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Relato de Caso Rev. Bras. Cir. Cabeça Pescoço, v.41, nº 2, p. 89-92, abril / maio / junho 2012 ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– 89 A raridade das afecções congênitas cervicais: anomalias do ducto tireoglosso José Francisco de Sales Chagas 1 Abrão Rapoport 2 Maria Beatriz Nogueira Pascoal 3 José Luis Braga de Aquino 4 Luis Antonio Brandi Filho 5 Marcos Ribeiro Magalhães 6 Otávio Alberto Curioni 7 Thiago Olivetti Artioli 8 Carolina Ferraz do Amaral 8 Resumo Introdução: Cistos e fístulas congênitas cervicais devem ser considerados no diagnóstico diferencial das massas cervicais em adultos e crianças. Incluem, em ordem descendente de frequência, os cistos do ducto tireoglosso, afecções do aparelho branquial, cistos dermoides e outras afecções laterais cervicais. Anomalias do ducto tireoglosso e cistos dermoides constituem a grande maioria das massas cervicais congênitas da linha média observada em crianças e as lesões mais incomuns do pescoço na linha média incluem as rânulas e fístulas. objetivo: Discutir a conduta nos casos raros de anomalias do ducto tireoglosso. Relato do Caso: Os autores relatam sua experiência nos casos mais incomuns das doenças congênitas cervicais, como o caso de caso de uma fístula cutânea na linha média, com trajeto fistuloso que se relacionava com o corpo do osso hioide indo até a base da língua. Discussão e Considerações Finais: A avaliação pré-operatória de uma massa cervical deve ser precisa, pois nos casos de lesões congênitas cervicais o erro no diagnóstico diferencial pode levar a conduta inadequada e sequelas importantes como hipotireoidismo, hipocalcemia, etc., principalmente nos casos mais incomuns. Apesar de sua raridade existem certas características clínicas e de imagem que podem ajudar no diagnóstico diferencial destas afecções. Descritores: Cisto Tireoglosso; Cisto Dermoide; Doenças Congênitas, Hereditárias e Neonatais e Anormalidades. summaRy Introduction: Congenital cervical cysts and fistulas should be considered in the differential diagnosis of neck masses in adults and children. They include, in descending order of frequency, thyroglossal duct cysts, disorders of the branchial apparatus, dermoid cysts and other lateral diseases in the neck. Thyroglossal duct anomalies and dermoid cysts comprise the vast majority of congenital midline cervical masses seen in children. Unusual lesions of the midline neck include ranulae and midline cervical clefts. objective: To discuss the therapeutics around the rare cases of Thyroglossal duct anomalies. Case Report: The authors report their experience in the most unusual cases of congenital cervical anomalies, like the case of a cutaneous middle line fistulae, with its track being related since the hyoid bone until the tongue base. Discussion and Final Considerations: The preoperative evaluation of a neck mass must be accurate, because in cases of congenital cervical lesions error in diagnosis can lead differential misconduct and important sequelae such as hypothyroidism, hypocalcemia, especially in the most unusual cases. Despite its rarity there are certain clinical and imaging features that can help in the differential diagnosis of these disorders. Key words: Thyroglossal Cyst; Dermoid Cyst; Congenital, Hereditary, and Neonatal Diseases and Abnormalities. 1) Doutorado em Medicina, Universidade Federal de São Paulo. Professor de graduação e pós-graduação de Clínica Cirúrgica e Cirurgia de Cabeça e Pescoço pela USF, PUC Campinas e Hospital Heliópolis. Pesquisador pela PUC Campinas e Hospital Heliópolis. 2) Doutorado em Cirurgia pela Universidade Federal de São Paulo (1973) e Docência Livre pela Faculdade de Medicina da USP (1988). Atualmente é Médico do Hospital Heliópolis, Prestador de Serviço - Instituto de Ciências - Hospital Alemão Oswaldo Cruz, - 1, Médico do Hospital Heliópolis - Unidade de Gestão Assistencial 1, Médico - Secretaria de Estado da Saúde. 3) Mestrado em Cirurgia de Cabeça e Pescoço - Serviço de Pós Graduação do Hospital Heliópolis (2000). Atualmente é Cirurgiã de Cabeça e Pescoço da Pontifícia Universidade Católica de Campinas e do Hospital Municipal Dr. Mário Gatti - Consultório Privado. 4) Doutorado em Cirurgia Geral pela UNICAMP (Professor titular da PUC Campinas, Membro do comitê de Ética e Pesquisa da PUC Campinas, Presidente da Sociedade de Medicina e Cirurgia de Campinas. 5) Cirurgião Cabeça e Pescoço. Serviço de Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Hospital da PUC Campinas. 6) Cirurgião Cabeça e Pescoço. Departamento de Cirurgia de Cabeça e Pescoço e Otorrinolaringologia do Hospital Heliópolis, São Paulo. 7) Mestrando do Curso de Pós-Graduação em Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Hospital Heliópolis. Serviço de Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Hospital Heliópolis. 8) Estudante de Medicina 4º Ano PUC-Campinas. Corresponênica: Prof. Dr. Abrão Rapoport. E-mail: [email protected] Prof. Dr. José Francisco de Sales Chagas. E-mail: [email protected], Campinas - SP, telefone: (+55 19) 9765-3010. Recebido em 04/12/2011; aceito para publicação em 13/02/2012; publicado on line em 27/06/2012. Conflito de interesse: não há. Fonte de fomento: não há. The rarity of cervical congenital disorder: thyroglossal duct anomalies INTRODUÇÃO Cistos e fístulas congênitas cervicais devem ser con- siderados no diagnóstico diferencial das massas cervicais em adultos e crianças. Incluem, em ordem descendente de frequência, os cistos do ducto tireoglosso, afecções do aparelho branquial, cistos dermoides e outras afec- ções laterais cervicais. É necessário o entendimento da embriologia e anatomia de cada uma destas lesões para diagnóstico acurado e escolha de terapia apropriada com finalidade curativa, além de prevenir recidiva da doença 1 . As lesões congênitas cervicais são afecções raras e, al- gumas vezes, de diagnóstico difícil. Apesar disso existem certas características clínicas e de imagem que podem

