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Universidade do Estado do Rio De Janeiro Centro de Educação e Humanidades Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social Thiago Drumond Moraes Coletivo de trabalho e atividade dos ‘motoboys’: gênero profissional, saberes operatórios e riscos da atividade de trabalho Rio de Janeiro 2008

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Universidade do Estado do Rio De Janeiro Centro de Educação e Humanidades

Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social

Thiago Drumond Moraes

Coletivo de trabalho e atividade dos ‘motoboys’: gênero profissional, saberes operatórios e riscos da atividade

de trabalho

Rio de Janeiro 2008

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Thiago Drumond Moraes

Coletivo de trabalho e atividade dos ‘motoboys’: gênero profissional, saberes operatórios e riscos da atividade

de trabalho

Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Linha de pesquisa: Contemporaneidade e Processos de Subjetivação

Orientador: Prof. Dr. Milton Raimundo Cidreira Athayde

Rio de Janeiro 2008

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CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A

M827 Moraes, Thiago Drumond Coletivo de trabalho e atividade dos “motoboys”: gênero

profissional, saberes operatórios e riscos da atividade de trabalho / Thiago Drumond Moraes - 2008.

2 v.. Orientador : Milton Raimundo Cidreira Athayde. Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Ja- neiro. Instituto de Psicologia. 1.Trabalho – Aspectos psicológicos – Teses. 2. Segurança

do trabalho – Aspectos psicológicos – Teses. 3. Ergonomia – Teses. 4. Motociclistas – Teses. I. Athayde, Milton Raimundo Cidreira. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. III. Título.

CDU 159.9:331

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese. ___________________________________________ ___30/09/2008___ Assinatura Data

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DEDICATÓRIA

Aos motoboys, por todo sacrifício, audácia e criatividade para nos proporcionar um pouco de conforto em nossos prazeres cotidianos, pela resolubilidade na satisfação de nossas necessidades e desejos e pelo auxílio em nos poupar um pouco de tempo nas coisas do dia-a-dia. E à Roberta, a quem tanto amo.

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AGRADECIMENTO

À Roberta, pelas incontáveis idéias e contribuições que muito auxiliaram na

construção desta tese. Foram inestimáveis as sugestões, sem as quais a tese quase

não seria possível. Por essa razão é dificílimo ponderar qual tipo de apoio seu me foi

mais importante ao longo deste longo trajeto: se a partilha de uma vida a dois (que

por si só mereceria todo o crédito deste trabalho) ou se a riqueza teórico-conceitual

que muito contribuiu para o êxito da pesquisa. De qualquer modo, isso pouco

importa, uma vez que sempre pude contar com ela, independente por qual motivo

fosse.

Ao Milton, pela dedicação, paciência, tolerância e indescritível apoio

conceitual, epistemológico, filosófico e ético. Seus registros e comentários que

coloriram e guiaram minhas palavras e pensamentos, muitas vezes ingênuos ou

contraditórios, produzem agora em mim um sentimento de inevitável reverência pela

maestria e dedicação neste ofício tão pouco quisto neste país.

Aos meus pais, por tudo o que eu sou e possa vir a ser, sem necessitar mais

do que isso para dizer que essa tese é também deles. E aos meus irmãos,

cunhadas, primos e primas, tios e outros familiares, pelo carinho de sempre.

Aos colegas de pesquisa que estiveram direta e indiretamente envolvidos

neste trabalho, sem os quais essa tese não seria metade do que hora se apresenta.

Entre eles, um agradecimento especial à Roseanne, por convidar-me a fazer parte

desse grupo de pesquisa, e por muito mais; e ao Flávio, pelo incansável apoio nas

pesquisas de campo.

Aos colegas da Prefeitura, por tolerarem as ausências indesejáveis em que

me dedicava a algo mais. Entre estes, é especial a compreensão de Taciana, a

quem sou muito grato.

Às instituições que auxiliaram na coleta e disponibilização de informações,

entre eles um crédito especial ao SINDIMOTOS e à SETRAN.

Aos amigos do doutorado, pelos papos carinhosos entre amigos. E aos outros

amigos, por quem agradeço as risadas nos horários mais tensos.

Por fim, um agradecimento em especial aos motoboys, por partilharem

conosco suas vidas de coração aberto. Que esta tese possa tentar retribuir, um

pouco que seja, a esta dedicação sem a qual essa pesquisa seria impossível.

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RESUMO

MORAES, Thiago Drumond. Coletivo de trabalho e atividade dos ‘motoboys’: gênero profissional, saberes operatórios e riscos da atividade de trabalho. 2008. 435f. Tese (Doutorado em Psicologia Social) – Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.

Há cerca de 20 anos, inicia-se no Brasil uma atividade de trabalho nas áreas urbanas: o serviço de motoboys, que vem se tornando comum na distribuição de produtos aos clientes. Em paralelo ao crescimento dessa atividade ocupacional, a quantidade de motociclistas que se acidentam grave ou fatalmente nas vias brasileiras está em pleno crescimento, razão pela qual os motoboys vêm chamando atenção das autoridades de Saúde Pública. Tentando compreender as questões que estão na base e em torno desse fenômeno, inicia-se no país um pequeno, mas consistente, conjunto de produções acadêmicas sobre a profissão. Porém, ainda são poucos os estudos que procuram compreender a atividade de trabalho dos motoboys. Menos ainda, são os que investigam dimensões do coletivo produzidas pelos profissionais (tais como o coletivo de trabalho ou o gênero profissional), bem como seus efeitos na constituição de saberes, discursos, valores e estratégias de enfrentamentos aos diversos contraintes da atividade, em particular as dimensões do risco de acidentes de trabalho. Visando responder especificamente a essa questão, é que se propõe esse trabalho. Para tanto, desenvolveu-se uma pesquisa exploratória em duas perspectivas metodológicas: por um lado um levantamento quantitativo sobre diversos aspectos do trabalho dos motoboys, tais como o perfil do trabalhador, a organização do trabalho e alguns efeitos no trabalhador; essa etapa se deu por meio da aplicação de 189 questionários aplicados em uma amostra proporcional à população identificada de trabalhadores nos principais corredores viários do município de Vitória. Por outro lado, se empreendeu um estudo, baseado nos princípios da Ergologia e em diferentes abordagens clínicas do trabalho, especialmente a Clínica da Atividade e a Psicodinâmica do Trabalho, por meio do qual se pretendeu realizar uma análise da atividade de trabalho em parceria com os trabalhadores, procurando identificar as dimensões do coletivo que são produzidas por meio do trabalho, bem como os saberes e estratégias individuais e coletivas para lidar com as exigências, as pressões, as contradições e as eventualidades do cotidiano. Destaca-se, nessa etapa qualitativa, a realização de uma aproximação etnográfica dos trabalhadores e a utilização das técnicas da autoconfrontação e das instruções ao sósia, essas duas obtidas via Clínica da Atividade. Como resultado, observou-se a existência de inúmeros saberes produzidos e/ou partilhados pelo coletivo, tais como a avaliação dos serviços, a gestão do tempo, o planejamento da rota, a mobilização da rede solidária, a gestão das transgressões, os modos de conduzir, bem como as estratégias coletivas para lidar com o risco, dentre os quais se destacam a exploração positiva do risco e as estratégias baseadas na potência da virilidade, a capacidade de antecipação, ou o cuidado na proteção de si por meio da sinalização da presença do trabalhador em trânsito nas vias. Conclui-se, dessa análise, a existência de um coletivo de trabalho e, mais particularmente, de um gênero profissional em franca constituição. Este, em contrapartida, está eivado de inúmeras contradições e embates que, potencialmente, podem estar atuando para o impedimento da manifestação desse coletivo de trabalho em toda a sua potência.

Palavras-chave: Motoboy. Coletivo de Trabalho. Gênero Profissional. Saberes Operatórios. Riscos

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ABSTRACT MORAES, Thiago Drumond. Work collective and motorcycle couriers’ activities: professional gender, operatory knowledge and work activity risk. 2008. 435p. Thesis (Douctor in Social Psychology) – Social Psychology Post-Graduate Program, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.

About 20 years ago, initiated in Brazil's urban area a work activity: that of the motoboys, which has become common for the delivery of products to costumers. Parallel to the growth of this occupational activity, the number of grave and fatal accidents involving motorcycle riders on the Brazilian roadways have been increasing and calling the attention of public heath officials. In trying to comprehend the questions that surrounds this phenomenon, one can observe a small but consistent number of academic research that focuses on this profession. Still, despite these efforts, there remains only a limited number of studies which aim to comprehend this activity. Even less, are those who research the dimensions of the collective produced by the professionals (such as work collective or gender collective), as well as their effects on the constitution of knowledge, of discourse, of values, and of confronting strategies to diverse constraints of the activity, in particular de dimensions of accident risks. This thesis proposes to respond specifically to these questions. For this purpose, an exploratory research containing two methodological perspectives was developed. The first, a quantitative gathering of the diverse aspects of the courier’s job, such as the profile of the professional, the organization of the work, and some effects on the worker, made possible by the application of 189 questionnaires applied on a proportional population of the professionals who transits on the main roads of the city of Vitória. On the other hand, a study was developed, based on the principles of both Ergology and on different clinical approaches to work, especially the Activity Clinic and the Work Psicodinamics , through which one strived to accoplish an analysis of the work activity in partnership with the workers, aiming to identify the dimensions of the collective that are produced through the means of work, as well as knowledge, individual and collective strategies do deal with the demands, the pressures, and the contradictions and the eventuality of the everyday. It stands out in this qualitative stage, the development of an etnografic proximity of workers and the utilization of the auto-confrontations techniques and the instructions to the “look-alike”, being that these two were obtained thru the Clinical Activity. As a result, one can observe the existence of countless knowleges produced and/or shared by the collective, such as an evaluation of the services, time management, route planning, the mobilization of solidary network, the management of transgressions, the manners of conduction, as well as the collective strategies do deal with the risks, from which stands out the positive exploration of the risks and strategies based on the potential of virility, the capacity of anticipation, and the precaution of taking care of oneself by signaling the presence of the professionals in the street traffics. One concludes, from this analysis, that there exists a work collective, and more specifically, the existence of a professional genre which is in the process of construction. This, on the other hand, is contaminated by countless contradictions and resistance that could potentially be attenuating towards impeding the manifestation of this work collective in all its potential.

Keywords: Motorcycle courier. Work collective. Professional gender. Operatory knowledge. Risk.

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LISTA DE ABREVIATURAS

AET – ANÁLISE ERGONÔMICA DA ATIVIDADE CLT – CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS TRABALHISTAS CONTRAN – CONSELHO NACIONAL DE TRÂNSITO DD3P – DISPOSITIVO DINÂMICO DE 3 PÓLOS DETRAN – DEPARTAMENTO ESTADUAL DE TRÂNSITO DENATRAN – DEPARTAMENTO NACIONAL DE TRÂNSITO DPVAT – SEGURO OBRIGATÓRIO DE DANOS PESSOAIS CAUSADOS POR

VEÍCULOS AUTOMOTORES DE VIA TERRESTRE INSS – INSTITUTO NACIONAL DE SEGURIDADE SOCIAL MOI – MODELO OPERÁRIO ITALIANO MPT – MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO, 17ª REGIÃO/ES MS – MINISTÉRIO DA SAÚDE PDT – PSICODINÂMICA DO TRABALHO SAMU – SERVIÇO DE ATENDIMENTO MÓVEL DE URGÊNCIA SEMUS – SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE DE VITÓRIA SETRAN – SECRETARIA MUNICIPAL DE TRANSPORTE E TRÂNSITO DE VITÓRIA SIM – SISTEMA DE INFORMAÇÃO DE MORTALIDADE SINDIMOTOS – SINDICATO DOS MOTOCICLISTAS DO ESPÍRITO SANTO SUS – SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE

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LISTA DE FIGURAS, TABELAS E GRÁFICOS FIGURAS Figura 1 - Coeficiente de mortalidade anual de trabalho (CM) segundo ramo de

atividade econômica ________________________________________ 27 Figura 2 - Acidente com transporte terrestre_______________________________29 Figura 3 – Atropelamento ____________________________________________ 29 Figura 4 - Acidente com moto _________________________________________ 30

TABELASTabela 1 - Evolução da frota de veículos no Brasil - 1998 a 2006 _____________ 30 Tabela 2 – Frota, acidentes com motos e acidentes por 1.000 veículos no município de Vitória _________________________________________________________ 31 Tabela 3 – Número de óbitos por acidentes de transporte terrestre no Brasil, 2003, de acordo com o meio de transporte da vítima. ___________________________ 32

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SUMÁRIO VOLUME 1 INTRODUÇÃO ..........................................................................................................12

Tateando entre tantos dados... ...inexistentes............................................................ 23 Acidentes de transportes terrestres: uma experiência de “darwinismo social” .............................. 24 A situação dos acidentes de trânsito e de trabalho no Brasil: motoboys na frente de batalha ... 26 Dados de mortalidade por acidentes de transporte ........................................................................... 28 Fatores de risco e de proteção: coletivo de trabalho operando como defesa da vida? ............... 33

1. DEFINIÇÕES ÉTICO-EPISTEMOLÓGICAS, TEÓRICAS E METODOLÓGICAS 45 Quadro geral da pesquisa ............................................................................................... 47

Ergonomia ................................................................................................................................................ 53 Modelo Operário Italiano de luta pela saúde – MOI........................................................................... 55 Psicodinâmica do Trabalho.................................................................................................................... 57 A Clínica da Atividade............................................................................................................................. 61 A Ergologia e o Dispositivo dinâmico de três pólos – DD3P ............................................................ 66

Um coletivo em análise: alguns métodos e técnicas em aplicação............................ 72 Os instrumentos e técnicas de pesquisa utilizadas e os métodos de registro e de análise dos dados......................................................................................................................................................... 76 Pesquisa e análise bibliográfica ............................................................................................................ 76 Análise de dados epidemiológicos ....................................................................................................... 77 Construção de uma rede de relações e legitimidade com os trabalhadores ................................. 78 Diário de campo....................................................................................................................................... 80 Entrevistas ................................................................................................................................................ 81 Dispositivos técnicos de debates sobre o trabalho ............................................................................ 82 Os dispositivos técnicos das instruções ao sósia e da autoconfrontação cruzada....................... 85 Aplicação de questionários .................................................................................................................... 95 A análise das informações produzidas ................................................................................................ 96

O grupo de pesquisa e as implicações pessoais/ institucionais em torno da pesquisa............................................................................................................................ 98

O encontro com os trabalhadores, as questões da amostra e a legitimação da pesquisa.......... 99 2. DEBATES SOBRE O TRABALHO DO MOTOBOY: EM BUSCA DO ESTADO DA ARTE ......................................................................................................................108

Primeiros passos da profissão: as condições sócio-econômicas no contexto do surgimento dos serviços de entrega rápida................................................................ 110 Motoboys, uma nova figura social: sintomas de uma nova era ................................ 115 O que os estudos realizados nos apresentam até então? ......................................... 120

O lugar do acidente no trabalho dos motoboys: perspectivas da saúde ...................................... 123 O lugar do motoboy nos acidentes de trabalho: perspectivas da vítima ...................................... 136 O lugar do trabalho nos acidentes de motoboys: perspectivas da atividade ............................... 140

3. ASPECTOS GERAIS DA PROFISSÃO E DO MOTOBOY.................................151 Uma pessoa ingressa na profissão .............................................................................. 151 A atividade dos motoboys: alguns aspectos das condições de organização do trabalho ........................................................................................................................... 159

Tipo de vínculo....................................................................................................................................... 166 Remuneração......................................................................................................................................... 168 Posse da moto ....................................................................................................................................... 175 Benefícios ............................................................................................................................................... 176 Sindicato ................................................................................................................................................. 177 Treinamento ........................................................................................................................................... 178 Satisfação com a profissão .................................................................................................................. 180 Tempo de trabalho na profissão ......................................................................................................... 180

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A atividade dos motoboys: algumas contraintes da profissão ................................. 186 Horas de trabalho e de pilotagem....................................................................................................... 188 Horas de sono........................................................................................................................................ 193 Pausas no trabalho: lanche, almoço e férias .................................................................................... 194 Multas...................................................................................................................................................... 195 Pressão e tempo ................................................................................................................................... 199 Acidente .................................................................................................................................................. 203 Análise dos acidentes de moto e motoboys: algumas possíveis ponderações ........................... 207

VOLUME 2 4. OS SABERES DA ATIVIDADE DOS MOTOBOYS: COMPETÊNCIAS PRODUZIDAS PELOS TRABALHADORES..........................................................214

Limites da prescrição: variabilidades .......................................................................... 219 Saberes em movimento ................................................................................................. 223

Avaliação (e negociação) do serviço demandado............................................................................ 223 Planejamento Temporal das Tarefas ou gestão do tempo ............................................................. 229 Planejamento da Rota .......................................................................................................................... 240 Mobilização de rede solidária pertinente ........................................................................................... 246 Disponibilização e mobilização comunicacional ............................................................................... 251 Gerenciar transgressões ...................................................................................................................... 256

A complexidade do trabalho ......................................................................................... 264 Raciocínio de resolubilidade ................................................................................................................ 266 Atividades cognitivas no trabalho ....................................................................................................... 270

Primeiras conclusões .................................................................................................... 273 5. SISTEMAS DEFENSIVOS EM CONSTITUIÇÃO: ENTRE O RISCO, A VIRILIDADE E A SOLIDARIEDADE ......................................................................276

Saber pilotar ................................................................................................................... 280 Dinâmicas de risco e afirmação de si: exploração positiva dos riscos.................... 291 Modos de lidar com o risco: sistemas defensivos em torno do “olhar” .................. 310 Outras conclusões ......................................................................................................... 327

6. ENTRE O DRAMA E O PRAZER DE SER MOTOBOY: UM GÊNERO EM CONSTRUÇÃO.......................................................................................................329

O ingresso e a permanência na profissão ................................................................... 329 A produção de uma profissão e de um profissional................................................... 335 Dimensões coletivas no trabalho dos motoboys........................................................ 343

O conceito de gênero profissional na Clínica da Atividade............................................................. 345 O conceito de coletivo de trabalho em Psicodinâmica do Trabalho, especialmente em Cru ... 350 O coletivo de motoboys ........................................................................................................................ 357 Entraves para o coletivo ....................................................................................................................... 367

O futuro da profissão: efeitos sobre os processos de subjetivação ........................ 376 POSSÍVEIS CONSIDERAÇÕES E ALGUMAS INDAGAÇÕES.............................382 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................................392 ANEXO I..................................................................................................................404

Questionário aplicado entre os Motoboys................................................................... 404

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INTRODUÇÃO

As motocicletas certamente invadiram nosso cotidiano. Se olharmos para uma

rua ou avenida qualquer, desde favelas, bairros de periferia ou regiões de altíssimo

nível sócio-econômico, não ficamos 5 minutos sem presenciar uma moto cruzando

nosso campo de visão. Algumas vezes é um desagradável barulho do escapamento

das motos que atrapalha a cena romântica da novela das oito; outras, é um

engraçadinho que nos assusta cruzando em nossa frente, nos tediosos

engarrafamentos; muitas vezes, é o conforto de uma pizza quentinha que chega

pelas mãos de um motoqueiro na noite chuvosa de um domingo preguiçoso. As

motos fazem parte do cotidiano das pessoas há um bom tempo, mas é muito recente

a explosão de consumo desse meio de transporte que traz consigo a marca de uma

tradição bastante emblemática.

Anos 1940-1960. Os motoqueiros fizeram história no pós-guerra americano:

rebeldia, liberdade, audácia ... A moto se converte em um símbolo fálico? A jaqueta

de couro, o óculo escuro, o vento no rosto (sem capacete, diga-se de passagem!). O

rock’n’roll incorpora ares dessa postura de enfrentamento que os motoqueiros

manifestavam. À moto se une a fala dos guetos, dos jovens, dos indesejados e vai

se tornando fonte de identidade para as multidões de meninos e meninas que

pressionam ao limite as instituições disciplinares. A iconografia em torno do

motoqueiro auxilia esse movimento. Por exemplo, a postura do corpo nas motos

mais desejadas dessa época muito nos revela: sentada de perna bem aberta,

confortavelmente empunhando o falo aos ares, braços que manuseiam um

equipamento potente com uma destreza inimaginável, cabeça levemente lançada

para trás, como quem olha as coisas com um ar de uma tranqüila superioridade; a

velocidade não se manifesta com o esforço; o que importa é a sensação de

autoconfiança e poder. É a força de um homem viril que mostra que é capaz de

domar e dominar um instrumento tão poderoso. A moto substitui o cavalo. Um novo

cowboy, ainda mais confortável, mais autoconfiante, mais impertinente. Certamente

que essa imagem é transformada em estigma, trabalhada comercialmente,

objetificada em expropriação e mais valia – aliás, um prenúncio de uma outra forma

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de mais valia que se tornará, com o tempo, cada vez mais importante1. Mas, de

qualquer modo, é uma marca que se produz e reproduz como forma de vida e de

viver. As motos não apenas conduzem as pessoas: elas produzem meios de se

conduzir (a si, o corpo, a vida). É verdade que rebeldia e busca por experimentação

de novas formas de se viver não são novidades dessa era. Jovens fizeram isso

durante muito tempo. A novidade desse modelo de identificação que emergia era

exatamente o fato de que um determinado modo de ser jovem se tornava, pouco a

pouco, um fenômeno de massa. A experiência de um capitalismo midiático construía

um modo de ser que não era mais puramente um processo de subjetivação, mas

que cada vez mais comum, se destacava também como produto comercializável.

Anos 1990-2000. A sensação de liberdade e rebeldia já deixa de ser uma

novidade de massa. O modo jovem de ser, que nunca fora de fato tão único assim,

esfacela-se agora em dezenas de imagens diferentes, cada qual com suas

vestimentas, sua linguagem, seus sonhos e valores. O enfrentamento direto e a

violência parecem ser sinais tão importantes para os “indesejados” quanto a moto

representara outrora. Porém, o que se empunha agora não é mais algo tão simbólico

como a motocicleta: o símbolo da rebeldia é um fuzil apontado para cima, dando

rajadas seguidas em meio à multidão. Essa imagem se vê na Palestina, em Bogotá

ou no Rio de Janeiro. A moto já não é mais sinal de ousadia. Algo muda nesse

cenário. Porém não dá para deixar de pensar nela. Ela também anuncia algo de

nossa era; um fenômeno igualmente de massa. Se utilizarmos a mesma referência

acima, poderemos extrair da iconografia da moto que se deseja atualmente uma

outra imagem do corpo. As motos que são símbolos da nossa era não representam,

como outrora, a postura de um domínio de um equipamento rebelde e perigoso,

como se a moto fosse um animal selvagem para se adestrar. A postura do corpo

muda radicalmente: ele é lançado contra a moto, quase que se colando o peito a ela.

A cabeça ser torna quase que a primeira parte desse corpo que é também máquina.

Ele se projeta tal qual a ponta de um foguete. Os pés para trás reforçam essa idéia.

O que se deseja por essa imagem não é impor o respeito pela sua presença

ameaçadora. Na verdade, o capacete incorpora-se à imagem, não importando nem

muito que o motociclista seja reconhecido. O poder que se manifesta por esse tipo

de moto é, agora, representada pela capacidade de se tornar veloz. Já não mais

1 Sobre as transformações nas formas de exploração do trabalho vivo na contemporaneidade, ver Hardt & Negri, 2001. Moraes, 2002.

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uma potência pela liberdade e pela imagem amedrontadora. O poder se faz agora

pela rapidez e pela capacidade que esse motociclista possui de mudar de lugar, de

se mover, na rapidez com que deseja. O prazer não é o vento no rosto, mas a

explosão dos sentidos cinestésicos lançado em velocidades inimagináveis há

poucos anos atrás. O corpo não domina mais a moto. Ele é a moto, que é ele. Moto

e corpo são partes de um mesmo todo, de uma espécie de máquina biocinético-

mecânica. A tecnologia não invadiu nossas vidas. Nós nos tornamos tecnologia. A

liberdade não é um desejo de consumo. O que se deseja é a possibilidade, a

intensidade e a velocidade de se viver essa liberdade – mesmo que fugaz.

Em suma, a motocicleta já não é mais o símbolo de uma juventude. Até

porque atualmente não há mais apenas um símbolo – se é que alguma vez

houvesse apenas um. Contudo, o que a moto fora outrora, deixara resquícios na

maneira em que milhões de brasileiros e brasileiras a vêem atualmente. Esses

brasileiros mantêm com suas motos, e pelo que elas permitem em termos de prazer

e modos de viver, uma relação especialmente particular. À virilidade de outrora,

soma-se a velocidade de hoje. À destreza sobre esse equipamento que lhe conduz a

espaços inimagináveis, soma-se a simbiose de compartilhar-se como máquina. À

ousadia soma-se a urgência. A pressão que atualmente vivemos em torno “do

momento”, a necessidade de fluidez das vias de circulação (de qualquer coisa:

carros, informação, pessoas), o incessante movimento de bens e “cidadãos” (para

não dizer “consumidores”), tudo isso impõe ritmos que se tornam paradoxalmente

prazeres e angústias, mas que de uma forma ou de outra, são experimentados

quase que como uma forma de ser. Imbuído dessas subjetividades, o motociclista,

de maneira “sagaz”, aproveita as brechas que não foram deixadas para ele. Ele é

que sabe se aproveitar delas!

Curiosamente, entretanto, um movimento ocorre especificamente aí, nesse

ponto em que o motociclista aprende a transitar no intransitável: é nesse exato

momento que ele deixa de ser símbolo e passa a se tornar ferramenta. Sua utilidade

iconográfica de antes dá lugar à sua capacidade de acelerar a máquina do capital.

De prenúncio da era de um novo capital – de imagens, de subjetividade, de serviços

– o motociclista passa a ser o motor que torna possível a existência desse novo

sistema econômico-político. Num trânsito sitiado, o capital da velocidade e da

mobilidade é azeitado pelas motos que vencem os obstáculos. O trabalho imaterial

se materializa dramaticamente nos corpos de jovens que vivem essa experiência

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como trabalho, como prazer, como aventura, mas também como sofrimento, susto,

risco, dor e perdas. São milhares de jovens no Brasil que cotidianamente carregam o

Brasil “nas costas”: documentos, medicamentos, alimentos, produtos de informática,

grãos, pequenos objetos, cartuchos de impressão, cartas, dinheiro em espécie, etc.

Nas grandes cidades, o trabalho desses motoqueiros já é um fenômeno conhecido

há anos. Mas o fenômeno está se espalhando também para as cidades menores. Os

motoboys2 inquestionavelmente fazem parte do cotidiano e não mais como uma

figura estranha ao cenário urbano, mas como um personagem comum. O tempo

inteiro lidamos com ele, mesmo sem perceber. Porém, o que não percebemos é que

os conhecemos tão pouco.

Talvez uma pequena viagem nos aproxime da experiência cotidiana desse

personagem: uma viagem imaginária. Imagine-se morador de uma grande cidade

(Rio, São Paulo, BH ou Salvador). Imagine-se um motorista dessa cidade, que utiliza

cotidianamente seu carro para trabalhar e que diariamente pega um trânsito lento no

retorno para sua casa. Imagine agora que, numa determinada sexta, mais ou menos

18h, em horário de verão, o sol ainda quente e seu carro sem ar-condicionado, ao

sair cansado do trabalho em uma semana em que um grande projeto foi

apresentado, você encontra mais uma vez o trânsito muito lento, porém, mais lento

do que o usual. E por azar, nesse dia em particular você está extremamente

nervoso(a) porque tem que pegar seu filho(a) na escola, pois seu(sua)

companheiro(a) teve um problema no trabalho, não podendo pegá-lo(a) como era

habitual naquele dia. Ao longo dos 2 km de congestionamento, inúmeras motos vão

cruzando por você em alta velocidade, zigue-zagueando entre os carros sem parar.

Que ousadia!!! Ou que inveja(??!!), você pensa. Como esses motoqueiros são

abusados! Absorto nesses pensamentos, você sente um ligeiro tranco no carro e um

barulho do lado direito. No susto, percebe que uma dessas motos bateu em seu

2 Escolhemos a utilização do termo motoboy por duas razões: em primeiro lugar porque se trata do termo mais comumente utilizado pelas pessoas para se referir à profissão. Alguns pesquisadores preferem o termo motociclistas profissionais (DINIZ, 2003), mas a maioria utiliza sua grafia popular. Acreditamos que a utilização do termo motoboy facilite a consulta bibliográfica, uma vez que ainda não há consenso entre termos alternativos. Uma outra opção seria profissional de moto-frete ou de moto-entrega, conforme sugere a proposta de regulamentação da profissão no município de Vitória. Já os sindicatos de motociclistas espalhados no país preferem o termo motociclista profissional. Da parte dos motoboys, e esse é o segundo motivo para a utilizarmos o termo, motoboy representa melhor a categoria, já que outros termos muito utilizados, como motoqueiros, são avaliados como pejorativos pela sociedade. Por outro lado, termos como motociclista ou motociclista profissional são avaliados como demasiados formais. Dessa maneira, o termo motoboy é aceitável pela maioria das pessoas da categoria. Poucos motoboys avaliam o termo negativamente. Utilizaremos-lhe provisoriamente enquanto a categoria se decide por outro melhor. O curioso, porém, é que poucos motoboys referem-se a outros motoboys por meio deste nome. O uso mais comum é motoqueiro. Quanto a esse aspecto, algumas discussões apresentadas ao longo da presente pesquisa permitem propor possíveis explicações.

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retrovisor, arrancando-o sem piedade. Mal deu para ver a cor do capacete... A

placa?!?! Impossível!!! A raiva lhe consome. Xinga-o em altos berros. Como num

vendaval, lá se vai a moto sumindo, se escondendo por entre os carros. Que abuso,

que ignorância, quanta imprudência. Talvez você chegue a desejar que esse mal-

caráter se acidente, para aprender a ser mais atencioso.

Ainda remoendo a raiva que não para de lhe corroer o fígado, seu carro vai

conduzindo-o até a cena que causava o tumultuado congestionamento. Por entre

uma pequena multidão de curiosos, o primeiro sinal visualmente reconhecido foi um

conjunto de cacos estilhaçados no chão. Um pouco mais adiante, uma dupla de

para-médicos socorrendo uma vítima acidentada. Abaixo dele muito sangue, que

pingava da região da perna do condutor. Você não consegue ver muito bem o que

estava acontecendo, apenas percebe que o indivíduo estava desfalecido. Será que

estava morto? Esse pensamento aperta-lhe o coração. Um pouco mais adiante, sob

os pios incessantes dos agentes de trânsito que tentam dar agilidade ao

congestionamento, tenta olhar um pouco mais apressado aquela cena que se recusa

a se congelar para ti. Você quer compreendê-la melhor. De relance, vê um capacete

caído no chão, junto à moto tombada que porta um baú semi-aberto por onde voam,

como que pássaros assustados fugindo da gaiola, alguns documentos lançados ao

vento. Seu coração congela por um instante. Entre raiva, pena, arrependimento e

felicidade, você cai de novo na realidade quando o caminhão de bebidas que estava

atrás de você dá uma grande buzinada, como que dizendo: “Ei, colega. É hora de

seguir adiante!!! O trânsito está agora livre”. Você acelera, pensa que está

atrasado(a) e esquece aquela cena horrível.

O motoboy ficou para trás. Possivelmente morto ao “beijar” indevidamente o

quente asfalto. As duas cenas presenciadas agrupam-se em sua cabeça numa

constatação óbvia: um motoboy arranca-lhe o retrovisor. Outro, logo adiante,

acidenta-se. Logo, como num raciocínio cartesiano, motoboy é tudo imprudente e se

acidentam exatamente por isso.

Espero que essa viagem não tenha sido tão interessante, até porque são

retratos de fatos que acontecem todos os dias neste país. Acredito que muitos de

vocês já tenham presenciado alguma parte dessa seqüência e muito provavelmente

tenham chegado à mesma constatação: “motoboy é tudo louco”.

Ora, não é a toa que essa frase povoa o imaginário da população brasileira.

Eles realmente fazem coisas impressionantes e assustadoras no trânsito. Mas será

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que essas loucuras são suficientes para explicar, por si só, os acidentes a que estão

submetidos? Será que bastaria ensinar-lhes a ter prudência no trânsito para evitar

que acidentes acontecessem? E a dimensão do tempo, sempre curto para você,

para o sujeito que contrata o serviço da empresa de motoboy, para o patrão do

motoboy e, portanto, para o motoboy? Será que o tempo não tem um papel

importante nessa loucura? E os espaços? Será que naquele dia da história acima,

se você pudesse encolher o seu carro, você também não passaria por entre outros

veículos, roubando as brechas deixadas “sem querer” por outros motoristas, sem

nem pensar em olhar para trás? Será que isso é loucura? E o tal motoboy que

arrebentara o seu retrovisor; como será que ficara ao presenciar a mesma cena que

você? Será que ele era louco o suficiente para nem ligar para o que acabara de ver?

Será que a visão de uma morte anunciada, em uma pessoa que realiza atividades

como a dele, não é suficiente para fazê-lo pensar sobre si, sobre sua vida, sobretudo

sobre seu modo de conduzir-se no trânsito? Será que não é exatamente pelo fato de

que ele realmente aprendeu a ter prudência, e por isso, pela prudência aprendida,

que consegue estar vivo, fazendo as loucuras que faz, enquanto outros perecem por

aí?

Compreendemos a necessidade das pessoas em se prenderem em

conclusões apressadas diante de uma situação quase incompreensível e bastante

complexa como o trânsito no Brasil: o trânsito é uma bagunça, as vias estão em

péssimo estado, não há sinalização adequada e as pessoas não respeitam ninguém.

Como os motoboys são parte desse trânsito, e como testemunhamos as loucuras

que são também propaladas pela TV, o raciocínio que nos é caracteristicamente

lógico nos conduz a interpretar que esses profissionais são todos loucos, que se

arriscam para dar conta de pressões enormes e que o motor desse mecanismo é a

remuneração por produtividade, ou seja, a pressa está atrelada à vontade e à

necessidade de ganhar um pouco mais. O problema aqui, entretanto, não está no

fato de que as pessoas pensam dessa maneira. O que parece mais revelador está

na maneira como as autoridades e os pesquisadores vêm pensando a situação. E é

aí é que reside o principal problema que enfrentamos.

Tivemos a oportunidade de presenciar algumas discussões junto a técnicos

do Programa de Saúde do Trabalhador da Secretaria Municipal de Saúde de Vitória

(SEMUS), e com técnicos da Secretaria Municipal de Transporte e Trânsito da

mesma cidade (SETRAN). Surpreendeu-nos de imediato o completo

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desconhecimento que esses técnicos tinham da realidade cotidiana do trabalho dos

motoboys. Seus discursos eram, geralmente, muito semelhantes ao do senso-

comum. Poucos conheciam a realidade de trabalho dos motoboys ou tinham tido

qualquer contato com esses profissionais. O único contato com os motoboys,

quando existente, se dava por meio dos representantes sindicais da categoria.

Entretanto os problemas não param aí. Recentemente este município iniciou uma

discussão visando regulamentar a atividade profissional dos motofretistas3 na

capital. Entre as bases de coletas das informações que forneciam as diretrizes para

a regulamentação da profissão dos motofretistas encontravam-se uma Notificação

Recomendatória de 2006 do Ministério Público do Trabalho da União (MPT-17ª

Região/ES), as informações do Sindicato dos Motociclistas do Espírito Santo

(SINDIMOTOS), as experiências de outros municípios (em particular Goiânia e São

Paulo), bem como dados de alguns levantamentos amostrais realizados pela própria

SETRAN. Obtivemos acesso a alguns desse conjunto de dados, os quais, após

análise, nos chamaram atenção as seguintes questões:

a) entre os dados coletados pela SETRAN – acidentes de trânsito com e

sem vítima, perfil dos motociclistas, etc. –, nenhum deles especificava

detalhadamente informações sobre aspectos da atividade dos

motociclistas trabalhadores;

b) a Notificação Recomendatória do MPT de 19 de dezembro de 2006

tratava de temas jurídicos gerais – tais como contratação formal de

mão de obra, implantação e manutenção de programas de Saúde e

Ocupacional e Segurança, equipamento de segurança, seguro de vida,

período da jornada de trabalho, etc. – e não explicitava discussões

específicas em torno da realidade de Vitória, salvo em raros pontos,

tais como a recomendação de não estipulação de prazo mínimo de

tempo para cumprimento das tarefas. O que nitidamente se destacava,

nesse documento, era a sinalização da necessidade de se respeitar às

normas legais, mais particularmente à Consolidação das Leis

Trabalhistas (CLT). Além disso, traziam também alguns

encaminhamentos quanto às questões legalmente descobertas que

3 Nome oficial dos motoboys nessa cidade. Em algumas ocasiões, poderemos utilizar os nomes de motofretistas, ou moto-entregadores. Em todas essas ocasiões, tratamos do mesmo profissional, os motoboys. A decisão pelo uso desses termos em algumas situações dependerá apenas de questões contextuais do parágrafo ou por motivação de natureza literária. Essa decisão não possui nenhum fundamento teórico.

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emergiram quando do surgimento da prática profissional, entre as

quais a segurança dos trabalhadores motociclitas;

c) as experiências de outros municípios e setores de trabalho são tidas

como referência, porém em nenhum momento se as contextualiza em

seus municípios de origem; ou seja, a experiência é simplesmente

transportada da realidade em que foi produzida para a realidade

capixaba. Da mesma forma, em nenhum momento se analisam e

comparam as pesquisas e outras informações que os municípios-fonte

utilizaram para gerar suas legislações regulamentadoras com os dados

de Vitória. De maneira semelhante, foram feitas apropriações dos

dados fornecidos pelas experiências de treinamentos para

motociclistas dos Correios, da AMBEV, da HONDA, etc, treinamentos

esses que geralmente tratam de assuntos de direção defensiva e de

modos de trabalho muito convenientes às relações trabalhistas

tradicionais (uma empresa com vários contratados formais que estão

cotidianamente confinados a uma mesma regulação de tempo, salário,

etc.). Essas experiências, em que pesem sua importância, também não

foram comparadas às realidades locais;

d) as informações provenientes do SINDIMOTOS são baseadas nas

experiências e idéias do Presidente e Diretores. Estes não utilizaram

nenhum tipo de pesquisa, mesmo que de opinião, sobre as situações

reais dos seus afiliados e os interesses legitimados pela categoria. Isso

se não contarmos com o fato de que, além de tudo, parte importante

dos profissionais (independente de que se sentem ou não

representados em alguma medida pelo sindicato), nem fazem parte

das estatísticas oficiais desse órgão, na medida em que são

contratados de maneira informal ou são filiados a outros sindicatos.

Enfim, percebemos de imediato que os técnicos das secretarias se

sustentavam em informações importantes, mas que careciam de uma investigação

mais específica sobre a realidade do município.

Também no campo científico a realidade não é diferente. Pouquíssimas

pesquisas foram realizadas sobre o assunto, independentemente se de órgãos

oficiais ou de universidades. Como veremos logo adiante, o desconhecimento é

geral tanto do ponto de vista epidemiológico, quanto populacional. Dessa maneira, o

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trabalho dos motoboys é paradoxalmente bastante conhecido pelas pessoas de uma

forma geral, ao mesmo tempo em que é muito pouco valorizado socialmente e

extremamente desconhecido do ponto de vista da realidade de quem o vive

cotidianamente. E quando nos referimos sobre o ponto de vista da realidade de

quem o vive, não estamos pretendendo limitar ao ponto de vista da atividade não.

Não se conhece quem é o motoboy, qual é a sua média de idade, quanto tempo

exercita a ocupação, o tempo de condução de moto, sua escolaridade. O que existe

são, em geral, conjecturas, suposições e deduções sobre esse trabalhador e o

exercício de sua profissão.

Sem dúvida, uma correta compreensão da realidade desses trabalhadores

permitiria a elaboração de programas públicos de atenção mais adequados às reais

necessidades e reivindicações dos motoboys. Políticas públicas descontextualizadas

podem significar perda de tempo, acréscimo das tensões sociais e solapamento dos

interesses da coletividade. Para dar um exemplo, basta retomarmos o projeto de

regulamentação da profissão de Vitória. Um dos itens desse projeto prevê que os

motoboys possuam motos novas para a realização do trabalho (motocicletas com

até 05 anos de funcionamento). Essa proposta provavelmente não seria um

problema inicialmente, pois os dados de nossa pesquisa indicam que é grande a

quantidade de motoboys com motos novas. Além disso, os próprios profissionais

reconhecem a importância de motos estarem em bom estado de funcionamento,

pois mais do que ninguém, eles são os mais interessados em vê-las funcionamento,

até porque sabem que não podem ficar muito tempo sem moto, o que significaria

ficar sem salário! Entretanto, a proposta não está atrelada a nenhuma forma de

debate sobre como essa norma pode ser atingida. Considerando-se os baixos

salários desses trabalhadores e a dificuldade de obter financiamento em bancos ou

lojas de vendas de motos, a proposta de regulamentação poderá conduzir a um

estrangulamento financeiro do coletivo de trabalhadores em pouco tempo. Outro

exemplo é a exigência de que a moto seja exclusiva para uso no trabalho, o que é

extremamente impensável para o trabalhador que, além de não possuir recursos

para uma segunda moto ou outro meio de transporte, faz uma preparação especial

para que a moto seja utilizada confortável e seguramente no trabalho e fora dele.

Esses dois pontos foram muito criticados quando os colocamos em debate junto aos

profissionais que, em tese, não são totalmente contra projetos de regulamentação,

mas que os vêem com muitas reservas.

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Uma solução para atingir as normas acima estabelecidas seria construir

políticas de facilitação de abertura de crédito para renovação da frota pelos

trabalhadores, processo que poderia ser intermediado pela Prefeitura de Vitória ou

pelo Governo do Estado do Espírito Santo, por meio da redução do imposto para a

aquisição de motos de trabalho. Entretanto, sem o conhecimento dos salários dos

motoboys, das dificuldades de obtenção de crédito e do padrão de uso das

motocicletas, será muito improvável que as soluções mais adequadas emerjam. Um

grande movimento dos trabalhadores em setembro de 2007 paralisou

temporariamente a continuidade da construção desse projeto. Os motivos da

paralisação não estavam ligados diretamente aos termos propostos na proposta de

regulamentação, conforme jornal A TRIBUNA (2007). Porém, coincidentemente ou

não, alguns meses antes da paralisação, algumas matérias de jornais divulgavam

algumas das propostas do projeto de regulamentação da prefeitura (A TRIBUNA,

2006a; 2006b). Será que a parada do projeto de regulamentação teve a ver com

essa paralisação? E será que este projeto teria parado por tanto tempo se as

discussões para sua elaboração tivessem partido de conhecimentos mais

pertinentes à realidade da profissão?

Diante desse cenário de desconhecimento sobre o ponto de vista de quem

vive a realidade cotidiana do trabalho de motoboys, e na expectativa de produzir

informações mais apropriadas para qualificar o debate hora existente sobre o

trabalho dos motoboys que se propôs a realização dessa pesquisa. Para esse

empreendimento, partimos de pressupostos ético-político-epistemológicos

desenvolvidos e partilhados por uma longa tradição de pensadores que compreende

a atividade humana – sobretudo a atividade de trabalho – como um dos elementos

centrais na (re)produção e transformação do mundo, das sociedades e das pessoas.

Por meio desses pressupostos entendemos que a atividade de trabalho está

atravessada por inúmeros interesses contraditórios e valores conflitantes.

Com o advento do capital e a massificação dos trabalhadores enquanto força

de trabalho (para o capital) em contrapartida à emergência de projetos alternativos

ao modo de produção capitalista, os interesses e valores do trabalhador coletivo

enquanto classe social têm sido objetos de investigação de várias abordagens de

diferentes disciplinas científicas, entre as quais, encontram-se algumas

legitimamente compromissadas com a transformação social e a urgência de

compreender a experiência dos protagonistas da atividade e sua incorporação à

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investigação. É especificamente desse patrimônio que buscamos nos aproximar.

Entre eles, tendo na perspectiva ergológica sua melhor formulação global

(Schwartz), nos afinizamos particularmente por pesquisadores de linhagens ligadas

à Ergonomia da Atividade (escola originalmente francofônica, de Wisner a

Daniellou), à Clínica da Atividade (Clot, Faïta) e à Psicodinâmica do Trabalho

(Dejours, Cru).

Pretendemos deixar claro que não tentamos fazer nenhuma espécie de

Psicologia no Trânsito, mas de trazer ao centro do debate existente uma

determinada realidade – dos motoboys – a partir do ponto de vista de quem a vive

cotidianamente. Não para argumentar que esta realidade é a realidade, a mais

correta, a que deve ser seguida por quem se interessar por ela. Pelo contrário. Nem

os próprios motoboys possuem total consciência da complexidade de tudo que eles

mesmos põem em funcionamento em suas atividades cotidianas (ou melhor, eles

parcialmente sabem sem saber). Porém, como a escuta do trabalhador é em geral

minimizada ou desqualificada pelas pessoas, o que pretendemos é trazer para o

diálogo sinérgico este ponto de vista no mesmo nível de importância de outros

discursos, tais como os dos agentes de trânsito, os dos técnicos da saúde e o da

mídia.

Antes, entretanto, de adentrarmos nos objetivos da pesquisa, a saber, a

compreensão das características, efeitos e limites do coletivo de trabalho dos

motoboys na produção de modos operatórios, de valores e de enfretamentos

coletivos aos contraintes4 da atividade profissional, devemos compreender um

pouco melhor o cenário em que se desdobra essa profissão e como os parcos

conhecimentos que temos sobre o trabalho e sobre os acidentes envolvendo

motoboys justificam o dispêndio de energia para a realização de tal empreitada.

4 Mantivemos este termo em francês de acordo com as orientações de Athayde (nota de rodapé em SCHWARTZ, 2004) que, na tradução e revisão técnica da tradução de alguns textos da Ergonomia e Ergologia, vem se deparando com a dificuldade de encontrar um termo adequado que traduza adequadamente o sentido de contraintes. De acordo com Athayde, o uso do termo exigências não seria adequado, uma vez que vários autores franceses diferenciam contraintes de exigence, usando ambos os termos em situações distintas. Outros termos, tais como pressão, também não são avaliados por Athayde como adequados, pois limitam a compreensão da complexidade do termo contraintes. Contrainte refere-se a comprimido, a sofrer compressão, sujeição, pressão física de todos os lados para dentro; refere-se à sensações de sufoco, de esmagamento.

