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AMBIENTE FAMILIAR DE SANTO AGOSTINHO
ezesseis séculos nos separam de Agostinho, nascido a 13
de novembro do ano 354 em Tagaste, hoje conhecida
como Souk-Ahras, na Argélia. Tagaste pertencia à
província de Numídia, por sua vez província do imenso Império
Romano. Destaquemos dois fatos de importância: ainda que sua
formação cultural fosse romana, Agostinho se orgulhava de suas
origens africanas. A certo conhecido seu, que ridicularizava os
nomes cartagineses de alguns mártires, lhe contestou: lembra-te
que “sou Africano, escrevo para Africanos e nós dois vivemos na
África”.
Não há personagem da Antigüidade mais conhecido do
que Agostinho. E de nenhum outro nos chegaram informações
tão numerosas. Ao contrário do que sucede com muitos outros
homens da Igreja, suas origens foram humildes, e seus pais não
eram ricos. Seu pai, Patrício, era um pequeno proprietário,
funcionário do município, porém pessoa de escassos recursos
financeiros. Teve que fazer grandes sacrifícios para proporcionar
a seu filho, de futuro promissor, a formação clássica, única via de acesso a uma futura carreira política.
Neste propósito, gastou mais do que seus recursos permitiam, o que tornou impossível custear os
estudos posteriores, quando Agostinho abandonou Tagaste. Teve, no entanto, a sorte de encontrar
um cidadão rico, Romaniano, disposto a patrocinar o jovem Agostinho. Patrício era pagão. Era
generoso, porém de caráter violento e nem sempre fiel à sua esposa Mônica, ainda que nunca tivesse
chegado a maltratá-la fisicamente, algo incomum naquele tempo. Recebeu o batismo pouco antes de
sua morte, a pedido de Mônica. Ele apenas é mencionado nos escritos de Agostinho. A que se deve
este fato? Porque morreu quando Agostinho contava apenas 16 ou 17 anos, ou porque era pagão?
Em compensação, sua mãe Mônica desempenhou um papel de grande destaque na vida e
escritos de Agostinho. Ela logrou formar uma família cristã e foi uma mulher de profundas convicções:
paciente, decidida, digna, pacificadora entre seus conhecidos, inimiga das murmurações. A relação
com seu esposo foi de uma submissão exemplar. Não tinha pressa em esperar, sem dizer uma palavra
de provocação, até que se aplacasse a ira do marido. E, então, tomava consciência de haver feito o
melhor. Agostinho nos conta que “ela desejava ter seu filho junto a ela, como todas as mães, porém,
muito mais que a maioria das mães”. Quando criança teve conhecimento da vida eterna prometida
por Jesus Cristo. Segundo nos dirá mais adiante, seu terno coração bebeu com o leite materno o
nome de Jesus, e estava convencido de ser Cristo o responsável pela decisão de sua mãe de expulsá-
lo de casa quando abraçou o maniqueísmo: “Minha mãe, tua serva fiel, chorava por minha causa
diante de Ti, mais do que as mães choram pela morte de seus filhos”. Por este motivo, tomou a
decisão de visitar um bispo, pedindo com insistência que recebesse seu filho e conversasse com ele.
Incomodado, o bispo lhe disse: “Vai, mulher, não é possível que se perca um filho de tantas lágrimas”.
Quando Agostinho, aos 28 anos de idade, fugiu à noite com a finalidade de embarcar em direção à
Roma, diz em suas Confissões: “Não tenho palavras para descrever o grande amor que me tinha e
com que empenho procurava dar-me luz ao espírito, muito acima do empenho com que me havia
dado à luz, segundo a carne. De modo que não consigo ver como poderia se restabelecer diante do
golpe de minha morte em tal estado. Teria sido uma autêntica punhalada em suas entranhas
amorosas”.
Pouco conhecemos dos outros membros de sua família. Apenas sabemos que possuía, pelo
menos, um irmão, chamado Navígio, e uma irmã, cujo nome ignoramos, a qual, depois da viuvez,
chegou a ser superiora de uma comunidade religiosa.
D
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PERSONALIDADE DE AGOSTINHO
Inteligência e Coração
qui temos uma descrição autobiográfica do jovem Agostinho: “Porque já gozava de uma
existência, tinha vida, sentia e me preocupava com minha integridade, como sinal que era da
unidade misteriosa de onde procedia. Com um instinto interior, mantinha a integridade de
meus sentidos. Alegrava-me com a verdade, com meus pequenos pensamentos, com as coisas
miúdas. Não gostava que me enganassem, possuía uma memória brilhante, educava-me na
linguagem, encantava-me a amizade, fugia da dor, da baixeza e da ignorância... Todos eles são dons
de Deus, eu não os dei a mim. Tudo isto são bens, e tudo isto eu sou”. Estas qualidades o
acompanharão ao longo de sua vida. Era muito sensível, emotivo e apaixonado. Apesar de ser um
intelectual, não se encontra nele um cérebro duro e seco. Ainda que lhe agradasse o autocontrole,
não observamos nele traços de rigidez pouco humana. Se por um lado sempre colocou em destaque
a relatividade das coisas criadas, jamais negou a riqueza da vida ou a maravilha do mundo.