Código 193 Relato de Caso A raridade das afecções ... · ções laterais cervicais. É necessário o entendimento da embriologia e anatomia de cada uma destas lesões para

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Relato de Caso

Código 193

Rev. Bras. Cir. Cabeça Pescoço, v.41, nº 2, p. 89-92, abril / maio / junho 2012 ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– 89

A raridade das afecções congênitas cervicais: anomalias do ducto tireoglosso

José Francisco de Sales Chagas 1

Abrão Rapoport 2

Maria Beatriz Nogueira Pascoal 3

José Luis Braga de Aquino 4

Luis Antonio Brandi Filho 5

Marcos Ribeiro Magalhães 6

Otávio Alberto Curioni 7

Thiago Olivetti Artioli 8

Carolina Ferraz do Amaral 8

Resumo

Introdução: Cistos e fístulas congênitas cervicais devem ser considerados no diagnóstico diferencial das massas cervicais em adultos e crianças. Incluem, em ordem descendente de frequência, os cistos do ducto tireoglosso, afecções do aparelho branquial, cistos dermoides e outras afecções laterais cervicais. Anomalias do ducto tireoglosso e cistos dermoides constituem a grande maioria das massas cervicais congênitas da linha média observada em crianças e as lesões mais incomuns do pescoço na linha média incluem as rânulas e fístulas. objetivo: Discutir a conduta nos casos raros de anomalias do ducto tireoglosso. Relato do Caso: Os autores relatam sua experiência nos casos mais incomuns das doenças congênitas cervicais, como o caso de caso de uma fístula cutânea na linha média, com trajeto fistuloso que se relacionava com o corpo do osso hioide indo até a base da língua. Discussão e Considerações Finais: A avaliação pré-operatória de uma massa cervical deve ser precisa, pois nos casos de lesões congênitas cervicais o erro no diagnóstico diferencial pode levar a conduta inadequada e sequelas importantes como hipotireoidismo, hipocalcemia, etc., principalmente nos casos mais incomuns. Apesar de sua raridade existem certas características clínicas e de imagem que podem ajudar no diagnóstico diferencial destas afecções.

