Coletânea de textos- semana da leitura 2016

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    Escola Secundária 3 de Raul Proença

    Biblioteca

    Semana da Leitura|2016

    março 2016

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    Nota

    Esta pequena coletânea enquadra-se na recolha de textos organizada pela equipa

    da biblioteca no âmbito das atividades da Semana da leitura 2016.

    Reunimos um conjunto de textos que integram diferentes áreas do saber,

    convidando os professores a partilhá-los com os seus alunos. Queremos, deste modo,

    convocar todos os professores para a valorização da leitura enquanto competência

    transversal que conduz a novas aprendizagens e ao crescimento pessoal dos nossos

    alunos.

    Queremos agradecer aos colegas que valorizaram esta recolha com textos da suaautoria e com as suas sugestões.

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    Índice de textos

    Afonso Cruz, Para onde vão os guarda-chuvas 1 5

    Afonso Cruz, Para onde vão os guarda-chuvas 2 6

    Almeida Faria, O murmúrio do mundo  8António Gedeão, Lágrima de preta  9

    António Gedeão, Lição sobre água  10

    António Gedeão, Máquina do mundo  11

    António Gedeão, Poema para Galileu  12

    Carl Sagan, Cosmos  13

    Carlos Fiolhais, Madona e a complexidade da matéria  16

    Gabriel Garcia de Oro, Arsène Wenge  19

    Gabriel Garcia de Oro,_  David Beckham  21

    Gabriel Garcia de Oro, Péle  23

    Gabriel Garcia de Oro, Podem chamar-me the special one  26

    Ian Stewart, Cartas a uma jovem Matemática  28

    Jean- Claude Carrière, Esta noite em Samarcanda  30

    Jean-Claude Carrière, O sonho da borboleta  32

    Jean-Claude Carrière, Os cegos e o elefante  33

    João Martins, Parábolas de Fazer Crescer   34

    João Tordo, Vitor Palmadas  36

    João Tordo, Castro mãozinhas  39

    Jorge Favas, Sonhador   41

    Jorge de Sousa Braga, Pó de estrelas  42

    Jorge Sousa Braga, A terra  43

    Jorge Sousa Braga, Pólo norte  44

    Jorge Sousa Braga, Refrão  45

    Jorge Sousa Braga, Rotação  46

    José Luís Peixoto, Em teu ventre  47

    José Rodrigues dos Santos, Fórmula de Deus  48

    José Xavier, Conservação é cool   54

    José Xavier, Trabalhar com pinguins  56

    Manuel da Fonseca, Poeta  58

    Margarida Guerreiro, Chocolate  59

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    Margarida Guerreiro, Pipocas - o saboroso resultado de uma explosão  62

    Maria do Rosário Pedreira, Quando eu morrer   65

    Orhan Pamuk, O meu livro é vermelho  66

    Primo Levi, Se isto é um homem  67

    Sarah Helm, Se isto é uma mulher   68

    Sophia M. B. Andresen, Eis-me  69

    Vieira da Silva, Testamento  70

    Vinícius de Morais, Aguarela  71

    Valter Hugo Mãe, As mais belas coisas do mundo  73

    Valter Hugo Mãe, Bibliotecas  77

    Valter Hugo Mãe, Querido monstro  79

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    Afonso Cruz, Para onde vão os guarda-chuvas 1

    “- Com licença, Isa, temos de imaginar o futuro,mas somente o que não queremos, o futuro que nãodesejamos. Se imaginarmos o que queremos,

    acontecerá outra coisa, com a graça de Alá. Temosde imaginar o que desprezamos para que aconteçao que almejamos. Era assim que a minha pobremãe me ensinava e era assim que fazíamosmilagres quando éramos crianças e ainda nãosabíamos que os milagres eram impossíveis.Accha, se a quiséssemos que algo acontecesse,

     portávamo-nos como se essa coisa não fosseacontecer, imaginávamos que não acontecia,

    dizíamos aos outros que não acontecia, gastávamosas hipóteses todas que não queríamos queacontecessem, era assim que se fazia, foi assim quea minha mãe me ensinou, e ela era muito boa mãe,não era como certos pais. E os milagres aconteciamtodos, Alá é grande, uns atrás dos outros, como se estivessem na fila do autocarro. Masescuta bem, Isa, presta muita atenção, como dizíamos que não aconteceria, quando osnossos desejos se concretizavam, quando as situações realmente aconteciam, ninguémacreditava em nós, diziam que estávamos sempre errados, que não éramos positivos eque as coisas boas não sucediam por nossa causa. Escuta. Tens de experimentar, meuquerido Isa, tens de ser negativo, imaginar que as coisas correm mal, verá que o futuro,que nunca é da nossa opinião, fará os possíveis por te contrariar e, assim, fará a tuavontade. Inshallah.” 

    Afonso Cruz, Para onde vão os guarda-chuvas, Companhia das Letras (pp. 452-453)

    Sobre o livro

    O pano de fundo deste romance é um Oriente efabulado, baseado no que pensamos quefoi o seu passado e acreditamos ser o seu presente, com tudo o que esse Oriente tem demágico, de diferente e de perverso. Conta a história de um homem que ambiciona serinvisível, de uma criança que gostaria de voar como um avião, de uma mulher que quercasar com um homem de olhos azuis, de um poeta profundamente mudo, de um generalrusso que é uma espécie de galo de luta, de uma mulher cujos cabelos fogem de umagaiola, de um indiano apaixonado e de um rapaz que tem o universo inteiro dentro da

     boca. Um magnífico romance que abre com uma história ilustrada para crianças que jánão acreditam no Pai Natal e se desdobra numa sublime tapeçaria de vidas, tecida comos fios e as cores das coisas que encontramos, perdemos e esperamos reencontrar.

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    Afonso Cruz, Para onde vão os guarda-chuvas 2

    —  Com licença —  disse Fazal Elahi — , o pedinte

    tinha um pássaro mágico que, em vez de voar para o céu,

    voava para dentro das pessoas e, quando voltava para oombro do dono, cantava uma melodia, ou seria um

    verso? tanto faz, adiante, e essa melodia, ou poema,

    conforme fosse uma coisa ou a outra, era a mais perfeita

    tradução da alma que o pássaro acabara de visitar, com

    todos os quartos e divisórias que as almas têm, com as

    mesas cheias de doces velhos, com o chão forrado de

    tapetes feitos à mão, com as lâmpadas fundidas, com o

    Alcorão deitado junto à cama. Accha! Esse pedinte

    chamava-se Tal Azizi e acreditava que os homens têmduas almas, olha para os meus dedos, Isa, duas almas,

    uma, duas, vês? Uma que está dentro do corpo e outra que está dentro do céu, como

    um pensamento está dentro do cérebro, como o verbo sentar está dentro das cadeiras.

    Há muito tempo, glória a Alá, essas almas viviam juntas, eram marido e mulher, antes

    de o tempo ter começado a existir, antes de o tempo ter começado a envelhecer-nos, a

    apodrecer o pão, a abrir buracos na roupa, a fazer as cadeiras ranger, a arruinar as

    casas, a abandonar os velhos, a deixar ossos por todo o lado, a fazer iogurte do leite

    fresco. Antes disso, meu pequeno Isa, antes disso era tudo uma unidade, como esta

    mesa e a madeira de que é fabricada.

    Foi isto que Fazal Elahi disse, mais para si do que para Isa, o rapaz magro, tão

    magro, e calado —  era raro falar —  que estava sentado ao seu colo. Pela janela entrava

    uma luz avermelhada, de final de dia, que abria caminho pelo ar denso até se deixar cair

    no tapete do chão da sala. Elahi estava sentado junto a uma mesa de madeira folheada

    revestida de fórmica, redonda, coberta por uma toalha de plástico e alguns insectos

    mortos. Em cima da toalha havia três pequenas jarras enfeitadas com flores, sendo a do

    meio a mais alta e de vidro transparente. As das pontas eram brancas. Todas tinham

    rosas vermelhas de plástico, com gotas de cola a fazer de gotas de água. As mãos deFazal Elahi tremiam enquanto tirava um cigarro do bolso da camisa de linho. Passou os

    dedos pelo nariz, cheirou o cigarro, verde-acastanhado, fininho, atado com corda de

    cânhamo. Com licença, disse ele, e, do bolso das calças, tirou um isqueiro, acendeu o

    cigarro, expeliu o fumo contra o ar à sua frente. Com a mão esquerda pegou numa

    chávena de chá e levou-a à boca, sentiu o calor a envolver-lhe a língua, o palato, os

    dentes, o nariz, a garganta, enquanto Isa se mantinha encolhido debaixo do fumo que se

    enrolava com a luz da janela.

    Aminah, irmã de Fazal Elahi, agarrada à ombreira da porta da sala, com as unhas

    compridas cravadas na madeira velha, gritava:— Uma vergonha! Uma vergonha para a nossa família!

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    Elahi tinha trazido um miúdo para casa, uma criança da rua, pior ainda, cristão,

     pior ainda, um americano. Fazal Elahi sentara-o nos seus joelhos e, com esse gesto

    simbólico, pois era assim que se fazia no tempo de Abraão, o primeiro monoteísta,

    adoptava-o e fazia-o herdeiro da fortuna que ele garantia não possuir.

    Isa tinha: uns cabelos pretos, um corpo magro, uns lábios secos. As pernas eramarqueadas, ossudas.

     —  Uma vergonha! —  insistia Aminah.

    Isa esfregou os olhos por causa do fumo. Olhou para Fazal Elahi, que parecia alheado

    dos gritos da irmã, e voltou a esfregar os olhos.

    Afonso Cruz, Para onde vão os guarda-chuvas, Companhia das Letras (pp 20-22)

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    Almeida Faria, O Murmúri o do Mundo  

    Afinal houve atraso no voo para Frankfurt, eficámos sentados em bancos de pau até que a

    noite fosse written off, na forte expressão de

     Naipaul. O que me permitiu confirmar a suaexatidão ao falar dos horrores de um sanitário público indiano.  Incluo entre os horrores ofuncionário junto aos lavabos, estendendo aos

     passageiros um bocado de papel a servir de toalhetee juntando em seguida as mãos abertas à espera dagorjeta.

