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Coletânea de Crônicas 7º ano 2014 Professora Simone Jorge Página 1 COLETÂNEA DE CRÔNICAS 7º ANO Nome: _____________________________________________________ ano ________

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Coletânea de Crônicas – 7º ano – 2014 – Professora Simone Jorge Página 1

COLETÂNEA DE CRÔNICAS

7º ANO

Nome: _____________________________________________________

7º ano ________

Coletânea de Crônicas – 7º ano – 2014 – Professora Simone Jorge Página 2

SAIBA UM POUCO MAIS SOBRE O GÊNERO A palavra “crônica”, em sua origem, está associada à palavra grega “khrónos”, que significa tempo. De khrónos veio chronikós, que quer dizer “relacionado ao tempo”. No latim, existia a palavra “chronica”, para

designar o gênero que fazia o registro dos acontecimentos históricos, verídicos, numa sequência cronológica, sem um aprofundamento ou interpretação dos fatos. Como se comprova pela origem de seu nome, a crônica é um gênero textual que existe desde a Idade Antiga e vem se transformando ao longo do tempo. Justificando o nome do gênero que escreviam, os primeiros cronistas relatavam, principalmente, aqueles acontecimentos históricos relacionados a pessoas mais importantes, como reis, imperadores, generais etc. A crônica contemporânea é um gênero que se consolidou por volta do século XIX, com a implantação da imprensa em praticamente todas as partes do planeta. A partir dessa época, os cronistas, além de fazerem o relato em ordem cronológica dos grandes acontecimentos históricos, também passaram a registrar a vida social, a política, os costumes e o cotidiano do seu tempo, publicando seus escritos em revistas, jornais e folhetins. Ou seja, de um modo geral, importantes escritores começam a usar as crônicas para registrar, de modo ora mais literário, ora mais jornalístico, os acontecimentos cotidianos de sua época, publicando-as em veículos de grande circulação. Os autores que escrevem crônicas como gênero literário, recriam os fatos que relatam e escrevem de um ponto de vista pessoal, buscando atingir a sensibilidade de seus leitores. As que têm esse tom chegam a se confundir com contos. Embora apresente característica de literatura, o gênero também apresenta características jornalísticas: por relatar o cotidiano de modo conciso e de serem publicadas em jornais, as crônicas têm existência breve, isto é, interessam aos leitores que podem partilhar esses fatos com os autores por terem vivido experiências semelhantes. As características atuais do gênero, porém, não estão ligadas somente ao desenvolvimento da imprensa. Também estão intimamente relacionadas às transformações sociais e à valorização da história social, isto é, da história que considera importantes os movimentos de todas as classes sociais e não só os das grandes figuras políticas ou militares. No registro da história social, assim como na escrita das crônicas, um dos objetivos é mostrar a grandiosidade e a singularidade dos acontecimentos miúdos do cotidiano. Ao escrever as crônicas contemporâneas, os cronistas organizam sua narrativa em primeira ou terceira pessoa, quase sempre como quem conta um caso, em tom intimista. Ao narrar, inserem em seu texto trechos de diálogos, recheados com expressões cotidianas. Escrevendo como quem conversa com seus leitores, como se estivessem muito próximos, os autores os envolvem com reflexões sobre a vida social, política, econômica, por vezes de forma humorística, outras de modo mais sério, outras com um jeito poético e mágico que indica o pertencimento do gênero à literatura. Assim, uma forte característica do gênero é ter uma linguagem que mescla aspectos da escrita com outros da oralidade. Mesmo quando apresenta aspectos de gênero literário, a crônica, por conta do uso de linguagem coloquial e da proximidade com os fatos cotidianos, é vista como literatura “menor”. Ao registrar a obra de grandes autores, como Machado, por exemplo, os críticos veem em seus romances como as verdadeiras obras de arte e as crônicas como produções de segundo plano. Essa classificação como gênero literário menor não diminui sua importância. Por serem breves, leves, de fácil acesso, envolventes, elas possibilitam momentos de fruição a muitos leitores que nem sempre têm acesso aos romances. No Brasil, a partir da segunda metade do século XIX, muitos autores famosos passaram a escrever crônicas para folhetins. Coelho Neto, José de Alencar, Machado de Assis estavam entre aqueles que sobreviviam do jornalismo enquanto criavam seus romances. Os cronistas, atualmente, são numerosos e costumam ter, cada um deles, seus leitores fiéis. Hoje, os cronistas nem sempre são romancistas que escrevem crônicas para garantir sua sobrevivência. Há aqueles que vêm do meio jornalístico ou de outras mídias, como rádio e TV. Por isso, a publicação do gênero também ocorre em meios diversificados: há cronistas que leem suas crônicas em programas de TV ou rádio e outros que as publicam em sites na internet. Pelo fato de os autores serem originários de diferentes campos de atividade e de publicarem seus textos em várias mídias, as crônicas atuais apresentam marcas dessas atividades. Por isso, há, atualmente, diferentes estilos de crônicas, associados ao perfil de quem as escreve. Todos os estilos, porém, acabam por encaixar-se em três grandes grupos de crônicas: as poéticas, as humorísticas e as que se aproximam dos ensaios. Estas últimas têm tom mais sério e analisam fatos políticos, sociais ou econômicos de grande importância cultural. *Heloísa Amaral é mestre em educação, autora do Caderno do Professor - Orientação para produção de textos - Pontos de vista

Fonte: http://escrevendo.cenpec.org.br/ecf/index.php?option=com_content&task=view&id=942

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NASCE UMA CRÔNICA

LUIS FERNANDO VERÍSSIMO

A moça era bonita, se chamava Fabíola e me perguntou como nascia uma crônica. Entre outras

coisas. Ela era repórter do jornal da universidade de Ouro Preto e estava me entrevistando, uma tarefa que

eu não desejo a ninguém, enquanto uma câmera de TV gravava tudo.