Descritores: Cisto Tireoglosso; Cisto Dermoide; Doenças Congênitas, Hereditárias e Neonatais e Anormalidades.

summaRy

Introduction: Congenital cervical cysts and fistulas should be considered in the differential diagnosis of neck masses in adults and children. They include, in descending order of frequency, thyroglossal duct cysts, disorders of the branchial apparatus, dermoid cysts and other lateral diseases in the neck. Thyroglossal duct anomalies and dermoid cysts comprise the vast majority of congenital midline cervical masses seen in children. Unusual lesions of the midline neck include ranulae and midline cervical clefts. objective: To discuss the therapeutics around the rare cases of Thyroglossal duct anomalies. Case Report: The authors report their experience in the most unusual cases of congenital cervical anomalies, like the case of a cutaneous middle line fistulae, with its track being related since the hyoid bone until the tongue base. Discussion and Final Considerations: The preoperative evaluation of a neck mass must be accurate, because in cases of congenital cervical lesions error in diagnosis can lead differential misconduct and important sequelae such as hypothyroidism, hypocalcemia, especially in the most unusual cases. Despite its rarity there are certain clinical and imaging features that can help in the differential diagnosis of these disorders.

Key words: Thyroglossal Cyst; Dermoid Cyst; Congenital, Hereditary, and Neonatal Diseases and Abnormalities.

1) Doutorado em Medicina, Universidade Federal de São Paulo. Professor de graduação e pós-graduação de Clínica Cirúrgica e Cirurgia de Cabeça e Pescoço pela USF, PUC Campinas e Hospital Heliópolis. Pesquisador pela PUC Campinas e Hospital Heliópolis.

2) Doutorado em Cirurgia pela Universidade Federal de São Paulo (1973) e Docência Livre pela Faculdade de Medicina da USP (1988). Atualmente é Médico do Hospital Heliópolis, Prestador de Serviço - Instituto de Ciências - Hospital Alemão Oswaldo Cruz, - 1, Médico do Hospital Heliópolis - Unidade de Gestão Assistencial 1, Médico - Secretaria de Estado da Saúde.

3) Mestrado em Cirurgia de Cabeça e Pescoço - Serviço de Pós Graduação do Hospital Heliópolis (2000). Atualmente é Cirurgiã de Cabeça e Pescoço da Pontifícia Universidade Católica de Campinas e do Hospital Municipal Dr. Mário Gatti - Consultório Privado.

4) Doutorado em Cirurgia Geral pela UNICAMP (Professor titular da PUC Campinas, Membro do comitê de Ética e Pesquisa da PUC Campinas, Presidente da Sociedade de Medicina e Cirurgia de Campinas.

5) Cirurgião Cabeça e Pescoço. Serviço de Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Hospital da PUC Campinas.6) Cirurgião Cabeça e Pescoço. Departamento de Cirurgia de Cabeça e Pescoço e Otorrinolaringologia do Hospital Heliópolis, São Paulo.7) Mestrando do Curso de Pós-Graduação em Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Hospital Heliópolis. Serviço de Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Hospital Heliópolis.8) Estudante de Medicina 4º Ano PUC-Campinas.

Corresponênica: Prof. Dr. Abrão Rapoport. E-mail: [email protected] Prof. Dr. José Francisco de Sales Chagas. E-mail: [email protected], Campinas - SP, telefone: (+55 19) 9765-3010.Recebido em 04/12/2011; aceito para publicação em 13/02/2012; publicado on line em 27/06/2012.Conflito de interesse: não há. Fonte de fomento: não há.

The rarity of cervical congenital disorder: thyroglossal duct anomalies

INTRODUÇÃO

Cistos e fístulas congênitas cervicais devem ser con-siderados no diagnóstico diferencial das massas cervicais em adultos e crianças. Incluem, em ordem descendente de frequência, os cistos do ducto tireoglosso, afecções do aparelho branquial, cistos dermoides e outras afec-

ções laterais cervicais. É necessário o entendimento da embriologia e anatomia de cada uma destas lesões para diagnóstico acurado e escolha de terapia apropriada com finalidade curativa, além de prevenir recidiva da doença1. As lesões congênitas cervicais são afecções raras e, al-gumas vezes, de diagnóstico difícil. Apesar disso existem certas características clínicas e de imagem que podem

ajudar no diagnóstico diferencial destas afecções, mesmo nos casos mais raros. O objetivo deste artigo é mostrar nossa experiência com os casos mais incomuns das ano-malias da linha média que incluem as afecções do ducto tireoglosso, cistos e fístulas dermoides, ressaltando seus aspectos clínicos, diagnósticos e terapêuticos.