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Tateando entre tantos dados... ...inexistentes...

Qualquer tentativa de esmiuçar a realidade do trabalho dos motoboys

esbarrará em um problema inicial: a falta de dados sobre sua realidade, sua

atividade. Trata-se de uma carência que vai desde o universo científico, onde as

pesquisas enfocando tal objeto, embora em plena profusão, ainda são escassas5,

até a falta de dados epidemiológicos específicos sobre a profissão, bem como a falta

de dados sobre o tamanho da categoria atualmente em exercício no país, o perfil

dos trabalhadores, entre outras informações relacionadas.

Logo, fica muito claro para um pesquisador interessado no assunto que,

embora essa figura já tenha se tornada parte do cenário urbano, sua importância

econômica e social está em descompasso com a quase nula relevância política e

científica que lhe é atualmente dada. Para ilustrar, apenas duas informações:

embora exista um Conselho Municipal de Transporte no município de Vitória,

envolvendo setores públicos e privados que utilizam e exploram comercialmente o

transporte na cidade, os motoboys vêm tendo, até o momento, uma participação

muito reduzida neste Conselho, sem mesmo terem obtido o direito a um assento

permanente. Não obstante, a quantidade de profissionais motociclistas que se

acidentam grave ou fatalmente é alarmante. Mesmo que alguns dados divulgados

sobre os acidentes fatais envolvendo motoboys sejam exagerados – por exemplo,

segundo o documentário Motoboy, Vida Loca, de Caito Ortiz (MOTOBOY, 2003), em

São Paulo cerca de 2 motoboys morrem diariamente; para nós, esse dado carece de

comprovação –, fato é que relativamente a todos os acidentes de trânsito, e mesmo

relativamente aos demais acidentes de trabalho, aqueles envolvendo motoboys

mereceriam muito mais atenção por parte de vários setores da sociedade.

Entretanto, se dados confiáveis são inexistentes, aqueles poucos a que temos

acesso permite-nos lançar algumas afirmações provocadoras sobre a intensidade

dos riscos enfrentados por esses profissionais. Entre esses dados, encontram-se os

disponibilizado pelo Sistema de Informações de Mortalidade (SIM), do Ministério da

Saúde (MS), do Departamento Estadual de Trânsito (Detran) e da SETRAN. Uma

5 Faremos uma rápida análise dos materiais publicados até então no capítulo a seguir.

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dessas constatações aponta para a complexidade sociológica que se desenrola no

trânsito das cidades.

Acidentes de transportes terrestres: uma experiência de “darwinismo social”

Um dos princípios básicos da conhecida Lei da Evolução de Darwin, de

maneira resumida, pode ser compreendido como uma seleção natural calcada na

capacidade de sobrevivência dos mais adaptados (não os mais “fortes”). Para

Darwin, aqueles indivíduos de determinada espécie que estão mais adaptados para

determinadas condições ambientais seriam naturalmente selecionados entre os

demais, permitindo que seus genes fossem transmitidos a seus descendentes, no

lugar dos indivíduos menos adaptados para aquele mesmo nicho ecológico. Esse

princípio se vulgarizou no século XIX, por meio da incorporação, relativamente

distorcida, deste conceito por diversas teorias sociais, chegando a se tornar um

princípio cultural eurocêntrico: os europeus afirmavam que a então supremacia

político-militar do ocidente europeu era efeito de uma “seleção natural” entre os

povos. Daí, por exercer o centro de comando mundial na época, conseqüentemente

os europeus deveriam ser, segundo o raciocínio pretensamente evolutivo, os

humanos mais adaptados e mais fortes. De Comte a Engels, tanto pensadores de

direita, quanto de esquerda, foram em alguma medida influenciados por esse tipo de

reflexão, que se tornou extremamente corriqueira. O nazi-fascismo deu-lhe um

caráter de destruição de massa.

Porém, sem concordar com esse tipo de uso ideológico da teoria

desenvolvida por Darwin, parece ser esta a concepção exercitada no cenário do

trânsito brasileiro. A sensação, para quem dirige cotidianamente, é que quanto mais

cilindradas e robustez tiver o veículo que alguém conduz, mais direito essa pessoa

acredita possuir sobre as demais. É como se o fato de conduzir um veículo forte

fizesse desse condutor alguém mais adaptado àquele nicho específico. Na medida

em que se considera mais forte (“adaptado”) que os demais, para que se preocupar

com o respeito à vida e aos direitos dos outros? O trânsito se torna, nesta

concepção ideológica, em uma guerra, em que cada um “luta” como pode, para

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“sobreviver”; uma luta individual e quase infindável que acontece em todo lugar e a

todo o tempo. Alguns nela já entram em desvantagem, sendo, portanto, “natural”

perecerem. Outros, até tentam achar o seu “nichozinho” entre uma brecha ou outra

nas disputas entre os grandes, mas “não dê muito mole não que você tá no

acostamento”, é a sensação de quem muito utiliza dessas brechas, contando com a

sorte. Enfim, parece que alguns até querem mesmo ver os outros sumirem, pois

quanto menos disputa existir, melhor para os mais fortes desfrutarem das benesses

a que naturalmente teriam direito.

É claro que essa não é mais que uma caricatura, aqui utilizada para ilustrar

um fato trágico: se o trânsito não é uma guerra, na medida em que não há domínios

explícitos a conquistar e nem atores institucionais a se digladiarem, por outro lado

trata-se de uma disputa constantemente praticada entre condutores diversos, por

espaços cada vez mais estreitos e por acessos cada vez mais restritos, ambos

precarizados, degradados. Neto, Mutaf e Avlasevicius (2006), utilizando a concepção

de Ulrich Beck de que estamos entrando em uma “Sociedade do Risco”, sugerem

uma distribuição desigual dos riscos de acidentes de transporte terrestres pelas vias

brasileiras. Apontam, por exemplo, que os mais economicamente privilegiados estão

cada vez mais protegidos em automóveis que investem mais e mais nos quesitos da

segurança, enquanto uma parcela cada vez maior de pessoas é obrigada a enfrentar

o cotidiano do trânsito com pouca ou nenhuma possibilidade de proteção, seja

trabalhando como motoboys, seja conduzindo motos para ir ao trabalho, seja como

pedestres. Num estudo realizado com motoboys em Salvador, Gilvando Oliveira

(2003) aponta algo semelhante, dizendo que “o trânsito é uma estrutura que

submete a todos. Mas não da mesma forma. Constitui antes um palco onde as

relações das classes sociais se reproduzem e se conformam tal qual no nível macro

da sociedade, resguardando suas devidas peculiaridades” (p. 91).

Essas inferências são corroboradas pela análise dos dados de mortes

violentas provocadas por acidentes de transporte terrestre, dos anos de 2000 a

2003, segundo critérios de raça (sic) e cor (BRASIL, 2005). Segundo a publicação do

Ministério da Saúde, que considerou unicamente os SIM estaduais com informações

suficientemente seguras para inferências científicas sobre os critérios de raça/cor e

escolaridade, fica claro que as condições sócio-econômicas influem enormemente

nos tipos de acidentes de transporte terrestre a que cada grupo social se envolve.

Por exemplo, enquanto as pessoas que se declaram “negras” tendem a morrer mais

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freqüentemente na condição de pedestre, as que se declaram “brancas” tendem a

se envolver mais em acidentes na condição de condutores de veículos (inclusive

motos) e as que se declaram “pardas” em ambas situações. Da mesma forma,

quanto maior a escolaridade, menor o risco de um indivíduo morrer por

atropelamento e vice-versa (p.534-5). Daí ser o “trânsito em si uma matéria para um

estudo específico dada sua riqueza de processos e a característica peculiar de ser

uma relação social entre espaços individuais dentro de uma ‘arena’ pública” (NETO;

MUTAF; AVLASEVICIUS, 2006). Daí também, compreender as falas revoltadas dos

motoboys afirmando sobre o comportamento de outros motoristas: “todo mundo

reclama que a gente passa no meio dos carros e que não anda no meio da pista.

Mas é só a gente andar no meio da pista que sempre vem alguém tentando forçar a

gente para sair da frente6”, foi o que nos disse, certa vez, um motoboy. Ou seja, o

caminho do mais forte, seguro e protegido, deve ser mantido livre numa disputa

armada entre competidores claramente desiguais. Daí o sentido da afirmativa: o

trânsito é regido pela lei “darwiniana” do mais forte!

A situação dos acidentes de trânsito e de trabalho no Brasil: motoboys na frente de batalha

Ao compararmos a realidade do trânsito com a realidade do trabalho, emerge

uma informação para nós reveladora: o maior coeficiente de mortalidade anual por

acidente de trabalho no país se dá exatamente no setor de transporte (SANTANA;

NOBRE; WALDVOGEL, 2005). Os autores, baseados em dados da Previdência

Social, informam que o coeficiente de mortalidade por 100 mil contribuintes

empregados no país foi, em 2003, da ordem de 22,5 (ver Fig. 1) no caso dos

acidentes de transporte.

6 Utilizaremos grafia em itálico para destacar os trechos de falas de profissionais por nós entrevistados. Informamos que, na medida em que nosso método de investigação não privilegiou as entrevistas individuais, nem tinha interesse de evidenciar em aspectos caracterizadores dos autores das fala, para nós era desnecessário registrar com precisão a autoria de uma ou outra fala, bem como algumas características dos autores, tais como cor ou idade. Por essa razão, apresentamos os trechos como produtos dos trabalhadores.

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Figura 1 – Coeficiente de mortalidade anual de trabalho (CM) segundo ramo de atividade econômica

16,9

11,5

6,07,8

8,5

3,4

22,5

0

5

10

15

20

25

Trans porte Extraçãom ineral

Cons trução Agricultura Indús tria Com ércio Serviços

CM

/100

.000

con

tribu

inte

s em

preg

ados

Fonte: Santana, Nobre e Waldvogel, 2005.

Se considerarmos que houve, no mesmo ano, cerca de 18,8 mortes por

acidentes de transporte por cada 100 mil pessoas (BRASIL, 2005), poderemos inferir

que o trabalho no setor de transporte mata proporcionalmente mais que o trânsito de

uma maneira em geral. Além disso, levando-se em consideração que os dados do

SIM sobre acidentes de trânsito incluem acidentes de pedestres – que representa

cerca de 30% de todas as mortes no trânsito – quando os excluímos do cálculo da

taxa de mortalidade, esta vai para 13,1 mortes por 100 mil pessoas. Por outro lado,

se considerarmos que aos dados de acidentes de trabalho apresentados deveriam

somar-se aqueles que são certamente subnotificados, já que parte importante dos

trabalhadores do setor de transporte não possui qualquer vínculo empregatício

formal, o resultado real dos dados obtidos certamente retrataria a impressionante

taxa de letalidade deste setor no país. Ou, em outras palavras, o trabalho no setor

de transporte é, sem dúvida, um dos que apresenta os maiores riscos de acidente e

morte por causas externas e certamente é um dos grandes responsáveis por tantas

mortes no trânsito no país. Vale considerar, porém, que devido à grande

informalidade do trabalho no Braisl, somada à incrível escassez de fontes fidedignas

sobre acidentes de trabalho7, é virtualmente impossível se chegar a dados mais

confiáveis sobre essa realidade.

7 Santana, Nobre e Waldvogel, em sua revisão da literatura científica sobre dados de acidentes de trabalho no país, informam que a subnotificação no país varia de 27% – no estudo mais otimista – a 82%, sem considerar os dados das regiões Norte e Nordeste, onde estudos mais detalhados são extremamente escassos.

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De qualquer modo, às más condições de trânsito no país, alia-se a

precariedade das condições de trabalho dos motoboys, o que torna o trabalho nesta

profissão realmente muito perigoso. Não sabemos com exatidão em que medida os

acidentes com motocicletas profissionais participam nessas estatísticas. Mesmo

assim, apresentaremos dados que sugerem que o risco de acidentes fatais com

motos é relativamente maior que com caminhões e caminhonetes, o que nos permite

ousar afirmar que o trabalho como motoboy é um dos trabalhos mais sujeitos a

riscos de acidentes no Brasil!!! Essa dura afirmação é reforçada pelas idéias do

professor de segurança de transporte da University College London, Andrew Evans,

que, segundo Hamer (1996), “acredita que os perigos [de se sofrer acidentes na

profissão dos motoboys] são comparáveis aos de outras ocupações de alto-risco,

como a pesca em alto-mar8” (p.14). Mesmo que os dados do Coeficiente de

Mortalidade apresentados acima não definam bem quais dos acidentes envolveram

trabalhadores em seus exercícios de trabalho ou de trajeto, eles ao menos nos

servem para sustentar nossa afirmação inicial: o trabalho de motoboy é um trabalho

de altíssimo risco.

Dados de mortalidade por acidentes de transporte Um motoboy ironiza acerca do nível de exposição aos riscos de lesão a que

estão sujeitos em caso de acidentes no trânsito: “pára-choque de motoboy é o

peito”, numa referência indireta aos poucos equipamentos disponíveis ou viáveis

para a proteção efetiva do motociclista9. Os efeitos desse fato se revelam por meio

8 Esta profissão ganhou notoriedade atualmente por meio de um programa sobre a atividade, intitulado de Pesca Mortal, no canal Discovery. O programa dá expressão exatamente a sua alta periculosidade. 9 Os motociclistas de corrida de velocidade ou de acrobacias utilizam, sim, inúmeros equipamentos de segurança. Porém, estes são praticamente inviáveis para serem utilizados cotidianamente. Além disso, os motociclistas estudados por Veronese (2004) em Porto Alegre denominam de robocop os motociclistas que utilizam muitos equipamentos de segurança, numa clara demonstração de resistência a esses equipamentos de segurança. Para nós, como demonstraremos no capítulo Estratégias de Defesa em Constituição abaixo, essa reação talvez faça parte de um possível sistema defensivo da categoria profissional aos riscos de acidentes, defesa essa baseada nos discursos da virilidade e da “adrenalina”. Por outro lado, a resistência está embasada, também, no desconforto e na inviabilidade da utilização desses equipamentos no cotidiano. O país é muito quente, os produtos são caros ou desconfortáveis e sua utilização atrapalha a mobilidade demandada pela atividade. Tudo isso é citado pelos profissionais para explicar porque não utilizam os Equipamentos de Proteção Individual. Certa vez um motoboy nos disse que tinha vergonha de utilizar capa de chuva porque ela emite mal-cheiro. Dizia que quando entra em um elevador com a capa de chuva, percebe que as pessoas lhes olham com ar de desprezo pelo mal-cheiro que deixa. A capa, que é de péssima qualidade, porém a única que tem condição de adquirir, quando molha, exala um cheiro de “cachorro molhado”. Outras histórias semelhantes foram relatadas por diversos trabalhadores.

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de dados sobre o aumento impressionante das mortes envolvendo motocicletas,

quando comparados aos dados de óbitos envolvendo demais tipos de veículos ou

pedestres. Por exemplo, em um estudo de análise de tendência por morte violenta,

considerando-se dados do SIM de 1980 a 2003 (BRASIL, 2005), constatou-se uma

tendência de decréscimo das taxas de morte entre ocupantes de veículo e pedestres

(ver figuras 2 e 3 abaixo).

Figura 2 – Acidente com transporte terrestre Figura 3 – Atropelamento

Fonte: Brasil, 2005, p. 616 Fonte: Brasil, 2005, p. 616

Já no caso das motos a tendência é contrária, sendo impressionantemente

crescente (ver figura 4). Para se ter uma idéia, a taxa de morte por acidentes de

transporte terrestre por 100 mil habitantes variou, ao longo da década de 80 e 90,

em torno de 30 mortes por 100 mil para homens e cerca de 8 por 100 mil para

mulheres – no início da década de 80 as mortes vinham crescendo, mas começaram

a cair no final dos anos 90, justamente quando foi promulgado o novo código

brasileiro de trânsito. No caso das motos, embora as taxas sejam realmente

menores, elas eram próximas de 0 por 100 mil em 1980. Ainda em 1995 não

chegavam a 0,5 mortes por 100 mil, considerando-se tanto homens quanto

mulheres. Mas em 2003, se para as mulheres esse valor continua ainda menor que

1 morte por 100 mil, no caso dos homens pulou para cerca de 4,4 mortes por 100

mil. Um acréscimo astronômico de pelo menos 400%!!! Segundo dados do

Ministério da Saúde, em 2004 essa tendência de crescimento permanece a mesma,

sem expectativa de queda (BRASIL, 2006).

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Figura 4 - Acidente com moto

Fonte: Brasil, 2005, p. 616

Isso pode ser explicado, em parte, pelo aumento da quantidade de motos em

trânsito no país. Dados do Departamento Nacional de Trânsito (DENATRAN)10

revelam que, ano a ano, a participação das motos no conjunto da frota nacional de

veículo vem crescendo em relação aos outros veículos. Se em 2002 cerca de 14%

da frota de veículos no país era de motocicleta, esse número se aproxima de 17%

em dezembro de 2006. Para ver a evolução da relação da frota de motocicletas em

relação à frota de veículos no país desde 1998, ver Tabela 1 abaixo. Nela fica claro

o aumento da participação de motocicletas em relação ao total, chegando a

aumentar quase 7 pontos percentuais (um aumento de 63% na participação do total

da frota em menos de 10 anos), o que significa quase triplicar a sua frota. É

interessante ressaltar que, se o número de motocicletas aumentou em quase 300%,

o número de acidentes com motos aumentou ainda mais: quase 400%!

Tabela 1 - Evolução da frota de veículos no Brasil - 1998 a 2006 Total de

veículos** motocicletas % do total 1998 25.765.939 2.775.544 10,77% 1999 28.303.556 3.235.165 11,43% 2000 29.722.950 3.550.177 11,94% 2001 31.913.003 4.025.556 12,61% 2002* 35.523.633 4.945.256 13,92% 2003* 37.877.079 5.647.648 14,91% 2004* 40.533.650 6.418.396 15,83% 2005* 43.406.593 7.295.174 16,81% 2006* 45.372.640 7.989.925 17,61% Fonte: Denatran * Dados da frota do mês de dezembro ** Considerando-se veículos com e sem placa

10 Disponíveis no sítio http://www.denatran.gov.br/frota.htm

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O aumento da frota parece não ser um fenômeno localizado em determinada

região, mas uma tendência geral em praticamente todos os estados brasileiros. No

Estado do Espírito Santo, os dados mostram que em 2002 a quantidade de

motocicletas representava menos de 17% da frota do Estado enquanto que em

janeiro de 2006 esses valores chegam próximo dos 19%. No caso do município de

Vitória11, o aumento de motos em relação ao total de veículos mantém-se

consistente com os do restante do país. Em 2001 as motocicletas representavam

cerca de 6,5% do total de veículos; em 2005, as motos representavam cerca de

8,5% (ver Tabela 2). É interessante considerar, no entanto, que em Vitória o

crescimento de 6,5% para 8,5% de motocicletas em relação ao total de veículos

representou, em termos absolutos, um aumento de cerca de 54% no total de motos

circulando no município em 5 anos. Enfim, o aumento da quantidade de motos nas

ruas justificaria, em parte, o aumento de mortes envolvendo motocicletas no país.

Tabela 2 – Frota, acidentes com motos e acidentes por 1.000 veículos no município

de Vitória

Motocicletas 2001 2002 2003 2004* 2005*

Acidentes 870 916 1.000 1.045 1.230

Frota* 6.721 7.960 8.536

9.685 10.406 Acidentes/ 1000 Motocicletas 129,45 115,08 117,15 107,90 118,20 Total de veículos envolvidos em acidentes 15.420 14.991 15.809

14.997 14.997

Percentual de Acidentes com Motocicletas em relação ao Total

5,64 6,11 6,33 6,97 8,20

Fonte: BPRv/DETRAN*

No entanto, se esses dados forem mais bem trabalhados, outras informações

importantes começam a aparecer. Dados do SIM de 2003 (BRASIL, 2005) revelam

que, dentre os registros de acidentes que tiveram os meios de transportes

especificados, as motos representaram cerca de 18,6% dos registros de óbito (ver

Tabela 3).

11 Dados fornecidos pelo Núcleo de Estatística Setorial da Secretaria Municipal de Trânsito

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Tabela 3 – Número de óbitos por acidentes de transporte terrestre no Brasil, 2003, de acordo com o meio de transporte da vítima.

CATEGORIA N % % veículos especificados

Pedestre 10.021 30.2 43,6 Bicicleta 1.263 3.8 5,5 Motocicleta 4.274 12.9 18,6 Triciclo 21 0.1 0,1 Automóvel 6.409 19.3 27,9 Caminhonete 249 0.8 1,1 VTP 596 1.8 2,6 Ônibus 142 0.4 0,6 Outros 10.207 30.8 TOTAL 33.182 100,0 100,0

Fonte: Brasil, 2005

Porém, se excluirmos desses valores o número de pedestres acidentados,

teremos o seguinte: dentre as mortes de condutores de veículo, as motos

representam uma fatia de 33% do total das mortes por acidentes de transporte,

enquanto que as mortes por automóveis representaram 49,5% do total. Comparando

esses dados com os informados acima (de que em 2003 as motocicletas

representavam cerca de 14% da frota de veículo), percebemos de imediato que o

risco de morte por moto é maior que o de automóvel, pois se mais condutores de

automóveis faleceram (6.409 mortes por automóvel e 4.274 mortes por motos), o

número da frota desse veículo é cerca de 4 vezes maior que a de motocicletas

(24.175.247 automóveis e 5.647.648 motocicletas em dezembro de 2003). Ou seja,

enquanto a moto é responsável por apenas 14% da frota, representa 33% das

mortes causadas em condutores ou passageiros de veículos automotores; já os

automóveis representam quase 64% da frota, mas participam com cerca de 50%

dessas mortes. Os caminhões e caminhonetes representam cerca de 7% de toda a

frota nacional e representam cerca de 6,5% de todas as mortes envolvendo veículos

automotores.

Nesse mesmo raciocínio, de acordo com a tabela 2, os dados de Vitória, para

os últimos 5 anos, vêm indicando que se a frota de motocicletas (ainda relativamente

baixa considerando-se dados nacionais) está crescendo ano a ano, cresce em igual

ou em maior proporção a taxa de acidentes: em 2001, 6,6% dos veículos do

municípios eram motos, em 2005 esse número chegou a 8,5% do total; já os

acidentes com moto representavam 5,6% dos acidentes em 2001 e passaram a

representar 8,2% dos acidentes em 2005. Os dados informam, por outro lado, que

existe uma ligeira tendência de queda da proporção de acidentes por cada 1.000

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motocicletas, passando de 129,45 acidentes por 1.000 em 2001 para 118,20 por

1.000 em 2005. Os dados apresentam tendência de queda também para o total de

acidentes de trânsito por cada 100 mil veículos. Observa-se que a quantidade de

acidentes aqui registrada não é, necessariamente, de acidente seguido de morte ou

com feridos. De qualquer modo, são dados significativos que demonstram que mais

do que 10% das motocicletas em circulação se acidentam anualmente.

Esse panorama nos indica a importância de se compreender um pouco

melhor as condições a que estão sujeitos os condutores de moto, principalmente

aqueles que permanecem por mais tempo as utilizando, ou seja, os motoboys.

Todavia, essa empreitada requererá uma pesquisa de grandes proporções, ainda

não realizada em grande escala no país. Apenas o trabalho de Silva (2006) produziu

informações estatisticamente representativas sobre os acidentes de trânsito

envolvendo motoboys. Sua pesquisa aponta uma prevalência de acidentes de

motoboys em Londrina (Paraná), cerca de dez vezes maior do que os acidentes

envolvendo motociclistas não profissionais, na mesma cidade. Por outro lado, por

mais lógico que possa parecer a relação entre o aumento do número de mortes por

acidentes com motos e o aumento de trabalhadores na profissão de motoboys,

reiteramos uma vez mais que não podemos concluir que o crescimento de acidentes

fatais com motociclistas está diretamente ligado ao aparecimento dos motoboys

pelas ruas da cidade.

Fatores de risco e de proteção: coletivo de trabalho operando como defesa da vida?

Há que se ter sempre cuidado em não se interpretar fatos historicamente

simultâneos como efeitos de uma relação causal direta entre eles, para se evitar

conclusões precipitadas sobre as dinâmicas sociais em curso, garantido com isso

um raciocínio lógico e criterioso. Nesse sentido, deve-se exigir um pouco de

prudência ao se relacionar como fenômenos mutuamente explicativos o aumento de

serviços de motofrete nas cidades brasileiras e o aumento das mortes envolvendo

motocicletas no país, até porque não sabemos a priori quais as relações existentes

entre esses fenômenos, bem como a razão da sua força, nos caso delas estarem

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comprovadamente relacionadas. Alem disso, a realização de uma investigação mais

cautelosa sobre determinado aspecto da sociedade muito comumente permite

desvendar processos que de início são desconhecidos das pessoas em geral,

alterando em grande medida as idéias iniciais sobre o que se estuda. O problema é

que poucos parecem se preocupar com a necessidade de se respeitar

rigorosamente os limites dos dados que lhes estão disponíveis e, no afã de

encontrar respostas apressadas para as situações vividas no presente, acabam

produzindo conclusões que, de hipóteses, se tornam fatos concretos e quase

inquestionáveis. Como efeito, incorre-se no risco de se apreender muito

parcialmente o objeto do qual se discute. Para exemplificar, basta observar a

construção do editorial de um importante jornal do Estado do Espírito Santo que,

intitulado O trânsito e as motos (A Gazeta, 2008), emite a opinião daquele jornal

sobre as novas regras do Conselho Nacional de Trânsito (Contran) para diminuir o

número de acidentes de trânsito envolvendo motocicletas no país:

Reportagem publicada em A Gazeta na última quinta-feira revela números assustadores em relação ao crescimento do número de acidentes com motocicletas no Espírito Santo, e também do número de pilotos do veículo de duas rodas vítimas deles. Em 2007, segundo números oficiais do Detran, foram registrados no Estado 11.216 acidentes com vítimas, incluindo mortos e feridos. Em 5.163 desses casos, ou 46% do total, havia motocicletas envolvidas, apesar delas representarem apenas 25% da frota total de veículos em circulação (p.06).

Até esse ponto, o editorial resume os dados que apontamos acima, chegando

a dois fatos bastante objetivos: o aumento de acidentes envolvendo motociclistas e o

número de vítimas condutores desse tipo de veículo. Porém, no parágrafo seguinte,

a conclusão explicativa sobre os dados acima se revela de maneira bastante direta:

Nas maiores cidades do Estado, onde ainda não foi possível resolver os problemas de congestionamento de trânsito através da implantação de um eficiente sistema de transporte coletivo, a rapidez do transporte de pessoas ou cargas por meio de motocicletas, se em alguma medida vence a morosidade do tráfego, o faz com o risco de muitos e em proveito de poucos. O que se assiste, na realidade, é a um volume descomunal de acidentes, onde estão envolvidos jovens motoboy que, para obter um rendimento razoável, arriscam suas vidas e as de outros, nas ruas e avenidas (p.06).

Ou seja, responsabiliza-se, em grande parte, os motoboys pelo aumento do

número de acidentes. O texto continua e, em alguns parágrafos à frente, sugere

também a associação do álcool e da direção como outro fator de risco importante.

Mas o objetivo principal desse editorial é mesmo chamar à atenção dos motociclistas

para o fato de que eles “precisam mesmo eliminar radicalmente alguns de seus

hábitos sabidamente causadores de acidentes, como as ‘costuras’ que eles praticam

entre filas de veículo, correndo perigo de forma desnecessária” (p.06). O editorial

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pretende, também, pressionar ao Contran para proibir o tráfego de motocicletas nos

corredores: “seria oportuno, inserir a medida numa próxima revisão da legislação”, é

como o texto termina.

O mais interessante, porém, é que as conclusões a que se chega nesse

editorial estão todas baseadas em discursos de autoridades do setor de trânsito do

Estado que, na reportagem a que se refere o editorial acima, alegam que “o

crescimento do uso das motos para entregas e a imprudência dos condutores são as

principais causas desses números [e que...] o aumento do uso das motos como meio

de trabalho causa sérias conseqüências”. Para as autoridades de trânsito, “a alta

velocidade nesses ‘corredores’ é uma das principais vilãs” para o aumento

significativo de acidentes de motocicletas no Espírito Santo (VIEIRA, 2008).

Esse tipo de reportagem exemplifica bem a construção argumentativa em

torno da centralidade dos motoboys como artífices dos acidentes de trânsito

envolvendo motos. E não que não se deva negar a relação entre o crescimento dos

acidentes envolvendo motos e o surgimento dos motoboys com seus

comportamentos ousados. O problema é que esse tipo de conclusão pode acarretar

na culpabilização desses trabalhadores de maneira generalizada, impedindo que

outras idéias e opiniões emirjam acerca do assunto em debate. Como conseqüência,

à incompreensão profunda das causas dos acidentes se acompanham soluções

incompletas e precipitadas para esses problemas notoriamente graves. A

reportagem acima cita, por exemplo, as medidas de direção preventiva que

auxiliariam na redução dos acidentes de motocicletas: acender o farol, proteger-se

com roupas adequadas, permanecer na direita, ultrapassar pela esquerda, obedecer

aos padrões normatizados para transporte de mercadorias, manter distâncias dos

veículos à frente, sinalizar as alterações de faixas (VIEIRA, 2008).

Entretanto, contrariamente ao que se estabelece desde o início, como bem

exemplifica esse artigo, é de nossa opinião que um conhecimento mais adequado da

realidade pode provocar, até mesmo, alterações nas hipóteses gerais sobre o

fenômeno observado. Aliás, foi o que aconteceu conosco durante a pesquisa. A

compreensão que inicialmente tínhamos sobre a atividade dos motoboys foi se

alterando de tal forma que pudemos ousar, em alguns momentos, a assinalar a

presença de um fenômeno exatamente oposto ao que os dados acima a princípio

nos indicavam: a despeito das falas dos trabalhadores e das pesquisas realizadas

por outros autores evidenciando um acréscimo aos riscos de acidentes em função

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da maior exposição dos motoboys ao trânsito das cidades e à pressão sofrida para

atingir metas e maiores remunerações, encontramos razões suficientes para

suspeitar que a construção dessa profissão envolve fatores de proteção aos

acidentes que de uma certa forma limitam o grau dos riscos de acidentes de

trabalho.

Pelo fato dos motoboys da cidade de Vitória estarem submetidos a longas e

desgastantes jornadas num trabalho socialmente desvalorizado, precarizado e

sofrendo pressões ininterruptas para serem velozes, são razões suficientes para se

acreditar ainda mais que as altas taxas de mortes em motociclistas estão

diretamente relacionadas ao aumento de pessoas trabalhando na profissão de

motoboy no país. Por outro lado, não se pode desconsiderar um fato fundamental,

levantado por Diniz: “os motociclistas profissionais desenvolveram saberes,

manifestados por meio de inúmeras estratégias e modos operatórios que garantem o

atendimento dos clientes com pontualidade, presteza e confiabilidade, bem como a

sua sobrevivência” (2003, p. 30). Esse argumento ancora-se na idéia de que em

toda a atividade de trabalho que envolve riscos de acidente, os trabalhadores

procuram desenvolver coletivamente um conjunto de saberes de ofício que auxiliam

para a efetivação do exercício da atividade de trabalho de maneira mais segura. Cru

e Dejours (1987) identificaram e nomearem esses saberes como Saberes de

Prudência. Para esses autores, diante da imprecisão das prescrições das tarefas e

perante todos os riscos de acidentes identificados, os trabalhadores vão lançando

mão de recursos individuais, por meio de suas inteligências astuciosas, em busca de

soluções corporais, instrumentais, temporais que lhes protejam dos riscos de

acidentes. Com o tempo, essas invenções individuais podem vir a ser incorporadas

aos modos operatórios de outros trabalhadores, passando pela prova da

coletividade e da tradição e se tornando parte do patrimônio acumulado de um

determinado ofício/ profissão. As estratégias que se mostram eficientes vão se

tornando propriedade de um coletivo de trabalho que as organiza e as utiliza em

seus hábitos, suas tradições e seus saberes-fazeres, de maneira consciente ou não.

Esse modo operatório é, portanto, o resultado de um consenso, bastante complexo e

dinâmico, onde intervém a coesão da equipe e o saber adquirido e experimentado

por uns e outros (CRU; DEJOURS, 1987).

Cru e Dejours mostram, também, que os trabalhadores – enquanto coletivo de

trabalho – sabem mais sobre os riscos do que se pode superficialmente imaginar,

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até porque são eles que os vivenciam cotidianamente. Assim, afirmam que as

estratégias de cunho preventivista, na forma de “treinamento em saúde e

segurança”, caracterizam-se por estarem desvinculadas do trabalho real e do real do

trabalho, ignoram um trabalhador (individual e coletivo) que é potencialmente capaz

de detectar, interpretar e reagir à nocividade e ao perigo, aos quais tenta se proteger

o tempo inteiro durante sua atividade profissional. Não reconhecem esses saberes e

tendem a ignorar a experiência concreta dos trabalhadores que, por perceber os

riscos que enfrentam cotidianamente, usam de todos os artifícios disponíveis ou não

disponíveis para proteger sua segurança e sua saúde durante sua atividade

profissional. Ignoram até mesmo o fenômeno da produção de sistemas coletivos de

defesa, apresentadas pela abordagem Psicodinâmica do Trabalho (DEJOURS,

1992; 1999). Não é à toa, então, que vários treinamentos ministrados pelos setores

de saúde e segurança do trabalho sofram resistências por parte dos trabalhadores,

ou que seus ensinamentos não sejam colocados em prática por eles. Ao

desconsiderar os Saberes de Prudência, tais cursos são elaborados tomando como

foco apenas a prescrição do trabalho e as medidas protetoras dos técnicos

supostamente qualificados para tal. Com isso, se distanciam do trabalho realmente

realizado pelos trabalhadores e tudo o que este trabalho real envolve: do coletivo de

trabalho aos saberes de prudência. De posse das informações adequadas, os

idealizadores desse tipo de curso esperam que os trabalhadores consigam proteger-

se de maneira adequada. Os treinamentos em “direção defensiva”, comumente

ofertados aos motociclistas profissionais pelas empresas que utilizam de seus

serviços, são exemplos parciais deste grupo de treinamentos relativamente

desvinculado das dinâmicas reais do trabalho. As dicas da reportagem citada acima

se alinham ao mesmo tipo de raciocínio. Porém, como alegam Cru e Dejours, é

possível que esses tipos de curso não produzam os resultados esperados.

Na medida em que a experiência em qualquer atividade de trabalho traz em

sua raiz a possibilidade do coletivo de trabalho desenvolver um conjunto de saberes

que o leva a ter domínio sobre essa atividade, acreditamos que um processo

semelhante se dê com os motoboys: ao iniciar suas atividades na profissão, os até

então “condutores de motos” passam a dominar sua máquina com a destreza

adequada, se transformando agora em “pilotos”. E isso não é uma alteração

puramente individual; de fato, se trata de um fenômeno produzido coletivamente.

Para tal, deve-se pressupor a partilha de alguma dimensão comum entre essas

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pessoas que experimentam de situações de vida semelhantes. Baseado nas nossas

próprias considerações e apoiado nas idéias de Diniz (2003), nos parece que esse

coletivo aponta para um mundo concreto de solidariedade e de partilha da realidade

e que, por sua importância na produção de saberes e modos operatórios na

proteção dos trabalhadores, merece ser mais bem investigado. Sem esse comum, é

possível que os dados de violência no trabalho fossem ainda maiores.

Sustentar, então, a idéia de que no trabalho dos motoboys se produzem

sistemas de proteção (idéia aparentemente herética à primeira vista), foi se tornando

uma pista cada vez mais razoável com o passar do tempo de convívio com o coletivo

de trabalhadores em ação. Não pretendemos com isso argumentar que os motoboys

não estejam sob riscos, ou que os riscos se tornam menores porque os motoboys

aprendem a trabalhar e a conduzir melhor as suas motos. O que buscamos explorar

é que o aumento das mortes no trânsito envolvendo motocicletas não pode ser

explicado apenas pelo crescimento do trabalho dos motoboys ou por seus

comportamentos apreendidos como irresponsáveis ou “loucos”. Isso porque, e é o

que tentaremos demonstrar nesse trabalho, os profissionais desenvolvem saberes

na tentativa de tornar o trabalho mais seguro (ou, considerando nossa trágica

realidade, menos inseguro). Mas, mais do que isso: se os motoboys participam das

estatísticas de acidentes de trabalho – e o fazem com certeza – não é senão por um

conjunto complexo de fatores que torna o papel da individualidade ou dos modelos

de remuneração menos relevante que geralmente se pressupõe.

Entretanto, o desenvolvimento da argumentação em torno dessa pista não é

tão simples como parece de imediato. Em primeiro lugar porque é perceptível a

existência de trabalhadores que conduzem suas motos de maneira muito “arriscada”.

Andam bastante velozes, passam por locais inimagináveis, cortam pela direita,

entram nas curvas com os corpos extremamente inclinados e cruzam os sinais

amarelos ou vermelhos com uma segurança certamente discutível. Diante dessa

percepção, uma questão vem à mente: será que eles realmente “sabem” o que

fazem? Será que estão realmente se protegendo? Ou melhor, os sistemas

defensivos que eventualmente utilizam no cotidiano não seriam muito frágeis?

Os problemas de argumentação dessa pista não param aí. A profissão dos

motoboys é muito recente, poderíamos mesmo dizer que ela está em construção.

Ela surgiu no país ao longo dos anos 1980 e realmente se popularizou durante os

anos 1990. Se considerarmos que as discussões desenvolvidas por Cru e Dejours

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(1987) sobre coletivos de ofício – regras e língua de ofício, saberes de prudência –

referem-se mais propriamente a práticas de ofício12 (como os da construção civil), e

que parte importante de um ofício refere-se exatamente à sua dimensão coletiva que

se desenvolve por gerações e gerações. Ademais, se considerarmos que o ofício

envolve mais que uma profissão juridicamente reconhecida, mas também um certo

modo de subjetivação13 da experiência de trabalho, somos levados a questionar a

eficácia dos saberes partilhados entre os motoboys diante do fato de que se trata de

uma profissão recente, e que é vivenciada muitas vezes por profissionais também

muito novos. Disso resulta uma questão: será que o tempo de existência da

profissão já tenha sido suficiente para a construção de saberes coletivos dessa

ordem? Será que esses saberes são suficientemente transmitidos e partilhados?

Que outras dimensões de coletividade existem na atividade de trabalho dos

motoboys? Quais seus efeitos no trabalho, na subjetivação e nos sistemas

defensivos dos trabalhadores? Será que nessa atividade profissional existiria aquilo

que Clot e Faïta denominam de “gênero da atividade profissional” (CLOT, 2006), um

conjunto de sentidos, valores, princípios que mediam a relação do profissional com o

objeto e o meio de trabalho e do profissional com outros profissionais? E quais os

riscos enfrentados por esse coletivo em meio a precarização da profissão?

12 Mesmo que baseadas em pressupostos teóricos distintos dos nossos, as palavras de Cholez (2004) definem o conceito de ofício de maneira que para nós é bastante instrumental. Por ofício designa “ao mesmo tempo uma prática profissional, como conjunto de procedimentos técnicos, e uma condição social, pela participação a uma corporação que dispõe de uma estruturação particular de seu mercado de trabalho. Os integrantes de um ofício correspondem a um grupo profissional que dispõem de um conjunto de saberes, de saberes-fazer e de identidades comuns lhe permitindo reconhecer ou defender seus interesses para as tendências de lutas reivindicativas ou de organização institucionais” (tradução livre). 13 Definimos subjetividade, nesse trabalho, a partir das contribuições teóricas de autores da Filosofia da Diferença, sobretudo Deleuze, Guattari e Foucault. Para estes e outros autores também por nós utilizado – fundamentalmente os operaístas italianos – a subjetividade não se trata de conceito referente a uma manifestação interna da Consciência ou do Inconsciente das pessoas, muito menos uma posse, alguma instância que permite as pessoas dizerem: “minha subjetividade”. Muito pelo contrário. Trata-se de um conceito que busca articular o universo semiótico humano em seu agenciamento maquínico com as tecnologias produtivas, artísticas, cognitivas, temporais e os mecanismos de poder de determinado período histórico. Através de agenciamento entre códigos lingüísticos, tecnologias produtivas e de mecanismos de poder as subjetividades e os desejos são produzidos. Subjetividade inclui, então, não apenas o modo de pensar das pessoas, mas também o seu modo de agir, se portar, desejar, fazer, sonhar, reclamar, revoltar. Além disso, a subjetividade não está dentro das pessoas, mas as atravessa, visto que não é produzido nas pessoas, mas nos encontros entre elas e delas com os aparelhos de poder. A subjetividade é, então, sempre um processo de produção no qual se inclui tanto a ação dos homens quanto as suas relações para com as máquinas. Vale lembrar também que a subjetividade inclui, de igual maneira, o universo de resistência das pessoas diante dos mecanismos de poder das sociedades. Nesse processo os diagramas de poder constituem formas de se constituir “meios de se viver”, ou seja, modos de subjetivação. São formas mais ou menos definidas de se experimentar a si, as coisas, o mundo. São moldes, referências, balizas de sentidos, de sentimentos, de valores que se produz por meio das instituições, dos grupos e dos mecanismos de poder.

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Aliás, no campo da experiência coletiva, em que se considera que o processo

de identificação e reconhecimento de si como membro de um grupo exerce um fator

importante para a manutenção da economia psíquica no trabalho (DEJOURS, 2002,

2004b), somos mesmo tentados a questionar se existe, efetivamente, algo que se

pode denominar como uma espécie de “identidade” motoboy, tal qual algumas linhas

da Psicologia Social trabalham. Essa é, aliás, uma das motivações que conduziram

Neto, Mutaf e Avlasevicius (2006) a pesquisar os motoboys em São Paulo e cujos

resultados apontaram para um coletivo profissional em processo de constituição,

uma vez que, segundo os autores, os sentidos de coletividade ainda não estariam

consolidados e amplamente partilhados no grupo. Esses achados reforçam as

dúvidas sobre um suposto coletivo de trabalho exercendo suas influência nos

trabalhadores de um município pequeno, como Vitória, e em que a quantidade de

profissionais é bem menor do que a existente em São Paulo, cenário da

investigação daqueles pesquisadores. Isso se considerarmos a idéia de que, pelo

fato da quantidade de motoboys ser maior em São Paulo, é mais provável que eles

se encontrem mais regulamente entre pares (seja intencionalmente ou mesmo

casualmente). Em Vitória, é mais plausível acreditar que entre motoboys, outros

personagens com os quais os trabalhadores lidam cotidianamente possam exercer

muita influência direta sobre o grupo, reduzindo a influência dos pares. Isso é,

contudo, apenas uma inferência.

Tentando responder a essas questões é que se propôs essa pesquisa, que

tem como objetivo analisar a maneira como vem se constituindo o coletivo de

trabalho dos motoboys e seus efeitos na atividade de trabalho e na produção de

modos operatórios, de saberes, de saberes-fazer, de saberes de prudência e de

estratégias de proteção aos riscos da atividade. A partir dela, pudemos observar que

o trabalho dos motoboys envolve a presença de um coletivo de trabalho que, além

de tudo, exerce um importante papel na construção e partilha de saberes que

tornam a realização do trabalho mais eficiente e eficaz, lucrativa e segura.

Mostraremos, entretanto que, por diversas razões, ainda não há um gênero da

atividade profissional construído, nem uma tradição que permita denominar essa

profissão de ofício. Quiçá, não exista mesmo um coletivo de

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trabalho, segundo as acepções de Cru (1987a)14. Por outro lado, apontaremos

algumas pistas que sinalizam a construção de um gênero da atividade dos motoboys

ou, pelo menos, de dimensões coletivas exercendo poderosos efeitos no trabalho

cotidiano de parte importante dos trabalhadores. Defenderemos também a tese de

que além das precárias condições de trabalho a que estão submetidos esses

profissionais – dentre os quais faz parte um trânsito letal – uma parcela importante

dos acidentes de trabalho dos motoboys é reforçada também pela precariedade em

que se constroem as dimensões de coletividade entre os motoboys. Alguns conflitos

intracoletivos e outros externos a ela tendem a tornar os trabalhadores mais (ou

menos) unidos, produzindo sentimentos de união mais ou menos estáveis (ou

paradoxais) e que tornam os benefícios do coletivo e da tradição mais (ou menos)

valiosos. De qualquer modo, buscaremos mostrar que alguns sentimentos e

comportamentos partilhados pelos profissionais, por mais perigosos possam

parecer, exercem funções que vacilam entre os sistemas coletivos de defesa e

aquilo que, baseados em Nouroudine (2004), denominamos de exploração positiva

dos riscos, jogando, de uma forma ou de outra, um importante papel na constituição

de um modo de ser motoboy que mobiliza o coletivo em torno de seu

desenvolvimento, mesmo que de maneira limitada. Porém, ao final do texto,

tentaremos dar visibilidade a alguns elementos que tendem a impedir a produção de

um coletivo em toda a sua potência. Talvez a relação com o tempo exerça aí um

papel preponderante, mas certamente a lógica da “provisoriedade”, da

“improvisação” e, sobretudo, da individualidade são fatores que, no conjunto,

colocam alguns obstáculos à “oficialização15” da atividade dos motoboys.

Para construir esses argumentos mostraremos no capítulo 1 os percursos e

pressupostos metodológicos que embasaram as escolhas dos métodos utilizados

nessa pesquisa. O leitor perceberá que para responder a questões de natureza

bastante diferentes foi necessário lançar-se mão de abordagens aparentemente

distintas na realização deste trabalho. Entretanto, ficará logo demonstrado que o

conjunto de técnicas utilizadas não escapou do objetivo central que guiou as nossas

análises, a saber a atividade do trabalhador e suas expressões linguageiras. Além

disso, como esta pesquisa se trata, mais do que qualquer coisa, de uma análise da

14 As diferenças entre gênero profissional e coletivo de trabalho serão mais bem discutidas no capítulo 6. 15 Oficialização no sentido de tornar essa atividade um ofício, e não no sentido de oficial, regulamentado, profissionalizado.