Dei a resposta de sempre. Qualquer coisa pode originar uma crônica. Às vezes, há um assunto em

evidência que você é obrigado a comentar. Às vezes, é uma coisa, assim, impressionista; às vezes, é pura

invenção, uma frase que sugere uma história, ou um cheiro no ar, ou um incidente banal... Os mistérios,

enfim, da criação. Etcetera, etcetera. Não há vezes em que as ideias simplesmente não vêm? Há, há.

Acontece muito.

Com os anos, as ideias parecem que vão ficando cada vez mais longe, enquanto o seu poder de

convocá-las diminui. Você chama e elas não se aproximam. Você grita por socorro e elas continuam longe,

lixando as unhas. Você espreme o cérebro e não pinga nada. E hoje nenhum cronista que se respeite pode

recorrer ao velho truque de, não tendo assunto, escrever sobre a falta de assunto. Ou desperdiçar papel caro

e o tempo do leitor com um parágrafo inteiro só de introdução.

Terminada a entrevista, a moça tira um livro meu da sua bolsa. Vai pedir meu autógrafo. Mas ela

mesma usa a caneta para escrever alguma coisa no livro antes de passá-lo para mim. Estranho. Ela está me

dando meu próprio livro autografado por ela? Leio o que ela escreveu: "Luis: a sua braguilha está aberta".

A minha braguilha estava aberta. Passeei por Ouro Preto e dei toda a entrevista com o zíper da calça

aberto. Naquela situação em que, na infância (...), nossas mães avisavam que o passarinho poderia fugir.

Felizmente, meu passarinho já se resignou ao seu lugar. Nada de mais apareceu, a não ser que a câmera

tenha flagrado algo. E eu disse para a Fabíola que ali estava um exemplo de como nasce uma crônica. Eu

fatalmente usaria aquilo, num dia de ideias distantes.

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EU SEI, MAS NÃO DEVIA

Marina Colasanti

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra

vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não

olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não

abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol,

esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo

porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer

sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está

cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e

que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E,

não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as

pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o

dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que

as coisas valem. E a saber que cada vez paga mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro,

para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a

televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido,

desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz

artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À

contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de

madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber,

vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta

na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no

resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de

semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono

atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar

feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para

poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

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Vista cansada

Otto Lara Resende

Acho que foi o Hemingway quem disse que olhava cada coisa à sua volta como se a visse pela última

vez. Pela última ou pela primeira vez? Pela primeira vez foi outro escritor quem disse. Essa ideia de olhar

pela última vez tem algo de deprimente. Olhar de despedida, de quem não crê que a vida continua, não

admira que o Hemingway tenha acabado como acabou.

Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é só isto: um certo modo

de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não-vendo. Experimente ver pela primeira

vez o que você vê todo dia, sem ver. Parece fácil, mas não é. O que nos cerca, o que nos é familiar, já não

desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio.

Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no

seu caminho, você não sabe. De tanto ver, você não vê. Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo

mesmo hall do prédio do seu escritório. Lá estava sempre, pontualíssimo, o mesmo porteiro. Dava-lhe bom-

dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência. Um dia o porteiro cometeu a descortesia de

falecer.

Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima ideia. Em 32 anos, nunca o

viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o

rito, pode ser também que ninguém desse por sua ausência. O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem.

Mas há sempre o que ver. Gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos.

Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O

poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de fato, ninguém vê. Há pai que nunca viu o próprio filho.

Marido que nunca viu a própria mulher, isso existe às pampas. Nossos olhos se gastam no dia a dia, opacos.

É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.

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A ÚLTIMA CRÔNICA

FERNANDO SABINO

A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade

estou adiando o momento de escrever.

A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca

do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu

disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial,

ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma

criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais

nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança:

"assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar

fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.

Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore

ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se

acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido

pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de

curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família,

célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.

Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o

garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe

limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve,

concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados,

a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês.

O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho -- um bolo simples,

amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular.

A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou

à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa

um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune

de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os

observa além de mim.

São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E

enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a

menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a

bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "parabéns pra

você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra

finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com

ternura — ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos

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pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito,

a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido — vacila, ameaça abaixar a cabeça,

mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.

Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.

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A CRUELDADE DOS JOVENS

WALCYR CARRASCO

Conheci uma mulher cujo filho de 14 anos queria um par de tênis de marca. Separada, ganhava

pouquíssimo como vendedora. Dia e noite o garoto a atormentava com a exigência. Acrescentou mais horas

à sua carga horária para comprar os tênis. Exausta, ela presenteou o filho. Ganhou um beijo e outro pedido:

agora ele queria uma camiseta 'da hora'. E dali a alguns dias a mãe estava abrindo um crediário! Já conheci

um número incrível de adolescentes que estabelecem um verdadeiro cerco em torno dos pais para conquistar

algum objeto de consumo. Uma garota quase enlouqueceu a mãe por causa de um celular cor-de-rosa. Um

rapaz queria um MP3. Novidades são lançadas a cada dia e os pedidos renascem com a mesma velocidade.

Pais e mães com frequência não conseguem resistir. Em parte, por desejarem contemplar o sorriso no rosto

dos filhos. Uma senhora sempre diz:

— Quero que minha menina tenha o que eu não tive.

Pode ser. Mas isso não significa satisfazer todas as vontades! Muita gente é praticamente

chantageada pelos filhos. A crueldade de um adolescente pode ser tremenda quando se trata de conseguir

alguma coisa. Uma vez ouvi uma jovem gritar para o pai:

— Você é um fracassado!