RELATO DOS CASOS E DISCUSSÃO

Anomalias da Linha Média Cistos e Fístulas Dermoides

A maioria dos casos resultam de inclusão ectodérmi-ca nas zonas axiais de fusão do broto embrionário entre 24 a 56 dias de vida intra-uterina. As lesões do dorso nasal são raras e correspondem a proporção de 1 para 20000 a 40000 nascimentos.O diagnóstico geralmente é feito ao nascimento com a presença de uma fístula cutâ-nea ou tumefação, que pode ser localizada em qualquer lugar entre a glabela e ponta nasal, como visto neste pa-ciente da Figura 1. Essa fístula pode terminar em fundo cego, às vezes se estendendo para áreas profundas da face. As complicações são dominadas pela infecção do cisto o que pode levar a quadro importante de celulite peri-orbitária, meningite ou abscesso cerebral ou, mais frequentemente, a quadros menos importantes como formação de fístula secundária2.

O objetivo principal dos exames complementares é avaliar a extensão e profundidade do cisto dermoide, bus-cando sua relação com a base anterior do crânio e para fazer diagnóstico diferencial com outras mal formações congênitas crânio-faciais, como as meningomieloceles. A tomografia computadorizada é o padrão ouro devido a fa-cilidade de análise do complexo ósseo facial (Figura 2) e a ressonância nuclear magnética auxilia na melhor defini-ção dos tecidos moles, configurando desta maneira, dife-renciação pré-operatória entre as lesões mais superficiais daquelas com extensão para o sistema nervoso central3. A indicação de tratamento é a ressecção cirúrgica após seis meses de idade, o que facilita o manuseio cirúrgico. Quan-do ocorre extensão intra-craniana há necessidade de equi-pe multidisciplinar, associando-se o neurocirurgião1.

Cistos e Fístulas do Ducto Tireoglosso

A glândula tireoide desenvolve-se a partir de dois alargamentos teciduais na face ventral da faringe primiti-va: um mediano, maior e dois pares menores e laterais. Os laterais não contribuem com formação de folículos, porém provêem a formação de células C parafolicula-res que produzem calcitonina. O mediano é reconhecido ao fim da 3ª semana de gestação e se inicia como um engrossamento da face ventral da parede faríngea. Ma-nifesta-se um divertículo com migração crânio-caudal e, por volta da 5ª semana, o ducto se oblitera e se quebra em fragmentos. O alargamento do osso hioide se inicia adjacente ao ducto tireoglosso e seus remanescentes. Normalmente o ducto tireoglosso é anterior ou ventral ao osso hioide mas, eventualmente, o ducto ou seus re-

manescentes passam através ou justa dorsal ao hioide. A porção caudal do ducto tireoglosso consiste de placas de células epiteliais que se arranjam em placas biloba-das, caracterizando a forma final da glândula tireoide e ventral à traqueia. Os primeiros folículos aparecem por volta da 5ª semana e o coloide entre a 13ª e 14ª sema-nas. No adulto, o remanescente do alargamento media-no da glândula tireoide é o forâmen cego no vértice do V lingual, entre corpo e base de língua4.

O cisto tireoglosso não surge da falha de fechamento do ducto tireoglosso, mas da impossibilidade de inativi-dade das células epiteliais. Não é conhecida a etiologia da indução das transformações císticas. Uma vez iniciada a atividade secretória haverá continuidade e, portanto, a drenagem do cisto não resultará em sua obliteração1,2,4.

Figura 1. Abaulamento de região de glabela por cisto dermoide.

Figura 2. Tomografia computadorizada em corte axial com imagem de lesão cística dos ossos nasais sem acometê-los (seta).