Entendimento e coração sempre de mãos dadas. Por conseguinte, amor, vida comum e amizade
constituem o núcleo de sua vida e pensamento. Uma leitura superficial das Confissões pode dar a
impressão de um Agostinho introvertido, em constante empenho de auto-análise. A realidade foi bem
outra. Surpreenderá saber que este homem raramente esteve sozinho. Ele mesmo declarava ser
impossível viver feliz sem amigos. Uma amizade lhe arrancaria a metade de sua alma, porém, também
mediante a amizade, aquelas feridas cicatrizaram. Talvez isto seja devido ao sentimento congênito de
solidariedade dos africanos.
Apaixonado pela verdade
“Unicamente a verdade alcança a vitória, e a vitória da verdade é o amor” (Sermão 385,1)
Sem dúvida sua paixão pela verdade o tornou um
lutador tenaz; quando tomava um assunto com interesse,
dificilmente o abandonava. Fora das controvérsias, mostrava
um grande senso de modéstia. Em sua velhice revisou seus
livros e declara: “Não pretendo que alguém aceite todas as
minhas opiniões, de modo que ele ou ela me sigam
cegamente, exceto naqueles pontos em que o leitor chegue
à convicção de que eu não estava errado. Porque nem
mesmo eu fui coerente em tudo. Escrevi livros
constantemente procurando progredir. Não comecei sendo
perfeito, e pretender que agora em minha velhice escreva
perfeitamente, seria antes um sinal inequívoco de engano,
que de veracidade”.
Em uma carta a uma jovem, chamada Florentina,
escreveu: “Não deverias pensar que irias encontrar em mim a
resposta a todas as tuas perguntas e a tudo quanto desejas
conhecer. Porque eu não me apresento como o mestre
consumado, senão como um homem em busca de luz, em
união com aqueles pelos quais fui solicitado com o fim de
iluminá-los. Por favor, toma consciência do perigo em que
nos encontramos, de quem se espera que sejamos não somente mestres, senão mestres de realidades
divinas, ainda que não sejamos senão meros seres humanos”.
A
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A EVOLUÇÃO DO JOVEM AGOSTINHO
O Estudante e sua amante erminado seus estudos primários em Tagaste, Agostinho foi estudar o
que hoje chamamos de Ensino Médio na cidade de Madaura, centro
de maior nível cultural que Tagaste. Ao completar 15 anos, retornou a
Tagaste, passando um ano em seu lar com a finalidade de permitir a seu
pai conseguir as economias necessárias para custear seus estudos
posteriores. Foi um ano de inatividade, descrito por ele nos seguintes
termos: “Ganharam vigor e cresceram por sobre minha cabeça os espinhos
de minhas paixões. E não havia uma mão que as arrancasse pela raiz”.
Com a ajuda de Romaniano, Agostinho chegou a Cartago em 370
para estudar Retórica. Retórica, a arte de falar e escrever, era naquela
época o auge da cultura, que abria as portas de acesso às mais brilhantes
carreiras políticas. Na qualidade de metrópole da África e a maior cidade
do Império do Ocidente, depois de Roma, Cartago era também um local de
amores ilícitos. Como Agostinho jamais havia se apaixonado, ainda que suspirasse pelo amor, buscou o
objeto do seu amor. “Amar e ser amado era para mim uma doce ocupação, sobretudo se conseguisse
desfrutar do corpo da pessoas amada”.
Conseguiu uma amante de classe inferior à dele, à qual guardou fidelidade durante uns quatorze
anos. Ignoramos seu nome. Foi a mãe de seu filho Adeodato – presente de Deus – que morreu jovem, aos
18 anos de idade. A relação de Agostinho com sua amante, constituía uma união legalmente reconhecida,
algo assim como um concubinato.
Também em Cartago, aos 19 anos, descobriu sua vocação filosófica. Leu um livro de Cícero que
elogiava o “amor à sabedoria”. A partir de então, a busca da verdade e da sabedoria inspirou Agostinho
pelo resto de sua vida. Uma lacuna achou em Cícero. Não encontrava ali o nome de Cristo, e começou a ler
a Sagrada Escritura, porém seu estilo o desiludiu profundamente. Somente muito mais tarde veria
realizado seu sonho de juventude, quando chegou a ser monge e filósofo cristão.
Abraça o Maniqueísmo
Durante sua estada em Cartago, Agostinho aderiu ao Maniqueísmo, se bem que somente na
qualidade de “ouvinte”. Várias razões contribuíram para que se sentisse atraído por esta seita. O
Maniqueísmo pretendia ser uma religião racional, oferecendo compreensão sem impor a fé exigida pela
Igreja Católica. As críticas contra o Antigo Testamento satisfaziam a inconformidade de Agostinho sobre
algumas passagens do mesmo. A liturgia maniquéia usava com freqüência os nomes de Deus, Jesus Cristo
e o Espírito Santo, pelo que apresentava certa afinidade com o cristianismo. Os maniqueus asseguravam
ter a solução de um problema que preocupava intensamente a Agostinho: o problema do mal. Os
maniqueus estabeleciam dois princípios eternos, radicalmente contrários entre si: o bem e o mal, a luz e as
trevas em luta permanente. Agostinho sentia dentro de si a tensão entre o bem e o mal, a virtude e o
pecado. Havia em sua vida uma forte carga que lhe causava sentimentos profundos de culpabilidade. O
desassossego e inquietude de seu interior lhe conduziram ao Maniqueísmo. Esta doutrina o libertou de um
íntimo sentimento de culpa: “Ainda seguia pensando que não somos nós que pecamos, senão que o que
peca em nós é uma natureza estranha que não sei definir. Assim é que meu orgulho se sentia cômodo por
ver-se livre de culpa. Logicamente, tampouco tinha que confessar meus pecados quando agia mal, para
que tu curasses minha alma porque pecava contra ti. Agradava-me desculpar-me, e preferia acusar outro
elemento estranho que estava em mim e que não era eu”.
