, físico e

intelectual, impostos pela natureza.

As ruínas só aparecem carregadas de significado na medida em que

expressam, visualmente, o soterramento do tempo presente e a possibilidade

de recriação de um tempo passado que não voltará a repetir-se. Mais do

que uma imagem, a ruína é um pedaço de real que percorre toda a arte

ocidental, a qual se fundamenta no sonho da imortalidade; no entanto, essa

representação implica, simultaneamente, o declínio natural e inegável da

triste degradação física.

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Neste sentido, a memória visual também se aproxima da categoria de

ruína, pois mumifica o passado, os corpos ainda novos, dando-lhes um

presente instantâneo: vivificam a passagem do tempo através da sua

representação, à semelhança daquilo que se verifica na obra Em Nome da

Terra, onde a ruína apela ao desenho, à gravura, à escultura e à música, que

acompanham o texto de imagens, de maneira a interrogar a paradoxal

relação com o(s) espaço(s) fragmentado(s) e efémero(s).

Com efeito, o romance referido anteriormente surge na sequência da

rememoração do passado vivido pelo narrador-personagem, pois toda a

inscrição de ruína aí presentificada é adiada pelo olhar rebuscado de João

pelo passado.

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II.. 22 OO EESSPPLLÊÊNNDDIIDDOO NNAA RRUUÍÍNNAA RROOMMAANNEESSCCAA ________________________________________________________

I. 2. 1 RUÍNA DA DIEGESE25

A narrativa de Vergílio Ferreira deixa transparecer a sua capacidade de

reunir em si mesmo a influência de diversos autores – “epígono de toda a

gente”26 –, isto porque labora uma narrativa cujas características

fundamentais demonstram alguns vínculos com escritores estrangeiros. Pode

dizer-se que Vergílio Ferreira recupera algumas linhas do romance de

Dostoievski – a reflexão sobre o homem dividido entre a presença do mal e a

procura de Deus –, e de Kafka – a ruína das relações interpessoais, graças

ao universo labiríntico em que o Homem deixa escapar a transcendência que

tanto busca.

A diegese vergiliana revela, ainda, de forma evidente alguns laivos da

escrita de William Faulkner, na medida em que ambos convergem para a

(a)temporalidade da diegese, pois esta é construída pela personagem-

narrador através do relógio da memória, o que possibilita a intersecção de

diversos planos temporais.

À semelhança da narrativa de Marcel Proust, Vergílio Ferreira recupera

o passado das suas personagens a partir do reflexo extraordinário da

memória, o que virá a promover uma diluição cronológica da intriga, ou seja,

pela memória, o tempo é transformado como um meio pelo qual o

romancista exprime, autenticamente, a vida psicológica das suas

personagens, tal como acontece na escrita de Virginia Woolf.

25 Para uma melhor compreensão do tema, consulte-se António da Silva Gordo, A

arte do texto romanesco em Vergílio Ferreira, Coimbra, Editora Luz da Vida, 2004,

capítulos 5 e 6, pp. 62-82 e 89-95. 26 Vergílio Ferreira, Conta-Corrente 2: 1977-1979, Amadora, Bertrand Editores,

1981, p.110.

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Reconhecendo uma vital aproximação entre a sua literatura e o

nouveau roman27, Vergílio Ferreira, ao jeito de Alain Robbe-Grillet e do estilo

romanesco de Joyce, desvaloriza a própria acção, isto porque investe na

transformação da sua personagem-narrador, enquanto figura errática que se

dissolve nas teias do tempo e se perde no fio da memória do seu próprio

passado, limitando-se, sobretudo, à análise dos espaços e dos objectos

que fazem parte do seu presente vivido:

(…) ele volve-se em pura contemplação ou numa reflexão que

como se expande num espaço sem tempo, (…) ao passo que

vai dizendo a sua emoção ou comentando poeticamente o

mundo narrado, vai introduzindo simultaneamente a descrição

de acções realizadas pelas personagens e instaurando a

progressão que exige a temporalidade.28

Verifica-se, efectivamente, a influência do nouveau roman no romance Em

Nome da Terra, no momento em que João, dirigindo-se à esposa morta,

procede à análise do lar e, mais especificamente, do seu quarto e dos

objectos que decoram a parede; é a partir desta vivência que a

personagem-narrador reflecte sobre a sua condição de ser finito e, por isso

mesmo, discorre pelo seu passado:

Que erro, querida, sermos humanos e fraccionários. Nesta casa

em que apodreço devagar e em que os filhos me meteram. (…)

27 Sendo produto de uma época que vê impor-se as massas e duvida da natureza

humana, o nouveau roman constrói personagens resultantes de uma profunda

mutação da mentalidade e das estruturas sociais, à semelhança da definição de

Aguiar e Silva em Teoria da Literatura: “A recusa da cronologia linear e a introdução

no romance de múltiplos planos temporais que se interpenetram e se confundem

(…). A confusão da cronologia e a multiplicidade dos planos temporais estão

intimamente relacionados com o uso do monólogo interior e com o facto de o

romance moderno ser frequentemente construído com base numa memória que

evoca e reconstitui o acontecido. (…) o romance empreendeu na ânsia de se

libertar dos padrões tradicionais do enredo romanesco.”. (Vítor Manuel Aguiar e

Silva, Teoria da Literatura, 8ª edição, Coimbra, Almedina, 2000, pp. 738 e 739). 28 Rosa Maria Batista Goulart, Romance Lírico. O percurso de Vergílio Ferreira,

Lisboa, Bertrand, 1990, p. 35.

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Nesta casa estou só com o meu corpo, lembro-me muito bem

de quando éramos os dois num só e íamos criar o mundo todo,

como era da nossa obrigação.29

Todo este corredor até ao fundo são quartos. Ao meio do

corredor é a secção dos mais velhos. E ao fundo, a secção A,

dos externos, que vêm só quase comer e dormir. Ao lado, a

cozinha, consultório, e mais adiante os sanitários, não sei se

querem ver.

E eu pensava – um corpo, estou-o pensando para ti, lembras-te

de termos falado nisso? (…) Mónica, minha querida. Toda a

grandeza da divindade condensada ali. Eu te baptizo em nome

da perfeição – recordas-te de nós no rio?30

Se, por um lado, o romance vergiliano aparece num contexto de

grande cumplicidade com vários escritores do século XX, por outro lado,

Vergílio Ferreira soube conferir-lhe alguns traços bem particulares: a

fragmentação diegética, a mise-en-abîme31 e o estatuto autodiegético32 do

narrador. Abraçou, ainda, a escrita do romance lírico33, na medida em que o

29 Vergílio Ferreira, Em Nome da Terra, 9ª edição, Lisboa, Bertrand Editores, 2004,

pp. 10 e 11. 30 Idem, Ibidem, pp. 19 e 20. 31 Relacionado com um procedimento de enriquecimento da sintaxe narrativa, que

consiste no encaixe de pequenas diegeses secundárias no seio da diegese

principal, a “mise-en-abîme” possibilita elaborações narrativas subtis, uma vez que

permite ao narrador integrar momentos de autocontemplação a propósito do seu

passado revivido no presente e, simultaneamente, do adiamento do seu futuro,

como se pode verificar no romance Em Nome da Terra, de Vergílio Ferreira. (Vítor

Manuel Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, 8ª edição, Coimbra, Almedina, 2000, pp.

233 e 234). 32 Carlos Reis e Ana Cristina Lopes apresentam uma definição de narrador de

estatuto autodiegético. Deste modo, considera-se que o narrador autodiegético é

aquele que detém a construção de toda a estrutura narrativa a partir da sua

experiência de vida, por isso organiza o tempo de acordo com o seu interesse e o

seu desejo de dar mais ou menos importância a determinado acontecimento: o

“narrador autodiegético estrutura a perspectiva narrativa, organiza o tempo,

manipula diversos tipos de distância, etc.” (Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes,

Dicionário de Narratologia, 7ª edição, Coimbra, Almedina, 2000, p. 259, negrito dos

autores). 33 O romance lírico, sendo caracterizado pela singular enunciação, como lugar de

uma presença emocionada (a própria presença do narrador), abre caminho para a

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romance é, para o autor, sinónimo de amplitude e, sobretudo, de

totalização. Deixando-se contaminar por outros géneros literários, Vergílio

Ferreira sempre soube eleger estratégias que valorizassem o drama da

existência humana, presentificado pelas experiências de vida das suas

personagens-narrador, assim como pela interrogação essencial à elucidação

do destino dessas mesmas personagens.

Embora haja parentescos pontuais com o nouveau roman, Vergílio

Ferreira demarca-se, de certa maneira, quer de Robbe-Grillet quer dos

preceitos propostos pelo nouveau roman, uma vez que todo o seu discurso

romanesco é dominado pela emoção, bem patente no uso abusivo da

metáfora, pois é através deste recurso expressivo que toda a afectividade se

projecta nos próprios objectos em análise pela(s) sua(s) personagem(ns)-

narrador. Desta forma, toda a atenção passa a centrar-se no real imaginário,

pois é nele que a personagem-narrador se manifesta ao ritmo da sua

deambulação emotiva. Assim sendo, Vergílio Ferreira labora o seu universo

literário de forma singular, cuja intensidade emocional surge visivelmente

graças a uma sintaxe marcada pelo truncamento das frases, à ambiguidade

conseguida através dos jogos traçados pelas personagens, e aos cenários,

que evocam uma sensação singular do imediato.

No romance Em Nome da Terra, João deambula, emocionalmente,

pelos lugares e objectos condensadores dos mais vivos retalhos do seu

passado, reapossando-se deles, como é o caso do baptismo de Mónica nas

águas do rio ou, ainda, do apartamento em que ambos habitavam:

expressão do lirismo, visto que salienta as categorias essenciais da narrativa como

o tempo, que tanto surge estruturado pela fragmentaridade da diegese, como

interrompido, transformando o precário tempo da vida das personagens em

eternidade, ou como o espaço, que se oferece menos como local da acção do que

como projecção de um encantamento provavelmente irrealizável. (Rosa Maria

Batista Goulart, Romance Lírico. O percurso de Vergílio Ferreira, Lisboa, Bertrand,

1990, capítulo “O romance lírico”, pp. 30-39).

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Trazíamos a notícia de um corpo incorruptível e perfeito.

(…)

Então baixei-me ao rio e trouxe água nas mãos em

concha. E derramei-ta na cabeça imensamente. E disse,

e disse

– Eu te baptizo em nome da Terra, dos astros e da

perfeição.

E tu disseste João sacrílego. E eu disse agora podemo-

-nos vestir. 34

Lembro-me de repente é de quando morávamos em S.

Pedro de Alcântara. Tínhamos lindas vistas para o jardim,

para a Graça e o Castelo cheios de sol, e mesmo para os

longes do rio na hipótese de um apetite viageiro. Mas,

como todas as vistas, mesmos as bonitas, deixámos logo

de as ver. Mas ouvíamos os vizinhos, lembro-me muito

bem. Formávamos uma comunidade de ruídos

domésticos, mesmo os mais clandestinos.35

Detentor de uma memória admirável fundamentada na rememoração

sem fissuras, o narrador vergiliano constrói a sua diegese centrada na

evocação da memória afectiva, embutindo uma certa desordem de quem

revive um tempo vivido outrora, no momento da escrita. Está-se, assim,

perante uma diegese fragmentada devido à íntima necessidade de relevar o

que de mais significativo existe para o narrador autodiegético, ou seja, é

como se a memória motivasse a cronologia dos acontecimentos vividos pelo

próprio narrador e omitidos pela emoção, o que contribui para um universo

diegético de carácter lírico e, simultaneamente, para um universo de

memória realmente dinâmico.

Possivelmente, o narrador pretende comunicar a sua aptidão de

reconstrução do real através de um processo metafórico, pois “(…) para os

outros narradores/personagens de Vergílio, a memória não recupera

34 Idem, Ibidem, p. 16. 35 Idem, Ibidem, pp. 184 e 185.

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propriamente os factos, mas recria-os”36, tal como sublinha Rosa Maria

Goulart. Pela memória, o narrador procede a um recuo no tempo, filtrando a

dimensão dos acontecimentos, de modo a revalorizá-los e a comunicar o

passado num tempo presente da escrita, isto porque “a memória, com o seu

carácter inesgotável, alberga, por um lado, uma vasta noção de vida, e, por

outro, colhe na mesma experiência humana o seu progressivo

enfraquecimento e a sua ausência de linearidade”37, daí que a memória seja

a entidade que confere ao texto vergiliano dinâmica.

Perante este fenómeno de ruína genológica (alcançada pela ruptura

com as tradicionais características do romance do século XIX), o autor, no

caso particular de Em Nome da Terra, perfilha o subgénero literário da carta,

enquanto elemento que se oferece como alternativa à relação dialogal, uma

vez que João se encontra viúvo e sozinho no seu quarto da casa de

repouso. Ou seja, o quarto e a carta tornam-se singulares meios capazes de

oferecer a João a possibilidade de estabelecer comunicação com a ausência

de Mónica: “(…) não sei se já te falei do quarto. É uma forma de estares

aqui comigo mais perto, e mesmo esta carta é um pequeno truque para

estares”38. De facto, pela carta, João consegue vencer a infinita distância

que o separa da esposa já falecida, isto porque consegue transpor as

barreiras espácio-temporais, daí que António Gordo afirme que “a carta

apropria-se facilmente das virtualidades do lírico mas sem os

constrangimentos próprios do verso (…) cria(ndo) uma situação de

comunicação virtual (…) em que o ‘eu’ recorda, reflecte e exprime-se como

36 Rosa Maria Goulart, Romance Lírico. O percurso de Vergílio Ferreira, Lisboa,

Bertrand, 1990, p.140. 37 Ana Isabel Serpa, Vergílio Ferreira: a arte de comunicar, Tese de Mestrado em

Literatura Portuguesa, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1997, p. 40. (Texto

policopiado). 38 Vergílio Ferreira, Em Nome da Terra, 9ª edição, Lisboa, Bertrand Editores, 2004,

p. 67.

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se o ‘tu’ estivesse realmente presente”39. Pela escrita da carta – fruto da luz

da memória –, João revisitará, no presente, uma história de amor passado

com Mónica:

Querida. Veio-me hoje uma vontade enorme de te amar. E então

pensei: vou-te escrever. Mas não te quero amar no tempo em

que te lembro. Quero-te amar antes, muito antes.40

Vi o homem inteiro estendido numa cama. Estava podre. Devia

cheirar mal. Mas era humano na sua lixeira como eu de perna

cortada um pouco acima do joelho a equilibrar-me mal no

estupor das muletas. E de súbito a tua imagem, foi a tua

imagem, foi a primeira vez que te vi, era um espectáculo no

ginásio (…)41

À semelhança do romance em estudo, em Para Sempre, o narrador de

nome Paulo evoca, através das lembranças que detém, o esplendor da

esposa Sandra já falecida, quando afirma: “Ouço-a na minha alegria morta,

na revoada da memória longínqua, escuto-a”42. A necessidade impreterível

de estar com a esposa e, sobretudo, de a eternizar pela memória contribui

para que o narrador recorra a um diálogo concretizado pela escrita de uma

carta a ela dirigida, tal como acontece no Em Nome da Terra: “Se soubesses

como tenho pressa de falar de ti. De estar contigo longamente. De te

recuperar desde o teu nome”43.

É, sem dúvida, a técnica da mise-en-abîme articulada com a

desvalorização da diegese que concedem, ao romance vergiliano, a ruína do

próprio romance, enquanto mundo construído na base de uma história

39 António da Silva Gordo, A arte do texto romanesco em Vergílio Ferreira, Coimbra,

Editora Luz da Vida, 2004, p.76. 40 Vergílio Ferreira, Em Nome da Terra, 9ª edição, Lisboa, Bertrand Editores, 2004,

p. 9. 41 Idem, Ibidem, p.20. 42 Idem, Para Sempre, 13ª edição, Lisboa, Bertrand Editores, 1994, p.16. 43 Idem, Ibidem, p.49.

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desordenada cronológica e temporalmente, isto porque o romance passa a

ser construído no acto da escrita, através da evocação da memória.

O narrador autodiegético, enquanto personagem principal,

(auto)responsabiliza-se pela condução e construção da diegese, pois só

desta forma é capaz de adoptar uma atitude mais apropriada para principiar

uma viagem essencialmente interior. Assim sendo, o protagonista de Em

Nome da Terra é um velho inválido e abandonado que, do quarto do asilo em

que se encontra, (re)escreve a sua vida ao jeito de carta dirigida à esposa já

falecida: “E entregar-te esta carta que te escrevo – que é isso? hás-de

perguntar. Uma carta, simplesmente uma carta”44. O facto de João ter já

cumprido toda uma vida confere-lhe a maturidade, a experiência e o

conhecimento favoráveis à emergência da interrogação, uma vez que a

velhice é o momento mais propício à evidência da problemática da morte45.

Nos romances vergilianos assiste-se à construção de um caminho

empreendido na evolução íntima da sua personagem, através do qual este

alcança um estado propício à interrogação da sua própria existência,

chegando mesmo a repudiá-la. O herói vergiliano não consegue alcançar o

seu projecto de vida, pois todos os caminhos raramente culminam, daí a

sensação de que tudo o que foi investido, na viagem íntima do seu próprio

ser, foi inútil.

Uma vez que é impossível chegar ao fim da viagem – porquanto a

morte privará o sujeito de ver a conclusão do seu projecto – permanece,

somente, ao herói de Vergílio Ferreira, a busca de um caminho identificativo

do seu sonho. Contudo, a maldição da condição humana é procurar o seu

44 Idem, Em Nome da Terra, 9ª edição, Lisboa, Bertrand Editores, 2004, p.285. 45 Para melhor compreender a questão do recurso da escrita da carta por Vergílio

Ferreira, consulte-se Rosa Maria Goulart, “Vergílio Ferreira: o diálogo epistolar”,

Fernanda Irene Fonseca (org.), in Vergílio Ferreira: 50 anos de vida literária, Actas

do Colóquio Interdisciplinar, Porto, Fundação Engenheiro António Almeida, 1995,

pp. 295 a 304 e António da Silva Gordo, A arte do texto romanesco em Vergílio

Ferreira, Coimbra, ed. Luz da Vida, 2004, pp. 74 a 77.

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caminho (ou seja, em busca de si mesmo) sem nunca o encontrar

verdadeiramente, conduzindo-o a uma sensação de perda num deserto

infinito. O mesmo significa dizer que o caminho é símbolo direccional de

projecção individual, de incerteza e de destino, o caminho e/ou a viagem (da

busca constante do seu próprio “eu”) exprime toda a inquietação existencial

do protagonista. Desta forma, pode afirmar-se que as personagens

vergilianas condensam em si a significação de um herói existencial e

metafísico, que procura um absoluto, partindo de uma vivência profunda,

através da qual pode reconhecer-se a si próprio, depois de expurgar a

neblina inicial.

