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Codex Romanoff

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Academic Project Communication Design ESAD "2012, April UC. Project 2

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1. NOTA INTRODUTÓRIA 2. SOBRE LEONARDO 3. UM GÉNIO DA COZINHA4. A FIGURA DE LUDOVICO SFORZA 5. ACERCA DO COMPORTAMENTO IMPRÓPRIO À MESA DO MEU AMO6. MÁQUINAS DE LEONARDO PARA POUPAR TEMPO NA COZINHA7. AS RECEITAS DE LEONARDO a. SOPA DE FOLHAS DE NABO b. PUDIM DE MOSQUITO BRANCO c. PUDIM DE NATAL d. PAVÃO ASSADO 8. AS MÁQUINAS QUE AINDA TENHO DE INVENTAR PARA AS MINHAS

COZINHAS9. O CÓDEX ROMANOFF DE LEONARDO DA VINCI

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Pelo Doutor

Marino

Albinesi,

promotor

de justiça

em Roma e

presidente

do Circolo

Causou sempre uma certa estranheza o facto de alguém tão

curioso em relação a tudo (como era o caso de Leonardo

da Vinci) ter deixado um espólio tão reduzido em termos

de referências relevantes acerca da comida e da cu-

linária. Isto, num homem cuja maior e mais conhecida re-

alização pictórica, essa represen- tação de parcimónia

culinária denominada A Última Ceia, em que gastou três

anos da sua vida, abordava tanto questões de comida como

valores espirituais. Isto num homem que no seu testa-

mento deixou uma parcela considerável dos seus bens a

um ser muito particular: a sua cozinheira, Battista de

Villanis. Isto num homem que, durante toda a sua vida,

se interessou tanto por alimentação e culinária como

por pro- jectos de pinturas e fortificações, além de in-

vestigar inúmeros outros assuntos que despertavam a sua

curi- osidade. Realmente, o seu interesse pela culinária

foi mais activo do que em outro domínio qualquer. Teve

mesmo de o ser. Não apenas quando ainda pouco mais era

do que um rapazinho e conseguia algumas dis- pensas

das obrigações que o retinham no estúdio de Verrochio,

trabalhando, para realizar algum dinheiro de bolso, nas

cozinhas de um botequim florentino; não apenas na altura

em que, de parceria com Sandro Boticelli, tentou abrir

o seu próprio botequim; mas, muito especialmente, nas

suas aptidões como mestre das folias e banquetes na

corte dos Sforza – e convém recordar que desempenhou

esse cargo durante mais de treze anos – o que implicava

um conhecimento vasto, e muito próximo, dos assuntos de

alimentação. Todavia, o número de referências à comida

e à bebida nos cadernos de apontamentos de Leonardo

conhe- cidos até hoje é por assim dizer, mínimo – meia

dúzia de generalizações e alguns aforismos, mas nem uma

só menção ou receita, depois de todo o tempo que viveu

na corte dos Sforza. Hoje, numa tentativa para preench-

er esta lacuna, é-nos apresentado finalmente aquilo a

que um número cada vez maior de pessoas, incluindo os

presentes autores, designam por Codez Romanoff e até

a minha velha amiga, Shelagh Marvin Routh, que, jun-

tamente com o marido Jonathan, passou muitos anos em

busca desta pista culinária de Leonardo, tem de admitir

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que não há absolutamente nenhuma forma de de autenticar

como texto genuíno de Leonardo da Vinci esta cópia de

um manuscrito Italiano, que trata quase exclusivamente

de comida, e que parece ter surgido vinda de parte

nenhuma.1 Que sentido deveremos atribuir à breve nota

que encabeça esse manuscrito, e que diz: “ Este é o

texto que eu, Pasquale Pisapia, copiei por extenso a

partir do manuscrito de Leonardo da Vinci, que agora

se en- contra no Ermitage, em Leninegrado”? Quem era,

ou quem é, Pasquale Pisapia? Como se explica ser ele a

única pessoa a ter tido conhecimento do manuscrito? E,

tendo os funcionários do Ermitage negado que tal obra

de Leonardo existia no seu museu, é tarefa complemente

inglória procurar fundamentar a sua auten- ticidade,

para já não falar da sua própria existência. (Ainda que

não me custe nada reconhecer que, ainda não há muito

tempo, os Russos “negaram” muitas outras coisas).