    O visitante ocidental que pela primeira vezchega a Goa e Cochim enfrentará provavelmente avertigem do caos à sua volta e dentro de si. Quando

    começa a familiarizar-se com a estonteanteexuberância e com as contradições coexistentes,quando julga começar a entender a complexidadedas castas, dos cultos e costumes tão diferentes, quando começa a fixar nomes,imagens, atributos dos deuses, tudo lhe foge de súbito, tudo se torna de novo confuso,como se o véu de Maia voltasse a cobrir a indecifrável irrealidade da índia real.

    Quem regressa de uma terra tão diversa traz fragmentos de caras, casas, ruas,cheiros, quartos, uma carga de imagens que, na alfândega-roleta do lembrar e esquecer,deveria pagar excesso de bagagem Vim carregado de cores e de cansaço mas inteiro eem estado razoável, bem melhor dos que outrora, contentes por regressarem, contavam

     Lá vos digo que há fadigas tantas mortes, tantas brigas e perigos descompassados que assim vimos destroçados pelados como formigas.

    Vim ainda carregado de algo mais: um outro modo de olhar, a certeza de não pertenceràquele tipo de viajante que não fala do que vê, mas do que imagina ou deseja ver.  Trouxe comigo um bloco confusamente escrevinhado, uma curiosidade acrescentada,uma crescente descrença na elegância da descrença. E tornei-me mais atento àinfindável memória do mundo, mais capaz de escutar o incansável murmúrio do

    mundo. Almeida Faria, O Murmúrio do Mundo, Tinta da China, pág. 143

    Acerca do li vro  

    O viajante ocidental que pela primeira vez chega a Goa e Cochim enfrentará provavelmente a vertigem do caos à sua volta e dentro de si. Quando começa afamiliarizar-se com a estonteante exuberância e com as contradições coexistentes,quando julga começar a entender a complexidade das castas, dos cultos e costumes tãodiferentes, quando começa a fixar nomes, imagens, atributos dos deuses, tudo lhe foge

    de súbito, tudo se torna de novo confuso, como se o véu de Maia voltasse a cobrir aindecifrável irrealidade da Índia real. 

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    Lágrima de preta  

    (…) Recolhi a lágrima com todo o cuidado num tubo de ensaio bem esterilizado. (…) 

     Mandei vir os ácidos, as bases e os sais, as drogas usadas em casos que tais. 

     Ensaiei a frio, experimentei ao lume, de todas as vezes deu-me o que é costume: nem sinais de negro, nem vestígios de ódio. 

     Água (quase tudo) e cloreto de sódio. 

     António Gedeão (1961) 

    http://www.google.pt/url?sa=i&rct=j&q=&esrc=s&source=images&cd=&cad=rja&uact=8&ved=0ahUKEwjgvsqW86HLAhWF6RQKHUgqBOAQjRwIBw&url=http://samuel-cantigueiro.blogspot.com/2009/05/antonio-gedeao-porque-sim.html&psig=AFQjCNFCaJVtCWxWTuaR4qgzgYxBcfEtWw&ust=1457004441267815

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    L ição sobre a água

     Este líquido é água.Quando puraé inodora, insípida e incolor.

     Reduzida a vapor, sob tensão e a alta temperatura,move os êmbolos das máquinas que, por isso, se denominam máquinas de vapor.

     É um bom dissolvente. Embora com excepções mas de um modo geral,dissolve tudo bem, bases e sais.Congela a zero graus centesimaise ferve a 100, quando à pressão normal. 

     António Gedeão (1966) 

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    Máquina do Mundo  

    O Universo é feito essencialmente de coisa nenhuma. Intervalos, distâncias, buracos, porosidade etérea. Espaço vazio, em suma.O resto é matéria.

     Daí, que este arrepio,este chamá-lo e tê-lo, erguê-lo e defrontá-lo,esta fresta de nada aberta no vazio,deve ser um intervalo.

     António Gedeão (1961) 

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    Poema para Gal i leo  

    (…) Eu queria agradecer -te, Galileo, a inteligência das coisas que me deste. 

     Eu, e quantos milhões de homens como eu  A quem tu esclareces-te,  Ia jurar –  que disparate, Galileo! –  e jurava a pés juntos, e apostava a cabeça Sem a menor hesitação –  Que os corpos caem tanto mais depressa Quanto mais pesados são. (…) Tu é que sabias, Galileo Galilei.(…)do alto inacessível das suas alturas, 

     foram caindo, caindo,(…) e sempre, ininterruptamente, na razão directa do quadrado dos tempos. 

     António Gedeão (1968) 

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    Um a Voz na F uga Cósm i c a

    Todos os seres orgânicos que já vivem sobre aTerra descendem provavelmente de uma única forma

     primordial, na qual a vida foi insuflada pela primeiravez [...] Há grandeza nesta visão da vida [...] que dizque, enquanto este planeta foi girando de acordo coma lei imutável da gravidade, a partir de um princípiotão simples, um sem-número de formas, belas efascinantes, evoluíram e continuam a evoluir.

    CHARLES DARWIN,  A Origem das Espécies, 1859 

    Sempre me interroguei sobre a possibilidade de existir

    vida fora da Terra. Como seria? De que seria feita? No

    nosso planeta, todas as coisas vivas são construídas a partir de moléculas orgânicas  —   microscópicas arquitecturas complexas em que o

    átomo de carbono tem o principal papel. Tempos houve em que a Terra era estéril e

    absolutamente desolada. Agora o nosso mundo transborda de vida. Como é que isto

    aconteceu? Como é que, na ausência de organismos, se puderam formar moléculas

    orgânicas baseadas no carbono? Como surgiram os primeiros seres vivos? Como é que

    a vida evoluiu de maneira a produzir seres tão elaborados e complexos como nós, que

    somos capazes de explorar o mistério das nossas próprias origens?

    E nos inúmeros planetas que talvez girem à volta de outros sóis também existirá

    vida? Será a vida extraterrestre, se existir, baseada nas mesmas moléculas orgânicas que

    a vida na Terra?

    Será que os seres de outros mundos têm a mesma aparência que os terrestres? Ou

    serão abissalmente diferentes —  outras adaptações a outros ambientes? Que mais é

     possível? A natureza da vida na Terra e a busca da vida algures no exterior são dois

    lados da mesma pergunta —  quem somos nós?

    (…) De vez em quando alguém faz um comentário sobre a feliz I coincidência de a

    Terra ser perfeitamente adequada à vida  —  J temperaturas moderadas, água líquida,

    atmosfera de oxigénio, | etc. Mas isto é, pelo menos em parte, uma confusão entrecausa e efeito. Nós, terráqueos, estamos admiravelmente adaptados 1 ao ambiente da

    Terra porque crescemos aqui. As primeiras formas de vida, que não estavam tão bem

    adaptadas, morreram. Nós descendemos dos organismos bem-sucedidos. Os seres que

    tiverem evoluído num mundo totalmente diferente certamente também cantam os

    louvores desse mundo.Todos os habitantes da Terra são parentes próximos. Todos temos uma química

    orgânica e uma herança evolutiva comuns. 

    (…) Há 10 mil anos não havia vacas leiteiras, nem cães de caça, nem grandes espigas

    de trigo. Quando domesticámos os antepassados destas plantas e animais  —  por vezes

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    criaturas de aspecto muito diferente  — , começámos a controlar a sua reprodução e os

    seus cruzamentos. Fizemos que certas variedades com propriedades que

    considerávamos desejáveis se reproduzissem preferencialmente. Quando queríamos um

    cão que nos ajudasse a tomar conta das ovelhas, seleccionávamos raças inteligentes,

    obedientes e que possuíssem já talento para lidar com rebanhos  —   um talentoindispensável em animais que caçavam em matilha. Os enormes úberes distendidos das

    vacas leiteiras são o resultado o interesse do homem no leite e no queijo. O nosso trigo

    ou o nosso milho foram cultivados durante milhares de gerações de maneira a

    tornarem-se mais saborosos e nutritivos que os seus magros antepassados; na realidade,

    mudaram tanto que já nem se poderiam reproduzir sem a intervenção humana.

    ( …) No entanto, se o homem pode produzir novas variedades de plantas e animais,

    não o fará também a natureza? Este processo, semelhante ao primeiro, é chamado

     selecção natural. Que a vida se modificou profundamente durante os milhões de anos

    do universo torna-se perfeitamente evidente quando se pensa nas alterações por nós provocadas nos animais e nas plantas durante o nosso curto domínio da Terra e quando

    se observam os registos fósseis. Eles falam-nos, sem ambiguidade, de criaturas que já

    existiram em grande número e agora desapareceram completamente1. As espécies que

    se extinguiram durante toda a história da Terra são muito mais numerosas que as que

    existem hoje em dia. São as experiências abortadas da evolução.

    As alterações genéticas induzidas pela domesticação ocorreram muito rapidamente.

    O coelho só foi domesticado a partir dos princípios da Idade Média  —  foi criado por

    monges franceses, na convicção de que os coelhinhos recém-nascidos não eram carne e

    de que, portanto, era permitido comê-los nos dias de abstinência determinados pelaIgreja; o café, no século xv; a beterraba açucareira, no século xix; e o vison está ainda

    nos primórdios da domesticação. Em menos de 10 mil anos, este processo fez aumentar

    o peso da lã de uma ovelha de menos de 1 quilo de pelos ásperos para 10 a 20 quilos de

    fios macios e uniformes, ou o volume de leite produzido por uma vaca durante o

     período de lactação de umas centenas a 1 milhão de centímetros cúbicos. Se a selecção

    artificial pode provocar mudanças tão drásticas em tão pouco tempo, do que será capaz

    a selecção natural actuando durante milhares de milhões de anos? A resposta é a beleza

    e a diversidade do mundo vivo. A evolução é um facto, não uma teoria.

    Quando eu era ainda estudante, no princípio dos anos 50, tive a sorte de trabalhar nolaboratório de H. J. Muller, um grande geneticista que descobriu que as radiações

     provocam mutações. Foi Muller quem me chamou a atenção para o caranguejo Heikecomo exemplo de selecção artificial. Para aprender os aspectos práticos da genética

     passei muitos meses a trabalhar com a mosca- -do-vinagre,  Drosophila melanogaster  (isto é, «a amadora de orvalho de ventre negro»)  —  um bicho minúsculo e inofensivocom duas asas e grandes olhos. Guardávamos as drosófilas em garrafas de leite ecruzávamos duas variedades para ver que novas formas emergiriam do rearranjo dosgenes dos progenitores e das mutações, quer naturais, quer induzidas. As fêmeas

    1  Apesar da opinião tradicional das religiões ocidentais, que mantiveras»

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    depositavam os ovos numa espécie de melaço que os preparadores colocavam no fundodas garrafas; estas eram seladas e esperávamos duas semanas até que os ovosfertilizados se transformassem em larvas, as larvas em ninfas e as ninfas em novasmoscas-do-vinagre adultas.