Já conheci uma garota cujo pai se endividou porque ela insistiu em ir à Disney. Os juros rolaram e,

dois anos depois, ele vendeu a casa para comprar outra menor e quitar o empréstimo. Outro economizou

centavos porque a menina quis fazer plástica. Conselhos não adiantaram:

— Você é muito nova para colocar implante de silicone.

Ficava uma fúria. Queria ser atriz e, segundo afirmava, não teria chance alguma sem a intervenção.

(Não conseguiu. Hoje trabalha como vendedora em uma loja.) Procedimentos estéticos, como clareamento de

dentes, spas e, claro, plásticas, são muito pedidos, ao lado de roupas de grife, excursões, joias, celulares e

todo tipo de eletrônico. É óbvio que o jovem tem o direito de pedir. O que me assusta é a absoluta falta de

freio, a insistência e a total incompreensão diante das dificuldades financeiras da família. Recentemente,

assisti a uma situação muito difícil. Mãe solteira, uma doméstica conseguiu juntar, ao longo de anos, o

suficiente para comprar uma quitinete no centro de São Paulo.

— Vou sair do aluguel! — comemorou.

A filha, 16 anos, no 2º grau, recusou-se:

— Quero um quarto só para mim!

Não houve quem a convencesse. A mãe não conseguiu enfrentar a situação. Continuam no aluguel. O

valor dos apartamentos subiu e agora o que ela tem não é suficiente para comprar mais nada.

Muitas vezes, os filhos da classe média estudam em colégio particular ao lado de herdeiros de grandes

fortunas. Passam a desejar os relógios, as roupas, o modo de vida dos amigos milionários.

— De repente a minha filha quer tudo o que os coleguinhas têm! Até bolsa de grife.

Uma coisa é certa: algumas equiparações são impossíveis. A única solução é a sinceridade. E deixar

claro que ninguém é melhor por ter mais grana, o celular de último tipo, o último lançamento no mundo da

informática. Pode ser doloroso no início. Também é importante não criar uma pessoa invejosa, que sofre por

não ter o que os outros têm. Mas uma família pode se desestabilizar quando os pais se tornam reféns do

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pequeno tirano. A única saída para certas situações é o afeto. E, quando o adolescente está se

transformando em uma fera, talvez seja a hora de mostrar que nenhum objeto de consumo substitui uma

conversa olho no olho e um abraço amoroso.

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PORTA DE COLÉGIO

AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA

Passando pela porta de um colégio, me veio uma sensação nítida de que aquilo era a porta da própria

vida. Banal, porta de colégio, direis. Mas a sensação era tocante. Por isso, parei, como se precisasse ver

melhor o que via e previa.

Primeiro há uma diferença de clima entre aquele bando de adolescentes espalhados pela calçada,

sentados sobre carros, em torno de carrocinhas de doces e refrigerantes, e aqueles que transitam pela rua.

Não é só o uniforme. Não é só a idade. É toda uma atmosfera, como se estivessem ainda dentro de uma

redoma ou aquário, numa bolha, resguardados do mundo. Talvez não estejam. Vários já sofreram a pancada

da separação dos pais. Aprenderam que a vida é também um exercício de separação. Um ou outro já transou

droga, e com isto deve ter se sentido (equivocadamente) muito adulto. Mas há uma sensação de pureza

angelical misturada com palpitação sexual, que se exibe nos gestos sedutores dos adolescentes. Ouvem-se

gritos e risos cruzando a rua. Aqui e ali um casal de colegiais, abraçados, completamente dedicados ao beijo.

Beijar em público: um dos ritos de quem assume o corpo e a idade. Treino para beijar o namorado na frente

dos pais e da vida, como que diz: também tenho desejos, veja como sei deslizar carícias.

Onde estarão esses meninos e meninas dentro de dez ou vinte anos?

Aquele ali, moreno, de cabelos longos corridos, que parece gostar de esportes, vai se interessar pela

informática ou economia; aquela de cabelos loiros e crespos vai ser dona de butique; aquela morena de

cabelos lisos quer ser médica; a gorduchinha vai acabar casando com uma gerente de multinacional; aquela

esguia, meio bailarina, achará um diplomata. Algumas estudarão Letras, se casarão, largarão tudo e

passarão parte do dia levando filhos à praia e praça e pegando-os de novo à tardinha no colégio. Sim, aquela

quer ser professora de ginástica. Mas nem todos têm certeza sobre o que serão. Na hora do vestibular

resolvem. Têm tempo. É isso. Têm tempo. Estão na porta da vida e podem brincar.

Aquela menina morena magrinha, com aparelho nos dentes, ainda vai engordar e ouvir muito elogio às

suas pernas. Aquela de rabo-de-cavalo, dentro de dez anos se apaixonará por um homem casado. Não

saberá exatamente como tudo começou. De repente, percebeu que o estava esperando no lugar onde

passava na praia. E o dia em que foi com ele ao motel pela primeira vez ficará vivo na memória.

É desagradável, mas aquele ali dará um desfalque na empresa em que será gerente. O outro irá fazer

doutorado no exterior, se casará com estrangeira, descasará, deixará lá um filho – remorso constante. Às

vezes lhe mandará passagens para passar o Natal com a família brasileira.

A turma já perdeu um colega num desastre de carro. É terrível, mas provavelmente um outro ficará

pelas rodovias. Aquele que vai tocar rock vários anos até arranjar um emprego em repartição pública. O

homossexualismo despontará mais tarde naquele outro, espantosamente, logo nele que é já um don juan.

Tão desinibido aquele, acabará líder comunitário e talvez político. Daqui a dez anos os outros dirão: ele

sempre teve jeito, não lembra aquela mania de reunião e diretório? Aquelas duas ali se escolherão madrinhas

de seus filhos e morarão no mesmo bairro, uma casada com engenheiro da Petrobrás e outra com um físico

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nuclear. Um dia, uma dirá à outra no telefone: tenho uma coisa para lhe contar: arranjei um amante.