1. falo aqui em termos metafóricos, mas até ao momento em que aristocrá-

tica família do Piemonte (alegadamente avessa a toda a forma de publici-

dade e em cuja posse, segundo consta, o dacti- loscrito se encontra desde

a última guerra) vier a público fornecer uma explicação satisfatória,

“de parte nenhuma” continua a ser a expressão que prefiro usar.

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Reconhecido como um dos maiores génios da humanidade em

função de seu inigualável talento artístico e de sua

grande capacidade inventiva, Leonardo da Vinci tinha

um lado menos conhecido, mas igualmente interessante e

curioso, o de chef de cozinha e inventor de utensílios

culinários. Ele trabalhou como cozin- heiro em alguns

restaurantes de Florença, cidade na qual foi sócio de

Sandro Boticelli em uma cantina. ‘Os Cadernos de Cozinha

de Leonardo da Vinci’ recupera os apontamentos feitos

pelo grande mestre renas- centista que foram escritos

durante sua estada no palácio de um de seus mecenas,

Ludovico Sforza, Sen- hor de Milão. O livro reflete os

diferentes interesses do grande pensador renascentista.

Foram compiladas receitas culinárias, com a inclusão de

comentários sobre a preparação dos pratos. Apesar de

muitas recei- tas serem destinadas a banquetes, saindo,

assim, do alcance da cozinha doméstica, o leitor encon-

trará uma grande quantidade de pratos de fácil preparo,

como o Caldo de grão-de-bico e a Chuleta.

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Em 1980 foi descoberto o Codex Romanoff ou, para simplifi-

car, os “Cadernos de Cozinha” de Leonardo Da Vinci. Não

há, evidentemente, comprovação total de que os regis-

tros anotados nesse documento ten- ham sido produzidos

pelo gênio maior do Renascimento. Entretanto, existem

vários indícios nos escritos que nos permitem supor que

essa relíquia seja autêntica.

Entre eles poderíamos citar nomes de personalidades da

época com as quais Leonardo teve contato, locais nos

quais viveu ou pelos quais passou, hábitos típicos do

período renascentista, alimentos próprios da região

onde vivia o artista e inventor,... Uma outra infor-

mação que nos coloca em sintonia com a descoberta dos

“Cadernos” refere-se ao fato de que Da Vinci anotava

sistematicamente tudo aquilo que acontecia em sua vida.

Mantinha total regu- laridade em relação a seus aponta-

mentos e tinha como prática detalhar todos os aconteci-

mentos, mesmo aqueles que faziam parte de um cotidiano

que a maioria das pessoas parece viver, mas não perceber

e saborear.

A partir da descoberta desse precioso arquivo pessoal de

Da Vinci está sendo possível perceber que seus conheci-

mentos avançaram não apenas na área das artes plásticas

e da ciência, da engenharia ou da filoso- fia. Atingiram

também as artes da mesa. Essa passagem de Leonardo pela

gastronomia foi significativa. Nos legando desde alguns

artefatos considerados básicos (e essenciais) na área,

como os guardanapos e as tampas de panelas e reper-

cutindo também pelo fato do artista ser vegetariano,

numa época em que as car- nes eram consideradas essen-

ciais para a composição de uma alimentação farta e um

indicativo de posição e status social.

Leonardo não parecia muito interessado em firmar-se dentro

desse universo social das elites de Milão e Florença

a partir de concessões que lhe fizessem ser reconhecido

como parte do grupo. Por isso, pouco parecia se importar

com a idéia de que comer carne era como um quesito fun-

damental para participar desse seleto “clube”. Privile-

giava os legumes e as verduras por acreditar se tratarem

de alimentos mais leves e saudáveis, numa época em que

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poucas pessoas pareciam se importar com a relação entre

alimentação e saúde.

Um outro dado esclarecedor dessa relação de proximidade

entre Da Vinci e a Gastronomia refere-se ao fato de que

o inventor (em sociedade com o amigo Sandro Botticelli)

chegou a abrir um restaurante. Foi um verdadeiro e re-

tumbante fracasso comercial, especialmente pelo fato

de que não se serviam pratos com carnes. O estabeleci-

mento, se antecipando em aproximadamente 500 anos, era

vegetariano.