Ao longo de dez anos, Agostinho permaneceu no Maniqueísmo, ainda que seu entusiasmo por ele
perdesse vigor progressivamente.
T
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Professor de Retórica na Itália Por volta do ano 374, Agostinho voltou a Tagaste, onde abriu uma escola de Gramática, porém logo
retornou a Cartago para ensinar Retórica. A baderna e a indisciplina caracterizavam os estudantes
cartagineses, autores de freqüentes atos de vandalismo. Sendo assim, decidiu ir para Roma, pois foi
informado de que ali não acontecia nada parecido. Sua mãe se opunha tenazmente à sua partida, porém a
ambição do filho foi mais forte. Chegando em Roma, Agostinho entrou em contato com a comunidade
maniquéia local. Continuou a ensinar e se decepcionou ao averiguar que os estudantes romanos se
esquivavam de pagar aos professores, faltando à palavra dada por amor ao dinheiro. Ao tomar
conhecimento do projeto de se nomear um professor de Retórica em Milão, viajou àquela cidade em 384,
com o apoio de amigos maniqueus influentes. Milão era, então, a residência imperial e a cidade do bispo
Ambrósio. O que Agostinho não podia prever era que ali acabaria sua docência, renunciaria a uma
brilhante carreira política e se converteria verdadeiramente a Deus.
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CONVERSÃO DE AGOSTINHO
Separação de sua amante
ônica procurou marcar com o sinal da cruz e o sal bento a seu recém-nascido
Agostinho que assumiu, dessa forma, um compromisso com a Igreja Católica como
catecúmeno. A grande importância e responsabilidade inerentes ao batismo levam
muitos pais cristãos a adiarem o batismo; por esta razão muitos recebiam o batismo no leito
de morte. A decisão de Agostinho de receber o batismo demorou a tornar-se realidade
devido a dois obstáculos: um de natureza moral e outro de índole intelectual. O problema
estava em remover estes obstáculos. O relacionamento com sua amante terminou graças à
pressão de Mônica, que lutou por conseguir um matrimônio de primeira classe para seu filho.
Encontrou uma nova noiva, de apenas dez anos, dois abaixo da idade núbil. Agostinho amou
sinceramente sua concubina e a separação fez sangrar seu sensível coração. “ Meu coração,
que estava intimamente unido a ela, foi partido e ferido, deixando um rastro de sangue. Ela
retornou à África com o propósito de jamais unir-se a
outro homem”.Ele, infeliz e incapaz de seguir o exemplo
daquela mulher, conseguiu outra amante. Isto, no
entanto, não lhe proporcionou alívio, conforme ele
mesmo confessa: “Mas nem por isso se curava aquela
minha ferida, aberta pela separação da primeira mulher;
depois de uma febre elevada e de uma dor insuportável,
começava a gangrenar-se. À medida que ia esfriando-se
a ferida, as dores tornavam-se mais desesperadoras.”
Para Agostinho a conversão levava consigo muito mais
que um honroso matrimônio; implicava na dedicação ao ideal
monástico do ascetismo e a castidade.
Da razão à fé
As dificuldades intelectuais comportavam maior
complexidade. Durante muito tempo considerou a fé católica
própria para pessoas simples como sua mãe Mônica. Porque ele havia colocado toda sua confiança no
poder da razão e desejava compreender e entender tudo mediante seus próprios recursos. Era um
racionalista no sentido mais pleno da palavra. Os maniqueus lhe haviam prometido a compreensão
dos mistérios da vida, sem necessidade da fé. Eles zombavam da fé e prometiam conhecimento. E, em
troca, exigiam a crença em inúmeras fábulas e mitos absurdos: “Mandavam-me crer em Manes”.
Estava desiludido e seu racionalismo ia por água abaixo. A estas alturas deu preferência à fé católica,
por parecer-lhe mais aceitável que a Igreja lhe propusesse crer no que não podia ser demonstrado
pela razão. Assim mesmo, tomou consciência do papel da fé na vida cotidiana: quantas coisas cremos
sem termos visto pessoalmente, fatos ocorridos em nossa ausência, tais como acontecimentos
narrados na história das nações, fatos concernentes a lugares e cidades jamais vistos por nós, coisas
aceitas unicamente pela palavra de amigos, de médicos ou de outras pessoas. E tirou esta conclusão:
se não acreditamos no que nos dizem, não podemos desenvolver-nos na vida. Depois de perder sua
fé no Maniqueísmo, Agostinho passou por uma breve crise de cepticismo, durante a qual duvidou
poder encontrar a verdade. Será que a questão não está em duvidar de tudo? Alcançar a verdade, não
é algo superior à capacidade humana? Não obstante, esta crise preparou o terreno para a conversão,
que estava prestes a chegar.