Aconteceu. Assim, de repente. E o mais curioso é que continuo a gostar do meu marido.

Se fosse haver alguma ditadura no futuro, aquele ali seria guerrilheiro. Mas essa hipótese deve ser

descartada.

Quem estará naquele avião acidentado? Quem construirá uma linda mansão e um dia convidará a

todos da turma para uma grande festa rememorativa? Ah, o primeiro aborto! Aquele ali descobrirá os textos

de Clarice Lispector e isto será uma iluminação para toda a vida. Quantos aparecerão na primeira página do

jornal? Qual será o tranquilo comerciante e quem representará o país na ONU?

Estou olhando aquele bando de adolescentes com evidente ternura. Pudesse passava a mão nos

seus cabelos e contava-lhes as últimas estórias da carochinha antes que o lobo feroz assaltasse na esquina.

Pudesse lhes diria daqui: aproveitem enquanto estão no aquário e na redoma, enquanto estão na porta da

vida e do colégio. O destino também passa por aí. E a gente pode às vezes modificá-lo.

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LAR DESFEITO

LUIS FERNANDO VERÍSSIMO

José e Maria estavam casados há 20 anos e eram muito felizes um com o outro. Tão felizes que um

dia, na mesa, a filha mais velha reclamou:

- Vocês nunca brigam?

José e Maria se entreolharam. José respondeu:

- Não, minha filha. Sua mãe e eu não brigamos.

- Nunca brigaram? - quis saber Vítor, o filho do meio.

- Claro que já brigamos. Mas sempre fizemos as pazes.

- Na verdade, brigas, mesmo, nunca tivemos. Desentendimentos, como todo mundo. Mas sempre nos

demos muito bem...

- Coisa mais chata - disse Venancinho, o menor.

Vera, a filha mais velha, tinha uma amiga, Nora, que a deixava fascinada com suas histórias de casa.

Os pais de Nora viviam brigando. Era um drama. Nora contava tudo para Vera. Às vezes chorava. Vera

consolava a amiga. Mas no fundo tinha uma certa inveja. Nora era infeliz. Devia ser bacana ser infeliz assim.

O sonho de Vera era ter um problema em casa para poder ser revoltada como Nora. Ter olheiras como Nora.

Vítor, o filho do meio, frequentava muito a casa de Sérgio, seu melhor amigo. Os pais de Sérgio

estavam separados. O pai de Sérgio tinha um dia certo para sair com ele. Domingo. Iam ao parque de

diversões, ao cinema, ao futebol. O pai de Sérgio namorava uma moça do teatro. E a mãe de Sérgio recebia

visitas de um senhor muito camarada que sempre trazia presentes para Sérgio.

Venancinho, o filho menor, também tinha amigos com problemas em casa. A mãe do Haroldo, por

exemplo, tinha se divorciado do pai do Haroldo e casado com um cara divorciado. O padrasto de Haroldo

tinha uma filha de 11 anos que podia tocar o Danúbio azul espremendo uma das mãos na axila, o que

deixava a mãe do Haroldo louca. A mãe do Haroldo gritava muito com o marido.

Bacana.

- Eu não aguento mais esta situação - disse Vera, na mesa.

- Que situação, minha filha?

- Essa felicidade de vocês!

- Vocês deviam ter o cuidado de não fazer isso na nossa frente - disse Vítor.

- Mas nós não fazemos nada!

- Exatamente.

Venancinho batia com o talher na mesa e reivindicava:

- Briga. Briga. Briga.

José e Maria concordavam que aquilo não podia continuar. Precisavam pensar nas crianças. Antes de

mais nada, nas crianças. Manteriam uma fachada de desacordo, ódio e desconfiança na frente deles, para

esconder a harmonia. Não seria fácil. Inventariam coisas. Trocariam acusações fictícias e insultos. Tudo para

não traumatizar os filhos.

- Víbora, não! - gritou Maria, começando a erguer-se do seu lugar na mesa com a faca serrilhada na

mão. José também se ergueu e empunhou a cadeira.

Coletânea de Crônicas – 7º ano – 2014 – Professora Simone Jorge Página 13

- Víbora, sim! Vem que eu te arrebento.

Maria avançou. Vera agarrou-se ao seu braço.

- Mamãe. Não!

Vítor segurou o pai. Venancinho, que estava de boca aberta e os olhos arregalados desde o começo

da discussão - a pior até então -, achou melhor pular da cadeira e procurar um canto neutro da sala de jantar.

Depois daquela cena, nada mais havia a fazer. O casal teria que se separar. Os advogados cuidariam

de tudo. Eles não podiam mais nem se enxergar.

Agora era Nora que consolava Vera. Os pais eram assim mesmo. Ela tinha experiência. A família era

uma instituição podre. Sozinha, na frente do espelho, Vera imitava a boca de desdém de Nora.

- Podre. Tudo podre. E esfregava os olhos, para que ficassem vermelhos. Ainda não tinha olheiras,

mas elas viriam com o tempo. Ela seria amarga e agressiva. A pálida filha de um lar desfeito. Um pouco de

pó-de-arroz talvez ajudasse.

Vítor e Venancinho saíam aos domingos com o pai. Uma vez foram ao Maracanã junto com Sérgio, o

pai do Sérgio e a namorada do pai do Sérgio, a moça do teatro. O pai do Sérgio perguntou se José não

gostaria de conhecer uma amiga da sua namorada. Assim poderiam fazer mais programas juntos. José disse

que achava que não. Precisava de tempo para se acostumar com sua nova situação. Sabe como é.