Além de trabalhar com verduras e legumes numa época em

que as pessoas estavam mais interessadas em saborear um

bom e suculento filé, Da Vinci e Botticelli preparavam

pratos ornamentados, uma tendência que se celebraria no

período contemporâneo, para a qual as pessoas comuns do

Renascimento não esta- vam preparadas. Outro feito de

Leonardo na área gastronômica foi trabalhar como mestre

de cerimônias para os banquetes do poderoso Ludovico

Sforza, governante da poderosa cidade italiana de Milão.

Não tinha como incum- bência a organização do cardá-

pio, mesmo por conta de suas preferências vegetarianas,

cabendo-lhe orde- nar os banquetes quanto aos serviços,

os instrumentais utilizados, a programação artística,

a ornamen- tação dos locais onde se realizariam as re-

feições,... No período renascentista a alimentação tin-

ha o intuito de definir as bases sociais, especialmente

na Itália, das poderosas e ricas cidades que controla-

vam o acesso de especiarias provenientes do Oriente,

através do Mar Mediterrâneo. Por isso, as tradicionais

e poderosas famílias que reinavam em Florença, Milão,

Veneza ou Gênova organizavam suas refeições cotidianas,

e especialmente suas grandes recepções, com o intuito

de comprovar sua riqueza e seu poder.

Outra informação importante refere-se ao fato de que, a

composição básica da alimentação cotidiana era feita

com produtos típicos de cada região. Especialmente no

que se refere aos alimentos que estragam com maior

rapidez. Por isso, os produtos importados do Oriente

eram caros demais para o povo e, dificilmente atingiam

os pratos daqueles que estivessem longe das cidades.

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Nos cadernos de cozinha de Leonardo da Vinci, Ludovico

Sforza é uma das figuras mais citadas. No en- tanto,

as referências do artista a esse personagem não são

positivas, visto que ele é tratado como exemplo de com-

portamentos reprováveis: Parece-me indigno dos tempos

presentes o costume de Meu Senhor Ludovico de amarrar

coelhos à ca- deira de seus convidados para que estes

possam limpar a gordura das mãos nas costas dos animais.

O que o Meu Senhor Ludovico tem em sua mesa fere a minha

vista. Todos os pratos são monstruosos... é tudo abun-

dância. Assim comiam os bárbaros. Essa reprovação aos

atos do amigo demonstra como o artista foi influenciado

pelo ideal ciceroniano de virtu5, o qual foi retomado

no Renascimento. Nesse momento, assuntos como educação,

retórica e con- hecimento filosófico passaram a ser pauta

de uma discussão que pretendia estabelecer os princi-

pais âm- bitos que deviam compor a instrumentalização

de um verdadeiro cavalheiro. A idéia de que todo homem

pode alcançar a excelência impulsionou uma busca con-

tínua por virtudes que eram consideradas essen- ciais

à vida pública.

Como todo homem é filho de seu tempo6, Da Vinci não poderia

fugir desse ideal. Para ele, Sforza, como governante

de Milão, deveria ser um homem virtuoso, com boas ma-

neiras. Suas atitudes à mesa não eram condizentes com

a de um cavalheiro, o qual deveria ter como objetivo

principal de sua vida a busca pela sabedoria e eloqüên-

cia. Da Vinci chegou ao ponto de comparar seu senhor aos

bárbaros, evidenciando, assim, seu horror ao presen-

ciar aquelas cenas que ofendiam os valores humanistas,

nos quais as boas ma- neiras à mesa faziam parte de um

conjunto de comportamentos necessários a um governante

possuidor da virtu.

(DA VINCI,

2005, p.

189).