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A influência de Ambrósio
Muitas pessoas tiveram influência na conversão de Agostinho; menção especial merece Santo
Ambrósio, bispo de Milão. Sua influência não esteve tanto num contato pessoal, quanto em sua
pregação, que levou Agostinho a descobrir o quanto a fé cristã era diferente daquilo que ele havia
imaginado. Ambrósio com seus sermões lhe ensinou a interpretar os textos bíblicos, e a colocar-lhe
algumas idéias totalmente novas: “Percebi, seguidamente, ao ouvir pregar nosso bispo... que quando
pensamos em Deus ou na alma, que é a mais próxima de Deus no mundo, nossos pensamentos não
captam nada material”. A leitura dos livros dos filósofos platônicos lhe proporcionou uma penetração
mais profunda no mundo do espírito, e estes escritos lhe deram a resposta ao ardente problema do
mal. Alguns amigos lhe relataram exemplos de pessoas importantes convertidas à fé cristã.
Toma e lê
Assim chegou Agostinho à bem conhecida crise pessoal no jardim de sua residência em Milão.
Ali ouviu uma voz procedente de uma casa vizinha, cantando como se fosse uma criança repetindo
uma e outra vez: “toma e lê, toma e lê”. Ele interpretou aquelas palavras como se fossem um
mandado divino, abriu a Bíblia e leu a primeira passagem que se ofereceu aos seus olhos: “Nada de
orgias e bebedeiras; nada de devassidão e libertinagem; nada de rivalidades e invejas. Revesti-vos de
nosso Senhor Jesus Cristo e não vos preocupeis com a carne para satisfazer suas concupiscências”.
(Rom13,13-14) Neste momento, toda sombra de dúvida se dissipou. Não foi meramente algo
acidental que um texto do grande convertido, o Apóstolo Paulo, tenha sido o núcleo da conversão de
Agostinho. A influência de Paulo em Agostinho continuou durante toda a sua vida. Muitos aspectos
de sua teologia e espiritualidade transpiram influência paulina; por exemplo, a relação entre lei e
graça, as conseqüências do pecado original, o paralelismo entre Adão e Cristo, e o tema do Corpo
Místico de Cristo.
Depois das férias de 386, Agostinho abandonou a docência, e retirou-se a uma Quinta em
Cassiciaco, para dedicar-se a estudar, a escrever e a preparar-se para o batismo. Na Vigília Pascal do
ano 387, recebeu o batismo das mãos de Ambrósio, juntamente com seu filho Adeodato e seu amigo
Alípio. Agostinho, como ele mesmo nos conta, havia dado o salto: “Por que confias em ti mesmo,
somente para convencer-te de que não ofereces garantia de segurança? Lança-te em Seus braços,
não tenhas medo. Ele não se afastará para que caias. Lança-te sem vacilar: Ele te abraçará e te curará”.
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RETORNO A ÁFRICA – MONGE – SACERDOTE- BISPO
Servo de Deus: monge
ouco depois do batismo Agostinho decide voltar a África, decisão consciente da renúncia às
suas esperanças terrenas. Em Óstia, o porto marítimo de Roma, a caminho da pátria, Mônica
caiu enferma e faleceu. Sua morte atrasou seu regresso a África por um ano. Contudo, em 388,
Agostinho chegou a Tagaste em companhia de seu filho e de um pequeno grupo de amigos íntimos.
Como servos de Deus, fixaram sua residência em uma propriedade da família de Agostinho, em
Tagaste. Agostinho vendeu parte de sua fazenda e organizou uma espécie de comunidade monástica.
Era um grupo de entusiastas com os mesmos ideais que se havia unido a ele, para um gênero de vida
monacal, sob a direção de Agostinho, como orientador espiritual da comunidade. Agostinho
pretendia viver uma vida de retiro, estudo, contemplação, meditação e oração pelo resto de seus dias.
Não obstante, este período feliz de descanso, iria prolongar-se por pouco mais de 3 anos. O antigo
monaquismo era essencialmente um movimento leigo, e por isso mesmo o monge evitava a honra e a
tarefa do sacerdócio. Daí que, quando Agostinho foi a Hipona com finalidade de conseguir um novo
adepto para seu mosteiro, evitou visitar cidades onde a sede episcopal estivesse vazia. Apesar de
tudo, sua viagem a Hipona teve um desenlace bem diferente do esperado por ele.
Sacerdote, Bispo e Monge
O bispo de Hipona, Valério, era um
grego ancião com dificuldade para
expressar-se com destreza em latim.
Necessitava com urgência de um
sacerdote ajudante, que no futuro
pudesse sucedê-lo no cargo. O bispo de
Hipona já havia informado aos seus fiéis
os seus planos. Com insistente alarido,
esses fiéis pediam a Agostinho que fosse
seu sacerdote. Levaram-no contra sua
vontade e o apresentaram a Valério para
ordená-lo sacerdote. Tais ordenações não
eram incomuns no final do Império
Romano. A vocação ao ministério
eclesiástico não era assunto dependente
da vontade da pessoa; séculos mais tarde
seria assim, porém, em épocas anteriores,
a comunidade decidia. Ademais, Valério
acolheu com gosto a proposta de
Agostinho quanto a estabelecer um
mosteiro como o de Tagaste, e colocou à sua disposição um horto junto à Igreja. Em 395, Valério
escreveu confidencialmente ao Primado de Cartago, solicitando a consagração de Agostinho como
seu coadjutor. Um ano mais tarde, morria Valério, e Agostinho tornou-se bispo da cidade portuária,
Hippo Regius.