Maria não tinha namorado. Mas no mínimo duas vezes por semana desaparecia de casa, depois

voltava menos nervosa. Os filhos tinham certeza de que ela ia se encontrar com um homem.

- Eles desconfiam de alguma coisa? - perguntou José.

- Acho que não - respondeu Maria.

Estavam os dois no motel onde se encontravam, no mínimo duas vezes por semana, escondidos.

- Será que fizemos o certo?- Acho que sim. As crianças agora não se se sentem mais deslocadas no

meio dos amigos. Fizemos o que tinha que ser feito.

- Será que algum dia vamos poder viver juntos outra vez?

- Quando as crianças saírem de casa. Aí então estaremos livres das convenções sociais. Não

precisaremos mais manter as aparências. Me beija.

Coletânea de Crônicas – 7º ano – 2014 – Professora Simone Jorge Página 14

A PALAVRA

RUBEM BRAGA

Tanto que tenho falado, tanto que tenho escrito - como não imaginar que, sem querer, feri alguém? Às

vezes sinto, numa pessoa que acabo de conhecer, uma hostilidade surda, ou uma reticência de mágoas.

Imprudente ofício é este, de viver em voz alta.

Às vezes, também a gente tem o consolo de saber que alguma coisa que se disse por acaso ajudou

alguém a se reconciliar consigo mesmo ou com a sua vida de cada dia; a sonhar um pouco, a sentir uma

vontade de fazer alguma coisa boa.

Agora sei que outro dia eu disse uma palavra que fez bem a alguém. Nunca saberei que palavra foi;

deve ter sido alguma frase espontânea e distraída que eu disse com naturalidade porque senti no momento -

e depois esqueci.

Tenho uma amiga que certa vez ganhou um canário, e o canário não cantava. Deram-lhe receitas para

fazer o canário cantar; que falasse com ele, cantarolasse, batesse alguma coisa ao piano; que pusesse a

gaiola perto quando trabalhasse em sua máquina de costura; que arranjasse para lhe fazer companhia, algum

tempo, outro canário cantador; até mesmo que ligasse o rádio um pouco alto durante uma transmissão de

jogo de futebol... mas o canário não cantava.

Um dia a minha amiga estava sozinha em casa, distraída, e assobiou uma pequena frase melódica de

Beethoven - e o canário começou a cantar alegremente. Haveria alguma secreta ligação entre a alma do

velho artista morto e o pequeno pássaro cor de ouro?

Alguma coisa que eu disse distraído - talvez palavras de algum poeta antigo - foi despertar melodias

esquecidas dentro da alma de alguém. Foi como se a gente soubesse que de repente, num reino muito

distante, uma princesa muito triste tivesse sorrido. E isso fizesse bem ao coração do povo, iluminasse um

pouco as suas pobres choupanas e as suas remotas esperanças.

Coletânea de Crônicas – 7º ano – 2014 – Professora Simone Jorge Página 15

SOCORRO, SOU FOFO

ANTÔNIO PRATA

O autor, numa crise de autoestima (e de autocrítica) - quem não passa por isso?

Tá bom, eu admito. Não adianta negar, fingir é inútil, de

nada vale lutar contra os fatos. Uma hora na vida a gente tem

que assumir, se contentar com o que tem, olhar diante do

espelho e aceitar o que ele nos devolve: sou fofo mesmo, e daí?

Se pudesse escolher, eu não seria. Queria ser um cara

irresistível, musculoso, alto, desses que fazem as mulheres

suspirarem quando passam e cochicharem, vermelhinhas:

“Nossa, que homem!”. Eu as esnobaria, as trataria mal. E elas sempre voltariam aos meus braços, claro.

Infelizmente, a natureza não me deu os traços, os bíceps, a altura, a voz e outros requisitos

necessários para me candidatar a um cargo de Rodrigo Santoro ou de Du Moscovis na juventude. Não

bastassem as deficiências genéticas, uma boa educação acabou de vez com a possibilidade de uma

personalidade canalha, uma postura cafajeste, ou, no mínimo, uma arrogância esnobe.

Assim sendo, tive desde cedo que apelar para técnicas mais complexas de persuasão, como a

gentileza, o bom papo, as piadas e outras compensações. E não tardou, tendo trilhando com esforço esse

caminho, para começar a ouvir os primeiros: “Ai, você é muito fofo!”.

No começo eu chiava, reclamava, soltava uns palavrões, dava uma ou duas cusparadas no chão,

fechava a cara.

Aos poucos, fui vendo que ser fofo não era o fim do caminho. Não seria necessário entrar numa clínica

de recuperação (F.A. Fofos Anônimos) ou numa academia de ginástica. Havia mulheres que valorizavam um

bom “fofo”.

Já faz alguns anos que estou “trabalhando” esse meu lado aprendendo a ser fofo e não ter vergonha

disso. Hoje, como vocês estão vendo, posso falar em público sobre isso, sem ficar vermelho. Não se iludam,

se pudesse escolher, nascia de novo com 1,85 m, jaqueta de couro, barba por fazer, bronzeado e com voz de

dublador de protagonista em filme de ação. Mas a opção, infelizmente, não existe. O que me resta é não só

aceitar o (ai, que horror) “fofura” em mim supostamente contida, como mais ainda, tentar acentuá-la. Como

neste texto aqui, em que exponho minhas fraquezas, frustrações e angústias a todos vocês. Modéstia e

orgulho à parte, não é uma atitude fofa?

Coletânea de Crônicas – 7º ano – 2014 – Professora Simone Jorge Página 16

O PADEIRO

RUBEM BRAGA

Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a porta do

apartamento - mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante me lembro de ter lido alguma coisa

nos jornais da véspera sobre a "greve do pão dormido". De resto não é bem uma greve, é um lock-out, greve

dos patrões, que suspenderam o trabalho noturno; acham que obrigando o povo a tomar seu café da manhã

com pão dormido conseguirão não sei bem o que do governo.

Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. E enquanto tomo café vou

me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão à porta do

apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os moradores, avisava gritando:

- Não é ninguém, é o padeiro!

Interroguei-o uma vez: como tivera a ideia de gritar aquilo?

"Então você não é ninguém?"

Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera

bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma

voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: "não é

ninguém, não senhora, é o padeiro". Assim ficara sabendo que não era ninguém...

Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo para

explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo eu também, como

os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre

depois de uma passagem pela oficina - e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares

rodados, o jornal ainda quentinho da máquina, como pão saído do forno.

Ah, eu era rapaz! Eu era só um rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque, no

jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou

artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de cada lar; e dentro do meu

coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre; "não é ninguém,

é o padeiro!"

E assobiava pelas escadas.

Coletânea de Crônicas – 7º ano – 2014 – Professora Simone Jorge Página 17

O LIXO

LUIS FERNANDO VERÍSSIMO

Encontram-se na área de serviço. Cada um com seu pacote de lixo. É a primeira vez que se

falam.

- Bom dia...

- Bom dia.

- A senhora é do 610.

- E o senhor do 612.

- É.

- Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente...

- Pois é...

- Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo...

- O meu quê?

- O seu lixo.

- Ah...

- Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser pequena...

- Na verdade sou só eu.

- Mmmm. Notei também que o senhor usa muito comida em lata.

- É que eu tenho que fazer minha própria comida. E como não sei cozinhar...

- Entendo.

- A senhora também...

- Me chame de você.

- Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns restos de comida em seu lixo.

Champignons, coisas assim...

- É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas, como moro sozinha, às vezes

sobra...

- A senhora... Você não tem família?

- Tenho, mas não aqui.

- No Espírito Santo.

- Como é que você sabe?

- Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo.

- É. Mamãe escreve todas as semanas.

- Ela é professora?

- Isso é incrível! Como foi que você adivinhou?

- Pela letra no envelope. Achei que era letra de professora.

- O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo.

- Pois é...

- No outro dia tinha um envelope de telegrama amassado.

- É.

Coletânea de Crônicas – 7º ano – 2014 – Professora Simone Jorge Página 18

- Más notícias?

- Meu pai. Morreu.

- Sinto muito.

- Ele já estava bem velhinho. Lá no Sul. Há tempos não nos víamos.

- Foi por isso que você recomeçou a fumar?

- Como é que você sabe?

- De um dia para o outro começaram a aparecer carteiras de cigarro amassadas no seu lixo.

- É verdade. Mas consegui parar outra vez.

- Eu, graças a Deus, nunca fumei.

- Eu sei. Mas tenho visto uns vidrinhos de comprimido no seu lixo...

- Tranquilizantes. Foi uma fase. Já passou.

Você brigou com o namorado, certo?

- Isso você também descobriu no lixo?

- Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho, jogado fora. Depois, muito lenço de papel.

- É, chorei bastante, mas já passou.

- Mas hoje ainda tem uns lencinhos...

- É que eu estou com um pouco de coriza.

- Ah.

- Vejo muita revista de palavras cruzadas no seu lixo.

- É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é.

- Namorada?

- Não.

- Mas há uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. Até bonitinha.

- Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.

- Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer que ela volte.

- Você já está analisando o meu lixo!

- Não posso negar que o seu lixo me interessou.

- Engraçado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostaria de conhecê-la. Acho que foi a poesia.

- Não! Você viu meus poemas?

- Vi e gostei muito.

- Mas são muito ruins!

- Se você achasse eles ruins mesmo, teria rasgado. Eles só estavam dobrados.

- Se eu soubesse que você ia ler...

- Só não fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando. Se bem que, não sei: o lixo da pessoa ainda

é propriedade dela?

- Acho que não. Lixo é domínio público.

- Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público. O que sobra da nossa vida privada se

integra com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será isso?

- Bom, aí você já está indo fundo demais no lixo. Acho que...

Coletânea de Crônicas – 7º ano – 2014 – Professora Simone Jorge Página 19

- Ontem, no seu lixo...

- O quê?

- Me enganei, ou eram cascas de camarão?

- Acertou. Comprei uns camarões graúdos e descasquei.

- Eu adoro camarão.

- Descasquei, mas ainda não comi. Quem sabe a gente pode...

- Jantar juntos?

- É.

- Não quero dar trabalho.

- Trabalho nenhum.

- Vai sujar a sua cozinha?

- Nada. Num instante se limpa tudo e põe os restos fora.

- No seu lixo ou no meu?

Coletânea de Crônicas – 7º ano – 2014 – Professora Simone Jorge Página 20

VAI

IVAN ÂNGELO

Quer ir? Vai. Eu não vou segurar. Uma coisa que não dá certo é segurar uma pessoa contra a

vontade, apelar pro lado emocional. De um jeito ou de outro isso vira contra a gente mais tarde: não fui,

porque você não deixou, ou: não fui, porque você chorou. Sabe, existem umas harmonias em que é bom a

gente não mexer. Estraga a música. Tem a hora dos violinos e tem a hora dos tambores.

Eu compreendo, compreendo perfeitamente. Olha, e até admito: você muda pra melhor. Fora de

brincadeira, acho mesmo. Eu sei das minhas limitações, pensei muito nisso, quando tava tentando te

entender. É, é um defeito meu, considerar as pessoas em primeiro lugar. Concordo. Mas não tem mais jeito,

eu sou assim. Paciência.

Sabe por que eu digo que você muda pra melhor? Ele faz tanta coisa melhor do que eu! Verdade.