Todo o processo de escrita vergiliano – marcado, indubitavelmente,

pelo tempo da interrogação e da incerteza – é o reflexo do homem que vive

uma crucial insegurança existencial, graças aos seus próprios problemas e à

própria experiência do absurdo. Assim sendo, este processo criativo

manifesta a fragilidade do homem que terá como fim a própria reconciliação

consigo mesmo e com o mundo que o rodeia, daí a necessidade que o

narrador sente em inventar universos alternativos ao da sua experiência

negativa. No caso específico de Em Nome da Terra, João revela-se um ser

fragilizado pela sua condição física, por isso mesmo reinventa um universo

alternativo à sua própria existência e experiência negativas: perante a sua

viuvez e a sua condição física, João recria distintos universos a partir da

leitura e da evocação das figuras que se encontram dispostas, tripticamente,

na parede do seu quarto do lar:

Nesta casa estou com o meu corpo, (…). Nós saíamos de um

baile, não sei se te recordas, era uma noite de verão.

Caminhávamos à beira-rio e éramos imensos. Gostava de saber

agora bem o que éramos. (…) Tínhamos vindo da festa, deves

estar lembrada. E eu amava-te tão estupidamente animalmente.

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Havia a tua beleza um pouco insolente agressiva, era talvez

prudente aniquilá-la para que nenhum deus a desejasse.46

Então Antónia (…) começou a lavar-me. (…) Então minha mãe

entrou devagar porta adentro e começou a lavar-me com

carinho (…) e a Antónia voltou a lavar-me ela e eu tinha uma

vontade lenta de chorar.47

Vou lembrar-te quando já era juiz lá no Norte.

Tinhas já o teu lugar de professora na capital e havia um sarau

de ginástica. (…) Quando eu cheguei estava já o sarau em

movimento.

(…)

Tive uma certa dificuldade em te identificar e eu não queria

misturas, desperdiçar a atenção por quem não me dizia nada à

necessidade que eu trazia. Depois vi-te – oh. Estavas linda

fresca vitalizada. Volúvel aérea leve. E tão intensa. Penso em ti e

o que me apetece é repetir contigo a festa do teu corpo. Repetir

a alegria. A eternidade. (…) E os teus movimentos flexíveis,

vigorosos e delicados.48

Recorrendo à reinvenção de novos universos transfigurados “no real

do irreal, que é o único real”49, Vergílio Ferreira desvaloriza a história do

romance, isto porque este último mostra a própria construção da diegese,

pois o único real que existe é, manifestamente, aquele que nasce no apogeu

do acto da escrita. É, efectivamente, ao narrador que cabe o poder de criar

o discurso e, simultaneamente, o seu mundo: João, apesar de permanecer

no lar de idosos, consegue percorrer todos os espaços que fizeram parte da

sua vida passada com Mónica, através do próprio acto da escrita, do qual

afloram os espaços simbólicos tão caros ao romance vergiliano:

(…) pedi doce. Então excitaste-te muito, quiseste comer por tua

mão. Mas sujaste-te toda (…)

– Querida. Deixa-me dar-te para te não sujares. 46 Idem, Ibidem, pp. 10 e 11. 47 Idem, Ibidem, p. 39. 48 Idem, Ibidem, pp. 91 e 92. 49 Idem, Até ao Fim, 8ª edição, Lisboa, Bertrand Editores, 1992, p. 32.

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E eu dei-te mas tu não largavas a taça com as duas mãos. Por

fim pensei – e se fôssemos tomar banho? num tempo antigo, de

outrora, com a festa solar no nosso corpo perfeito. Descemos à

praia e entrámos na água devagar e eu tomei a água na concha

das mãos e derramei-ta devagar na cabeça e disse e disse

– Eu te baptizo em nome da Terra, dos astros e da perfeição.

Mas tu não disseste João sacrílego e apenas riste em

esplendor.50

A tua noite, querida. A treva horrível. Estou tão cheio de pressa

de a atravessar. Encontrar-te ao alto da contingência e da

morte.

– Senhor doutor. A senhora sujou-se outra vez.

Encontrar-te depois na eternidade do teu ser. Eternidade na

Terra, mais alta que a de Deus. Atravessar mesmo o que era

belo e que morreu. O nascimento dos filhos, o seu crescimento,

o seu adeus à nossa protecção.51

É, pois, no momento da escrita que o narrador se interroga sobre a sua

identidade, existência e imagem física, ou seja, o seu drama interior que o

impossibilita de produzir, ordenadamente, a diegese do seu romance. O

narrador de Em Nome da Terra assume, com plausibilidade e verosimilhança,

a sua condição de velho e debilitado fisicamente e as suas naturais dúvidas

e esquecimento.

Neste estádio da vida, João vive uma profunda solidão, na medida em

que Mónica já falecera e os filhos o abandonaram no lar de idosos. Todavia,

estes espaços, dotados de um certo negativismo, devem ser encarados,

simultaneamente, como espaços singulares onde a solidão e o silêncio

alimentam a memória e a emoção do narrador-personagem, através dos

quais este consegue alcançar a sua verdadeira plenitude: a escrita e a

rememoração do passado partilhados com Mónica.

50 Idem, Em Nome da Terra, 9ª edição, Lisboa, Bertrand Editores, 2004, pp. 170 e

171. 51 Idem, Ibidem, p. 285.

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O herói vergiliano, perante os seus limites e o seu sofrimento,

empreende a “aventura da escrita”52 da sua história, por isso nomeia Mónica

como personagem de eleição para o directo diálogo que pretende construir.

Desta forma, o narrador, face à sua debilidade e decadência física,

rememora Mónica, como mulher por inteiro e quase única na sua vida, em

plenitude e perfeição, como se nela o narrador encontrasse o absoluto e a

eternidade, ainda que apenas na memória.

Na realidade, são os objectos e/ou os espaços de abandono, repletos

de vida sepulta, que despertam a memória e propiciam a meditação dos

heróis vergilianos, tal como acontece no texto Em Nome da Terra: aqui, o

narrador apoia-se na deambulação pelo lar de repouso, acabando por

descrever espaços e pessoas e, de uma maneira especial, a sua relação

com determinados objectos que fizeram parte do seu passado pessoal e

com os quais decorou o seu quarto:

Queria só o Cristo que trouxe da aldeia depois da morte da

minha mãe, como sabes, e que estava na sala de jantar por

cima do aparador, queria um desenho do Dürer que estava ao

lado da minha secretária, e uma estampa a cores de um fresco

de Pompeia que era a deusa Flora ou a Primavera e que estava

também no escritório e se parecia imenso com a essência de ti.

Já trouxe tudo.53

A imagem do Cristo, o desenho de Dürer e a estampa de um fresco de

Pompeia revelam-se essenciais a João, uma vez que só eles tornam possível

a vida no lar, daí que esses objectos denunciem um determinado valor

simbólico: a fugacidade do tempo bem visível na progressiva perda de

esplendor físico de Mónica:

52 António Gordo, A arte do texto romanesco em Vergílio Ferreira, Coimbra, Editora

Luz da Vida, 2004, p.89. 53 Vergílio Ferreira, Em Nome da Terra, 9ª edição, Lisboa, Bertrand Editores, 2004,p.

46.

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Vêm-me as imagens em turbilhão, não o disse já? Vêm. Mas há

sempre uma que vem sobre as outras e és tu. Vivacíssima

energética rapidíssima, sobre outras imagens – tantas. Mas há

uma que. Não, não é essa de quando eu lavava o teu corpo

disforme com uma piedade difícil, horror horror.54

Deixa-me ver-te antes e antes – ou não foi aí que te

espelhaste? deste-me tanto trabalho. Havia um outro

restaurante à beira-rio, mais adiante, um motel, gostavas tanto

de lá ir quando eras ainda em esplendor. 55

A gente tirava-lhes fotos em miúdos, armava-os ali e eles iam

crescendo e a infância deles continuava em retrato que não era

já de nada. Podíamos substituir tudo por retratos de adultos,

mas ficaram sempre os de criança, porquê?56

Por isso, o papel da memória na construção do romance vergiliano é

deveras importante, pois só a memória é capaz de recuperar a vida de

outrora e instaurá-las no tempo presente da escrita e da eternidade, onde o

narrador consegue ver todos os seus problemas e angústias superadas.

Da incerteza perante a verdade revelada em cada aparição, caminham

os narradores-protagonistas num processo de reflexão constante, através de

uma escrita que busca uma forma capaz de expressar a perplexidade na

revelação à consciência da verdade.

No romance Em Nome da Terra, Vergílio realiza uma escrita da paixão,

uma vez que o romance demonstra a inquietação do narrador-protagonista

em triunfar perante a iminência da morte inevitável. Está-se, de facto,

perante um texto marcado por constantes interrupções, reflexões e tentativas

de diálogos constantemente suspensos, resultantes de uma narrativa em que

o tempo acompanha o ritmo da memória:

54 Idem, Ibidem, p. 84. 55 Idem, Ibidem, p. 86. 56 Idem, Ibidem, p. 115.

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Não vou. Por enquanto não vou. Preciso ainda de estar contigo

mais um pouco, antes da minha servidão. O banho. Já lá vou.

Quero ir primeiro ter contigo (…).57

Não te vou beijar outra vez. (…) Prefiro contar-te da minha

solidão lá do Norte. Contar-te talvez as histórias que ainda lá

havia da guerra civil ali perto. Sangue horror. Mas não agora.

Talvez mais tarde, deve haver ocasião. Porque estou rodeado de

morte e miséria e horrível. Deve haver.58

O Salus queria revolução? Havia luta armada? Qual a sua

finalidade? Provou-se o encontro dos revolucionários? Quem

eram? Está provado que seria um desastre para o país? Está

provado que seria uma torneira aberta para toda a criminalidade?

Está provado que seria um estímulo para os grandes homens

que não ousavam? Está provado que o tal artigo da Constituição

abrange a acção radiofónica? Quem estava na origem de tudo

isto? Etc. Por outro lado, como pode o governo tolerar a

instabilidade? Provou-se que de início soube logo e depois é

que agiu? Que razões tinha para impedir uma melhoria social?

Que razões tinha para saber que não era uma melhoria social?

Provou-se que não tinha gente implicada? Etc.

– De modo que por enquanto não tenho opinião.59

Vergílio Ferreira alicerça o seu próprio discurso romanesco de acordo

com determinados fragmentos rememorados de acontecimentos e de

discursos vividos pelas suas próprias personagens. Torna-se, então,

evidente que a dinâmica fragmentária da escrita vergiliana conduz à

intersecção harmoniosa de vários planos temporais, ao longo de toda a

diegese, que se vão textualizando ao ritmo da evocação da memória do

narrador.

Abraçando o pensamento que Isabel Cristina Rodrigues tece no seu

estudo intitulado A Palavra Submersa. Silêncio e Produção de Sentido em

57 Idem, Ibidem, p. 27. 58 Idem, Ibidem, p. 93. 59 Idem, Ibidem, p. 108.

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Vergílio Ferreira60, o romance Em Nome da Terra denuncia, inegavelmente,

este princípio de ausência de harmonia, de caos e fragmentação discursiva,

como se pode verificar no episódio em que João expõe o momento da

amputação da sua perna, cruzando-o com um outro episódio preconizado

por ele, outrora, num estádio de futebol – intersectando esses dois

momentos distintos, o narrador acaba por transformar a bola de futebol na

sua própria perna:

Foi quando fiquei só, em frente do guarda-redes, para marcar a

grande penalidade e todo o estádio gelou num grande silêncio.

(…) E com uma força descomunal, preciso, disparei. E então

minha perna desprendeu-se do meu corpo, e voou por cima do

estádio, balançando-se lenta no ar, (…) E à minha volta havia

agora uma azáfama de médicos fantasmas e enfermeiros,

falando brevemente entre si mas a uma distância a que os não

podia entender.61

Visto que não se verifica o registo linear do passado – pois toda a

narrativa excede as suas coordenadas temporais –, a estrutura narrativa,

elaborada pelo narrador, é construída na base das recordações que assaltam

e provocam o narrador, daí o carácter emotivo imprimido ao discurso,

consequência da sua comoção e da sua exaltação, de acordo com a

tessitura da evocação de um tempo relativamente distante, graças às

inflexões do presente que contribuem para a contemplação retrospectiva dos

acontecimentos e, consequentemente, da sua experimentação ao mesmo

tempo que os narra. Sendo assim, pode afirmar-se que estes “saltos” no

tempo e no espaço testemunham, de forma convincente, a harmonia do seu

60 Veja-se o subcapítulo elaborado por Isabel Cristina Rodrigues, “Silêncio e

orquestração da narrativa: o avesso da sinfonia”, in A Palavra Submersa. Silêncio e

Produção de Sentido em Vergílio Ferreira, Tese de Doutoramento em Literatura,

Aveiro, Universidade de Aveiro, 2006, pp. 166 a 179. (Texto policopiado). 61

Idem, Ibidem, pp. 202-203.

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canto, o seu cruzamento e a dissolução dos planos temporais e espaciais

distintos.

A escrita de Vergílio Ferreira, enquanto sublimação da angústia,

manifesta a triunfante revelação da condição humana, isto é, apesar de

padecer de cada situação vivida, a escrita procura realizar a sua utopia,

dizendo o indizível, comunicando o absolutamente incomunicável e

esperando pacientemente a chegada da morte, através da recuperação dos

tempos gloriosos vividos no passado: “Depositaram-nos aqui até perderem

a mania de estar vivos, mas quem lhes tira a mania?”62. Segundo Luci Ruas

Pereira63, da incerteza perante a verdade revelada em cada aparição, os

narradores vergilianos trilham um processo de reflexão constante, através de

uma escrita que busca uma forma capaz de expressar a perplexidade na

revelação à consciência da verdade. Saliente-se o facto de o romance Em

Nome da Terra ser construído na base do conflito entre o desejo de João

amar a esposa (num tempo em que esta tinha a plena beleza física) e, ao

mesmo tempo, a sua incapacidade para realizar essa intenção no momento

presente, uma vez que Mónica se encontra ausente e o corpo do narrador

debilitado: “e eu quero é amar-te, mais nada, mas nada. (…) amar-te por

cima de todo este esterco e confusão”64.

Enquanto romance de índole epistolar, o romance escrito por Vergílio

Ferreira acentua a angústia do ser humano nos seus momentos de agonia,

gritando ao mundo o desejo de suspender o desfecho inevitável. Por isso

mesmo, o narrador constrói a narrativa a partir da inquietação e da angústia

que sente perante a sua incapacidade de deter o tempo da vida, de que a

62 Idem, Ibidem, p.165. 63 Luci Ruas Pereira, “Os sentidos da paixão no romance Em Nome da Terra”, in

Fernanda Irene Fonseca (org.), Vergílio Ferreira: 50 anos de vida literária, Actas do

Colóquio Interdisciplinar, Porto, Fundação Engenheiro António de Almeida, 1995,

pp. 463 a 470. 64 FERREIRA, Vergílio, Em Nome da Terra, 9ª edição, Lisboa, Bertrand Editores, 2004,

p. 213.

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velhice e a degradação física são a presença inequívoca e a morte o destino

mais próximo e irreversível.

A passividade não é um adjectivo que caracterize os narradores de

Vergílio Ferreira, porém os velhos da casa de repouso de Em Nome da Terra

esperam, tranquila e passivamente, a morte. Mesmo sentindo a existência de

um outro corpo e sentindo-se humilhado em virtude de algumas das suas

reacções, o narrador do referido romance agarra-se, ainda, à última

oportunidade de manifestar as suas capacidades, numa narrativa que

anuncia o percurso, sempre adiado, para a morte:

E sem me dar atenção, continuou a despir-me. Querida. Era

uma moça ainda nova e ela retirava-me peça a peça a minha

idade adulta até ficar a criança que ela queria. Eu tomo o banho!

berrei-lhe para ela acreditar na minha força de homem. E ela

disse ora não querem lá ver este menino birrento. Estou nu e

sem razão para ter vergonha de estar nu, que era o que apenas

me podia agora vestir. E tinha o coto da perna a atestar isso,

porque o meu corpo não estava inteiro para atestar a

importância de si.

Por isso refugia-se na memória, de modo a evitar pensar o futuro – “onde

está a morte, cheia de pressa terrestre”65 –, criando, assim, a imagem

imortal do corpo perfeito e belo da mulher com a qual convive.

Na verdade, é no tempo da escrita que o narrador, quer de Em Nome

da Terra, quer de Para Sempre, evidencia o seu poder de (re)criação da vida,

adiando a chegada da morte, uma vez que evoca, constantemente, a

memória presentificadora da esposa já morta; ou seja, numa tentativa de

iludir o destino, o “eu” narrativo reinventa a imagem de Mónica e/ou de

Sandra, respectivamente, de modo a amá-la até que tudo se gaste,

deixando-o só consigo mesmo a aguardar a noite definitiva. Porém, não

pode evitar que, no plano da realidade da vida, se cumpra o destino.

65 Idem, Ibidem, p.152

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Desta forma, torna-se evidente, ao olhar atento do leitor, a distinção

entre dois tempos: por um lado, o tempo da escrita – no qual o narrador se

torna poderoso, capaz de presentificar acontecimentos que habitam a

lembrança –; por outro lado, o tempo passado do acontecimento vivido

outrora, mas recordado de maneira a garantir a eternidade do gesto. Ora, os

universos narrativos construídos por Vergílio Ferreira caracterizam-se pela

frequente desrealização da diegese representada, graças à focalização do

narrador regida pelas alucinações e fantasmas que povoam os seus mundos,

narrando-os, por isso, como se existissem efectivamente. Uma vez

prisioneiro no enredo subjectivo da memória e do mundo mental, o narrador

vergiliano abeira-se da irrealização imaginativa do passado, o que contribui

para a promiscuidade das fronteiras do real e do irreal, pois o mundo surge,

à vista do leitor, como um enigma e a arte como uma via pela qual o mistério

do real é evidenciado.

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I. 2. 2 RUÍNA DO ESPAÇO66

A narrativa de Vergílio Ferreira encontra-se afastada da noção de

narrativa proposta por Benveniste67, pois é caracterizada não pela terceira

pessoa enunciativa nem pelas formas verbais no passado, mas antes pela

presença de um sujeito de dimensão arquetípica, que confere à narrativa

uma dimensão subjectiva, a partir da qual esse sujeito se movimenta numa

pluralidade de espaços e de tempos, na procura do sentido do universo e de

si mesmo no dédalo da sua existência, traçada no espaço criado do

discurso.

Ao arquitectar espaços narrativos de carácter existencial, Vergílio

Ferreira pretende revelar ao leitor espaços relacionados com situações-limite

vivenciados pelas suas personagens; a título de exemplo, refere-se a

situação de invalidez e o consequente internamento num lar de repouso da

personagem João, no romance Em Nome da Terra, associados, ainda, aos

temas da solidão afectiva pelo abandono dos filhos, após a morte da esposa

Mónica, e da sua própria velhice.