    Um dia, estava eu a observar à lupa um lote acabado de chegar de drosófilas adultasimobilizadas com um pouco de éter e a separar, muito atarefado, as diferentesvariedades com um pincel de pêlo de camelo, quando, para meu grande espanto, deicom uma coisa completamente diferente: não uma pequena variação com olhosvermelhos em vez de brancos, ou ausência ou presença de pelos no pescoço. Era umoutro género de criatura, de ar saudável, com asas muito mais proeminentes e longasantenas plumosas. Concluí que o destino quisera que no próprio laboratório de Muller,que sempre tinha negado essa possibilidade, se tivesse dado uma grande alteraçãoevolutiva numa única geração. E era a mim que cabia o triste dever de o informar.

    Com o coração pesado, bati à porta do gabinete de Muller. Ouvi um “entre” a bafado

    e fui encontrar a sala toda às escuras, à excepção do pequeno círculo de luz domicroscópio com que ele estava a trabalhar. Neste ambiente soturno, dei as notíciascom voz pouco firme. Eu encontrara uma mosca muito diferente e tinha a certeza quetinha emergido de uma das pupas do melaço. Não o queria incomodar, mas... «Pareciamais um lepidóptero que um díptero?», perguntou ele, com a face iluminada por baixo.Eu não sabia o que isso queria dizer, e ele teve de explicar: «Tem umas asas grandes? Eantenas plumosas?» Tristemente, respondi que sim.

    Muller acendeu a luz de cima e sorriu com complacência. Tratava-se de uma velhahistória. Havia uma espécie de traça que se tinha adaptado aos laboratórios de genéticada drosófila. Não se parecia em nada com a mosca-do-vinagre e não queria nada comela —  o que ela queria era o melaço. Durante o breve instante que o preparador levavaa abrir e a fechar a garrafa de leite  —  por exemplo, para adicionar drosófilas — , a mãetraça fazia um mergulho de bombardeiro, deitando de caminho os ovos nas saborosas

     papas. Eu não tinha descoberto uma macromutação, tinha simplesmente topado commais uma fascinante adaptação da natureza, ela própria o produto de micro- mutações eda selecção natural.

    Os segredos da evolução são a morte e o tempo  —  a morte de um sem-número deformas de vida mal adaptadas ao ambiente e o tempo da longa sucessão de pequenasmutações adaptativas por acaso, o tempo necessário à lenta acumulação de padrões de

    mutações favoráveis. Parte da resistência a Darwin e Wallace deve-se à nossadificuldade em imaginar a passagem dos milénios, e mais ainda das eras geológicas.Que significam 70 milhões de anos para seres que vivem um milionésimo dessetempo? Nós somos como borboletas que esvoaçam um dia e pensam que é parasempre.

    Sobre o livro

    Carl Sagan trata de tudo: 'Cosmos é tudo o que existiu, existe ou existirá.' O que o olharhumano alcança e, mais longe ainda, o que a mente humana alcança. Leva-nos numa

    viagem para a frente no espaço e para trás no tempo. Faz-nos sonhar! Poder-se-á pedirmais de um livro?»

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    Madona e a complexidade da matéria

    Estando hoje a Terra repleta de computadores e estando estes

    ligados por redes informáticas, é comum ouvir dizer quevivemos num mundo virtual, num mundo de bits. Mas o fatoé que continuamos a viver num mundo material, num mundode átomos. Para além dos físicos e químicos, que poderão nãoser muito populares, é a vedeta pop norte-americana Madonnaque nos recorda esse facto, quando canta «Material Girl», noseu disco Like a Virgin:

    You know that we are living in a material world

     And I am a material girl.[Sabem que vivemos num mundo material e eu sou uma rapariga material.]

    Alguém duvida de que Madonna seja uma «material girl»!?Vivemos num mundo material e somos, tal como Madonna, pessoas materiais, seresfeitos de combinações particulares dos cerca de cem átomos que formam toda a matéria.«O mundo é feito de átomos» é, segundo o Prémio Nobel da Física Richard Feynman, aafirmação mais importante da nossa ciência, uma afirmação que apenas era uma vagahipótese no final do século XIX, mas da qual hoje, no início do século XXI ninguémduvida. Feynman foi ao ponto de dizer que, se tivéssemos de transmitir num curtotelefonema a um extraterrestre o essencial do nosso conhecimento do mundo, antes deum eventual cataclismo no nosso querido planeta, deveríamos aproveitar para dizer que«o mundo é feito de átomos»...

    A matéria feita de átomos conhecidos não pára, porém, de nos surpreender!

    Surpreendeu-nos, por exemplo, em 1908, quando o físico holandês Kammer- lingh

    Onnes descobriu, no seu laboratório da Universidade de Leiden, que alguns materiais

    metálicos simples, a temperaturas próximas do zero absoluto (que, de acordo com a

    termodinâmica, é a temperatura mais baixa possível: -273,15 graus Celsius), eram

    supercondutores. Este é um nome justo para um verdadeiro superfenómeno: a correnteelétrica flui nesses materiais sem encontrar qualquer resistência e, portanto, nenhuma

    energia se perde por aquecimento... E voltou a surpreender-nos, quase 80 anos mais

    tarde, em 1986, quando os físicos alemães Georg Bednorz e Alex Mueller, a trabalhar

    nos laboratórios da International Business Machines (IBM) em Zurique, na Suíça,

    descobriram que alguns materiais cerâmicos, bem mais complexos do que os metais

    examinados por Onnes, eram supercondutores a temperaturas chamadas «altas» (cerca

    de -240 graus Celsius), apesar de baixas de acordo com os nossos padrões habituais.

    Depois disso, já se observou supercondutividade a -140 graus Celsius, um recorde que

    talvez um dia venha a ser ultrapassado.

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    (…) Apesar de conhecermos a teoria subjacente à organização dos átomos  —   a

    teoria quântica  —  é desconsolador que não entendamos ainda alguns fenómenos cuja

    observação é absolutamente trivial. Hoje em dia até já há kits de supercondutividade a

    «altas» temperaturas com que se podem efectuar divertidas experiências nas escolas e é

     bastante fácil, com a ajuda de azoto líquido, pôr a levitar uma pequena peça. É como sesoubéssemos as regras do jogo mas não conseguíssemos explicar algumas das jogadas

    que vemos. Serão precisas novas regras? E quais serão elas? Se não for assim, como se

     joga sem batota com as regras antigas? Na física moderna, não é afinal necessário olhar

     para os confins do mundo, para as estrelas em longínquas galáxias ou para os protões e

    neutrões no interior das partículas do núcleo atómico, para encontrar  puzzles

    complicados que desafiam a nossa imaginação...

    Quem olha para as estrelas dentro das galáxias e para os quarks dentro dos protões e

    dos neutrões sonha com uma «teoria de tudo», uma teoria que unifique todas as

    interacções (incluindo as interacções nucleares, forte e fraca, que governam no interiordos núcleos; a interacção electromagnética, que gere os «negócios» eléctricos e

    magnéticos; e a interacção gravitacional, que reina nas grandes distâncias do espaço).

    Para muitos físicos, chegar a essa teoria é o objectivo último da física, pelo que lhe

    chamam «teoria final» e falam, com um tom algo pessimista, do «fim da física». De

    facto, apesar da muita propaganda feita pelos autores da chamada «teoria das cordas»

    (assente na ideia de que as partículas fundamentais não devem ser vistas como pontos,

    mas sim como cordas vibrantes), não existe ainda uma teoria de força unificada que

    seja não só consistente internamente, como consistente com a experiência. Pode até ser

    que essa teoria de força unificada nunca venha a existir... Mas, mesmo que venha aexistir, dificilmente nos dirá alguma coisa sobre o complexo fenómeno da super-

    condutividade, a baixas ou a «altas» temperaturas. Dificilmente ela nos dará qualquer

    informação sobre os complicados fenómenos que ocorrem na matéria atómica que se

    encontra, ao fim e ao cabo, por tudo quanto é sítio. O conjunto, por vezes, é mais, muito

    mais, do que a soma das suas partes e, por muito que se esmiúcem as partes, não se

    chega ao todo. Quer dizer, a eventual «teoria de tudo» não englobará, afinal, «tudo» e a

    sua hipotética formulação não representará de modo nenhum o fim da física...

    A matéria de que são feitas todas as coisas continua e continuará a desafiar os

    físicos. O seu objecto concreto de estudo é, afinal, uma questão de gosto. Uns

     preferirão os mistérios últimos (últimos?) das estrelas e dos quarks. Outros preferirão

    os enigmas da supercondutividade a «altas» temperaturas.

    Curioso é que o estudo do real não dispense hoje o virtual. Para vermos hoje os

    quarks nos núcleos ou os átomos nos materiais usamos bits. Na decifração do real, as

    simulações computacionais são hoje instrumentos extraordinários que ampliam a nossa,

     por vezes escassa, imaginação. Algumas teorias unificadas são testadas em computador

     por não existirem soluções que se possam escrever à mão. E o estudo de materiais passa

    hoje pela respetiva modelação e simulação no computador com base nos primeiros

     princípios da teoria quântica. O computador revela-se, portanto, um instrumento muito

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    versátil, um mero instrumento que permite fazer a ponte entre vários ramos da física e

    também entre a física e outras ciências. No século XXI, antes de criarmos novos

    materiais supercondutores, fá-los-emos provavelmente, átomo a átomo, em ecrãs de

    computador. A matéria será virtual antes de a materializarmos no nosso mundo

    material... Não fora o facto de a sua avó o ter aconselhado a teimar, teimar, mas nunca apostar,

    o autor até apostaria que novas surpresas estão para vir no domínio da complexidade da

    matéria. Haverá outros fenómenos novos, tão ou mais espetaculares que a superconduti-

    vidade, que a teoria não previu mas que vai ser obrigada a explicar.