Tanta coisa que eu não aprendi por falta de tempo, de oportunidade – ora, pra que ficar me justificando? Não

aprendi por falta de jeito, de talento, essa é que é a verdade. Eu sei ver as qualidades de uma pessoa,

mesmo quando é um homem que vai roubar minha namorada. Roubar não: ganhar.

Compara. Ele dança muito bem, até chama a atenção. Campeão de natação, anda de bicicleta como

um acrobata de circo, é bom de moto, sabe atirar, é fera no volante, caça e acha, monta a cavalo, mete o

braço, pesca, veleja, mergulha... Não tem companhia melhor.

Eu danço mal, você sabe. Não consegui ultrapassar aquela fronteira larga entre a timidez e a ousadia,

entre a discrição e o exibicionismo, que separa o mau e o bom bailarinos. Nunca fui muito além daquela fase

em que uma amiga compadecida1 precisava sussurrar no meu ouvido: dois pra lá, dois pra cá.

Atravessar uma piscina eu atravesso, uma vez, duas talvez, mas três? Menino de cidade, e modesto,

não tive córrego nem piscina. É com olhos invejosos que eu o vejo na água, afiado como se tivesse escamas.

Moto? Meu Deus, quem sou eu. Pra ser bom nisso, é preciso ter aquele ar de quem vai passar

roncando na frente ou por cima de todo mundo – e esse ar ele tem.

Montar? É preciso ter essa certeza que ele tem, de que cavalo foi feito pra ser domado, arreado,

freado, ferrado e montado. Eu não tenho. Não tá em mim. Eu ia montar como se pedisse desculpas ao cavalo

pelo incômodo, e isso não dá, não pode dar um bom cavaleiro.

O jeito como ele dirige um carro é humilhante. Já viajei com ele, encolhido e maravilhado. Você

conhece o jeitão, essa coisa da velocidade. Não vou ter nunca aquela noção de tempo, a decisão, o domínio

que ele tem. Cada um na sua. Eu troquei a volúpia de chegar rapidinho pelo prazer de estar a caminho. No

amor também.

Caçar... Dar um tiro num bicho... Ele tem isso, a certeza de que o homem é o senhor do universo, tudo

tá aí pra ele. Quem me dera. Quando penso naquela pelota quente de aço entrando no corpo do bicho,

rasgando carne, quebrando ossos... Não, não tenho coragem.

Aí é que eu tou perdido mesmo, no capítulo da coragem. Ele faz e acontece, já vi. Mas eu? Quantas

vezes já levei desaforo pra casa. Levei e levo. Se um cachorro late pra mim na rua, vou lá e mordo ele? Eu

não. Mudo de calçada.

1 Com dó

Coletânea de Crônicas – 7º ano – 2014 – Professora Simone Jorge Página 21

Outra coisa: ele é mais engraçado do que eu. Fala mais alto, ri mais à vontade, às vezes chama até

um pouco a atenção, mas... é da idade. Lembra aquela vez que ele levou um urubu e soltou na igreja no

casamento do Carlinhos? E aquela vez que ele sujou de cocô de cachorro as maçanetas dos carros

estacionados na porta da boate? Lembra que sucesso? Os jornais falaram por dias naquilo. Não consigo ser

engraçado assim. Não tá em mim. Por isso que eu não tenho mágoa. Ele é muito mais divertido. E mais

bonito também.

Vai.

Olha, não quero dizer que o que eu vou falar agora tenha importância pra você, que possa ter influído

na sua decisão, mas ele tem mais dinheiro também, você sabe. Ele tem até, sabe?, aquele ar corajoso dos

ricos, aquela confiança de entrar nos lugares. Eu não. Muito cristal me intimida. Os meus lugares são uns

escondidos onde o garçom é amigo, o dono me confessa segredos, o cozinheiro acena lá do quadradinho e

me reserva o melhor naco. É mais caloroso, mas não compensa o brilho, de jeito nenhum.

Ele é moderno, decidido. Num restaurante não te oferece primeiro a cadeira, não observa se você tá

servida, não oferece mais vinho. Combina, não é?, com um tipo de feminismo. A mulher que se sente, peça o

que quiser, sirva-se, chame o garçom quando precisar. Também não procura saber se você tá satisfeita. Eu

sei que é assim que se usa agora. Até no amor. Já eu sou meio antigo, ultrapassado, gosto de umas

cortesias.

Também não vou dizer que ele é melhor do que eu em tudo. Isso não. Eu sei, por exemplo, uns

poemas de cor. Li alguns livros, sei fazer papagaio de papel, posso cozinhar uns dois ou três pratos com

categoria, tenho certa paciência pra ouvir, sei uma ótima massagem pra dor nas costas, mastigo de boca

fechada, levo jeito com crianças, conheço umas orquídeas, tenho facilidade pra descobrir onde colocar umas

carícias, minhas camisas são lindas, sei umas coisas de cinema, não bato em mulher.

E não sou rancoroso. Leva a chave para o caso de querer voltar.

Coletânea de Crônicas – 7º ano – 2014 – Professora Simone Jorge Página 22

Nike destrói 45 mil pares de tênis pirateados

A GLÓRIA DO FALSO

MOACYR SCLIAR

PREZADOS SENHORES: uns amigos me falaram que os senhores

estão para destruir 45 mil pares de tênis falsificados com a marca Nike e

que, para esse fim, uma máquina especial já teria até sido adquirida. A

razão desta cartinha é um pedido. Um pedido muito urgente.

Antes de mais nada, devo dizer aos senhores que nada tenho contra a

destruição de tênis ou de bonecas Barbie, ou de qualquer coisa que

tenha sido pirateada. Afinal, a marca é dos senhores, e quem usa essa

marca indevidamente sabe que está correndo um risco. Destruam,

portanto. Com máquina, sem máquina, destruam. Destruir é um direito

dos senhores.