A velhice, a solidão, a angústia e o silêncio, enquanto situações-limite

de carácter existencialista, associadas ao trabalho da escrita, são o espelho

do drama humano da personagem vergiliana: esta sente-se tragicamente

forçada pela irreversibilidade do tempo, daí não conseguir nada para

contrariar e/ou adiar a degradação que o irá acompanhar até ao fim da sua

vida. Apesar do ciclo vida/morte, o narrador e personagem principal instala-

-se fora desse ciclo, adiando quer a sua degradação quer a sua morte,

66 Para melhor compreender a ruína do espaço – a multiplicidade de espaços

(re)criados ao longo da diegese –, veja-se António da Silva Gordo, A arte do texto

romanesco em Vergílio Ferreira, Coimbra, Editora Luz da Vida, 2004,pp. 135-161,

assim como José Luís Gavilanes Laso, Vergílio Ferreira, espaço simbólico e

metafísico, Lisboa, Dom Quixote, 1989, pp.103-333. 67 Cf. Carlos Reis, O Conhecimento da Literatura, 2ª edição, Coimbra, Almedina,

1997, pp. 348-353.

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através da evocação de um mundo dominado pela Arte e projectado pela

memória: pela palavra poética – transfiguração lírica do real –, o homem

inventa-se e eterniza-se, conseguindo deter a sua degradação física e a sua

própria morte.

Na realidade, são os objectos e/ou os espaços de abandono, repletos

de vida sepulta, que despertam a memória e propiciam a meditação dos

heróis vergilianos, tal como acontece na obra Em Nome da Terra: aqui, o

narrador apoia-se na deambulação pelo lar de repouso, acabando por

descrever espaços e pessoas e, de uma maneira especial, a sua relação

com determinados objectos que fizeram parte do seu passado pessoal e

com os quais decorou o seu quarto. A imagem do Cristo, o desenho de

Dürer e a estampa de um fresco de Pompeia revelam-se essenciais a João,

uma vez que só eles tornam possível a vida no lar, daí que esses objectos

denunciem um determinado valor simbólico. Na verdade, são estes objectos

que ajudam o narrador a “libertar[-se] e, de certo modo, triunfar sobre a sua

morte próxima”68, na medida em que, através da sua evocação, João

recupera e, simultaneamente, reactualiza o seu quarto do lar, enquanto

espaço de abandono e em ruína: “Estão velhos, querida, babam-se e riem,

cheios de uma alegria azul, a empregada mete-lhes a comida na boca”69.

Vergílio Ferreira edifica os espaços dos seus romances a partir da

ordenação e consequente unificação que o acto da escrita lhe impõe, pois a

pluralidade dos espaços deve-se à desmultiplicação de um “eu” singular

que constrói, ornamenta e habita a própria diegese, ou seja, unifica todos os

espaços que coexistem no mesmo romance. Desta forma, pode afirmar-se

que o espaço construído no imaginário vergiliano é um puro reflexo da forma

68 José Luís Gavilanes Laso, Vergílio Ferreira, espaço simbólico e metafísico,

Lisboa, Dom Quixote, 1989, p. 195. 69 Vergílio Ferreira, Em Nome da Terra, 9ª edição, Lisboa, Bertrand Editores, 2004,

p. 255.

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como o homem actual encara o mundo e se relaciona com ele. É desta

forma que o Autor se torna expoente singular da revalorização do espaço,

tão caro à modernidade.

O silêncio e a solidão, enquanto características essenciais do espaço

do herói vergiliano, são inseparáveis, pois constituem uma atmosfera

propícia à aparição do “eu” a si mesmo e, simultaneamente, à recuperação

do próprio passado pela conquista da palavra: “Toda a personagem

vergiliana é marcada por um destino de solidão.”70

A solidão, vivida intimamente pelas personagens de Vergílio Ferreira,

deve ser compreendida como o despertar da consciência, isto é, a

descoberta do mais íntimo do seu “eu”. A solidão é, sobretudo, vivificada no

momento em que nasce a noite, momento propício à contemplação do

mistério do ser humano no mundo, uma vez que essa mesma solidão é

concebida como suporte à paz necessária para iniciar a viagem de busca da

verdadeira identidade do “eu” narrador. A noite surge, então, como antífrase,

simbolizando o repouso e a confraternização com o espaço da memória, da

recordação, o qual possibilita o reencontro afectivo com um tempo dantes

vivido.

O quarto surge, em muitos romances vergilianos, como espaço do

próprio narrador e, simultaneamente, da sua situação existencial. Ou seja, o

quarto é o espaço empreendedor do caminho da busca do “eu” em perfeita

solidão, porque é um lugar propício à meditação, graças ao silêncio que aí

preside, o qual contribui para que o “eu” narrador não se desvirtue da sua

tendência natural para a conquista de si mesmo. É, de facto, deambulando

“pelo espaço do silêncio nocturno”71 que o sujeito narrativo se protagoniza,

70 Rosa Mª Batista Goulart, Romance Lírico. O percurso de Vergílio Ferreira, Lisboa,

Bertrand, 1990, p. 260. 71 José Luís Gavilanes Laso, Vergílio Ferreira, espaço simbólico e metafísico,

Lisboa, Dom Quixote, 1989, p. 170.

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através de um intimismo de cunho metafísico, em absoluta solidão

existencial, uma vez que a sua comunicação com o mundo é frustrada.

Pode, assim, inferir-se que o silêncio72, enquanto conotação simbólica de

orientação metafísica, adquire uma significação absoluta, quando se

identifica com a morte, tema crucial e obsessivo do universo metafísico de

Vergílio Ferreira.

O espaço habitado pelo herói vergiliano depende da seriação de

valores que vivem no universo interior do sujeito, daí deixar-se levar pela

evocação dos espaços e dos objectos, reincorporando em si as vivências

passadas. No romance Em Nome da Terra em particular, Vergílio Ferreira

procura reconstruir o seu espaço no lar de idosos, acabando por incluir

objectos fundamentais à sua existência, uma vez que estes mesmos

objectos fizeram parte da sua vida com Mónica:

Queria só o Cristo que trouxe da aldeia depois da morte de

minha mãe, como sabes, e que estava na sala de jantar por

cima do aparador, queria um desenho de Dürer que estava ao

lado da minha secretária, e uma estampa a cores de um fresco

de Pompeia que era a deusa Flora ou a Primavera e que estava

também no escritório e se parecia imenso com a essência de ti.

Já trouxe tudo.73

De facto, o herói vergiliano sente necessidade da presença de

determinados objectos indispensáveis à reconstrução do seu novo habitat,

mesmo tendo sido objectos inúteis, outrora, para si. Esses objectos

privilegiados sobressaem ao longo da diegese, graças à sua importância

simbólica e ao seu poder evocador de vivências passadas pelo protagonista.

Partindo da evocação de episódios passados de carácter reflexivo, o

72 Confira-se o trabalho de Isabel Cristina Rodrigues, A Palavra Submersa. Silêncio

e Produção de Sentido em Vergílio Ferreira, Tese de Doutoramento em Literatura,

Aveiro, Universidade de Aveiro, 2006, pp. 99-120. (Texto policopiado). 73 Vergílio Ferreira, Em Nome da Terra, 9ª edição, Lisboa, Bertrand Editores, 2004,

p. 46.

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narrador destaca a sua própria condição de ser humano mutilado ora física,

ora psicológica, ora emocionalmente.

É através desta viagem encetada pelo narrador através dos diversos

espaços e tempos, que este herói existencialista ajusta o seu espaço

presente. Os espaços vão surgindo na narrativa ao ritmo de uma certa

deambulação psicológica e emocional do “eu”, construtor da diegese, pelos

espaços e pelos objectos; os acontecimentos vão emergindo de acordo com

o procedimento, conscientemente adoptado, da rememoração. Este

processo favorece um tipo de descrição ao jeito de Proust, ou seja, a

evocação do passado motiva descrições de índole poética, subjectiva e,

consequentemente, repetitiva. Tal como acontece no romance Em Nome da

Terra, João, pela memória e pela imaginação, deambula pela casa de

repouso, construindo uma descrição – completada com sucessivos retoques,

maioritariamente repetitivos – insistente nos traços evidentes do abandono,

da solidão, da velhice e do silêncio. Cada descrição traçada por Vergílio

Ferreira transfigura-se numa etapa da viagem percorrida pelo sujeito em

busca do conhecimento do seu próprio “eu” e do mundo em que vive: toda

a descrição é uma aventura do espírito do narrador.

Embora estejamos na presença de um espaço vário, este impõe a

necessidade de unidade, alcançada pela viagem regeneradora permitida pelo

espaço imaginado do discurso. Ou seja, é o discurso enquanto espaço que

reinstala a ordem espácio-temporal de que a narrativa vergiliana carece.

No romance vergiliano, o espaço é um dos elementos cruciais de

iluminação da autognose dos seus personagens, isto porque a fugacidade e

a solidão da condição do ser humano revelam-se, de um modo particular,

no labirinto do próprio asilo de Em Nome da Terra: o corpo confessa-se,

neste romance, como signo da revelação, uma vez que a degradação física

e a morte estão patentes, indubitavelmente, no corpo do narrador, não

resultando, somente, de um acto cognitivo.

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Se, por um lado, a revelação leva o sujeito narrativo ao trágico, por

outro lado, esta manifestação é, simultaneamente, o único antídoto capaz de

combater a condição do ser-para-a-morte, pois a morte é o único meio

pelo qual a vida se transforma em destino. A existência humana, sendo um

caminho repleto de obstáculos com os quais colide constantemente, faz da

vida, por vezes, uma experiência frustrante, penosa, dominada por várias

adversidades. O caminho, traçado por Vergílio Ferreira, caracteriza-se pela

ambiguidade, pois é um caminho que as suas personagens devem percorrer

de maneira a compreenderem o seu próprio interior, ou seja, este é um

caminho no qual a distância ocupa o mais íntimo do ser humano, visto que a

confiança no progresso humano completa-se, apenas, com o suplemento

da alma, daí que se destaque uma revolução interior de índole metafísica das

personagens. São, de certa forma, os espaços fechados, onde o

protagonista se encontra enclausurado, que propiciam, através do silêncio

metafísico, uma simbólica transcendência e interrogação existencial e

metafísica, pois estes espaços provocam uma certa estranheza e,

simultaneamente, uma tomada de consciência em relação ao sentimento de

perda e de inquietação para o narrador, uma vez que é um espaço, para si,

repressivo e agressivo à sua própria liberdade.

Sendo um elemento de extrema importância, o espaço ocupa o lugar,

por excelência, da revelação da condição humana. É, por isso mesmo que o

quarto de João, no asilo de Em Nome da Terra, se torna o espaço da

“aparição” da condição física e emocional do narrador, ou seja, aí, João

descobre que o corpo é “signo da aparição”74, isto porque é nele que a

degradação e a morte se instalam.

Só pelo reconhecimento da sua condição enquanto ser humano, os

narradores vergilianos conseguem combater a sua condição presente,

74 Carlos M. F. da Cunha, Os mundos (im)possíveis de Vergílio Ferreira, Lisboa,

Difel, 1997, pp. 53.

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através do adiamento ou, até mesmo, da anulação dos vestígios que

começam a surgir no espaço onde habita. Em Nome da Terra revela que

João, ao longo de toda a diegese, tende a adiar e, sobretudo, a anular os

sinais de ruína que com ele coexistem no lar de idosos: a humilhação, a

decadência, a corrupção e a morte do corpo.

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I. 2. 3 RUÍNA DA PRESENÇA DE DEUS75

Invocado no registo da negação e da morte, a “ausência presente”76

de Deus, na obra de Vergílio Ferreira, não vem invalidar o interesse do autor

pela problemática do cristianismo actual, mas antes valorizar os valores

cristãos que enaltecem o homem e a sua dignidade, assim como a

importância do corpo enquanto lugar da sua própria revelação: “(…) não há

em Vergílio Ferreira o propósito de subversão de todos os valores segundo o

código humanista-cristão da cultura ocidental”77. O processo da “morte” de

Deus não advém de uma condenação radical da cultura cristã, mas antes da

figura espiritual de Jesus, ou seja, o pensamento vergiliano é arquitectado na

base da ideologia do cristianismo, não a partir da vida de Cristo.

A dualidade presença/ausência de uma figura divina na obra vergiliana

encontra-se melhor esboçada no romance Em Nome da Terra: com a

imagem de Cristo crucificado sem cruz, o narrador estabelece um diálogo, a

partir do qual evidencia a comum condição corporal e a solidariedade – de

Cristo – no sofrimento e na morte com todos os homens; o narrador

reconhece um Cristo-homem pela humilhação, decadência e morte: “O

reconhecimento de um homem por outro homem, não do lado triunfante mas

da humilhação, não do da alegria mas do sofrimento, não do da saúde mas

de um corpo apodrecido”78.

75 Verificar o estudo elaborado por Mª Joaquina Nobre Júlio intitulado O Discurso de

Vergílio Ferreira como questionação de Deus, Ensaio Interdisciplinar, Lisboa,

Edições Colibri, 1996, para uma melhor compreensão da questão da

presença/ausência de Deus, pp. 167-177 e 229-245. 76 Mª Joaquina Nobre Júlio, O Discurso de Vergílio Ferreira como questionação de

Deus, Ensaio Interdisciplinar, Lisboa, Edições Colibri, 1996, p. 151. 77 Eduardo Lourenço, “Vergílio Ferreira: do alarme à jubilação”, in Colóquio/Letras,

nº 90, Março 1986, p.24. 78 Vergílio Ferreira, Em Nome da Terra, 9ª edição, Lisboa, Bertrand Editores, 2004,

p. 70.

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Apesar desta comunhão no sofrimento e na morte, a morte de Jesus

foi violenta, enquanto que a morte do narrador é consequência da

degradação do seu próprio corpo, mas esta diferença não quebra a

solidariedade que existe entre ambos, isto porque reconhece-se a

degradação de ambos os corpos até à morte:

Mas não quero diminuir-te o sofrimento, que sempre é de doer.

Porque de todo o modo também apanhaste o teu cuspo. Não

apenas dos que te cuspiram mas do teu próprio corpo em ruína.

Deves ter olhado as tuas chagas e sentir-te ofendido na

destruição do teu corpo, da tua inteireza, do conforto que

devias ter em sentir-te todo em ti. Porque só um corpo

destruído é tão humilhante.79

De facto, a figura de Cristo surge como paradigma do sofrimento

humano, aquele cujo sofrimento e morte revela um valor exemplar e funda

uma comunhão não somente com o narrador, mas com a humanidade: “Mas

é preciso olhar-me aí, ver-me aí metido no teu corpo, sem pensar muito no

que está antes e depois”80. Para o narrador do romance Em Nome da Terra,

o momento da morte na cruz de Cristo torna-se axial, na medida em que

partilha com o ser humano o sofrimento e a morte do corpo: é pela via

corporal e da morte que se funda a afirmação divina do homem.

O humanismo vergiliano adquire, por isso, uma dimensão reflexiva,

filosófica e ética, uma vez que exprime uma posição radical face à questão

“O que é o homem?”. A reflexão vergiliana a propósito do homem encontra-

se fundamentada no ensaio Invocação ao Meu Corpo, onde o autor

interroga, sugere e reflecte nas diversas dimensões que descrevem o ser

humano enquanto ser divino em si e por si mesmo e, também, como produto

casual da história da natureza, por isso a paradoxal condição humana

encontra o seu eixo na realidade inexorável da morte. Assim sendo, pode

79 Idem, Ibidem, p.73. 80 Idem, Ibidem, p.70.

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afirmar-se, mediante o pensamento vergiliano, que a realidade humana é

“feita de grandeza e de miséria, de aspiração de absoluto e de finitude, é

pensada, assim, sem dramatismo, mas não sem dignidade”81.

Sendo um ser capaz de (auto)questionar o mundo em que vive, o “eu”

é o sujeito que pensa, age e sente, por isso encontra-se apto a entregar-se

à experiência transcendental do “eu”: o homem é capaz de se afirmar,

ganhando contornos de infinitude, de irrefutabilidade, de absoluto e de

intemporal. Por seu turno, o “tu” é, segundo a perspectiva de Vergílio

Ferreira, um “eu” visto em alguém, daí a contemplação do “tu” através do

corpo degradado de Mónica.

Desta forma, o “tu” não é mais senão uma polaridade do “eu”, ou

seja, é quando o “tu” significa o corpo esbelto da mulher ausente

presentificada pela memória e pela escrita que tem lugar na presentificação

do “tu”. Fruindo da música – concerto para oboé – e contemplando o corpo,

o narrador delicia-se em realçar não só a sua ambiguidade, como também a

sua maravilha e a sua humilhação. Perplexo, João assiste à degradação

corporal progressiva de Mónica, que sofre até à senilidade total com a perda

de todas as suas faculdades.

Se, por um lado, o corpo remete para a condição finita do ser

humano, por outro lado, deve ser encarado como estatuto totalizador e

absoluto do homem, isto porque este é um ser uno e íntegro, mesmo quando

se vê afectado pela sua degradação física, o que limita não o seu íntimo,

mas antes a sua relação com os outros e com o mundo. Vergílio Ferreira

trata a morte do ser humano, ao longo da sua obra literária, através de um

processo contínuo de degradação corporal presente nas suas personagens

ficcionais.

81 Mª Joaquina Nobre Júlio, O discurso de Vergílio Ferreira como questionação de

Deus, Ensaio Interdisciplinar, Lisboa, Edições Colibri, 1996, p.233.

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Segundo a perspectiva vergiliana, a arte, enquanto valor relativo,

converte-se em valor pleno capaz de fundir o mistério da vida e da morte,

através do dom sagrado de criar. Assim sendo, a salvação do homem reside

no fazer artístico, via pela qual se constrói o caminho de busca de sentido

para as interrogações de carácter existencialista.

Tendo a sua origem no homem como resposta, Deus é uma invenção

humana pela consciência e reconhecimento de que o homem está vivo, ou

seja, é na transcendente procura existencialista que o problema de Deus se

deve circunscrever, pois o autêntico rosto do divino anuncia-se na

interrogação profunda revelada pela experiência artística. A arte é, deste

modo, a expressão humana através da qual ressoa a herança divina de criar,

uma vez que o artista decide qual a forma mais autêntica de assumir e sofrer

uma condição humana num tempo em que, por um lado Deus está morto e,

por outro lado, o homem vive entre o abandono e a solidão.

Assim sendo, a obra de arte, enquanto símbolo de uma realidade

transcendente à sua significação, adquire um novo estatuto, porquanto esta

é uma projecção do ser (artista) e conservadora do sentido transcendente. A

identificação da arte com o sagrado corresponde ao nosso mundo

transcendente, pelo qual o homem se eleva a um plano de liberdade e,

sobretudo, de criação: “Porque a Arte não é um acréscimo no homem mas a

expressão do que fundamentalmente o estrutura”82. Esta aproximação deve

ser apreendida, à luz da perspectiva de José Luís Gavilanes Laso83, como via

pela qual a arte quebra as barreiras do mundo real e do mundo ideal,

representando, desta forma, o infinito dentro da finitude e proclamando a

eternidade da arte, pois esta não é senão uma designação do sagrado.