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atividade e tudo o que gira em torno dela, tivemos como suporte uma perspectiva

teórico-filosófica que nos permitira transitar por entre as diversas técnicas sem

perder de vista os objetivos e os pressupostos epistemológicos de nossa pesquisa.

Neste capítulo, demonstraremos, enfim, os desafios enfrentados na realização da

pesquisa e os métodos utilizados para suplantar os obstáculos mais desanimadores.

No capítulo 2 faremos uma rápida revisão bibliográfica das pesquisas sobre

motoboys realizadas no país. Dada a escassez teórica sobre o assunto, podemos

afirmar sem receios de que se trata de uma revisão bibliográfica “extensa”.

Mostraremos ali que, em que pese a qualidade da produção já realizada, ainda são

inúmeros os fenômenos a se investigar, sobretudo se considerarmos a positividade

da atividade ali presente.

No capítulo 3, procuramos mostrar quem são as pessoas que iniciam suas

atividades profissionais como motoboy, como elas ingressam na profissão, quais são

os contraintes com que lidam, como experimentam e avaliam as relações com o

trabalho e o trânsito entre outros fatores envolvidos na profissão. Neste capítulo,

entendemos deixar suficientemente claro que o trabalho dos motoboys é muito mais

complexo que a princípio se pode imaginar, pois existem diferentes combinações

entre serviços realizados, formas de remuneração, de contratação e perspectivas

profissionais em torno de cada tipo de empresa ou natureza de trabalho realizado.

Trata-se, pois, de uma profissão complexa que se desenvolve por meio de um

coletivo profissional em pleno curso de formação.

No capítulo 4, mostraremos que após 15-20 anos de existência da profissão,

os motoboys já conseguiram desenvolver um conjunto de saberes que tornam suas

práticas profissionais mais rentáveis, seguras e que produz maior satisfação para

clientes e patrões. Neste capítulo buscaremos demonstrar que, a despeito da

ausência de uma longa tradição profissional, os motoboys estão em intensa

profusão de conhecimentos e saberes que são partilhados cotidianamente pelas

praças, elevadores e estabelecimentos por onde se esbarram (quiçá se encontram).

É, pois, relevante observar a riqueza desses conhecimentos para se compreender

como produzir cenários de enriquecimento profissional mais efetivos que os

propiciados tradicionalmente nos cursos de qualificação e de formação em direção

defensiva.

No capítulo 5 mostraremos que a despeito de tais saberes em

desenvolvimento, os riscos do trabalho são incrementados por uma fragilidade

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coletiva ou porque, paradoxalmente, algumas defesas coletivas (de tipo ideológicas,

conforme conceito de Dejours) parecem apontar para saídas não muito

interessantes para os trabalhadores. De qualquer modo, tentaremos demonstrar que

essas saídas compõem um conjunto de sistemas operatórios e de defesa que

transformam a experiência exploratória dos limites do trabalho em um mecanismo

positivo de construção de saberes, identidades e coletividade, com efeitos

perceptíveis na vida dos trabalhadores.

Finalmente, no capítulo 6 buscamos apresentar indícios de que existe um

processo de construção de um gênero da atividade profissional dos motoboys e que

esse gênero aponta para importantes transformações na experimentação do

trabalho. Buscamos demonstrar que esse gênero poderá ser um importante

elemento estratégico na redução dos acidentes e letalidades do trabalho desses

profissionais. Por outro lado, ficará mais claro que inúmeros aspectos importantes

para uma dinâmica grupal sólida e coerente estão ainda muito incipientes nessa

atividade profissional. Com isso, tentaremos deixar claro que a atividade de trabalho

é ainda muito pouco permeada por uma temporalidade externa à sua realização, ou

seja, a tradição, as normas antecedentes são ainda pouco experimentadas,

validadas socialmente e que, por isso, algumas contraintes e estratégias de

enfrentamento podem estar produzindo efeitos mais nefastos do que se poderia

esperar entre atividades mais bem protegidas por um coletivo de trabalho mais

preparado para lidar com os desafios colocados pela atividade de trabalho.

Concluímos o texto apontando algumas pistas e questões que poderão ser

aprofundadas em pesquisas futuras, bem como sugerimos idéias que darão bases

para uma formação profissional que incentive de maneira mais contundente a

formação de um possível futuro ofício de motoboys. Tratam-se, pois, de sugestões

sobre princípio, métodos e conteúdos programáticos para uma formação dos

profissionais mais condizentes com sua atividade e seu gênero profissional.

Alertamos ao leitor para não passar diretamente para essas conclusões, com o risco

de interpretá-las de maneira incorreta.

Antes, porém, de passar para o capítulo inicial, é importante deixar claro que

os resultados dessa pesquisa não devem ser considerados como fruto de uma

investigação solitária. Toda trajetória empírica é parte de uma pesquisa um pouco

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mais abrangente16, partilhada por técnicos de instituições de ensino superior de

Vitória e da Secretaria de Saúde do município e que contou com o apoio de duas

instituições de fomento: a Fundação de apoio à ciência e Tecnologia de Vitória

(FACITEC), da Prefeitura Municipal de Vitória, e a Fundação de Apoio à Pesquisa do

Espírito Santo (FAPES), do Governo do Estado do Espírito Santo. Alguns resultados

parciais dessa pesquisa estão disponíveis em Drumond et al (2007) e Rohr et al.

(2007).

16 Esse trabalho de investigação seria impossível sem a participação da enfermeira Roseanne Vargas Rohr, na época professora da faculdade Univix e coordenadora do Programa Municipal de Saúde do Trabalhador, atualmente professora do departamento de enfermagem da Universidade Federal do Espírito Santo; do estatístico Fabiano José Pereira de Oliveira, atualmente profissional da Secretaria Municipal de Saúde de Vitória, dos bolsistas Flávio Volponi Pereira, do curso de psicologia da FAVI, Mariana Cavalcante Ferraz e Fernanda Colombi Monteiro, do curso de enfermagem da Univix, do então Gerente de Vigilância em Saúde da Secretaria Municipal de Saúde de Vitória, Dorian Chim Smarzaro, do professor Hiata Anderson do Nascimento, do curso de enfermagem da UNIVIX e do envolvimento direto dos trabalhadores neste trabalho.

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1. DEFINIÇÕES ÉTICO-EPISTEMOLÓGICAS, TEÓRICAS E METODOLÓGICAS

Considerando a pesquisa em uma perspectiva mais geral, nós a concebemos

para conhecer de mais concreta a experiência de trabalho dos motoboys. Isso

porque, na medida em que nos deparávamos com uma escassez de conhecimentos

científicos sobre essa realidade de trabalho, fazia-se necessário produzir

informações que permitissem melhor compreensão sobre esse tipo de atividade

profissional. Porém, nossa pesquisa dava mais importância à análise do trabalho à

luz de quem o vive cotidianamente (os modos de pilotagem dos motoboys no

trânsito, as dimensões econômicas da ocupação, o exercício informal da profissão,

etc.) do que para aspectos técnico-burocráticos envolvidos no trabalho (o trabalho

do ponto de vista jurídico-econômico, as dimensões administrativas em torno da

atividade, a dimensão da logística de transporte, etc.). O trabalho concreto, situado,

era o que estava em cena para nós. Entretanto, mais que uma verbalização dos

trabalhadores acerca de sua atividade, era nossa intenção dar também atenção à

maneira como os trabalhadores estão (re)construindo, por seus próprios meios, as

dinâmicas da atividade. Nesse sentido, não bastaria apenas uma coleta de dados

nas quais se utilizaria um questionário auto-aplicado para, posteriormente, ser

analisado por um determinado protocolo estatístico. Seria fundamental somar ao que

fora produzido por via quantitativa, uma ampla análise qualitativa da atividade que

fizesse emergir a riqueza do exercício inventivo dos profissionais para tornar essa

atividade de trabalho sua profissão17.

A pesquisa foi sendo desenhada, portanto, em torno da busca da

compreensão da atividade de trabalho dos motoboys, de onde se destacou

inicialmente a problemática evidente do risco de acidentes. Todavia, logo nos

conduzimos a um outro conjunto de questões que mereceram uma atenção mais

privilegiada de nossa parte e que resultou na tese aqui apresentada: a maneira

17 A despeito do fato de que a presente pesquisa tenha lançado mão de métodos de investigação não quantitativa, informamos que não somos de todo contrários a enquetes, questionários ou outras formas de entrevistas objetivas e de análises quantitativa (apesar das restrições de seus usos). Na verdade, o grupo de pesquisa lançou mão de questionários objetivos e análises quantitativas para responder a algumas questões que, no presente trabalho, não poderão ser exploradas exaustivamente (sobretudo questões que visavam fornecer informações sobre a população de motoboys). Contudo, dada a especificidade dessas questões, que em parte se distanciam das propostas aqui e, sobretudo, dos métodos utilizados para respondê-las, não nos deteremos sobre eles. Ressaltamos apenas que alguns de seus resultados foram incorporados em nossas presentes análises, sobretudo as contidas no capítulo 3.

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como se constituem as dimensões coletivas da atividade de trabalho dos motoboys.

Como pano de fundo, a problemática da relação saúde-doença e as questões em

torno do risco de acidente profissional entre os motoboys sempre seguiram de perto

outros temas pertinentes à dimensão coletiva do trabalho.

A partir de um conjunto conceitual extraído, sobretudo, da Ergonomia da

Atividade, da Psicodinâmica do Trabalho e da Clínica do Trabalho e operado por

meio da perspectiva da Ergologia, essa pesquisa se posiciona em um debate que

assume o caráter enigmático do trabalho, reconhecendo nessa atividade humana

um papel central no desenvolvimento das pessoas em nosso processo produtivo em

curso. Reconhece também que diante das infidelidades do meio (CANGUILHEM,

1995, 2001), o trabalhador se mobiliza de forma ativa – individual e coletivamente –

para encontrar/ inventar os modos de superar as dificuldades colocadas por

variabilidades e eventualidades de um determinado processo de trabalho.

Para tanto, ao concebermos essa pesquisa, partimos de um conjunto de

pressupostos ético-epistemológicos e teóricos condizentes a esses preceitos

gerais18 dos quais nos apropriamos para nortear nossa compreensão das dinâmicas

do trabalho, especialmente a Ergologia. Da mesma forma, alguns conceitos

produzidos por abordagens teóricas que se apropriam de algum modo desse mesmo

patrimônio político-filosófico, ético e epistêmico, foram utilizados para que

pudéssemos conduzir nossas análises sobre a atividade em questão. É o objetivo

deste capítulo apresentar alguns desses conceito, enquanto outros, tais como

sistemas defensivos, saberes de prudência, coletivo de trabalho e gênero

profissional, serão explicitados ao longo do texto, na medida em que eles se

tornarem operadores instrumentais para a realização das análises da atividade. Por

hora, nos deteremos apenas sobre as dimensões ético-epistemológicas dessas

abordagens teóricas, à luz da perspectiva ergológica, para tornar mais evidentes as

razões das escolhas dos métodos e das técnicas empreendidas em nossa pesquisa.

18 Acumulados a partir de uma longa linhagem político-filosófica que cruza toda a história moderna ocidental e que nos remete aos filósofos gregos.

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Quadro geral da pesquisa

Cornu (2003) afirma que em nenhum outro lugar a relação “compreender o

mundo para transformá-lo” – conforme Marx explicitara, a partir de uma linhagem

materialista do pensamento no ocidente – foi colocada em prática tão claramente

quanto no pensamento brasileiro durante o início dos anos 60. Marcadamente pela

influência da Pedagogia dos Oprimidos, de Paulo Freire, mas também pelos seus

desenvolvimentos diretos e indiretos em torno das várias correntes de pesquisa-

intervenção, pesquisa-ação, Psicologia Comunitária, pela Teologia da Libertação e

as Comunidades Eclesiais de Base, e por uma série de outras formas de ativismo

político, fundamentalmente por uma certa esquerda revolucionária, a idéia de uma

ciência comprometida eticamente com a transformação de uma realidade

exacerbadamente desigual, injusta e preconceituosa acarretou na construção de um

panorama científico que buscava desmobilizar uma arraigada concepção positivista

de uma ciência supostamente neutra e amoral. Os desdobramentos teóricos da

psicologia, da sociologia e da filosofia, influenciados pelos autores russos, latino-

americanos, com tendências comunistas, pós-estruturalistas, entre outros,

propiciaram um ambiente de experimentações acadêmicas que revolucionaram o

princípio da atividade científica. A despeito da diversidade das experiências

desenvolvidas durante os anos 1960-70, a concepção de que a ciência é um agente

de transformação ou de conformação da realidade foi muito marcante no

embasamento político-filosófico dos grupos que partilhavam dessa perspectiva

participativa de produção de saberes, da qual o saber científico não poderia estar

apartado. Esses atores compreendiam que ao assumir seu caráter ativo sobre o

mundo, restaria aos saberes científicos definirem-se com quais forças sociais

estavam comprometidos. Baseado nessa lógica, uma geração inteira de psicólogos,

sociólogos, antropólogos e outros cientistas das áreas de ciências humanas e

sociais, construíram projetos de intervenção e de pesquisas comprometidas com a

transformação das estruturas sociais.

Em várias dessas pesquisas, o pano de fundo ideológico era o de tornar seus

objetos de estudos (as pessoas em situações sócio-político-econômicas as mais

diversas) em pessoas conscientes das suas determinações e capazes da ação de

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transformação dessas mesmas condições. Essas pesquisas visavam, sobretudo,

dotar as pessoas da consciência de seu papel de “sujeitados” aos poderes e às

estruturas perversas da sociedade, para que com essa “tomada de consciência”,

outras escolhas sociais e coletivas se tornassem possíveis. Daí o lema subjacente a

esse tipo de atividade científica ser “conhecer para transformar”. Conhecimento das

condições reais da pessoa sujeitada para melhor elucidar os meios de construção de

outras realidades possíveis. É importante ressaltar que em geral está implícito nesse

tipo de perspectiva teórica que o próprio movimento de querer transformar tem

incidência sobre a compreensão da realidade.

Mesmo que um conjunto de revisões e críticas dessas práticas científicas

tenha sido levado a cabo durante os anos 80 e 90, principalmente pela análise

crítica da idéia de “conscientização social”, o princípio de uma ciência eticamente

compromissada com a transformação da sociedade se tornou uma conquista

indelével que vem permeando parte considerável das ciências humanas no país e

no mundo.

Em um outro conjunto de experiências teóricas, cujas origens remontam

também às influências do pensamento de esquerda, porém neste caso europeu, o

lema conhecer para transformar vem exercendo também uma atração muito

poderosa sobre um grande conjunto de pesquisas desenvolvidas. A título de

ilustração, basta uma rápida olhada sobre a constituição e a prática da Ergonomia

da Atividade em suas origens francofônicas (França e Bélgica) para logo

percebermos que esse princípio está subjacente a toda sorte de pressupostos e

instrumentos utilizados por essa perspectiva teórica, estruturando-se como um dos

campos de pesquisa que não conseguem dissociar o conhecimento da intervenção

sobre o “objeto” conhecido. Como afirma o próprio título do importante livro técnico

da Ergonomia da Atividade, publicado por Guérin e colegas (2001), “Compreender o

trabalho para transformá-lo”19 é o fundamento dessa disciplina científica que busca

colaborar para que as situações de trabalho contribuam tanto para a produção de

saúde dos trabalhadores (ou pelo menos seu não adoecimento), ao mesmo tempo

em que permita o desenvolvimento das suas competências individuais e coletivas

sem abrir mão dos objetivos econômicos determinados pela empresa (Guérin et al.,

2001, p.1). De fato, logo na primeira frase do livro, registra-se que “transformar o

19 O título e subtítulo são Compreender para transformar: a prática da Ergonomia.

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trabalho é a finalidade primeira da ação ergonômica” (id., ibid.). O conhecimento

dessa Ergonomia só tem sentido se conseguir provocar alterações naquele objeto

conhecido. O conhecimento se torna, assim, um instrumento para a ação que, ao se

colocar em funcionamento, produz renovadas aproximações com a realidade a ser

conhecida, provocando ondas de transformações, que permitem a renovação dos

conteúdos prévios, ampliando seu conjunto e sua abrangência e que será reaplicado

à realidade, transformando-a num vai-e-vem expansivo e contínuo. Conhecer para

transformar para renovar o conhecimento que fica mais apto à transformação...

Transformar para conhecer, para renovar a transformação que colabora para a

produção de conhecimento... Ou seja: compreender-transformar.

De fato, parte importante da Psicologia do Trabalho, no país, vem sofrendo a

influência das produções e teorias científicas que emergiram como conseqüência

direta da busca pela compreensão e melhoria das condições de saúde e trabalho,

mais especificamente, da saúde (psíquica) dos trabalhadores. Entre os grandes

motores dessa empreitada, destacam-se as contínuas lutas de diversos movimentos

de trabalhadores europeus durante os anos 50 a 70 do século XX e as lutas das

classes populares no Brasil, ainda que sob ditadura militar. Dessa mobilização social

e histórica resulta um conjunto de produções teórico-disciplinares (ou não

necessariamente disciplinares, no caso da Ergologia, que se apresenta como uma

in-disciplina) sobre o debate trabalho-homem-saúde. Dentre elas, algumas nos

serviram de maneira bastante importante, uma vez que nos forneceram, cada um a

seu modo e em graus variados, preceitos ético-filosóficos, pressupostos

epistemológicos, conceitos, métodos de pesquisa e de análise do trabalho ou

debates teóricos que nos permitiram desenvolver esta pesquisa. Como um guia

neste debate, a perspectiva ergológica, agregando estrategicamente diferentes

abordagens clínicas do trabalho como a Ergonomia da Atividade, o Modelo Operário

Italiano de luta pela saúde (MOI), a Psicodinâmica do Trabalho (PDT20), a Clínica da

Atividade.

Não se trata aqui de afirmar que todas são abordagens distintas de uma

mesma disciplina teórica. A Ergologia, por exemplo, é uma perspectiva que nos

aponta para uma determinada forma de se apropriar/ ingressar/ guiar nesse debate

e que tem no Modelo Operário Italiano um importante antecedente (Schwartz, 1988)

20 Para economia do texto, vamos aqui usar a sigla PDT, no caso da Psicodinâmica do Trabalho e MOI, no caso do Modelo Operário Italiano de luta pela saúde.

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e na Ergonomia uma propedêutica à epistemologia (idem, 2004b). Nem se trata de

referimos aqui as abordagens clínicas do trabalho citadas como a adoção de uma

determinada teoria do sujeito, como chamam atenção Figueiredo e Athayde (2004).

Trata-se sim de um regime de produção de saberes que pressupõem a mobilização

dos trabalhadores e dos pesquisadores (ou mais propriamente o engajamento dos

meios de trabalho e as racionalidades da ação neles envolvidas e dos meios

científicos, com suas racionalidades particulares) em direção à produção e afirmação

de outros modos de subjetivação e de novos territórios existenciais (idem, p.245).

Nesse movimento de produção de novas formas de vida e de viver, produzem-se

conhecimentos importantes para o desenvolvimento dos saberes dos trabalhadores

sobre sua atividade e das disciplinas científicas sobre esta e outras atividades de

trabalho.

Há que se afirmar, ainda, que contamos em particular com as contribuições

da PDT e da Clínica da Atividade acerca do debate da relação do trabalho com a

‘subjetividade’, lembrando que a Ergologia propõe o conceito provisório de corpo-si.

Não no sentido de que determinado trabalho produz determinada conseqüência

(uma relação causa-efeito simples) à saúde psíquica dos sujeitos, como pregam

algumas tendências da Epidemiologia e Psicopatologia do Trabalho, nem na

maneira como determinado tipo de trabalho produz determinado traço personalítico

nos “sujeitos” trabalhadores, sujeitos esses apreendidos sob a base da Psicanálise,

como por exemplo vários teóricos da Psicossociologia Francesa, entre eles Enriquez

(2000). De maneira distinta a essas abordagens (ou vertentes em seu interior), as

que aqui mobilizamos partem do princípio de que a experiência do trabalho está

diretamente relacionada à ‘subjetividade’ do trabalhador e que a qualidade, a

segurança, a confiabilidade e a saúde dos trabalhadores estão ligadas às dimensões

subjetivas e coletivas do trabalho. Trata-se, pois, de reconhecer o papel exercido

pelo coletivo na produção/ validação de saberes que se tornam instrumentos à

disposição dos trabalhadores para enfrentar as variabilidades e eventualidades que

emergem continuamente durante o exercício da atividade.

Além da partilha dessas teses, é igualmente importante para essas

abordagens clínicas que mobilizamos, o fato de que, além de auxiliar no

conhecimento da realidade, suas pesquisas propiciam instrumentos de

transformação dessa mesma realidade. Com isso, mais que um conjunto de saberes

que buscam compreender a realidade, essas abordagens acreditam possuir

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mecanismos de intervenção na realidade, produzindo, entre saberes conceituais e

explicativos sobre a realidade, também saberes técnico-instrumentais21 de

transformação dessa mesma realidade que tentam compreender.

Daí, então, que se pressupõe, nesta pesquisa, o engajamento do trabalhador

de maneira ativa na condução das análises do trabalho, como uma forma de co-

investigação, gerando uma sinergia mutuamente heurística. As técnicas aqui

empregadas não visam uma simples coleta de informações dos trabalhadores, mas

seu engajamento no processo de pesquisa, visando pôr em movimento uma

(co)análise da atividade de trabalho em conjunto com os motoboys. Nesse sentido,

não se tornava necessária a realização de amostragens significativas de

trabalhadores para a realização desse encaminhamento da pesquisa, pois os

saberes e discursos coletivos sobre o trabalho são partilhados e, muito

freqüentemente, permeiam ou estão disponíveis a parte importante do conjunto de

trabalhadores, ou melhor, ao coletivo de trabalho. De maneira semelhante, não se

tratava apenas de realizar algumas entrevistas com os trabalhadores, pois alguns

aspectos do trabalho não são por eles elaborados do ponto de vista da consciência

(ou mais propriamente de uma cognição que envolve o uso consciente da

linguagem), mas de se pressupor um envolvimento entre os trabalhadores e a

equipe de pesquisa para produzirem cenários em que a atividade de trabalho, e a

análise em torno dela, fosse foco de interesse por parte desse encontro efetuado

entre os envolvidos. Alguns procedimentos técnicos utilizados auxiliaram de maneira

muito rica nesse debate, os quais descreveremos logo adiante. De igual maneira,

21 Daniellou (2001) teve um interessante debate com a PDT em um Congresso de Psicopatologia e Psicodinâmica do Trabalho , sendo publicado em texto na revista Travailler, no qual afirma que o papel da intervenção na PDT é secundário. A réplica, onde tenta demonstrar a centralidade do papel da intervenção na prática da PDT, foi escrita por Molinier (2001) e publicada também no mesmo número da revista. Segundo nosso ponto de vista, entretanto, a resposta não foi da mesma qualidade da crítica. Seja como for, é inegável que a PDT proponha-se como um instrumento de intervenção, a despeito dos meios empregados para tal.

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algumas conversas informais com os trabalhadores22, em grupo ou mesmo

individualmente, também nos auxiliaram para permitir a compreensão da atividade

de trabalho.

A despeito disso, as entrevistas mais ou menos formalizadas também não

foram descartadas. Algumas delas nos serviram para nos guiar em alguns debates

propostos para os trabalhadores. Outras serviram para acessar alguns grupos de

trabalhadores com os quais não tínhamos muito contato. No início da pesquisa,

utilizamos também algumas entrevistas para compor um questionário que foi

aplicado entre uma determinada amostra de trabalhadores. Aliás, por razões

apresentadas acima, esta pesquisa propunha também produzir algumas informações

referenciais para auxiliar na gestão de Políticas de Saúde voltadas para os

motoboys. Com isso, requeriam dados que auxiliassem a ampliar a compreensão

sobre o trabalho dos motoboys em inúmeras dimensões. Por essa razão é que se

decidiu pela aplicação de questionário entre os trabalhadores, por meio do qual se

vislumbrava produzir informações sobre os que estavam em atividade na cidade de

Vitória-ES visto que, na época da sua aplicação (início de 2006), ainda não haviam

sido publicadas informações sobre eles em nenhum local.

De qualquer maneira, reconhecemos que o uso de questionário não é comum

ou até pertinente às abordagens que nos serviram de referência para a presente

pesquisa, pois impõe uma objetividade a dimensões que insistem em resistir a

qualquer ordem de solapamento ou generalização. Por outro lado, o uso que

fizemos dos materiais e resultados encontrados serviram para sinalizar alguns

aspectos do panorama geral da profissão que muito pouco se conhece. Nesse

22 Denominamos aqui de conversa visto que, em vários momentos, tratava-se de um encontro próximo do que se define como conversa no senso-comum: um bate-papo informal, marcado pela informalidade e guiado pela curiosidade do que “aparece” no encontro momentâneo, ou orientado pelas histórias interrompidas em um bate-papo anterior. Um encontro calcado em um certo descompromisso com uma retórica por demais preocupada em normas lingüistas, uma certa pessoalidade nos diálogos travados (em alguns casos até com relatos muito pessoais), etc. A diferença principal entre as nossas “conversas” e as do cotidiano de todo mundo é que em nosso caso havia um interesse muito maior em ouvirmos o que eles tinham a dizer do que o contrário (muito embora também éramos inquiridos sobre vários aspectos). De uma forma geral, essas conversas não tinham um determinado protocolo previamente analisado, tal como aquilo que denominamos entrevistas. Em alguns momentos, planejávamos o encontro a ser realizado em torno de um determinado conjunto de informações a serem investigadas e tentávamos aplicar esse planejamento na prática: daí entrevista. Para nós, a entrevista marca de maneira mais expressiva a diferença entre entrevistador-entrevistado. Mesmo que essas entrevistas fossem abertas, havia sempre uma linha condutora na manutenção do debate estabelecido e sempre um diálogo do tipo pergunta-resposta. No caso das conversas o planejamento prévio não era necessariamente realizado, nem sempre a conversa girava entre pergunta-resposta, e muito comumente a conversa seguia rumos inesperados e nem imaginados anteriormente. Contudo, é inegável que, mesmo nas trocas linguageiras dentro daquilo que chamávamos diálogo, as diferenças entre pesquisador-trabalhador acentuavam o tom da “conversa” para um campo da dúvida, do inquérito, da pergunta, da curiosidade mais tendencialmente vindo de nós em direção a eles.

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sentido, entendemos que no âmbito do que em Análise Ergonômica da Atividade

(Guérin et al., 2001) se denomina “análise global” e do que em PDT se chama “pré-

enquete”, se poderia incluir este tipo de busca de informações. Não acreditamos,

portanto, que seu uso seja dispensável diante do que, de modo geral, se propõe

nesse trabalho: compreender um pouco melhor o trabalho dos motoboys. Isso

porque, embora os dados obtidos dos questionários não estejam diretamente ligados

à questão central dessa pesquisa (compreender a maneira em que vêm sendo

organizadas as dimensões coletivas do trabalho dos motoboys), elas nos fornecem

informações complementares que nos permitiram elucidar alguns pontos

interessantes sobre esse trabalho. Há que se observar, porém, que neste momento

utilizaremos apenas os resultados dessa enquete, deixando para um outro local as

discussões dos procedimentos de sua utilização. De qualquer modo, mostraremos

adiante alguns limites em sua utilização que torna impossível qualquer espécie de

generalização dos seus resultados. Finalmente, estamos seguros de que as análises

da atividade foram todas, ou quase todas, baseadas fundamentalmente em

procedimentos desenvolvidos pela equipe de pesquisa em conjunto com os

trabalhadores e que estavam baseadas, sobretudo, na Clínica da Atividade (no caso

das técnicas) e guiadas por uma perspectiva ergológica.

Apresentamos inicialmente, a seguir, alguns aspectos centrais dos quais nos

apropriamos entre as abordagens clínicas do trabalho e da perspectiva ergológica

para, adiante, explicarmos como elas conduziram ao estabelecimento dos métodos e

dos procedimentos por nós utilizados.

Ergonomia

Da Ergonomia da Atividade, entre outras coisas, nos detivemos sobre alguns

princípios fundamentais e que estão na base das pesquisas científicas dessa

linhagem teórica: consideramos a situação de trabalho como lugar de produção de

conhecimentos originais, bem como partimos do pressuposto de que os

trabalhadores ocupam um papel incontornável na produção dos conhecimentos

sobre seu próprio trabalho e na transformação dessa realidade. Consideramos

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também que o interesse da investigação realizada serve para trazer o ponto de vista

da atividade junto ao debate dos que concebem e decidem sobre o meio23 em que o

trabalhador executa sua atividade (TEIGER, 1998), que no caso dos motoboys é a

própria cidade, ou seja, os empresários e patrões dos ramos, aliados às autoridades

de Estado, os atores no trânsito e os consumidores dos serviços dos motoboys.

Herdamos também da Ergonomia a concepção de que os meios de trabalho,

sejam eles materiais ou imateriais, são sempre insuficientes para a sua efetividade,

uma vez que toda e qualquer prescrição das tarefas é, em algum momento,

insuficiente para conduzir o trabalhador no enfrentamento das variabilidades e

eventualidades que se lhe impõe em seus afazeres cotidianos. É, pois, através da

atividade humana, em toda a sua inventividade e complexidade, que se cria

estratégias para lidar com essas lacunas da prescrição. Nesse sentido, os modos e

saberes operatórios não são a afirmação de uma suposta adaptabilidade dos

trabalhadores aos meios de trabalho prescritos pela organização, mas o

reconhecimento de um complexo e fundamental processo criativo que se impõe

como necessário para que o trabalho se execute. O coletivo exerce aí um papel

fundamental.

Finalmente, obtivemos também da Ergonomia da Atividade algumas

contribuições no campo dos métodos. Como nos lembra Guérin et al. (2001), para

que o ponto de vista da atividade se alce como um necessário ponto de vista para a

compreensão do real funcionamento da empresa (figurando-o entre outros dois mais

comumente utilizados: o ponto de vista dos resultados e das condições de trabalho e

produção), há que se conhecer o que de fato os trabalhadores fazem, como fazem,

quando fazem o que fazem, o que fazem quando o que se deveria fazer não é

suficiente, como concebem e se posicionam diante do que fazem e sabem, o que

sabem sobre o que fazem, o que sabem sobre o que sabem, o que partilham, etc.

Para tanto, deve-se trazer o trabalhador ao centro do processo investigativo.

Portanto, mais que um simples processo de observação da atividade realizada, a

Ergonomia da Atividade preconiza que os trabalhadores engajem-se em uma co-

análise do seu trabalho, por meio de confrontação com o que foi produzido pelo

23 Utilizamos aqui o termo meio em referência ao conceito meio (millieux) em Canguilhem (1995), que se refere ao locus em que um determinado organismo vive, se produz e produz suas próprias normas de vida. Por outro lado, diferente da idéia de ambiente, conforme a biologia tradicionalmente apreende, o conceito de meio implica as dimensões sociais, culturais, políticas e, sobretudo, técnicas das quais as pessoas lançam mão para produzir suas normas de vida.

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ergonomista – as observações, imagens, filmagens sobre a atividade –, buscando

compreender as dimensões não explicitadas ou não presentes ao observador

externo durante a realização da atividade.

Guérin e colegas avaliam que a autorização do acesso à atividade, por parte

dos trabalhadores, deve ser dada aos pesquisadores. Para tanto, a criação de

vínculos deve acontecer, pois, independente da demanda pela pesquisa, é a

habilidade relacional, o comprometimento ético e epistemológico do pesquisador que

tornará possível a constituição de um canal de comunicação aberto entre os diversos

atores na investigação, permitindo a autorização do pesquisador ao mundo

simbólico do trabalhador. A atenção a esses preceitos reforça a importância de

trazer ao centro da pesquisa o trabalhador como artífice fundamental da pesquisa.

Modelo Operário Italiano de luta pela saúde – MOI

Das experiências da luta pela saúde do MOI herdamos a importância que eles

deram ao saber dos trabalhadores na própria produção do saber científico. Não

somente assinalando que os trabalhadores fazem uso de um conjunto de saberes

para desenvolver suas atividades (e que a Ergonomia da Atividade nos permite

também acessar de maneira muito rica). O que se destaca nessa experimentação do

MOI é realmente o papel que o trabalhador ocupa no exercício da produção

científica em si. Rompendo definitivamente com o princípio epistemológico da

absoluta separação entre sujeito e objeto de pesquisa – questão que ainda provoca

grandes debates na Academia – o grupo encabeçado por Ivar Oddone (ODDONE et

al., 1986) re-insere a participação dos trabalhadores na prática da pesquisa, dando-

lhes um papel ativo na prática de pesquisar e de analisar o trabalho que se pretende

conhecer. Sua proposta de investigação baseia-se na idéia de que a luta dos

operários por melhores condições de saúde e de trabalho está calcada no

conhecimento que eles próprios possuem sobre sua realidade. Esse conhecimento,

desenvolvido e partilhado pelos próprios trabalhadores, são frutos de anos de trocas

de experiências, e se desenvolvem a partir de proto-análises sobre os impactos do

trabalho na saúde dos pares (uma espécie de “epidemiologia” “bruta”, “selvagem” e

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empiricamente fundamentada) e por meio de construções de sentido coletivo sobre a

saúde, sobre o adoecer e sobre o ambiente de trabalho. O trabalhador é, então,

reconhecido enquanto portador de saberes informais que são fundamentais para os

processos de trabalho. Em contrapartida, o conhecimento técnico, tendencialmente

abstrato e generalista, no olhar desses pensadores, carece de sensibilidade na

consideração do saber do outro, o que o torna limitado, freqüentemente impreciso,

preconceituoso e pouco eficaz. Visto que a experiência cotidiana de quem vive a

realidade de trabalho permite-lhe afirmar alguns de seus aspectos com clareza maior

do que aqueles que supõe carregar um saber científico sobre essa mesma

realidade, o grupo de Oddone concluiu sobre a impossibilidade de se compor um

conhecimento sobre o mundo do trabalho. Assim, todos os atores se tornariam co-

autores da pesquisa enquanto portadores de seus saberes específicos (VINCENTI,

1999). Dessa maneira, o conhecimento que se produz sobre o trabalho será mais

abrangente e acarretará melhores instrumentos de transformação da realidade se se

calcar sobre tais saberes operários. Mobilizados, então, pelo objetivo de garantir e

promover a integridade dos homens que trabalham num determinado ambiente, as

intervenções do MOI buscam confrontar as diversas competências dos operários

para obter, como produto de um determinado encontro trabalhadores-

pesquisadores, o máximo possível de mudança em favor do homem (ODDONE et

al., 1986). O grupo de Oddone propõe, então, a formação de uma “Comunidade

Científica Ampliada”, que inclui nessa tarefa, tanto o grupo de pesquisadores quanto

os próprios protagonistas do trabalho pesquisado, ao invés de limitar a atividade de

pesquisa a um grupo de experts que não vivenciam cotidianamente a experiência e

a atividade de trabalho que se quer conhecer.

A novidade e os avanços da Comunidade Científica Ampliada, na medida em

que assume o trabalhador como ator de sua história, e seu saber e sua atividade

como elos fundamentais na produção do mundo, aparecem exatamente quando

permitem que o fazer da pesquisa inclua o protagonista da atividade de trabalho em

análise, no próprio processo de investigação. A partir daí, consegue colocar em

confronto saberes produzidos por atividades distintas – a experiência cotidiana e a

experiência reflexivo-científica –, para “pôr em evidência este trabalho de cognição

que liberta a experiência-experimentação da experiência-encontro e a ‘ciência

selvagem’ que é o seu produto” (CORNU, 2003, p.213). Desse resultado, uma outra

maneira de tomar consciência sobre sua experiência, resgatando ao trabalhador um

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poder sobre seu saber que fora há muito capturado pelo saber dos peritos que

legislavam sobre ele. Lembrando sempre que para Oddone, essa experiência é

sempre, e fundamentalmente, coletiva. Aliás, por se tratar de uma intervenção desde

sempre coletiva, e que tem como objetivo desvelar e acessar a dimensão de saberes

coletivos sobre a atividade, esse tipo de pesquisa-intervenção requer mais que

autorização: é fundamental a vontade, disponibilidade e o investimento do

trabalhador para isso. Quando um trabalho de pesquisa se dá exatamente por meio

das trocas entre um coletivo de pesquisadores profissionais e de um coletivo de

trabalhadores, visando abordar esse mesmo coletivo em situação de trabalho, além

de autorização de acesso do pesquisador ao universo cognitivo e simbólico do

trabalhador, se requererá sempre uma mobilização coletiva dos protagonistas do

trabalho em torno desse trabalho, caso contrário ele não acontece.

Psicodinâmica do Trabalho

A PDT lança mão de alguns conceitos estabelecidos pelo MOI e pela

Ergonomia da Atividade, tanto para explorar o coletivo de trabalho, quanto para

estabelecer os parâmetros de sua condução ético-epistemológica, que é a

transformação do trabalho. Entretanto, a PDT se diferencia das demais abordagens

sobre o trabalho por focar menos a experiência subjetiva do operador e muito mais

as dinâmicas psíquicas dos trabalhadores em suas relações com o trabalho, e como

essa relação interfere na relação saúde-doença-trabalho. Portanto, mais que

compreender uma suposta cultura profissional dos trabalhadores e as regras a que

ela está submetida, o que pretende a PDT é compreender as estratégias

desenvolvidas pelo grupo de trabalhadores para detectar a nocividade (o que gera

sofrimento psíquico patogênico), interpretá-la e resistir, vivenciar e se

autodesenvolver perante as condições impostas pela organização do trabalho. Além

disso, visa desvelar os princípios constitutivos das dinâmicas sociais, dos saberes,

dos fazeres e dos saberes-fazer dentro de uma determinada organização e as suas

relações com as tarefas, a hierarquia, o plano político da empresa, etc. Ressalta-se

que a passagem da Psicopatologia do Trabalho para a Psicodinâmica visa acentuar

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o aspecto constitutivo e produtivo do trabalho na produção de saúde. Ou seja, o

trabalho se torna, inquestionavelmente, um elemento central na produção da saúde

do trabalhador, e não unicamente na produção de doença, condição mais visível

quando se tratava da Psicopatologia do Trabalho.

Semelhanças existem, também, entre a PDT e a Ergonomia, principalmente

quando utilizam a constatação das diferenças inevitáveis entre o real e o prescrito.

Entretanto, a PDT supõe que as dinâmicas do trabalho se dão para além de uma

passagem de um trabalho prescrito para um trabalho real operado por um

trabalhador em sua atividade de trabalho. Ampliando o debate sobre as diferenças

entre o prescrito e o real na atividade de trabalho, Dejours (2002) denomina de real

do trabalho a instância da realidade que se recusa a qualquer sorte de descrição,

prescrição e aprisionamento e com a qual o trabalho (e o trabalhador) é confrontado

continuamente em seus afazeres cotidianos. Para Dejours, essa confrontação com o

real do trabalho é sempre experimentada por meio do sofrimento, um afeto que se é

vivido no presente e pelo corpo, o que requer dos trabalhadores uma grande

mobilização para superarem esse afeto que se apresenta, ao mesmo tempo, como

uma fonte de inteligência e de saúde criadora, ou, quando não se encontram os

meios de se o superarem, uma fonte de doença e de dor. É, portanto, por meio

desse esforço de superação e inventividade que se desdobra um conjunto de

processos subjetivos e de dinâmicas coletivas (no qual a psicodinâmica do

reconhecimento, que é um processo coletivo, possui um papel primordial) que

produz saberes de prudência, sistemas defensivos e modos operatórios que

constituem um cenário de fortalecimento da identidade.

Assim, diferentemente da Ergonomia da Atividade, que procura debruçar-se

sobre o hiato entre a prescrição e a tarefa realizada elencando os aspectos que

constituem e são mobilizadas nessa diferença (os comportamentos e saberes

envolvidos, e por ele produzidos, bem como suas conseqüências, etc.), a PDT

procura enfocar as condições da organização do trabalho – sempre a organização

real do trabalho – e suas influências nas dinâmicas subjetivas, individuais e coletivas

que tentam superar as lacunas e o sofrimento provocado no confronto da prescrição

com o real do trabalho. Ou seja, a PDT se debruça sobre os processos

intersubjetivos que tornam possível a gestão social das interpretações do trabalho

pelos indivíduos – criadores de atividades, de saber-fazer e modos operatórios

novos (DEJOURS, 2004b). É verdade que ambas se preocupam com a

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transformação das condições de trabalho, contudo a Ergonomia enfoca, sobretudo,

a revisão e transformações das questões técnicas que tornam esse hiato perigoso

ou difícil de ser suportado pelo trabalhador (além de redutor da produtividade),

enquanto a PDT procura resgatar o espaço coletivo de reflexão e deliberação sobre

o trabalho (de si, do outro e das eficácias das invenções movimentadas pelas

inteligências astuciosas postas em práticas pelos trabalhadores). Isso porque, para

Dejours, a saúde no trabalho vai se constituindo na medida em que as tarefas

executadas pelos operadores, suas atividades, sejam reconhecidas, pois é somente

por meio de um conjunto de invenções singulares, de tomadas de risco pelo

operador, pela mobilização de forças coletivas não reconhecidas ou autorizadas pela

empresa e por um profundo engajamento subjetivo no trabalho, que as inevitáveis

falhas das tarefas prescritas acabam sendo sanadas com sucesso, permitindo que

as tarefas demandadas ao trabalhador sejam rigorosamente cumpridas.

Daí que, tanto em relação ao MOI, quanto em relação à Ergonomia, as

diferenças entre elas e a PDT foram de tal ordem que o desenvolvimento de uma

metodologia própria se fazia obrigatória. Como dito, existem algumas aproximações

metodológicas entre a PDT, o MOI e a Ergonomia. Entre elas, se destacam: a

análise da demanda, o recurso à palavra do trabalhador, a validação consensual e o

coletivo de pesquisa. Entretanto, elas diferem um pouco em seus objetivos.

De acordo com a PDT, o recurso à palavra é utilizado tecnicamente para

acessar as dinâmicas intrapsíquicas mobilizadas pelo trabalho, que muitas vezes

nem os próprios trabalhadores têm conhecimento. Para Dejours, o principal meio de

se desvelarem essas dinâmicas é a construção de espaços de discussão entre

coletivos de trabalho e de pesquisadores, a partir do qual se revelarão e se

interpretarão as contradições surgidas neste debate. Essas contradições serão, a

partir de interpretações por parte dos pesquisadores, retornadas ao grupo que

deverá reelaborá-las coletivamente, validando, conseqüentemente, as interpretações

dos pesquisadores. Essas interpretações são as bases dos achados teóricos que

serão sistematizados ao fim da pesquisa. Tudo isso “exige um trabalho reflexivo de

perlaboração coletiva levado pelo desejo de reapropriação e pela vontade de

emancipação dos trabalhadores participantes”. (DEJOURS, 2004b, p.82). O recurso

à palavra é a única maneira desse esforço coletivo se tornar objetivado.

Porém, qualquer palavra é sempre dirigida a alguém a partir de critérios

sempre pessoais. Que garantias terão os pesquisadores acerca da veracidade,

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sinceridade ou autenticidade da palavra dos trabalhadores? Como evitar, então, que

esse contato com os trabalhadores não sofra das duas distorções que diminuem a

autenticidade da palavra dirigida a outrem, a saber: o uso da palavra carreada de

interesse em obter algum ganho material ou social, por meio da manipulação da

pesquisa e dos pesquisadores, e os sistemas defensivos, cuja função é justamente

atenuar o sofrimento evitando que as suas determinantes e sua realidade emirjam à

consciência? (DEJOURS; JAYET, 1994). Não é somente por meio da análise da

demanda que se pode vencer esse duplo desafio: garantir a veracidade, sinceridade

e autenticidade da palavra dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que se deve

mobilizá-los em torno do trabalho coletivo de elaboração de sua realidade de

trabalho. “O princípio metodológico empregado para tentar vencer esta dificuldade

consiste em reservar um lugar importante, na fase de preparação da pesquisa, à

análise da demanda...[que é] um momento capital, quando não decisivo, de toda

pesquisa em psicodinâmica do trabalho” (DEJOURS, 2004, p.84).

A que demanda Dejours sinaliza? Para a PDT, a demanda por uma pesquisa

é o aporte que dá legitimidade a alguém externo a um grupo, para ingressar na

dinâmica interna de um coletivo de trabalho, na busca de uma transformação das

condições da organização desse trabalho. Basicamente, de início o interesse da

PDT é tornar legítima a pesquisa entre os trabalhadores, implicando-os em um

processo que dependerá fundamentalmente deles para transformar sua realidade.

Ao trabalhar a demanda por essa pesquisa, o pesquisador pode analisar sua

implicação, para avaliar e analisar os riscos a que estará submetido ao assumir esse

papel de escuta, o que Dejours denomina de escuta de risco. Enfim, analisar a

demanda, em última instância, permitirá aos próprios pesquisadores analisarem seu

próprio trabalho.

A análise da demanda pressupõe a eliminação de qualquer sorte de suposta

neutralidade científica ou de distanciamento para com o grupo de trabalhadores

estudado. Pelo contrário: Dejours pressupõe que as atividades da pesquisa

aconteçam em ambientes do trabalho ou, quando não possíveis, em locais que

remontam os trabalhadores ao trabalho. Trata-se, pois, de resgatar (ou construir)

com os trabalhadores os espaços de debate sobre o trabalho, uma vez que somente

assim é que se pode colocar em funcionamento análises sobre o trabalho que

ultrapassam os impedimentos mobilizados tanto pela organização do trabalho,

quanto pelos sistemas defensivos a ela reagentes. Eis aí a postura ético-

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epistemológica e teórico-metodológica que em parte incorporamos em nossa

investigação: a valorização do debate coletivo, a preocupação pela mobilização do

trabalhador neste debate, o recurso à palavra do trabalhador, mas também o

desenvolvimento de uma escuta de risco (em que nós nos lançamos ativamente), a

valorização de alguns conceitos teóricos norteadores (sobretudo os de saberes de

prudência e de sistemas defensivos), entre outros. Ressaltamos aqui, entretanto,

que não fizemos uma pesquisa seguindo inteiramente os preceitos metodológicos de

qualquer das abordagens, nem da PDT: nelas nos inspiramos, delas utilizamos

apenas algumas contribuições, algumas teóricas, outras de métodos, outras ético-

epistemológicas) para enriquecer a análise do trabalho que procuramos mobilizar em

conjunto com o coletivo profissional de motoboys. Outras contribuições tão

importantes quanto as da PDT nós obtivemos da Clínica da Atividade.