(DA VINCI,

2005, p. 77)

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Há hábitos impróprios que um convidado à mesa do meu Amo não deve con-

trair, sendo o catálogo que se segue baseado nas observações que fiz

daqueles que tomaram assento junto do meu Amo durante o ano que passou:

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A experiência adquirida por Leonardo da Vinci nas cozinhas

da Taberna dos Três Caracóis teve um efeito profundo no

seu espírito inquisitivo. Revelou-lhe como era primi-

tiva a preparação dos alimentos nos tem- pos em que

vivia, originando um enorme desperdício de tempo e de

trabalho. E, daí em diante, começou a imaginar “aparel-

hos que permitem poupar tempo” na cozinha. Foi por esta

altura que começou a escrever nos seus cadernos de apon-

tamentos, e é assaz surpreendente a quantidade de de-

senhos que, de acordo com o que os intérpretes das suas

obras têm dito durante os últimos quatrocentos anos, se

trataria de máquinas de guerra e que exprimem, afinal,

uma intenção oposta à de Leonardo da Vinci. Trata-se de

máquinas de paz: picadoras de carne, máquinas de lavar,

quebra-nozes mecânicos e afins. Mas, nesta altura, ainda

teria de esperar algum tempo até poder transformar o

desenho em realidade. Havia encomendas de retratos e de

retábulos e uma reputação de pintor que tinha de ser

adquirida.

No Verão de 1478, na sequência de uma escaramuça entre

dois bandos florentinos rivais, a famosa Taberna dos

Três Caracóis incendiou-se e ardeu por completo. Leon-

ardo da Vinci, desistindo da encomenda mais importante

que recebera até então, um retábulo para a capela de

São Bernardo, no Palazzo Vecchio, decid- iu imediata-

mente abrir, de parceria com o seu amigo Botticelli,

uma taberna provisória no mesmo local da antiga, usando

para esse efeito velhas telas da oficina de Verrocchio.

Deram-lhe o nome de “A Marca das Três Rãs de Sandro

e Leonardo”. Leonardo da Vinci pintou um dos lados da

tabuleta pendurada do lado de fora da casa, Boticelli

pintou o outro. O estabelecimento não foi propriamente

um sucesso. Mais uma vez se provava que a clientela

florentina não morria de amores por quatro rodelas de

cenoura e uma anchova, pesasse embora a forma artística

como eram dispostos no prato (aliás, lamentava-se Boti-

celli, quem é que conseguia perceber uma ementa escrita

da direita para a esquerda?). As telas de Verrochio

foram retiradas das molduras e devolvidas clandestina-

mente ao estúdio do Mestre.

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Nenhuma taberna empregava Leonardo da Vinci como cozinhei-

ro ou lhe dava qualquer outra tarefa na cozinha, dados

os terríveis efeitos que a sua excêntrica gastronomia

exercia sobre a clientela. Não mostrava inclinação para

voltar aos seus retábulos ou para continuar qualquer

outra das suas encomendas. Sentava- se onde calhava,

fazendo rabiscos, tocando alaúde e inventando novos

nós. A coisa mais positiva que fez nesta altura foi

enviar alguns desenhos de arietes e de complexas esca-

das de cerco a Lorenzo de Médici, o senhor de Florença,

que nessa altura estava envolvido numa pequena guerra

com o Papa. O envio destes desenhos deve ser interpre-

tado como um gesto de boa-vontade da parte de Leonardo

da Vinci, que assim contribuía para o esforço de guerra;

mas, apesar de os ter acompanhado de maquetas em maçapão

e em massa de pasteleiro, as intenções de Leonardo da

Vinci não foram bem compreendidas por Lorenzo, que as

encarou apenas como bolos excêntricos e as serviu aos

convidados durante a ceia.

Sem reconhecimento, sem salário e sem vontade de regressar

à monotonia dos retábulos, Leonardo da Vinci sentia-se

cada vez mais incompreendido. Na fase de depressão que

se seguiu a este segundo grande fracasso culinário,

reuniram-se todas as condições para o levar a fazer as

malas e a partir de Florença. E quando Lorenzo de Médici

ouviu dizer que Leonardo da Vinci ia partir, entregou-

lhe uma carta de apre- sentação para Ludovico Sfarza,

Il Moro, governador de Milão, compensando-o assim, par-

cialmente, por ter dado a comer as suas maquetas em

maçapão. Só que, quando Leonardo da Vinci abriu a carta,

não encon- trou qualquer referência às suas competên-

cias de pintor ou de cozinheiro; Lorenzo recomendava-o

mera- mente como excelente tocador de alaúde.