82 Vergílio Ferreira, Invocação ao Meu Corpo, 2ª edição, Lisboa, Bertrand Editores,

1994, p.226. 83 José Luís Gavilanes Laso, Vergílio Ferreira, espaço simbólico e metafísico,

Lisboa, Dom Quixote, 1989, “A Capela ou a Redenção pela Arte”, pp. 176 a 210.

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A ausência de Deus, na obra Em Nome da Terra, reflecte-se

associada à morte de alguém querido para o narrador-

-protagonista, isto é, esta ausência surge ligada à morte da mulher amada já

morta, daí que se possa afirmar que o leitor está perante uma morte

enquanto indício de desamparo e de solidão, por isso o narrador encontra-

-se “desamparado no labirinto de uma solidão sideral”84.

Sendo a arte um dos processos de alcançar as marcas perdidas do

homem religioso, este projecta-se no reencontro com o sagrado de índole

existencialista e estético: no romance citado anteriormente, o protagonista

reencontra-se com o Cristo crucificado colocado na parede do seu quarto

na casa de repouso. É da imagem deste Cristo mutilado que João – o “eu”

narrativo – recupera e reactualiza o sagrado, uma vez que é conduzido a

uma manifestação: apesar da situação degradante em que se encontra,

aceita-a.

Toda a obra vergiliana se encontra absorvida pela presença da morte,

perante a qual se edifica a expressão artística, porém a arte não irrompe

para anular a morte da existência humana, porque consegue, meramente,

incorporá-la resignada e serenamente – é nesta aceitação que permanece o

triunfo do homem sobre ela. De acordo com Eduardo Lourenço, este alicerce

de aniquilação deve ser percebido como uma incitação pela qual o espelho

da morte proporciona um sentido autêntico à vida.

A arte deve interpretar-se como um acto de liberdade perante a morte,

uma vez que esta mostra ao homem o que está para lá dos seus limites, pois

ela apresenta-se como discurso metafísico, a partir do qual é possível, ao

homem, vencer e libertar-se de todo o absurdo que a morte implica. É, pois,

desta forma que a importância da morte deriva da relevância da vida e da

sua autenticidade.

84 José Luís Gavilanes Laso, Vergílio Ferreira, Espaço Simbólico e Metafísico,

Lisboa, Dom Quixote, 1989, p.196.

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Em síntese, pode asseverar-se que ao proclamar um determinado

cepticismo perante as grandes narrativas legitimadoras, Vergílio Ferreira

proclama a diegese postulada na fidelidade à desordem da vida e do mundo

em que, manifestamente, se funda a situação vivencial do narrador

vergiliano. Invalidando a tradicional concepção da ordem cronológica da

narrativa, adoptando a perspectiva de Nietzsche, o autor de Em Nome da

Terra sobrepõe a ordem psicológica à ordem cronológica, perfeitamente

ilustrada nas palavras de João: “Sim, sim, Mónica. A causa depois do efeito.

(…) Qual é a sequência da causa/efeito? Mónica, minha querida, eu posso

perfeitamente dizer que a causa, que é o lume, está depois do efeito, que é

a bomba.85. Esta ruptura temporal, evidentemente assumida quer pelo

próprio autor, quer pelos seus narradores, evidencia a ameaça tão

reiteradamente defendida por Vergílio Ferreira: a da morte do romance,

porquanto a paródia e a desconstrução de grandes discursos ideológicos do

tempo actual encontram-se patentes nos seus romances.

A transgressão da ordem cronológica dos acontecimentos narrativos

resulta não só do tempo subjectivo do narrador, assim como da submissão

às leis reguladoras do secretismo do seu interior, que surgem, no

pensamento vergiliano, como forma de alcançar o equilíbrio interior. A

desordem da história cronológica é atestada pela influência do nouveau

roman, o qual oculta a presença da exigência narrativa, originando a ilusão

da clareza objectiva da história que se conta a si própria. Assim sendo, a

harmonização das tensões temporais da narrativa vergiliana parece exigir a

sua reconfiguração a partir do fragmentário e do desarticulado que regem a

leitura; a narrativa vergiliana impõe uma actividade de reconstrução do

passado de acordo com os estilhaços dispersos, ao longo de toda a

narrativa, e evocados pela memória do narrador.

85 Vergílio Ferreira, Invocação ao Meu Corpo, 2ª edição, Lisboa, Bertrand Editores,

1994, p. 208.

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A narrativa – enquanto modo discursivo vocacionado para a

ordenação do caos – deve ser considerada como o puzzle de um narrador

que tece o seu fio narrativo no labirinto da memória, imagem perfeita da

desorientação existencial e do enclausuramento do sujeito narrativo.

Efectivamente, este labirinto de teor existencialista encontra-se simbolizado

no jogo com que João se entretém – escrever uma carta de amor a Mónica,

sua esposa então morta – e metaforizado, ironicamente, no Cristo que está

dependurado na parede do quarto do lar de idosos, onde se encontra a

viver. É, de facto, na e pela memória que Vergílio Ferreira postula o triunfo

da subjectividade na pesquisa de mundos alternativos ao seu mundo

vivencial, ou seja, pela evocação da memória, o sujeito é levado por

caminhos determinantes para a busca do seu verdadeiro “eu”.

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I. 2. 4 RUÍNA DA COMUNICAÇÃO86

Considerando o pensamento de Isabel Cristina Rodrigues87, o narrador

autodiegético, assumido como orquestrador da voz das outras personagens,

acaba por partilhar o espaço narrativo através da presentificação da voz das

suas personagens, tal como acontece com o narrador de Em Nome da Terra:

João não é, apenas, o autor da carta escrita à esposa Mónica, mas,

mormente, o palco onde tudo acontece e se transforma em escrita.

Enquanto narrador detentor do passado (zona de segredo nem sempre

possível de descodificação), cabe a João omitir esse tempo pretérito em

nome da reinvenção da beleza corporal de Mónica, uma vez que só assim é

capaz de postergar o vivido de outrora e o escrito/”contado” do momento

presente. De facto, a presença ausente de Mónica confere a necessidade do

narrador em adiar ou, até mesmo, em subtrair determinados momentos que

ambos viveram, porque esse passado revisitado pode tornar-se

incomodativo ou emocionalmente constrangedor para as personagens. Neste

sentido, João Vieira suspende o episódio do sarau de ginástica, que evoca a

vitalidade passada de Mónica, para estar com ela, a sua obsessão constante

e absoluta, e contar-lhe a sua solidão, a partir da qual surge toda a carta:

E no fim [do sarau] fui ter contigo. Respiravas ofegante, já um

pouco mortal. Mas tinhas sempre um riso maior do que a vida.

Fomos para o teu quarto e beijei-te e beijei-te com o excesso

do imaginário que se interpusera alguns meses. Não te vou

beijar outra vez. Nem revolver toda a tua maciez profunda – e

86 Note-se o trabalho de Helena Buescu, “Do corpo e da memória – Presença,

ausência: Em Nome da Terra”, in Fernanda Irene Fonseca (org.), Vergílio Ferreira:

50 anos de vida literária, Actas do Colóquio Interdisciplinar, Porto, Fundação

Engenheiro António Almeida, 1995, pp. 129-137, assim como o de Isabel Cristina

Rodrigues, A Palavra Submersa. Silêncio e Produção de Sentido em Vergílio

Ferreira, Tese de Doutoramento em Literatura, Aveiro, Universidade de Aveiro, 2006,

pp. 183-225. (Texto policopiado). 87 Idem, Ibidem, pp. 183 a 225.

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tanto como me apetece. Não vou. Prefiro contar-te da minha

solidão lá do Norte.88

Curioso é o facto de, por vezes, João dissimular o silenciamento da

esposa com a expressão “não quero ouvir”89, transferindo o protagonismo

enunciativo para si mesmo:

De vez em quando uma palavra chegava-me à boca mas não a

deixo agora falar – que palavra? (…) Terás tu falado? não me

lembro, não quero ouvir. No fim difícil de uma vida, não quero.

Terei de ouvi-las mais tarde, está bem. Palavras de angústia,

solidão, que também tem o seu direito, não agora.90

Sendo o monólogo a forma discursiva mais difundida na narrativa

vergiliana, este ostenta uma aparência manifestamente dialógica, quer pelo

desdobramento do “eu” enunciador em duas personagens gramaticais, quer

pela virtualidade enunciativa, daí “exprimir-se através de uma espécie de

monólogo a duas vozes”91, de acordo com a definição de Carlos Reis e Ana

Cristina Lopes, que postula o seguinte: “o monólogo é apenas uma variante

do diálogo: é um diálogo interiorizado, onde o ego cindido se desdobra num

eu que fala e num eu (tu) que escuta”92.

Este “monólogo a duas vozes”, laborado no seio da ficção vergiliana,

encontra-se associado à carta, uma vez que, apesar de ser um meio de

comunicação muito mais prático e imediato, constitui o registo mais

apropriado à representação da incomunicabilidade devido à impossível

resposta imediata, tal como acontece no romance Em Nome da Terra:

88 Vergílio Ferreira, Em Nome da Terra, 9ª edição, Lisboa, Bertrand Editores, 2004,

p. 93. 89

Idem, Ibidem, p.15. 90 Idem, Ibidem, p.15 (sublinhado nosso). 91 Isabel Cristina Rodrigues, A Palavra Submersa. Silêncio e Produção de Sentido

em Vergílio Ferreira, Tese de Doutoramento em Literatura, Aveiro, Universidade de

Aveiro, 2006, p. 216. (Texto policopiado). 92 Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes, Dicionário de Narratologia, 7ª edição,

Coimbra, Almedina, 1994, p.103.

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trilhando o pensamento de Rosa Maria Goulart, a carta que João erige a

Mónica detém um sentido verdadeiramente incomunicável, isto porque

estando o narrador numa casa de repouso considerada “antecâmara da

morte”93, as suas capacidades mentais encontram-se um tanto ou quanto

corrompidas devido à sua mutilação física, por isso mesmo a carta

encontra-se limitada, a nível comunicacional, pela decrepitude mental

apresentada pelo narrador.

Sendo um romance com certa reminiscência epistolar94, Em Nome da

Terra constrói-se sob a base de um espaço de comunicação minado quer

pela ausência do “tu”, quer pela carência de reciprocidade dialógica, daí a

impossibilidade de Mónica, já morta, poder converter-se em destinatária da

carta que lhe está destinada. De facto, é a ausência da figura feminina que,

no processo diegético de índole epistolar, contribui para a ruína

comunicativa, porque a sua própria morte transforma o diálogo, que ela

possivelmente manteria com o narrador, em virtual, permitindo uma certa

ilusão de reciprocidade comunicativa, uma vez que o discurso de João

prevalece sobre o discurso das outras personagens que a ele afluem.

Todavia, o discurso do narrador acaba por ludibriar o não-dicurso de

Mónica, como defende Helena Buescu, quando se refere ao “monólogo

dramático”95:

93 Rosa Maria Goulart, “Vergílio Ferreira: o diálogo epistolar”, in Fernanda Irene

Fonseca (org.), Vergílio Ferreira: 50 anos de vida literária, Actas do Colóquio

Interdisciplinar, Porto, Fundação Engenheiro António Almeida, 1995, p. 299. 94 De acordo com Rosa Maria Goulart, o romance Em Nome da Terra não é,

autenticamente, um romance epistolar pela sua extensão e, simultaneamente, é um

texto que tende a aproximar-se mais do texto narrativo romanesco. No caso deste

romance, o narrador serve-se do género epistolar para aniquilar a sua ruína física,

através de um ilusório momento comunicativo com a esposa morta. (cf. Rosa Maria

Goulart, “Vergílio Ferreira: o diálogo epistolar”, in Fernanda Irene Fonseca (org.),

Vergílio Ferreira: 50 anos de vida literária, Actas do Colóquio Interdisciplinar, Porto,

Fundação Engenheiro António Almeida, 1995, p. 300). 95 Entenda-se por “monólogo dramático” o conceito de monólogo interior definido

por Carlos Reis e Ana Cristina Lopes. Neste caso, pelo monólogo interior a diegese

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A comunicação realizada assume então, neste contexto, as

formas do que pode designar-se como monólogo dramático

porque acedemos, textualmente, a uma voz dominante que

concebe o seu monólogo em termos de diálogo, que

efectivamente dialoga, através da objectivação numa persona de

algum modo fantasmática; o que significa que, embora o

discurso representado nos deixe sobretudo “ouvir” um dos lados

dessa comunicação, o outro lado não só irrompe por vezes no

discurso como o situa e contextualiza, representando a

ancoragem desse discurso na situação de comunicação e na

relação dialógica que o permite.96

Com efeito, esta carta dirigida a Mónica não deixa de expressar, de

certa forma, laivos da própria ruína comunicacional que o romance

evidencia, isto porque é uma carta sem um real destinatário, na medida em

que não há uma real resposta deste ao interlocutor, daí que esta longa carta

evidencie a própria incomunicabilidade que se concretiza pela ausência da

esposa já falecida. Note-se as palavras escritas por Rosa Maria Goulart a

propósito da incomunicabilidade que, visivelmente, coexiste na elaboração

desta carta: “ A carta a Mónica é, também ela, uma carta sem destinatário

real, na medida em que, sendo dirigida à mulher morta, ninguém poderá

recebê-la como lhe estando destinada”97.

é construída de acordo com o “tempo vivencial das personagens, diferente do

tempo cronológico linear que comanda o desenrolar das acções. (…) É um

discurso sem ouvinte, cuja enunciação acompanha as ideias e as imagens que se

desenrolam no fluxo de consciência das personagens”, daí que apresente uma

estrutura desordenada, devido ao processo de rememoração. (Carlos Reis e Ana

Cristina M. Lopes, Dicionário de Narratologia, 7ª edição, Coimbra, Almedina, 2000,

pp. 237 e 238) 96 Helena Buescu, “Do corpo e da memória – Presença, ausência: Em Nome da

Terra”, Fernanda Irene Fonseca, in Vergílio Ferreira: 50 anos de vida literária, Actas

do Colóquio Interdisciplinar, Porto, Fundação Engenheiro António Almeida, 1995,

p.135. 97 Rosa Maria Goulart, “Vergílio Ferreira: o diálogo epistolar”, Fernanda Irene

Fonseca (org.), in Vergílio Ferreira: 50 anos de vida literária, Actas do Colóquio

Interdisciplinar, Porto, Fundação Engenheiro António Almeida, 1995, p. 298.

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Dotada de um cunho pessoal e emotivo, esta carta surge como uma

justificação à revelação de um problema, também ele relacionado com a

ideia de ruína humana e comunicacional, bem patente na sociedade actual: o

isolamento dos idosos, pois estes já não são úteis para a vida activa social,

daí que a sua solidão se reflicta na própria incapacidade de comunicarem.

No romance Em Nome da Terra pode comprovar-se esta inaptidão

comunicativa através das seguintes palavras escritas pelo próprio Vergílio

Ferreira: “(…) convulsionam a boca a boca esvaziada. (…) têm o olhar fixo

na memória da vida, moem a boca sem grão para moerem”98. Na verdade, a

incomunicabilidade dos velhos, que coabitam com João no lar, deve-se,

porventura, ao facto de não existir qualquer tipo de afinidade entre eles,

assim como reconhecer naquele espaço o lugar onde persiste o mal-

-estar associado à própria condição física em que se encontram e, ainda,

onde esperam o fim das suas vidas.

Todavia, a solidão pode revelar-se como instrumento necessário para

que o narrador escreva “belíssimas páginas, muitas delas de um lirismo

tocante”99, atribuindo-lhe uma inconfundível beleza capaz de anular os

obstáculos da vida, uma vez que é pela solidão que, possivelmente, o

narrador alcança a verdadeira plenitude de encontro consigo mesmo.

Na óptica da crença cristã, o silêncio de Deus deve ser compreendido

como língua autêntica através da qual a divindade se revela, daí que o

impulso comunicativo se materialize na imaterialidade do silêncio. Desta

forma, a vacuidade de palavras sublinha a propensão do Homem para

escutar uma voz vinda do domínio do inexprimível ou do inefável.

98 Vergílio Ferreira, Em Nome da Terra, 9ª edição, Lisboa, Bertrand Editores, 2004,

p. 221. 99 Rosa Maria Goulart, “Vergílio Ferreira: o diálogo epistolar”, Fernanda Irene

Fonseca (org.), in Vergílio Ferreira: 50 anos de vida literária, Actas do Colóquio

Interdisciplinar, Porto, Fundação Engenheiro António Almeida, 1995, p. 299.

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No romance Em Nome da Terra, o narrador dirige, aparentemente,

algumas palavras ao Cristo que se encontra dependurado na parede do seu

quarto no asilo, em virtude da suposta humanidade figurada no seu

sofrimento, daí João ter estabelecido uma espécie de fraternidade no

sofrimento com Cristo, revelada na imagem de abandono corporal.

A relação comunicativa que o narrador estabelece com a ausência da

esposa é, normalmente, harmonizada pela presença do silêncio, visto que

este propicia uma comunicação erigida sem palavras. Atente-se, por

exemplo, no momento em que João baptiza Mónica nas águas do rio:

evidenciando a reflexão tecida por Isabel Cristina Rodrigues100, qualquer

palavra proferida por Mónica, naquele momento, seria, porventura, uma

inaceitável intrusão, pois o narrador rememora e reproduz o silêncio sentido

num tempo pretérito:

Depois erguemo-nos, mergulhámos nas águas. Quase

estagnadas, só uma leve corrente as modulava. De vez em

quando uma palavra chegava-me à boca mas não a deixo agora

falar – que palavra? (…) Uma palavra é mortífera, querida. Terás

tu falado? não me lembro, não quero ouvir. 101

Este momento, deveras exemplificativo da ruína comunicacional, revela-se

como uma autêntica mensagem profunda do amor que João nutria por

Mónica, daí que qualquer palavra pronunciada por eles fosse vã perante

tamanho sentimento expresso e consumado pelo baptismo. Por esta razão, a

incomunicabilidade pode ser manifestada não só pelo afastamento de

palavras, mas também pelo adiamento comunicativo que vitima as

personagens. A este propósito, atente-se nas considerações de Rosa Maria

100 Isabel Cristina Rodrigues, A Palavra Submersa. Silêncio e Produção de Sentido

em Vergílio Ferreira, Tese de Doutoramento em Literatura, Aveiro Universidade de

Aveiro, 2006, p. 216, pp. 183 a 225. Texto policopiado. 101 Vergílio Ferreira, Em Nome da Terra, 9ª edição, Lisboa, Bertrand Editores, 2004,

p.15 (sublinhado nosso).

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Goulart: “O desfasamento de comportamentos repercute-se, assim, na

comunicação, não só através do desencontro de linguagens como também

através de uma interrupção da cadeia comunicativa”102. É nesta ausência de

palavras que se concretiza o silêncio, pois há a materialização de uma

“comunicação sem ruídos e sem desperdícios”103, visto que o que mais

importa é a concretização do amor que unia João e Mónica.