Todos estes acontecimentos exigiram mudanças profundas na vida de Agostinho. Embora
tivesse que renunciar a muitos de seus sonhos, aceitou a nova missão com resoluto ânimo,
plenamente consciente de sua responsabilidade e do fardo que agora assumia. Porém, mesmo como
bispo, desejava viver em uma comunidade monástica. Abandonou o mosteiro de leigos para residir na
P
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casa do bispo, e ali estabeleceu um mosteiro de religiosos. Viveu nele, de forma plena, a vida em
comum com seus irmãos, na medida em que lhe permitiam as tarefas episcopais. Este mosteiro
alcançou grande fama por ser o berço de sábios e competentes bispos para toda a Igreja do Norte da
África. Por um período de quase quarenta anos, Agostinho foi o autêntico líder desta Igreja.
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AS TAREFAS DE UM BISPO
Primazia da Bíblia
bispo Agostinho levou uma vida muito atarefada, ocupando por completo seu tempo com a
pregação, o ensino, a instrução catequética, os sínodos, os debates públicos e as viagens por
todo o Norte da África. Além disso, o imperador Constantino havia confiado o ofício de Juiz
local à autoridade dos bispos. Cada manhã o solicitavam as demandas judiciais: questões de herança,
de tutela, de propriedade, de limites e assim sucessivamente, uma tarefa ingrata até o extremo. Além
do mais, como homem de estudo e contemplação, foi um prolífero escritor. Suas obras abrangem
umas 12.000 páginas impressas: 113 livros, 247 cartas, e mais de 500 sermões chegaram até os nossos
dias. Como conseguiu organizar-se para sair bem de tantas e tão variadas atividades? Mais ou menos
ele mesmo vem nos dar a resposta quando afirma que se dedicava aos seus escritos principalmente à
noite. Uns taquígrafos escreviam enquanto ele ditava. Possídio, seu amigo e biógrafo, nos diz que,
uma vez concluídos os assuntos temporais e tediosos, se entregava à meditação da Sagrada Escritura.
A importância da Bíblia na obra de Agostinho excede toda ponderação. Conhecia-a de memória;
constituía para ele o sumo da verdade, a fonte de todo saber,
e o centro de toda cultura e vida espiritual. Sua teologia é
bíblica no pleno sentido da palavra. Seu propósito consistia
em que através de sua voz, se ouvisse a palavra de Deus.
Outra característica de suas obras é que foram escritas, em
sua maior parte, a pedido de outros; muitos poucos são os
livros escritos por iniciativa própria. Eis aqui uma ligeira
descrição de seus escritos.
Escritos anti-maniqueus
Agostinho considerou sua primeira obrigação dedicar
parte do seu saber e tempo à conversão de seus antigos
amigos, os maniqueus. O que ele havia aceitado
anteriormente como verdade incontestável, agora sabia que
era falso. Ele havia sido responsável pela adesão ao
Maniqueísmo do grupo de seus seguidores, e agora tratava
de trazê-los de volta para o Cristianismo. Por isso, seus
primeiros escritos têm como finalidade contestar a doutrina
maniquéia.
Obras anti-donatistas
No período seguinte de sua vida, teve que preocupar-se com uma situação bem triste: o cisma
dentro da Igreja norteafricana. Tão logo ordenado sacerdote, teve que fazer frente à desunião dos
cristãos, causada pelo cisma donatista. Em cada cidade havia uma Igreja donatista e outra católica, em
cada diocese um bispo donatista e outro católico, no total uns trezentos bispos de cada parte. Dizer
que todos deveriam ser um em Cristo resultava utópico. Os donatistas pretendiam formar a única
Igreja imaculada; tinham os católicos por traidores à pureza da lei cristã. Para entender o doloroso de
tal divisão, precisamos recordar que os donatistas utilizavam a mesma Sagrada Escritura, professavam
a mesma fé, possuíam os mesmos sacramentos e celebravam a mesma liturgia que os católicos.O que
dividia os cristãos na África era exclusivamente o ódio, e o conflito resultou muitas vezes em autêntica
guerra civil. Agostinho empregou enorme energia para restaurar a paz e a unidade, porém,
lamentavelmente jamais logrou êxito pleno para acabar com o cisma donatista. E isto apesar do fato
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de que a Conferência Episcopal em Cartago, em 411, sob a presidência de um delegado imperial
muito ponderado, Marcelino, condenou os Donatistas. Dois anos mais tarde, o mesmo Marcelino foi
executado em Cartago. Este assassinato constituiu um duro golpe para Agostinho, que encontrou
nisto uma das razões para perder o entusiasmo em favor de uma aliança entre o Império Romano e a
Igreja Católica.