Em 1482, Leonardo da Vinci partiu para Milão, acompanhado

pelo músico e amigo Atlante Migliorotti e por uma carta

de recomendação dirigida a Il Moro, desta vez escrita

pela sua própria mão, e que assim dizia: A minha ex-

celência a construir pontes, fortificações e catapultas

não admite comparação, e o mesmo se pode dizer de muitos

outros aparelhos secretos, que não ouso descrever nesta

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carta. A minha pintura e a minha escultura são superi-

ores às de qualquer outro artista. Sou superlativo a

contar anedotas e a meter-me em sarilhos. E faço bolos

verdadeiramente inigualáveis.

Ao ler a “modesta” carta de auto-recomendação de Leonardo

da Vinci, Ludovico Sforza ficou intrigado. Concedeu-lhe

uma audiência, e foi tal a impressão provocada, que

Leonardo da Vinci saiu da sala com os títulos de “Con-

selheiro de Il Moro para as fortificações” e de “Mestre

de festas e banquetes” da corte dos Sforza. Finalmente,

era alguém: não um mero artista excêntrico. Foram-lhe

entregues criados para o seu serviço, foi-lhe cedida

uma oficina, encontrando-se à sua volta a grande corte

de Milão: cortesãos, consel- heiros, mercenários, rep-

resentantes de potências estrangeiras, homens de grande

erudição. Por causa de uma simples carta, toda a sua

vida mudou. Foi então que deu início aos apontamentos

inscritos nos cader- nos de apontamentos que hoje con-

stituem o Codex Romanoff.

É um facto que Leonardo da Vinci conseguia ocupa-se de

assuntos mais adequados ao seu intelecto. Mas era com

relutância que se dedicava a trabalhar nalguns retratos

de damas da corte. Começava muitos, mas eram poucos os

que acabava. Insistiu fortemente na edificação de uma

estátua do pai de Ludovico, uma escultura de grandes di-

mensões quatro vezes superiores às reais. E quando sur-

giu um banquete especial para celebrar as bodas de uma

sobrinha dos Sforza, aproveitou para, de novo, fazer

publicidade à sua arte culinária, que tantos problemas

lhe trouxera em Florença. Levou Ludovico a sua proposta

para a ementa da ocasião. À frente de cada convidado,

explicou Leonardo da Vinci a um Ludovico reticente, se-

ria posto um prato com o seguinte repasto:

- Uma anchova enrolada sobre uma rodela de nabo, esculpida

na forma de uma rã. - Outra anchova, disposta em espiral

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- Uma anchova enrolada sobre uma rodela de nabo, esculpida na forma de

uma rã.

- Outra anchova, disposta em espiral à volta de uma erva.

- Uma cenoura finalmente trabalhada.

- Um coração de alcachofra.

- Duas metade de pepino de conserva por cima de uma folha de alface.

- Um peito de pequena ave canora.

- Um ovo de pavão.

- Um testículo de carneiro envolto em natas (frio).

- Uma perna de rã sobre uma folha de dente-de-leão.

- Um pé de carneiro cozido e desossado.

Como se pode calcular, Ludovico respondeu a Leonardo da

Vinci que aquilo não era propriamente uma refeição que

estava nos seus planos. Explicou laboriosamente a Leon-

ardo da Vinci que aquele não era o tipo de banquete

que os Sforza costumavam servir aos seus convidados,

nem era banquete que se apresen- tasse a convidados que

teriam de fazer uma cansativa viagem para vir à festa.

Graças aos livros de contas dos Sforza, temos hoje

conhecimento de que, em vez daquilo que fora proposto

por Leonardo da Vinci, Ludovico Sforza deu ordens para

encomendar:

- 600 salsichões com miolos de porco de Bolonho.

- 300 Zampone (pernas de porco recheadas) de Modena.

- 1200 empadas de Ferrara.

- 200 vitelas, galinhas e patos.

- 60 pavões, cisnes e garças.

- Maçapão de Siena.

- Queijo Gorgonzola com o selo da Guilda dos Queijeiros.

- Carne picada de Monza.

- 2000 ostras de Veneza.

- Macarrão de Génova.

- Esturjão.

- Trufas.

- Puré de nabo.