A Clínica da Atividade

Considerando, com Vigotski (2003), o papel central das emoções na gênese e

no processo de desenvolvimento, Clot irá possibilitar novas dimensões às relações e

processos psíquicos no mundo do trabalho, já bem desenvolvidas, de outras formas,

a partir da produção da PDT (DEJOURS, ABDOUCHELI; JAYET, 1994; DEJOURS,

1994) e da Psicossociologia Francesa (ENRIQUEZ, 2000; AUBERT; de GAULEJAC,

1992). Essas duas abordagens clínicas sobre o trabalho, por meios bastante

diferentes, lançam mão das contribuições da Psicanálise para analisar as relações

entre a ‘subjetividade’ e o trabalho, tendendo, por isso, a priorizar o pólo “sujeito” em

detrimento do pólo “trabalho” no estudo das relações trabalho-trabalhador.

Principalmente a Psicossociologia, mas também um pouco a PDT, o que se procura

é mais compreender os efeitos do trabalho no mundo psíquico do trabalhador, ou

seja, como as dinâmicas do trabalho vão permitindo a um determinado sujeito (com

sua história, sua “estrutura” psíquica) construir uma identidade por meio do trabalho,

considerando-se que o trabalho é, indubitavelmente, um meio privilegiado de

construção da identidade e da saúde psíquica. Diferentemente dessas duas

abordagens, segundo Clot (2006), para a abordagem da Clínica da Atividade (CLOT,

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2006; FAÏTA, 2005) a atividade não é influenciada pelo mundo psíquico, como se

essa fosse uma exterioridade daquela. Pelo contrário, as intenções, sentimentos,

emoções, inibições, enfim, o meio psíquico é o meio por onde a atividade se

desenvolve e se constitui, sobretudo a atividade linguageira. Clot deixa claro, por

outro lado, que o mundo psíquico se constitui através da atividade (2006). Destarte,

na perspectiva de Clot o mundo do trabalho não é apenas o local de processamento

da atividade, mas também do desenvolvimento subjetivo das pessoas e, por

conseqüência, do desenvolvimento da atividade24. Mais que um meio privilegiado de

atualização psíquica do homem, para Clot, o desenvolvimento psicológico se dá por

meio do trabalho e da atividade.

Voltando a Oddone, Clot observa que sua proposta de pesquisa-intervenção

junto aos operários não é apenas uma produção de atividades de transformação,

mas também de reconstrução das relações sociais e das condições para o

desenvolvimento psicológico – ressalta-se aqui a idéia de desenvolvimento conforme

Vigotski. Entretanto, não se trata apenas de resgatar o espaço coletivo de

deliberação, conforme sugere Dejours, mas de propiciar o desenvolvimento da

capacidade inventiva do trabalho, sobretudo mediado pelo coletivo de trabalho

(coletivo este que, a partir de Bakthin, Clot identifica como espaço de produção do

gênero da atividade profissional) e pela clínica da atividade. De fato, para Clot a

atividade de trabalho emerge como eixo central de sua análise clínica. Com isso, o

que se destaca no processo de análise da atividade não é a potência da “atividade

subjetivante” do trabalhador que se mobiliza na busca da confrontação com o real do

trabalho (DEJOURS, 2002). Para além da inventividade operária, a Clínica da

Atividade se propõe a investigar como se propiciam (ou não) os meios genéricos de

um determinado ofício para que o trabalhador consiga desenvolver suas atividades –

até porque para Vigotski a mediação do social é que propicia o desenvolvimento

cognitivo humano –, chamando atenção ao fato de que entre a prescrição da tarefa e

a tarefa realizada existe muito mais em jogo que a utilização estratégica de

determinados saberes coletivos para suprirem as falhas da prescrição. Por exemplo,

Clot sugere que entre a atividade prescrita e a atividade real deve-se analisar

também o meio em que se desenrola o real da atividade, ou seja, um conjunto de

forças psíquicas, movimentos, germinações ou alusões a atividades que não são

24 Sobre outras diferenças, ver CLOT (2001).

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efetivamente realizadas, atividades essas que são desejadas, mas que não

encontram as condições de se desenvolverem, ou que são impedidas ou negadas,

ou ainda que escapam ao controle do trabalhador e vêm em paralelo às atividades

principais. Enfim, ações que não se manifestam completamente na atividade

realizada (observada, conscientizada), mas que, nem por isso, deixam de ter um

papel essencial nas dinâmicas do desenvolvimento da atividade. A Clínica da

Atividade, tanto quanto a Ergonomia, chama atenção para a atividade em cena e o

complexo universo que ela movimenta. Clot chama atenção, também, para o papel

que, no gênero da atividade, exercem os estilos singulares através da singularização

do gênero na atividade concreta de cada trabalhador. São esses estilos – o gênero

em ato – que atualizam o gênero, reenviando ao coletivo as invenções que cada

trabalhador cria no uso singular que cada um faz do gênero do ofício (CLOT, 2006).

A Clínica da Atividade é, de antemão, uma intervenção clínica, uma vez que

se trata de uma atividade espaço-temporal no qual uma pessoa ou grupo de

pessoas se dispõe a falar sobre aquilo que vivenciam, buscando ‘tomar consciência’

daquilo que experimentam e que vivenciam sem saber exatamente como, quando ou

porquê. Muitas vezes, o que se desenrola nesses meios de trabalho acarreta em

situações, sentimentos e conhecimentos que causam dificuldades de seguir adiante

com suas vidas. É por meio da clínica que se tem a possibilidade de se propiciar

novos territórios para o desenvolvimento psicológico (2006). Assim, Yves Clot

observa que, se a questão central da atividade é exatamente seu desenvolvimento

no curso do qual o próprio sujeito se desenvolve e por meio do qual o trabalho se

torna possível, então para se conseguir compreender o que se passa em uma

atividade, deve-se propor instrumentos metodológicos e procedimentos que

colaborem para o desenvolvimento da atividade. Lança mão, para tanto, da

concepção de desenvolvimento de Vigotski, para propor que todo setting de

pesquisa, para ser fidedigno ao princípio da atividade, deverá ser um espaço para

que a atividade se desenvolva. Assim, para além da tese de que para transformar o

mundo dever-se-ia conhecê-lo, sugere também como extremamente importante para

a atividade de pesquisa-intervenção que “não se deve apenas compreender para

transformar, mas também transformar para compreender” (2006, p. 137). Algo que,

entretanto, parece-nos já estar presente implicitamente na tese clássica.

Enfim, a proposta de um setting de pesquisa provocando um desenvolvimento

que permita ao coletivo de trabalhadores apreender a atividade que realiza

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cotidianamente em um universo distinto daquele plano em que é executada – ou

seja, apreendê-la no plano da consciência, por meio da atividade linguageira –,

setting esse que transforme as relações dos trabalhadores com sua experiência.

Este é um meio excelente para se compreender como se desenvolve e como se dão

os processos da atividade. Para compreender a atividade, dever-se-á, com muita

humildade epistemológica (SCHWARTZ; & DURRIVE, 2007), permitir que a

atividade em questão se desenvolva. Clot propõe, então, uma técnica que denomina

autoconfrontação cruzada – a partir da tradição de confrontação da Ergonomia e

especialmente explorando o MOI – na qual um trabalhador, ao assistir-se em plena

atividade, filmada pela equipe de pesquisa com seu consentimento e orientação, é

inquirido, diante novamente das câmeras, a comentar essa atividade em confronto

com o pesquisador. Em um outro momento, coloca essa segunda filmagem em um

debate num grupo de trabalhadores (que realizam ou não a mesma atividade), para

que todos comentem o comentário do colega sobre sua própria ação. Essa técnica

de autoconfrontação cruzada permite, por meio de dois processos diferentes – uma

autoconfrontação de um trabalhador com sua própria atividade, e uma construção do

gênero coletivo sobre a atividade singular do sujeito em questão –, colocar em

relevo, e como objetivo de análise, o gênero do trabalho que é, como dito, o universo

em que se conforma a atividade do trabalho.

Vale considerar ainda que, ao buscar acessar o gênero a partir de uma

experiência singular, Clot espera mais que um dispositivo para iniciar uma

discussão. Por meio do conceito de estilo (explorado por Faïta, 2005), Clot observa

que além do gênero da atividade, que é o universo comum no qual alguém se faz

pertencente ao grupo, a experiência individual – acima chamada de plano-individual

– de singularizar esse gênero, permite que cada um crie uma auto-referência

fundamental para tornar vivo o gênero e, ao mesmo tempo, criar uma experiência

individual. Ao observar uma autoconfrontação, Clot espera disponibilizar ao grupo a

visualização sobre os estilos de cada um no mundo do trabalho e como ele opera,

juntamente com o gênero coletivo da profissão, uma função fundamental de

organizador psíquico. Daí, para não se prender sobre a concepção de um

determinismo social, Clot espera lançar novos olhares sobre como funciona a

dialética singular-coletivo, trabalhada de maneira igualmente potente em Schwartz e

Durrive (2007). Entretanto, a autoconfrontação cruzada não é o único procedimento

utilizado pela Clínica da Atividade para se mobilizar o desenvolvimento da atividade.

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Partido da técnica das instruções ao sósia, extraída das experiências de

Oddone no Modelo Operário Italiano de Luta pela Saúde, porém inserindo algumas

importantes alterações, Clot propõe a partir desse procedimento um espaço de

autoconfrontação do trabalhador por meio de um suporte midiático (uma fita de

áudio) no qual o trabalhador deverá fazer uma análise de suas próprias respostas

dadas ao entrevistador diante das questões por este levantadas a partir do problema

inicial disparado pela técnica: “imagine que em um determinado dia você não está

com condições de ir ao trabalho e, para tanto, manda um sósia para substituí-lo; que

instruções deve dar ao sósia para que ele possa fazer suas atividades em seu lugar

sem levantar suspeitas de que ele é seu substituto?”. Para Clot, por meio desse

procedimento, o trabalhador consegue se apropriar conscientemente e refletir sobre

as dimensões genéricas e estilísticas que dão sustento a sua atividade. Na medida

em que pode observar, de um ponto de vista exterior à atividade, os princípios e as

racionalidades movimentados por sua ação, o trabalhador consegue se apropriar, de

uma forma nova, desse dinâmico jogo de saberes e modos operatórios, bem como

das dimensões coletivas que conformam sua atividade. A partir daí, o trabalhador

pode explorar novas maneiras de se apropriar dos meios de trabalho, procurando

outras formas de utilização dos saberes, técnicas e valores mobilizados na atividade

de trabalho. Para Clot, as instruções ao sósia auxiliam, de uma maneira privilegiada,

em contextos em que o desenvolvimento da atividade é um dos eixos de um

contexto de formação profissional. Seja como for, é um importante procedimento que

compõe, com a autoconfrontação cruzada, o pacote ferramental da Clínica da

Atividade.

No caso da presente pesquisa, utilizamos as contribuições da Clínica da

Atividade tanto por meio do seu aparato teórico, sobretudo na concepção do papel

que o gênero profissional exerce na função psicológica da atividade e em seu

desenvolvimento, quanto por meio de sua construção metodológica, em que se

reforça o papel da transformação da atividade como forma do desenvolvimento da

atividade e do conhecimento que se tem dela. Nos apropriamos, ainda das

ferramentas da autocofrontação cruzada e das instruções ao sósia, propostas por

Clot e Faïta, bem como lançamos mão da postura ético-epistemológica subjacente a

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essa abordagem clínica (que entendemos situar-se na perspectiva ergológica25).

Aliás, apresentamos aqui as propostas de Clot, constatando os avanços propiciados

pela análise do desenvolvimento da atividade de trabalho, sobretudo acentuando em

sua abordagem clínica do trabalho a maneira como se apropria da riqueza da

perspectiva ético-epistemológica ergológica, sugerido por Schwartz, que veremos

logo abaixo. Ressalta-se aqui, finalmente, que a concepção da transformação de

uma atividade como “pontapé inicial” para a compreensão das dinâmicas de seu

funcionamento, nos remete ainda mais ao caráter ético de uma intervenção,

reforçando o papel de interlocutor conferido ao pesquisador em uma pesquisa desse

tipo. Portanto, para dar sustento às dimensões éticas mobilizadas por essa

pesquisa, nos baseamos na perspectiva ergológica e seu dispositivo de intervenção

na realidade.

A Ergologia e o Dispositivo dinâmico de três pólos – DD3P

Nós obtivemos da perspectiva ergológica, proposta por Schwartz (mas fruto

do trabalho de um coletivo), alguns dos pressupostos ético-epistemológicos

fundamentais, com feitos teóricos e metodológicos, para gerir o debate do coletivo

de pesquisadores com o coletivo de motoboys. Contudo, para além do papel

exercido pelo trabalhador na realização do processo investigatório, e mais que as

contribuições conceituais que nos guiaram ao longo do encontro pesquisador-

trabalhador, as idéias de Schwartz nos referenciaram, sobretudo, para a dimensão

de uma ética da atividade de pesquisa que incorpora como condição sine qua non

desse encontro as diferenças dos saberes em diálogo, bem como os limites

intrínsecos a cada conjunto de saberes e os desenvolvimentos que podem emergir

desse encontro para cada um dos pólos nele envolvidos.

Schwartz (2000), revisitando o trabalho de Oddone e a prática do Modelo

Operário Italiano, considera que a força do que eles denominaram “Comunidades

25 Chamamos atenção ao fato de que Faïta fez parte da equipe da Universidade de Provence que engendrou a Ergologia, sendo até hoje membro da equipe que dirige o Master de Ergologia daquela Universidade. Clot também trabalhou por longo período com este grupo, e ali fez seu doutoramento tendo como orientador Yves Schwartz.

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Científicas Ampliadas” encontrou seus limites quando a importância do saber dos

trabalhadores assumiu um papel que contradiz o próprio motor de produção do

saber científico. Quando um conceito se desenvolve, o faz a despeito das exigências

do particular, visto que embora produzida pela experiência, deve descolar-se dela

para se tornar geral, adaptável e instrumental a várias experiências semelhantes.

Porém, este é o ponto decisivo: é no re-encontro com a própria experiência que esse

conceito se revigora e (re)valida, tanto porque ali se torna vivo, quanto porque nesse

re-encontro pode alargar-se, expandir-se, transformar-se.

Nesse sentido, o MOI, ao colocar no centro da pesquisa a experiência, deixa

pouco espaço para a conceituação emergir e desenvolver-se fora dela para, depois,

poder ser reinvestida de novas questões num processo contínuo de

desenvolvimento26. É aqui que Schwartz tenta resgatar uma importância ao papel do

saber-conceituar, em detrimento da quase exclusividade do valor do saber-fazer de

Oddone. Para Schwartz,

paralelamente, mas além do trabalho em comum, cada um deve prosseguir sua própria batalha. Os universitários retornam às sua disciplina para avançar no (re)questionamento (...) que esta experiência de trabalho em comum tornou necessário. Os interlocutores da atividade (...) passam a valorizar as aquisições no seu campo (2000, p.43).

Assim, esses dois pólos de saber são postos em diálogo: um pólo onde o

saber técnico, conceitual, científico, analítico, que se traduz como captura de

experiência e extração do sentido comum, e o outro pólo, onde o saber-fazer, as

variabilidades e gestões cotidianas e singulares, de criação e recriação de normas,

valores e de embate de sentidos e sentimento, são colocados à prova

continuamente pelo acaso. Esse diálogo irá permitir um desenvolvimento contínuo

de criação de sentidos, valores e teorias que, por um lado expandem o saber da

ciência, na medida em que o conceito se depara com seus limites impostos pelo

local, pelo singular, e por outro lado garantirão à experiência instrumentos que

permitem reorganizá-la e apreendê-la em um nível acima ao da singularidade,

permitindo a troca de idéias e o confronto de opiniões em uma outra esfera, que é a

do coletivo. Um diálogo desigual que exige sempre uma resposta e uma contra-

resposta entre campos de saberes distintos e complementares.

26 O que Schwartz (1988) entende ser fruto de uma visão fraca do que é ciência. Os trabalhadores, através da pesquisa-intervenção não se tornarão cientistas. Razão pela qual Athayde e Brito (2003) preferiram denominar Comunidade Ampliada de Pesquisa.

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Porém, para evitar que o saber da ciência, extremamente valorizado em

nossa sociedade, torne o saber-fazer obscuro e alheio ao seu valor e função,

Schwartz recorre a um terceiro pólo, que garanta a circulação desse mecanismo.

Lançando mão, uma vez mais, de Oddone (segundo Schwartz, Odonne não falava

em terceiro pólo, mas o utilizava, sendo seu operador, neste caso, o sindicato),

Schwartz sugere um pólo ético-epistemológico que equilibre e dê um sentido ao

diálogo dos dois pólos acima. Esse terceiro pólo direciona o desenvolvimento desse

diálogo para os valores da emancipação da classe, da imanência e da potência da

autonomia do ser e do fazer, da valorização dos valores de cidadania, da ética da

vida, da saúde e da igualdade. Todavia, respeitar sempre nessa relação o ponto de

vista da atividade, compreendendo que toda história se produz nas dramáticas

cotidianas, nos embates de valor e nas renormatizações freqüentes dentro e fora

das instituições e relações:

é uma exigência ética, de respeito sem sombras de dúvidas, mas ao mesmo tempo é uma exigência epistemológica dado que, no caso de não adotarmos e respeitarmos esta postura, nos faltaria um espaço de compreensão do que torna possível a história, as instituições, o próprio trabalho (SCHWARTZ; DURRIVE, 2007, p. 268).

Entretanto, a necessidade de produzir um dispositivo dinâmico de três pólos

não tinha como intenção o desenvolvimento de um determinado modelo de

atividades de pesquisa, uma espécie de método ideal e que seria a “solução” para

qualquer tipo de pesquisa embasada na perspectiva ergológica. Na verdade, tratava-

se mais da configuração de um “paradigma”, de um determinado dispositivo de

pesquisa que mobilizasse e gerisse, do ponto de vista ético-epistemológico, o

encontro entre pesquisador-trabalhador reconhecendo-se tanto a complexidade do

fenômeno trabalho, quanto seu lado bastante enigmático, assim como a dupla

incultura (do conceito e da experiência) a respeito. Assim, Schwartz não pretende

com o DD3P anunciar os limites dos outros métodos. Pelo contrário, trata-se,

segundo ele, de construir e utilizar uma postura, um modo de trabalho coerente com

o objeto (vida, trabalho) e seu aporte teórico, na medida em que esse dispositivo

coloca em análise o processo da atividade e não a experiência em si. Ou seja, o

dispositivo dinâmico de três pólos não é um método que substitui outros, mas um

aparato que propicia mediar a utilização de conceitos, técnicas e, quiçá, métodos de

pesquisas à luz da perspectiva ergológica (criticando, renovando, expandindo).

Na proposta dos mapas de risco (ou da cartografia de riscos), como

argumenta Cornu (2003), Oddone parte da experiência para atingir

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instrumentalmente uma exterioridade – se bem que o ambiente não é exatamente

exterior à atividade, porém o processo da atividade em si não está em questão.

Schwartz, por outro lado, na medida que inaugura um campo de discussão e

produção de saber sobre a, e por intermédio da, atividade27, consegue vislumbrar

com mais exatidão o processo de desenvolvimento e funcionamento de toda

atividade humana, e não unicamente da atividade de trabalho. Nessa investigação,

Schwartz compreende que o saber-fazer desenvolvido na experiência da ação

compreende sempre um patrimônio acumulado de experiências antecedentes

àquela que a pessoa realiza. Esse patrimônio, mesmo que não cientificamente

desenvolvido, é sempre uma certa generalização conceitual, um valor relativamente

abstrato, uma camada de poder e um sentido mais ou menos genérico. Abordar a

experiência, portanto, sem considerar o processo de tornar a convocar e validar o

patrimônio adquirido e o saber conceitual é pôr em risco exatamente o espaço de

invenção existente entre o fazer, o inventar, o adquirir, o aproveitar.

A atividade humana em seu processo é, pois, o objeto de análise de

Schwartz; é a matriz central da produção do mundo e da história – algo da ordem de

como uma matriz autopoiética está para vida, de acordo com Maturana e Varela

(1995). O dispositivo de três pólos seria como que uma diretriz metodológica que

permite colocar essa atividade em análise, tomando-se como ponto de vista a

riqueza desse fenômeno, que é a atividade de trabalho.

Schwartz nos mostra que as dinâmicas do saber-fazer convocam, a todo

momento, os patrimônios acumulados de saber que conformam e significam a

atividade humana. Nesse processo, contudo, a atividade linguageira e o

pensamento, não podem compreender toda a riqueza da atividade realizada. Daí

emerge uma ruptura entre a atividade e a consciência que deve ser reconvocada

continuamente para permitir uma compreensão mais adequada dessa realidade.

Essa reconvocação/validação do patrimônio acumulado, que se dá por formas

diversas, é um sentimento inerente à atividade. Porém, para se configurar como um

canal possível de conhecimento acumulado para a convocação do saber-fazer da

atividade, o pesquisador deve dispor-se a se despir de seus pré-conceitos,

colocando-os em suspensão no contato com a atividade do outro para, somente

assim, se tornar um canal de diálogo que o outro pode apropriar também como seu.

27 algo que ele, a partir de um dado momento, propõe denominar Ergologia, pois até então a formulação usual era análise pluridisciplinar de situações de trabalho, sigla APST.

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A apropriação crítica desse saber do outro, como um saber com o qual de pode

dialogar, por meio de um trabalho comum entre as polarizações em diálogo, requer

confiança (em relação a regras) e uma escolha política e ética. E esse diálogo,

sempre marcado por suas diferentes perspectivas, é o canal que permite a

construção de outros sentidos coletivos sobre a atividade em curso, garantindo a

ambas as partes ampliar seu patrimônio acumulado sobre a realidade28. Essa

construção se dá, entre outros, por meio de uma convocação/validação do saber

alheio. Eis o grande desafio que exige mais que um método de intervenção: exige

uma postura ética-epistemológica, como o próprio Schwartz se refere (SCHWARTZ;

DURRIVE, 2007). Daí, importa muito a maneira como o pesquisador coloca-se como

interlocutor que propiciará (ou não) um legítimo (ou possível) encontro com os

trabalhadores, seus saberes e os patrimônios acumulados pelo ponto da atividade.

Para tanto, alguns elementos são necessários.

Um primeiro elemento que se destaca é a necessidade de observar a

realidade, buscando dar ouvidos ao outro. Ouvir, entretanto, não apenas o que o

outro diz que faz, mas o que ele faz com o que diz e o que faz ao dizer. Com isso,

deve-se dar destaque à atividade do comunicar, à atividade linguageira, resgatando

o ensinamento da Ergonomia que devemos guardar com muito zelo, para

conseguirmos ir além de conjunto discursivo superficial e “jornalístico”29 sobre as

coisas e atingirmos a maneira pelas quais as pessoas produzem sentido sobre elas.

O dispositivo de três pólos nos mobiliza também para estarmos atentos ao

espaço entre as normas antecedentes (prescrição etc.) e as renormatizações (aquilo

que o sujeito inventa, cria, acolhe e transforma) que os trabalhadores inventam

sobre (e a partir de) seu meio de trabalho, e como produzem saberes sobre esse

processo. Para tanto, um segundo elemento a ser levado em conta é a necessidade

de se evidenciar nesse debate a experiência desenvolvida pelos trabalhadores, a

partir dos meios de trabalho. A partir desse relevo, a voz do outro se desvencilha do

papel de investigado, assumindo um papel de inquiridor de sua própria experiência,

para acessar outros planos e universos pela confrontação e construção de sentidos

comuns, que anteriormente lhe escapava. Propor a experimentação de situações

inesperadas, provocando-o a falar sobre si de maneiras antes impensadas,

28 Sobre uma perspectiva em Psicologia Social que, em alguns momentos, a nosso ver, se aproxima com a de Schwartz, ver GONZÁLES REY (2003). 29 Referiremos-nos a esse tipo de discurso logo abaixo.

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intervindo e questionando sempre para que o grupo pesquisado se descole do ideal,

é o caminho da intervenção que se processa por meio do DD3P.

Finalmente, para garantir que se desenvolva teoricamente a discussão e que

todo o processo se prolongue para uma transformação potente do mundo, buscando

construir outros patrimônios e colocar em cena outros valores no processo de saber,

fazer e viver, o DD3P coloca o saber-da-atividade para além de seu espaço de

investigado quando, ao confrontar o saber-conceituar, lança-lhe questões que

implicam na reformulação de seus limites, leis e sentidos. De investigador a

investigado, o dispositivo de três pólos dá ouvidos ao processo de criação no seio do

saber da ciência, ao mesmo tempo em que garante, pelo 3° pólo, o sentido de

transformação da realidade e a busca da ética e da sustentação do ponto de vista da

atividade no centro de todas as relações.

Observar, ouvir, provocar, confrontar, construir. Esses eixos ético-

epistemológicos e teórico-metodológicos dão a base para permitir que qualquer

intervenção coletiva com o objetivo de dar vazão à potência da atividade obtenha

sucesso. O dispositivo dinâmico de três pólos seria, ao nosso ver, o suporte ético-

epistemológico desse processo, permitindo operar o compromisso de transformação-

conhecimento por parte dos atores envolvidos nesse debate sinérgico de pólos que

se atraem. A partir dele, e por meio da aplicação de métodos e procedimentos de

pesquisa que são a ele coerentes, pudemos desenvolver uma atividade de pesquisa

que procurou mobilizar os envolvidos nessa atividade por meio de um engajamento

subjetivo dos pesquisadores e trabalhadores, cujos passos apresentamos a seguir.

Nesse sentido, os procedimentos que utilizamos para desenvolver nossa pesquisa30,

e que apresentaremos logo a seguir, encontram na perspectiva ergológica as

diretrizes necessárias para gerirem o debate em curso, respeitando um

compromisso ético com o ponto de vista da atividade.

30 Que a rigor devem se amparar em um conjunto epistemológico do qual se espera que suas características e elementos de intervenção consigam fazer evidenciar exatamente os aspectos da realidade que sejam coerentes com tal conjunto epistemológico.

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Um coletivo em análise: alguns métodos e técnicas em aplicação

Dizíamos anteriormente que o trabalho e a atividade dos motoboys são muito

pouco conhecidos, mesmo se considerando que se trata de uma atividade com a

qual já estamos relativamente familiarizados. Contudo, veremos (capítulo 2), que se

inicia no país um consistente, embora ainda incipiente, conjunto de pesquisas

visando responder a alguns problemas que essa atividade socialmente nos coloca.

Entretanto, parte importante das pesquisas não tem afinidade com os preceitos e

perspectivas por nós escolhidos para compreender esse trabalho. Resulta disso que

alguns aspectos que consideramos fundamental para uma compreensão adequada

acerca da dinâmica do trabalho dos motoboys deixa de ser sequer mencionado. E

não nos referimos aqui a aspectos marginais à saúde, à segurança ou à qualidade

do serviço. Parte das pesquisas deixa de observar as dimensões dos saberes

mobilizados pela categoria para lidar com as contraintes da atividade, os efeitos

desses saberes na manutenção da segurança e confiabilidade dos serviços

prestados bem como na produção de sentidos para a atividade e nos modos de

subjetivação específicos deste coletivo de trabalho.

Aliás, no chama muita atenção o fato de que as dimensões coletivas do

trabalho, tão caras às abordagens clínicas do trabalho, recebem pouco destaque

nas pesquisas realizadas no país. Para nós, e para várias das abordagens teóricas

acima citadas, as dimensões coletivas do trabalho exercem um papel central em

vários aspectos da vida dos trabalhadores: na produção de saúde do trabalhador

(sobretudo em Psicodinâmica do Trabalho), na produção de saberes sobre a

atividade (tendo destaque o papel que esse aspecto exerce na Ergonomia e na

Clínica da Atividade) e na maneira como esses saberes se perpetuam e produzem

um sentido para o trabalho que exerce uma função fundamental no desenvolvimento

psicológico (em particular para a Clínica da Atividade, mas também para a

Psicodinâmica do Trabalho). Não se pode esquecer, também, o papel que o coletivo

de trabalho exerce nos ‘planos-programas’ de Oddone e na produção de encontros,

debates e no fornecimento de patrimônios acumulados de saberes para a Ergologia,

entre outros aspectos.

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Por essa razão, para nós era urgente compreender a maneira como o coletivo

de trabalho vem se produzindo na atividade de trabalho dos motoboys. Além disso,

na medida em que o coletivo de trabalho exerce um papel preponderante no

fornecimento de ferramentas que permitem aos trabalhadores exercerem suas

atividades com mais segurança – o que Cru e Dejours denominaram Saberes de

Prudência (1987) –, a investigação sobre o trabalho requeria compreender as

dinâmicas da atividade com base em aspectos que são, desde o princípio, coletivos,

tais como os patrimônios de saberes que supostamente vem sendo acumulados ao

longo dos anos em que a ocupação vem sendo utilizada pelas mais diversas

empresas comerciais e de serviços.

Decorreu daí a formatação do objetivo principal da pesquisa: analisar o

coletivo de trabalho dos motoboys e seus efeitos na atividade de trabalho e na

produção de modos operatórios, de saberes e de estratégias de proteção aos riscos

da atividade profissional. Contudo, diante da constatação de que alguns preceitos

teóricos em torno do coletivo, sobretudo do ponto de vista do conceito de ofício,

sugerem que um coletivo de trabalho dependem de uma tradição de saberes, de

sentidos e valores partilhados entre diversas gerações, se tornava necessário

investigar em que medida o pouco tempo de existência vem produzindo efeitos que

limitam os benefícios que um coletivo de trabalho podem trazer a uma determinada

atividade profissional. Era imperativo se verificar também em que medida aspectos

particulares ao perfil sócio-econômico dos trabalhadores poderiam estar afetando a

produção ou impedimento desse coletivo de trabalho. Finalmente, destacou-se como

um fator chave dessa pesquisa a confrontação das dimensões coletivas do trabalho

com a constatação de que essa atividade profissional envolve um risco de acidentes

aparentemente considerável.

A partir dos pressupostos ético-epistemológicos na base de nossa

investigação, e diante de um conjunto de problemas que se interessavam por

dimensões que só poderiam ser abordadas por meio de algum grau de debate

coletivo, pudemos definir os métodos e procedimentos a serem desenvolvidas para a

atividade de pesquisa.

Demos destaque ao estabelecimento de encontros com os trabalhadores em

seu próprio local de trabalho (algo que é indicado pela PDT), sendo eles

incentivados a participar por interesse próprio e a produzirem engajamentos (que

eram de ordens variadas) com a pesquisa. Esses encontros não eram

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necessariamente agendados, sendo, contudo, sempre autorizados pelos

trabalhadores. Os encontros com os trabalhadores não se restringiam a números de

participantes: podiam participar quantos trabalhadores quisessem. Além disso, como

as questões a serem investigadas procuravam compreender os aspectos coletivos

da atividade, não nos interessava especificar algumas informações dos

trabalhadores, tais como sua idade, ou o local de trabalho, salvo em situações em

que essas condições se tornavam indicativas de diferenças mais tendenciais de um

determinado grupo de trabalhadores.

Procuramos acessar os trabalhadores em seu meio de trabalho, dentro dos

limites que eram seguros para nós e para eles, razão pela qual não procuramos

segui-los por entre o trânsito, salvo durante a aplicação da técnica da

autoconfrontação. Os trabalhadores eram convidados a se posicionarem da maneira

que se sentissem mais confortáveis, e não deixamos de nos posicionar politicamente

em nenhum momento. Não se tratava, contudo, de fazer qualquer tipo de acordo

ideológico entre os trabalhadores e a equipe de pesquisa, mas de deixar

transparente, desde o início, a perspectiva com a qual nos afinamos. Acreditamos

que ao invés de uma suposta neutralidade (que, além de inexistente, é, em seu

nome, que muitas vezes se escondem os reais interesses por trás das pesquisas),

entre os trabalhadores e os pesquisadores deve se estabelecer um compromisso

sincero para o desenvolvimento de atividades que propiciam o desenvolvimento de

ambos os pólos envolvidos no encontro, conforme nos ensina a Ergologia.

Por essas decisões de ordem ético-epistemológica e metodológica, com o

tempo pudemos construir uma relação com os trabalhadores que nos propiciaram

ultrapassar os limites que algumas pesquisas encontraram: “frases curtas e

entrecortadas abundam nas entrevistas realizadas com os motoboys” (GRISCI,

SCALCO; JANOVIL, 2007) é como se referiram as pesquisadoras ao que

interpretaram como um sintoma dos efeitos de uma suposta temporalidade a que

esses profissionais estariam submetidos. Sem discordar totalmente das idéias de

Grisci, Scalco e Janovil, já que partilhamos com elas a idéia de que essa atividade

produz de fato uma outra experiência de tempo, sobretudo de tempo produtivo, não

podemos deixar de pensar em que medida essas “frases curtas e entrecortadas”

envolvem um determinado tipo de encontro estabelecido entre os pesquisadores e

trabalhadores. Em nossa (longa) pesquisa de campo não observamos que os

trabalhadores conversem por meio de frases entrecortadas e curtas. Nossa

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experiência sugere que essas “frases curtas e entrecortadas” são mais um sinal de

que o encontro entre pesquisadores e profissionais está ainda em um nível de pouco

investimento subjetivo por parte, pelo menos, dos trabalhadores.

Isso porque, desde o princípio, buscamos deixar claro para eles o valor da

linguagem, das idéias, dos saberes que os trabalhadores tinham sobre suas

atividades e sobre suas vidas profissionais, pessoais, etc. Assim, um certo

estrangeirismo muito marcado dos pesquisadores (que pode ser fecundo, na leitura

que fazemos de Canguilhem), com o tempo, foi sendo amenizado junto aos grupos

de trabalhadores com quem mantivemos os contatos mais prolongados. Os

procedimentos que utilizamos para desenvolver esse encontro estão expostos a

seguir. Observamos que a apresentação em tópicos não sugere qualquer ordem de

aplicação de técnicas. Na verdade, várias atividades iam sendo aplicadas

concomitantemente, o que, em um ou outro ponto, pode ter produzido efeitos que

seriam indesejáveis. Por outro lado, estávamos cientes de que, na medida em que

essa não deixa de ser uma pesquisa que, com as demais produzidas até então,

inauguram um campo investigativo, algumas de suas incoerências e incongruências

possam vir a ser corrigidas em pesquisas mais bem sedimentadas do ponto de vista

epistemológico, teórico, de métodos e de técnicas de investigação.

Ressalta-se, finalmente, que a utilização de métodos quantitativos nessa

pesquisa não tinha como propósito responder aos elementos centrais do seu

objetivo de investigação, mas apenas produzir informações que, por não existirem,

auxiliariam a equipe de pesquisa a se posicionar com mais clareza em um universo

extremamente desconhecido pela Academia. Por essa razão, não nos debruçaremos

extensamente nos procedimentos utilizados durante essa etapa. Faremos apenas

algumas considerações gerais dessa fase da pesquisa, tentando mostrar alguns dos

limites encontrados por nossa equipe durante a aplicação e análise dos

questionários.

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Os instrumentos e técnicas de pesquisa utilizadas e os métodos de registro e de análise dos dados

Diante dos inúmeros obstáculos encontrados ao longo da pesquisa (e que

serão debatidos logo abaixo), as decisões sobre quais métodos e técnicas escolher

ou como conduzir sua aplicação e análise dependia da própria dinâmica de

pesquisa. Nesse sentido, resguardados os rigores que se espera de uma pesquisa

científica adequada, nos baseamos um pouco na sugestão de Becker (1991, p. 12):

“os sociólogos deveriam se sentir livres para inventar os métodos capazes de

resolver os problemas das pesquisas que estão fazendo”. E as soluções inventadas

diziam respeito a como responder às questões elencadas no projeto inicial. Como as

questões eram complexas, exigiram de nós estratégias igualmente complexas,

diante de um cenário desconhecido, tendo como condição de pesquisa, recursos

limitados e uma equipe reduzida. As estratégias, definidas junto com andamento da

pesquisa, foram as abaixo descritas. Antes, é importante reafirmar que a ordem de

apresentação não obedeceu a nenhuma ordem cronológica, pois as atividades

aconteciam de maneira concomitante.

Pesquisa e análise bibliográfica

Realizamos uma extensa pesquisa bibliográfica sobre a temática dos

motoboys e seu mundo do trabalho. Para tanto, pesquisamos nas 9 bases de dados

disponíveis no sistema de consulta da Capes, incluindo as bases ISI Web

Knowledge, Pro Quest, Compendex of Engineering Village, Web Spirs form Silver

Platter, CSA, SciFinder Scholar, EBSCO Host, Blackwell Synergy, Scopus Find Out,

Wilson Web, além do Scielo, Bireme, PosPsico e o Google acadêmico. Para realizar

a pesquisa dos materiais científicos, utilizamos os seguintes termos reconhecidos

para a profissão: motoboy, motociclista profissional, motofrete, moto-entrega,

motorcycle courier, courier, dispatch rider, despatch rider, motorcycle delivery,

motorcycle delivery boy, repartidor de pizza e mesajero motociclista. A partir desta

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pesquisa, nos deparamos com um vácuo de conhecimento sobre a profissão.

Verificamos a existência de uma razoável quantidade de materiais jornalísticos sobre

o assunto no país e em outros locais, sobretudo na Inglaterra. Essas matérias

jornalísticas interessavam-se por aspectos específicos da atividade dos motoboys ou

os citavam por alguma razão, em geral quando tratavam de temas ligados à

economia, à expansão de determinado setor comercial em que os motoboys tinham

algum papel crucial ou na dimensão dos custos de acidentes de trânsito. Em geral,

as reportagens emitiam comentários e utilizavam termos muito semelhantes à

profissão, em geral impregnados de preconceitos semelhantes em todos os locais,

como por exemplo: “A disponibilidade das linhas ISDN de alta velocidade já

revolucionou a maneira em que muitas agências trabalham, permitindo-lhes

manobrar arquivos de arte entre computadores em milissegundos ao invés da

velocidade de um motoboy kamikaze” (CONDON, 1995, p. 25, grifo nosso). Já no

tocante à produção científica, apenas nos últimos 4 anos vêm sendo realizados

estudos no Brasil. Em outros países, embora a produção também não seja muito

significativa, esse interesse começou um pouco anteriormente. De qualquer modo,

podemos afirmar com certeza que a produção científica sobre o trabalho dos

motoboys está ainda em sua fase mais inicial. Em relação aos materiais científicos

produzidos, informamos que tivemos acesso a parte deles, principalmente materiais

brasileiros. No capítulo 2, faremos uma discussão um pouco mais detalhada sobre o

‘estado da arte’ da produção científica sobre motoboys no Brasil.

Análise de dados epidemiológicos

Investigamos dados de mortalidade por acidentes de trânsito, já que as

informações sobre morbidade, entre os quais acidentes, não foram obtidas em

tempo de contribuir com o presente estudo. O principal hospital público de

atendimento a traumas na capital (Vitória-ES) não dispunha de informações

sistematizadas que permitissem buscar os dados necessários à pesquisa no prazo

previsto para a conclusão do relatório, situação partilhada até então pelo Serviço de

Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) da região ou pelo Corpo de Bombeiros.

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Para a identificação dos óbitos decorrentes dos acidentes com motos, foram

avaliados inicialmente os dados do SIM. Em seguida, buscou-se identificar os

acidentes fatais envolvendo motocicletas, que tiveram o registro de acidente de

trabalho junto ao Instituto Nacional de Seguridade Social - INSS para identificar a

relação entre acidente de trânsito e acidente de trabalho. Em paralelo, procuramos

identificar, por meio do Sistema de Monitoramento de Mortes por Causas Externas

da Prefeitura de Vitória, todos os casos de mortes envolvendo profissionais do setor

de moto-frete durante os anos de 2002 a 2004. Esses dados foram compilados e

comparados com dados sobre acidentes de transporte, com ou sem vítimas, no

município de Vitória, desde 2002. Além desses dados, obtidos da SETRAN,

procuramos comparar as informações com os dados da frota local, obtidos do

DETRAN. A intenção do cruzamento dessas informações era obter um panorama

geral dos dados oficiais, tentando identificar um pouco melhor com que realidade

estávamos lidando. É importante ressaltar que não pretendíamos fazer qualquer tipo

de levantamento epidemiológico, por isso, não buscamos comparar dados de

prevalência ou incidência de acidentes envolvendo motociclistas profissionais ou não

profissionais.

Construção de uma rede de relações e legitimidade com os trabalhadores

Buscamos desenvolver uma relação entre a equipe de pesquisadores e

grupos de motoboys para que conseguíssemos ser coerentes com nossos preceitos

ético-epistemológicos, apresentados acima. Para tanto, passamos cerca de 1 ano e

2 meses freqüentando semanalmente os pontos de motoboys, os quais visitávamos

por cerca de 1 a 2 horas em cada visita. Em algumas dessas visitas, aplicávamos

questionários. Em outras, conversávamos sobre temas diversos, indo desde

questões que surgiam nas próprias conversas dos motoboys, até indagações diretas

sobre seus trabalhos, atividades, comportamentos, etc. A partir dessas conversas,

fazíamos sempre um diário de campo, tentando registrar o mais fielmente possível

as informações obtidas, debatidas ou percebidas nesses contatos. Esses diários

serviram como fonte de informação fundamental para compreendermos a dinâmica

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do trabalho, pois por meio deles pudemos ir construindo uma ampla rede de

significados, sentidos, gestos, posturas, indagações que emergiram em nossos

contatos com esse coletivo. Esses contatos mais freqüentes com os trabalhadores

foram construídos com 2 grupos de motoboys, mas em um deles, em particular, o

contato foi muito maior, permitindo a aplicação de 2 técnicas de investigação que

foram muito pertinentes para a consecução do trabalho: as ‘instruções ao sósia’ e a

‘autoconfrontação cruzada’. Cerca de 35 motoboys utilizavam esses pontos como

local de espera de serviços. É importante ressaltar que embora não tivéssemos

intenção de realizar um estudo propriamente ergonômico31, tal qual sugerem os

princípios metodológicos da Ergonomia da Atividade – AET (GUÉRIN et al., 2001) –,

algumas das técnicas da AET foram utilizadas em nossos encontros com os

trabalhadores, entre eles a observação sistemática, buscando registrar todos os

passos que se desenrolavam nas tarefas que nos era visível, seguido da

confrontação dessas observações com o saber dos trabalhadores sobre o que era

por nós observado. Essa proposta aproximava-se, no plano do método, do estudo

realizado por Diniz (2003) em Belo Horizonte. Porém, acreditamos que as condições

de trabalho desenvolvidas por este autor, naquela cidade, lhe permitiram partir de

um ponto privilegiado para o desenvolvimento de uma pesquisa ergonômica

satisfatória, uma vez que sua implicação com os trabalhadores estava dada desde o

princípio, pois sua pesquisa fora encomendada pelo próprio Sindicato dos

Motociclistas local. Seja como for, em meio ao desenvolvimento de uma investigação

de influência etnográfica realizada em nosso trabalho, aproveitamentos a

oportunidade para aplicar, mesmo que de maneira limitada, algumas técnicas

propostas das pesquisas ergonômicas.

31 Uma diferença importante em relação às propostas da Ergonomia (e ao método da Análise Ergonômica do Trabalho) é que essa pesquisa não visava responder a um problema exposto pelos trabalhadores ou empresas. Ou seja, não tínhamos a intenção de responder a uma demanda específica e, nem por isso, propor soluções para a melhoria das condições de trabalho.

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Diário de campo

A utilização do diário de campo tinha como propósito facilitar nossa

permanência junto aos trabalhadores sem que se fizesse necessário o registro de

todas as falas por meio de instrumentos de registro (tais como papel, gravadores ou

filmadoras). Além de serem instrumentos em parte intimidadores, os encontros entre

trabalhadores-pesquisadores deveriam ser o mais espontâneo possível, para que o

engajamento subjetivo à pesquisa fosse sendo construído de maneira autônoma e

paulatina. Após a permanência em campo, cada pesquisador registrava em um

diário particular os acontecimentos do dia. Ficava a critério do próprio entrevistador a

seleção e resgate dos acontecimentos do dia, tendo como parâmetro, contudo, a

tentativa de ser o mais fiel possível ao ocorrido. Em geral, essa seleção e resgate

mnemônico eram calcados na própria concepção teórica subjacente à pesquisa,

bem como variava em função das análises espontâneas sobre os acontecimentos

diários. Aliás, os pesquisadores eram estimulados a registrar essas análises em

seus diários de campo, pois elas forneceriam material para uma análise posterior

junto à equipe como um todo.

Vale ressaltar também que durante o início de nossos encontros nos

dispúnhamos a, em momentos específicos, observar as atividades dos

trabalhadores, buscando sistematizar as seqüências de movimentos e ações de

cada atividade. Essas observações eram, também, registrados nos diários de

campo. O período dessas observações durou até o momento em que poucas

variações eram encontradas na atividade dos trabalhadores.

Utilizamos o diário de campo como material de análise em várias situações.

Tanto para analisar nossa trajetória junto aos trabalhadores, sobretudo na análise

dos sentidos que íamos construindo a partir do encontro com a categoria, quanto

para resgatar cenas e produções discursivas dos trabalhadores, o diário de campo

forneceu material do qual nos permitiu compreender as dinâmicas da atividade de

maneira ampla. Nesse sentido, as observações sistemáticas registradas nos diários,

em conjunto com as produções discursivas sobre os tempos em torno do trabalho,

nos auxiliaram de maneira importante na construção da compreensão de aspectos

diversos da atividade dos motoboys.