Na verdade, Mónica simboliza a consubstanciação do silêncio no

romance Em Nome da Terra, em virtude da sua degradação física

progressiva, trasladada pela dissipação seja do seu olhar seja da sua fala:

O teu apagamento imperceptível. Pouco a pouco o apagamento

do cintilar da memória, do entender. (…) As palavras que dizias

e não vinham ter com a nossa palavra adulta mas com uma

outra, infantil, que era do incompreensível.104

102 Rosa Maria Goulart, “Vergílio Ferreira: o diálogo epistolar”, Fernanda Irene

Fonseca (org.), in Vergílio Ferreira: 50 anos de vida literária, Actas do Colóquio

Interdisciplinar, Porto, Fundação Engenheiro António Almeida, 1995, p. 302. 103 Idem, Ibidem, p. 304. 104 Vergílio Ferreira, Em Nome da Terra, 9ª edição, Lisboa, Bertrand Editores, 2004,

p. 287.

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CCAAPPÍÍTTUULLOO IIII::

CCOORRPPOO –– FFIIGGUURRAAÇÇÃÃOO DDEE PPLLEENNIITTUUDDEE EE BBEELLEEZZAA

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MMEESSMMOO OO QQUUEE ÉÉ CCHHAATTOO OOUU FFEEIIOO OOUU PPOODDRREE,,

SSEE AA GGEENNTTEE SSOOUUBBEERR AA PPAALLAAVVRRAA CCEERRTTAA

DDEEVVEE FFIICCAARR BBEELLOO ÀÀ MMEESSMMAA..

Vergílio Ferreira, Em Nome da Terra

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IIII.. 11 CCOORRPPOO:: PPRREESSEENNTTIIFFIICCAAÇÇÃÃOO SSAAGGRRAADDAA DDOO ““TTUU”” ____________________________________________

O corpo é universo que, na sua problemática completude, reproduz a

sensação de totalidade que o sujeito capta, também, no universo/Terra,

associando e cruzando “corpo” e “Terra”, afinal epígrafe e título do romance

Em Nome da Terra. O referido romance é uma metáfora da relação entre

corpo e terra e da sacralização desse mesmo corpo, visto que tanto o título

como as epígrafes nele inscritas reenviam o leitor para uma atmosfera do

sagrado. Assim sendo, pode compreender-se a expressão e título “em nome

da terra” como pertencente ao ritual do baptismo de Mónica, conferindo-lhe

uma nova e perfeita sacralização para a eternidade, pois é desta forma que

Mónica assume a condição divina compatível com a missão de João (o

“outro” Baptista). Pela leitura do título do romance, o leitor pode deduzir que

as personagens se encontram ligadas e unidas à terra, isto porque estão no

final das suas vidas, com o destino cumprido: “(…) já ele estava ligado à

terra, quieto no corpo e na alma”105. Se, por um lado, João Baptista baptizou

a divindade de Jesus, por outro lado, João, o narrador-personagem, aparece

como detentor de um poder de criar, do nada e em perfeição, o corpo e a

essência da esposa, mesmo estando num corpo sofredor e mutilado: “A

epígrafe que hoje lhe pus – hoc est corpus meum – deve ficar para me dar o

entrecruzamento da sacralidade e do que nele há de degradação”106.

Enquanto epígrafe, hoc est corpus meum concede ao romance a

fórmula católica da consagração dos dons. É, por conseguinte, a fórmula a

que João recorre para sacralizar o corpo de Mónica, assim como o seu

105 Vergílio Ferreira, Em Nome da Terra, 9ª edição, Lisboa, Bertrand Editores, 2004,

p. 50. 106 Idem, Conta-Corrente nova série I, Venda Nova, Bertrand Editores, 1994, p. 41.

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próprio corpo debilitado, realizando a verdadeira transubstanciação

prenunciada na epígrafe e, simultaneamente, explicitando o tema fulcral do

romance: a sacralização do corpo. Este versículo do evangelista São Mateus

é, sem dúvida, o denunciador de todo o romance, antecipando, mesmo, a

verdade de que, no universo artístico, o feio pode ser belo, pois a fealdade

sublima-se a si mesma.

O título – Em Nome da Terra – poderia remeter, por analogia, para a

imagem da esposa morta (Mónica), isto porque o leitor vergiliano é

confrontado com a força e com a forma de uma ausência, formulada em

torno da questão da morte e proclamada como fio condutor de toda a

narrativa. Através dessa ausência, as personagens vergilianas experimentam

um sentimento de angústia ao longo de toda a diegese, a ponto de a

tornarem presença determinante, graças à força agente do presente. O

problema surge no momento em que o narrador-personagem não coincide

com o corpo que possui – não se reconhece nele como interioridade –, uma

vez que se encontra num estado físico decadente.

É pela memória que o sujeito acede a outras formas de realizar o real,

construindo um outro corpo material, visto que integra vários tempos. Isto é,

o corpo, pela memória, passa a ser, simultaneamente, plenitude e perda,

passado e presente, corpo e memória, ausência e presença. Desta forma,

pode asseverar-se que a dualidade ausência/presença tenta objectivar-se

pela memória e, também, pela forma como essa memória pode recriar

objectos que são o que não foram sem, no entanto, passarem a ser outros.

O “eu” perfaz a sua contiguidade e continuidade entre a sua existência

corporal desaparecida e ausente e a sua diferente existência corporal

manifesta e presente, através da memória. É graças ao carácter epistolar

dos romances de Vergílio Ferreira que o narrador, no presente e recordando,

escreve uma carta dirigida a Mónica, já morta. Esta estratégia intervém no

sentido da manutenção da co-presença entre a vida e a morte, a presença e

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a ausência, o passado e presente, o corpo e memória, ou seja, a

epistolaridade presentifica e, conjuntamente, implica o exercício

comunicativo.

A relação de comunicação, que se estabelece ao longo de toda a

obra, presentifica o “tu”, através da convocação da memória, daí a narrativa

figurar-se como adiamento da morte, da solidão e do silêncio e, ao mesmo

tempo, como um ponto de intersecção entre vários tempos – intersecção

temporal (atinge momentos de quase fusão e coexistência).

A interferência do tempo presente no tempo passado solicita a

reflexividade dos tempos, isto porque não é só o passado que irrompe no

presente, pela memória, mas o presente que também invade o passado,

como se ambos estivessem em comunicação, através do exercício da

memória. Assim sendo, a dilatação temporal aparece como forma de

eternizar não só o ser e a beleza das suas personagens, mas principalmente

o tempo outrora vivido, configurado a partir do presente da memória e do

discurso. Desta forma, a memória converte-se na extensão do corpo, assim

como no processo de transformação da inevitável solidão vivencial em

partilha comunicativa, traduzida na partilha de mundos, saberes e sujeitos.

Ora, sendo o corpo um elemento de comunicação de relevante

importância na ficção vergiliana, o escritor particulariza uma ideia escultórica

de Mónica, como se o acto de criação dessa figura fosse um acto de

palavra, por isso João transforma, pelo poder de sacralização da escrita, a

passividade dos corpos e da vida em transcendência, graças às mãos, que

reificam o espírito pelo poder da palavra registada na carta dirigida a Mónica.

De facto, é pelo acto de escrever a carta e o corpo de Mónica, que este

corpo se revela intemporal e detentor do divino e da mensagem do artista,

de que o homem é um “ser-para-a-morte”, à boa maneira nietzschiana.

Ao mostrar-se deslumbrado com o real que começa na decadência do

seu corpo, a atitude do herói vergiliano corresponde a uma situação de

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revelação, ou seja, de verdadeira percepção do mundo, graças à verdade de

um corpo envelhecido. Desta forma, o “eu” vergiliano transforma a solidão

em milagre da escrita, pela qual a revelação se manifesta estratégia salvífica

de comunhão com a realidade. Ora, o sujeito envolve-se numa atitude de

contemplação, pois a escrita é lugar de acolhimento e sagração propício

para que narrador possa traçar uma viagem pelo passado vivido, através da

memória cheia, mas solta nos eventos que compõem a sua narrativa.

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IIII.. 22 CCÂÂNNTTIICCOO AAOO EESSPPLLEENNDDOORR FFÍÍSSIICCOO ________________________________________________________

Os diálogos estabelecidos pelas personagens vergilianas são, muitas

vezes, falas realizadas com palavras vagas, misteriosas e enigmáticas,

deixando o rasto de uma intensidade de difícil transmissão por palavras,

visivelmente sugeridas pela presença de ideias suspensas, de pensamentos

truncados ou simplesmente de algo sugerido.

Aliás, este universo diegético em ruína é, constantemente, revisitado

pelo narrador de Em Nome da Terra ao longo de toda a intriga. Pode até

mesmo dizer-se que existe uma obsessão por parte de João em recorrer

sempre ao mesmo tipo de imagens, porém estas imagens de ruína – tome-

se como exemplo a debilidade física quer do narrador quer da esposa – são

melhor compreendidas quando o narrador revisita os tempos em que a

decadência não se fazia sentir, fazendo-se apenas sentir a perfeição

corporal de ambos.

Considerando que a memória deturpa o passado devido às suas

limitações de índole emotiva, das quais se evidenciam o esquecimento e a

repressão da fugacidade do tempo, ela encontra-se envolvida em falhas,

confusões e esquecimentos, porque a imaginação transforma-se em

suplemento indispensável da memória. Apesar das já referidas limitações

(que, apesar de tudo, jamais colocam em causa a rememoração sem

fissuras dos narradores vergilianos), a memória tenta recuperar os momentos

anteriores à degradação física quer de Mónica quer do narrador do romance

Em Nome da Terra, revogando o tempo numa metafísica de índole memorial,

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singularmente evidente na figura da mulher arquetípica actualizada

progressivamente no referido romance107:

Encontrar-te depois na eternidade do teu ser. Eternidade na

Terra, mais alta que a de Deus. Atravessar mesmo o que era

belo e morreu. O nascimento dos filhos, o seu crescimento, o

seu adeus à nossa protecção.108

É a evocação idealizada do passado que desperta a necessidade de vencer

a corrupção corporal e a morte, pela qual a vivência é projectada numa

fantasia futura e confessada através do poder de invenção e criação de

João, daí que este tenha concebido a figura de Mónica: “Vou inventar-te

aí”109. Certamente, a recuperação do passado encontra-se associada à

necessidade do narrador se superar perante a sua ruína corporal. O mesmo

seria afirmar que, vendo-se com uma perna amputada e a viver num lar de

idosos, o narrador refugia-se num tempo passado, à falta de perspectivas

futuras, reinventando-o de acordo com o seu desejo, de modo a adiar a

concretização do seu destino: a vinda da sua própria morte.

De facto, é pela evocação da memória, quase sempre inesgotável,

que os narradores vergilianos conseguem convocar toda a sua vida, como

acontece no romance Em Nome da Terra, onde João valoriza a rememoração

da sua vida, porque pressente a aproximação inevitável da morte, seja pela

107 A par do que acontece no romance Em Nome da Terra, os narradores vergilianos

propendem a divinizar as mulheres das suas vidas, daí que sejam colocadas numa

dimensão aérea e divina. Assim sendo, Cláudio diviniza a figura de Oriana no

eterno, pedindo-lhe que fique “imóvel para a eternidade” (Vergílio Ferreira, Até ao

Fim, 8ª edição, Lisboa, Bertrand Editores, 1992, p. 32). No romance Para Sempre,

Paulo associa a figura de Sandra como se esta fosse uma “encarnação humana da

divindade” (Vergílio Ferreira, Para Sempre, 13ª edição, Lisboa, Bertrand Editores,

1994, p. 122), visto que a esposa é um ser superior perante o narrador: “E eu

sempre enrodilhado de pequenez diante do incomparável de ti.” (Idem, Ibidem, p.

137). 108 Vergílio Ferreira, Em Nome da Terra, 9ª edição, Lisboa, Bertrand Editores, 2004,

p. 285. 109 Idem, Ibidem, p. 157.

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senilidade de que fora vítima a sua esposa nos últimos momentos de vida,

seja pela degradação e mutilação corporal de que é vítima.

Testemunha de uma narrativa alicerçada nos sentimentos vividos (no

passado) e revividos (no tempo presente da escrita) pelo seu narrador, o

romance Em Nome da Terra é erigido a partir de uma sucessão de pequenas

narrativas adiadas, normalmente, para momentos mais oportunos – “Prefiro

contar-te a minha solidão lá no Norte. (…) Sangue horror. Mas não agora.

Talvez mais tarde, deve haver ocasião”110. Realmente, o cunho epistolar do

romance manifesta-se no aparente diálogo que João mantém com a esposa

Mónica, cujas supostas falas se resumem a meras interrogações,

advertências deveras curtas e suposições: “Tu hás-de ter pensado – então

este parvo nunca mais saiu do lar? Nunca mais foi ver se o mundo existia?

Nunca teve falta de ar?111. Constata-se que a figura de Mónica é investida

de um papel dinâmico de confidente activa, porque questiona, adverte e

sugere ao longo de todo o desabafo que é o romance, por isso é esta a

figura que consolida todo o percurso de rememoração efectuado por João,

manifesto na preocupação deste em transcrever com precisão as frases

ditas pela esposa morta.

Neste caso, não se instaura nem o autêntico diálogo nem o puro

monólogo; mas antes, um falso diálogo do qual brota um discurso que, à

partida, seria reflexo de um longo debate de consciência sobre uma vida

passada e, sobretudo, presente (da escrita), possibilitando ao narrador

extravasar a lacuna da sua mutilação, solidão e angústia (consequência do

progressivo abandono dos filhos), assim como esmagar o espaço fechado

do lar de idosos, de maneira a proteger a dimensão mágica da mulher a

quem tanto amou: “A companhia que tenho é a memória de ti, para lá do

110 Idem, Ibidem, p.93. 111 Idem, Ibidem, p. 236.

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horror e da degradação”112. A imagem de Mónica é concebida, por João,

como único meio deste alcançar a sua própria salvação, pois Mónica surge

como elemento conquistado pela imaginação de quem a quer amar

novamente: “Tenho tanto de estar contigo. Com a tua imagem fictícia da

minha identidade vã”113 e “Se eu criasse a tua realidade fundamental nas

minhas mãos?”114.

A imagem perfeita de Mónica, figura essencial deste romance,

manifesta uma revelação angustiante da memória que revela, pela

tragicidade do ser humano e pela sedução da música, a ficcionalização de

Mónica no romance Em Nome da Terra:

Quero ir primeiro ter contigo – e onde é que eu hei-de ir ter

contigo? Estás em muitos sítios, és múltipla, há mesmo um

grande grupo de ti. És muitas e todas querem entrar agora no

nosso encontro. Vou-te impor uma regra, é uma de cada vez –

qual deve ser agora? E eu amo-te em cada uma em maneiras

sucessivas até ficar por fim a maneira única do teu corpo e mais

acima, mas mais tarde, a sua memória e a sua eternidade.115

João alcança, por meio da memória, a beleza da esposa, porque só

assim consegue anular a realidade presente em que vive. Assim, a música

revivida pelo narrador transforma-se em fonte de sublimação da figura jovem

e esbelta da esposa, ou seja, há a reconstrução da sua imagem ausente ao

revisitar o concerto de Mozart para oboé. Apesar do corpo se manifestar

como um ser debilitado, João sente necessidade de recorrer à

rememoração, pois só assim consegue esbater aquilo que de menos belo

existe ou pode existir num corpo, para isso o narrador revisita a imagem da

esposa no momento em que esta executa os exercícios de ginástica. Ora, a

112

Idem, Ibidem, p. 45. 113 Idem, Ibidem, p. 125. 114

Idem, Ibidem, p. 159. 115 Idem, Ibidem, p. 27.

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ginástica adquire uma dimensão capaz de negar o peso da corrupção e de

dissolver “a vegetação de ruína” que invade o corpo das personagens.

Ao negar o lado menos jovial do corpo, o narrador descreve os passos

aéreos executados por Mónica, isto porque encontra nessa “aeridade”,

possível graças à função dos pés, um meio para divinizar o corpo feminino.

Os pés passam a ser tidos como instrumentos de que o ser humano dispõe

para alcançar a sua ascensão transcendental, pois “pelos pés um corpo

humano tem a sua notícia mais directa e constante. Por eles, (…) o corpo

realiza a sua vocação de horizontes, a demanda do impossível (…) aos

limites do (…) corpo”116.

O corpo de Mónica surge como um ser divino graças ao facto de ela

ser uma ginasta e, principalmente, ao corpo ágil que se apoia no chão

através dos seus pés, os únicos que possibilitam o equilíbrio e a própria

afirmação enquanto ser divinizado pelo narrador: “Meus pés, minha firmeza

constante”117. É pela exuberância ágil, transmitida nos exercícios de

ginástica, que a esposa já morta se presentifica no Mundo, mesmo estando

ausente.

Daqui se infere que Mónica é mais do que o mero relembrar da mulher

que fora outrora. O narrador pretende, através da projecção do corpo

perfeito da esposa (na aula de ginástica), eternizá-la através do rito da

perfeição, visível no acto de libertação da terra, quando – na voz do narrador

– “bates [Mónica] uma palmada no chão e sobes ao alto sobre ti, mas antes

de caíres de pé, imóvel, fico a ver-te parada no ar”118. Assim sendo, João

erige-a a um mundo espiritual, sustentado pela poção da jovialidade eterna –

“Corpo elástico, esguio, fico a ver-te. Flutuas imponderável, a Terra não tem

116 Vergílio Ferreira, Invocação ao Meu Corpo, 2ª edição, Lisboa, Bertrand Editores,

1994, p. 272. 117 Idem, Ibidem, p. 272. 118 Vergílio Ferreira, Em Nome da Terra, 9ª edição, Lisboa, Bertrand Editores, 2004,

p. 30 (sublinhado nosso).

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razão sobre ti”119 –, absolutizando a beleza do corpo da mulher amada em

todos os tempos e em tempo nenhum, de acordo com as reflexões

apontadas por Ana Isabel Serpa120. O corpo de Mónica é revisitado na

“Primavera da luz, do fulgor de se ser, incorruptível eterno. Primavera triunfal,

da fúria da vida (…) de um corpo ao vento como a glória”121.

Residente de uma casa de repouso para idosos, João reveste a parede

do seu quarto, apenas, com alguns objectos de arte, dos quais se destacam

o fresco de Pompeia e o desenho de Dürer, em virtude dos quais o texto

adquire um determinado sentimento estético.

Privilegiando a arte pictórica e musical à boa maneira de Michel

Butor122, o narrador de Em Nome da Terra glosa um mote ao corpo e à vida,

reclamando a sobrevivência onde somente existe a presença da morte.

Sendo o corpo a representação e a identidade por excelência da pessoa, a

continuidade das afinidades entre vivos e mortos é apanágio do narrador de

Em Nome da Terra, conseguido através da evocação da memória. Perante o

desaparecimento físico de Mónica, João reinventa-a, ou seja, evocando a

memória, o narrador esculpe, laboriosamente, o corpo da esposa, pois só

assim consegue alcançar a verdadeira identidade e o verdadeiro ser dela. É

desta forma que Mónica surge à luz da escrita de João, o qual não hesita em

transformar o impossível da esposa em refiguração da imaginação. Por isso,

a essência dela surge associada ao oboé, cuja música o narrador escuta e

119 Idem, Ibidem, p.30 (sublinhado nosso). 120 cf. Ana Isabel Serpa, Vergílio Ferreira: a arte de comunicar, Tese de Mestrado em

Literatura Portuguesa, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1997, pp. 49 e 50.