    Carlos Fiolhais, Nova Física Divertida, Lisboa, Gradiva, 2007, pp. 43-50

    Acerca do livro

    O autor continua a pensar que a física é interessante, atraente e até divertida. “A NovaFísica Divertida” aborda a paradoxal teoria quântica e a extraordinária teoria darelatividade, revelando os avanços da física até aos nossos dias. Essas teorias, com asespantosas experiências que as confirmaram, mudaram a nossa visão do mundo - desdeos núcleos atómicos às estrelas - e o modo como nele vivemos: agora vivemos melhor!Carlos Fiolhais recorreu à sua singular capacidade de comunicação e ao seu conhecidosentido de humor para realizar uma obra de um rigor científico e uma qualidadedidáctica admiráveis. 

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    Capítulo 32

    Não impor ta o dinheiro que ganhas.

    Só podes fazer três refeições por dia

    E dormir numa só cama  Arsène Wenge

    Esta frase tão acertada foi pronunciada pelo treinador do

    Arsenal, referindo-se a uma negociação que envolvia o

     jogador Nicolas Anelka. Esta visão tão lúcida como

     pragmática define um homem que chegou ao clube

    londrino em 1996 e desde então rege os seus destinos.

    Arsène Wenger soube transmitir a sua filosofia de vida a

     jogadores que se revelaram durante a sua tutela, comosão os exemplos de Patrick Vieira, Robin van Persie ou

    Cesc Fàbregas.

    Uma das grandes dificuldades dos managers,  como

    designam em Inglaterra os treinadores de futebol, é a de

    terem de trabalhar com rapazes jovens que, com grande

    frequência, não têm formação cultural, contudo têm

    muito dinheiro e são admirados onde quer que vão. Como conseguir que alguém assim

    não se transforme num monstro vaidoso?

    Trabalhando o valor da humildade e recordando aos jogadores que não são mais que pessoas simples e trabalhadoras.

    Sobre isto há um conto, de autor desconhecido, que ilustra na perfeição o significado da

    riqueza.

    Conta-se que, um dia, um pai de família rica e muito bem na vida levou o seu filho

    numa viagem pelo campo com o firme propósito de mostrar ao jovem a ventura que

    tinha por poder usufruir de tal posição e se sentisse orgulhoso disso.

    Passaram o fim-de-semana todo fora e alojaram-se numa quinta de gente do campo,

    muito humilde. Terminada a viagem, de regresso a casa, o pai perguntou ao filho:

    - Que te pareceu a experiência?

    - Boa - respondeu o filho, com o olhar perdido no horizonte.

    - Tiveste noção de quão pobre pode ser uma pessoa?

    - Sim, papá.

    - E que aprendeste, então? - insistiu o pai.

    - Muitas coisas, papá, que nós temos um cão e eles têm quatro; nós temos uma piscina

    com água parada que ocupa metade do jardim e eles têm um rio sem fim, de água

    cristalina, onde há peixinhos e outras maravilhas; que nós temos lâmpadas importadas

     para iluminar o jardim e eles se alumiam com as estrelas e com a Lua; que o nosso

    terraço chega até à vedação e o deles abarca o horizonte; que nós compramos a nossa

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    alimentação e eles semeiam e colhem a sua; nós cozinhamos num fogão eléctrico e eles,

    tudo o que comem tem esse espantoso sabor do fogão a lenha; para nos protegermos,

    vivemos rodeados por muros, com alarmes, enquanto eles vivem com as portas abertas,

     protegidos pela amizade dos vizinhos. Nós vivemos agarrados ao telemóvel, ao

    computador e ao televisor e eles, por seu lado, estão ligados à vida, ao céu, ao Sol, àágua, ao verde dos montes, aos animais, aos afazeres agrícolas. Tu e a mãe têm de

    trabalhar tanto que quase não os vejo. Eles têm tempo para falar e conviver todos os

    dias em família.

    Terminado o relato do filho, o pai ficou mudo. Então, o filho acrescentou:

    - Obrigado, papá, por me teres mostrado como somos pobres e que podemos chegar a

    ser ricos.

    32.a LEI ESFÉRICA

    A nossa maior riqueza é agradecerQue não nos falte o necessário

    Gabriel Garcia de Oro, Pensar com os pés- 50 ideias do mundo do futebol paramelhorar a sua vida, Planeta, 2015, pp. 99-100

    Acerca do livro

    Com inteligência e perspicácia, Gabriel García de Oro reúne 50 máximas do mundo do

    futebol sobre assuntos como a auto-estima, desenvolvimento pessoal, carreira,

    relacionamentos, gestão do tempo e até alimentação. Cada capítulo de "Pensar com os

    Pés" é aberto com a máxima de um craque ou de um grande treinador, que é analisado e

    aplicado à vida quotidiana, fazendo desta obra um manual para vencer as vicissitudes do

    nosso dia-a-dia. 

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    Capítulo 34

    Os que dizem “os homens de verdade não choram” é porque nunca jogaram

    futebol com verdadeira paixão” 

    David Beckham 

    Mais conhecido, nos dias de hoje, pela sua faceta de

    modelo do que pelas qualidades futebolísticas, o autor desta

    frase inundou as revistas de todo o mundo ao casar-se com a

    Spice Girl Victoria Adams.

    Considerado, na sua época, o melhor marcador de ponta-

     pés-livres do mundo, a que dava um efeito endiabrado. O seu

    casamento deu-lhe uma nova dimensão pública com constantes

    mudanças de imagem que o converteram num ícone da

    chamada metrossexualidade.

    Beckham começou a exibir penteados com tranças, cristas e brincos, a utilizar

    cosméticos e a ostentar arrojados trajes de estilistas como um  fashion victim,  na

    aparência mais preocupado com o estilismo do que com a sua carreira desportiva que

    se foi apagando bastante antes de descalçar as botas.

     Não obstante, foi sempre um apaixonado pelo seu desporto, sem qualquer pejo em

    mostrar os seus sentimentos quando algo se complicava.

    Albert Camus, sobre o seu passado como futebolista no Racing Universitário de

    Argel, comentaria:

    «AMAVA A MINHA EQUIPA PELA ALEGRIA DA VITÓRIA E PELO ESTÚPIDO

    DESEJO DE CHORAR NAS NOITES DAS DERROTAS.»

    Isto remete-nos para a declaração de Beckham que encabeça este capítulo e põeem causa o mito de que os homens não choram.

     Num artigo publicado no  La Vanguardia  por Maite Gutiérrez, a jornalista

    comentava a esse respeito:

    «Parte da sociedade continua a relacionar choro com fragilidade. A tradição

    cultural tinha os papéis muito definidos: o homem, forte por natureza, controla-

    se de forma espartana; a mulher, delicada e sensível, precisa de se exprimir

    através de lágrimas. Este padrão prevalece ainda em certos indivíduos embora

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    esteja a enfraquecer a pouco e pouco. “A forma de expressar os sentimentos

    sofreu uma mudança significativa a par da evolução social. Se um homem está

    seguro de si mesmo, tranquilo, não terá objecções em mostrar o que sente”,

    defende o psiquiatra Pere Planas.

    Serão as pessoas mais frágeis pelo facto de não evitarem chorar? “De modo

    nenhum!”, responde o especialista. “Os fracos são os outros, os que pela sua

    insegurança têm um comportamento agressivo, machista ou se fecham em si

    mesmos”, continua. Contudo, agora eles têm licença para se emocionarem e

    isso “apesar de ainda aborrecer muitas pessoas ver um homem chorar”, insiste

    Pere Planas. Quanto às mulheres, houve também mudanças. Já restam poucos

    vestígios do “velho líquido para amolecer corações” de que falava Spencer

    Tracy no filme A Costela de Adão.» 

    Uma das coisas que temos de agradecer ao futebol é a de ter permitido a milhões de

    homens em todo o mundo romper em lágrimas quando a sua equipa levanta uma taça

    ou chorar de frustração quando perde uma liga no último minuto ou quando a sua

    equipa de deixa vencer depois de uma estóica luta, semana após semana.

    Este desporto desperta emoções em mulheres e em homens.

    34ª LEI ESFÉRICA

    Se não nos emocionamos com o que fazemos significa que não estamos no jogo

    a 100%

    Gabriel Garcia de Oro , Pensar com os pés, 50 ideias do mundo do futebol paramelhorar a sua vida, Planeta, 2015, pp. 104-106

    Acerca do livro

    Com inteligência e perspicácia, Gabriel Garcia de Oro reúne 50 máximas do mundo dofutebol sobre assuntos como a auto-estima, desenvolvimento pessoal, carreira,relacionamentos, gestão do tempo e até alimentação. Cada capítulo de "Pensar com osPés" é aberto com a máxima de um craque ou de um grande treinador, que é analisado eaplicado à vida quotidiana, fazendo desta obra um manual para vencer as vicissitudes donosso dia-a-dia. 

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    Capítulo 15

    “Não há pior castigo que nascer bola para ser pontapeada por um inglês emWembley” 

    Pelé

    De entre todos os artistas da bola que

     protagonizam este manual inspirador, Edison Arantes do

     Nascimento não precisa de qualquer apresentação, nem

    faz falta que se exponham aqui os seus êxitos. Além de

    um desportista extraordinário - ele mesmo disse: «Nunca

    haverá outro Pelé. A minha mãe e o meu pai fecharam a

    fábrica e destruíram o molde» o  Rei  sempre se

    caracterizou por ser uma pessoa comedida. Quando fala,

    ouvem-no e com razão.

    «Para se impor, o treinador deve ter bons conhecimentose inspirar confiança. Não pode ser verdugo. Esse erro costuma pagar-se caro

     porque as grandes equipas, como as grandes empresas, constroem-se com

    unidade e respeito mútuo, não à chicotada.»

    Filho de um modesto avançado, chamado Dondinho, que surpreendeu Pelé a fumar, na

    fase da adolescência, disse-lhe: «Não deves fumar se queres ser futebolista profissional,

    mas, se o fazes, toma dinheiro para comprares tabaco. Não andes por aí a pedi-lo.»