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Entrevistas

Realizamos entrevistas na fase final da pesquisa, quando uma certa relação

de confiança e legitimidade houvera sido conferida à situação de pesquisa e aos

pesquisadores. Nessas entrevistas, visávamos responder a questões extraídas a

partir das próprias observações e das conversas sobre diversos temas da realidade

de trabalho desses profissionais. Os temas variavam entre aspectos ergonômicos do

trabalho e suas relações com a saúde; as dimensões cognitivas do trabalho; as

questões afetivo-emocionais em relação ao trabalho, à família e ao trânsito;

investigações sobre perspectivas profissionais e pessoais em relação ao futuro;

questões sobre as dimensões coletivas da atividade; o histórico de lutas e do

movimento de trabalhadores por melhores condições de trabalho e remuneração;

entre outros temas semelhantes. Esses questionamentos foram realizados, em sua

maioria, por meio de entrevistas coletivas, obedecendo a nossos preceitos

metodológicos, razão pela qual não tínhamos intenção de contabilizar uma

quantidade específica de profissionais. Até porque, no meio das entrevistas, alguns

motoboys chegavam ao debate e outros saíam. Foram realizadas cerca de 10

entrevistas coletivas, envolvendo pelo menos 3 motoboys em cada uma. Fizemos,

também, algumas entrevistas individuais com 13 motoboys, também sobre esses

mesmos temas. Realizamos, também, entrevistas com um grupo de 3 motoristas de

ônibus e com 2 taxistas, individualmente, sobre a atividade de trabalho dos

motoboys. Não conseguimos em tempo autorização do comandante dos agentes de

trânsito para a entrevista com esses profissionais. Todas essas entrevistas foram

gravadas e transcritas.

A diferenciação das entrevistas e das conversas e o momento diferente de

seus usos baseavam-se na idéia de que a idealização simbólica da entrevista, em

geral com um gravador em punho, e um conjunto muito nítido de questões a serem

respondidas tendem a produzir alterações na maneira como as pessoas percebem

os objetivos do pesquisador e organizam suas respostas em direção a esses

objetivos. Era, pois, nossa intenção produzir diferentes cenários de diálogo com os

profissionais, uma vez que esses cenários diferentes poderiam acessar gêneros

discursivos distintos. Em geral, o que caracteriza o gênero discursivo da entrevista é

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o caráter público que se dá a seu discurso. Nesse momento, é muito comum a

tentativa do entrevistado tentar organizar sua fala de uma maneira mais cuidadosa,

observando tanto as palavras que utiliza, quanto as regras gramaticais.

A idéia de utilizar essas entrevistas no momento final da pesquisa visava, por

outro lado, acessar um gênero discursivo distinto do que geralmente se utiliza

quando se realizam entrevistas junto a pessoas com que não se possui qualquer tipo

de vínculo, como acontece, por exemplo, nas entrevistas jornalísticas. Em geral,

nesse tipo de entrevista, faz-se uso de uma conversa por demais formalizada e se

pondera excessivamente as palavras. Nossa intenção, no uso das entrevistas, era

observar como os trabalhadores organizavam seus argumentos para um registro

mais duradouro (que supostamente seria entendido como sendo esta a função do

gravador e de uma pesquisa) das suas idéias sobre o trabalho, as questões que os

afligem cotidianamente, entre outros.

Após a realização das modalidades de entrevistas e das conversas mais

informais, nos parece que os gêneros discursivos mobilizados não eram tão

diferentes quanto se esperava. Por outro lado, acreditamos que a realização de

entrevistas em momentos posteriores ao estabelecimento de algum vínculo com os

profissionais produziu um efeito importante na qualidade do conteúdo das

entrevistas.

Dispositivos técnicos de debates sobre o trabalho

Realizamos um encontro com cerca de 50 motoboys fora de seu posto de

trabalho. Nesse encontro alguns dispositivos técnicos de debate sobre trabalho

foram postos em funcionamento. Esse encontro foi realizado em um sábado pela

manhã, em uma escola pública na região em que se encontrava a maior parte dos

pontos de motoboys, e contou com a participação de motoboys que realizavam

diferentes tipos de serviços de entrega (de alimento, de documento, de peças de

automóvel, etc.). As estratégias de mobilização foram pensadas a partir de uma

tentativa pregressa de reunir os motoboys e será relatada adiante. Este encontro

transcorreu da seguinte forma: os participantes foram divididos em 3 grupos de

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cerca de 15 motoboys, aleatoriamente32. Em cada grupo aplicamos uma

determinada técnica sobre dimensões específicas do mundo do trabalho: a saúde,

os riscos e os modos de enfrentamento das contraintes. Uma dessas técnicas, que

enfocava de maneira mais explícita as questões da saúde em sua relação com o

trabalho, foi baseada na técnica chamada mapa do corpo, que é parte integrante da

estratégia de intervenção para mobilização e análise coletiva sobre os efeitos do

trabalho na saúde, denominada de Mapping e promovida pela Organização

Internacional do Trabalho (LIRA, 2002). Essa técnica, que se aproxima muito do que

Odonne propunha como mapa de risco (ODDONE et al., 1986), propicia a discussão

coletiva sobre os efeitos que o trabalho produz no corpo dos trabalhadores, na vida

pessoa e no ambiente de trabalho como um todo. A técnica decorre da seguinte

maneira: todos os participantes são convidados a registrar individualmente, sobre

figuras com traçados de um corpo humano, os locais em que mais sentem dores ou

tensões, bem como a intensidade da dor. A partir desses registros, o grupo analisa

coletivamente os resultados das imagens que foram compostas pelo grupo. A

atividade desenvolvida foi filmada e gravada na totalidade.

Uma outra técnica, que denominamos de epidemiologia viva, foi adaptada por

nós de algumas experiências realizadas por profissionais do Porto Alegre – RS, que

trabalham com as políticas de prevenção às mortes por causas externas, parte

integrante de uma proposta de intervenção social denominada de Cidades

Protetoras da Vida, sendo um dos divulgadores Armando De Negri Filho.

Infelizmente tivemos acesso a essas técnicas por meio de conversas particulares

com técnicos que as desenvolviam em Porto Alegre. Por isso não temos como

referenciar o leitor a elas, mas tão somente à proposta de intervenção, bem como a

um de seus divulgadores. Seja como for, a técnica desenvolvida por nós consistia de

duas etapas. Na primeira delas, demos um mapa da cidade de Vitória, com as

principais vias públicas de trânsito, juntamente com alguns quadradinhos, bolinhas

ou triângulos de papelão colorido que representavam, cada cor, um determinado tipo

de acidente (representavam acidentes grave, de cor vermelha, leve, de cor azul,

resultando em mortes das vítimas, de cor preta, queda, de cor amarela) ou vítima (os

próprios motoboys, pedestres, ou outros motoristas) representado pela variação em

32 Não tínhamos intenção, no momento, de produzir discussões em ‘grupos homogêneos’ (conforme vocabulário de Oddone et al. (1986)), pois nosso objetivo inicial da pesquisa não pressupunha diferenças muito grandes entre motoboys que realizam atividades de entregas muito diferentes, fato que ficou demonstrado posteriormente ao início da pesquisa e que será debatido nos capítulos seguintes.

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sua forma, bolinha, quadrado ou triângulo. Com esse material, lhes instruíamos a

que cada um registrasse no mapa os locais em que já haviam presenciado ou

sabiam que haviam ocorrido acidentes envolvendo outros motoboys. A segunda

etapa consistia em registrar, num segundo mapa também de Vitória, com as

mesmas vias públicas, quais os locais que eles consideravam de alto risco, médio

risco ou baixo risco de acidentes. Cada um fazia esse registro com pincéis atômicos

de cor diferente. Após esse registro, pedimos para que eles comparassem um e

outro mapa, promovendo um debate acerca dos motivos que tornam tal ou qual lugar

local de risco real ou imaginário, bem como que estratégias são utilizadas para evitar

os riscos nesses locais considerados ou sabidamente perigosos, quais os efeitos

subjetivos e corporais advindos de se transitar nesses locais, como os trabalhadores

se comportam nos locais de alto e baixo risco e quais estratégias poderiam ser

dadas para a redução dos riscos e de acidentes. A aplicação dessa dinâmica foi

filmada em sua totalidade.

Uma terceira dinâmica desenvolvida por nós consistia em, basicamente,

propor uma metáfora comparativa entre o trabalho dos motoboys e um jogo de

futebol. Essa técnica foi elaborada com base no fato de que, como dissemos acima,

o encontro com todos os profissionais para a realização da oficina somente fora

possível por meio de uma estratégia de um campeonato de futebol, que é muito

apreciado por esses trabalhadores. Como sabíamos que muitos trabalhadores não

conseguiriam pensar em outras coisas além de futebol naquela manhã,

acreditávamos que lhes seria mais interessante pensar no trabalho a partir do

próprio futebol. Pedimo-lhes que imaginassem que o trabalho deles fosse um jogo e,

a partir daí, perguntávamos o que seria o gol daquele jogo, o que seria o

impedimento, o que seria o time, o que seria o juiz e o adversário, etc. Era nossa

suposição e intenção que esse paralelo ajudaria a explorar as dinâmicas do trabalho

de uma maneira mais rica. Sem poder responder os efeitos dessa técnica na

mobilização da fala dos trabalhadores, é interessante observar que tão logo

começamos a fazer as perguntas iniciais, os profissionais conseguiram descolar-se

da metáfora sobre o futebol e detiveram-se especificamente em um debate ávido e

profundo sobre sua realidade de trabalho, tornando desnecessário qualquer

mediação do jogo para se acessar a atividade de trabalho.

Após a aplicação de uma dessas três técnicas nos 3 grupos formados,

reunimos todos os motoboys novamente para que cada grupo apresentasse aos

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demais o que fizera. Após a apresentação, seguiu-se um debate sobre os resultados

produzidos por cada grupo. Essa discussão também foi gravada, embora o registro

de áudio e vídeo tenha sido seriamente comprometido com a qualidade de áudio da

sala em que fora realizada a técnica. O mesmo aconteceu com a técnica do futebol e

do mapping.

É importante ressaltar que nem todas as discussões desdobradas desses

dispositivos técnicos serviram como escopo da presente pesquisa. Como o encontro

visava responder a questões para além dos objetivos da presente investigação,

algumas das análises advindas de algumas das técnicas utilizadas – em particular

as do mapa do corpo e as da epidemiologia viva – não foram utilizadas

extensamente no presente texto. Tal qual os resultados obtidos pela etapa

quantitativa, nos nutrimos mais de alguns achados gerais que de aspectos

específicos das produções dessas atividades. Em outro local, apresentaremos os

resultados dessas outras atividades da pesquisa.

Os dispositivos técnicos das instruções ao sósia e da autoconfrontação cruzada

Após a construção de um vínculo que permitisse a constituição aproximada

de um dispositivo dinâmico de três pólos, decidimos aplicar 2 técnicas acima

descritas, oriundas do campo de estudos da atividade de trabalho e que atualmente

vêm sendo mais desenvolvidas pela equipe coordenada pelo psicólogo Yves Clot

(1999, 2006) e pelo linguista Daniel Faïta (2005): as instruções ao sósia (criada por

Odonne e seus parceiros do MOI) e autoconfrontação cruzada. Esses

procedimentos técnicos, de maneiras diversas, procuram obter informações acerca

de dimensões menos perceptíveis à observação e mesmo à simples confrontação de

informações com o trabalhador. Tratam-se, pois, dos campos de saber

desenvolvidos pelo coletivo de trabalhadores que lhes permitem organizar a

atividade de trabalho de maneira eficaz e segura, lhes preparando a lidar com as

condições que lhes são dadas.

Oddone procura compreender a atividade de trabalho uma vez que, entre

outras coisas, por ela se pode revelar um conjunto de saberes e mecanismos de

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enfrentamento das contraintes, na medida em que os trabalhadores desenvolvem

conhecimentos, modos operatórios, estratégias e ações para lidar com as exigências

da atividade, bem como para os protegerem dos riscos e da insalubridade do

ambiente. Entretanto, essa compreensão deve ser coletiva, já que é por meio do

coletivo de trabalho que se constroem sentidos sobre a atividade e é por apropriação

desses sentidos que se tem a possibilidade de transformar, de maneira mais

sistemática, esses sentidos e engajamentos com o trabalho. Além disso, não é

somente senão por meio desse conjunto de normas, valores e sentidos coletivos

desenvolvidos por meio da atividade que pode conhecer, de maneira mais bem

fundamentada, os seus efeitos nos processos de subjetivação e na saúde (psíquica)

do trabalhador. Para tanto, visando acessar essa dimensão coletiva de produção de

sentido sobre a atividade, Oddone propõe, então, a técnica das instruções ao sósia,

buscando colocar o plano-programa, ou, nas palavras de Clot, o gênero profissional

em análise pela Comunidade Científica Ampliada. Como dito acima, essa técnica

consiste em instruções que determinado membro de um grupo de trabalhadores

deveria dar a um suposto sósia – que poderia ser outro membro do grupo ou um

pesquisador –, para ensiná-lo, nos mínimos detalhes, como esse sósia deveria se

comportar, durante o cotidiano de trabalho, de modo a evitar que alguém

descobrisse que o sósia não era o trabalhador. A partir dessa instrução, a pessoa

descreveria como realiza seu trabalho no cotidiano, como se comporta quando

intercorrências acontecem, como lida com os colegas, o tipo de gestos, expressões

e sentimentos que se mobilizam em situação, seus hábitos e pensamentos sobre a

atividade, a organização do trabalho, as relações entre os trabalhadores, etc. Por

meio dessa técnica, Oddone tentava fazer emergir à consciência do grupo envolvido,

aspectos fundamentais da atividade e do cotidiano de trabalho que muitas vezes não

eram sequer percebidos por eles, ao ponto em que se tornava claro ao grupo as

relações desses aspectos com os efeitos deletérios da atividade. Por outro lado, a

técnica buscava acessar esse plano coletivo da atividade, colocando-o em análise

para que, com essa tomada de consciência, o grupo pudesse desenvolver ações a

partir dele.

Como Oddone dizia,

os operários não têm a necessidade de que seja um técnico, mesmo de extrema esquerda, quem recupere a sua subjetividade (...). A validação consensual [e as técnicas envolvidas nesse processo] (...) estimula, ao nosso ver, não somente a opinião sobre a relação entre ambiente e saúde, mas (...) a opinião sobre as transformações dentro e fora da fábrica (1986, p.120-21).

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O objetivo do trabalho dos pesquisadores era, portanto, criar condições para

que se desenvolvesse tal sentimento de coletivo capaz de “tornar crível a

possibilidade de eliminar a nocividade do trabalho ou, pelo menos, reduzi-la

progressivamente” (id., ibid, p.132).

Cornu (2003) nos lembra, porém, que o próprio Oddone tece algumas

considerações sobre o método, argumentando que a tarefa de dar instruções ao

sósia tendia a se prender muito mais nas prescrições e a valorizar o ideal, ao invés

do cotidiano real do trabalho. Acreditava que quando um trabalhador registrava a

figura do ideal como organizador de sua ação, marcava-se ali a força da

conformação à dominação. Cornu contrapõe a essa autocrítica uma releitura que

relativiza um pouco essas considerações. Por um lado, argumenta que a questão do

ideal não é forçosamente a imputação de uma conformidade com o modelo de

dominação, visto que a complexidade do ideal permite ao próprio trabalhador

organizar seus conhecimentos sobre sua atividade, bem como partilhar um conjunto

de saberes com os colegas, sendo, portanto um canal de conectividade. Daí achar

importante contrapor o ideal ao ato e não à dominação, visto que “é o personagem

que organiza a acção e é a pessoa que realiza através da sua actividade. O acto é

então a confrontação do personagem com a pessoa” (Cornu, 2003, p.237). Por outro

lado, Cornu minimiza os efeitos do ideal no grupo, sugerindo que a própria ideologia

sindical produziria uma lente que permitiria interpretar esse ideal de dominação de

maneira diversa da do pesquisador, evitando-se assim que esses ideais fossem

interpretados como dominação.

Em meados dos anos 90, Clot (1999; 2006) resgata essa técnica que, nas

décadas anteriores, estava sendo cada vez mais ignorada. Porém, nessa

apropriação, Clot retira-lhe parte do caráter de mobilização coletiva e dota-lhe de um

objetivo vinculado à formação e desenvolvimento profissional na tarefa de análise do

trabalho. Clot entende que essa técnica poderia ser pertinente, principalmente em

um trabalho de co-análise que permite uma espécie de diálogo do trabalhador

consigo mesmo, mediado por um sósia que o incita a ‘sair de si’ (conforme

vocabulário de Vigotski) para ousar outras possibilidades de apreender e

empreender sua atividade. Porém, esse empreendimento não visa uma pura

subjetivização da análise do trabalho. Muito pelo contrário. O que esta em jogo é a

pertinência da técnica para mobilizar os participantes no desenvolvimento da sua

atividade, sobretudo por meio da bifurcação de caminhos possíveis para o percurso

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da atividade. Clot entende que a constituição de uma história da experiência da

atividade vai cristalizando a atividade do trabalhador em torno de alguns percursos

em geral muito caracterizados. Esses percursos são alterados em situações muito

peculiares, porém, em geral, não são comumente apreendidos em termos de

linguagem com a mesma riqueza da experiência. Quando confrontado a um sósia

que recusa apropriar-se de imediato daquilo que o trabalhador teima em lhe instruir,

as possibilidades da atividade vão se tornando cada vez mais claras. Nessa

diversificação, o trabalhador desenvolve a atividade linguageira acerca das

atividades de trabalho, permitindo também, neste último terreno, um

desenvolvimento da atividade.

Porém, não é apenas no confronto com um sósia que se solidifica esse

exercício. Clot inova na técnica do sósia quando aposta que é possível substituir a

presença de um coletivo durante o desenrolar da técnica. Para Oddone, o coletivo,

que torna evidente a existência de um gênero da atividade que dá suporte e sentido

a tarefa de cada trabalhador e que possibilita o acesso do saber-fazer a uma

dimensão de saber-saber, serve também como instrumento de validação das

análises empreendidas no grupo. Clot, por meio da utilização de um simples artifício

técnico – a análise dos registros em áudio das respostas que o próprio trabalhador

deu na técnica realizada com ele, ou seja, uma autoconfrontação – dá um outro

sentido para a tarefa do sósia: segundo seus pressupostos teóricos, a

autoconfrontação permite que o trabalhador se depare com uma necessidade de

traduzir em gêneros discursivos distintos aqueles conhecimentos que são

mobilizados em determinados gêneros específicos. Essa mudança de registro

permite o desenvolvimento subjetivo dos profissionais que participam desse

procedimento, já que lhes permite apropriar, de novas maneira, da complexidade de

sua atividade e tudo o que ela envolve.

A técnica da autoconfrontação cruzada foi elaborada para explorar ainda mais

intensamente esse exercício de apreender em registros distintos aquilo que é

desenvolvido por/para um registro em particular. Clot, em conjunto com Faïta,

propõem a partir da técnica da autoconfrontação clássica – oriunda no campo do

trabalho a partir dos estudos da ergonomia –, uma forma de tornar possível esse

exercício de transformação da atividade em outros registros. Os ergonomistas

perceberam, ao longo do desenvolvimento dessa disciplina, os limites da observação

sistemática da atividade de trabalho, já que e compreensão das tarefas e

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comportamentos em ação só é possível por meio da inclusão, no processo de

análise do trabalho, a investigação de atividades não visíveis. Tentou-se, para tanto,

colocar o trabalhador a verbalizar sobre a tarefa realizada. Porém, os ergonomistas

logo perceberam a relativa pobreza das explicações verbais que os trabalhadores

davam para sua atividade. Observaram, então, que a atividade linguageira e,

também, em certa medida, algumas dimensões da consciência, não são mobilizadas

em todos os aspectos da atividade que uma pessoa realiza. Em uma atividade, parte

dos modos operatórios obedece a outras “racionalidades”; talvez mais corporal que

congnitiva; mais perceptiva que verbal. Nessa mesma linha de raciocínio, Clot e

Faïta, utilizando Vigotski e Bakhtin, percebem que o desenvolvimento dessa

atividade linguageira depende de um esforço em movimentar essa experiência

corporal em um outro tipo de registro que o torna capaz de apropriado, pelo

trabalhador, de um modo conceitual. Para tanto, desenvolvem, a partir da

autoconfrontação clássica, a técnica da autoconfrontação cruzada.

A técnica visa mobilizar alguns elementos centrais na dinâmica de análise da

atividade de trabalho porque permite abordar, de uma só vez, inúmeros aspectos da

atividade em análise, já que pressupõe, em seu funcionamento, responder a

algumas exigências muito importantes do trabalho de análise da atividade. A

autoconfrontação cruzada é, antes de tudo, um exercício de confrontação do

trabalhador com o questionamento do outro, uma vez que além de visualizar e

analisar sua própria atividade registrada em vídeo (que acontece numa primeira

etapa da técnica), na autoconfrontação cruzada o trabalhador é confrontado, numa

segunda etapa da aplicação da técnica, pelas análises e comentários de um outro

colega que também passara por uma etapa prévia de autoconfrontação. Com isso,

mais que responder aos questionamentos dos pesquisadores, na autoconfrontação

cruzada o que se mobiliza são os diálogos entre os próprios trabalhadores acerca de

suas atividades. Na base teórica dessa técnica, encontra-se o seguinte raciocínio:

observando o fato de que a atividade dirigida é o elemento central de análise da

Psicologia do Trabalho, e partindo do pressuposto que a tarefa empreendida pela

pesquisa é uma atividade em sentido pleno, Clot (2006) supõe que o diálogo do

trabalhador em direção ao pesquisador e ao colega de trabalho (este sendo o que

denomina de ‘par especialista’,), diante sua própria atividade, proporciona um

movimento de co-análise do trabalho na medida em que a atividade é mobilizada em

registros de saber distintos (ou gêneros discursivos) uns dos outros. Se um

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determinado grau de análise é mobilizado em direção ao pesquisador, a presença

de um par remete-o a um outro gênero que não poderia ser evidenciado se não

estivesse presente. Assim, esses diversos cenários em que a atividade é relançada

permitem evidenciar inúmeros aspectos que não estariam manifestos facilmente sem

a possibilidade do próprio desenvolvimento da atividade. Até porque Clot entende

que é apenas no desenvolvimento da atividade que o pesquisador (e, quando

necessário, também o trabalhador) conseguirá compreender em profundidade as

conformações coletivas sobre o trabalho e as dialéticas gênero-estilo a ele

intrínsecas. É também nesse desenvolvimento da atividade que se consegue

identificar mais claramente os elementos que sustentam as escolhas que

determinam os estilos e as dimensões genéricas em ação. Finalmente, Clot e Faïta

observam que a aplicação dessa técnica permite ao pesquisador (e também ao

trabalhador) a tomar conhecimento das inúmeras contradições geradas pelos limites

das prescrições ou pelas características da própria atividade, e o que essas

ambigüidades geram do ponto de vista corporal, cognitivo, subjetivo (incluindo aí os

debates de valor), etc. Resulta dessas ambigüidades e contradições um complexo

caldeirão de atividades negadas, represadas, impedidas, solicitadas e que entram

em verdadeiras disputas com aquelas atividades que conseguem se consolidar por

meio do ato. Clot (2006) denomina esse “caldeirão”, que requer do trabalhador um

grande esforço para “solucionar” essa “crise” por meio da ação, de real da atividade:

“aquilo que se torna possível, impossível ou inesperado no contato com as

realidades, não faz parte daquilo que podemos observar diretamente. [...] A atividade

real analisada nunca é a atividade prevista para a análise” (CLOT, 2006, p. 133). O

real da atividade não é, portanto, apenas a atividade real, numa alusão à

dissociação entre tarefa prescrita e tarefa real, ou seja, de que a atividade real é o

realmente realizado.

O real da atividade é também aquilo que não se faz, aquilo que não se pode fazer, aquilo que se busca fazer sem conseguir – os fracassos –, aquilo que se teria querido ou podido fazer, aquilo que se pensa ou que se sonha poder fazer alhures (...) aquilo que se faz para não fazer aquilo que se tem a fazer ou ainda aquilo que se faz sem querer fazer (p. 116).

Para acessar ao real da atividade, necessita-se uma técnica que permite

“transformar para compreender”, pois não basta apenas compreender para

transformar (p. 137). Clot e Faïta utilizam, então, a técnica da autoconfrontação

cruzada visando não mais responder aos interesses da formação (como é o caso

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das instruções ao sósia), mas às transformações das condições de trabalho

ansiadas pelos trabalhadores.

Para compreender um pouco melhor as dimensões do real da atividade dos

motoboys, lançamos mão dessas duas técnicas, a autoconfrontação cruzada e as

instruções ao sósia. Além disso, compreendemos, durante os contatos iniciais com

os profissionais, que a atividade dos motoboys incluía elementos subjetivos bastante

evidentes, tais como a emoção da pilotagem, as tensões em torno dos riscos de

acidentes e os conflitos entre os motoboys e condutores de outros veículos.

Acreditamos que de alguma forma essas dimensões compõem em parte esse real

da atividade. Mas para tornar evidentes as relações entre esses aspectos e o

trabalho, partimos do pressuposto que as técnicas mencionadas seriam de extrema

valia.

Decidimos utilizar a técnica das instruções ao sósia não no intuito da

formação, como sugere Clot, nem em torno de um coletivo de trabalho, tal como a

propõe Oddone. Ousamos utilizá-la como uma investigação que lançava o

trabalhador ao exercício da análise do trabalho junto conosco, pesquisadores

profissionais. Escolhemos um motoboy que se voluntariou ao processo, até porque

era também interessado em leituras do campo da sociologia, antropologia, etc. Ele

compreendeu a dinâmica e concordou com o exercício de analisar o registro em

áudio da técnica do sósia. Porém, infelizmente, não conseguiu desenvolver essa

etapa de análise dos registros. Achou esse exercício muito enfadonho. Deparamo-

nos, pois, com um dos limites cruciais da condução dos nossos trabalhos sobre a

investigação da atividade: a falta da demanda. Adiante, faremos uma breve

consideração sobre os possíveis problemas sobre a dimensão da demanda em

nossa pesquisa. O que importa por hora é observar que a despeito de não termos

conseguido continuar com esse primeiro exercício, a técnica das instruções ao sósia

permitia aos pesquisadores construir um cenário de entrevista sobre a atividade que

era muito mais dinâmico e mais situado que os depoimentos tradicionais. Por isso,

empreendemos as instruções ao sósia com outros 3 trabalhadores visando

compreender um pouco melhor a atividade a partir das próprias reflexões dos

trabalhadores. Não podemos dizer, então, que essa dinâmica nos conduziu ao “real”

da atividade. Por outro lado, sabemos que não é a mera aplicação de uma técnica

que irá garantir o sucesso no resultado esperado. Portanto, se a utilização dessa

técnica foi em parte incompleta, em contrapartida os resultados alcançados nos

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permitiram compreender aspectos da atividade que não seriam acessados de outra

forma por meio de entrevistas ou depoimentos diretos. Nesse sentido, podemos

considerar que foi extremamente válida sua utilização.

Algo semelhante aconteceu acerca da utilização da técnica da

autoconfrontação cruzada. A despeito de nosso esforço, o contexto necessário para

a correta realização da técnica não foi construído satisfatoriamente. Em primeiro

lugar, o coletivo de trabalho não conseguiu consolidar-se em um grupo específico

para a condução da pesquisa conosco. Embora tivéssemos alguns profissionais

mais interessados em nosso trabalho, a dedicação à pesquisa esbarrava em limites

concretos em torno da carência de um determinado “problema” a resolver. Como

não houvera um demanda exposta aos pesquisadores a priori, o grupo não

conseguiu enfocar mais explicitamente em que nosso trabalho poderia auxiliá-los.

Não que não identificassem problemas sérios na atividade de motoboy. A questão é

que esses problemas eram compreendidos por eles de maneira relativamente

satisfatória. Assim, temos a sensação de que eles nos percebiam mais como um

grupo de pessoas capazes de dar visibilidade social às suas questões e, quiçá influir

em propostas políticas que auxiliassem seu coletivo profissional do que um grupo

que os auxiliasse na construção de saídas coletivas sobre esses mesmos

problemas. Na carência de uma determinada “convocação” coletiva (por parte dos

trabalhadores) ao saber “de fora” (o dos pesquisadores), a percepção de um limite

no envolvimento com a pesquisa era, para nós, evidente. É por isso que acreditamos

que não conseguimos compor um grupo de trabalhadores que desse sustento ao

primeiro pressuposto da técnica da autoconfrontação cruzada.

Porém, mesmo assim, conseguimos seu envolvimento na condução da etapa

da filmagem. Dois deles se voluntariaram para servirem como nosso suporte de

investigação. Aqui, entretanto, nos deparamos com outro problema: a maneira como

efetuar o registro. A análise da condução da moto requer pelo menos dois pontos de

vistas diferentes: a compreensão das escolhas do motoboy em relação ao trânsito

como um todo, onde o motoboy é apenas um entre outros veículos que possuem

sua própria autonomia, e a compreensão da condução do motoboy a partir de sua

perspectiva entre outros veículos. O primeiro ponto de vista poderia ser resolvido se

tomássemos a imagem do motoboy por cima, por trás ou pela frente. A escolha

técnica viável foi a tomada das imagens por trás dos motoboys. Assim,

conseguiríamos acompanhar seu trajeto, propiciando, ao mesmo tempo, uma

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tomada geral do que se passava no trânsito ao redor. Para tanto, nosso estagiário-

bolsista de iniciação científica, também motociclista, acompanharia o trajeto de um

motoboy, tendo em companhia um cinegrafista na garupa. O segundo ponto de vista

seria viabilizado por meio de um cinegrafista que ficaria na garupa do motoboy e

registraria o trânsito a partir da perspectiva dos motoboys. Sabemos que a condição

ideal para o desenvolvimento dessa perspectiva não seria o registro por meio de um

cinegrafista na garupa, mas sim por meio de uma câmara anexada ao capacete do

motoboy. Porém, não dispúnhamos desse tipo de equipamento na ocasião para a

realização dessa técnica. E ainda mais importante: o ideal seria que esses dois

pontos de vistas fossem tomados simultaneamente.

Por isso, 3 problemas inviabilizaram o adequado registro das informações: do

ponto de vista da tomada das imagens por trás, seguir o motoboy no trânsito se

tornara uma tarefa muito mais complicada para nosso estagiário de pesquisa

(também motociclista) do que inicialmente supúnhamos, até porque, além da

habilidade superior de condução dos motoboys, nosso estagiário conduzia consigo

uma outra pessoa, o que tornava ainda mais difícil acompanhar o trabalhador.

Durante as filmagens, muito freqüentemente os motoboys filmados reduziam suas

marchas para que nosso bolsista não ficasse muito para trás nos corredores de

automóveis. Esse é um exemplo de como o ato da gravação impactou nos modelos

de pilotagem do motoboy. O outro problema se deveu ao registro das filmagens do

ponto de vista dos próprios motoboys. Como nossa única saída era que os motoboys

fossem filmados com um cinegrafista atrás, a condução “natural” de um motoboy se

viu inviabilizada com a presença de uma segunda pessoa na garupa. E nem tanto

porque os motoboys não conseguem ter a mesma dinâmica de condução com uma

pessoa em sua garupa. Vários deles nos deram dicas de como deveria se comportar

uma boa garupa. Aliás, eles dizem que uma boa garupa é como se fosse um corpo

só, o que geralmente é mais viável quando a pessoa abraça a outra ou quando o

carona prende-se ao piloto pelos joelhos. A questão durante os registros era que os

motoboys não se sentiam tão seguros na condução com o cinegrafista porque esse,

para garantir o melhor registro das imagens, tornava-se muito rígido, atrapalhando o

equilíbrio esperado da moto pelo condutor. Com isso, a condução era,

inevitavelmente, enviesada. Além disso, o cinegrafista não acompanhava

adequadamente o movimento de pescoço dos motoboys, o que impedia o registro

da sua perspectiva exata. Um terceiro problema se concentrou no fato de que não

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pudemos tomar o registro da atividade simultaneamente dos dois pontos de vista

diferentes. Daí, então, que o registro de um ponto de vista referia-se a uma condição

do trânsito e de um determinado serviço diferente do que o registro desde o ponto

de vista do motoboy. Não mencionamos aqui um último problema: a qualidade do

áudio. Embora o trabalho dos motoboys não requeira da audição na mesma

intensidade que se requer da visão, um bom registro do áudio permitiria analisar de

maneira mais interessante como a percepção auditiva é colocada em jogo na

pilotagem da moto. Porém, infelizmente a qualidade de nosso áudio não permitira

distinguir os sons com muita exatidão, já que o som do vento no sensor de captação

de áudio, somado ao próprio ruído do motor, tornaram a qualidade do som muito

ruim.

Apesar desses problemas, conseguimos alguns registros viáveis, permitindo

dinamizar uma autoconfrontação. O problema seguinte deveu-se à dificuldade de

mobilizar trabalhadores para atividades fora do horário de trabalho, o que tornou

inviável a conclusão da técnica da autoconfrontação cruzada. Marcamos 3

oportunidades para finalizar a etapa em que cada trabalhador comentaria a atividade

do outro, mas questões de trabalho ou de ordem pessoal inviabilizaram a conclusão

dessa etapa. Como o período de coleta de dados estava no final, e como o período

de demandas do trabalho dos motoboys estava em alta, decidimos deixar de lado a

finalização da técnica e partir para o trabalho de análise dos dados. Acreditamos,

porém, que o que obtivemos nas etapas em que cada trabalhador analisa o seu

próprio trabalho fora de extrema valia para uma compreensão significativa do

trabalho dos motoboys, em particular no tocante à condução da moto no trânsito.

Porém, a confrontação entre gêneros discursivos distintos, que seria possibilitado

pela etapa faltante, certamente nos traria informações também muito valiosas. Com

isso, a discussão coletiva sobre essa atividade também não foi possível.

Mesmo assim, apesar de todos os problemas enfrentados nessas duas

técnicas propostas por Clot, sua aplicação nos abriu perspectivas de análises muito

interessantes. Esperamos uma outra oportunidade para desenvolver essa técnica

em sua complexidade. Veremos um pouco adiante que os problemas enfrentados na

aplicação dessas técnicas não foram os únicos problemas enfrentados. Acreditamos

que a explicitação desses problemas ajudará ao leitor a compreender que os

cuidados a se tomar ao empreender uma pesquisa tão complexa devem ser

redobrados, se se espera um resultado rigoroso.

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Para finalizar, gostaríamos de registrar que os outros procedimentos

empregados ao longo da pesquisa, em particular as verbalizações por meio de

entrevistas, depoimentos e oficinas, também tinham como substrato teórico a idéia

de que o exercício de resgate e análise da memória corporal, lingüística e cognitiva,

bem como das questões acerca do trabalho, da vida e do corpo, baseia-se numa

tentativa de lançar ao discurso dimensões da atividade de trabalho e da vida que

são vivenciados, muito comumente, “sem se saber que se sabe”. Nesse sentido,

mesmo que por caminhos distinto aos dos procedimentos da autoconfrontação

cruzada e das instruções ao sósia, compreendemos que por meio da entrevista o

trabalhador acessa informações registradas em seu corpo/memória, o que torna

possível, a partir desse acesso, construir, mesmo que parcialmente, outras

perspectivas sobre o que faz e o que sente. Ou seja, a atividade de verbalização é

por si só, em certa medida, uma atividade de produção de uma dada realidade e, por

isso, de sua própria transformação. Assim, mesmo que por outros meios, as

verbalizações dos trabalhadores encaixam-se dentro daquilo que Clot denomina de

Clínica da Atividade.

Aplicação de questionários

Finalmente, vale apenas lembrar que decidimos aplicar questionários33

visando produzir alguma ordem de informação quantitativa (até aquele momento

inexistente) para que pudéssemos compreender que tendências de perfil,

sentimentos, princípios, valores, recursos, entre outros, vem definindo esse coletivo

profissional. O questionário foi analisado por meio de freqüências absolutas,

relativas, análises de risco, qui-quadrado, ETA, Somers’d e testes não paramétricos

de Kruskal-Wallis H e Mann Whitney U de acordo com a natureza das variáveis e

respostas obtidas. Tentamos explorar ao máximo diversas variáveis do questionário,

tais como as relações entre riscos de acidente, idade, tempo de condução de moto,

tempo de pausa para descanso e alimentação, horas de sono, bem como as

relações entre remuneração e idade, tipo de serviço, tempo de habilitação, etc. sem

33 Ver anexo I.

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definir, a priori, variáveis dependentes ou independentes. Tomamos a liberdade de

cruzar as variáveis entre si de maneira a identificar possíveis relações que nos

apontassem direções para as análises qualitativas. Para nós, o uso da investigação

quantitativa foi concebido mais como produtor de conjunturas para as análises que

se seguiam, do que com a pretensão de chegar a um retrato “científico” de uma

“realidade” estatisticamente analisada. Não entendemos que seja necessário, ou

mesmo útil, neste momento, nos posicionar a favor ou contra a pesquisa

quantitativa. Apenas afirmamos que a usamos, dentro dos rigores que nos fosse

possível, como um suporte a mais para a identificação de tendências e diferenças

entre os grupos profissionais.

Entretanto, neste texto, não nos debruçaremos sobre as análises

quantitativas, mas apenas sobre alguns dos resultados encontrados, quando

considerarmos que estes nos apontam aspectos importantes sobre o trabalho. Por

essa razão, não consideramos importante discutir com exaustão os procedimentos

escolhidos para definição da amostra, sua representatividade, entre outros. Vale

apenas mencionar que, em função da dificuldade de determinar com exatidão a

população de motoboys no município de Vitória, bem como sua distribuição pelos

bairros da capital, nossa amostra, de 189 respondentes – esse número de

respondentes se refere à quantidade de motoboys que se dispuseram a responder o

questionário e não da amostra inicialmente planejada –, não pode ser considerada

como representativa dos motoboys do município o que nos obriga a reconsiderar o

valor preditivo de todos os resultados obtidos. Daí que qualquer generalização

realizada a partir dessa amostra é inadequada, devendo ser considerada mais como

um indicativo do que como uma representação da categoria.

A análise das informações produzidas

Ao longo da pesquisa procuramos produzir informações a partir das quais

iríamos construindo sentidos que nos permitia tanto produzir novos meios de

investigação sobre o trabalho, quanto analisar a atividade realizada. Lembrando que

investigávamos a atividade, não empreendemos exatamente uma espécie de análise

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hermenêutica do discurso, tal qual sugere Dejours (2004b). Partíamos do conjunto

de discurso produzido para compor uma compreensão mais sistematizada dos

elementos em torno da atividade: os saberes, os discursos defensivos, os conceitos

sobre diversos aspectos (risco, acidente, etc.), os valores em torno da atividade,

entre outros. Para tanto, identificávamos nas falas e nos registros dos diários de

campo aqueles elementos que identificavam aspectos importantes para a

compreensão da atividade dos motoboys. Por exemplo, quando um trabalhador

relatava um caso qualquer, procurávamos no relato identificar que elementos eram

citados e que permitiam identificar aspectos elucidativos sobre a atividade (sejam

eles valores, conceitos sobre determinados assuntos, ou saberes em curso). A partir

desses elementos, procurávamos outros relatos em que esses elementos eram

citados e, a partir daí, organizávamos esses elementos em categorias que nos

permitia compreender a atividade de maneira mais organizada.

Por outro lado, baseados nas influências que Bakthin produziu em vários dos

autores por nós estudado, não deixamos de procurar as polifonias das vozes nos

discursos dos trabalhadores, uma vez que elas permitem revelar os gêneros

discursivos em jogo num determinado contexto. Isso porque entendemos que nas

falas de qualquer pessoa se atualizam gêneros discursivos que estão disponíveis

para as pessoas que vivem determinados contextos e que se são por ela

apropriados de tal ou qual forma por inúmeras razões: estratégias defensivas,

interesses não revelados ou porque esses gêneros fazem parte das subjetividades

que a pessoa partilha. Seja como for, compreendíamos as falas dos trabalhadores

como produtos de uma apropriação de gêneros discursivos que vem sendo também

produzidos pelo coletivo de trabalho.

Além disso, buscávamos identificar os termos técnicos utilizados pelos

trabalhadores, e as dimensões técnicas e de saberes que em geral esses termos

revelam. Baseados também na maneira como Sato e Souza (2001) se apropriam da

etnologia para estudar as situações de trabalho, tentamos compreender as teias de

sentido que dão significado e auxiliam aos trabalhadores a produzir e partilhar seus

mundos de trabalho. Para tanto, procurávamos identificar os “conceitos” partilhados

pelos trabalhadores acerca de temas diversos (acima citados) e como eles eram

mobilizados para explicar inúmeras situações do cotidiano. Vale mencionar que os

valores em debate são indicativos importantes para sinalizar a maneira como esses

sentidos coletivos são construídos.

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O grupo de pesquisa e as implicações pessoais/ institucionais em torno da pesquisa

O grupo de pesquisa foi formado sob a coordenação de dois profissionais que

partilhavam, em comum, um interesse sobre o estudo nas relações saúde-trabalho e

em seus vínculos profissionais com a Secretaria Municipal de Saúde de Vitória. A

enfermeira Roseanne Vargas Rohr, na época coordenadora municipal de Saúde do

Trabalhador da Prefeitura de Vitória, tivera a idéia de investigar a atividade de

trabalho dos motoboys em função de algumas manifestações coletivas desses

profissionais após alguns acidentes fatais envolvendo motoboys na região da

Grande Vitória. Para tanto, convidara outros técnicos da Prefeitura de Vitória para

auxiliar em dimensões particulares da pesquisa. Entre eles, fui convidado a

participar, inicialmente na condição de integrante do grupo.

Embora a pesquisa tenha envolvido técnicos da Prefeitura de Vitória, ela não

fora promovida como uma pesquisa da Prefeitura. Os dados obtidos certamente

seriam utilizados para o desenvolvimento de políticas públicas na promoção de

saúde e proteção desses profissionais. Mas a Administração da Prefeitura não

houvera demandado tal investigação. Além de não se tratar de uma pesquisa da

Prefeitura de Vitória, essa pesquisa fora proposta pela coordenadora também por

seu vínculo com uma instituição privada de ensino superior do município, condição

que lhe permitiu obter o financiamento para a consecução da pesquisa.

Assim, por um conjunto de razões – também eu era professor de uma outra

instituição privada de ensino superior do município, assim como a outra pessoa mais

próxima do campo de pesquisa de saúde-trabalho, além de estar fazendo doutorado

na área (buscando compreender as dimensões do risco, foco central da investigação

inicialmente proposta por ela) – chegamos ao entendimento de que deveríamos

partilhar a coordenação desse Projeto. Inicialmente, Roseanne Rohr conseguira um

financiamento de pesquisa que permitia a contratação do trabalho de estatístico e de

outros serviços profissionais, além da disponibilização de um estagiário de iniciação

científica. Decidimos partir para a busca de um outro financiamento para execução

ainda mais abrangente desse estudo. Condição obtida por mim, na qual se garantiu

mais um estagiário-bolsista de iniciação científica, além de mais recursos para

estatística e contratação de serviços de filmagem. Os recursos foram

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disponibilizados pela FAPES, do governo estadual e um pela FACITEC, do governo

municipal de Vitória.

O grupo se consolidou com a participação mais direta de mim e Roseanne,

como coordenadores, de 3 estagiários-bolsistas de iniciação científica34 e de um

estatístico contratado. Além disso, de maneira mais indireta, outros técnicos da

Prefeitura de Vitória e de outras instituições envolvidas foram muito importantes para

a coleta de informações fundamentais para a compreensão do cenário investigado.

Entre eles, encontravam-se um médico do trabalho, 2 técnicos envolvidos no

monitoramento de mortalidade por causas externas no município de Vitória, uma

enfermeira de um hospital referência em acidentes da região metropolitana, um

professor de antropologia da mesma instituição de ensino de Roseanne Rohr, bem

como do então gerente de Vigilância em Saúde da Secretaria Municipal de Saúde de

Vitória.

Com o grupo consolidado, partiu-se para o desenho das atividades a serem

desenvolvidas. Não tínhamos clareza, quando iniciamos a pesquisa, sobre as

dificuldades que seriam encontradas e não nos passava à mente, inicialmente, que

essa pesquisa esbarraria em enormes vácuos de dados sobre a condição de

trabalho dos profissionais investigados. Discutiremos isso no tópico seguinte. O que

queremos argumentar, por hora, é que a compreensão de que fizemos uma

pesquisa exploratória se concretizou mais na etapa final da pesquisa. Inicialmente

acreditávamos possível abranger uma amostra significativa de profissionais, bem

como nos vincularmos com representantes socialmente legitimados para

respondermos às indagações levantadas desde o início da pesquisa. Que

dificuldades foram essas?

O encontro com os trabalhadores, as questões da amostra e a legitimação da pesquisa

Antes de desenhar as técnicas de pesquisa detalhadamente, procuramos o

Sindicato dos Motociclistas do Espírito Santo, visando obter com essa entidade uma

34 Esses alunos, Flávio Pereira, Mariana Ferraz e Fernanda Monteiro, merecem um enorme crédito pela pesquisa, sendo peças fundamentais no andamento das investigações, em todas as etapas do projeto.

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legitimidade institucional que nos permitisse desenvolver a pesquisa

adequadamente. Acreditávamos inicialmente que a intervenção dessa instituição

junto aos trabalhadores pudesse proporcionar um pouco de confiabilidade na

condução da pesquisa e veracidade nos depoimentos, além do engajamento

subjetivo necessário para uma investigação mais próximas do campo da pesquisa-

ação. Nossas conversas iniciais foram muito positivas, porém logo nos deparamos

com uma dificuldade desse Sindicato em nos referenciar para sua base. A

dificuldade de acesso aos profissionais não se devia tanto ao acesso aos “postos”

de trabalhos dos motoboys, até porque parte dos trabalhadores se encontra

literalmente na rua, em pontos improvisados na cidade35, mas fundamentalmente na

disponibilização da informação sobre a pesquisa e no envolvimento e mobilização

dos trabalhadores em torno dela. Não conseguimos chegar a um acordo sobre como

abordar os profissionais. Além disso, o Sindicato não se prontificou de maneira

resolutiva na parceria dessa proposta. Decidimos, então, desenvolver essa pesquisa

independente do SINDIMOTOS.