Mas, por favor, reservem um par, um único par desses tênis que serão

destruídos para este que vos escreve. Este pedido é motivado por duas

razões: em primeiro lugar, sou um grande admirador da marca Nike, mesmo falsificada. Aliás, estive olhando

os tênis pirateados e devo confessar que não vi grande diferença deles para os verdadeiros.

Em segundo lugar, e isto é o mais importante, sou pobre, pobre e ignorante. Quem está escrevendo esta

carta para mim é um vizinho, homem bondoso. Ele vai inclusive colocá-la no correio, porque eu não tenho

dinheiro para o selo. Nem dinheiro para selo, nem para outra qualquer coisa: sou pobre como um rato. Mas a

pobreza não impede de sonhar, e eu sempre sonhei com um tênis Nike.

Os senhores não têm ideia de como isso será importante para mim. Meus amigos, por exemplo, vão me

olhar de outra maneira se eu aparecer de Nike. Eu direi, naturalmente, que foi presente (não quero que

pensem que andei roubando), mas sei que a admiração deles não diminuirá: afinal, quem pode receber um

Nike de presente, pode receber muitas outras coisas. Verão que não sou o coitado que pareço.

Uma última ponderação2: a mim não importa que o tênis seja falsificado, que ele leve a marca Nike sem

ser Nike. Porque, vejam, tudo em minha vida é assim. Moro num barraco que não pode ser chamado de casa,

mas, para todos os efeitos, chamo-o de casa. Uso camiseta de uma universidade americana, com dizeres em

inglês, que não entendo, mas nunca estive nem sequer perto da universidade – é uma camiseta que

encontrei no lixo. E assim por diante.

Mandem-me, por favor, um tênis. Pode ser tamanho grande, embora eu tenha pé pequeno. Não me

desagradaria nada fingir que tenho pé grande. Dá à pessoa uma certa importância. E depois, quanto maior o

tênis, mais visível ele é. E, como diz o meu vizinho aqui, visibilidade é tudo na vida.

Folha de S. Paulo, Caderno Cotidiano, São Paulo, 14 ago. 2000

2 consideração

Coletânea de Crônicas – 7º ano – 2014 – Professora Simone Jorge Página 23

MEU IDEAL SERIA ESCREVER...

RUBEM BRAGA

Meu ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está naquela casa cinzenta

quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto que chegasse a chorar e dissesse – “ai, meu Deus,

que história mais engraçada!” E então a contasse para a cozinheira e telefonasse para duas ou três amigas

para contar a história; e todos a quem ela contasse rissem muito e ficassem alegremente espantados de vê-la

tão alegre. Ah, que minha história fosse como um raio de sol, irresistivelmente louro, quente, vivo, em sua

vida de moça reclusa (que não sai de casa), enlutada (profundamente triste), doente. Que ela mesma ficasse

admirada ouvindo o próprio riso, e depois repetisse para si própria – “mas essa história é mesmo muito

engraçada!”

Que um casal que estivesse em casa mal-humorado, o marido bastante aborrecido com a mulher, a

mulher bastante irritada como o marido, que esse casal também fosse atingido pela minha história. O marido

a leria e começaria a rir, o que aumentaria a irritação da mulher. Mas depois que esta, apesar de sua má-

vontade, tomasse conhecimento da história, ela também risse muito, e ficassem os dois rindo sem poder

olhar um para o outro sem rir mais; e que um, ouvindo aquele riso do outro, se lembrasse do alegre tempo de

namoro, e reencontrassem os dois a alegria perdida de estarem juntos.

Que nas cadeias, nos hospitais, em todas as salas de espera, a minha história chegasse – e tão

fascinante de graça, tão irresistível, tão colorida e tão pura que todos limpassem seu coração com lágrimas

de alegria; que o comissário (autoridade policial) do distrito (divisão territorial em que se exerce autoridade

administrativa, judicial, fiscal ou policial), depois de ler minha história, mandasse soltar aqueles bêbados e

também aquelas pobres mulheres colhidas na calçada e lhes dissesse – “por favor, se comportem, que diabo!

Eu não gosto de prender ninguém!” E que assim todos tratassem melhor seus empregados, seus

dependentes e seus semelhantes em alegre e espontânea homenagem à minha história.

E que ela aos poucos se espalhasse pelo mundo e fosse contada de mil maneiras, e fosse atribuída a

um persa (habitante da antiga Pérsia, atual Irã), na Nigéria (país da África), a um australiano, em Dublin

(capital da Irlanda), a um japonês, em Chicago – mas que em todas as línguas ela guardasse a sua frescura,

a sua pureza, o seu encanto surpreendente; e que no fundo de uma aldeia da China, um chinês muito pobre,

muito sábio e muito velho dissesse: “Nunca ouvi uma história assim tão engraçada e tão boa em toda a minha

vida; valeu a pena ter vivido até hoje para ouvi-la; essa história não pode ter sido inventada por nenhum

homem, foi com certeza algum anjo tagarela que a contou aos ouvidos de um santo que dormia, e que ele

pensou que já estivesse morto; sim, deve ser uma história do céu que se filtrou (introduziu-se lentamente em)

por acaso até nosso conhecimento; é divina.”

E quando todos me perguntassem – “mas de onde é que você tirou essa história?” – eu responderia que

ela não é minha, que eu a ouvi por acaso na rua, de um desconhecido que a contava a outro desconhecido, e

que por sinal começara a contar assim: “Ontem ouvi um sujeito contar uma história...”

E eu esconderia completamente a humilde verdade: que eu inventei toda a minha história em um só

segundo, quando pensei na tristeza daquela moça que está doente, que sempre está doente e sempre está

de luto e sozinha naquela pequena casa cinzenta de meu bairro.