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Outras iguarias semelhantes deveriam ser encomendadas

diariamente enquanto durassem os festejos que Leon-

ardo tinha de organizar para Ludovico. No entanto, pelo

menos, Ludovico reconhecera o vivo inter- esse de Leon-

ardo da Vinci pelas artes da cozinha. Pouco tempo de-

pois, encarregou- o de fazer um projecto de alteração

das cozinhas do grande palácio dos Sforza, no centro de

Milão. A partir dessa altura, e durante os seis meses

seguintes, Ludovico e as várias centenas de pessoas que

faziam parte da corte e que habitavam no palácio viveram

provavelmente o maior caos das suas vidas. Leonardo da

Vinci fez imediatamente uma lista do que lhe pareciam

ser os requisitos básicos de uma cozinha:

Em primeiro lugar (é preciso) um lume permanente. Depois,

um fornecimento constante de água a ferver. Depois, que

o chão esteja sempre limpo. Depois, ainda, dispositivos

para limpar, esmagar, cortar, moer e pelar. E ainda um

dispositivo para manter a cozinha livre de cheiros e

pestilências, dotando-a de uma atmosfera limpa e sem

fumos. E música, pois os homens trabalham melhor e com

mais alegria quando há música. Por fim, um engenho para

eliminar as rãs dos barris de água potável.

Leonardo da Vinci recolhe-se então nas gigantescas oficinas

do Corte Vecchio (hoje, Palácio Real), onde normalmente

se fabricavam os cenários e palcos para os divertimen-

tos do palácio, e dedica-se aos seus inventos (sabe-se

isto devido a Matteo Bandelli, que detinha o cargo de

cronista da corte). Começa pelas coisas absolutamente

básicas. Pergunta a si mesmo se um pedaço de lenha de

forma e comprimento particulares arderá melhor e for-

necerá mais calor do que o outro. Dia após dia, estuda

fornos onde ardem achas diferentes, medindo quanto tem-

po cada uma demora a arder, avaliando a quantidade de

calor produzida. Por fim, acaba por chegar à conclusão

de que é a quantidade e não o for- mato da lenha que

importa; inventa então um tapete rolante em que a lenha,

cortada por uma serra circular colocada no exterior da

cozinha, é levada directamente para perto dos fornos,

declarando que assim eliminava a necessidade de um ra-

chador de lenha dentro da cozinha (embora esquecesse os

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necessários para accionar e alimentar a serra circular

e o tapete, no exterior). Projecta igualmente um as-

sador automático, com a intenção de libertar um moço de

cozinha da tarefa de passar o dia inteiro a voltar o

espeto por cima do lume. Instalado dentro da chaminé,

por cima do lume, um hélice é movimentado pela corrente

de ar quente que sobe e está ligado a uma engrenagem que

faz girar o espeto. “O assado girará no espeto de uma

forma mais lenta ou mais rápida conforme o fogo for mais

brando ou mais forte”, escreveu Leonardo da Vinci sob

o desenho que fez para este projecto (que está no Codex

Atlanticus, e de que existe um modelo em funcionamento

no Museu de Ciência e Técnica, em Milão). Entre- tanto,

Leonardo da Vinci não especifica em que é que o criado

libertado na cozinha irá ocupar o seu tempo.

Projecto de Leonardo da Vinci para um assador automático: as pás da hé-

lice ou o propulsor, na chaminé, são movimen- tados pelo ar quente que

vem do fogo, accionando o espeto colocado em baixo. [Cod. Atl. fol. 5v.]

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Sopa de folhas de naboHá quem afirme que as folhas de nabo e repolho, em qualquer de suas

formas, são comida apropriada apenas para aqueles de forte compleição

(lavradores, carregadores de pedras, açougueiros) e que os inválidos,

bibliotecários, pessoas pequenas ou de digestão delicada deveriam man-

ter-se afastados deles. Eu, por outro lado, afirmo que as folhas de nabo

e os repolhos tornam forte uma digestão fraca, por causa da propriedade

de suas folhas, as quais já vi reviver uma vaca moribunda e alegrar uma

vaca doente. Aqueles que crêem na primeira dessas teorias devem provar a

sopa. Deve-se fazer molhos com as folhas de nabo e os repolhos e amarrá-

-los com crina de cavalo. Em seguida, mergulhe-os em água fervente e sal

e deixe-os ali por uma hora. O líquido obtido pode ser um prato leve

para a Quaresma.