(Texto policopiado). 121 Vergílio Ferreira, Em Nome da Terra, 9ª edição, Lisboa, Bertrand Editores, 2004,

p. 103. 122 André Helbo (org.), Michel Butor. Vers une Littérature du Signe, précédé d’un

Dialogue avec Michel Butor, Paris, Editions Complexe, 1975. Michel Butor acentua a

fusão da arte, quer seja a pintura, quer seja a música, no universo diegético,

afirmando: “Nous sommes à la recherche d’une nouvelle distribution des activités

humaines, (…) d’une littérature qui soit en même temps quelque peu musique et

peinture” (p. 13).

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converte em personificação corporal, recuperando, assim, a identidade

perdida de Mónica no momento da sua senil degradação física.

A necessidade da presença – mesmo que ficcionalmente – do corpo

de Mónica, deve ser apreendida como presença integral indispensável para a

boa prossecução do fio narrativo, construído na base da tomada de

consciência da degradação física de Mónica e do narrador e da eminência

da morte. Assim, ao contemplar o fresco de Pompeia – objecto que

proporciona um certo equilíbrio ao próprio narrador –, João confirma que,

efectivamente, a arte é uma estratégia que abona a (sua) sobrevivência, uma

vez que se afirma como oponente à morte. Para o narrador, relacionar a

deusa Flora com Mónica (pois ambas caracterizam-se pela harmonia, altivez

aérea, eternidade e graça) significa transfigurar a realidade vivida, ou seja,

equivale dizer que mantém a esposa viva. Se a deusa primaveril engrandece

a vida, o desenho de Dürer ilustra a morte, efeito catalisador ao qual o

narrador deve habituar-se, pois é esta aprendizagem/aceitação da morte

que contribui para a sua própria sobrevivência.

Transparecendo um (possível) diálogo do discurso literário como o

discurso musical, na ficção romanesca de Vergílio Ferreira encontra-se a

presença de alguns intertextos musicais metafóricos, para onde aflui uma

certa musicalidade. Efectivamente, é ao som do concerto musical para oboé

de Mozart que Em Nome da Terra deixa aflorar o corpo como nota musical

dominante nas suas pautas, a partir das quais se verifica a presença de um

conflito: por um lado, a degradação de um corpo retido pela velhice e, por

outro lado, a perfeição e a beleza de um corpo em movimento na plenitude

da juventude perdida outrora. Ora, da ruína à perfeição corporal, da velhice à

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juventude, o narrador reitera a obsessão de que “só a eternidade que mora

no corpo lhe aguenta a perfeição com que se desagrega”123.

No entanto, à música surge associada a imagem de Mónica enquanto

oboé – “Mónica, meu doce oboé”124 –, pois o narrador reinventa o corpo

singular de inebriante beleza da mulher que ama através da eternidade que a

música transmite, mas é a ausência da esposa que elucida a consciência do

narrador para o facto de a morte estar próxima, como se pode constatar a

partir da interpretação do desenho de Dürer:

E olhei o Cristo, agora um pouco maníaco a dizer-me boca est

meum, olhei a deusa Flora com o seu braçado de flores e o seu

manto como um voo, olhei o cavalo esquelético com o

esqueleto da morte montado nele. (…) Possivelmente, querida,

está tudo na tua face. No teu rosto fechado numa linha, sem

excesso nenhum. Na tua vertiginosa alegria quieta. Na tua franja

andrógina na testa. Uma palavra de alegria e de morte. Uma

palavra que está depois de todas as palavras e ainda nenhum

deus veio dizer.125

Considerando o trabalho de Jorge Valentim126, pode afirmar-se, desta

forma, que o fresco de Pompeia, o desenho de Dürer e o concerto para

oboé, para além de induzirem o leitor para a disposição temática do

romance, também guarnecem o carácter musical do mesmo, visto que os

sons metafóricos do oboé, que habitam o imaginário do narrador, ressoam

em toda a estrutura diegética. Se, por um lado, a presença constante do

fresco de Pompeia se revela, na mente do “eu” narrativo, como a imagem

viva e perfeita de Mónica “provinda de um fresco de uma cidade

123 Vergílio Ferreira, Conta-Corrente nova série I, Venda Nova, Bertrand Editores,

1994, p. 284. 124 Idem, Em Nome da Terra, 9ª edição, Lisboa, Bertrand Editores, 2004, p. 58. 125

Idem, Ibidem, p. 267 (sublinhado nosso). 126 Jorge Valentim, “Em Nome da Terra, de Vergílio Ferreira: um concerto para corpo

e oboé”, in Anais do XIX Encontro Brasileiro de Professores de Literatura

Portuguesa, Curitiba, 2003, pp. 467-473.

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arruinada”127, por outro lado, o concerto para oboé representa a imagem

musical da mulher. De facto, é recorrendo às expressões artísticas presentes

no seu quarto que João consegue, de certa forma, subtrair “[Mónica] à

loucura, à degradação física e à morte, como forma de redimir a sua própria

velhice e a decadência do corpo”128.

Repare-se que, tal como acontece com a melodia prosódica do tom

musical do concerto para oboé, o narrador torna possível pela imaginação o

reviver dos três momentos essenciais da sua relação amorosa com Mónica:

a beleza jovial e o poder de atracção dela (“e então a orquestra deixa o

oboé brilhar e ele entusiasma-se. Depois a orquestra entra no jogo. Como te

amo”129), a idade adulta do amor mesclado de paixão (“Mas a orquestra

regressa, é o segundo andamento, suponho. Há uma harmonia que os

envolve a todos, o oboé mais adulto integra-se ordeiro no conjunto. Mas

sempre tão triste. De vez em quando ouço-o, a voz já crescida de galispo.

Mas por vezes esquece-se, volta à brincalhotice, às suas cabriolas de

garoto”130) e, finalmente, a sua velhice e morte (“Até que toda a orquestra

pões fim às diabruras, o oboé é absorvido, integrado e levado lá para

dentro. Deve doer-se ainda, já não o ouço”131).

Enquanto modo de exprimir o presente de um tempo pretérito vivido, a

memória do narrador afigura-se como termo comum capaz de manobrar a

passagem da finitude do corpo para a transitividade da comunicação. Por

isso mesmo, a comunicação não se limita a pronunciar uma ausência, mas

antes conferir a essa ausência uma corporalidade que é a da sua existência

discursiva e, portanto, da sua efectiva presença para o leitor. O cruzamento

127 Carlos F. da Cunha, Os mundos (im)possíveis de Vergílio Ferreira, Lisboa, Difel,

1997, p. 129. 128 Idem, Ibidem, p. 129 129 Vergílio Ferreira, Em Nome da Terra, 9ª edição, Lisboa, Bertrand Editores, 2004,

p.244. 130

Idem, Ibidem, p. 244. 131

Idem, Ibidem, p. 245.

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temporal torna-se, deste modo, o sinal de uma múltipla existência no

mundo, uma vez que não se limita, apenas, a ser.

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CCAAPPÍÍTTUULLOO IIIIII::

AA RRUUÍÍNNAA CCOOMMOO PPOOÉÉTTIICCAA DDOO CCOORRPPOO

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((……)) AAOOSS VVIINNTTEE AANNOOSS,, RRUUÍÍNNAA ÉÉ OO NNOOMMEE QQUUEE DDAAMMOOSS ÀÀ CCOORRRROOSSÃÃOO DDAA PPEEDDRRAA

EE,, AAOOSS QQUUAARREENNTTAA,, ÀÀ VVOOLLUUBBIILLIIDDAADDEE DDOO CCOORRPPOO....

Eduardo Pitta, “Al Berto: o ersatz da ruína”

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IIIIII.. 11 CCOORRPPOO:: IINNSSCCRRIIÇÇÃÃOO DDAA FFUUGGAACCIIDDAADDEE DDOO TTEEMMPPOO__________________________________________

Aparentemente resplandecente, a escrita de Vergílio Ferreira é, de

facto, atravessada por um sopro de melancolia que decorre dos mesmos

elementos que consubstanciam uma união afável à vida e ao mundo, porque

a consciência do tempo e da sua inexorável labilidade debilita a relação do

homem com os frutos da terra, ou seja, com o Mundo.

Desde a leitura das suas primeiras linhas, a escrita do texto Em Nome

da Terra denuncia um determinado sentimento de ruína, manifestamente

arraigada em tudo o que coordena a vida do ser humano. O escritor

experimenta, de plena consciência, o mundo caótico em que vive, por isso

recorre à construção de prodigiosas referências descritivas de ruína,

manifestas na descrição de ambientes degradados, que envolvem as suas

personagens, também elas decadentes fisicamente: “(…) coxos, cambados,

a cabeça caída para o ombro, a baba a escorrer-lhes da boca torta. Velhos

e velhos, imundície, dejectos do homem (…)”132.

Evocando e reflectindo sobre a própria vida e a vida das pessoas que

lhe estão próximas, João sente necessidade de recorrer a um “tu”

presentificador em todo o romance, daí evocar a presença ausente de

Mónica: “Preciso ainda de estar contigo mais um pouco, antes da minha

servidão”133.

É a partir deste desejo de amar a juventude e a perfeição corporal de

Mónica que João traça toda a diegese. Contudo, a concretização dessa

vontade encontra-se impedida pela ruína que coexiste ao longo do romance:

132 Vergílio Ferreira, Em Nome da Terra, 9ª edição, Lisboa, Bertrand Editores, 2004,

p. 175. 133 Idem, Ibidem, p. 27.

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a velhice, a doença, a mutilação e o apagamento do ciclo de vida. Vivendo a

sua própria solidão e decadência e aguentando o abandono, o narrador

recria, de maneira a superar a sua condição, a figura jovem e perfeita da

esposa, pois só desta forma traz ao tempo presente da escrita um momento

em que era possível a realização do amor:

Despi-me brusco, deitados os dois na areia, e a fúria, e o limite.

E uma só verdade para nós e o universo. Deitados de costas,

lemos as estrelas. A paz enorme de horizonte a horizonte. A

eternidade. E a necessidade de estarmos lá, para não haver

mais nada para fora de nós.

Depois erguemo-nos, mergulhámos nas águas. Quase

estagnadas, só uma leve corrente as modulava. De vez em

quando uma palavra chegava-me à boca mas não a deixo agora

falar – que palavra? Queria inventar-te uma agora para estar

certa lá, não a sei.

(…)

Agora tenho apenas a imagem fresca de um bosque, ninfas

talvez, qualquer coisa e que a morte não esteja à porta do

imaginar. É duro morrer, querida. Por fim saímos da água e os

deuses olharam-nos, humilhados na sua inutilidade. Uma nova

raça divina erguia-se em nós. Poderosos imensos. Trazíamos

uma mensagem dos confins das eras, a Terra esperava-nos.

Trazíamos a notícia de um corpo incorruptível e perfeito.134

O narrador mediatiza um tempo passado e um tempo presente,

sobrepondo ambas as concepções temporais através da memória. Contudo,

o leitor pode desvendar a abolição desta disjunção temporal. Deste modo,

João concebe a sua memória como a única e verdadeira companhia dentro

do lar, daí o romance se afigurar como uma longa reflexão em torno da

memória, em que o narrador constrói as personagens e com elas dialoga

através da anamnese.

O tempo é um elemento crucial na diegese vergiliana, não é somente

porque se institui como temática, como também no sentido em que a escrita

134 Idem, Ibidem, pp. 15 e 16.

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é indissociável da consciência do fluir temporal ou da ausência desse

mesmo fluir. A verdade é que o romance Em Nome da Terra glosa os efeitos

da passagem do tempo – “(…) o álbum, ou seja, o milagre do teu corpo

pesado e aéreo. Não estás velha ainda (…) Mas já te não desprendes do teu

peso carnal”135 –, clarificando os contornos e o sentido da presença da

ruína, traduzida pelo ambiente que envolve João na casa de repouso, assim

como o seu próprio corpo mutilado e a ausência de Mónica:

Vêm-me as imagens em turbilhão, não o disse já? Vêm. Mas há

sempre uma que vem sobre as outras e és tu. Vivacíssima

energética rapidíssima, sobre outras imagens – tantas. (…)

lavava o teu corpo disforme com uma piedade difícil, horror

horror. Eu punha-te na banheira, tu dobrada de humildade.136

Note-se que a ruína, neste contexto, é o produto da passagem do tempo e a

figura que dissolve o Mundo, transformando-o em podridão e restos

ruinosos.

A ruína em Vergílio Ferreira não são destroços abandonados, mas

antes vestígios introspectivos a partir dos quais o passado se torna presente

e, por isso, testemunha a degenerescência do tempo. Construída pelo

dinamismo da memória, a ruína não é mais do que uma maneira de

presentificar, imaginativamente, o íntimo das personagens vergilianas.

A distância entre o tempo do enunciado e o tempo da criação vem

reforçar a ruína física e emocional que corrói ora a figura de João ora a

figura de Mónica. Toda a diegese encontra-se imbuída de uma nostalgia que

enternece o leitor: o passado ficou na memória, daí que funcione como

dimensão de superação da sua situação presente:

Hei-de atravessar toda a miséria e amargura e um pouco de

humilhação que ainda falta atravessar até seres enfim tu só,

135 Idem, Ibidem, p. 262. 136 Idem, Ibidem, p. 84.

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lavada purificada iluminada na pureza do teu ser – eu te baptizo

em nome dos astros e da perfeição.137

Atravessei o horror e a humilhação. Atravessei a miséria e o que

nela apodreceu do meu corpo terrestre. Lembro-me, penso-me.

Está uma noite quente, deve ser o fim de Verão. Lembro-me

agora intensamente e a tua perfeição está no fim do meu

lembrar. Está-se lá bem, no lembrar. Estás inteira e ágil como

um voo.138

O passado percorre todo o romance, recuperando os anos e os

momentos felizes pelos fios condutores da memória e no rasto de alguns

momentos felizes vividos e partilhados com Mónica. Por um lado, o presente

despersonaliza o narrador, torna-o ausente e incompreensível perante a sua

situação de abandono e de debilidade física; por outro lado, o passado é o

único tempo que lhe restitui o seu próprio “eu”; só repovoando o passado

de espaços, situações e vidas sublimes e belas, graças à imaginação, é que

João consegue alcançar a sua plenitude e a sua aceitação enquanto velho e

débil fisicamente: “Não me sinto mal na minha diferença, mesmo com falha

de perna.”139

Deambulando através da activação da memória, João resgata algumas

imagens da vida que compartilhou com a sua esposa e os seus filhos:

“Tínhamos ido ao cinema à noite e quando saímos tu disseste são horas de

irmos jantar””114400.. Aproximando-se da ordem antiga pela memória que se

activa, o narrador vislumbra a beleza harmoniosa do corpo de Mónica e a

vida feliz que conseguiu conquistar ao lado dela: “Corpo triunfante, é de

quando mais to lembro. Corpo denso e ágil. Furtivo.”141

137 Idem, Ibidem, p. 279. 138 Idem, Ibidem, p. 291. 139 Idem, Ibidem, p. 221. 140 Idem, Ibidem, p. 10. 141 Idem, Ibidem, pp. 56 e 57.

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A imagem de Mónica, para além de presentificar o interlocutor

privilegiado com quem o narrador dialoga toda a sua vida, põe em relevo a

Arte do essencial de si – a mulher, o amor, a perfeição, e beleza e,

sobretudo, a juventude –, ou seja, destaca a Primavera de Mónica, imagem

que se encontra em íntima relação com a estampa da deusa Primavera de

Pompeia. É pela representação de Mónica que João revela uma união entre

o humano e o divino, visto que a imagem recriada da esposa morta é uma

imitação da imagem da deusa recriada por Pompeia. Contudo, esta relação

entre humano e divino completa-se no simbolismo da música do próprio

nome de Mónica, pois o narrador associa o nome da sua amada a toda a

música, anunciada quer pelo gravador quer pelas cassetes.

A par da voz irreal de Mónica, o narrador irrompe um diálogo

silencioso com a sua própria memória, com o seu corpo mutilado e com o

Cristo dependurado na parede do seu quarto do lar, concebido para vencer a

sua irremediável solidão. Sendo assim, o Cristo mutilado aparece, perante o

olhar de João, como o centro de irradiação temporal, que insere toda a

problemática da existência de Deus. Este Cristo surge como o “outro” com

quem João estabelece um intenso diálogo:

(…) hoje falei foi com o Cristo que tenho aqui. (…) Tantas

coisas a dizer-lhe, não sabia como começar. E então eu disse-

-lhe

– Tinha muita coisa para te dizer e não sei como começar142

O narrador vê em Cristo os seus problemas de mutilação e de degradação

física, condição que leva o narrador a tratar Cristo como “Meu irmão. Filho

do Homem, irmão no que humilha e dói”143:

O sofrimento que te deram foi de fora, o teu corpo estava inteiro

quando a coisa aconteceu. Mas o meu vem de dentro, não sei

142 Idem, Ibidem, p. 69. 143 Idem, Ibidem, p. 74.

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se vês a diferença. Não me violentaram o corpo, foi ele que se

desagregou. De todo o modo, acabou-se, meu irmão no

sofrimento. (…) Gostava em todo o caso de saber como te

aguentarias se te visses a apodrecer. Não te queixarias do Pai

que te abandonou mas se calhar de todos os teus irmãos em

humanidade. Ou talvez te queixasses só de ti, do teu corpo vil,

porque só ele te tinha abandonado. (…) Mas não quero

diminuir-te o sofrimento, que sempre é de doer.144

Perante a sua condição física, João identifica-se com a imagem do

Cristo crucificado, que tem suspenso à cabeceira da sua cama. Entre ambos

há uma íntima relação de solidariedade, quer no abandono, quer no

sofrimento físico a que ambos foram subjugados. Desta forma, o narrador

reconhece-se com o sofrimento, a mutilação e a solidão exteriorizada pelo

Cristo crucificado: “Comovo-me como é devido ao ver-te aí chagado e

dependurado. Mas é preciso olhar-me aí, ver-me aí metido no teu corpo”145.

De facto, o narrador de Em Nome da Terra dirige, mesmo que

aparentemente, algumas palavras ao Cristo, em virtude da suposta

humanidade figurada no seu sofrimento, daí João ter sentido alguma

necessidade em estabelecer uma espécie de fraternidade com o sofrimento

do Cristo, bem visível na imagem do seu abandono corporal. Ou seja,

através da invocação da imagem do Cristo sem cruz, João ambiciona

mostrar-lhe a progressiva degradação do seu corpo, o qual deve ser

equiparado à violência que Ele teve na cruz: “Irmão diferente, mas irmão.

(…) Mas não quero diminuir-te no sofrimento, que sempre é de doer”146.