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Escritos anti-pelagianos
No ano 411, depois da condenação do Donatismo, Agostinho podia pensar numa era de paz,
porém, em vez disso, aguardava-lhe uma outra controvérsia: o Pelagianismo. Pelágio era um servo de
Deus, inspirador de uma vida cristã mais radical e ascética, e tido em grande estima pelos aristocratas
de Roma. Acentuava sobremaneira o papel do livre arbítrio e os esforços que os seres humanos têm
de fazer para alcançar a perfeição. Dado que a perfeição está em poder da pessoa humana, segundo
ele, resulta ser algo obrigatório. Não é de admirar que o escandalizasse aquela frase de Agostinho em
suas Confissões: “Manda o que queiras; dá-me o que mandas”. Para ele isto era uma covardia e um
relaxamento. O conceito de Pelágio sobre a perfeição cristã contrastava até certo ponto com a
teologia e a experiência do convertido Agostinho. Pelágio, por certo, não negava o papel da graça de
Deus, porém a entendia como uma ajuda divina que vem de fora. Pelo contrário, Agostinho, como
São Paulo, estava convencido de que a vontade humana necessita ser reforçada desde o interior pela
graça de Deus: todo o bem que fazemos é dom da graça de Deus. Parecia-lhe que a pretensão de
Pelágio, de poder conseguir uma Igreja sem mancha ou ruga, mantinha a presunção donatista de uma
Igreja imaculada. Aos olhos de Agostinho, a situação humana oferece muito mais complexidade. A
liberdade humana não é uma qualidade estática. Nossa liberdade está em constante
desenvolvimento: a liberdade humana, por natureza, é uma liberdade limitada, que, a caminho da
perfeição, tem que tornar-se mais livre. Agostinho tinha fé na doutrina do pecado original, quer dizer,
na existência de uma culpa coletiva, em decorrência da qual a humanidade, em seu conjunto, é
responsável pelo mal no mundo. Por certo que não vamos aderir à doutrina de Agostinho em todos
seus pormenores acerca do pecado original ( por exemplo, sua convicção de que as crianças não
batizadas seriam excluídas da mais elevada situação de felicidade eterna). Sua última obra, incompleta
ao morrer, ia contra o Pelagiano Juliano de Eclana, filho de um amigo, bispo italiano. Juliano foi o
mais hábil adversário de Agostinho. O debate de Agostinho com o muito mais jovem “Julián” foi, sem
sombra de dúvida, o mais dramático de sua vida, no qual as posturas de ambas as partes se tornaram
mais e mais inflexíveis.
TARDE TE AMEI, Ó BELEZA TÃO
ANTIGA E TÃO NOVA ! TARDE
DEMAIS
EU TE AMEI ! EIS QUE HABITAVAS
DENTRO DE MIM E EU TE
PROCURAVA
DO LADO DE FORA ! EU,
DISFORME,
LANÇAVA-ME SOBRE AS BELAS
FORMAS DAS TUAS CRIATURAS.
ESTAVAS COMIGO, MAS EU NÃO
ESTAVA CONTIGO. RETINHAM-ME
LONGE DE TI AS TUAS
CRIATURAS,
QUE NÃO EXISTIRIAM SE EM TI
NÃO
EXISTISSEM. TU ME CHAMASTE, E
TEU
GRITO ROMPEU MINHA SURDEZ.
FULGURASTE, BRILHASTE E TUA
LUZ
AFUGENTOU A MINHA CEGUEIRA.
ASPERGISTE TUA FRAGRÂNCIA E,
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A ÁFRICA NA ÉPOCA DE AGOSTINHO
Ricos e pobres no Norte da África
ara entender a atividade de Agostinho como bispo é necessário conhecer o ambiente do
Norte da África nesta época. Desde muito tempo, a África do Norte era o celeiro do
Império Romano. Uma região rica e próspera, graças à sua planície costeira abundante em
trigo, e uma região de colinas no interior, grande produtora de azeite de oliva. Azeite e trigo
constituíam os principais produtos de um crescente comércio de exportação. Ainda que a riqueza e o
poder do Império fossem declinando a olhos vistos, a África do Norte enfrentava a crise melhor que
outras partes do Império. Apesar de tudo, na África do Norte existia uma grande desigualdade
econômica, causa de graves tensões sociais. Somente uma minoria era beneficiada com a riqueza do
país e o suor dos trabalhadores. Como acontece nestas situações, os mais fracos eram as vítimas.
Decadência do Império Romano
Toda a vida de Agostinho se desenvolveu no período de decadência do Império Romano. Uma
amostra de nossa assertiva está no fato de que a instituição do “defensor dos direitos dos pobres”
estava em desuso em Hipona, e que em vão os bispos africanos defendiam o restabelecimento do
dito ofício. As numerosas invasões causavam a decadência no estilo de vida da Itália. Em 410, as
defesas de Roma caíram frente ao ataque dos Visigodos de Alarico. Muitos romanos buscavam
refúgio na África do Norte. A reflexão sobre o saque de Roma lhe inspirou uma de suas obras mais
importantes, vinte e dois livros sobre A Cidade de Deus, na qual existem dois temas muito ligados
entre si: o aniquilamento das civilizações do mundo e o do eterno destino da raça humana. A situação
próspera da África não podia permanecer fora de perigo diante do que acontecia na Itália. Novas
cartas de Agostinho, descobertas há pouco, retratam o estado lamentável da África do Norte durante
os últimos dez anos de sua vida. A caça de escravos chegou a constituir uma autêntica praga.