Pudim de mosquito brancoMoa amêndoas descascadas e sem pele junto com um pouco de flores de sabu-

gueiro e passe tudo pela peneira. Cozinhe lentamente por meia hora, junte

peito de capão cozido com um pouco de mel e moa tudo. Regue a mistura

com água de rosas e sirva de imediato. Este prato é de digestão muito

lenta e não aconselhável para aqueles que têm a Peste e para aqueles que

querem saber por que tem este nome, questão à qual não posso responder.

Um pudim de NatalRemover a pele e as espinhas a sete pei- xes brancos grandes, reduzir

a carne a uma pasta que se mistura com o miolo de sete pães não muito

tostados e uma trufa branca ralada. Ligar tudo com as claras de sete ovos

de galinhas e cozer ao vapor, num saco de pano rijo, durante um dia e uma

noite. Na hora de o comer, tomar cuidado para não haver engasgadelas com

uma qualquer Santa relíquia que tenha sido escondida no seu interior.

Leonardo da Vinci nunca tivesse inventado a máquina a vapor. Todos os

factores necessários estavam ao seu alcance, incluindo o pistão, mas,

por uma razão ou por outra, nunca os pôs a funcionar em conjunto.

(Esta

receita foi-

me dada pelo

meu amigo

Atalante

Miglioitti,

o músico).

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Pavão assadoCozinhar pavões envolve muito tempo e desapontamento. Para matar um pa-

vão, adopta-se o mesmo procedimento usado para matar uma cabra – corta-se

a garganta e leva-se a ponta de uma faca até ao cérebro para fazer sair

o sangue. Pendura-se depois o animal numa figueira, durante uma noite,

para lhe amaciar as carnes, depois de lhe ter enchido o corpo vazio com

urtigas e atado pesos a ambas as pernas.16 Agora é a vez de cortar a pele

à superfície, desde o pescoço até à cauda e removê-la juntamente com as

penas e as pernas que ainda estão ligadas ao resto do corpo. Conservá-

-lo cuidadosamente à parte. Colocar no fogão a carcaça do animal, tendo

recheado o interior com sementes de cravo, salpicado a sua superfície com

ervas aromáticas e – aquilo que é mais importante – envolvido

o pescoço e a cabeça em pano branco, mantido sempre húmido durante o

tempo de cozedura, para que não se deformem com o calor. Quando a ave

estiver cozida – o que irá demorar duas a três vezes mais do que no caso

de um capão, porque a sua carne é muito mais rija – tira-se do espeto,

envolvendo-a depois na sua própria pele, que se conservou. Para fazer

com que o pássaro pareça estar de pé, é conveniente montar pernas de

ferro sobre o tampo da mesa, colocando sobre elas o pavão: o ferro deve

atravessá-lo da cabeça à cauda, permanecendo, contudo, invisível. Neste

comenos, pode-se introduzir lã e cânfora no bico da ave e pegar-lhe lume.

É altura de fingir que se está a trinchar o pavão para os convidados, mas

o que na realidade vós lhes ireis servir é carne de pavoas, cozinhadas

em segredo e ao mesmo tempo que o macho, cuja carne é, porém, mais macia

e por isso mais aceitável para os nossos convidados. Não é aconselhável

o consumo de pavões a quem sofra do fígado ou do baço. A carne é pesada

e não muito nutritiva.

16. Esta passagem encontra-se praticamente palavra por palavra na edição

original de Valturio, De Re Mangiare, publicada em 1472 por Johannes Ni-

colai de Verona (e da qual há uma incompleta na Biblioteca do Vaticano).

É omitida na tradução de Ramusio para a edição milanesa de 1483, pelo que

Leonardo da Vinci a deve ter copiado da edição original posteriormente a

1497, quando autodidacticamente se propôs aprender latim - a menos que,

é claro, um amigo se tenha prestado a traduzi-la antes dessa data.

(Gallio

não gosta

de o fazer

porque tem

realmente

medo do

fogo)

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Como devo, porém, accioná-las? A vento ou a água? Rodas dentadas e ma-

nivelas? Bois ou camponeses?