Com efeito, a relevância cedida à decadência física encontra-se relacionada

com a ideia da própria mutilação física, tormento presentificado pela

coincidência da falta de um pedaço do pé esquerdo do Cristo e a

amputação da perna esquerda de João.

144 Idem, Ibidem, p. 73. 145

Idem, Ibidem, p. 70. 146

Idem, Ibidem, p. 73.

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Os narradores vergilianos tendem, normalmente, a estabelecer uma

certa afinidade com a disposição tripartida de elementos metafóricos que o

acompanham em toda a diegese. Não se verifica somente no romance Em

Nome da Terra, mas também se chama a atenção para o texto Até ao Fim,

onde Cláudio estabelece um íntimo diálogo com o filho Miguel. Na capela,

onde o corpo do filho se encontrava em câmara ardente, o narrador

vislumbrou, no altar, imagens relativas à vida de Cristo dispostas de forma

tripartida: uma imagem de São João Baptista (aquele que veio primeiro para

anunciar a vinda de um Messias Salvador), uma representação do retábulo

da Anunciação (o nascimento de um Menino que viria para salvar e ensinar

os Homens a viver em caridade) e uma reprodução do Menino Jesus capitão

(aquele que viria a tornar-se o rei dos que acreditam nos preceitos por Ele

transmitidos):

Menino Jesus capitão. Deus era o rei dos reis, senhor dos

exércitos.147

(…) São João. Vestido com uma pele de cordeiro, um varapau

na mão com uma cruz, um livro com um cordeirinho na outra

mão.148

Talvez se possa associar este tríptico à vida de Miguel, ou seja, Flora

anuncia a sua gravidez, o nascimento de Miguel e a sua morte. Isto porque

acaba por se suicidar bastante novo, porventura, por sentir que a sua vida foi

um acto egoísta da parte do pai, uma vez que não foi Miguel a escolher se

devia ou não viver, mas sim o pai.

No caso específico de Em Nome da Terra, o tríptico que reveste a

parede do quarto de João e é constituído pelo fresco de Pompeia, pela

imagem do Cristo crucificado e mutilado e, finalmente, pelo desenho de

Dürer, pode entender-se como a expressão mais evidente das três fases da

147 Idem, Até ao Fim, 8ª edição, Lisboa, Bertrand Editores, 1992, p. 59. 148 Idem, Ibidem, p. 63.

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evolução corporal do ser humano: jovialidade e superioridade físicas,

maturidade e corrupção corporais e, como consequência da efemeridade da

vida, a morte.

Assim sendo, o narrador socorre-se do “tríptico”, que o acompanha

ao longo de toda a narrativa, a partir do qual constrói uma leitura tripartida

da evolutiva degradação do seu corpo e do corpo da esposa. Esta evolução

surge na sequência da observação do fresco de Pompeia, ao qual João

associa o corpo jovem de ambos; seguidamente, João entrevê a imagem da

corrupção corporal ostentada pela figura do Cristo sem cruz e com o pé

esquerdo mutilado, como se pode comprovar pela amputação da perna

esquerda do narrador e a incapacidade de caminhar da esposa; e, por

último, visiona a imagem da morte, através do desenho de Dürer. Este

vínculo articulado entre as três imagens colocadas, pelo narrador, em

tríptico, faculta “uma leitura que vai mais além da estrita leitura do corpo de

Mónica”149, isto porque Em Nome da Terra é um hino inquestionável ao

corpo em ruína e, sobretudo, à beleza que a ruína corporal detém,

consequência da irreversível passagem do tempo.

Porém, este tríptico, de acordo com a reflexão formulada por Carlos

Cunha, para além de evocar a morte e a degradação corporal, apela ao

desejo de perfeição e de eternidade da beleza que existe ou pode existir

num corpo. Desta forma, Flora é apresentada como a deusa jovem da

Primavera, no entanto o seu corpo só é divinizado pela presença de Cristo

ressuscitado e, paralelamente, pela imaginação do narrador:

(…) estas imagens apelam ao desejo de perfeição e de

eternidade: Flora é uma deusa jovem, Cristo ressuscitado e

(con-)sagrou o seu corpo (…). A estampa presentifica Mónica

149 Isabel Cristina Rodrigues, A Palavra Submersa. Silêncio e Produção de Sentido

em Vergílio Ferreira, Tese de Doutoramento em Literatura, Aveiro, Universidade de

Aveiro, 2006, p. 284. (Texto policopiado).

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(…) ela representa tropologicamente a narração de João, que

diviniza Mónica pela imaginação (…)150

Na verdade, é na experiência de um corpo velho ou doente que o

mutismo revela a autêntica essência de um corpo vazio de espírito, graças à

notória mutilação exteriorizada na imagem de João e, simultaneamente, de

Mónica, assim como na relativa imobilidade figurada pelos velhos –

habitantes do lar de repouso –, os quais mastigam a sua condição futura de

seres mortos. Todas estas personagens, inclusive o próprio narrador, são

detentoras de um “corpo em silêncio”151 porque, à semelhança do corpo

debilitado e desabitado de Mónica152, o corpo dos velhos encontra-se

imóvel e vazio (“A cabeça pendida, imóveis, estarão a rezar? Inocentes

indefesos. Têm a eternidade na face. Estão.”153):

São belos e enormes, gosto de os ver. São trágicos e grandes,

gosto. Estão vergados para a mesa e em silêncio comem. Têm

um mandato a cumprir (…). Deixaram atrás de si mil chatices de

serem gente, o sexo, os projectos, o poder e a alegria e a dança

e a casa e o trabalho e a terra e as intrigas da vizinhança e

mesmo o cemitério (…). É a última probabilidade de terem um

corpo e aproveitam-na. (…) São corpos sem mistério, não têm

interior (…) são a carcaça de hominídeos. (…) A vida

manipulou-os sugou-lhes tudo da alma até ficarem só um tubo

digestivo. Está ali o tubo.154

150 Carlos M. F. da Cunha, Os mundos (im)possíveis de Vergílio Ferreira, Lisboa,

Difel, 1997, pp. 129. 151 Vergílio Ferreira, Em Nome da Terra, 9ª edição, Lisboa, Bertrand, 2004, [1990],

p. 288. 152 Atente-se nas palavras de João ao descrever a debilidade física da esposa:

“Lavo o teu corpo mas tu não estás lá. Outrora vinhas de dentro de ti e chegavas

até ao limite dos dedos, das unhas, dos cabelos. Estavas em todo o corpo e eu

reconhecia-te. Na pele, nos gestos. Nos olhos vivacíssimos. Mas agora está só o

teu corpo sem ninguém que se responsabilize por ele. (…) É o teu corpo sem ti.”

(Idem, ibidem, p. 131). 153 Idem, ibidem, p. 41. 154 Idem, ibidem, pp. 36 e 37.

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Em contraste com esta debilitação física, o narrador evidencia a

sublime recriação física de Mónica, na sua escultural beleza de jovem

ginasta, pois é desta forma que se presentifica a glorificação corporal, assim

como todo o romance se transforma num verdadeiro hino ao corpo, quer ele

seja apresentado como debilitado, quer se manifeste como esplêndido.

Contudo, estas imagens de perfeição e de harmonia são alvo de longas

deambulações, uma vez que a corrupção invadiu a sublimidade corporal da

sua esposa e do seu próprio corpo.

A natureza, naturalmente, apropria-se da maturação corporal do ser

humano, ocultando a insustentável beleza e aeridade de outrora. Inscrita na

ruína corporal, esta vai adquirindo uma espécie de vegetação que oculta o

desmoronamento do corpo, conseguindo dessa forma conceder-lhe alguma

beleza. Apesar de existirem marcas visíveis e importantes de ruína (ou seja,

o aspecto envelhecido e as suas faculdades primárias limitadas), o narrador

permanece indiferente à textura da ruína de que é sujeito e pela qual está

envolto. Aos olhos de João, o seu corpo e o corpo de Mónica não são o

suporte de uma grafia da ruína, isto porque o corpo de ambos já foi suporte

de uma imagem perfeita e sublime:

Mas como sempre, penso o teu corpo sobretudo nas mãos. (…)

Tenho nas mãos a memória do teu corpo, do boleado doce do

teu corpo. As pernas, os seios, deixam-me encher as mãos

outra vez. O fio ardente da tua pele. A face. Mal te vejo os olhos

mas o teu olhar cai sobre mim em torrente.155

Tu dizias que o linfatismo tem que ver com quem é linfático,

mas eu era sou forte. Quadrado musculado, eu era até um

jogador de futebol com cento e vinte minutos nas pernas. Nas

duas.156

155 Idem, ibidem, p. 15. 156 Idem, ibidem, p. 83.

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IIIIII.. 22 CCÂÂNNTTIICCOO ÀÀ RRUUÍÍNNAA DDOO CCOORRPPOO ______________________________________________________________________

Entendendo a ruína como símbolo da decadência e, naturalmente, da

morte, não se pode, desde logo, esquecer a possibilidade de fazer despertar

da morte e de uma situação ruinosa uma nova perspectiva de vida, visto

que, pela imaginação, o ser humano pode reconstruir o esplendor perdido de

determinada situação ou de determinada pessoa. Perante um universo

povoado de restos de memória, de ruínas de um corpo que num tempo

pretérito fora perfeito, o corpo passa a ser o lugar onde se instala a

corrupção. Daí que a expedição ao passado sirva para conviver com as

ruínas deixadas pelo rasto do tempo e não para restaurar a ordem e a beleza

perdidas. Por essa razão, Vergílio Ferreira constrói narradores que tendem a

propiciar repetidas e contínuas incursões na memória, rememorando, não

só, os espaços como também os tempos vividos e partilhados com as

esposas, os quais tendem a manifestar a opressão e o sofrimento vivido no

momento presente pelo narrador. Talvez por isso mesmo ele sinta

necessidade de denunciar a sua degradação, visível numa atmosfera de dor

passional e existencial:

Mas a minha vista é curta, Mónica, sou uma coisa inútil vil, a

minha vida foi um ludíbrio como essas mentiras com que se

enganam as crianças para acabarem com a chatice do choro.

Estou a cair para o macambúzio, tu não gostas e tens razão,

aguenta lá.157

Repousa em mim, no meu corpo mutilado, neste depósito de

estrume. Repousa em mim, no absoluto do meu corpo, na minha

mão apodrecida.158

157 Idem, ibidem, p. 153 (sublinhado nosso). 158 Idem, ibidem, p. 171 (sublinhado nosso).

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Saliente-se que João, ao desembarcar numa casa de repouso em

manifesta ruína (presença da debilitação dos velhos), opta por traçar um

caminho de meditação e rememoração, numa atitude romântica e

contemplativa do tempo, de si mesmo e do corpo da esposa. Observe-se

que é no seio do lar que João estabelece um profundo diálogo com os

elementos que recordam o seu passado com Mónica. Na verdade, são estes

elementos que possibilitam ao narrador estabelecer uma ligação entre a

realidade presente e a (ir)realidade passada, a ruína e a beleza. Assiste-se,

deste modo, a uma espécie de transferência de ambientes e de momentos

que se contaminam uns aos outros dentro da casa de repouso: o isolamento

e o ambiente soturno e degradante criam um sentimento ainda mais vincado

de ruína na personagem de João. No entanto, a casa de repouso pode,

ainda, ser considerada como se o leitor assistisse a um prolongamento da

ruína da personagem, pois toda a casa de repouso se investe de vestígios

de degradação.

O ser humano, enquanto ser finito, estabelece uma íntima relação com

a passagem efémera do tempo, daí que o seu corpo seja alvo de corrupção

e de decadência, pois a velhice acelera grotescamente a decomposição do

corpo do Homem. O narrador de Em Nome da Terra dá ao seu leitor visíveis

sinais da beleza de uma ruína venerável, através da descrição pormenorizada

e da evocação que tece ao corpo debilitado de Mónica, dos velhos que

habitam a casa de repouso e do seu próprio corpo. O esqueleto do desenho

de Dürer deve ser, assim, compreendido à luz da imagem dos diferentes

estragos a que o corpo humano está sujeito, causados pela passagem do

tempo e, sobretudo, pela doença e pelo martírio e sofrimento que da doença

advêm:

É um esqueleto curvado com a sua gadanha ceifeira sobre um

cavalo esquelético com um chocalho.

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(…) Porque um esqueleto, querida Mónica, já se não parece

com um homem. Olho o desenho de Dürer, não se parece. (…)

Mas o que vejo é o esqueleto de uma e de outro. É um

articulado de peças para um jogo de crianças.159

As personagens vergilianas são portadoras de uma eternidade

corrompida, uma vez que definham por dentro, que espalham a sua própria

podridão pela superfície das suas vidas. Pode, assim, dizer-se que, no

romance Em Nome da Terra, a ruína é plena, atingindo as personagens nas

suas características físicas:

Os pés, as mãos, a caca que coisa. E o chichi e o instrumental

de o produzir. E os ruídos nem sempre com propósitos mas

perfeitamente legítimos.116600 Curvados amarelos estropiados, o ar

taralhouco (…) podres esqueléticos, mas não te comovas muito,

as caveiras com pressa de serem visíveis, não se mexem, estão

quietos na sua invalidez, têm mantas sobre a ossaria dos

joelhos, os olhos mortais nas peles encarquilhadas caídos para

o chão (…)161

Partilhando do pensamento de Carlos Cunha162, o desenho de Dürer,

intitulado “O cavaleiro, a Morte e o Diabo”, figura metaforicamente a morte e

o mundo presente tão temido e adiado pelo narrador, pois encontra-se

articulado à imagem de degradação física e emocional dos idosos que

habitam o lar de idosos e das personagens principais da obra:

O desenho de Dürer figura a morte, o mundo temido do

narrador, correlacionando-se com os idosos que definham ou

morrem à sua volta e a tornam uma fixação opressiva e

fantasmática no seu mundo actual.163

159 Idem, ibidem, pp. 220-222. 160 Idem, ibidem, p. 27. 161Idem, ibidem, p. 18. 162 Carlos M. F. da Cunha, Os mundos (im)possíveis de Vergílio Ferreira, Lisboa,

Difel, 1997, pp. 128-135. No subcapítulo intitulado “O céu, Em Nome da Terra”, o

autor afirma que o desenho evoca a morte, visto que se encontra num lugar

preenchido por idosos debilitados à espera do término das suas vidas. 163 Idem, Ibidem, p. 128.

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Este mundo de morte converte-se numa obsessão opressiva e fantasmática

no mundo interior do próprio narrador. Todavia, este desenho não esgota

uma representação, através da leitura da tríptica disposição dos objectos na

parede, da morte dos deuses e, simultaneamente, da necessidade do

homem encarar bem de frente os fundamentais problemas da sua condição

enquanto ser humano: o problema da sua efemeridade e a sua morte certa.

É, por isso mesmo, que João encontra na imagem do esqueleto uma

determinada familiaridade com a morte, uma vez que é já um dado adquirido

e um grande passo na aprendizagem do destino humano.

O ser humano, representado pelo herói vergiliano, deve aceitar a sua

condição através da contínua tomada de consciência tanto da sua grandeza

como dos seus limites, manifestados no corpo debilitado de João e de

Mónica. De facto, é na subjectividade do corpo que toda a essência da

memória se encontra patente, isto porque o corpo é o tema primordial de Em

Nome da Terra, representado e revivido, simultaneamente, pela dualidade da

beleza e da fealdade, da juventude e da velhice e da harmonia e da

degradação: por um lado, assiste-se à magnificência física de Mónica e, por

outro lado, à degradação física de João e de Mónica, nos últimos tempos da

sua vida.

Ora, o grotesco é laborado a partir da invalidez que marca a

fragilidade física do narrador e personagem principal – João – e de sua

esposa Mónica. A ruína projecta-se na personagem principal que se sente

aniquilada pela outrora harmoniosa beleza de Mónica: “Agora dou-te a mão,

tu arrastas os pés nos esquis da tua invalidez”164.

Assim sendo, o corpo é o alicerce edificador de todo o romance com

o qual o leitor embate a cada página que desfolha: o corpo irrompe, ao olhar

do leitor vergiliano, ora mutilado, grosseiro, repulsivo e decadente ora

164 Vergílio Ferreira, Em Nome da Terra, 9ª edição, Lisboa, Bertrand Editores, 2004,

p. 168.

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deslumbrante, perfeito e ágil. Vergílio Ferreira, ao lavrar Em Nome da Terra,

esculpiu não só um poema ao corpo deformado, degradado e envelhecido,

mas também ao corpo belo e esplêndido da juventude.

Não descurando o romance em questão, tome-se, ainda, como

exemplo o cântico laborado pelo narrador, do romance Na Tua Face, ao

corpo belo e perfeito de Bárbara. Aqui, Daniel erige o corpo da mulher que

ama evocando a memória, à semelhança do que acontece no texto Em

Nome da Terra, pois só pela rememoração o corpo nu de Mónica se funde

na sua agilidade e vitalidade físicas: “seu corpo nu. Dissolvia-se no aroma,

corpo frágil aéreo”165. Apesar de ir perdendo a sua jovialidade, graças à

passagem fugaz do tempo, o narrador encontra nessa distorção da realidade

a divina e eterna beleza perfeita e aérea, isto porque apela à beleza jovial de

outrora de Bárbara. No que à imagem de Ângela (a esposa de Daniel) diz

respeito, esta deve ser entendida como uma continuidade da imagem de

Bárbara, uma vez que o narrador casou com Ângela por esta se ter revestido

da beleza da amiga. No entanto, também a disciplinada beleza e agilidade

física da esposa se vai corrompendo com a passagem dos anos:

Querida. Estás a ler tão mal, os olhos em cima dos livros. E já

corcovas. (…) mas sempre activíssima encurvada nos arranjos

da casa, que é agora só de nós dois (…)166

Ângela, minha querida. Tinhas o rigor do Universo intercalado ao

teu ser, o rigor da órbita de um astro. (…) a tua beleza tenra

asséptica inconspurcável (…)167

Ângela fora perdendo o seu passo firme quase marcial, com que

a ordem da vida era nela a sua estabilidade.168

165 Idem, Na Tua Face, 3ª edição, Lisboa, Bertrand Editores, 1993, p. 229. 166 Idem, ibidem, p. 70. 167 Idem, ibidem, p. 169. 168 Idem, ibidem, p. 253.

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O ser humano tende a identificar-se nos precisos limites de um corpo

em que ele é o que é, porque o homem é o seu próprio corpo: “O absoluto

do nosso corpo é o absoluto do nosso ‘eu’”169.

Uma vez que o ser humano é o seu próprio corpo, pode afirmar-se

que a ambiguidade reside no sentir a sua decadência. Contudo, o

envelhecimento do corpo não é sentido, pois a velhice assume-se pelo

saber-se que se é velho. Na verdade, o Homem pode saber-se a

envelhecer, mas este não se sente velho, pelo que não é a velhice que irá

contestar a eternidade do “eu”. De facto, dentro de si, o Homem crê-se

intemporal no seu corpo e no seu próprio “eu”. Vergílio Ferreira defende que

o ser humano apenas poderia ter consciência do envelhecimento do seu

corpo se saísse de si, se não fosse o corpo que é, o que não é possível,

pois o corpo é uma presença absoluta ao “eu”.