Foragidos planejavam assaltar lugares isolados
pouco habitados, onde apanhavam cidadãos livres
com a finalidade de vendê-los a mercadores de
escravos. A desgraça chegou ao cúmulo quando,
em 429, os Vândalos e Alanos, sob as ordens de
Genserico, cruzaram o Estreito de Gibraltar,
invadiram a África do Norte e avançaram até o
leste, ao longo da costa. Havia começado o fim do
poder de Roma na África.
Morte de Agostinho
Ao contrário do que sucede com outros
escritores cristãos, Agostinho não perdeu a esperança diante da catástrofe política. Viu como o papel
social, espiritual e intelectual do Cristianismo havia intensificado sua força em muitas partes do
mundo. Não acreditava que a queda do Império Romano arrastaria consigo a queda do Cristianismo.
Uma de suas últimas sentenças foi a seguinte citação do filósofo neoplatônico Plotino: “Não tem
nobre coração quem considera um momento importante o desmoronamento das cidades e a morte
dos viventes”. Agostinho, com seu próprio exemplo, nos ensina como viver na adversidade. Ele viveu
numa época de mudanças revolucionárias: o colapso do mundo antigo dava à luz um mundo novo.
Uma força irreprimível obriga a Europa a quebrar a estrutura estabelecida com vistas a um futuro
novo. Este futuro não acabava na esfera política. Afetava a toda civilização e cultura de seu tempo:
modelos de pensamento e de vida.
P
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As tropas dos Vândalos sitiavam Hipona quando Agostinho morria a 28 de agosto de 430.
Morreu rezando os Salmos Penitenciais que havia mandado copiar e colocar à sua vista na parede de
seu quarto.
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PRIMAZIA DO AMOR
Amor e felicidade verdadeira
s escritos de Agostinho começam delineando a questão de
como o ser humano pode encontrar a felicidade verdadeira.
Porque não há ser humano alheio ao desejo de ser feliz. O
desejo em relação com o amor, pois ninguém deseja o que não ama.
O amor consiste no desejo de identificar-se com o objeto amado. Mas
nem todo tipo de desejo e amor é capaz de fazer feliz a uma pessoa.
Somente um eterno e imperecível bem pode fazer-nos
verdadeiramente felizes, pois unicamente tal bem exclui todo temor
de perder o objeto amado. Somente Deus pode garantir uma
felicidade assim. O amor nos une com Deus, nosso eterno, imperecível
bem, e desta maneira nos torna participantes da eternidade de Deus.
Isto sucede de acordo com o princípio de que o ser humano vem a
converter-se naquilo que ama: ama a terra, é terra: ama a Deus eterno, e
compartilhará a eternidade de Deus.
Amor: a mensagem universal da Bíblia
Segundo Agostinho, podemos resumir a mensagem da Bíblia em
dois mandamentos: amor a Deus e amor ao próximo. Escreve: “Minha
esperança no nome de Cristo não é inútil, porque não somente creio,
meu Deus, que dos dois mandamentos do amor dependem toda a Lei
e os Profetas, como eu mesmo já experimentei, e ainda o experimento
a cada dia, que nem sequer um só mistério ou palavra obscura da
Sagrada Escritura se tornam claros, até enquadrá-los nestes dois
mandamentos”. Aqui Agostinho se adapta fielmente à linha de
pensamento de São Paulo: O amor é o cumprimento da Lei (Rom
13,10) e: O amor é o fim do mandato (1 Tm 1,5). A palavra “fim” não
quer dizer que o amor acaba com os demais mandamentos ou que os
anula, senão que o amor é a perfeição de qualquer outro preceito com
o qual o relacionemos. Estes dois mandamentos caracterizam tanto o Novo como o Antigo
Testamento. Portanto, as palavras de Cristo: “Eu vos dou um novo mandamento: amai-vos uns aos
outros assim como eu vos tenho amado” (Jo 13,34), não somente renovaram os Apóstolos ou a nós
mesmos, mas também os patriarcas, profetas e santos que viveram durante o tempo da Antiga Aliança.
Amar com o amor de Deus
Deus é amor. Revelando-se a si mesmo como bom e misericordioso, Deus se revela a Si mesmo
como amor. Isto equivale para nós a uma interpelação, uma exigência e um mandato de amar os
seres humanos como Deus os ama. A mais elevada forma de amar os irmãos e irmãs reside em amá-
los com o amor de Deus, que nos foi dado pelo Espírito Santo. Daí que nosso amor é uma
participação do amor de Deus, que abrange a qualquer ser humano, inclusive nossos inimigos. Nosso
amor deve refletir o amor de Deus. Quando Agostinho fala de amor, fala do amor como dom divino,
que capacita a vontade humana com um novo desejo, lutar pela verdade divina, a sabedoria, a paz e a
justiça. Amar com tal amor exclui tudo que é pecaminoso, quer dizer, ânsia possessiva ou egoísta,
orgulho, vaidade, honra e louvor próprios e buscar exclusivamente nosso próprio proveito. O fato de
ser o amor um dom de Deus tem sua aplicação em primeiro lugar em amar por Deus, porque
somente Ele pode dar-se a si mesmo a nós. Ele nos amou primeiro. E, está claro, que o mesmo
O
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princípio vale para amar o próximo. O Espírito Santo nos inflama para amar o nosso próximo.