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Os apontamentos de cozinha redigidos por Leonardo da Vinci

e compilados de modo a constituírem o Codex Romanoff

estão longe de abordar todos os alimentos e pratos dis-

poníveis no seu tempo. Tudo leva a crer que ap- enas

apontava, arbitrariamente, aquilo que despertava o seu

interesse. As “suas” receitas são de outros, não foram

inventadas por ele – excepto no que toca à causa, total-

mente perdida, da Nouvelle Cuisine. A maior criativi-

dade é revelada pelas suas observações sobre cozinhar

e o comer e, sobretudo, pelos projectos de alterações

às cozinhas. A comida em Milão e, na verdade em toda

a Itália, durante os em que Leonardo da Vinci regis-

tou estes apontamentos nos seus cadernos (e cuja maio-

ria se situa entre 1481 e 1500), só pode ser descrita

como absolutamente execrável. Os dias das “línguas de

rouxinol”, dos “ovos de avestruz mexidos”, dos “porcos

recheados com chouriço de sangue e tordos vivos”, os

dias de gusa do Império Romano, há muito que pertenciam

ao passado. A alimentação era “gótica” (querendo isto

dizer que fora introduzida em Itália pelos Godos). Os

ricos comiam uma profusão de carnes e de aves, os pobres

alimentavam-se de Polenta, ou nalguns casos, de sopas

espessas e de papas de trigo. Quase tudo sal- picado

por grandes quantidades de especiarias (ou melhor, de

ervas aromáticas) incluindo a polenta. A maior parte

dos legumes e tubérculos já era conhecida – embora ainda

não a batata, o tomate, qualquer das outras plantas e

frutos descobertos no Novo Mundo, e que só se tornariam,

populares na Europa no século XVII. Havia sal, pimenta

e especiarias, queijos e pão (embora o pão branco fosse

uma verdadeira raridade), o adoçante era o mel, como

sem- pre, e não o açúcar (embora houvesse cana de açú-

car na Sícilia). Quase sempre, o vinho era misturado

com água ou com mel, ou até com ambos. Era vulgar a

água potável ser um bem raro, apenas acessível a partir

de aquedutos ou aguadeiros. A aguardente, destilada e

vendida nas boticas, servia com medicamento para os

que apanhavam a peste. O chá, o café e o chocolate não

eram ainda conhecidos. Os utensílios de cozinha mais

vulgares eram o pilão e o almofariz: praticamente toda

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a carne, peixe e criação eram esmagados até atingirem a

consistência de uma pasta fina, que depois era passada

por uma peneira e, por fim, misturada com mel e arroz

(para render mais). Os alimentos eram dispostos sobre

uma base de pão ázimo que, no fim, também era comido

ou, como acontecia em algumas das casas mais abastadas,

dado aos cães ou aos pobres. Os pobres só comiam uma

vez, a meio do dia. Os ricos tomavam uma refeição leve

entre as nove e as dez da manhã e deixavam o repasto

principal para o fim da tarde. Entretanto, se quisermos

ver as coisas pelo lado positivo, o esturjão era, nessa

época, o peixe mais vulgar no Mediterrâneo e, assim

sendo, nunca faltava caviar aos pobres.

Considerando as funções desempenhadas por Leonardo da Vin-

ci quando redigiu estes apontamentos é perfeitamente

compreensível que tenham um tom de superioridade, que

lhe era conferido por uma casa imensamente rica. As-

sim, não é de espantar que, sendo caviar um alimento

tão “vulgar”, não apareça mencionado nas suas receitas.

A consideração que Leonardo da Vinci demonstra pelo caviar é ainda menor

do que pela polenta. As principais pessoas que Leonardo da Vinci refere

nos seus apontamentos são: - O Meu Senhor Ludovico: Ludovico Sforza, Il

Moro, governador de Milão, patrono de Leonardo da Vinci de 1481 a 1499

e, após a morte do inepto irmão mais novo, Giancarlo, em 1495, tambÈm

Duque de Milão. - A Minha Senhora Beatrice: Beatrice D’Este, que casou

com Ludovico Sforza em 1493. - Salai: Discípulo-criado de Leonardo da

Vinci a partir de 1490 (cujo verdadeiro nome era Gian Giacomo Caprotti

di Oreno). - Battista: Cozinheira de Leonardo da Vinci.

(“Mestre de

Festas e

Banquetes”

na corte dos

Sforza)

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