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A raridade das afecções congênitas cervicais: anomalias do ducto tireoglosso. Chagas et al.

O diagnóstico é realizado nas três primeiras déca-das de vida em cerca de 2/3 dos casos, sendo que mais da metade antes dos 10 anos de idade. A apresentação clínica mais comum é a de uma massa cervical cística com cerca de 2 a 3 cm na linha média ou ligeiramente lateralizada e próxima ao corpo do osso hioide, porém podem se localizar entre a raiz da língua e hioide, entre o hioide e o lobo piramidal, dentro da língua ou dentro da tireoide. A massa se movimenta com a deglutição ou com a protrusão da língua e, cerca de 1/3 se apresenta com processo infeccioso concomitante ou prévio, quadro este mais comum nos adultos4.

Apresentações raras podem ser por meio de dispneia ou mesmo morte súbita do infante para lesões na base da língua, cisto cervical lateralizado ou coexistência com anomalias branquiais. Como dito anteriormente, as afec-ções do ducto tireoglosso não ocorrem por falha no seu fechamento. Sendo assim, as fístulas do ducto tireoglosso se apresentam clinicamente como afecções secundárias a um processo infeccioso ou por recidiva de tratamento ci-rúrgico6. Em nossa experiência tivemos somente um caso de fístula cutânea na linha média (Figura 3) e que, durante a cirurgia, o trajeto fistuloso relacionava-se com o corpo do osso hioide indo até a base da língua. A técnica cirúrgi-ca utilizada foi a de Sistrunk5, o que nos levou a conside-rar como uma fístula do ducto tireoglosso primária, pois a história clínica confirmada pela mãe do paciente relatava presença do orifício cutâneo desde o nascimento (Figura 4). No entanto, alguns autores referem este tipo de fis-tula como proveniente do aparato branquial, mas existe dificuldade no seu diagnóstico devido à impossibilidade de relação direta com a embriologia e outros chamam de fístula verdadeira do ducto tireoglosso7,8.

MÉTODO

O cisto do ducto tireoglosso precisa ser diferencia-do da tireoide ectópica, melhor denominada “glândula tireoide parcialmente descendente”, ou seja, a glândula que não migrou até seu local no terço inferior da região cervical, pois sua remoção inadvertida leva a quadro de

hipotireoidismo. Esta situação é menos frequente do que a tireoide lingual. Alguns autores relatam que o paciente clinicamente eutireoidiano portador de cisto tireoglosso típico, isto é, na linha média e infra-hióideo, porém volu-moso, deve ter dosagem sanguínea de hormônio tireo-es-timulante (TSH). Se esta dosagem for normal não haverá necessidade de pesquisa com radioiodo ou ultrassono-grafia. No entanto, a localização clássica junto do corpo do osso hioide e seu tamanho girando em torno de 2 a 3 cm fazem com que não haja suspeita de tireoide ectó-pica, dispensando a necessidade de dosagem do TSH. Para os pacientes com cisto tireoglosso mais craniais, ou seja, supra-hióideos ou aproximando-se da raiz da língua, pode-se incluir dosagem de TSH, pesquisa com radioio-do, ressonância nuclear magnética ou tomografia compu-tadorizada com o objetivo de mapear a glândula tireoide. A imagem da ressonância nuclear magnética é de lesão cística com sinal de alta intensidade em T2 e a da tomo-grafia computadorizada é de lesão bem circunscrita, com atenuação central, diferentemente da imagem da glându-la tireoide que também se mostra bem circunscrita, porém com alta densidade devido a sua boa vascularização3.

A tireoide lingual se apresenta como massa em oro-faringe, de coloração vermelho-vinhosa e posterior ao V lingual. Sua descoberta se faz por meio de início de disfagia e/ou sangramentos com sangue vivo e esporá-dicos, devido a trauma de alimentos mais duros, o que ocorreu em nossos dois casos. O diagnóstico se faz nor-malmente, na faixa etária pré-escolar, como em nossos pacientes, e pela sintomatologia referida acima. Portan-to, o exame físico é bastante característico e possibilita diagnóstico diferencial com os cistos de retenção salivar e com os tumores benignos da região, pois estas afec-ções também tem aspecto característico como coloração mais pálida e consistência diferente da tireoide lingual.