Sem essa mediação do Sindicato, visamos construir um vínculo diretamente

com os motoboys, tentando produzir com eles uma legitimidade sobre nossa

investigação, permitindo o desenvolvimento da pesquisa a contento36. Por outro

lado, imaginávamos que nossa vinculação profissional com a Secretaria de Saúde

pudesse ser um empecilho na construção de confiança entre nós e os motoboys, até

porque sabíamos que vários desses profissionais trabalhavam de maneira informal

ou se encontravam em situação de irregularidade para com os órgãos

governamentais, em particular com os Departamentos de Trânsito. Sendo assim,

decidimos ser estratégico partir para o encontro com os profissionais mantendo

como informação principal de que se tratava de uma pesquisa de professores

universitários interessados na temática. Nunca escondemos o fato de que

trabalhávamos na Prefeitura de Vitória, mas deixávamos claro que não era uma

35 A dificuldade de acesso aos postos de trabalho é usualmente sentida quando se investiga atividades profissionais que se desenrolam em locais de acesso restrito, tais como determinadas indústrias, ou setores de transporte coletivos, hospitais, escolas, instituições privadas, etc. 36 As pesquisas realizadas pelos teóricos que desenvolveram as abordagens que sustentam nosso trabalho partem, em geral, de demandas dos trabalhadores por intervenções que os auxiliem na resolução de questões que eles não estão conseguindo lidar por meio de seus próprios recursos. Essas pesquisas conseguem, por isso, uma legitimidade quase que imediata do grupo investigado. Como nossa pesquisa não partira de uma demanda explicitada pelos trabalhadores, a questão da legitimidade da nossa intervenção nos colocava um problema central a ser resolvido. Além disso, a demanda por pesquisa produz efeitos de toda ordem na mobilização e engajamento dos trabalhadores em torno da pesquisa. Daí a importância de considerarmos essa questão em nossa investigação.

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pesquisa da Prefeitura e nem do Sindicato. Ao longo do tempo, o fato de que

éramos profissionais da Secretaria de Saúde não veio a se tornar um problema, até

pelo contrário: vários discursos nos foram direcionados exatamente porque éramos

profissionais da saúde, discursos esses que buscavam “denunciar” as condições

precárias de trabalho e o sofrimento patogênico decorrido da situação. Além disso,

como tínhamos estagiários de pesquisa que iam a campo conosco, logo ficou

evidente de que essa pesquisa não era uma “investigação policial”, mas

efetivamente uma pesquisa para produzir informações que poderia ser importante

para o grupo; e muitos deles diziam isso continuamente.

Para construir uma relação com os trabalhadores e desenvolver nossos

trabalhos, íamos diretamente aos locais em que se encontravam esses motoboys.

Para nossa felicidade, em Vitória alguns motoboys ficam à espera de trabalho em

determinados “pontos” localizados nas ruas, becos e praças da cidade. Em geral

esses pontos ficam na região do centro da cidade. Como estão na rua, o acesso a

eles não depende de permissão dos patrões, assim, a hierarquia não veio a ser,

inicialmente, um problema para nós. Mas a disponibilidade subjetiva era, sim, um

problema a ser enfrentado. Além disso, um outro problema era o fato de que aqueles

profissionais que tinham seus “pontos” na rua tendiam a ser profissionais que

executavam determinados tipos de serviços, a saber, entregas de documentos

empresariais. Como são inúmeros os serviços executados por motoboys, não

podíamos deixar de registrar que esse contato inicial com os profissionais era parcial

e limitada a esse tipo de profissional que ficava quase que o tempo inteiro nas ruas

executando serviços desse setor de documentos. Logo percebemos que alguns

aspectos do trabalho dos que se dedicavam às demanda deste setor eram muito

diferentes dos de motoboys que realizavam serviços de entrega de outros produtos

(medicamentos ou alimentação, por exemplo). Essas diferenças englobavam

aspectos diversos, indo desde a forma de remuneração até o tipo de relação entre

colegas. Detalharemos isso adiante. Por isso, com o passar do tempo, tentamos

diversificar um pouco mais nossas relações com trabalhadores de outros setores.

Porém, embora viéssemos a diversificar nossos contatos com os trabalhadores,

nossa pesquisa foi mais profundamente marcada pelas discussões com os

trabalhadores que atuam no setor de entregas de documentos empresariais, pois

ficamos mais tempo com eles. Isso tanto porque o acesso ao grupo era muito mais

viável, quanto porque passamos mais de um ano indo quase toda semana a pelo

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menos um dos pontos localizados na região central da cidade, visando construir um

espaço comum de diálogo onde efetivamente pudéssemos desenvolver sentidos

comuns de compreensão sobre a realidade de trabalho. A continuidade no contato

com um grupo de profissionais em particular foi, de tal ordem, que pudemos servir,

em algumas ocasiões, como verdadeiros confidentes, além do que nos permitiu

presenciar situações que não são usualmente expostas a outras pessoas que não

aquelas nas quais se possui uma grande confiança. Para nós, esse tipo de vínculo

dá legitimidade e veracidade à palavra dos trabalhadores (no sentido que se toma

na PDT), ao mesmo tempo em que torna a fala e a escuta dos pesquisadores

respeitada e legitimada. Porém, o investimento para a construção desse tipo de

vínculo com profissionais de outros setores de motoboys requeria muito mais tempo

do que dispúnhamos para a conclusão da ‘coleta de dados’ da pesquisa (prevista

para, no máximo, 1 ano e 2 meses).

Usamos, então, algumas estratégias para viabilizar a construção de vínculos

de maneira mais rápida com profissionais de outros setores – estratégias essas que

apresentaremos logo a seguir. Porém, é interessante observar que o esforço

empreendido para construção de sentidos comuns entre pesquisadores e

protagonistas da atividade em análise permitiu um desenvolvimento cognitivo

(também afetivo e social) de tal ordem entre nós, pesquisadores, que mais tarde,

quando íamos conversar com profissionais com quem nunca tínhamos tido contato,

parecia que a legitimidade já estava dada. Acreditamos que o desenvolvimento

desses sentidos, linguagens, compreensões sobre o trabalho dos motoboys entre

nós permitia-nos fazer perguntas mais pertinentes à suas realidades. Isso porque

passamos a incorporar em nossas indagações termos e conceitos cotidianos,

pragmáticos, que são característicos da atividade profissional. O reconhecimento

dos trabalhadores com a proximidade à sua realidade em geral os destituía de

utilizar determinados gêneros discursivos que são usualmente utilizados quando

alguém ou um grupo é confrontado com pessoas de outro nível social do qual se

sente inferior, ou quando percebe que essa pessoa pode tornar pública informações

sobre ele, sem que tenha condição de contrapô-lo. Eu chamaria isso de gênero

jornalístico, pois muito comumente, quando se entrevista alguém com quem não se

possui um vínculo construído, as respostas tendem a ser muito próximas daquelas

que lemos ou ouvimos em reportagens de jornais. Esses discursos não são,

geralmente, inverossímeis, mas tendem a ser uma apresentação parcial, e sempre

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bem estratégica, daquilo que interessa mostrar ao leitor/ouvinte. Estratégica porque

é em geral conveniente ao que se espera produzir em quem se acredita dirigir

aquele tipo de “cenário” de “entrevista”. Estratégica também porque, em geral, nesse

tipo de “cenário”, o entrevistado tende a não dizer nada que o possa recriminar, ou

ser utilizado contra ele.

Pois bem, com nosso desenvolvimento discursivo, parece que quando íamos

nos encontrar com outros motoboys, intuitivamente conseguíamos tornar

desnecessária a utilização desse tipo de gênero discursivo por parte dos motoboys.

Claro que essa avaliação não é definitiva e nem fora sempre igual em todo lugar que

íamos. Mas o fato é que as entrevistas realizadas na etapa final da pesquisa,

quando passamos a manter diálogos mais constantes com profissionais de outros

setores da categoria, foram mais “profundos” do que aqueles mantidos nos nossos

primeiros contatos com a categoria. Esse é um dos aspectos que denominamos de

construção de sentidos comuns entre pesquisador/ protagonistas da atividade em

análise.

Uma outra ressalva do ponto de vista teórico-metodológico: Piovesan e

Temporini (1995) sugerem entrevistas não-diretivas e em profundidade como forma

de obter informações pertinentes para a construção de questionários adequados às

pesquisas qualitativas. Acreditamos que a profundidade de um diálogo se

desenvolve com o passar do tempo ou pela partilha de um determinado gênero

discursivo entre as pessoas em diálogo e não pela diretividade ou não do momento

de diálogo. Gonçalves Filho (2003) chega a diferenciar entrevista de depoimento.

Acredita que o acesso aos registros mais “profundos”, para usar os termos de

Piovesan e Temporini, se dá quando a pessoa que está oferecendo informações

para a pesquisa sai da condição de entrevistado e passa a dar depoimentos sobre

sua realidade. Concordamos com essa perspectiva, na medida em que o acesso a

determinados gêneros discursivos permite a revelação de outras ordens da

realidade. Porém, pela experiência que tivemos, parece que esse acesso aos

gêneros discursivos mais “profundos” pode estar “à superfície”, se nos permitirmos

partilhar em parte desse mesmo gênero. Daí, então, que não se trata apenas de

apreender as linguagens utilizadas naquilo que Piovesan e Temporini denominam de

Repertório Popular, mas sim numa verdadeira disponibilização dos pesquisadores a

esse universo de linguagem.

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Tudo isso que dizemos acima não se constituiu como uma etapa de

“familiarização” dos pesquisadores com os trabalhadores para que, vencida essa

etapa, pudéssemos realizar a pesquisa posteriormente. Esse esforço se deveu mais

para que pudéssemos atingir um dos pressupostos de nossa pesquisa-intervenção,

a saber, a legitimidade e o engajamento dos trabalhadores na pesquisa e na análise

de sua atividade de trabalho. A pesquisa “propriamente dita” deu-se desde seu

início, seja por meio da construção de vínculo entre pesquisador-protagonistas da

atividade em análise, seja pela aplicação de questionários ou pela realização de

entrevistas ou oficinas. Porém, no tocante a cada um desses procedimentos de

pesquisa, fomos nos deparando com diversos desafios que por mais importantes

que tenham sido, nos demonstrou limites reais para o adequado emprego de cada

um dos procedimentos desenvolvidos.

Entre esses desafios, destaca-se a dificuldade de se conduzir uma entrevista,

ou de se aplicar um questionário adequadamente, uma vez que o trabalho dos

motoboys é caracterizado por sua capacidade de responder rapidamente às

demandas dos clientes. Como essas demandas não têm “hora marcada”, a qualquer

momento os motoboys podem ser requisitados, sendo forçados a abandonar outras

atividades que não têm a ver diretamente com a atividade de trabalho. Nesse

sentido, muitas vezes tínhamos que terminar uma conversa, uma entrevista ou parar

um questionário no meio porque o motoboy tinha que sair. De maneira semelhante,

qualquer atividade de grupo proposta para esses motoboys contava com uma

dificuldade que era a permanência dos mesmos trabalhadores ao longo da atividade

inteira. Não chegamos a realizar nenhum dispositivo técnico para mobilizar a

discussão acerca do trabalho nos pontos de motoboys, pois todas as conversas ou

entrevistas que conduzíamos junto ao grupo dos motoboys eram sempre afetadas

por esse fluxo que, em alguns momentos, atrapalhava a condução dos trabalhos,

seja porque os que não sabiam exatamente o que estava acontecendo tendiam a

resistir a participar mais ativamente da discussão, seja porque não muito comumente

faziam piadas ou brincadeiras no momento que chegavam no ponto, distraindo a

discussão ou conduzindo-a para temas que não eram pertinentes à pesquisa, como

por exemplo comentar sobre futebol, mulheres ou coisas parecidas.

Enfim, a manutenção de um debate em um grupo ou coletivo dependem, em

parte, de certo engajamento dos participantes que, por sua vez, depende de uma

compreensão razoável do que se pretende com o dispositivo técnico utilizado.

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Então, como não tínhamos condição de parar o tempo inteiro para explicar do que

se tratava a discussão, decidimos não lançar mão desse tipo de dispositivo no local

de trabalho. Em contrapartida, as conversas informais eram feitas, muito

comumente, em grupo. Nessas conversas, os questionamentos não eram vinculados

a temas a priori, mas surgiam com o seu próprio transcorrer. Grande parte dessas

conversas não era gravada, sendo seu registro realizado posteriormente, por meio

de diários de campo. Isso explica porque ao longo de nossa investigação, parte das

conclusões a que chegamos não foi baseada em falas transcritas de conversas

gravadas, mas em um conjunto de informações que foram sendo estruturados por

meio dos registros obtidos dos diários de campo por nós produzidos.

Uma outra dificuldade com que nos deparamos se tratava da recusa dos

profissionais para atividades da pesquisa fora do local de trabalho. Os dispositivos

técnicos de análise coletiva do trabalho propostas tiveram que ser aplicadas por

meio de estratégias que requereram um enorme esforço do grupo de pesquisadores.

A primeira reunião com os motoboys, marcada para um sábado de manhã, foi

extremamente frustrante. Contou apenas com 2 profissionais que compareceram à

atividade. Avaliamos, posteriormente, que tanto a estratégia de mobilização havia

sido falha – fizéramos apenas um convite formal, sem nenhum outro apelo mais

interessante –, quanto o momento da proposição das oficinas estava inadequado,

pois o vínculo dos trabalhadores com a pesquisa ainda estava muito incipiente.

Porém, por sugestão dos próprios motoboys que compareceram à atividade, a

realização de alguma atividade lúdica como “chamariz” poderia resultar em uma

participação maior. Sugeriram, então, um campeonato de futebol entre pontos de

motoboys. Saímos na semana seguinte já divulgando esse campeonato. Essa

estratégia foi extremamente positiva, tanto porque permitiu uma aproximação entre

os pesquisadores e outros pontos de motoboys, pois tínhamos de divulgar o

campeonato junto a profissionais com quem nunca havíamos tido contatos

anteriores, quanto porque garantiu uma presença significativa de trabalhadores no

dia marcado (cerca de 2 meses depois da 1ª oficina realizada). Nessa segunda

reunião, contamos com a participação de cerca de 50 profissionais, que participaram

de uma discussão sobre o trabalho, antes do campeonato de futebol.

É importante registrar que o fato de que houvera uma presença importante de

trabalhadores no momento da oficina não significou que todos estavam ali com o

engajamento mais apropriado para uma discussão mais analítica sobre o trabalho.

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Alguns trabalhadores estavam tão ansiosos para participar do campeonato que

literalmente não faziam outra coisa que não falar de futebol. Mas avaliamos que

essa estratégia produziu mais efeitos positivos que negativos. Essa dificuldade de

mobilizar trabalhadores para atividades fora do horário de trabalho também tornou

inviável a condução da técnica da autoconfrontação cruzada, conforme acima citado.

Uma outra barreira enfrentada na condução dos trabalhos se deve ao registro

das informações. Parte das entrevistas foi gravada, mas como esses profissionais

trabalham nas ruas, em muitas ocasiões seu registro se tornou extremamente

prejudicado. Verificamos, portanto, a necessidade de se preparar melhor as

condições técnicas para o registro das informações em ambientes abertos,

principalmente se levarmos em conta que a popularização de gravadores de voz não

veio devidamente acompanhado da qualidade técnica de seu registro.

Finalmente, uma das dificuldades mais sérias deu-se no campo da pesquisa

quantitativa. Desde o início enfrentamos problemas nesse campo. O limite da equipe

tornou prejudicado tanto o delineamento da amostra, quanto a definição das

estratégias de aplicação dos questionários, comprometendo a representatividade

estatística da amostra. Só para exemplificar, um dado que nos surpreendeu quando

iniciamos a pesquisa, se tratava da dificuldade de estimar com precisão a

quantidade de trabalhadores em atividade no setor de motofrete em Vitória. O

Sindicato citava números da ordem de milhares (cerca de 9 mil na região da Grande

Vitória, sendo a maior parte na capital). Já os dados da Secretaria de Administração

da Prefeitura Municipal de Vitória apresentavam quantidades muito menores –

porém essas informações referiam-se apenas aos registros no cadastro de Imposto

Sobre Serviço (ISS) daqueles trabalhadores que eram autônomos (o número era da

ordem de umas poucas centenas). Surpreendemo-nos também com o fato de que

não havia dados ou informações sobre os motoboys nem na Secretaria Municipal de

Transporte e Trânsito da Prefeitura de Vitória, nem no Detran-ES. Essa carência de

informação foi também uma realidade acerca dos acidentes de trabalho entre esses

profissionais. Números oficiais dos quais partir foi o primeiro obstáculo a se vencer

(alguns dos quais não obtivemos nenhum sucesso).

De qualquer modo, como não tínhamos intenção, a princípio, de fazer

qualquer tipo de pesquisa que fosse quantitativa em primazia, a proposta de lançar

mão desse tipo de método se deveu mais à busca de gerar dados numéricos que

nos permitissem expandir um pouco mais nossa compreensão acerca das

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dimensões populacionais, de perfil e epidemiológica dessa população. Reiteramos,

portanto, que nossos dados são apenas indícios que nos apontam para questões

que deverão ser investigadas com um rigor muito maior no futuro. Reiteramos aqui

também que, pelas razões acima descritas, se reafirma aqui, de maneira bastante

veemente, o caráter ‘exploratório’ da pesquisa.

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2. DEBATES SOBRE O TRABALHO DO MOTOBOY: EM BUSCA DO ESTADO DA ARTE

Dizíamos acima que no início das pesquisas nos deparamos com a quase

inexistência de informações acerca da profissão de motoboy. Praticamente nenhum

dado epidemiológico existente, poucos estudos realizados e publicados no país

sobre este coletivo profissional, sendo que poucas enfocavam exclusivamente sua

atividade de trabalho. Podemos afirmar que, após uma extensa busca em todas as

bases de dados disponibilizadas pelo sitio da CAPES, bem como pela pesquisa

pelos termos referentes à profissão em alguns dos mais importantes serviços de

busca da Internet37 (citados no capítulo anterior), é fato que, até a presente data,

inexistem dados consistentes sobre essa atividade de trabalho. Só a partir do ano

2000, o trabalho dos motoboys começa a chamar mais atenção dos pesquisadores

brasileiros. Desde então, foram publicados os estudos de Diniz (2003), Diniz,

Assunção e Lima, (2005a; 2005b), Oliveira (2003), Veronese (2004), Veronese e

Oliveira (2006a; 2006b), Silva38 (2006), Riccio-Oliveira (2002; 2006)39, Lourenço e

Martins (2006), Grisci, Scalco e Janoik (2007), Vincent e Nardelli (2007), Drumond et

al. (2007); Rohr, et al., (2007). Além disso, inicia-se, ainda que timidamente, um

pequeno debate nacional sobre a temática, principalmente motivado pelo aumento

progressivo dos casos de morte envolvendo motociclista. Ao que tudo indica, o

primeiro estudo mais consistente a esse respeito foi realizado em São Paulo

(FISCHER et al., 2002). De qualquer modo, esse debate culmina do I Seminário

Nacional do Departamento Nacional de Trânsito de Educação e Segurança no

Trânsito, cujo tema era “Motocicleta”, e que fora realizado em setembro de 2006 no

Distrito Federal, contando com a participação de inúmeras entidades ligadas direta

ou indiretamente à atividade dos motoboys.

Todavia, limitar-se à realidade brasileira é ignorar que essa não é uma

ocupação exclusiva deste país. Existem relatos sobre essa atividade em países de

37 É possível que outros estudos tenham sido realizados no país, tais como estudos exploratórios que serviram de base para monografias de conclusão de cursos de graduação e de pós-graduação. Mas se esses estudos existem, nada podemos dizer sobre eles, pois não foram publicados e nem disponibilizados para consulta on-line, bem como não foram citados por outros pesquisadores em nenhum momento. 38 O grupo de Silva divulgara alguns de seus resultados de pesquisa em Congressos e Seminários Nacionais e Internacionais. Entretanto, como estamos considerando aqui apenas as divulgações científicas em revistas científicas, não nos referiremos a esses trabalhos de divulgação. 39 Não tivemos acesso aos dois os trabalhos realizados por Riccio-oliveira (2002; 2006), o que nos impede de fazer quaisquer considerações sobre eles.

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todos os continentes40. De um modo geral, algumas informações obtidas por essas

fontes nos permite perceber que inúmeros aspectos comuns tornam a atividade

digna de nota. Em particular o reconhecimento da sua importância econômica e

social e as condições precárias e deletérias em que esta atividade está envolvida,

sobretudo no tocante aos riscos de acidente. Parece, então, que a atividade de

motoboys possui uma importância maior do que inicialmente supúnhamos, mesmo

em nível global. Contudo, isso não significa dizer que em outros países o interesse

científico por essa atividade é muito maior do que no Brasil. Talvez em alguns países

o interesse por ela tenha sido despertado um pouco antes, mas de modo geral não

há uma produção sistemática de informações também em outros países – pelo

menos considerando o que se publica em língua inglesa, francesa e espanhola.

Diante da semelhança de condições sociais, econômicas e trabalhistas da

profissão nos vários países, bem como o momento histórico em que a profissão

emerge e se espalha no mundo inteiro, percebemos que era importante

compreender mais adequadamente que fenômenos sociais e que fatos históricos

estavam envolvidos quando houve o surgimento da profissão. Porém, descobrir fatos

históricos que registrem informações prévias sobre a atividade dos motoboys é

tarefa das mais complicadas, uma vez que as informações não estão disponíveis de

modo sistematizado e não existem estudos específicos sobre o assunto. Mesmo ao

buscar informações básicas que pudessem subsidiar a construção deste trabalho,

por meio das quais pudéssemos conhecer as origens da profissão, seus pioneiros e

os desenvolvimentos subseqüentes, nos esbarramos com o mesmo vazio de

informações que encontramos na busca de dados epidemiológicos. Encontramos

hora aqui, hora acolá um conjunto de textos que nos permitiu montar um cenário

histórico geral da profissão no mundo. Essa bricolagem, entretanto, não deixa de ser

apenas uma inferência a ser comprovada em estudos específicos.

De qualquer modo, a falta de informação não implica que não podemos

apreender a profissão como um fenômeno social, econômico e cultural que pode ser

por nós parcialmente explicada. Para tanto, procuramos investigar em que cenário

sócio-histórico ela emerge e quais os atores a ela atrelados. Tentamos localizar de

40 Sano; Wisetjindawat; Minh; Sattayaprasert (2005); Wigan (2000); Cope et al. (1987); Lummis (1988); Mccombe (2003); Maartens; Wills; Adams (2002); Hamer (1996); Derteano (2005); Ramos et al. (2004); Jiménez; Adell (2006); Todd; Butler-Manuel; Lucas (1991); Silke (1989); Haworth; Rowden (2006); Howe (2003); Kinkade; Katovich (1997); Ozgul; Kimbler (2005); Williams; Haddad; Fazal (1997); Mclean; Bernard (2003); Wick; Ekkernkamp; Muhr (1997), entre outros inúmeros artigos de jornais não científicos.

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uma maneira mais precisa a atividade e a organização do coletivo dos motoboys no

cenário urbano, imagético e de sentido da contemporaneidade.

Primeiros passos da profissão: as condições sócio-econômicas no contexto do surgimento dos serviços de entrega rápida

Segundo Oliveira (2003), a profissão dos motoboys surgiu durante os anos

80, quando um argentino trouxe de Buenos Aires para São Paulo a idéia de uma

atividade que, com os anos, viria a se tornar um fenômeno nacional e de

impressionante expansão. O autor informa que também em Salvador, ainda nos

anos 80, as pizzarias começaram a fazer entregas por meio das motos. Embora

limitado somente a essas informações, talvez não seja incorreto inferirmos que

àquela época, em ambos as cidades e em outras Brasil afora, a questão em voga

para a contratação dos serviços de moto-entrega era a facilidade e rapidez por ela

permitida, principalmente nas entregas de pizza. Como se essa fosse uma opção a

mais para os clientes das empresas prestadoras de algum serviço qualquer, talvez

visando à satisfação e à comodidade dos seus consumidores.

Entretanto, as primeiras experiências que conduziriam ao surgimento da

atividade dos motoboys no mundo são muito anteriores à década de 80. Maartens,

Wills e Adams (2002) estudando a origem das pesquisas que conduziram à criação

dos capacetes para motociclistas citam que um dos principais fatos que motivaram o

investimento nesse tipo de estudo foi a morte “desnecessária” de motociclistas do

exército britânico41 durante o início da Segunda Guerra Mundial. O sítio Wikipedia42

vai um pouco mais longe e afirma que os motoboys surgiram em 1918, quando o

41 O termo utilizado no artigo (despatch rider) refere-se a um dos termos traduzidos por motoboy atualmente. Resolvemos traduzi-lo, aqui, por motociclistas do exército porque é improvável que toda a dimensão trabalhista dos motoboys estivesse subsidiando as práticas profissionais dos motociclistas do exército numa condição de guerra. De qualquer modo, é interessante observar também que o termo motoboy não existe em inglês. Vários termos são utilizados para descrever o que, no Brasil, é congregado sob o termo motoboy: motorcycle dispatch rider (motociclista despachante), motorcycle messenger (motociclista mensageiro), mortorcicle courier (motociclista mensageiros) ou motorcycle delivery boy (motociclista entregador). Em espanhol existem também diferenças de termos para designar motoboy que transportam documentos e cargas, e aqueles que transportam alimentos: repartidor de pizza (entregador de pizza) neste caso, e motociclista mesajero (motociclista mensageiro) naquele. Observa-se que o termo despatch rider pode ser grafado, também, como dispatch rider. 42 O Wikipedia é uma enciclopédia de acesso público e de produção também pública, em que qualquer pessoa tem a possibilidade de registrar informações sobre determinado assunto. Isso, por um lado, torna as informações sempre duvidosas, mas não deixa de ser, por isso, uma informação a ser considerada como possível. Sobre o sítio, acessar: www.wikipedia.org Sobre os motoboys, acessar o termo dispatch rider.

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mesmo exército britânico, após a I Guerra Mundial, dispensou seus motociclistas

que, sem emprego, mas com recursos disponibilizados pela guerra, adquiriram as

motos sobressalentes do exército e iniciaram o trabalho de entregas de documentos

civis no centro de Londres. Corroborando um pouco as informações do sítio

Wikipedia, o sítio do Trade Union Congress – uma das centrais sindicais da

Inglaterra – em parceria com o London Metropolitan University, apresenta as

histórias do movimento desta central naquele país onde se registra o uso de

motoboys como instrumentos fundamentais na greve geral de 1926 no país. O sítio

não esclarece se eram profissionais ou amadores realizando funções de entrega,

mas deixa claro o uso estratégico desse tipo de transporte já no início do século XX.

Entre esse início mais tímido e a década de 80 não encontramos muita

informação precisa sobre essa ocupação. Já na década de 1980 iniciam-se em

Londres alguns debates sobre os riscos de acidentes envolvendo os motoboys. Essa

discussão foi desencadeada quando médicos do Hospital São Bartolomeu em

Londres, logo após o lançamento de programas de treinamento para motociclistas

profissionais pelo Ministério dos Transportes daquele país, escreveram uma carta

para o British Medical Journal demonstrando que o crescimento de profissionais na

profissão estava acompanhado pelo aumento no número de acidentados internados

nas enfermarias do hospital (COPE et alli, 1987). A partir dessa carta, que foi

rebatida pelo representante sindical na época em outra edição do British Medical

Journal (LUMMIS, 1988), deflagra-se um debate, embora ainda bastante tímido,

sobre os riscos de acidentes na profissão. É neste momento que se relaciona, pela

primeira vez, a profissão dos motoboys aos riscos de acidentes, percepção essa

que, como vimos, povoa o pensamento do senso comum aqui e fora do país. Esse

tipo de análise se perpetua desde então.

Em 1996 Hamer publica um pequeno texto na New Scientist, uma importante

revista de divulgação científica, permitindo que o tema chegue ao conhecimento do

grande público. O título do artigo, Mensageiros de morte, é bastante elucidativo das

questões que motivaram o autor a produzir esse material. Além do alto risco de

acidentes – segundo o autor, os motoboys em Londres têm 5 vezes mais chance de

sofrer acidentes do que os motociclistas ocasionais; em Londrina, Silva (2006)

verifica que os motoboys têm 10 vezes mais chances de se envolverem em acidente

– também na Inglaterra os motoboys estão descobertos de qualquer legislação que

lhes proteja, uma vez que não possuem vínculo empregatício com as empresas que

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contratam seus serviços. Hamer aponta ainda que em Londres a oferta de emprego

no setor é alta e as exigências para que alguém ingresse na profissão são, como no

Brasil, mínimas. Finamente, relaciona o risco dos acidentes ao excesso de

demandas e à remuneração por entrega43. Este texto é deveras importante porque

mostra um conjunto de similaridades em Londres e em cidades brasileiras, quanto

às práticas profissionais e às questões nelas envolvidas. É curioso ainda que as

discussões de Hamer obtiveram espaço no circuito da informação de grande mídia

exatamente no momento em que houve a grande ascensão da profissão no Brasil,

sem que houvesse, por parte das autoridades de trânsito, qualquer tipo de controle

ou regulamentação. Isso tudo indica um mesmo conjunto de fenômenos sociais,

urbanos e econômicos que estão subjacentes à expansão dessa profissão no

mundo inteiro. Algo semelhante ao movimento de criação e expansão do setor de

call-center que ocorreu em todos os continentes durante os anos 80 a 2000. Este

tipo de trabalho, entretanto, já vem sendo estudado há um bom tempo por inúmeros

pesquisadores (ZARIFIAN, 2001; OLIVEIRA; REZENDE; BRITO, 2006). Tanto os

trabalhadores dos call-center no mundo inteiro, quanto os motoboys em todos

lugares partilham aspectos que merecem ser discutido por nós.

Antes, apenas observar que Hamer discorda da idéia de que o surgimento da

profissão dos motoboys tenha iniciado no início do século. Para ele, a profissão

inicia durante a greve os correios da Inglaterra, no início da década de 70, tendo se

fortalecido com o fim do monopólio dos correios em 82. Admitimos a importância

desses fatos históricos, mas não podemos desconsiderar que a experiência dos

motociclistas do exército durante a Primeira e a Segunda Guerra Mundial tenham

deixado suas marcas como soluções possíveis para as questões da distribuição

logística de informação.

As informações que apresentamos acima são mais abundantes sobre

Londres porque foi aí que aparentemente se deu o início de sua história e também

porque é nessa cidade que, ao que tudo indica, a carreira de motoboys (atualmente

conhecida em Londres como courier) tem mais tempo de existência e, muito

provavelmente, deve ter produzido algo mais próximo do que compreendemos por

ofício44. Mas, como vimos no capítulo anterior, a experiência do uso de motos para

43 Recentemente, uma estudante do curso de jornalismo da USP (WHITE, 2006) fez, como trabalho de conclusão de curso, um interessante documentário sobre o trabalho dos brasileiros courier em Londres. 44 Isso, entretanto, é uma hipótese a se confirmar em pesquisas futuras.

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entrega velozes de documentos e de pequenas mercadorias espalhou-se por todo o

mundo e chega no Brasil exatamente quando o uso das motos se torna mais

estratégica em um cenário de encarecimento dos combustíveis e de aumento da

frota de veículos nas cidades. Para se entender a importância que esse meio de

transporte tem no cenário mundial do comércio e, mais especificamente brasileiro, é

importante uma ligeira consideração sobre a época em que o serviço de moto-

entrega emerge em nosso cotidiano.

Embora mal tenham se passado 20 anos, a década de 80 representa, em

vários aspectos, uma fase bastante distinta da que vivemos hoje no Brasil. O período

representa um momento crucial na história política do país: fim da ditadura militar,

reconstrução da democracia nacional, promulgação da Constituição de 1988, o

surgimento de inúmeros partidos políticos e a crescente mobilização nacional,

marcada, sobretudo, pelos movimentos dos trabalhadores no fim da década de 1970

e pelo movimento das “Diretas já” exigindo o fim da ditadura. Também um momento

importante para a história econômica regional: após a moratória do México em 1982

e a conseqüente redução do crédito internacional aos países Latino-americanos,

culminando posteriormente na moratória brasileira do fim dos anos 1980, inicia-se

um longo período de desestabilização econômica, atualmente lembrada como um

período de elevadíssimas inflações, mas que se caracterizou também pela forte

desaceleração da economia em comparação ao “milagre econômico” da década

precedente, e a um crescente sucateamento dos sistemas produtivos, com a

conseqüente redução dos postos de trabalho. No campo social, a década é marcada

pelo aumento das diferenças sociais, explosão da informalidade no campo do

trabalho, continuado processo de desruralização em concomitância à precária

urbanização, falência dos sistemas de saúde em funcionamento à época, entre

outros. No campo do consumo, o Brasil estava no auge do processo de substituição

das importações, mantendo uma grande barreira alfandegária por meio da alta

taxação dos produtos de consumo, implicando em uma qualidade de bens e

produtos relativamente aquém dos padrões europeus e americanos (salvo alguns

produtos que disputavam o mercado internacional, como armas, automóveis

populares e produtos agrícolas).

Após apresentar, de maneira muito resumida, o cenário brasileiro dos anos

1980, vislumbramos logo que a emergência dos serviços de moto-entrega ainda não

encontravam as condições suficientes para a sua explosão, conforme ocorreria na

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década seguinte: de um lado, a década de 80 estava sendo marcada por um

processo de perda das condições de consumo de uma imensa quantidade de

pessoas, levando-as à informalidade ou aos subempregos. Com isso, a formação de

um grande reserva de mão de obra que, na década seguinte, estaria

disponibilizando profissionais para assumirem as atividades dos serviços de moto-

entrega, estava a pleno vapor. Porém, em função da alta inflação, esse exército de

mão de obra disponível não tinha condições, à época, de adquirir bens de consumo

duráveis, pois com as elevadíssimas inflações do período, o crédito era algo

virtualmente impossível de se adquirir. Havia pessoas disponíveis, porém não

motocicletas disponíveis.

Por outro lado, o Brasil estava vivendo o fim de um modelo sócio-político-

econômico, que alguns autores chamam de desenvolvimentismo, mas que pode ser

compreendido também como esgotamento das tendências da modernidade clássica

no país ou simplesmente modernidade – na qual o eixo central da regulação do

sistema era a produção industrial, sempre mediada fortemente pelo Estado. No país,

porém, o foco da economia era a produção de bens para a exportação e nossa

história não fora marcada por uma mobilização social capaz de alterar a gestão

política do país – em direção ao chamado Estado de Bem-Estar Social (ou Welfare)

– sempre deficitária no quesito redistribuição de rendas e estímulo por padrões

elevados de consumo, sustentados por sistemas de seguro nacional. Sendo assim,

na década de 80 o consumo de determinados bens de consumo duráveis era

limitado às pequenas classes alta e média. Soma-se a esse fato a constatação de

que as transformações econômicas já anunciadas nos “países centrais” (EUA,

Europa e Japão) – e que eram marcadas, sobretudo, pela emergência da produção

imaterial, em que o setor de serviços e as tecnologias de informação ganham

enorme relevo – iriam acontecer no país somente após a “abertura econômica”

promovida principalmente pós-constituição de 198845.

Dado tudo isso, podemos inferir que os serviços de moto-entrega, à época de

sua emergência, eram estratégias que permitiam facilitar a vida dos consumidores,

sendo um diferencial nas empresas que dispunham do serviço. Porém, as condições

para que o serviço de moto-entrega viesse a passar de status de estratégias de

venda e se tornasse central na distribuição de bens e serviço de uma cidade, ainda

45 Sobre uma discussão mais profunda sobre essas transformações estruturais na sociedade e na economia mundial, ver Drumond (2002), Harvey (1997), Hardt e Negri (2001).

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estariam por vir. A década de 1980 viu emergir as bases daquilo que, na década

seguinte, comporia uma grande mudança das estruturas sociais do país. Dentre

elas, os serviços de motoboys seria apenas um sintoma a mais. Um sintoma, porém,

que à época ainda não estava muito bem anunciado.

Motoboys, uma nova figura social: sintomas de uma nova era

Conforme dizíamos acima, as transformações econômicas por que passaria o

país durante a década de 90 não apenas facilitariam a sustentação dos serviços de

moto-entrega: a década de 1990 tornaria esse serviço fundamental em nosso

cotidiano, a ponto de, atualmente, os próprios motoboys afirmarem com muita

segurança: “se os motoboys pararem hoje, Vitória pára”, como dissera um motoboy

que trabalha com serviços de entrega de documentos. Uma fala semelhante fora dito

por um motoboy em São Paulo, em uma reportagem exibida no Jornal Nacional no

dia 11/04/2007: “Se os motoqueiros parar em São Paulo, São Paulo já era. São

Paulo não funciona sem motoqueiro”46.

Que transformações foram essas, permitindo a sustentação desse tipo de

serviço? Alguns autores (Diniz, 2003; Oliveira, 2003) justificam de maneira

semelhante a emergência dessa atividade basicamente em torno dos seguintes

aspectos:

a) Precarização das relações e das condições de trabalho, causadas em

parte pelas transformações estruturais nas indústrias do país ao longo

dos anos 90, somadas, como vimos, à redução do crescimento da

década anterior, aumento das desigualdades e da informalidade,

disponibilizando grande quantidade de pessoas para executarem esse

tipo de tarefa, que, além de arriscada, é extenuante e desgastante.

Adiante, demonstraremos essa informação pelo perfil dos motoboys de

Vitória que entrevistamos por meio de nossa pesquisa;

46 Disponível em http://jornalnacional.globo.com/Jornalismo/JN/0,,AA1514791-3586,00.html . Acesso em 19 de Abril de 2007.

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b) Desenvolvimento dos sistemas e tecnologias de informação, que

permitiram a descentralização da distribuição dos bens de consumo e

serviços, garantindo a conclusão de um princípio fundamental nas

indústrias atuais: produção por demanda. A cadeia produtiva

atualmente tende a ser disparada pela demanda de cada cliente que,

por uma rede de informações e serviços, virtualmente consegue ter em

sua casa um produto desenhado sob encomenda. E todo esse

processo tende a ser rápido e em geral acessível. Nessa rede de

serviços, a atividade de moto-entrega assume um papel especial. Diniz

(2003) irá argumentar, de maneira bastante pertinente, que o serviço

de moto-entrega é como que uma representação dramática dos limites

da imaterialidade do sistema produtivo contemporâneo, pois se por um

lado a produção imaterial47 exerce o papel primordial na cadeia

produtiva, por outro ela se torna viável por sistemas de serviços que

garantam a sua materialização de maneira igualmente fluida, ágil,

fugaz: qualquer compra pela Internet requer a entrega desse produto

na casa do consumidor! Os serviços de moto-entrega são, portanto, um

dos elos que permitem a realização material de desejos e negócios

imateriais. Há uma questão central, porém, não abordada por Diniz: se

é verdade que a presença dramática dos motoboys é a lembrança

perene de uma materialidade que teima em não se “virtualizar”, ou

quiçá “esvaecer”, por outro lado, sua presença é dramática exatamente

pelo fato de que a importância da materialidade na contemporaneidade

tende a ser menor em um sistema de consumo em que a

imaterialidade produtiva (a produção de desejos, sentidos,

subjetividade) é o eixo principal da organização capitalista (HARDT;

NEGRI, 2001). Executar atividades materiais tende a ser um

“desprivilégio” daqueles que estão à margem dos sistemas produtivos

mais valorizados. Uma dramática presença desvalorizada, porém

extremamente necessária. De uma maneira semelhante, o texto de

47 A produção imaterial é aquela na qual o que está em jogo é a produção de desejo, vontade, demanda de consumo. Nesse sentido, importa menos como ou onde produzir determinado bem de consumo, mas o que produzir, quando e para quem. Essa definição é mediada pela propaganda, pela produção de desejo e de sentido. Sobre o papel da produção imaterial na contemporaneidade e os efeitos na composição de uma nova conformação social, ver Drumond, (2002) e Hardt e Negri (2001).

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Vincent e Nardelli (2007) demonstra que o trabalho dos motoboys é

uma materialização, em toda contradição que essa atividade engloba,

da emergência do cyberespaço nas relações comerciais e sociais em

São Paulo, marcando o ingresso do país naquilo que costuma se

chamar de globalização. Resulta desse processo a intensificação das

contradições sociais mobilizadas pela globalização, processo esse já

discutido por Bauman em mais de um trabalho (1998; 1999, para citar

apenas alguns). O texto de Vincent e Nardelli é uma referência

importante sobre esse aspecto, muito embora discutam muito pouco

das dimensões da atividade do trabalho desses profissionais, lançando

mão, para tanto, dos achados de Neto, Mutaf e Avlasevicius (2006).

c) Aumento da frota de veículos sem a conseqüente reestruturação viária

do país, conduzindo a enormes congestionamentos nas grandes

cidades. Vale lembrar, como nos aponta Oliveira (2003), que a fluidez

do trânsito é elemento fundamental para a concretização dos princípios

do capital (estreitar a distância entre produção-consumo), em que o

imperativo primeiro é a relação tempo-custo-velocidade. Por outro lado,

o automóvel culturalmente representa status, poder, “autonomia” e

conforto. Torna-se, então, um bem desejado para ser usufruído

individualmente por cada um dos milhões de habitantes de uma cidade.

Nesse conflituoso cenário em que se debatem interesses contraditórios

da necessidade de escoamento e da necessidade de conforto, os

congestionamentos são conseqüências que requerem soluções; eis o

motoboy como “um antídoto contra a inoperância do trânsito nas

cidades” (OLIVEIRA, 2003, pg. 16).

d) Aumento da possibilidade de aquisição de motocicletas. Com a

“estabilização econômica”, no início da década de 1990, há redução

das dificuldades para aquisição de bens duráveis. O custo da

motocicleta, bastante reduzido em comparação com o alto custo de um

automóvel, se torna opção preferida de milhões de pessoas ansiosas

por terem autonomia, agilidade e conforto. E a redução da dificuldade

de crédito permite a compra do veículo em longo prazo e por meio de

parcelas reduzidas (que cabem nos apertados orçamentos de uma

classe média em ascensão). Dessa maneira, a opção pela profissão se

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torna possibilidade concreta de sobrevivência, pois passa a ser

possível adquirir uma moto e custeá-la com a própria remuneração da

profissão. Em contrapartida, a oferta de mão de obra disponível com

sua própria motocicleta permitiu aos empresários a criação de

empresas e a contratação de serviços a preços relativamente

acessíveis. Seja como for, a profissão contribui, de certa maneira, para

a explosão da frota de motocicleta, embora não possa ser

responsabilizada completamente por ela – e muito provavelmente

também não pelo aumento assustador das mortes por acidentes

envolvendo motocicletas.

e) Entre outros fatores, é possível apontar ainda a violência das grandes

cidades que inibe em parte a mobilidade das pessoas, principalmente

nos períodos noturnos, sendo com isso facilitado o consumo por meio

dos serviços de moto-entrega. Esse fenômeno, embora mais

enigmático, é um componente a mais no conjunto de determinações da

explosão desse trabalho.

f) De outro lado, o próprio ritmo produtivo da contemporaneidade (e suas

conseqüências deletérias, tais como congestionamentos no trânsito,

excesso de trabalho com aumento da carga de trabalho, e aumento do

cansaço biológico, corporal e mental) torna as pessoas mais

indisponíveis a sair das suas casas e/ou trabalho para atravessar

distâncias atrás de algum produto ou serviço. Os motoboys resolvem

parte de nossos problemas a preços menos caros, de maneira ágil e

prestativa. A comodidade dos anos 80 foi dando lugar à real

necessidade de liberação de cada um de nós para outras atividades

consideradas “mais importantes” e cada vez mais raras, sejam elas

estar com a família, trabalhar ainda mais ou até mesmo descansar.

g) Talvez poderíamos arriscar que um outro ingrediente de menor

importância no crescimento dessa categoria profissional, mas que

merece ser apontado, seja o fato de que existe uma certa “cultura da

moto” que seduz alguns jovens e adultos para a profissão. Muitos

profissionais motociclistas irão dizer que amam andar de moto. Como

muito dessas pessoas não possuem qualquer outra qualificação

profissional que lhes permita maior remuneração, trabalhar com moto

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acaba sendo mais que uma opção possível; passa ser uma opção

desejável, pois a pessoa poderá receber dinheiro fazendo aquilo que

gosta: viver em cima de uma moto. Claro que essa “fantasia” não é

aplicável a todos. Mas o prazer envolvido no ato da condução de uma

moto é freqüentemente apontado como um dos sustentáculos

subjetivos da profissão.

Essas razões acima não esgotam a existência de outras que possivelmente

influíram para o crescimento da profissão. Independente disso, o fato é que se há

uma crise do emprego no país, é certo que pelo menos em uma profissão ela não

atinge: o setor de moto-entregas. Basta procurar qualquer classificado do Brasil e

logo se perceberá a demanda de profissional para o setor. O que significa dizer que

essa é uma opção real de trabalho para quem não tem qualificação profissional e

possui um mínimo de recursos financeiros para adquirir uma moto. Isso sem contar

que nem todas as empresas requerem profissionais com motocicletas!

A atividade de moto-entrega é, então, uma profissão que não passa mais

despercebida pelo imaginário social. É uma atividade que está no centro da cidade,

executando serviços diversos. Sintoma de uma era em que a complexidade urbana

agregou ainda mais alguns ingredientes e cujos efeitos são muitas vezes

perniciosos, mas que podem nos alertar sobre nosso próprio modo de vida. Não

empreenderemos essa tarefa. Neste momento, tentaremos apenas conhecer um

pouco melhor quem é esse trabalhador que ingressa nessa “nova” profissão.