    Este conselho, dado com carinho e respeito, como os bons treinadores, tocou tão fundo

    o futebolista que nunca mais voltou a acender um cigarro. Em vez disso, aprendeu

    karaté, durante a sua permanência nas categorias inferiores do Santos, que o ensinou a

    cair, a saltar e a manter o equilíbrio. A sua resistência, perante os defesas rivais,atribuiu-se a esta formação.

    Conta-se que em 1958, durante o mundial de futebol que decorria na Suécia e que

    acabaria por ser conquistado pela Canarinha, algumas jovens locais assediavam os

     jogadores brasileiros e «penduravam-se nos nossos braços, quando íamos às compras»,

    segundo as palavras do seu companheiro Pepe.

    Contudo, nada disto retirou a Pelé a humildade e a paixão pela simplicidade. Após

    deslumbrar o mundo inteiro, conta-se que, ao regressar a Santos, o  Rei viu algumascrianças que brincavam no campo onde ele costumava correr e pediu-lhes para jogar

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    com elas. A estrela vestiu, então, uns calções, tirou os sapatos e jogou descalço.

    Sempre preferiu o estilo ao resultadismo,  como demonstra a sua afirmação que

    encabeça este capítulo.

    Um dos acontecimentos mais insólitos da sua vida: em 1969 a Nigéria e um grupo

    armado do Biafra fizeram uma trégua de 48 horas, na guerra civil que travavam, apenas

     para verem Pelé jogar em Lagos. Todas as garantias de segurança foram asseguradas e

    o resultado foi 2-2, no jogo entre o Santos e a selecção nigeriana.

    Depois de perder a final do Mundial do México de 1970, o italiano Tarcicio

    Burgnich disse: «Pensei que Pelé era de carne e osso, como eu. Estava enganado!»

    Porém, o maior futebolista de todos os tempos nunca tirou os pés do chão, apesar de

    reconhecer o talento que tinha.

    Por palavras suas:

    «DEUS DEU ME O DOM DE JOGAR FUTEBOL E O RESTO CONSEGUI OEU PORQUE ME CUIDAVA E PREPARAVA.»

    15ª lei esférica

    Para desenvolver qualquer dom há que manter os pés assentes na terra.

    Gabriel García de Oro, Pensar com os pés, Planeta, 2015

    Acerca do livro

    Com inteligência e perspicácia, Gabriel García de Oro reúne 50 máximas do mundo dofutebol sobre assuntos como a auto-estima, desenvolvimento pessoal, carreira,relacionamentos, gestão do tempo e até alimentação. Cada capítulo de "Pensar com osPés" é aberto com a máxima de um craque ou de um grande treinador, que é analisado eaplicado à vida quotidiana, fazendo desta obra um manual para vencer as vicissitudes donosso dia-a-dia. 

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    Capítulo 30

    Podem chamar-me the special one

    Odiado e amado. Idolatrado e insultado. Há quemelogie os seus métodos e quem os questione. José

    Mourinho é assim, um homem que provoca reacções

    extremas, uma personalidade sem lugar para a

    indiferença. Porém, o que nem uns nem outros podem

    negar é que este português, nascido em Setúbal, tem uma

    das carreiras mais meteóricas e surpreendentes da

    história do futebol.

    Começou como tradutor de Bobby Robson no Barça e

    hoje é um dos treinadores mais premiados e mais bem pagos do mundo. Um percurso que, como demonstra

    esta história, é fruto de uma grande evolução e progresso

     pessoal:

    Mourinho regressava pela primeira vez à sala de imprensa do Futebol Clube de

    Barcelona, já não como tradutor mas como treinador adversário. Um jornalista, de um

    dos meios de comunicação locais, colocou-lhe uma dessas perguntas complicadas:

    -  Como se sente ao regressar como técnico rival, uma vez que passou de simples

    tradutor a técnico da equipa principal?Mourinho, que sempre se caracterizou por não fugir aos desafios dialécticos,

    respondeu:-  Eu evoluí, mas vejo que tu continuas a ser o que faz perguntas nas conferências de

    imprensa.Qual é o segredo? Como é possível, no tão fechado mundo do futebol, uma evolução

    deste tipo? É claro que há uma parte de talento, de trabalho, de esforço e sacrifício, mas

    há também um trabalho espectacular de um dos grandes segredos do nosso tempo, o

    chamado personal branding. 

    Em 1997, Tom Peters, considerado o guru dos gurus, escreveu na revista  Fast

    Company um artigo intitulado The Brand Called You que revolucionaria o mundo do

    management   e do crescimento pessoal. O autor propunha que, para triunfar neste

    mundo, para atingir os propósitos, os sonhos e objectivos que todos temos no nosso

    interior, devíamos funcionar como uma grande multinacional, usar as mesmas

    estratégias, as mesmas ferramentas e técnicas que usam marcas como a Coca-Cola, a

     Microsoft, a Apple, etc.

  • 8/19/2019 Coletânea de textos- semana da leitura 2016

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    Assegurava que «a marca pessoal liga paixões, qualidades e forças com uma

    assunção de valor que deixa clara a diferenciação dos demais», porque, neste mundo

    competitivo e saturado, ou nos distinguimos ou nos extinguimos.

    Já não existem os empregos para toda a vida. O mundo laborai caminha a passoslargos para a contratação de serviços e nós devemos dispor e oferecer um serviço

    diferente, valioso, coerente e atractivo. Isso é o que na essência propõe a teoria da

    marca pessoal. E todos, de um modo ou de outro, somos tão especiais como Mourinho

    diz que é.

    Vejamos, em jeito de resumo, cinco chaves das cinquenta que propõe Tom Peters

     para a criação da nossa EU, LDA.

    1.  Pensar como um empreendedor, sempre

    Mesmo os que têm emprego fixo têm de agir com mentalidade

    d efreelance.

    2.  Perseguir a excelência

    Ser suficientemente bom não é suficientemente bom.

    3.  Alimentar a nossa rede de contactos

     Não nos isolemos, há que manter contactos. Com pessoas interessantes, combinar

    um almoço, um café, uma simples conversa. Criemos a nossa própria rede de

    contactos.

    4.  Paixão pela renovação

    Vivemos num mundo em constante mudança e a aposta na formação constante éo melhor que podemos fazer

    5.  Confiança nas novas tecnologias

     Não é preciso ser especialista, mas ter consciência de tudo o que as novas

    tecnologias podem oferecer. Utilizemo-las em nosso proveito.

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    30º Lei Esférica

     Não há melhor investimento que o que fazemos na nossa marca pessoal.

    Gabriel Garcia de Oro , Pensar com os pés, 50 ideias do mundo do futebol paramelhorar a sua vida, Planeta, 2015, pp. 93-95

    Acerca do livro

    Com inteligência e perspicácia, Gabriel García de Oro reúne 50 máximas do mundo dofutebol sobre assuntos como a auto-estima, desenvolvimento pessoal, carreira,relacionamentos, gestão do tempo e até alimentação. Cada capítulo de "Pensar com osPés" é aberto com a máxima de um craque ou de um grande treinador, que é analisado eaplicado à vida quotidiana, fazendo desta obra um manual para vencer as vicissitudes donosso dia-a-dia. 

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    Querida Meg,

     Não é difícil notar, na tua pergunta, uma espécie de —  não sei —   tédio antecipado, ou talvez alguma preocupação acercadaquilo em que te meteste. É tudo razoavelmente interessante

    agora mas, como dizes, «É só isto?» Lês Shakespeare,Dickens e T. S. Eliot nas tuas aulas de Inglês, e podes assumirde forma razoável que, embora isto seja só uma pequenaamostra da grande literatura mundial, não existe nenhumnível mais elevado de literatura inglesa cuja existência aindanão te revelaram. Por isso naturalmente te perguntas se, poranalogia, a matemática que estás a aprender no liceu é aquiloque a matemática é. Nos níveis mais elevados da matemática,existe algo mais do que números maiores e cálculos mais

    complicados?Aquilo que tu viste até agora não é, realmente, o espetáculo principal.

    Os matemáticos não passam a maior parte do seu tempo a fazerem cálculos numéricos,se bem que cálculos sejam por vezes essenciais para se progredir. Não se ocupam

     permanentemente em esmiuçar fórmulas simbólicas, mas as fórmulas podem, mesmoassim, ser indispensáveis. A matemática que estás a aprender na escola consisteessencialmente nuns quantos truques básicos do ofício, e como usá-los em contextosmuito simples. Se estivéssemos a falar de carpintaria, é como aprender a usar um

    martelo para pregar um prego, ou uma serra para cortar madeira. Se nunca vires umtomo ou uma broca elétrica, nunca aprenderás a construir uma cadeira, e certamente quenunca aprenderás como conceber e construir um móvel em que nunca ninguém pensou.

     Não que um martelo e uma serra não sejam úteis. Não podes fazer uma cadeira se

    não souberes como cortar madeira de forma correta. Mas não deves julgar que, lá

     porque isso é tudo aquilo que fizeste na escola, isso seja tudo aquilo que os carpinteiros

    fazem.

    Muito daquilo a que hoje se chama «matemática» na escola é na verdade aritmética:

    diversos tipos de notações para números e métodos para somá-los, subtraí-los,

    multiplicá-los e dividi-los. À medida que vais crescendo, mostram-te outros

    componentes do estojo de ferramentas: álgebra elementar, trigonometria, geometria de

    coordenadas, talvez um pouco de cálculo. Se o teu curso foi «modernizado» nos anos

    1960 ou 1970, poderás aprender matrizes dois por dois e pequenos pedaços de teoria de

    grupos. «Moderno» é uma palavra estranha para se usar neste contexto: significa

    matemática com cem a duzentos anos de idade, contrariamente à matemática com mais

    de duzentos anos que compunha a maior parte dos cursos mais antigos.

    Infelizmente, é quase impossível progredir para as regiões mais interessantes da

    disciplina se não souberes como somar corretamente, como resolver equações básicas,

    ou o que é uma elipse. Os níveis mais elevados de qualquer atividade humana exigem

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    Semana da Leitura | 2016

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    sempre um domínio sólido das bases; pensa no ténis, ou tocar violino. Acontece que a

    matemática exige imensos conhecimentos e técnicas básicas.