Segundo Agostinho, um simples amor natural de uns para com os outros não basta, porque com
facilidade descuidaremos Deus, nosso supremo bem. Amar os outros como a nós mesmos significa
que ele ou ela podem encontrar seu bem onde nós o encontramos, quer dizer, em Deus. Somente sob
esta luz podemos entender corretamente a famosa sentença de Agostinho: “Ama e faze o que
quiseres, porque desta raiz só pode nascer o bem”. O amor é a norma mais difícil que temos; jamais
significa que somos livres para fazer o que quer que tenhamos vontade.
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A transitória primazia do amor ao próximo
Visto à luz das considerações precedentes, Agostinho defendia até uma primazia transitória do
amor ao próximo. Transitória, quer dizer, aqui na terra, no caso de estarmos obrigados a cuidar de
nossos semelhantes. Sem dúvida o amor de Deus tem preferência enquanto mandamento, porém, é
certo também que o amor ao próximo, na prática, vem antes. Para amar a Deus temos que começar
por amar o próximo: “Estes mandamentos devem sempre ser meditados, ponderados, temos que ser
fiéis a eles, colocá-los em prática, cumpri-los em plenitude. O amor de Deus vem em primeiro lugar
na classificação dos mandamentos, mas o amor ao próximo tem preferência na hora de agir. Ao amar
o teu próximo e interessar-te por ele, tu te pões em marcha. Aonde poderias ir, senão ao Senhor
Deus?” Isto se deve ao fato de que ambos os amores se completam mutuamente e não se podem
separar. Portanto, basta mencionar somente um dos dois. Apelando à autoridade de Paulo e João,
Agostinho chega à conclusão que, não sem motivo, a Sagrada Escritura habitualmente expressa um
mandamento para ambos. A razão para isto aparece no seguinte texto: “Por que Paulo em ambas as
cartas, aos Gálatas e aos Romanos, menciona unicamente o amor ao próximo? Não será porque, não
colocando com tanta freqüência à prova o amor de Deus, poderíamos nos enganar acerca dele? Ao
contrário, sobre o amor ao próximo, podem-nos convencer com mais facilidade de não amar a Deus
quando agimos de maneira injusta com os demais. Mediante o preceito do amor ao próximo damo-
nos conta perfeitamente de nossas falhas. Alguns Gálatas enganaram-se ao pensar que amavam a
Deus. O Apóstolo lhes demonstra claramente que não era assim, por causa do ódio reinante entre
eles”. Assim, pois, o amor ao próximo é a norma palpável do amor de Deus, pois graças à sua
natureza prática elimina todo autoengano possível. O amor ao próximo é o modo mais concreto e
seguro de manifestar nosso amor a Deus.
“PARA MIM A VIRTUDE,
POR DEFINIÇÃO, NÃO É
OUTRA COISA SENÃO UM
PERFEITO A M O R A
D E U S ... A TEMPERANÇA
É O AMOR QUE SE
ENTREGA TOTALMENTE
AO OBJETO AMADO; A
FORTALEZA É O AMOR
QUE TUDO SUPORTA PELO
OBJETO DE SEUS AMORES;
A JUSTIÇA É O AMOR
ESCRAVO UNICAMENTE DE
SEU AMADO E QUE
EXERCE, PORTANTO,
DOMÍNIO CONFORME A
RAZÃO; E FINALMENTE, A
PRUDÊNCIA É O AMOR
QUE COM SAGACIDADE E
SABEDORIA ELEGE OS
MEIOS DE DEFESA CONTRA
TODO O TIPO DE
OBSTÁCULO.” (COSTUMES DA IGREJA CATÓLICA)
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O CRISTO TOTAL
Unidos em um só corpo
“Se a única frase da Sagrada Escritura fosse aquela do Espírito Santo ‘Deus é amor’, seria mais
que o suficiente e não andaríamos buscando mais. De acordo com Agostinho, a razão principal da
Encarnação foi o amor de Deus, devido ao qual nos deu seu Filho. Assim, pois, o Filho veio ser a
encarnação do amor de Deus. Se Deus é amor, observa-se que não quer permanecer à distância, sem
nenhum tipo de relação com os homens. O amor pede companhia. Deus Pai gerou um Único Filho,
porém não quis que seu Filho permanecesse só; lhe deu por irmãos e irmãs todos os seres humanos.
Cristo mantém uma relação global com toda a humanidade, porque seu amor acolhe todo ser
humano sem exceção. Podemos descobrir dois movimentos no amor: o anseio de tornar-nos um com
o ser amado; e por outro lado, a necessidade de manter certa distância respeitosa com a identidade
pessoal de quem amamos. O amor realiza uma presença recíproca sem destruir o outro: um amigo
em seu amigo ou amiga, o marido em sua esposa, a mãe em seu filho. Também Cristo se identifica
com todos os seres humanos e está presente neles. Agostinho chama esta união: o Cristo total. Apóia
sua intuição na doutrina de Paulo sobre a relação entre Cristo como a cabeça e nós como o corpo:
“Pois do mesmo modo que o corpo é um, ainda que tenha muitos membros, e todos os membros do
corpo, não obstante seu número, não formam mais que um só corpo, assim acontece com o Cristo” (1
Cor 12,12). O Cristo total abrange tanto a cabeça como os demais membros, e esta união é tão íntima
como a existente em um corpo vivo. Por isto, Cristo participa de nossa vida, e nós participamos da
sua.