A profissão de motociclista profissional, mais comumente conhecido como

motoboy, bem como a imagem que se constrói do motociclista que atua dia após dia

nessa atividade de trabalho, vem deixando suas marcas de uma maneira

profundamente incisivas nas subjetividades contemporâneas. Um pouco como ícone

de uma guerra cotidiana que se avoluma mais e mais nas ruas e avenidas das

grandes cidades, e também um retrato de um descontrole social em torno do tipo de

desenvolvimento coletivo que vimos produzindo na contemporaneidade, sem

mencionar que os motoboys são também provas vivas das ambigüidades sociais

que se manifestam aqui e acolá. Isso porque os comportamentos que esses

profissionais aprendem, desenvolvem e partilham no cotidiano de sua atividade de

trabalho – tais como a radicalidade na condução, atrelado a uma coragem quase-

suicida, além de um pouco de agressividade na sua aguerrida luta por espaço –

tendem a se apreendido, por parte da sociedade, de uma maneira parcialmente

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negativa. Por outro lado, em reconhecimento aos enfrentamentos suportados por

esses profissionais, aliado à sua capacidade de resolubilidade em situações em que

a necessidade de agilidade ou de conforto suplanta a capacidade de deslocamento

de alguém, parte dessa mesma sociedade acaba por reconhecer a importância

dessa atividade, avaliando-a de uma maneira um pouco mais positiva. Nessa

duplicidade, esconde-se uma atividade profissional da qual muitas pessoas já

requisitaram o serviço, mas que ainda é muito pouco conhecida a partir da

perspectiva dos trabalhadores. Esse aspecto ambíguo das concepções socialmente

construídas em torno da idéia de motoboy já fora identificada por quase todos que

publicam sobre motoboys (OLIVEIRA, 2003; DINIZ, 2003; SILVA, 2006,

VERONESE, 2005).

Passemos para uma rápida análise sobre as pesquisas já publicadas pelos

pesquisadores brasileiros, tentando situar o nosso trabalho dentre os textos já

produzidos.

O que os estudos realizados nos apresentam até então?

Em que pese a importância das pesquisas realizadas, é de nossa opinião que

a escassa produção existente sobre os motoboys ainda não conseguiu desenvolver

um corpo teórico substancial que forneça uma compreensão mais consistente sobre

o fenômeno. Para nós, parte dessa fragilidade teórico-conceitual sobre o assunto

sustenta-se exatamente sobre o fato de que os estudos desenvolvidos em nosso

país são ainda em pouca quantidade. Mas, a partir de uma acurada análise

bibliográfica sobre os materiais disponíveis, não podemos deixar de sugerir que

parte dessa fragilidade se sustenta, também, sobre o fato de que o fenômeno vem

sendo analisado em campos disciplinares e a partir de pontos de vistas teóricos

muito distintos.

Se a multiplicidade de olhares sobre o fenômeno permite uma maior

compreensão do processo como um todo – até porque não é possível apreender a

experiência do motoboy a partir de um ângulo apenas, pois a experiência dos

motoboys envolve inúmeras questões da contemporaneidade, tal como o trânsito, o

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trabalho desqualificado, o desemprego, as diferenças de classe, etc. – há um risco

dessa multiplicidade reduzir o aprofundamento dos estudos em alguns dos pontos

que consideramos nodais para a compreensão do problema em análise. Um desses

pontos que acreditamos de fundamental importância para compreender a dimensão

da atividade de motoboys é exatamente compreendê-la como uma atividade de

trabalho.

Aparentemente, é muito natural supor que a dimensão do trabalho seria o

principal elo conceitual entre os textos produzidos, uma espécie de uma baliza que

permitiria tecer um diálogo entre eles. Porém, a análise bibliográfica nos mostrou

que no lugar do trabalho, é a questão do acidente que se revela como o principal

articulador entre os textos produzidos, salvo algumas exceções. Isso pode parecer

estranho para alguns estudiosos do campo do trabalho, mas do ponto de vista do

senso comum, a questão do trabalho dos motoboys encerra-se na pressão que as

demandas exercem sobre ele; tudo o mais é efeito do modo como individualmente

os profissionais conduzem suas motos. Não é à toa que uma gíria que se referia à

palavra motoboy foi, durante algum tempo, “cachorro louco”. Além disso, a questão

que mais chama a atenção das autoridades de controle, regulação e

regulamentação do trânsito, dos parlamentares, das autoridades da saúde e dos

cientistas interessados na temática nem é tanto o comportamento dos motoboys ou

o cotidiano da sua profissão, mas o elevado número de acidentes relacionados a

ela. Por essas razões, desdobra-se como um dos pontos centrais das pesquisas por

hora produzidas uma aproximação imediata com o campo da saúde, em particular

com a Epidemiologia e a Saúde Coletiva. Dessa forma, como efeito desses estudos,

temos um risco importante de que não se consiga compreender adequadamente o

fenômeno, até porque a abordagem das dimensões do acidente tende a produzir

uma apreensão negativa do fenômeno.

Ao nos referimos à questão do trabalho, lançamos mão da orientação da

Ergologia, da Ergonomia da Atividade, da Clínica da Atividade e da Psicodinâmica

do Trabalho, uma linhagem que, de maneira semelhante, mas não idêntica, vem

articulando pesquisa e intervenção sobre o tema, partindo do pressuposto que a

atividade de trabalho será sempre parcialmente conhecida, ainda mais se não levar

em conta o desenvolvimento do ponto de vista de quem realmente vive a

experiência. Como vimos, essa análise só é possível se inserir, no processo

dialógico-analítico, o saber de quem vive a experiência (GUÉRIN ET AL., 2001;

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SCHWARTZ E DURRIVE, 2007). Além disso, a realização da atividade de trabalho

requer um conjunto de fatores sociais, subjetivos, éticos, políticos, que tornam a

realização dessa atividade um dos fenômenos mais importantes para o

desenvolvimento cognitivo e afetivo humano. Para essa linhagem, a atividade de

trabalho mobiliza as pessoas para lidar com os imprevistos e variabilidades que

tornam as prescrições de qualquer tarefa sempre insuficientes para a sua realização

efetiva, por menor que sejam os imprevistos, como Teiger, Laville e Duraffourg nos

demonstraram em uma indústria taylorista (1992). Nesse processo, a pessoa é

obrigada a lançar mão de um patrimônio adquirido ao longo de sua história de vida,

inclusive sua vida profissional, buscando extrair dali soluções viáveis para os

impasses enfrentados. Nesse processo, lança mão de si, de seus recursos, de seu

corpo, de seus valores e do coletivo pertinente na direção de uma saída eficiente e

eficaz. Esse complexo processo de aprendizagem do prescrito, apreensão de si e da

situação concreta, detectando os equívocos da prescrição, as variabilidades e o

acaso, muitas vezes levando à invenção de alternativas, conduz o trabalhador em

um engajamento subjetivo de tal ordem em que se vê saindo de si, de seus limites,

de suas fronteiras para efetuar a um salto desenvolvimental de sua subjetividade

(CLOT, 2006), que se devidamente reconhecido (DEJOURS, 2004b) produzirá

sentido e ganhos para a economia psicossomática. As funções psicológicas da

atividade do trabalho ultrapassam a idéia de socialização por meio do

reconhecimento, como a Psicologia Social latino americana sinalizava no início da

década de 80 (LANE; CODO, 1985). Elas exercem também um papel na produção

de saberes e sentidos de um coletivo sempre em reinvenção, renormatizando em

torno de seus valores o mundo íntimo de sua ação no meio. Isso sem se considerar

a complexidade política que está no entorno do processo de transformação do meio

da atividade prescrita como o meio do trabalhador, processo que Schwartz e Durrive

denominam de renormatização (2007), e que envolve um embate entre tantos

interesses diversos – econômicos, pessoais, sociais – e que deve ser parcialmente

“resolvido”, ou “estabilizado”, para que seja possível a ação e a atividade. A

atividade de trabalho produz, pois, dimensões de subjetividade intrapessoal e

extrapessoal, tais como diria Guattari (GUATTARI; ROLNIK, 1999).

Portanto, limitar-se a denunciar as dimensões nocivas da situação de trabalho

sem considerar que a atividade profissional exerce um papel tão importante na vida

das pessoas é insuficiente, pois deixa de perceber a riqueza que é a experiência

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cotidiana de milhares de motoboys que se lançam cotidianamente em um trabalho

tão “aparentemente” banal. Veremos, então, como essa dimensão do trabalho vem

sendo tratada nas pesquisas brasileiras e quais seus efeitos na produção de uma

compreensão teórica sobre a situação dos motoboys. Veremos também que

contribuições esses estudos nos fornecem para auxiliar a compreender essa

atividade em toda sua riqueza e potencialidade, tanto do ponto de vista do

desenvolvimento do trabalhador, quanto das contraintes envolvidas e enfrentadas.

Antes, apenas uma nota: as análises a seguir não visam distribuir as

pesquisas entre as mais apropriadas e as menos apropriadas. Para nós isso não é

tarefa possível. Cada pesquisa teve como objetivo resolver algumas questões que

são diferentes umas das outras. O que queremos chamar atenção nessa análise é

que, do ponto de vista da atividade, algumas pesquisas tenderam a se aproximar de

nossos objetivos, enquanto outras nos trouxeram informações menos importantes.

Gostaríamos de observar também que inúmeros avanços foram obtidos pelas

pesquisas realizadas até o momento e que é mérito delas desbravar um mundo

completamente novo na academia brasileira.

O lugar do acidente no trabalho dos motoboys: perspectivas da saúde

Praticamente todos os estudos realizados citam a falta de dados

epidemiológicos sobre inúmeros aspectos do trabalho dos motoboys: desde a

quantidade de trabalhadores nas ruas, até a quantidade de acidentes de

motociclistas que se acidentam durante atividades de trabalho. Fica evidente nos

estudos que o fenômeno ‘acidente de moto versus acidente de motoboys’ é

extremamente nebuloso. Da mesma forma, a carência básica de informações

conduz ao desconhecimento de outros aspectos também muito importantes para se

compreender a dinâmica de trabalho nesse setor e que envolve aspectos do perfil do

trabalhador (idade, escolaridade), dos conhecimentos adquiridos (tempo de

habilitação e de condução de moto), e das dinâmicas do trabalho (quantidade de

horas diárias de condução, horário de trabalho, forma de remuneração, valor da

remuneração), etc. Dessa carência de dados concretos, mitos, fantasias e

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conjecturas tendem a tomar o lugar dos conceitos teoricamente estruturados,

levando o debate sobre a profissão dos motoboys a perder parte consistência e a se

prender em aspectos que envolvem emotividade ou contendas sociais e políticas.

Visando contribuir para o debate por meio de informações mais precisas

sobre a realidade do fenômeno da emergência dos motoboys, sobretudo nas

relações entre a profissão de moto-frete e os acidentes de trânsito, Silva (2006) vai

realizar uma investigação sobre a profissão e seus profissionais tendo como escopo

teórico-conceitual e metodológico a Epidemiologia. Silva se lança em um

empreendimento trabalhoso para tentar fundamentar alguns parâmetros confiáveis

sobre morbidade na profissão de motoboys, obtendo alguns dos dados mais

confiáveis sobre a temática até o momento produzido. Nenhum dos outros estudos

realizados até então se preocuparam em produzir informações quantitativas e

estatisticamente representativas sobre essa atividade profissional. Daí o pioneirismo

de Silva, que inaugura parâmetros de comparação confiáveis para estudos futuros.

Silva toma como variável dependente no estudo realizado a ocorrência ou não

de acidentes de trânsito nos últimos 12 meses da data da entrevista entre os

motoboys. A partir dela, procura correlações com outras variáveis que se relacionam

aos seguintes temas: acidentes de trânsito (n° de acidentes, gravidade dos

acidentes, etc.), comportamento no trânsito (tipo de capacete utilizado, consumo de

bebidas alcoólicas, uso de telefone celular durante condução, cansaço durante

condução, etc.), atuação profissional (tipo de empresa em que trabalha, n° de

empregos como motoboy, jornada de trabalho, alternância de turnos, forma de

remuneração, renda, etc.), categorização dos próprios motoboys (idade, sexo, tempo

de experiência como condutor de motos, escolaridade, etc.) e de suas motos

(modelo, ano de fabricação e estado de conservação).

Por meio de diversas análises estatísticas, Silva chega a resultados que

confirmam alguns pressupostos acerca dos riscos de acidentes envolvidos na

profissão de motoboy, tal como a prevalência 10 vezes maior de motoboys que se

acidentaram nos últimos 12 meses quando comparados à população de

motociclistas em geral. Ao mesmo tempo, nos surpreende quando demonstra que

algumas idéias muito divulgadas em revistas e jornais parecem não ter tanta

significância estatística quanto se pressupõe:

A alternância de turnos de trabalho, a sensação de cansaço durante o exercício profissional, o trabalho excessivo, o uso de celular ou rádio comunicador quando em trânsito, a atuação profissional em mais de um tipo de empresa e o tipo de ganho

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não tiveram associação estatística com o relato de ocorrência de acidentes de trânsito (pg. 54-5).

Ressaltamos aqui, em particular, como seu trabalho coloca em crise a

construção que se faz no senso comum (e não tão comum assim, como vimos no

artigo de Hamer) da relação explicativa entre a quantidade de acidentes envolvendo

motoboys e a pressão sofrida na atividade de trabalho. Principalmente se se enfoca

como um dos motores fundamentais dessa pressão o aumento de tarefas visando

maior remuneração por parte dos trabalhadores, uma vez que parte considerável

dos trabalhadores tem seus ganhos atrelados à comissão por entrega. O trabalho de

Silva aponta para a necessidade de se rever, pelo menos parcialmente, o peso

dessa relação a que imediatamente se chega; ou, pelo menos, nos chama a atenção

para a necessidade de se compreender melhor esse processo. Por outro lado, sua

pesquisa demonstra outros fatores de risco de acidentes de trabalho entre

motoboys, tais como: a idade, na medida em que as pessoas mais novas tendem a

ter mais acidentes; a adoção de altas velocidades em avenidas e ruas; e a

alternância de turnos.

A partir da leitura do trabalho de Souza, não seria incorreto deduzir que as

dimensões do trabalho não são os fatores principais de risco de acidentes de

motoboys. Isso porque os acidentes pareceriam muito mais atrelados a

comportamentos e condições individuais. Se nos limitássemos a essa investigação,

talvez viríamos a ter a impressão de que a atividade dos motoboys é um fator de

risco de acidentes não porque se trata de uma atividade complexa que envolve

inúmeros aspectos também muito complexos – entre os quais o fato de que é uma

atividade que se desenvolve em um trânsito que é, por si só, letal. Seria mais

provável apreendermos que os acidentes dos motoboys estivessem mais

relacionados com o fato de que, por ser uma profissão socialmente desvalorizada,

somente as pessoas mais jovens tenderiam a nela se lançar, independe de qualquer

preparo prévio. Visando obter o máximo de remuneração possível, esses jovens,

imbuídos de seu espírito empreendedor, passariam a trabalhar horas a fio em cima

das motos, alternando freqüentemente os turnos sem se importar com o manuseio

adequado da velocidade de suas motos nas ruas e avenidas. Mas antes de

antecipar qualquer conclusão definitiva, é bom lembrar que Silva sugere a hipótese

de que o tamanho amostral talvez não tenha permitido definir com mais clareza

tendências estatísticas nessa amostra.

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De qualquer maneira, sem aparentemente perceber, os dados de Silva

tendem a aproximar o risco de acidentes a motivações individuais ou ligados a

fenômenos sociais muito gerais (desemprego, desqualificação). As questões em

torno do trabalho perdem parte de sua importância como fenômenos explicativos e

passam a ser um cenário (um determinado contexto social desregulamentado e

desvalorizado) onde uma determinada “tendência social” (jovem desempregado,

indisciplinado e sem controle) atualiza-se de maneira indesejável.

Além disso, à importância que sua pesquisa exerce no estabelecimento de

parâmetros quantitativos objetivos e estatisticamente representativos, contrapõe-se

na pesquisa de Silva uma relativa falta de teorização acerca dos dados apreendidos.

Todos os dados encontrados são interpretados à luz de pesquisas de cunho

quantitativo ou qualitativo empreendidos por outros autores, em particular Diniz

(2003) e Veronese (2004). Esse fato não chega a ser um problema, uma vez que a

intenção da autora fora justamente estabelecer algum parâmetro de análise mais

objetivo acerca do trabalho dos motoboys, visando contribuir para a criação de

dados referenciais de cunho epidemiológico. Nesse sentido, poderia se considerar

como necessidade menos urgente o desenvolvimento de uma teorização mais

profunda acerca dos dados.

Entretanto, para nós, o principal efeito colateral desse tipo de pesquisa é que,

sem o pretender, ela tende a desvalorizar aspectos sociológicos e antropológicos em

torno das situações analisadas. Parker (2000), estudando a epidemia da Aids,

demonstra como as mudanças na compreensão do crescimento da epidemia

permitiram a construção de programas sociais mais efetivos para seu controle. Ele

observou que a passagem de uma tentativa de controle da epidemia baseada na

aplicação de políticas sociais calcadas exclusivamente em modelos

comportamentais, para a construção de Programas que se sustentavam em modelos

em que as questões sociais eram mais valorizadas que as questões individuais,

implicando em alternativas mais efetivas das políticas de saúde. Essas políticas não

enfocavam apenas o comportamento preventivo individual, mas também atacavam

os sustentáculos sociais, econômicos e culturais desses comportamentos. Resulta

disso que as políticas de base mais sociológicas pressupõem transformações

também mais profundas nos modos de ser e de viver das pessoas, e não apenas

nos seus comportamentos de risco. Czeresnia (2004) demonstra também como uma

determinada abordagem teórica da epidemiologia permite uma maior compreensão

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sobre a realidade em estudo, no lugar de se restringir suas análises aos chamados

fatores de riscos, conforme as linhagens mais tradicionais da epidemiologia atual. No

limite, essas linhagens tradicionais tendem a abordar as condições sociais de

maneira descontextualizada e estigmatizante. Isso porque, para se obter

informações quantitativas capazes de serem processadas estatisticamente, o

pesquisador se vê obrigado a escolher alguns aspectos da realidade,

transformando-os em critérios mensuráveis que indiquem efeitos reais na vida das

pessoas. Com isso, reduzem um determinado fenômeno que é por natureza

multifacetado e bastante complexo, em fatores de risco parciais e bastante

duvidosos, em que pese sua objetividade. Ainda no campo da Aids, Ayres (2003)

também chama atenção para o fato de que os estudos epidemiológicos tendem a

conceber os fatores de risco como fenômenos descontextualizados das vidas das

pessoas em toda a sua riqueza e complexidade. O conceito de profissional do sexo,

usuários de drogas injetáveis e gays e outros homens que fazem sexo com homens,

são transformados em fatores de riscos que acabam, de uma certa forma, se

tornando independentes da vida social, do grupo cultural e do contexto em que as

pessoas se comportam, expressam e se relacionam. Castiel (1999) sugere que tais

estudos científicos denunciam um conjunto de poderes de controle que estão

atualmente em exercício sobre as pessoas e sobre a vida. O conceito de risco se

torna, com isso, um instrumento de poder, principalmente por ser dotado de uma

aura de ciência e neutralidade. Ayres chama atenção ainda para o fato de que

mesmo o conceito de vulnerabilidade48 vem sendo trabalhado como sinônimo de

grupo de risco. Com isso, os ganhos que esse conceito possibilita em torno da

48 O conceito de vulnerabilidade foi proposto por Jonathan Mann para substituir os conceitos de comportamento e de grupo de risco, que eram predominantes durante toda a década de 80 e início de 90 para explicar a epidemia da Aids. Esse conceito sugere que são os contextos sociais, políticos, institucionais, programáticos que conduzem as pessoas a se comportar de maneira a se exporem a situações de riscos. Não é o comportamento que explica uma epidemia. Este sim é que deve ser explicado por um contexto que lhe dá sentido e valor. Assim, não é porque a prostituta faz sexo desprotegido que ela tem mais riscos de contrair Aids. O que importa é observar que seu comportamento tem determinado sentido produzido em um determinado contexto social que torna esse determinado comportamento – sexo desprotegido – possível e pertinente àquela situação. Parker (2000) e Ayres (2003) chamam a atenção para a necessidade de se realizar estudos profundos e complexos para se determinar as vulnerabilidades de um ou outro grupo qualquer, apontando além disso alguns limites das pesquisas unicamente descritivas. Chamam a atenção, também, para o fato de que a vulnerabilidade das populações não é generalizável, até porque todos são vulneráveis em mais ou menos grau em função de aspectos diversos. Ou seja, um grupo de prostitutas de uma determinada região da cidade pode ser mais vulnerável que um outro grupo de prostitutas de uma outra parte da cidade. Isso porque entram em jogo diversos fatores complexos que impedem uma generalização da experiência entre as prostitutas, tais como origem familiar, poder aquisitivo dos clientes, beleza física, grau de organização política, acesso a serviços de saúde, escolaridade, entre outros.

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contextualização social da experiência vão cedendo espaço para princípios

generalistas que se tornam auto-explicativos e autovalorativos.

Ora, ao aplicar um método quantitativo para estudar os motoboys, Silva define

os critérios que, segundo ela, tendem a aumentar os riscos de acidentes entre os

profissionais. Analisa a realidade da profissão por meio de indícios teóricos ou

hipotéticos, donde deduz os principais fatores de risco na profissão: a velocidade

nas vias, o estado civil dos motociclistas, o excesso de trabalho, os horários dos

acidentes, a troca de turno, o uso de celular e rádio durante a condução, as

condições climáticas, o cansaço na condução, o consumo de bebidas alcoólicas, o

ano de fabricação da moto, a idade do motoboy. Esses fatores são apresentados

como fenômenos auto-explicativos e que supostamente indicariam fatores seguros

de compreensão e intervenção das condições de trabalho dos motoboys.

Acreditamos que triangulações permitiriam a esse tipo de abordagem quantitativa

estar mais bem ancorada em investigações qualitativas levando a explicar

concretamente cada um dos fatores de risco. Ou seja, Silva poderia definir de

maneira mais precisa o que significa “velocidade alta” nas vias? Baseado em que

parâmetros é “alta”? E o cansaço, como se o define? Quais os critérios de

avaliação? Quais seus impactos reais no trabalho, etc.? A explicitação dos

fenômenos sociais em torno dos fatores de risco permite a construção de critérios de

análises mais próximos daquilo que realmente se experimenta na realidade49.

Por isso que, de uma maneira geral, o estudo de Silva se mostra como um

interessante ponto de partida acerca dos dados sobre a ocupação dos motoboys,

mas com alguns limites para fornecer um corpo conceitual para a compreensão de

sentido sobre a realidade analisada, sobretudo nos aspectos subjetivos, coletivos e

sociais desencadeados por meio dessa atividade profissional.

Por outro lado, se a pesquisa de Silva carece de dados explicativos sobre

seus resultados, isso se deve à sua escolha epistemológica, ao se decidir por

realizar um estudo eminentemente epidemiológico, onde as questões explicativas

eram menos importantes que os valores quantitativos encontrados. Nesse sentido, é

fácil entender porque não desenvolveu a questão da centralidade da atividade de

trabalho no conjunto explicativo sobre a profissão de motoboys. De qualquer

49 Não podemos negar, entretanto, que essa tradição é extremamente forte nas pesquisas epidemiológicas. Mesmo em nossa pesquisa, os fatores de risco foram definidos, em grande medida, antes de uma compreensão mais ampla sobre o fenômeno. Nesse sentido, se tomássemos nossas análises quantitativas de maneira independente, deveríamos direcionar a nós mesmos as considerações que fizemos sobre o trabalho de Silva.

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maneira, é de se esperar que outras pesquisas, da qualidade por ela empreendida,

sejam desenvolvidas no país. Os dados quantitativos que obtivemos em nosso

trabalho, e cujos alguns dos resultados serão apresentados no próximo capítulo, são

apenas pequenas contribuições a esse debate.

Na mesma lógica de pesquisa quantitativa que se realizam pela utilização de

métodos do tipo survey, encontra-se o trabalho de Lourenço e Martins (2006). Esses

autores realizaram o estudo com uma amostra de 136 motoboys da cidade de Juiz

de Fora visando identificar o nível de estresse desses trabalhadores. Para tanto,

utilizaram o Inventário de Sintomas de Stress de Lipp (ISSL-avançado), tentando

correlacionar seus resultados com quatro outras variáveis: renda financeira, turno de

trabalho, jornada de trabalho e associação de motoboys em cooperativas. Desse

estudo, os autores identificaram a existência de algum nível de estresse em cerca de

50,4% dos profissionais, sendo que a maior parte corresponde a um nível

intermediário de estresse. Outros 43% dos motoboys encontram-se na fase de

resistência, de acordo com a classificação sugerida por Lipp (2000), que

corresponde a um grau de estresse indicativo de esforços consideráveis, por parte

da pessoa, na busca por um reequilíbrio ao estado homeostático quebrado pelo

fenômeno estressor. Do restante (6,6% dos motoboys), quase todos apresentaram

níveis baixos de estresse. Apenas 3 motoboys apresentaram estresse nos estágios

de quase-exaustão e exaustão50. O trabalho dos autores mostra ainda que não

foram encontradas correlações entre esses níveis de estresse e as variáveis

dependentes acima citadas.

Lourenço e Martins indicam que o nível de estresse dos motoboys merece

alguma atenção, embora reconheçam que não encontraram os níveis altos que

acreditavam exister entre os trabalhadores do setor. Limitados à aplicação de

questionários fechados, não descrevem com exatidão os fenômenos causadores do

estresse ou de proteção ao trabalho. Sugerem, por meio de hipóteses calcadas em

deduções teóricas e informações obtidas informalmente junto aos trabalhadores, que

aspectos cotidianos do trabalho tais como urgência para a realização de entregas,

trânsito complexo e perigoso, nível de renda e insegurança financeira, excesso de

50 Segundo a classificação de Lipp, a fase de resistência é o segundo estágio da síndrome de estresse, sendo o primeiro a fase de Alerta, seguido da Resistência, da Quase-Exaustão e da Exaustão. Esses últimos correspondem aos níveis mais altos de estresse, quando se inicia a manifestação de sintomas orgânicos e psíquicos característicos da síndrome: ansiedade, depressão, fadiga excessiva, doenças sintomáticas, desregulação fisiológica, enfim, um complexo quadro bio-psíquico que, em casos mais excessivos, pode levar à morte.

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competitividade e a valorização social e pessoal negativa da profissão estão na base

do fenômeno como possíveis fatores estressores. Do ponto de vista da proteção,

acreditam que aspectos cognitivos tais como a idéia de que o trabalho de motoboy

oferece boa remuneração em comparação com outras profissões desqualificadas, ou

ainda a sensação de liberdade provocada pela moto, tudo isso pode auxiliar aos

trabalhadores a avaliar como menos negativos os fatores estressores externos –

condições precárias de trabalho, excesso de horas trabalhadas, exposição a risco de

assalto, etc.

Semelhante às considerações que fazíamos a Silva, ao optarem por uma

pesquisa de viés quantitativo sem tomar as devidas precauções, Lourenço e Martins

acabaram por generalizar a atividade de trabalho dos motoboys a alguns aspectos

objetificados que, de fato, não representam completamente a realidade cotidiana do

trabalho. Para investigarem os fatores estressantes no campo organizacional, os

autores, embasados em uma longa corrente de estudos do estresse no mundo do

trabalho, definem entre os fatores estressantes:

as demandas das tarefas, referentes às características do trabalho; as demandas dos papéis existentes em função do papel que o indivíduo desempenha na organização; as demandas interpessoais, fruto das pressões exercidas pelos outros funcionários; a própria estrutura organizacional, que envolve número de regras e regulamentações existentes, níveis de participação nas decisões, etc., e o estilo de liderança organizacional presente (LOURENÇO; MARTINS, 2006, p.6)

Parece-nos que todos esses fatores se tornam variáveis objetivas e quase

independentes da vida das pessoas, como se toda situação de trabalho envolvesse

esses aspectos em maior ou menor grau. As variações seriam de ordem quantitativa

e nunca de qualitativa. Além disso, os autores, calcados em uma psicologia

cognitivista, tendem a supervalorizar a maneira como os trabalhadores apreendem e

enfrentam a realidade. Assim, a despeito dos altos riscos de estresse supostamente

existentes na profissão de motoboys – suposição essa produzida a partir da

aplicação, tal como numa fórmula matemática, desses fatores estressores

ocupacionais acima, à realidade que os autores observaram nas ruas –, o que

determinará se uma pessoa ficará ou não estressada é, em última instância, a

maneira como essa pessoa avalia, internaliza e enfrenta a situação. Se a pessoa

avalia a realidade de maneira mais negativa, tenderá a sofrer mais com os fatores

estressores. Se a avaliação ou enfrentamento é mais positivo, os efeitos serão

menores. Sem discordar totalmente desse tipo de análise, são enormes os riscos de

se excluir a coletividade e tudo o que ela implica na definição, na experimentação e

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no enfrentamento dessas condições tidas como “estressoras”. Clot (2006), Dejours

(2002) são apenas alguns que mostram, de maneira diferente, o papel do coletivo de

trabalho na produção de dinâmicas de subjetivação do trabalhador.

De qualquer modo, não dá para negar que essa tendência de produzir

conhecimentos baseados em abordagens estritamente quantitativas mantenha-se

hegemônica nas ciências humanas e sociais. Devemos registrar, ainda, que não

somos contrários às pesquisas quantitativas. Os resultados encontrados por elas

são de extrema importância para fornecer instrumentos para o planejamento e a

avaliação objetiva de políticas sociais. As pesquisas quantitativas, quando

construídas de maneira a não minimizar dimensões sociais, fornecem parâmetros

poderosos para dinamizar as decisões políticas e sociais que são tomadas,

geralmente, em prazos exíguos e em meio a poucas informações confiáveis sobre a

realidade. Nesse sentido, é fundamental que pesquisas como as de Silva e

Lourenço e Martins sejam realizadas continuamente no país e no mundo. Todavia,

acreditamos que essas pesquisas deveriam explorar um pouco mais intensamente

alguns aspectos da experiência do trabalho não foram investigados à altura da

importância que eles têm na vida e na saúde do trabalhador.

No caso particular do trabalho dos motoboys, a escolha por uma abordagem

quantitativa não tem sido a norma entre os pesquisadores do tema. Todas as demais

investigações realizadas utilizaram abordagens qualitativas, com exceção dos

estudos que abordavam dimensões não subjetivas dos motoboys, como os de

Wingan (2000) e Sano, Wisetjindawat, Minh e Sattayaprasert (2005), mais

preocupados nos efeitos econômicos e da organização do sistema de transporte

disponibilizado pelos motoboys. Mesmo Wingan abordou aspectos subjetivos do

trabalho dos motoboys, realizando, nesta etapa de sua pesquisa, um estudo

qualitativo, embora não tenha sido esse a questão principal de sua investigação.

O estudo de Veronese (2004), realizado alguns anos antes do que o de Silva,

é um exemplo. Para realizar sua pesquisa, Veronese baseou-se em uma abordagem

qualitativa chamada de Teoria Fundamentada, um modelo de análise temática que

visa analisar os discursos dos entrevistados simultaneamente ao próprio processo

de coleta de dados, do qual se espera obter uma compreensão dos valores, saberes

e sentidos de quem vive o cotidiano de um grupo ou instituição. Veronese

desenvolve seu estudo objetivando compreender o conceito de risco para os

motoboys, bem como a experiência e o modo de enfrentamento que esses

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profissionais desenvolvem perante os riscos percebidos. Para tanto, a autora coloca

em diálogo vários motoboys, dentre os quais alguns que sofreram acidentes de

trabalho, na busca de construir um conjunto explicativo sobre essa experiência

cotidiana do risco.

Os desafios enfrentados pelos trabalhadores no dia-a-dia, e que se

encontram resumidas em Veronese e Oliveira (2006), ilustram de maneira

importante as pressões a que estão sujeitos os trabalhadores desta atividade e que

são potenicias produtores de riscos de acidentes:

pressão dos clientes e patrões,

discriminação e preconceito por parte da sociedade que, de maneira

paradoxal, critica a agilidade e a rapidez que ela própria solicita do

trabalho dos motoboys,

cansaço e sobrecarga de trabalho,

falta de experiência na condução da moto,

aprendizagem de uma determinada forma de conduzir que, ao mesmo

tempo lhes permite uma maior destreza na pilotagem, tende a

aumentar os modos arriscados de conduzir,

chuva e variações do tempo,

problemas das vias, tais como pavimentos deficientes, cachorros na

rua, falta de manutenção das motos, entre outros.

Por meio da identificação desses fatores, a autora infere que os motoboys

vivem uma espécie de dialética “risco-necessidade”51, que é um processo avaliativo

no qual os trabalhadores irão ponderar os custos e os benefícios da atividade

levando-se em conta as condições de controle sobre os riscos, os efeitos do trabalho

e do não-trabalho, os benefícios da profissão, entre outro. Os motoboys tomam

51 De uma certa forma, a autora relaciona essa experiência de risco do trabalho dos motoboys à idéia de que vivemos uma sociedade de risco, utilizando as discussões que se inauguraram com o sociólogo Ulrich Beck, mas que outros foram desenvolvendo, entre eles Lupton e Giddens. Segundo essa idéia, os saberes-poderes da contemporaneidade utilizam como uma das estratégias de produção e controle da sociedade o conceito de risco, que se desenvolve da seguinte forma: desenhar os riscos existentes no presente, por meio de uma projeção, num futuro determinado, de cálculos “descobertos” ou “inventados” por meio de análises, tidas como científicas, de determinadas condições de um determinado passado ou presente. Esse processo indutivo-dedutivo é recheado por cálculos complexos sobre aspectos diversos da realidade que, de maneira objetiva e determinista, produzem as informações adequadas para decisões seguras sobre o presente. Trata-se, como dito, de um exercício de pessoas competentes, cientificamente embasado e com capacidade preditiva bem sustentada. Por outro lado, os teóricos da sociedade de risco percebem que o risco não está uniformemente distribuído. Alguns estão mais sujeitos à viverem situações cotidianas de risco, independente dos instrumentos disponíveis para lidar com ela. Os motoboys estão entre eles. Resta-lhes desenvolver, por meios que lhes são próprios, os instrumentos para enfrentar essa condição. De qualquer modo, os cálculos epidemiológicos continuarão determinando “cientificamente” os graus de risco a que os motoboys estão sujeito – é o que fez, por exemplo, o trabalho de Silva.

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como critério avaliativo as percepções construídas socialmente ao longo do tempo,

tais como a apreensão de que os riscos são indissociáveis de sua profissão. Diante

desse aspecto, observam que para enfrentar os riscos inerentes à atividade, restam-

lhes apenas tentar controlá-los, seja por meio de equipamentos de segurança (tais

como capacetes ou luvas), seja por meio do desenvolvimento das habilidades de

condutor de motos, ou por estratégias de autocuidado e autocontrole. Veronese

argumenta que as estratégias para identificar, comparar e, principalmente, lidar com

os riscos são aprendidas através da experiência.

Assim, por meio desse tipo de análise, depreender-se-ia que os motoboys

assumiriam riscos porque aprendem a mensurá-los, compará-los com os possíveis

danos e efeitos desses riscos, bem como com os custos desses possíveis danos no

presente e no futuro. A partir daí, conseguiriam decidir por quais riscos optar: o de

acidentar-se ou o de ficar desempregado? (VERONESE, 2004). Os fatores de riscos

deixam de ser, como em Silva, apenas fatores formais. Seu peso na decisão sobre

quais comportamentos os motoboys desenvolverão em sua atividade variará a partir

dessa análise cotidiana. É possível, também, que essa análise variará em função do

controle que o motoboy acredita possuir sobre os diversos aspectos da situação de

trabalho. Quanto mais controle acredita possuir sobre o trânsito, sobre a moto, sobre

os outros motoristas, sobre sua emoção, mais provável que acredita, também, a

controlar os riscos do trabalho.

Parece-nos que em determinado momento, os motoboys efetivamente

realizam raciocínios como esse. No capítulo 6 procuraremos demonstrar como o

papel da virilidade sela, de maneira importante, essa idéia do controle sobre si e

sobre o mundo como uma das facetas de um sistema coletivo de defesa. Porém,

acreditamos que por essas análises, a autora, sem o perceber, aproxima-se de um

cognitivismo que não fora explorado por ela em nenhum momento. Com isso, abre

possibilidades de análises que, a nosso ver, mereceriam um pouco mais de

investigação, principalmente pelo fato de que os processos avaliativos que os

motoboys possam vir a realizar não são completamente conscientes e envolvem,

sobretudo, a mobilização de um corpo que, nesta atividade, está totalmente

acoplado à moto. Além disso, como a análise da autora se prende quase que

exclusivamente à descrição das falas dos motoboys, seus métodos de investigação

não a permitem adentrar em terrenos ainda bastante obscuros sobre a atividade, em

particular o universo cognitivo e emocional dos motoboys diante da condução e a

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experiência coletiva na construção de sentidos e suportes sociais para o

enfrentamento dessas situações de risco.

A despeito disso, por meio das análises sobre a hierarquização que os

motoboys fazem dos riscos no cotidiano de trabalho, além da compreensão da

complexidade de fatores envolvidos nos risco de acidentes, Veronese tem o mérito

de apontar que as estratégias de Promoção da Saúde, usualmente mobilizadas por

meio da promoção do autocuidado, possuem limites reais. Isso porque as práticas

de Promoção da Saúde com base no autocuidado, geralmente excluem do

panorama de intervenção, um conjunto de variáveis que influem no acidente de

motoboys, mas que não estão sob seu controle direto.

Veronese e Oliveira alertam que “a promoção da saúde dos moto-boys (sic)

requer ações específicas, multidisciplinares e multissetoriais que reconheçam a

importância do meio na ocorrência de acidentes de trânsito” (2006, p.2720), pois a

complexidade dos riscos envolve inúmeros fatores. Porém, a maneira como a autora

sustenta esse argumento – “o fenômeno do acidente de trânsito envolvendo moto-

boys não está relacionado apenas ao comportamento do moto-boy. Ele tem a ver,

também, com o meio e com as regras do mercado, estabelecidas por patrões e

clientes” (p. 2720) – nos revela limites na compreensão de que a complexidade do

“mundo do trabalho” está para além das pressões das “regras de mercado”. Nesse

sentido, a despeito de seu importante estudo, a descrição dos fatores de risco em

sua complexidade não consegue dar visibilidade às dimensões próprias que a

atividade do trabalho produz nas pessoas (CLOT, 2006; SCHWARTAZ, DURRIVE,

2007; DEJOURS, 2002; 2004b).

E é aqui que, para nós, a pesquisa de Veronese apresenta sua maior

vulnerabilidade: embora nos ofereça um panorama explicativo sobre os riscos

enfrentados no cotidiano de trabalho dos motoboys – aquilo que Silva apenas

conseguiu mensurar –, essa autora não consegue avançar em direção aos fatores

positivos, constitutivos que esse trabalho permite, apesar de tudo, aos

trabalhadores. De modo geral, sua pesquisa aborda mais intensamente os aspectos

negativos que os motoboys tendem a desenvolver. Apenas em umas poucas

páginas de sua dissertação a autora nos revela estratégias desenvolvidas pelos

trabalhadores para lidar com os riscos e, em outras poucas páginas, aponta fatores

positivos produzidos cotidianamente pelo enfrentamento dos riscos – tais como o

sentimento de auto-afirmação, a solidariedade entre os pares e a satisfação dos

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motoboys diante de suas capacidades de resolubilidade dos serviços demandados,

principalmente quando isso envolve reconhecimento pessoal e financeiro. De um

modo geral, sua análise revela modos individuais de enfrentamento dos riscos que

são partilhados e reconhecidos pelo coletivo profissional, mas nada nos diz dos

processos atuantes entre as estratégias individual e coletiva para proteção aos

riscos. De seu trabalho deduz-se que esse aprendizado é fruto do próprio

desenvolvimento individual do trabalhador, pois a autora dá pouco valor às possíveis

dinâmicas sociais no processo de produção dos Saberes de Prudência (CRU;

DEJOURS, 1987), que são inevitavelmente coletivos. Veronese chega a perceber,

desde o princípio, que entre o trabalhador e sua atividade há um conjunto de

sentidos, linguagens, valores que influem no modo como encara sua atividade. A

investigação da idéia de risco tem como objetivo levantar esse conjunto de sentidos

e valores coletivos. Porém, mesmo acreditando que esse conceito seja socialmente

construído, suas discussões tendem a valorizar a experiência individual dos

trabalhadores, não conseguindo identificar os processos por meio do qual os

trabalhadores partilham seus conhecimentos e vão construindo um referencial

coletivo de sentidos. Com isso, parte das descobertas da autora deixa de ser

trabalhada à altura de suas potencialidades.

Por essa mesma perspectiva, talvez a questão central que nos permite

compreender os avanços e as armadilhas dos trabalhos de Silva e Veronese seja o

fato de que elas não conseguiram deixar de se seduzir por aquilo que Oliveira (2003)

anunciara em sua pesquisa: “abrir mão de um estudo de acidentes de trânsito entre

os trabalhadores de moto-entrega não é fácil para um investigador da categoria,

visto que é o aspecto que mais chama a atenção nos motoboys” (p.25). O

sofrimento, a dor e a morbidade sem dúvida possuem apelo mais forte que os

fenômenos produtivos, de uma vida que pulsa, que cria e que se desenvolve numa

atividade profissional tão pouco valorizada. Cremos que parte dessa postura de Silva

e Veronese se deva à escolha dos sistemas teórico-filosóficos que estão por trás de

suas pesquisa. Mas, em outra parte, percebe-se aí que um olhar privilegiado em

direção ao sofrimento ainda retrata uma postura curativa, preventivista e

assistencialista que baliza a formação e prática dos profissionais de saúde em nosso

país. Parece que as tentativas das autoras de produzir outras posturas diante do

campo da Saúde ainda não conseguiram fazer frente à longa tradição bio-

medicamentosa deste terreno.

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De qualquer modo, pensar o trabalho dos motoboys a partir do ponto de vista

da saúde não é um fenômeno a ser criticado. As contribuições do campo da Saúde,

principalmente da Saúde Pública e Coletiva têm sido de enorme valor,

principalmente para suscitar o debate local sobre a importância do fenômeno

motoboy. A questão é como pensar o processo de saúde-doença no trabalho desses

profissionais, tomando como ponto de partida (e chegada) também a saúde do

trabalhador e não unicamente sua morbidade ou risco. Nesse sentido, a articulação

trabalho-saúde não tenha sido possível entre essas autoras porque o enfoque a ser

investigado valorizou sobremaneira a articulação trabalho-doença/ trabalho-acidente.

Como conseqüência dessa valorização teórica, é o indivíduo que se torna o principal

objeto de interesse nessa relação, uma vez que a doença tende a ser compreendida

por meio de sua urgência experimentada de maneira individual. Nesse cenário, os

determinantes do processo de adoecimento, mesmo que sociais, acabam sendo

avaliados unicamente como fatores de risco. Pouca atenção se dá ao processo

coletivo de produção de saúde. E, mesmo no campo da experiência individual,

ignora-se que a insaciável necessidade de apropriação e transformação do mundo a

partir de si e de seus valores é sempre permeada, sustentada, possibilitada pela

porosidade existente na atividade humana que não se reduz ao simples ato

produzido pelo indivíduo: o coletivo de trabalho tem aí um grande papel.

De todo modo, as pesquisas de Silva, Lourenço e Martins e Veronese

merecem um crédito importante. Outros trabalhos, porém, nos indicam caminhos

diferentes, mas que são tão promissores quanto o trabalho dessas autoras, para a

compreensão da atividade de trabalho e a experiência de vida dos motoboys.

O lugar do motoboy nos acidentes de trabalho: perspectivas da vítima

A confissão de Oliveira sobre a dificuldade de não se prender na investigação

dos riscos de acidentes dos motoboys, poderia indicar sua escolha por um outro

caminho mais produtivo acerca da experiência de trabalho dos motoboys. Mas logo

na continuação de sua frase, o autor nos revela que enveredara por um caminho

também bastante delicado: “Percebi que nas discussões sobre a pesquisa, as

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pessoas sempre tendam a falar dos riscos de acidentes de trânsito entre os

motoboys e não se atinava para a cruel realidade de vitimização a que estavam

expostos” (OLIVEIRA, 2003, p.25). Não se prender apenas na lógica dos acidentes

parece um conselho muito sábio, mas virar-se à realidade de vitimização merece

uma grande atenção: há que se ter o cuidado de não perceber a atividade dos

motoboys como uma atividade de uma pessoa subjugada a forças maiores que as

suas, sem ou com parcas condições de defesa e que estão submetidas às relações

(no trânsito, no trabalho, etc.) sempre como partes mais fracas da relação.

Oliveira em grande medida escapa adequadamente desse perigo. Até porque

lança mão de pressupostos teóricos que desmontam a idéia mecanicista de

culpabilizar o agressor e de penalizar-se diante da vítima. Porém, de modo geral, ao

enfocar muito atentamente as questões da vitimização, deixa de perceber, tanto

quanto Silva, Veronese e Lourenço e Martins, potências produtivas no fazer

cotidiano dos motoboys. Mesmo assim, sua pesquisa merece crédito por somar mais

informações sobre as dinâmicas subjetivas dos motoboys, principalmente acerca das

suas relações com o a cidade, com o trânsito e com outros personagens das ruas.

Aliás, é muito importante a visibilidade que esse autor dá aos discursos dos

motoboys sobre outros personagens no meio de trabalho, sobretudo policiais e

taxistas, bem como o discurso de policiais e de outros motoristas sobre os

motoboys. Oliveira mostra, por meio dessa riqueza de vozes que traz à tona, os

embates e as situações de violência que atravessam e moldam o trabalho dos

motoboys cotidianamente.

Porém, não é somente sobre o enfoque da vitimização que transcorre sua

pesquisa. Oliveira, como Silva e Veronese, nos descreve de maneira precisa quem é

o motoboy – suas origens, as razões para ingressar na profissão, idade,

escolaridade e outras informações e habilidades que se requer do profissional. Mas

vai além, quando nos informa que o trabalho dos motoboys é marcado por alguns

fenômenos reveladores: alta rotatividade, que ele atrela às dificuldades no trabalho,

a pequena perspectiva de crescimento profissional dentro da atividade, a baixa

remuneração, ou simplesmente porque se trata de um trabalho assumidamente

temporário ou para complementação de renda.