    (…) Mas estou a afastar -me do tópico. O que é a matemática? Em desespero de causa,

    alguns propuseram a definição, «A matemática é aquilo que os matemáticos fazem.» E

    o que são os matemáticos? «Pessoas que fazem matemática.» Este argumento é quase platonista na sua circularidade perfeita. Mas deixa que te faça uma pergunta parecida. O

    que é um homem de negócios? Alguém que faz negócios? Não exatamente. É alguém

    que vê oportunidades  para fazer negócios quando outros as poderiam perder.

    Um matemático é alguém que vê oportunidades para fazer matemática.

    Tenho quase a certeza de que isto está correto, e mostra uma diferença importante

    entre os matemáticos e todas as outras pessoas. O que é a matemática? É a construção

    social partilhada por pessoas que estão cientes de certas oportunidades, e chamamos

    matemáticos a essas pessoas. A lógica é ainda um pouco circular, mas os matemáticos

    conseguem sempre reconhecer um espírito irmão. Descobre o que é que esse espírito ir-mão faz; será mais um aspeto da nossa construção social partilhada.

    Bem-vinda ao club!

    “O alcance da Matemática”, in Cartas a uma jovem Matemática, Ian Stewart,

    Relógio D’ Água, 2006, pp. 27-28

    Acerca do livro

    Cartas a uma Jovem Matemática é um conjunto de cartas trocadas entre Meg, uma jovem com um fascínio pela matemática, e um matemático.Desde o final do ensino secundário até se tornar Professora Assistente, Meg vai

     procurando, através das cartas, debater dúvidas que lhe vão surgindo e conselhos sobreas fases de aprendizagem em que se encontra.As cartas são veículo de discussão de variadíssimos temas, que começam por ter umcariz mais global e, à medida que Meg vai evoluindo no estudo da disciplina, se vão

    tornando mais específicos do nível académico em que se encontra. "Cartas a uma JovemMatemática" leva-nos a compreender a presença e importância da matemática, métodosusados em investigação, bem como dificuldades que surgem no seu estudo.

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    Esta noite em Samarcanda

    A mais célebre história relativa à morte é de origem

     persa. Fariduddin Attar conta-a assim.

    Uma manhã, o califa de uma grande cidade viu chegar o

    seu primeiro vizir num estado de grande agitação.

    Perguntou as razões desta aparente inquietação e o vizir

    disse-lhe:

     —   Suplico-te, deixa-me sair da cidade ainda hoje.

     —   Porquê?

     —   Esta manhã, ao atravessar a praça para vir ao

     palácio, senti que me batiam no ombro. Voltei-me e vi a

    morte que me olhava fixamente.

     —  A morte?

     —  Sim, a morte. Reconheci-a logo, toda vestida de negro com um xaile vermelho.

    Está cá e olhou para mim para me meter medo. Procura-me, tenho a certeza. Deixa-me

    sair da cidade neste mesmo instante. Levo o meu melhor cavalo e posso chegar esta

    noite a Samarcanda.

     —  Seria mesmo a morte? Tens a certeza?

     —  Absoluta. Vi-a como te vejo a ti. Tenho a certeza de que tu és tu e tenho a cer teza

    de aue ela era ela. Deixa-me partir. peco-te.

    Diz-se que nunca conseguiu responder a esta pergunta.

    O califa, que tinha afecto pelo seu vizir, deixou-o partir. O homem voltou a sua

    casa, selou o melhor dos seus cavalos e transpôs a galope uma das portas da cidade,

    em direcção a Samarcanda.

    Um pouco mais tarde, o califa, atormentado por um pensamento secreto, decidiu

    disfarçar-se, como por vezes fazia, e sair do seu palácio. Sozinho, dirigiu-se à grande

     praça. No meio dos ruídos do mercado, procurou a morte com o olhar e avistou-a,

    reconheceu-a. O vizir não se tinha enganado. Tratava-se realmente da morte, alta e

    magra, de negro vestida, o rosto meio dissimulado sob um xaile de algodão

    vermelho. Ia de um grupo para outro, no mercado, sem que dessem por ela,

    aflorando com um dedo o ombro do homem que montava a sua tenda, tocando no

     braço de uma mulher carregada de hortelã, evitando uma criança que corria para ela.

    O califa dirigiu-se à morte. Esta reconheceu-o imediatamente, apesar do disfarce,

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    e inclinou-se em sinal de respeito.

    —  Tenho uma pergunta a fazer-te —  disse-lhe o califa, em voz baixa.

    —  Escuto.

    —  O meu primeiro vizir é um homem ainda novo, de boa saúde, eficaz e pro-

    vavelmente honesto. Porque é que esta manhã, quando ele vinha para o palácio, lhe

    tocaste e o assustaste? Porque o olhaste com um ar ameaçador?

    A morte pareceu ligeiramente surpresa e respondeu ao califa:

    —   Não queria assustá-lo. Não o olhei com um ar ameaçador. Simplesmente,

    quando chocámos por acaso na multidão e o reconheci, não pude esconder o meu

    espanto, o que ele deve ter tomado por ameaça.

    —  Espanto porquê? —  perguntou o califa.

    —  Porque —  respondeu a morte —  não esperava vê-lo aqui. Tenho um encontro

    com ele esta noite, em Samarcanda.

    In, Jean- Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos- contos filosóficos do mundo inteiro,Teorema, 2000, pp. 113-114

    Sobre o livro

    São contos, são filosóficos e vêm do mundo inteiro. São zen ou sufi, chineses ou judaicos, indianos ou africanos. São, também, europeus, americanos, contemporâneos.Engraçados, graves, ou as duas coisas, ao mesmo tempo. São, por vezes, ambíguos,desconcertantes e, até, inquietantes. Parecem-se connosco.

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    O sonho da borboleta

    A ideia de que toda a existência é discutível, de que todaa percepção pode ser enganadora, de que todo o juízo

     pode ser rebatido, de que toda a afirmação que parece

    objectiva encerra uma parte secreta de arbitrário, estaideia corre pelo mundo desde os primeiros vestígios de

     pensamento.

    É uma história chinesa, extremamente célebre, que estáno centro destas hesitações do espírito. Foi Tchung-tséque no-la contou.

    Um homem sonha que é uma borboleta. Revoluteia comleveza de flor em flor, abrindo e fechando as suas asas,

    sem a mais ténue lembrança da sua natureza humana.

    Quando acorda, percebe com espanto que é um homem. Mas será ele um homem queacaba de sonhar que era uma borboleta? Ou urna borboleta a sonhar que é homem?

    Diz-se que nunca conseguiu responder a esta pergunta.

    Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema, p. 65

    Sobre o livro

    São contos, são filosóficos e vêm do mundo inteiro. São zen ou sufi, chineses ou judaicos, indianos ou africanos. São, também, europeus, americanos, contemporâneos.Engraçados, graves, ou as duas coisas, ao mesmo tempo. São, por vezes, ambíguos,desconcertantes e, até, inquietantes. Parecem-se connosco.

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    A Flor da honestidade

    Conta-se que por volta do ano 250 A.C, na China

    antiga, um príncipe da região norte do país, estava em

    vésperas de ser coroado imperador, mas, de acordo com alei, ele dever-se-ia casar. Sabendo disso, resolveu fazer

    uma "disputa" entre as moças da corte ou quem quer que

    se achasse digna da sua proposta.

     No dia seguinte, o príncipe anunciou que receberia,

    numa celebração especial, todas as pretendentes e

    lançaria um desafio. Uma velha senhora, serva do palácio

    há muitos anos, ouvindo os comentários sobre os prepa-rativos, sentiu uma leve tristeza, pois sabia que a sua jovem filha nutria um sentimento

    de profundo amor pelo príncipe.

    Ao chegar a casa, relatou o facto à jovem e espantou-se, ao saber que ela pretendia

    ir à celebração. Incrédula, perguntou-lhe:

    -  Minha filha, o que farás lá? Estarão presentes todas as mais belas e ricas jovens da

    corte. Tira essa ideia insensata da cabeça; eu sei que sofres por isso, mas não

    transformes o sofrimento numa loucura.E a filha respondeu:

    -  Não, querida mãe, não estou a sofrer e muito menos louca. Eu sei que jamais

     poderei ser a escolhida, mas é a minha oportunidade de ficar, pelo menos, alguns

    momentos perto do príncipe. Isto já me torna feliz!

    À noite, a jovem chegou ao palácio. Lá estavam, de facto, as mais belas moças, com

    lindas roupas, bonitas joias e com as mais determinadas intenções. Então, inicialmente,

    o príncipe anunciou o desafio:

    Darei a cada uma de vocês, uma semente. Aquela que, dentro de seis meses, me

    trouxer a mais bela flor, será escolhida como minha esposa e futura imperatriz da

    China.

    A proposta do príncipe não fugiu às profundas tradições daquele povo, que

    valorizava muito a especialidade de "cultivar" algo, quer fossem costumes, amizades,

    relacionamentos, etc... O tempo passou e a doce jovem, como não tinha muita

    habilidade nas artes da jardinagem, cuidava com muita paciência e ternura da sua

    semente, pois sabia que se a beleza da flor surgisse na mesma extensão do seu amor, ela

    http://www.sitiodolivro.pt/pt/livro/parabolas-de-fazer-crescer/9789898821126/

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    não precisava de preocupar- -se com o resultado. Passaram-se três meses e nada surgiu.

    A jovem tudo tentara, usara de todos os métodos que conhecia, mas nada havia nascido.

    Dia após dia, ela percebia que estava cada vez mais longe o seu sonho, mas cada

    vez mais profundo o seu amor. Por fim, os seis meses haviam passado e nada havia

     brotado. Consciente do seu esforço e dedicação, a moça comunicou à sua mãe que,

    independentemente das circunstâncias, voltaria ao palácio, na data e hora combinadas,

     pois não pretendia nada, além de mais alguns momentos na companhia do príncipe. Na

    hora marcada, lá estava, com o seu vaso vazio, bem como todas as outras pretendentes,

    cada uma com uma flor mais bela do que a outra, das mais variadas formas e cores. Ela

    estava admirada, pois nunca havia presenciado tão bela cena.

    Finalmente, chegou o momento esperado e o príncipe observou cada uma das

     pretendentes com muito cuidado e atenção. Após passar por todas, uma a uma, ele

    anunciou o resultado e indicou a bela jovem como sua futura esposa. As pessoas

     presentes tiveram as mais inesperadas reações. Ninguém compreendeu porque escolheu

     justamente aquela que nada havia cultivado. Então, calmamente o príncipe esclareceu:

    - Esta foi a única que cultivou a flor que a tornou digna de se tornar uma imperatriz.