O envelhecimento do corpo é dado a conhecer pelo espelho, pela

imagem que os outros promovem. Somente através da objectivação imposta

pela imagem é que se poderá reconhecer o envelhecimento do corpo,

porque na sua essência “o corpo é subjectivo”170. Aliás, o escritor salienta

que aquilo que mais envelhece no ser humano é, de facto, aquilo que, por

ele próprio e pelos outros, é objectivado frequentemente.

Mesmo que esteja mutilado ou envelhecido, João não se limita pelo

corpo limitado, porque a mutilação ou o envelhecimento apenas implica um

modo de actuar no Mundo – “Não sou menos ‘eu’ se tenho um corpo

mutilado: apenas tenho menos possibilidades de actuação”171 –, visto que é

através do corpo que o ser humano efectiva a sua presença no Mundo – “O

mundo existe como projecção do nosso corpo. (…) Do meu corpo centrado

ao mundo irradia a vida que um homem pode viver (…) ou seja simplesmente

169 Idem, Em Nome da Terra, 9ª edição, Lisboa, Bertrand Editores, 2004, p. 255. 170 Idem, Invocação ao Meu Corpo, 2ª edição, Lisboa, Bertrand, 1994, p. 258. 171 Idem, ibidem, p. 259.

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o mundo”172. Deste modo, pode dizer-se que o corpo é uno e vário e,

apesar da mutilação de uma perna, o narrador medita na totalidade do seu

corpo: “Minha completude do meu corpo, esta inquietante e absurda e

triunfal realidade do meu corpo”173 “(…) o nosso corpo é uno. Somos mãos,

pés, boca, somos olhos, ouvidos, sexo.”174

O corpo é, simultaneamente, visto por João como belo e desprezível,

uma vez que é uno no seio de toda a diversidade. É a partir desta visão

oximórica que o narrador de Em Nome da Terra ama o seu próprio corpo,

“porque se deve ter amor ao nosso corpo (…) Mesmo na sua

degradação””117755:: ““meu corpo. Está lá tudo. Um saco de estrume, querida, no

princípio no fim e durante”117766.

Ao visualizar a imagem de si, o narrador toma consciência da sua

própria individualidade, partindo de um tempo presente para um tempo

passado. A mutilação da sua perna, enquanto elemento referencial, permite

ao narrador revisitar um mundo para sempre perdido.

A degradação corporal tem, para João, uma dimensão regeneradora,

uma vez que ele consegue superar-se a si mesmo, compreendendo a sua

própria condição de mutilado. Sujeito a um processo de degradação, o

narrador encontra-se condenado à morte, no entanto prefere a existência à

extinção.

O concerto de Mozart para oboé aparece, no universo diegético de Em

Nome da Terra, como símbolo da fragilidade, da tristeza, mas sobretudo da

degradação do corpo da esposa amada. Tal como o oboé, o corpo de

Mónica, inicialmente, entra timidamente “encolhido em bicos de pés (…) a

172 Idem, ibidem, pp. 261 e 262. 173 Idem, Em Nome da Terra, 9ª edição, Lisboa, Bertrand Editores, 2004, p. 125. 174 Idem, Invocação ao Meu Corpo, 2ª edição, Lisboa, Bertrand, 1994, p. 253. 175 Idem, Em Nome da Terra, 9ª edição, Lisboa, Bertrand Editores, 2004, p. 116. 176 Idem, ibidem, p. 20.

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fazer o flic-flac”177. Contudo, o corpo de Mónica acontece harmoniosamente

no esplendor da ginástica, tal como o oboé que brilha entusiástica e

melodicamente: “A orquestra afasta-se mais e o oboé sozinho longamente,

como ele brinca, dança, vejo-te, vejo-te. (…) Há uma harmonia que os

envolve a todos, o oboé mais adulto integra-se ordeiro no conjunto”178. Por

fim, o esplendor físico da esposa adormece tristemente, a par do oboé, uma

vez que os sinais de ruína física começam a despontar: “Até que toda a

orquestra põe fim às diabruras, o oboé é absorvido, integrado e levado para

dentro”179. Deste modo, pode asseverar-se que o narrador de Em Nome da

Terra encontra a sua própria harmonia não só no diálogo com a sua esposa,

mas sobretudo na música de oboé que escuta. É a música que o rege, visto

que detém um carácter onírico, que conduz o narrador a desejar regressar

ao corpo esplendoroso de Mónica.

A velhice propicia uma visão melancólica da vida. A figuração disfórica

do envelhecimento é ampliada pela convocação do corpo de Mónica, que

revela uma outra face da degradação corporal, pois ela havia sido, outrora,

bela e resplandecente nas barras do ginásio a saltar e a subir, em

movimentos sublimes e delicados:

Tenho nas mãos a memória do teu corpo, do boleado doce do

teu corpo.180 Corpo triunfante, é de quando mais to lembro.

Corpo denso e ágil. Furtivo.181 Corpo feroz e lindo, vou

aprendê-lo até o destruir e ser eterno.182

O envelhecimento presentificado pelo escritor realiza-se, portanto, na

progressiva debilidade física e na perda da elasticidade corporal.

177 Idem, ibidem, p. 244. 178 Idem, ibidem, p. 244. 179 Idem, ibidem, p. 245. 180 Idem, ibidem, p. 15. 181 Idem, ibidem, p. 31. 182 Idem, ibidem, p. 118.

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Em Nome da Terra alcança, assim, uma colossal relevância enquanto

texto revelador da inscrição da ruína no corpo e, consequentemente, da

impossibilidade de eludir a percepção da ameaça da morte. A enumeração

assindética de elementos provocadores do desejo de viver tem um efeito de

recordação que situa a vida inexoravelmente no passado, no tempo em que

viver era consubstancial a ver. O erotismo, subtilmente insinuado, constitui

um dos signos mais expressivos da visibilidade da velhice: “Despi-me

brusco, deitados os dois na areia, e a fúria, e o limite. E uma só verdade

para nós e o universo. Deitados de costas, lemos as estrelas”183.

A realização da velhice manifesta-se nas fraquezas físicas, revelando-

-se na desordenação que o corpo estabelece involuntariamente. Cercado

pela ruína, o corpo reflecte a caducidade de uma natureza que já havia sido

seiva e, simultaneamente, sublimação. O corpo jovem, elástico e perfeito de

Mónica é substituído pelo seu corpo envelhecido e debilitado: “Minha Mónica

tão alta divina e para sempre. (…) A tua degradação, descida lenta ao rés-

-do-chão do teu ser. A princípio davas sinal (…) Mas depois era em

qualquer sítio da casa, que tudo era sítio para a tua degradação.”184

Os sinais físicos do envelhecimento prolongam-se, notoriamente, ao

longo de todo o romance. O envelhecimento personifica um processo de

corrupção que atinge o Homem e as suas circunstâncias existenciais,

provocando, portanto, o abatimento de tudo.

A velhice e o envelhecimento manifestam-se, ainda, nas figuras

decadentes de velhos que fazem parte não só da memória afectiva do

narrador, daí surgirem ao sabor das suas deambulações, mas também nas

figuras debilitadas dos velhos que habitam a mesma casa de repouso que o

próprio narrador de Em Nome da Terra. Vergílio Ferreira arquitecta

183 Idem, ibidem, p. 15. 184 Idem, ibidem, p. 129.

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descrições nauseantes de alguns desses velhos, expondo, à leitura atenta

do seu leitor, a miséria que eles transparecem:

Eram sobretudo velhas, mais obstinadas em viver, mais ferradas

à vida do que as moscas às mulas.185 Depositaram-nos aqui até

perderem a mania de estar vivos (...)186 São caquéticos,

esmagriçados, revolvem sempre a boca salivosa. devem estar a

ajeitar a dentadura, alguns não a têm, convulsionam a boca

esvaziada.187

Porém, a figura que sobressai na memória de João é Mónica, a

esposa morta, figura que sugere o perfil de uma pessoa velha que chega, ao

fim da sua vida, não com a pureza de sempre e com uma grandeza que nela

era evidente, mas antes com a decadência e a deterioração física

indubitáveis.

Na verdade, o corpo, na velhice, é o lugar privilegiado de desilusão

narcísica, prometido à decadência, à decrepitude e à morte, revelando-se

também como palco do adoecer, empurrando o sujeito a enfrentar o desafio

de manter a aposta na vida. A velhice abre a porta para uma conciliação com

o corpo frágil e mortal, aludindo à temida degradação do corpo: “Repousa

em mim, meu corpo mutilado”188.

Assim sendo, a velhice, em contraponto com a infância, é a idade da

síntese, ou seja, da chegada do efémero, assim como do tempo propício à

chegada da verosimilhança da morte, uma vez que se encontra espalhada

por todo o lado, desde o corpo do próprio narrador ao corpo da esposa e

dos velhos que residiam no lar de repouso. Ao construir um universo de

mutilação e degradação corporal, Vergílio Ferreira inscreve-o de uma

185 Idem, ibidem, p. 51. 186 Idem, ibidem, p. 165. 187 Idem, ibidem, p. 221. 188 Idem, ibidem, p. 171.

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verdade natural, por isso essa mutilação passa a ser encarada com outros

olhos, pois a fealdade também é bela na transcendência que a sustenta.

Todavia, João vai afastando o entulho, aos poucos, fazendo ressaltar ao

olhar do leitor a beleza e a vitalidade que existe num corpo debilitado e

degradante (Quero primeiro olhar a minha perna devagar, com aflição e

amor189):

(…) um corpo. E a sua miséria asco podridão. E uma harmonia

de tudo isso a ser verdade no infinito. (…) E a beleza incrível aí

de uma gangrena. E o horror o medo. E a baixeza de haver caca

e se cheirar mal. E as outras parcelas de haver luz e um sorriso

de olhos fechados virado para o interior.190

Mónica fora envelhecendo, assim como João, mas o narrador não se

vê nem velho nem diminuído nas suas faculdades, mesmo sabendo que

vivia, no momento da escrita do romance, num lar de repouso, todo ele

povoado por velhos à espera da finalização da passagem do Homem na

terra, ou seja, a morte. Com efeito, o narrador escreve a ruína física não

para ser vista como ruína e degradação, mas como símbolo da beleza que o

corpo velho adquire, daí que seja continuamente rememorado no passado do

esplendor e da grandiosidade. Apesar de João e Mónica não serem já

detentores de um corpo provido de esplendor e magnificência joviais, a ruína

física registada pelo narrador do romance Em Nome da Terra exige do seu

leitor a sua admiração e cumplicidade, pois só desta forma se poderá

compreender, efectivamente, a beleza que o corpo amadurecido de ambos

transmite.

189 Idem, ibidem, p. 118. 190 Idem, ibidem, p. 197.

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Vergílio Ferreira faz irromper, naquela que se esperava que fosse uma

representação do tempo feliz e da perfeição, a ruína e a degradação a que o

Homem está condenado pela sombra sempre presente da morte.

Doçura de quando eras jovem e está ali na tua fotografia. (…) a

frescura de seres, a insuportável perfeição do teu corpo,

acabado de fazer por Deus. A beleza transparente que te

iluminava por dentro. (…) Querida Mónica, um corpo harmonioso

é tão divino.191

Ao mostrar-se deslumbrado com o real que começa no seu corpo, a

atitude do herói vergiliano corresponde a uma situação de revelação, ou

seja, de verdadeira percepção do mundo, graças à pureza na sua

assimilação. Desta forma, o “eu” vergiliano transforma a solidão em milagre

da escrita, pela qual a revelação do texto se manifesta como estratégia

salvífica de comunhão com a realidade, daí o sujeito se envolver numa

atitude de contemplação. Enquanto lugar de acolhimento e sagração

propício à escrita, a noite propicia, ao narrador vergiliano, traçar uma viagem

pelo passado vivido, através da memória cheia, mas solta nos eventos que

compõem a narrativa.

191 Idem, ibidem, p. 215.

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CONCLUSÃO

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CCOONNCCLLUUSSÃÃOO __________________________________________________________________________________________________

Toda a narração do romance Em Nome da Terra, de Vergílio Ferreira,

acontece na memória de um “eu” que não dispensa a presença de um

interlocutor para as suas palavras, por isso transforma o seu discurso numa

extensa e comovente carta dirigida a Mónica – a esposa morta –, visto que o

narrador sente necessidade de se abrir a alguém que, postumamente, o

escute ou, imaginariamente, o acompanhe.

Todo o amor, materializado na imagem do corpo da mulher, irrompe

de um “tu” que significa muito mais do que a simples materialidade de um

outro corpo, ou seja, o corpo desse “tu” evocado excede-se, de maneira

que acaba por adquirir uma dimensão misteriosa e incomunicável, pois o

corpo amado projecta-se numa esfera metafísica, liberto de todas as

contingências terrestres possíveis.

Desta forma, toda a diegese se encontra envolta na anamnese, mais

ou menos anárquica, de toda a vida de João. No caos das recordações, nas

quais se sobrepõem as vozes, os lugares ou propósitos perdidos, o

narrador, subtilmente, elabora uma obsessiva reflexão sobre a globalidade da

existência e da condição de cada ser humano, paralelamente à evocação

contínua da memória.

Porém, o maior dos enigmas que envolve a personagem João

manifesta-se na opacidade do real, sobretudo no mistério do corpo.

Encontrando-se perante um espaço propício à tomada de consciência da

degradação do corpo – o lar de idosos –, o leitor facilmente se apercebe da

dissertação do narrador a propósito do significado do corpo, daí que o

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corpo só exista, verdadeiramente, na quase nula existência de si mesmo:

“quanto mais se existe menos ele existe”192.

Em todo o discurso de Em Nome da Terra, aparece ao leitor a sujeição

a um ímpeto para ultrapassar a tirania do tempo linear e, sobretudo, da

condenação do “eu” narrativo à morte. Negando a aproximação da morte, o

protagonista entra numa dimensão utópica, em que a morte desaparece e a

memória se liberta de qualquer encadeamento cronológico, tal como se

verifica através da presença de súbitas imagens perdidas, a partir das quais

emana o desejo de recriar o amor e negar toda a realidade visível. E com

desejo de projecção no infinito do seu ser, o narrador labora uma diegese

escrita “em nome da terra”, porque é nele que se diviniza uma certa ideia do

corpo, associada à sensação de harmonia natural e cósmica.

Ao lado dos momentos dominados pela recordação de imagens

resplandecentes de beleza, surgem momentos de lucidez nos quais o

narrador se depara com o “sossego lento do seu apodrecer”193. Graças a

estes momentos de lucidez, o romance torna-se o reconhecimento da

tristeza que se abriga no pulsar de cada corpo, assim como a tomada de

consciência de um mal-estar que deixa de ser angústia e passa a ser

melancolia e saudade de um tempo vivido relativamente distante.

Deveras, é pelo desfolhar progressivo das páginas deste romance que

o seu leitor se vai debatendo com o canto e a exaltação ao corpo perfeito e

deslumbrante e, opostamente, mutilado e decadente. Assim sendo, pode

asseverar-se que Em Nome da Terra revela a inscrição da ruína no corpo,

reflectindo a decrepitude de uma natureza outrora sublime.

De facto, a ruína é laborada a partir da invalidez que marca,

indubitavelmente, a fragilidade física de João e de todos aqueles que fazem

parte da sua vida e do seu quotidiano. Na verdade, os sinais físicos de

192 Idem, ibidem, p. 22. 193 Idem, ibidem, p. 243.

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envelhecimento são realçados pela figura de Mónica – a esposa morta do

narrador –, a qual é lembrada, no final da sua vida, não com a agilidade e

perfeição de sempre, mas na sua própria decadência física. Não admira que

seja ao concerto de oboé – instrumento associado à melancolia e à tristeza –

que o narrador se entrega nesses momentos de nostalgia, procurando

respostas para a sua questionação relacionada com a angústia existencial e

metafísica da sua própria vida.

Apesar da sua mutilação, João matiza somente a cor da sua alegria e

da sua maravilha, ou seja, tal como o olhar do pintor, o narrador destaca a

pureza do corpo da mulher da sua vida. Contudo, este corpo magnífico

emerge, ao olhar do leitor, isolado de um fundo que ele próprio tende a

perder – a ruína corporal quer de Mónica quer do próprio narrador. Ao invés

de se perder em longas divagações pelas limitações do corpo de ambas as

personagens, João exalta constantemente a beleza corporal que outrora

possuíam. É ao destacar a imagem fulgurante da esposa que ele consegue

entender a “música inaudível da luz”194, apesar de se encontrar num lugar

degradante: o lar de idosos.

A memória recupera a grandeza de um momento passado, pois é ela

que dá ao leitor a verdadeira ordenação da vida e da ruína presente, uma vez

que funciona como fio condutor da verdadeira “ordenação na música”195 da

vida, mesmo que esta seja dominada pela degradação no momento presente

da escrita. A beleza, que domina o passado das personagens, é sugerida a

partir de “ruídos rudimentares”196 e da poesia que daí se pode insinuar.

Sendo uma narrativa de índole epistolar, Em Nome da Terra

fundamenta-se na projecção da memória de Mónica para um lugar no

194 Idem, Invocação ao Meu Corpo, 2ª edição, Lisboa, Bertrand Editores, 1994, p.

288. 195 Idem, ibidem, p. 290. 196 Idem, ibidem, p. 290.

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infinito. Desse modo, o “tu” desempenha, apenas, o papel de um

interlocutor ausente, mas tanto mais presente quanto mais se faz sentir a sua

ausência. É na ausência da mulher amada que João a eleva a zénites de

divinização, transpondo os limiares da vida e da morte, inscrevendo-a na

eternidade:

Há assim um pacto obscuro entre tudo o que foste até à morte

e a eternidade da tua juventude. Porque é lá que tu moras, no

incorruptível, no intocável do teu ser, na perfeição que um deus

achou enfim perfeita quando te entregou à vida para existires

por ti.197

Em suma, Vergílio Ferreira soube construir um hino harmonioso de

exaltação ao corpo, conotando esse mesmo corpo – envelhecido, mutilado e

deteriorado – com o lirismo e com a beleza. Efectivamente, a diegese

vergiliana vai sendo construída, poeticamente, na base de uma série de

avanços e recuos fruto do processo de rememoração realizado pelo

narrador, em virtude da sua própria solidão, indício evidente da fugacidade

do tempo.

Na verdade, o escritor de Em Nome da Terra escreve uma viagem pela

ruína, servindo-se de resquícios introspectivos, testemunhos da corrupção

que a instância temporal não descora. Assim sendo, a ruína é apresentada

como o fio presentificador do íntimo das personagens, uma vez que o

narrador idealiza a ruína física como símbolo de perfeição e de vitalidade

que um corpo amadurecido pelo tempo adquire.

197 Idem, Em Nome da Terra, 9ª edição, Lisboa, Bertrand Editores, pp. 38 e 39

(sublinhado nosso).

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