Figura 3. Orifício cutâneo em linha média, acima da fúrcula esternal (seta).

Figura 4. Trajeto fistuloso aderido ao corpo do osso hioide (seta).

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A raridade das afecções congênitas cervicais: anomalias do ducto tireoglosso. Chagas et al.

Tratamento

A técnica cirúrgica para as afecções do ducto tireo-glosso foi popularizada por Sistrunk5 em 1920. Os cis-tos tireoglossos clássicos não apresentam dificuldade na conduta cirúrgica, com inclusão do orifício cutâneo na incisão nos casos em que houve infecção do cisto com consequente fistulização ou em recidivas pós-ope-ratórias. Dúvidas podem surgir quando as lesões são supra-hióideas no que se refere à necessidade ou não de ressecção de segmento do osso hioide e do encontro e dissecção do ducto tireoglosso. Segundo Sistrunk5, a dissecção dos tecidos da linha média na região supra-hióidea é realizada sem tentativa de dissecção do ducto, método este adotado por nós. Assim, mantêm-se a técni-ca preconizada por Sistrunk para todos os casos de cis-tos tireoglossos e tireoides ectópicas, com exceção das tireoides linguais, pois nestas últimas não houve forma-ção de ducto tireoglosso. A tireoide lingual deve ter indi-cação cirúrgica quando apresenta quadro clínico de san-gramento oral ou disfagia e sua retirada deve ser através de cervicotomia transversa, desinserção da musculatura supra-hioideia e faringotomia com ressecção da lesão da base da língua e fechamento por planos. Como há muito tecido mole entre a sutura da mucosa da base da língua e a cervicotomia não utilizamos sonda enteral com intui-to de evitar fístula salivar. Este procedimento cirúrgico foi adotado em nossa experiência e se mostrou eficaz, pois não encontramos complicações pós-operatórias nestes pacientes (Figura 5).

O manuseio cirúrgico da tireoide ectópica é contro-verso. Alguns autores indicam tratamento somente com hormônio tireoidiano exógeno com intuito de supressão e diminuição do volume glandular com intenção funcio-nal e/ou estética, enquanto outros indicam ressecção por receio de malignização do tecido tireoidiano ectópico2. A indicação cirúrgica para os casos de tireoide ectópica deve ser realizada com intuito estético e, portanto, sem necessidade de ressecção de toda lesão, com o objetivo de evitar hipotireoidismo pós-operatório.

Os cistos ou ductos tireoglossos infra-hióideos são tratados através de incisões cervicais transversas e es-calonadas para se atingir a base da língua, mesmo para os que não apresentem trajeto evidente do ducto, evi-tando-se ressecção incompleta. A técnica de zetaplastia preconizada por alguns como Bajaj9 não apresenta re-sultados estéticos convenientes e, apesar de apresentar campo cirúrgico amplo, não deve ser utilizada. Mesmo com estes cuidados são relatados cerca de 5% a 7% de recidiva da doença3,10,11.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os cistos do ducto tireoglosso representam as afec-ções congênitas cervicais mais comuns e são tratadas convenientemente pela técnica de Sistrunk, pois é a abordagem que proporciona menor índice de recidiva. As fístulas do ducto tireogloss são consequentes a dre-

nagem do cisto ou recidiva após tratamento cirúrgico e sua existência como afecção primária somente é con-siderada por alguns autores. A pesquisa da de tecido tireoidiano com iodo radioativo pré-operatória e da fun-ção tireoidiana no pós operatório deve ser realizada nos casos de tireoide ectópica, pois pode ser o único tecido tireoidiano existente, o que limita a indicação cirúrgica de ressecção total da massa cervical. Os cistos e fístu-las dermoides devem sempre ser avaliados com exames de imagem porque podem ter associação com acome-timento da base do crânio, o que torna seu tratamento cirúrgico mais complexo.

REFERÊNCIAS

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Figura 5. Faringotomia transversa com exteriorização da base da lín-gua e de tireoide lingual.

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A raridade das afecções congênitas cervicais: anomalias do ducto tireoglosso. Chagas et al.