    A flor da honestidade, pois todas as sementes que entreguei, eram estéreis. 

    João Martins e Jorge Damas, Parábolas de fazer crescer , Edições Vírgula, 2015 pp. 70-71

    Sinopse 

    As parábolas contam histórias sobre valores, apontam caminhos, são inspiradoras, pedagógicas e orientam para

    comportamentos de superação, união, perdão, coragem, amor… 

     Neste livro vai encontrar 24 parábolas ilustradas e comentadas, com espaço para registar a sua reflexão.

     Neste livro podemos descobrir quais são as verdadeiras setes maravilhas do mundo, perceber o que é a honestidade,

     porque as pessoas gritam? E muito mais...

    As parábolas vibram de forma única em cada um de nós. Descubra as verdades intemporais num livro que educa a

    não perder.

    Para consultar o livro em formato digital: https://issuu.com/sitiodolivro/docs/parabolas_de_fazer_crescer_preview

    http://www.sitiodolivro.pt/pt/livro/parabolas-de-fazer-crescer/9789898821126/http://www.sitiodolivro.pt/pt/livro/parabolas-de-fazer-crescer/9789898821126/https://issuu.com/sitiodolivro/docs/parabolas_de_fazer_crescer_previewhttps://issuu.com/sitiodolivro/docs/parabolas_de_fazer_crescer_previewhttp://www.sitiodolivro.pt/pt/livro/parabolas-de-fazer-crescer/9789898821126/

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    Vítor Palmadas - guarda-redes, Pampilhosa, 2002-2008

    Em Agosto de 2002 (…) andei a viajar pelo país à

     procura de histórias. Não andava à procura de Figos

    nem Ronaldos, não andava à caça de diamantes por

    lapidar; procurava o silêncio das vilas, a tranquilidade

    dos hotéis, a voragem da estrada rumo a parte

    nenhuma, e as pequenas curiosidades do futebol de

     província. A minha carreira - mais de vinte anos a

    orbitar o desporto-rei - chegava lentamente ao seu final;

    a minha vida de casado aproximava-se com maior

    rapidez ainda da beira de um precipício e, em vez de o

    saltar, resolvi simplesmente contorná-lo para conseguir

    chegar ao outro lado, se não inteiro, pelo menos em poucos pedaços. Foi assim que, destacado pelo jornal

     para os campeonatos regionais, conheci o melhor guarda-redes que alguma vez vi

     jogar - em Portugal, ou no estrangeiro. Era suplente no Pampilhosa, clube da

    Mealhada, chamava-se Vítor Palmadas e, em 2002, acabado de completar vinte e um

    anos, jogou a sua primeira partida a titular num jogo contra o Nelas, penúltimo

    classificado da Segunda Divisão, série C. Por mero acaso, nessa tarde chuvosa e gelada

    de Dezembro eu estava presente nas bancadas e assisti à copiosa derrota do

    Pampilhosa por 12-4. Uma derrota inexplicável a todos os títulos, como escrevi na

    minha crónica, “uma vez que o melhor jogador em campo foi o guarda-redes estreantedo Pampilhosa, um jovem de largo futuro chamado Vítor Palmadas”. A per gunta do

    meu editor corresponderá certamente à sua: como pode o guarda-redes ser o melhor

     jogador em campo quando uma equipa sofre doze golos? A explicação não é fácil, e

    diz respeito às tenebrosas circunstâncias que rodeavam a vida de Palmadas, um jovem

    cujo sofrimento, dentro e fora do campo, veio a assumir proporções dantescas. O jogo

    começou bem para o Pampilhosa: três golos em dezasseis minutos e uma vantagem

    confortável que assentava no incrível talento de Palmadas - que, até ao final da

     primeira parte, fez meia dúzia de defesas impossíveis a potentes remates dos jogadores

    do Nelas. A sua elasticidade, a capacidade de ir buscar a bola ao canto da baliza, a des-treza com que saía dos postes aos cruzamentos, aos cantos, aos pés dos jogadores

    adversários, roçavam o limite do sobrenatural; deveras impressionado, esperei que, na

    segunda parte, aquele jovem guarda-redes me tornasse a deliciar com as suas façanhas,

    mas então o insólito aconteceu: durante os segundos quarenta e cinco minutos, Vítor

    Palmadas deixou que todas as bolas rematadas pelo Nelas - e até uma bola que o

    árbitro lhe devolveu para repor um pontapé de baliza - entrassem nas redes. Os lances

    ultrapassaram o limite do ridículo: em certa ocasião, ao 3-8 ou 3-9, não me recordo,

    um jogador do Nelas cabeceou à entrada da área e a bola ultrapassou a linha de golo à

    velocidade de um caracol enquanto Palmadas, atrás da baliza, vagueava de um lado para o outro, sozinho, murmurando coisas incompreensíveis e agitando os braços como

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    se falasse com o Além. Acabou substituído aos 76 minutos, depois de sofrer 12 golos

    de rajada. Intrigado com a situação, fui entrevistar o treinador do Pampilhosa na tarde

    seguinte, e descobri que Vítor Palmadas sofria de Depressão do Intervalo, um diag-

    nóstico cada vez mais comum em jogadores jovens, inexperientes e sensíveis: tendo

    feito uma exibição de sonho na primeira parte, a segunda surgia, no seu espírito, comoum buraco negro impossível de contornar, uma cordilheira mais sinuosa do que os

    Himalaias, um destino tão negro como a morte. Nem as motivadoras palestras do

    treinador a0 intervalo, nem o apoio dos colegas, nem as doses prescritas de Paroxetina,

    Imipramina e Duloxetina  —   anti- depressivos, entenda-se - conseguiram afastar o

    espectro do Mal que caiu sobre a vida de Vítor Palmadas. Após primeiras partes de

    grande classe, as segundas partes encontravam um guarda-redes apático, muitas vezes

    a chorar encostado a um dos postes enquanto as bolas iam entrando, amiúde sentado na

    linha de fundo com a cabeça entre os joelhos; numa tarde particularmente má, em que

    o Pampilhosa jogava com o Infesta a qualificação para a Taça de Portugal, contam osespectadores dessa partida que, numa jogada de contra-ataque do Infesta, Vítor

    Palmadas encontrava-se deitado na bancada atrás da sua baliza com as mãos na cabeça.

    Passou, desta maneira, a ser utilizado apenas nas primeiras partes dos jogos mais

    importantes, obrigando o treinador a muitas substituições forçadas; durante o resto das

    épocas futebolísticas, ficou condenado ao banco de suplentes. A Depressão do

    Intervalo, contudo, não se limitava a afectar este jovem apenas no futebol - era um

    fardo que Vítor Palmadas carregava para todo o lado, incluindo o cinema (incapaz de

    ver a segunda metade dos filmes sem cair na mais profunda modorra), os concertos

    (perdeu sempre a apoteose dos espectáculos de Tony Carreira, o seu cantor preferido)e, tristemente, a cama (incapaz de se manter activo depois dos preliminares). Durante

    os anos que se seguiram - depois do meu divórcio, do meu afastamento do jornal, da

    minha magra reforma que me permite uma vida espartana num subúrbio de Lisboa, da

    solidão, da mágoa, do esquecimento - pensei muitas vezes em Vítor Palmadas e no que

    seria feito da sua carreira intermitente, tão abençoada por Deus como amaldiçoada

     pelo Diabo; descobri, há coisa de três meses, que se suicidou em Março de 2008 - no

    intervalo do inesquecível jogo em que o Pampilhosa afastou o Sporting da Taça da

    Liga. Fiquei triste, pesaroso, melancólico; mesmo na reforma, sofri por aquele jovem

    da Mealhada. Valem-me, este ano, as saudosas prestações do meu temível Benfica.

    “Memórias de um jornalista desportivo na reforma”, in Fora de Jogo, Évora, Caminho

    das Letras, 2010, pp. 60-63.

    Acerca do livro

    "Fora de Jogo" inclui 7 contos inéditos sobre futebol de sete autores de língua portuguesa com reconhecido mérito literário em Portugal e em diversos países. Os

    contistas são Francisco Duarte Mangas, Jacinto Lucas Pires, João Tordo, Manuel JorgeMarmelo, Moacyr Scliar, Patrícia Portela e Sérgio Almeida. Inserido numa linha

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    editorial de projectos inovadores que pretendemos apresentar no mercado do livro emPortugal, "Fora de Jogo" é publicado numa época em que o futebol é um dos temasdominantes na sociedade portuguesa.

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    Castro “Mãozinhas” - avançado, Clube Sport Marítimo, 1982-88

    Durante os anos oitenta, acompanhei, da redacção dasaudosa “Gazeta dos Desportos”, o estranho caso deCastro “Mãozinhas”, o ponta-de-lança mais promissor

    do futebol português nesses tempos - e o portador donome mais irónico - que, pelas razões que doravanteapresento, nunca chegou aos seleccionados que, em1984, arrancaram um lugar nas meias-finais do Europeude França. Não sei o que hoje é feito de AntónioPeixinho da Mota Castro e, embora tenha sondadoalguns antigos colegas de profissão pelo seu paradeiro,tudo o que descobri foi um enorme ponto deinterrogação - embora todos se recordem dele como um

    avançado feroz, que irrompia sem misericórdia pelomeio dos defesas, marcando golos portentosos nos poucos jogos que fez pelo Marítimo em que conseguiu terminar em campo. Castro“Mãozinhas” tinha dois metros e quatro centímetros de a ltura e um físico ameaçador.Quem o viu jogar, nesses tempos, é incapaz de esquecer o comprimento dos seus

     braços, das suas pernas, e sobretudo das suas mãos, que eram, como escreveu o jornalista desportivo Albano Freitas, “do tamanho de duas tábuas de engomar”; quem oconheceu mais de perto, nos balneários, jura que essa lonjura se estendia a todos osmembros do seu corpo. A sua principal característica, no entanto, era a incapacidade deafastar as mãos da bola durante os noventa minutos de uma partida. Em 1984, quandoCastro não foi convocado para o campeonato europeu - embora tenha marcado, nessatemporada, mais golos do que Nené ou Jordão, metade dos quais anulados por pretensoenvolvimento dos seus grotescos apêndices - entrevistei o seu pai, José da Mota Castro,

     pescador em Peniche e conhecido pela alcunha de “besugos” (uma referência vulgar edespropositada ao tamanho excessivo dos seus testículos); o pescador admitiu que, atéao final da adolescência, o seu filho nunca sequer considerara a hipótese de ser jogadorde futebol e que, com umas mãos daquele tamanho e a altura de um gigante, “besugos”e a sua mulher, Maria das Dores Peixinho, tinham considerado a hipótese de o pôr a

     jogar basquetebol, modalidade que, à época, começava a ganhar alguma popularidade

    entre os portugueses. Quando José levou o filho a um treino de captação, em Lisboa,Castro “Mãozinhas” deu imediatamente nas vistas: ao ver uma bola de basquetebol ser-lhe passada, chutou-a com uma força desmedida para onde estava virado, provocandoum traumatismo craniano num dos seus colegas de treino. Foi-lhe recomendado que

     jogasse futebol; ironicamente, a partir do momento em que o G.D. Peniche o contratou pelo seu extraordinário remate, Castro começou a mostrar-se incapaz de tratar o esféricocomo tratara a bola de basquetebol e tudo o que queria fazer era agarrá-la. Nos anos quese seguiram - e passando por dois outros clubes antes de chegar ao Marítimo -“Mãozinhas” foi expulso 77 vezes em 138 jogos nas divisões inferiores por jogar a bola  

    com a mão; contudo, em 1982, o treinador do Marítimo era um brasileiro chamadoAcúrcio Bexiga que viu em Castro mais do que um poste telegráfico humano e, fazendo

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    contas à vida, acabou por contratá-lo, depois de resolver a seguinte equação: embora“Mãozinhas” tenha sido expulso 77 vezes e visto 33 dos seus golos anulados porintroduzir a bola na baliza com as mãos, a verdade era que nos restantes 61 jogosacabara por marcar outros 70 golos, que era mais do que muitos avançados marcavamdurante toda a carreira. Contudo, o maior desgosto de Castro “Mãozinhas” foi nunca tersido seleccionável: nos Europeus e nos Mundiais, uma expulsão determinava a ausênciado encontro seguinte; era por demais evidente que o avançado, pese embora soubesseconter-se temporariamente, acabaria por lançar aquelas “tábuas de engomar” à bola emanchar a reputação dos magriços  em terras estrangeiras. Em 1986, o jornal  A Bolachegou a noticiar que o temível Benfica estava interessado em Castro “Mãozinhas”; não

     passou, no entanto, de mera especulação.

    “Memórias de um jornalista desportivo na reforma”, in Fora de Jogo, Évora, Caminhodas Letras, 2010, pp 54-56.

    Acerca do livro

    "Fora de Jogo" inclui 7 contos inéditos sobre futebol de sete autores de língua portuguesa com reconhecido mérito literário em Portugal e em diversos países. Oscontistas são Francisco Duarte Mangas, Jacinto Lucas Pires, João Tordo, Manuel JorgeMarmelo, Moacyr Scliar, Patrícia Portela e Sérgio Almeida. Inserido numa linhaeditorial de projectos inovadores que pretendemos apresentar no mercado do livro emPortugal, "Fora de Jogo" é publicado numa época em que o futebol é um dos temasdominantes na sociedade portuguesa

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    SONHADOR  

    Pobre e singela figura a tua

    Professor aspirante a maestro.

    Gostavas de ter o Sol e a Lua

    (Só) não contaste com o incerto.

    Querer ter o grupo organizado,

    Confiar na voz e no instrumento,

    Dar atenção com olhar cruzado,

    Fazer sair som com sentimento.

    Ensinar a escala do movimento,

    A afinação do gesto educado,

    O ritmo do golo no lançamento,

    A coordenação em compasso variado.

     Não previste a obrigatoriedade

    Que torna mole a batuta,

     Nem deste musicalidade à idade,

    Que necessita confronto e luta.

    Se a partitura se inicia em Lá,

    - Porque não começa em Si?

    Resposta adequada só haverá,

    Logo que entendas porque estás aqui.

    Temos todos muito que aprender.

    A verdade dos ritmos a conquistar,

    Deve ser como um solo e envolver

    Todos, para que todos possam partilhar.Jorge Favas (professor- Escola Secundária/3 deRaul Proença)

  • 8/19/2019 Coletânea de textos- semana da leitura 2016

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    Escola Secundária/3 de Raul Proença|biblioteca 42

    BURACOS NEGROS

    As estrelas também gostam de brincar às escondidasA maioria das vezes escondem-se umas atrás das outras

    ou nas imediações de um quasar

    Mas não há melhor lugar

     para uma estrela se esconder

    que num buraco negro

    Elas vêm as outras

    e ninguém as consegue ver

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    A TERRA 

     No superenxame da Virgem

    num dos braços espirais

    da Via Láctea

    entre milhões de estrelas há uma estrela —  

    o Sol

    em tudo igual às demais

    Um cortejo de planetas alguns

    asteroides e alguns cometasfazem-lhe um cachecol

    Por cima há uma nuvem

     —  a Nuvem de Oort

    talvez para os proteger da má sorte

    A Terra é um desses planetas

    Tem continentes e oceanos

    e uma atmosfera

    e nalgumas regiões Verão Outono

    Inverno

    e Primavera

    A Terraé o lugar onde nascemos

    vivemos e morremos por acaso ou não

    E apesar de ter uma lua

     por companhia

    não consegue disfarçar a sua solidão

  • 8/19/2019 Coletânea de textos- semana da leitura 2016

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    P Ó L O N O R T E

    O que tem a Ursa Menor que a Ursa Maior não tem? Uma nebulosa em redor uma

    nova um pulsar?O que a Ursa Menor tem é a Estrela Polar.

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    R E F R Ã O

    Todas as noites

    o sol repete

    o refrão:

    Mercúrio

    Vénus

    Terra

    Marte

    Saturno

    Júpiter

    Urano Neptuno

    Plutão

    aonde estão?

    E eles respondem em coro:

    Em conjunção.

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    Tudo giraneste mundotudo gira

    Que eu gireem redor de ti não admira

    ROTAÇÃO

    Tudo gira

    neste mundotudo gira

    A lua em redorda terra e a terraem redor do sol e o sol

    em redor seja do que for

    E enquanto a lua

    gira em redorda terra e a terraem redor do sol

    e o sol em redorseja do que fora lua a terra e o solgiram tambémem redor do eixo

    que têm

  • 8/19/2019 Coletânea de textos- semana da leitura 2016

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    Escola Secundária/3 de Raul Proença|biblioteca 47

    “Não criei palavras que

    expliquem a música porque é no mistérioque reside a verdade.A sabedoria mais fina é aque distingue imagensno invisível.

     Não deixei espaços vazios,em todos os lugares existemalguma coisa.Para onde quer que sedirija o olhar, há sempre

    assunto: matéria ou corpo,esperança ou música.

    A visão não é exclusiva Assim diz a parábola: doisirmãos de pai e mãe;enquanto o mais novo ideali-zou que iria plantar videiras,o mais velho plantou;enquanto o mais novodesignou os dias e as horasem que iria regá-las, o mais

    velho regou;enquanto o mais novodescreveu a vindima, o maisvelho vendimou;e quando o mais novoimaginou o sabor dessas uvasque plantaria, o mais velhodeu-lhe um cacho das dele.o mais novo provou dois

     bagos e rejeitou o resto,as suas eram muito maisdoces.” 

    dos virtuosos ou dos queguardam as leis,todos podem usá-la consoan-te a sua necessidade,mas só os mais sensatos serãocapazes de apreciá-la comple-tamente.

    José Luís Peixoto , Em teu ventre, Quetzal, pág.96

    ( Não são as palavras que distorcem o mundo, é o medo e avontade. As palavras são corpos transparentes, à espera de umacor. O medo é a lembrança de uma dor do passado. A vontade é acrença num sonho do futuro. Não são as palavras que distorcem omundo, é a maneira como entendemos o tempo, somos nós.)

  • 8/19/2019 Coletânea de textos- semana da leitura 2016

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    Escola Secundária/3 de Raul Proença|biblioteca 48

    (…) O meu nome é Frank Bellamy e sou o responsável por

    uma das quatro direções da CIA. Ali o Don é analista do

    Directorate of Operations. Eu sou o chefe do Directorate

    of Science and Technology. O nosso trabalho no DS&T é

    pesquisar, conceber e instalar tecnologias inovadoras deapoio às missões de recolha de informação. Temos

    satélites que são capazes de ver uma matrícula no

    Afeganistão como se estivéssemos a meio metro de

    distância. Temos sistemas de intercepção de mensagens

    que nos permitem, por exemplo, ler os e-mails que o

    senhor enviou esta manhã para o Museu Egípcio no Cairo

    ou verificar os sites pornográficos que ali o Don consultou

    ontem à noite no seu quarto de hotel." O rosto pálido de Don Synder enrubesceu de

    vergonha, ao ponto de o jovem analista americano se ver forçado a baixar a cabeça."Em suma, não há uma rã neste planeta que seja capaz de dar um peido sem que nós

    saibamos, se assim o quisermos." Deixou os seus olhos hipnóticos penetrarem em

    Tomás. "Percebeu o nosso poder?"

    O português balançou afirmativamente a cabeça, impressionado com aquelaapresentação.

    "Sim."

    Frank Bellamy recostou-se na sua cadeira.

    "Good." Olhou pela janela para a relva fresca que resplandecia no jardim. "Quando aSegunda Guerra Mundial começou, eu era um jovem e promissor estudante de física na

    Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque. Quando ela terminou, eu estava a

    trabalhar em Los Alamos, uma terriola perdida no topo de uma colina árida do Novo

    México." Bellamy falava devagar, pronunciando muito bem as palavras e respeitando

     pausas compridas. "O nome Projecto Manhattan diz-lhe alguma coisa?"

    "Não foi aí que fizeram a primeira bomba atómica?"

    Os lábios finos do americano reviraram-se no que de mais parecido com um sorriso ele

    era capaz de esboçar.

    "Você é um fucking gênio", exclamou, com uma ponta de sarcasmo. Ergueu três dedos.

    "Fizemos três bombas em 1945. A primeira foi um engenho experimental que explodiu

    em Alamogordo. Seguiram-se