Mais que uma digressão, essas e outras considerações sobre o trabalho dos

motoboys nos revelam alguns dos sentidos e valores culturais que giram em torno

da profissão: o papel da virilidade e os sentimentos de liberdade, por exemplo, que

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se desenvolvem em meio aos fenômenos identificados por Oliveira. Entendemos que

esses aspectos nos trazem muitas informações sobre a atividade cotidiana dos

motoboys, porém nos parece que elas não foram devidamente exploradas pelos

estudos realizados. A título de ilustração: se é verdade que a profissão dos

motoboys não é tão valorizada socialmente52, é também verdade que os

trabalhadores que estão na profissão expõem-se freqüentemente a riscos.

Entretanto, a explicação sobre como um trabalhador, que inicialmente não valoriza

seu trabalho, passa a arriscar a vida, às vezes descobrindo um grande prazer na

profissão, não é algo de uma pura elucubração teórica. Compreender esse salto

poderia nos auxiliar na produção de informações e instrumentos de intervenção mais

eficazes na redução das morbidades dos trabalhadores e, o que para nós é ainda

mais importante, produzir sentidos sociais mais positivos para esses trabalhadores.

Oliveira não se prende muito nessas possibilidades apresentadas por sua

pesquisa. Num outro exemplo, descreve possíveis trajetórias de perspectivas

financeiras dentro da profissão, que se resumem no seguinte movimento: motoboys

inicialmente assalariados e contratados por salários fixos, passam a trabalhar como

autônomo, após o qual chegam, com o tempo, a montar suas próprias empresas de

motoboys. Oliveira mostra, nessa trajetória, que a formalidade na profissão tem um

custo financeiro que é pago pelo próprio motoboy: o aumento da renda é, em geral,

diretamente proporcional à perda de cobertura legal dos acidentes e dos direitos

trabalhistas. O que Oliveira não percebe é que a constatação dessa trajetória

financeira auxilia a desmistificar um pouco a idéia de que as perspectivas na

profissão são extremamente pequenas e os efeitos de uma “carreira” no trabalho dos

motoboys é maior do que Oliveira tende a sugerir a princípio. Como veremos

adiante, a existência de um quantitativo de motoboys que possuem uma

remuneração relativamente alta em relação à grande maioria da sociedade brasileira

explica, em parte, porque muito trabalhadores recusam certas oportunidades de

trabalho cuja remuneração é extremamente baixa. A recusa por determinados

postos de trabalho ajuda a demonstrar que a rotatividade entre os trabalhadores não

52 Discordamos parcialmente dessas considerações. Em nossas pesquisas verificamos que, de fato, o trabalho dos motoboys é em algumas situações considerado como menos importante – basta ver, por exemplo, que em algumas lojas de autopeças os motoboys, além de não receberem comissão, que é um privilégio apenas dos vendedores, ainda têm a atribuição de limpar a loja cedo pela manhã. Em várias empresas, os motoboys não podem nem mesmo ficar em seu interior. Por outro lado, dado a perspectiva de remuneração ser relativamente alta para um público pouco qualificado, a profissão de motoboys é uma boa oportunidade de trabalho, principalmente para as pessoas mais novas. Nesse sentido, não é tão desvalorizada como se pensa a princípio.

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seria apenas uma denúncia dos limites insuportáveis da profissão ou da vitimização

do trabalhador, mas também uma afirmação peremptória que os motoboys são

menos vítimas que a princípio os próprios motoboys procuram fazer-nos crer.

Oliveira não leva ao limite as contribuições que ele mesmo anuncia.

Porém, Oliveira explora de maneira mais dinâmica que Silva e Veronese o

universo do trabalho do motoboys. Avalia desde as questões salariais e as diversas

formas de remuneração do trabalhador, passando pelo significado do trabalho de

motoboys na sociedade, chegando a realizar uma análise sobre as complexas

relações entre motoboys novos e motoboys velhos. Nesse meio, emergem

informações esclarecedoras, tais como o papel que o controle e a gestão do tempo

exercem no trabalho dos motoboys e alguns mecanismos de controle que patrões e

clientes utilizam sobre suas atividades, por meio dos telefones, rádios ou

pessoalmente. Porém, Oliveira não se atém a essas discussões. Lança mão das

dinâmicas do trabalho e das organizações para ilustrar a complexidade do fenômeno

dos motoboys, mas logo se prende às questões da vitimização, criminalização e dos

acidentes entre motoboys. Sem uma ruptura visível entre esses extremos, o que

chama a atenção é o fato de que para Oliveira, os enfrentamentos com que

cotidianamente lidam os motoboys parecem estar apenas parcialmente vinculados à

atividade de trabalho em si. Na verdade, se ele reconhece que a exposição aos

riscos e a discriminação social são fenômenos atrelados ao trabalho, não é a

atividade do trabalho em si que parece produzir esses fenômenos, mas o conceito

social que se tem dele. Assim, o principal efeito do trabalho no processo de

vitimização e criminalização do motoboy é o fato dessa atividade expor por horas a

fio o motoboy em um meio inóspito e violento, dotando-lhe de sentidos já

desvalorizados e com menos “armas” (ou armas piores) para enfrentar essa batalha

cotidiana. Ao abordar, por exemplo, as constelações de causas para acidentes de

trânsito no trabalho dos motoboys, cita:

pressão para realizar entregas rápidas, jornada excessiva de trabalho, a fragilidade do veículo, as tensões e discriminações sofridas, predomínio de rapazes de até trinta anos de idade, aumento da frota circulante, periculosidade do trânsito no espaço urbano, falta de regulamentação da profissão e questões comportamentais dos motociclistas e dos outros condutores no trânsito (p.79).

Ou seja, quando fatores do trabalho estão participando das causas de

acidentes, não são as dimensões subjetivas, coletivas e hierárquicas da atividade de

trabalho que estão exercendo o principal papel, mas uma soma de fatores mais

voltada para a organização do trabalho e da produção: o excesso de trabalho, a

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idade dos profissionais, a falta de regulamentação da profissão e as pressões dos

patrões e clientes. Esses aspectos, muito próximos daqueles abordados por Silva e

Lourenço e Martins como possíveis fatores de risco, tendem a serem apresentados

como fatores objetivos e relativamente independentes da subjetividade e do coletivo

de trabalho produzido ao longo dos anos.

Não podemos discordar um pouco sequer dessas constelações de causas.

Muito embora, nos chama a atenção o fato de que o conhecimento da atividade em

si do trabalho permitiria ilustrar de maneira mais correta as dimensões subjetivas,

comportamentais, cognitivas da pessoa que trabalha nessas condições e as

dimensões mais coletivas do trabalho, que dão suporte subjetivo, por diversas

maneiras, ao trabalhador. O trabalho deixaria de ser algo formal e se tornaria um

trabalho real, cheio não só de contraintes, como de possibilidades. Oliveira, contudo,

assim como Silva e Lourenço e Martins não se dispõem a enveredar por esses

campos. Apenas Diniz (2003) e Neto, Mutaf e Avlasevicius (2006), numa perspectiva

diferente, mas extremamente útil, se embrenharam nessa seara. Oliveira preferiu

continuar um debate acerca das discriminações sofridas e das dificuldades e

desafios enfrentados cotidianamente pelos motoboys.

O trabalho de Oliveira nos alerta para não perdermos de vista que o trabalho

dos motoboys é verdadeiramente um processo multifacetado que envolve as

dimensões do trânsito, das relações sócio-culturais e do próprio mercado de

trabalho. Porém, a atividade de trabalho dos motoboys não transparece em sua

complexidade. Com isso, parte da riqueza de ser motoboy também não consegue

fazer-se emergir.

O lugar do trabalho nos acidentes de motoboys: perspectivas da atividade

São Paulo é de longe a cidade com o maior número de motoboys em

circulação, embora ninguém saiba ao certo quanto são exatamente. Já nos

deparamos com citações de números que variam entre 150.000 e 400.000 motoboys

em circulação nas avenidas paulistas. Mesmo se considerarmos uma avaliação mais

tímida, existem quase tantos motoboys em São Paulo quanto há moradores em

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Vitória! São Paulo é também o local com o maior número de mortes de motoboys. O

filme de Caito Ortiz cita o impressionante número de duas mortes por dia

(MOTOBOY, 2003). Outras fontes citam um número menor53. De qualquer maneira,

nessa cidade a quantidade de acidentes de motoboys é de longe superior à

quantidade de motociclistas em geral mortos em acidentes de trânsito em vários

anos em uma cidade como Vitória, que entre 2000 e 2006 sofreu com a morte de

menos de 40 motociclistas em suas ruas e avenidas. Chama também atenção em

São Paulo a visível mobilização do coletivo profissional, pelo menos de maneira

informal: já é conhecido o fato de que sempre que há acidentes envolvendo

motoboys, os pares se reúnem para amparar os colegas ou, se necessário, protegê-

los de agressões ou mesmo agredir alguém.

O mais curioso, entretanto, é que não há estudos (ou não foram até aqui

publicados) sobre a profissão na cidade. Identificamos apenas o trabalho de Neto,

Mutaf e Avlasevicius (2006), um relatório de um grupo de trabalho organizado por

um setor da prefeitura de São Paulo (FISCHER et. alli, 2002), e o trabalho de

Vincent e Nardelli (2007), todos divulgados de maneira muito tímida na Internet.

Sobre o trabalho de Fischer el alli, as considerações são muito pequenas, na medida

em que se trata de um relatório técnico que pouco nos revela sobre o trabalho dos

motoboys, além do fato de que se aproxima de maneira muito forte das

considerações dos autores acima citado. Quanto ao trabalho de Vincent e Nardelli,

cujo teor já tratamos acima, o que se pretende colocar em análise não é tanto o

trabalho dos motoboys, mas a ilustração dessa atividade como um dos efeitos

materiais e contraditórios das novas relações sócio-culturais e econômicas que são

movimentadas pelo que se costuma identificar como globalização, a saber, a

abertura econômica dos anos 1990, o posterior ingresso do país no fluxo de

investimentos de capitais financeiros e das logísticas de produção e distribuição

global de bens e as relações de compras mediadas pela rede virtual de

comunicação e consumo, o cyberespaço. A atividade de trabalho dos motoboys é

analisada, no texto destes autores, à luz da pesquisa de Neto, Mutaf e Avlasevicius.

Esta pesquisa, por outro lado, requer, neste momento, de um pouco mais de nossa

atenção.

53 Neto, Mutaf e Avlasevicius (2006) citam que em 1999 foram 250 mortes de motoboys. Reportagem recente da Veja São Paulo (DUARTE; VEIGA, 2008) mostra, por exemplo, que acontece cerca de 01 acidente/dia por motocicleta naquela cidade. Porém, neste número, incluem-se os acidentes envolvem motociclistas não profissionais.

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O trabalho desses autores se trata do resultado de uma pesquisa de um

grupo de estudantes de graduação do curso de Ciências Sociais da Universidade de

São Paulo (USP) e foi publicado na revista eletrônica do Núcleo de Antropologia

desta universidade. O estudo resultou num pequeno artigo que, apesar de “breve”, é

muito elucidativo. Nem tanto pelo seu interesse na atividade de trabalho. Na

verdade, o texto nem enfoca tanto a dimensão do trabalho dos motoboys. O que

merece destaque nesse trabalho é o que revela sobre a experiência de vida e do

coletivo dos motoboys, tomadas não a partir do ponto de vista da negatividade da

atividade.

O objetivo do texto é analisar um novo grupo de pessoas que passaram a

circular nas ruas de São Paulo desde os anos 1990, por meio do qual poderiam

compreender um pouco mais as dinâmicas do trânsito caótico daquela cidade.

Utilizando métodos etnográficos de investigação, por meio do qual se visa identificar

e compreender a teia de sentidos que sustenta e significa uma determinada

realidade, os autores buscaram compreender os códigos, os símbolos os valores

que, como grupo cultural, os motoboys vêm supostamente desenvolvendo. Os

autores procuraram identificar, então, se existe algo do que se possa denominar de

uma “identidade” motoboy, permeada por valores de solidariedade e sentimento de

pertença. Ou seja, tentaram compreender como vem se dando o processo de

reconhecimento coletivo e em que medida esse processo vem gerando um conjunto

de regras, de valores, de princípios, de idéias que são partilhados e produzidos

pelos trabalhadores.

Partem do princípio de que os motoboys produzem sua realidade, ou seja,

não são objetos passivos às pressões externas a eles. Reagem e adaptam o mundo,

dentro de limites mais ou menos amplos, às suas necessidades pessoais e de

grupo. Dessa forma, a maneira como interagem no trânsito, por exemplo, por meio

de uma agressividade aparentemente desmedida, demonstra sua reação a uma

disputa ardorosa por espaço, a qual enfrentam cotidianamente diante de outros

veículos e condutores. Perder os espaços conquistados à força (ou melhor, a

pesadas) é retroagir numa disputa em que algumas posições importantes foram

alcançadas (como o caso das faixas especiais para motocicletas existentes na

cidade de São Paulo, ou simplesmente com o receio que os motoristas têm de entrar

inadvertidamente no “território” dos motoboys: o corredor). De modo semelhante, a

existência de uma solidariedade socialmente reconhecida é avaliada pelos autores

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como relativamente mítica. Isso porque, se de um lado os trabalhadores reconhecem

a importância de algum nível de autoproteção grupal, por outro lado, dinâmicas de

solidariedade mais afirmativas, reivindicatórias e propositivas em busca de um

coletivo organizado e sindical, não existem na profissão. Isso porque interesses

muito diversos se digladiam entre os grupos específicos de trabalhadores, como por

exemplos os mais velhos e os mais novos, ou por causa de uma disputa

mercadológica muito feroz. De qualquer maneira, os autores identificam que, a

despeito das diferenças e contendas, os motoboys partilham já de um referencial

linguageiro comum. Esse cenário aponta para um processo de formação de uma

identidade partilhada por todos e por um processo de identificação a uma imagem

de si construída a partir da apropriação de valores e símbolos de outras categorias

profissionais e de outras experiências de vida (ser motoqueiro, ser homem, etc.).

Além disso, e o que para nós é o mais importante, Neto, Mutaf e Avlasevicius

acreditam que “os motoboys forjaram uma identidade que hoje começa a ter suas

regras estabelecidas pela história da profissão, pautada em cima de estatísticas de

estarrecer”. Ou seja, além de um processo identificatório comum, segundo os

autores, os motoboys vêm constituindo princípios de saberes de prudência. Diante

dessa constatação, os autores questionam se haverá espaço para uma

profissionalização dos profissionais, uma vez que a improvisação ainda impera como

padrão. Mas reconhecem que em alguns espaços, os motoboys se tornaram

profissionais dignos de todos os adjetivos positivos da expressão “profissional”.

O texto de Neto, Mutaf e Avlasevicius nos chama a atenção também porque

elucida, de uma maneira muito rica, a complexidade do processo de produção de

uma determinada experiência coletiva. Mesmo reconhecendo as inúmeras

dificuldades que os motoboys enfrentam cotidianamente – e que os trabalhos de

Silva, Lourenço e Martins e Veronese se esforçam para expor –, os autores

enumeram mecanismos e movimentos de uma produção positiva de um modo de ser

que é peculiar porque cheio de experimentações, invenções, debates de valores e

disputas. Deixa de lado, mesmo que temporariamente, as dimensões negativas do

trabalho e passa a escutar o motoboy em seu processo de produção de desejo,

produto e produtor de um modo de ser. Esse modo de ser é particular à profissão –

mesmo que permeada por outras experiências de vida – e não pode ser reduzido a

termos objetificantes e descontextualizados.

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Para nós, o trabalho de Neto, Mutaf e Avlasevicius apresenta caminhos

teóricos e de métodos no tocante ao objetivo de explicação da realidade de vida dos

motoboys. Até porque, como dito acima, partilhamos da idéia de que os estudos

etnográficos são ótimos instrumentos para auxiliar na compreensão do conjunto de

sentidos que tornam possível compreender a experiência de vida de quem vive uma

determinada realidade. Porém, encontramos alguns limites nessa pesquisa, que

dizem respeito mais a aspectos banais: a natureza de pesquisa que, por ser um

trabalho de graduação, inevitavelmente limita a capacidade de aprofundamento na

discussão realizada54; e o pouco interesse que deram à atividade de trabalho e aos

aspectos que ela envolve e implica, tais como a organização do trabalho, relações

hierárquicas, a relação com a tarefa, o desenvolvimento de modos e saberes

operatórios, os processos de renormatização do meio, etc. Mesmo assim,

utilizaremos em inúmeras oportunidades alguns achados destes autores para

debater aspectos da atividade e da vida dos motoboys em Vitória.

De um modo relativamente semelhante, mas utilizando pressupostos teóricos

ligeiramente diferentes, o estudo de Grisci, Scaldo e Janovik (2007) aproxima-se do

de Neto, Mutaf e Avlasevicius na medida em que analisa o trabalho dos motoboys a

partir de suas perspectivas positivas. Tomando como base o princípio de que os

modos de produção e de subjetivação estão intimamente relacionados entre si, as

autoras investigam como o trabalho dos motoboys e os modos de ser, produzidos

em torno dessa atividade profissional, ilustram aspectos chave da

contemporaneidade, sobretudo a dimensão espaço-temporal, mas também

dimensões características da imaterialidade produtiva, ou melhor, do que, a partir de

Lazzarato e Negri (2001), denomina-se de trabalho imaterial. As autoras investigam,

assim, a maneira como essa atividade de trabalho está relacionada com uma

determinada temporalidade e espacialidade produzidas a partir de modos de

produção e de subjetivação contemporâneos e que se caracterizam por sua forte

dose de imaterialidade, imediaticidade, velocidade, descartabilidade e urgência.

Para as autoras, que estudaram os motoboys que trabalham com delivery de

alimentos, a atividade de motoboys, bem como a maneira como os trabalhadores

vivem, se comportam e pensam ilustram efeitos das exigências das dinâmicas

sociais e econômicas contemporâneas. Entre essas exigências, destaca-se a

54 Esse limite foi encontrado também na pesquisa de Lourenço e Martins, que realizaram seus estudos em um trabalho de conclusão de curso de Psicologia deste último.

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necessidade de flexibilização das relações (de trabalho, pessoais, profissionais,

sociais, etc.); a experimentação intensiva e instantânea das sensações, quaisquer

que sejam elas; a intensificação do consumo de sentimentos, prazeres, modos de

ser, de viver, de ousar, etc.; a compressão do tempo, no sentido de torná-lo quase

inexistente; a redução dos espaços (entre produção-consumidor; entre pessoas

distantes, mediados por suportes comunicacionais cibernéticos, etc.); a necessidade

de aumento do conforto das pessoas, entre outros. Para tanto, emerge como central

na contemporaneidade aquilo que se define como trabalho imaterial:

o trabalho imaterial se encontra no cruzamento (é a interface) desta nova relação produção/consumo. É o trabalho imaterial que ativa e organiza a relação produção/consumo (...) através do processo comunicativo (...) [que] dá forma e materializa as necessidades, o imaginário e os gostos do consumidor. E estes produtos devem, por sua vez, ser potentes produtores de necessidades, do imaginário, de gostos. A particularidade da mercadoria produzida pelo trabalho imaterial (...) está no fato de que ela não se destrói no ato do consumo, mas alarga, transforma, cria o ambiente ideológico e cultural do consumidor. Ela não reproduz a capacidade física da força de trabalho, mas transforma o seu utilizador (LAZZARATO; NEGRI, 2001:45-46).

O trabalho imaterial, através da comunicação, permite produzir consumidores,

desejos, necessidades. Articulando a linguagem, o afeto e a comunicação,

produzidos espontaneamente pelo trabalho vivo da multidão, o trabalhador imaterial

logra criar novos sujeitos consumidores, insaciáveis em suas necessidades e

capazes de demandar produtos que satisfaçam prazeres produzidos por um

imaginário colonizado pelo capital através da subsunção real. O trabalho imaterial

garante, então, que a ponta do consumo possa disparar a produção através de um

desejo que se torna matéria prima de um trabalho intelectual, afetivo, comum,

imaterial. E se é verdade que qualquer sistema produtivo produz subjetividade, o

caso específico do trabalho imaterial desponta como excepcional pelo fato de que a

produção de subjetividade não é um agenciamento ou um efeito da produção, mas o

objeto de trabalho, a matéria-prima e o produto de intervenção calcada na

humanidade do homem e produtora de “humanidades”, ou seja, uma ação sobre e

produtora de criação, prazer, desejo, afetos e linguagem. A comunicação se torna

aqui o meio fundamental de intervir nesse sistema produtivo, apontando-se sempre

para o elemento fundamental da comunicação e da linguagem: a cooperação entre

os sujeitos.

Entre as atividades de trabalho que se destacam por alta dose de

imaterialidade destacam-se os que oferecem serviços diversos aos consumidores,

tais como a comunicação, cuidado, prazer, entretenimento. Mas também estão

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aqueles ligados a manutenção das redes de redes de produção e de consumo. Em

geral, essas redes de redes se “materializam” nos sistemas de gestão da logística de

distribuição de bens e serviços que culminam nas pontas (nem sempre opostas) da

produção/consumo. Ou seja, se “materializam” em trajetos intermináveis que os

motoboys fazem cotidianamente para tornar possível, por meio de sua atividade, um

determinado produto chegar a seu destino final no tempo esperado pelo consumidor.

A velocidade imprimida pela necessidade de consumo imediato do consumidor

(necessidade essa que é também produto de um trabalho imaterial realizado em

ritmo frenético e constantemente suplantado) reverbera desde os ritmos produtivos

quase-impossível-de-se-acompanhar das industrias superinformatizadas (ou nem

tanto assim), até aos ritmos alucinantes dos motoboys e dos caminhoneiros pelas

estradas do país e do mundo.

As autoras apontam, porém, que o motoboy não oferece apenas uma

alternativa de velocidade à rede produtiva e de consumo. Elas chamam atenção

para o fato de que, por meios muito pessoais, os motoboys desenvolvem formas de

satisfazer as necessidades dos consumidores. Para tanto, disponibilizam suas

personalidades e afetos para “adequar o atendimento às necessidades específicas

de cada consumidor em particular. Isso exige que os motoboys adotem estratégias

de aproximação e abordagem únicas, cujo resultado é um produto intangível,

imaterial” (GRISCI, SCALDO E JANOVIK, 2007, p.452). Indo ainda mais longe, as

autoras percebem que a atividade de motoboy, mais que garantir que uma

determinada demanda se torne satisfeita no prazo esperado, na medida em que

tornam esse tipo de demanda possível de ser satisfeita, acabam tornando possível

que demandas desse tipo sejam criadas. Em outras palavras, indiretamente os

motoboys contribuem para a criação de demandas.

Para demonstrar essas idéias, Grisci, Scaldo e Janovik sugerem, por meio de

suas análises, que o trabalho dos motoboys possui um grande conteúdo de

imaterialidade porque envolve competências características desse tipo de trabalho:

cuidado, interação e comunicação humana, cujos produtos são intangíveis ao proporcionarem um sentimento de tranqüilidade, de bem-estar, satisfação, ou até mesmo a sensação de estar simplesmente conectado ou de pertencer a uma comunidade, por mais que isso tudo possa ser estandartizado, caricatural e interesseiro (2007, p. 457).

Desde o cuidado com a moto, até a necessidade de comunicação com o

patrão e o cliente, ou mesmo a necessidade de ter que “se desdobrar” para realizar

uma determinada entrega, a atividade de trabalho conduz ao desenvolvimento

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dessas competências nos motoboys. Além dessas competências, as autoras

sugerem que a atividade de trabalho impacta também nas formas de comunicarem,

(dando-se destaque à abundância de frases curtas e fragmentadas utilizadas nas

falas e comentários), bem como na produção de um estado de alerta corporal

permanente e que, por ser permanente, é também muito desgastante. Aliás,

desgastante também são as horas contínuas em que os motoboys passam em cima

de suas motos ou o excesso de tempo em que passam trabalhando para aumentar

sua remuneração. E mesmo com todo o esforço, as autoras sugerem que os patrões

avaliam o desempenho dos trabalhadores sempre como tendencialmente negativos.

Daí, a pressão contínua no cotidiano dos motoboys que, com o tempo, tende a ser

naturalizada. E mesmo que se reconheça que os motoboys são incitados a atender

às demandas no ritmo em que são impostas, os motoboys acabam introjetando

alguns mecanismos de (auto)controle e (auto)vigilância, principalmente quando

passam a pretender fazer mais e mais entregas.

Desdobra-se daí, segundo as autoras, uma imagem paradoxal se produzindo

em torno da categoria. De um lado um grande impacto da mídia e da própria

dinâmica da atividade acarretam, entre os motoboys, na sustentação de uma

imagem negativa por parte dos próprios trabalhadores, que acreditam que a

sociedade percebe a profissão de maneira pejorativa. Daí os relatos de insatisfação

em relação a inúmeros aspectos da atividade, principalmente naqueles que

envolvem contato com outras pessoas (sejam os clientes, sejam outros motoristas

nas vias públicas). De outro, uma supervalorização do poder, de virilidade e de

heroísmo pelo enfrentamento dos riscos da atividade profissional. Sugerem as

autoras que tais sentimentos de poder e virilidade podem ser frutos de estratégias

coletivas de defesa. Da mesma forma o seriam os sentimentos de solidariedade e

coletividade, que as autoras logo percebem ser um mito que não suportam a pesada

imagem negativa produzida pela sociedade em torno dessa profissão e pelos

impedimentos de encontros, que a própria atividade não propicia. A falta de tempo

ou as distâncias a percorrer marcam de maneira indelével as relações entre os

motoboys e deles com a cidade. O individualismo se torna uma saída possível entre

os trabalhadores desse setor para enfrentar as dimensões subjetivas, coletivas e de

sentido que são produzidas pelo trabalho.

O estudo de Grisci, Scaldo e Janovik nos convoca a observar que a

experiência de ser, dos motoboys, não é apenas fruto de uma determinada atividade

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de trabalho, mas que está também atrelada a um determinado modo de subjetivação

que marca a vida das pessoas de maneira muito peculiar na contemporaneidade.

Entretanto, algumas das idéias das autoras parecem não espelhar exatamente a

experiência que observamos em Vitória, muito provavelmente porque não

investigaram o trabalho dos motoboys a partir do ponto de vista da atividade. Tanto

a maneira como apreendem as dinâmicas do que denominam, a partir de Dejours,

de estratégias coletivas de defesa, quanto a maneira como acreditam se comunicar,

além das dimensões de solidariedade avaliadas como relativamente frágeis,

daremos neste texto alguns outros encaminhamentos que acreditamos ser mais

pertinentes às situações aqui presenciadas. De qualquer modo, as contribuições das

autoras são inestimáveis para o enriquecimento do debate sobre o assunto.

Mesmo assim, apesar dessas valiosas contribuições, é de nossa opinião que

o único trabalho realizado no Brasil que conseguiu adentrar no universo da atividade

de trabalho revelando-a em toda a sua riqueza, foi a pesquisa de Diniz, realizada na

cidade de Belo Horizonte e publicada em 2003. O que se destaca na pesquisa de

Diniz é que este procurou investigar os fatores do trabalho que contribuem para

produção de acidentes dos motoboys, mas não se limitou a esses fatores. Calcado

na Ergonomia da Atividade e na Psicodinâmica do Trabalho – que descobriram que

os trabalhadores desenvolvem formas de regulação e estratégias individuais e

coletivas para lidar com as dificuldades do trabalho (variabilidades, sofrimento

psíquico) – Diniz, procurou identificar os saberes e estratégias regulatórias que os

motoboys desenvolveram para lidar com essas condições acidentogênicas e com as

variabilidades e contraintes da atividade. Essa pesquisa foi fruto de uma demanda

do SINDIMOTOS daquela cidade, que procurava compreender mais adequadamente

os aspectos deletérios da profissão visando construir uma pauta de reivindicações

para o Acordo Coletivo que fosse mais adequada às necessidades da categoria.

O trabalho de Diniz diferencia-se dos demais exatamente porque nos revela

o motoboy trabalhando e solucionando os inúmeros impasses impostos por cada

tarefa. Nesse sentido, Diniz nos expõe não apenas o esforço empreendido e o

conseqüente desgaste com que o trabalhador se depara para realizar suas tarefas,

mas também os saberes instrumentais – muitos dos quais cognitivos – e as

inteligências astuciosas mobilizadas por esses trabalhadores para tornar essa tarefa

mais eficiente (do ponto de vista das necessidades dos clientes e patrões) e mais

eficazes (do ponto de vista da economia dos corpos, movimentos e riscos). Diniz

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demonstra também que essa tarefa envolve uma produção contínua de um coletivo

de trabalho que dá ressonância e sentido à experiência cotidiana de trabalho de

cada profissional.

Semelhante ao que faz Oliveira (2003), Diniz tenta localizar a profissão dos

motoboys em um contexto sócio-histórico preciso. Mas não se satisfaz com o

contexto social. Para ele, é necessário ouvir o trabalhador, se possível durante e a

partir de sua própria atividade. Procura identificar em que medida as dimensões

específicas de um determinado processo de urbanização implica em diferentes

formas de solucionar os impasses inevitáveis que a atividade de trabalho coloca aos

trabalhadores. Para tanto amplia seu campo de pesquisa para uma outra cidade de

Minas Gerais: Uberlândia.

Não vamos nos deter muito nas contribuições de Diniz, uma vez que é desse

autor que obtivemos a maior parte das contribuições para nosso trabalho, sendo

citado inúmeras vezes ao longo do texto. Por hora, vamos apenas registrar que a

extensão da investigação de Diniz nos permite compreender desde as questões e

exigências a que uma pessoa deve responder a partir do momento em que ingressa

na profissão, até o conjunto de saberes e estratégias que os trabalhadores

desenvolvem para realizar suas tarefas satisfatoriamente. Dentre essas estratégias

encontram-se o planejamento temporal das tarefas, o planejamento da rota e a

mobilização da rede solidária. Para mostrar essa complexa gama de fatores que

compõem o cenário da atividade dos motoboys, Diniz procura identificar aspectos

objetivos do trabalho, tais como as formas de vínculo, os tipos de contrato, os modos

de remuneração, os turnos de trabalho, as prescrições, os modos de organização

hierárquica, entre outros. E também os aspectos subjetivos mobilizados por essa

profissão, tais como as preferências e escolhas dos motoboys acerca das diversas

possibilidades de contrato, de vínculo e modos de se relacionar com os colegas, os

saberes e competências desenvolvidos, dentre os quais se destaca uma mistura de

manhas e macetes para se pilotar no trânsito e de um adestramento do corpo às

exigências de respostas rápidas e seguras.

Por meio do trabalho de Diniz, verificamos que os acidentes de trabalho não

são frutos de uma resultante de fatores abstratos, mas um fenômeno experimentado,

enfrentado e preferencialmente evitado por meio de inúmeras ferramentas que

dependem de um coletivo de trabalhadores que estão inventando soluções para lidar

com esse fenômeno o tempo inteiro. É claro que nem todas as estratégias são

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infalíveis; basta ver o número de acidentes de trabalho. Algumas podem obter mais

sucesso e outras serem menos eficazes. O que Diniz nos força a ver é que não se

deve fechar os olhos a elas, pois do contrário há o risco de se ignorar exatamente o

esforço, os saberes e as estratégias daquele que mais lhe interessa conhecer, ou

seja, o próprio trabalhador e seu trabalhar. E é sob esse mesmo espírito que

empreendemos nosso trabalho. Passemos adiante para os primeiros resultados

obtidos.

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3. ASPECTOS GERAIS DA PROFISSÃO E DO MOTOBOY

Uma pessoa ingressa na profissão

Imerso nos complexos e perversos cenários da periferia de qualquer grande

cidade brasileira, um jovem com seus 22 ou 23 anos consegue juntar um dinheirinho

por meio de alguns bicos realizados no ano anterior. Com esse dinheiro, decide dar

entrada em uma moto para passear com a namorada. Tirara a carteira com a moto

de seu irmão, que a usa para ir ao trabalho numa empresa de assistência técnica de

redes telefônicas. No seu bairro, muitos usam moto para várias atividades, inclusive

para passeios no fim de semana, fazer trilhas no mato ou simplesmente ir para a

noitada.

Após convencer seu tio a ser seu fiador na negociação da moto, sai da

concessionária com uma “máquina” em punho, pronto para namorar, farrear. Porém,

uns 2 meses depois, é mandado embora da copiadora em que trabalhava. Embora

esse trabalho não fosse o “emprego da sua vida”, ficar sem ele logo pesara no bolso.

Entre o dinheiro da cerveja e da roupa que vai ter que deixar de comprar, bate

mesmo é o medo de ficar sem ter como pagar as prestações da moto. Um colega do

bairro, com quem sempre sai à noite, logo lhe sugere: “Véio, tem uma vaga lá pra

trabalhar comigo como motoqueiro. Vâmo lá?”. “Quanto é que dá?”, pergunta o

jovem, meio receoso. “Ah, depende cara. Tem vez que dá pra tirar um bom trocado.

Se você desembolar o serviço direito, dá pra tirar até mil contos”. “Mil?”, pergunta

curioso o rapaz. “É, cara. Depende de ti. E o que é melhor, cara. Você não trabalha

nem fim de semana e nem à noite. E aí, vamo lá?”. E o rapaz, meio que sem opção,

muito empolgado pela quantia ventilada, e pensando que poderia trabalhar nesse

emprego pelo menos até pagar a sua moto, topa entrar nesse serviço. “Não tenho

pretensão de ficar muito tempo aqui não... É muito perigoso!”, reflete... “vou logo

procurar algo melhor”. Mas ao mesmo tempo, lhe vem à cabeça: “cara, imagina ficar

o dia todo em cima da moto, sem chefe ou colega te enchendo o saco.... Que

maravilha. E ainda ganhar mil pilas”. Diverte-se com a possibilidade, embora sinta

um grande receio dos riscos da profissão. Nesse sentimento paradoxal, inicia a

carreira de motoboy.

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Antes de prosseguirmos com a história desse jovem, uma questão nos vem à

mente: como assim esperando algo melhor? A profissão não é uma “carreira”? E

quanto aos riscos em jogo? O rapaz não perguntou a seu amigo sobre isso. Mas já

ouvira e vira muito motoboy caído por aí. Pensava de si para consigo: “é só não

vacilar. Não vou correr ou abusar. Vou ficar o tempo todo ligado”. Ao mesmo tempo

perguntava sem parar: “mas não há nenhum macete pra evitar de eu dar mole”? E

quanto à profissão, “sei que não há curso ou treinamento, mas quem vai me ensinar

as coisas”? O que fazer e como? Já começa a trabalhar noutro dia? E o que está em

jogo na atividade? Como conduzir e “desembolar” o serviço? Aliás, o que é mesmo

“desembolar” o serviço?

Não dá para saber se todas essas questões passaram pela cabeça desse

rapaz. O fato é que no dia seguinte, ele vai ao escritório junto com seu colega e já,

no mesmo dia, tem que sair para fazer duas entregas. Enfrenta essas primeiras

entregas com muito medo. Medo, aliás, que lhe teima a persistir por vários dias

seguidos. Um pensamento ia e voltava sempre em sua mente: “vou ficar aqui até

aparecer outra coisa melhor. Motoboy não é vida pra qualquer um não”. É verdade

que parte do nervosismo era uma síndrome comum d o primeiro dia. Mas não era

um mera apreensão da avaliação que o patrão teria sobre seu trabalho. Estava

nervoso porque tinha muita informação para gerenciar: “vai ali na empresa x, pega

uma BL, vai no local y, averba a BL, passa na outra empresa z, leva esses ofícios ali

e traz pra empresa x o recibo de entrega e os ofícios”. “Averbar?” “BL?” “Recibo?”

Tudo muito simples, mas um mundo novo. “E onde são esses lugares? Como é que

chego lá?”. ‘Se virar’, seria uma das únicas saídas nesse mundo novo.

Muito confuso... Muita informação... Mas pelo menos alguma coisa era boa

naquele trabalho: “adrenalina” era a palavra. “Cara, como tô pilotando bem!”. “Esses

dias passei assim e assado por entre um carro e um ônibus e (...)”, são histórias que

conta aos colegas, como que querendo mostrar que está sabendo algo. “E ainda vou

receber uma graninha pra isso!!!”. A frase: “motoboy não é vida para qualquer um

não. Vou ficar até arranjar um serviço melhor” parece não vir e voltar já mais tão

freqüentemente assim.

Com isso em mente, o rapaz vai ficando, ficando, ficando naquilo que

inicialmente era um bico muito temporário. Alguns meses depois o rapaz está até gostando de alguns resultados. Teve um mês que tirou R$ 900,00. Em outro chegou

a quase R$ 1.000,00. E o que é melhor: o patrão não está lá. “Ruim é dirigir com

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chuva. A capa de chuva esquenta ‘pra cacete’ e o que é pior, fede. A gente entra no

elevador e neguinho se afasta. As pessoas pensam que motoboy é porco”. Mas

mesmo com as intempéries, o rapaz vai levando. Ainda lhe passa pela cabeça: “até

achar uma coisa melhor”, mas já não está mais nervoso. Vê possibilidades na

profissão.

Essa história semi-fictícia55 representa um pouco da entrada dos “garotos” na

profissão e foi utilizada para dar um pouco de vida às informações que

apresentaremos abaixo56. Quando se diz ‘garotos’ na profissão, se o faz em função

de que, em Vitória, segundo dados obtidos em nossa pesquisa e que pelos motivos

acima explicitados não serão apresentados aqui, trata-se de uma profissão cujo

efetivo aparentemente é composto, na maioria, por homens com até 30 anos de

idade. Entretanto, a média de idade dos motoboys é mais alta do que inicialmente

pressupúnhamos. São vários os profissionais com um pouco mais de idade e que

não nos permitiria chamar de ‘garotos’, embora sejam ainda raros aqueles que têm

mais do que 40 anos. De qualquer maneira, a maioria ainda está na faixa dos 20

anos. Além disso, inicialmente acreditávamos que encontraríamos apenas meninos

mais novos na profissão, o que, de fato, não se revelou como verdade. Ouvimos

alguns relatos de meninas trabalhando na profissão. Entretanto, a despeito de nosso

interesse, não conseguimos entrevistá-las pessoalmente, razão pela qual não

pudemos fazer nenhuma análise acerca da maneira como as profissionais mulheres

vêm desenvolvendo seus modos e saberes operatórios nesse meio marcadamente

masculino. De qualquer modo, o número de mulheres na profissão é, em Vitória,

inexpressivo, tornando por hora suficiente a investigação sobre essa atividade

exclusivamente do ponto de vista masculino.

55 Semi-fictícia porque se por um lado não seja o retrato de um caso em particular, fora montada em cima das entrevistas e depoimentos dados à equipe de pesquisa. Trata-se, em suma, de um retrato geral da história dos motoboys na entrada da profissão. Claro que as histórias não são iguais. Tivemos a oportunidade de entrevistar alguns motoboys em seus primeiros dias de trabalho. Alguns estavam bastante nervosos, meio que perdidos, atordoados. Outros estavam aparentemente mais tranqüilos, como se fosse um trabalho realmente simples. Um, em particular, pareceu-nos até desdenhar da profissão, quando nos afirmara coisas dessa natureza: “é um trabalho muito simples”. Porém, suas afirmações eram bastante contrárias aos princípios que parte importante dos trabalhadores sustentava. Curiosamente não vimos mais esse motoboy. Será que não suportara a profissão? Ou realmente arranjara coisa “melhor”? Seja o que for, para nós, a história relatada tenta aproximar o leitor um pouco à vida dos (geralmente) meninos que vão compondo o quadro de motoboys nas ruas da cidade. 56 Devemos registrar aqui que as informações apresentadas abaixo são fruto, em sua maioria, dos resultados das análises da etapa quantitativa de nossa pesquisa. O uso desses resultados neste momento nos auxiliará a compreender um pouco melhor a atividade de trabalho lembrando, porém, que a essas análises somaram-se, também, informações e análises dos resultados obtidos a outros métodos utilizados ao longo da pesquisa. Portanto, durante a apresentação dos dados, faremos considerações que não se limitam aos resultados obtidos por meio da aplicação dos questionários. Por motivos já explicados, tomamos sempre o cuidado de não generalizar os comentários para o coletivo profissional como um todo.

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Seja como for, tudo isso pareceria mera curiosidade científica se essas

informações não revelassem possíveis implicações significativas para o sentido que

os trabalhadores constroem sobre sua atividade, sua história e seus suportes

culturais e subjetivos. Discutiremos esses aspectos um pouco mais à frente, mas já

podemos adiantar que a carência de uma longa tradição de profissionais mais

antigos em uma determinada atividade tende a apontar para uma profissão em

constituição e que, por isso, pode não possuir instrumentos suficientes para a

construção dos saberes de prudência, de sistemas coletivos de defesa (estratégicos

ou ideológicos, conforme terminologia utilizada pela Psicodinâmica do Trabalho), ou

de saberes para lidar com as variabilidades que se desenrolam em qualquer

atividade de trabalho.

Oddone et al. (1986), na proposição de suas estratégias de mobilização

operária na luta pela saúde durante a década de 70, sugere que os trabalhadores

façam uma investigação quase que “epidemiológica” sobre sua atividade

profissional. Para isso, solicita-lhes que entrevistem os profissionais com mais tempo

de profissão, tentando extrair deles os efeitos do trabalho na saúde, na vida, no

corpo e na subjetividade. Com isso, Oddone espera que os trabalhadores apropriem-

se de modo consciente de um conhecimento que vai sendo produzido de maneira

tácita ao longo do tempo em que o trabalhador permanece em uma profissão. Essa

“tradição” desenvolvida é fruto de um tempo cronológico e de um tempo devir,

intempestivo. Como a profissão dos motoboys é povoada de trabalhadores jovens, e

pelo fato de que poucos trabalhadores estão na profissão há muito tempo, o coletivo

profissional parece desconhecer em parte os efeitos da profissão no longo prazo.

Veremos logo adiante que os trabalhadores reconhecem, sim, alguns efeitos do

trabalho corpo. Porém, ainda são poucos os trabalhadores que estão há 20, 25 anos

na profissão. Com isso, os efeitos da profissão na diversidade de tipos e estruturas

corporais e as estratégias para lidar com eles ainda são relativamente difíceis de

serem compreendidos.

Além disso, é importante considerar que o ingresso na profissão tende a ser

também uma experiência juvenil, visto que há uma tendência importante das

pessoas mais novas trabalharem a menos tempo que as pessoas com maior idade.

Por outro lado, existem casos de profissionais que ingressam na profissão mesmo

após os 30 anos. Com isso, fica claro que, embora a profissão dos motoboys seja

uma escolha predominantemente de pessoas mais novas e de que as pessoas mais

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velhas estejam na profissão há mais tempo, não é improvável encontrar pessoas

que mesmo após os trinta anos encontrem aí uma nova opção profissional. Disso se

conclui que por se tratar de uma profissão recente no mercado de trabalho, as

variações do coletivo de profissionais parecem ser maiores do que se poderia

esperar em comparação com outras profissões mais tradicionais. Conclui-se também

que a profissão vem sendo utilizada como uma alternativa real para pessoas que

não conseguem arrumar outros empregos, mesmo com mais idade.

Outra informação pertinente ao perfil dos profissionais do setor de moto-

entrega trata-se da sua escolaridade. Como dito acima, em geral, os trabalhadores

que procuram esse tipo de atividade são aqueles que não possuem outra

qualificação além do fato de possuírem habilitação, uma vez que a maior parte dos

trabalhadores estudaram até, no máximo, o Ensino Médio. Há, entretanto, um

conjunto de profissionais que apesar de possuírem alguma qualificação técnica,

estão na profissão há algum tempo. Aliás, alguns de nossos dados indicaram que

aparentemente não há uma tendência de que somente as pessoas com menos

escolaridade fiquem muito tempo trabalhando na profissão. Em nossa investigação

qualitativa, porém, observamos que, ao menos em termo de discurso, parece haver

uma perspectiva um pouco diferente entre aqueles que possuem alguma

qualificação e os que mal terminaram o Ensino Médio. Parece que as pessoas com

mais qualificação estão um pouco mais focadas na possibilidade concreta de que o

trabalho dos motoboys possa servir como um trampolim a outras atividades. Com

isso, em nível de discurso, parece que a profissão é considerada para elas um

pouco mais freqüentemente como um “bico” passageiro. Esse discurso, entretanto,

está longe de ser exclusivo dos profissionais com mais escolaridade, pois de

maneira semelhante, ouvimos de trabalhadores que também não têm nenhuma

formação técnica, as mesmas palavras. Isso sugere que há, na profissão, certo

sentido de “provisório” em seu panorama. E isso, somado ao fato de que se trata de

uma profissão recente, executada por profissionais novos, parece produzir efeitos

importantes na atividade. Voltaremos a isso nos capítulos seguintes.

É importante ressaltar também que esses profissionais são, em sua grande

maioria, oriundos dos bairros em que se encontram maiores contingentes de

pessoas com baixa qualificação profissional, da periferia urbana (a maioria dos

profissionais reside em bairros fora de Vitória, onde a concentração de bairros com

moradores mais empobrecidos é maior) e que não possuem muitas outras opções

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profissionais. Porém, talvez seja incorreto dizer que os jovens que se tornarão

motoboys são, em grande parte, extremamente pobres, considerando a miserável

realidade brasileira, pois pelo menos eles têm que possuir recursos para comprar e

manter motos, o que é, em geral, um fato que já os coloca em outra fração de classe

no interior das classes populares.

Outro elemento importante para a compreensão do perfil desse trabalhador é

seu estado civil. Muito comumente ouvimos discursos proferidos pelos quatro cantos

do país dizendo que os motoboys seriam profissionais jovens, “loucos”, que não têm

nada a perder e que, por isso, se envolvem em acidentes. Nada mais enganoso do

que esse tipo de explicação. Em primeiro lugar, porque em contato com este coletivo

profissional, logo percebemos que existe um grande esforço de autoproteção entre

esses trabalhadores, sobretudo por meio de estratégias individuais de

enfrentamento dos perigos (voltaremos a isso adiante). Em segundo lugar, os dados

nos indicam que pelo menos metade dos motoboys é casada ou vivem junto com

alguém. Além disso, a maioria possui filhos e muitos têm que cuidar de outros

dependentes. Dessa forma, é muito pertinente afirmar que os motoboys, como

qualquer pessoa nesse mundo, têm muito a perder no exercício de sua profissão,

inclusive sua própria vida.

Observa-se, então, que a escolha pela profissão não se faz pelas condições

de um possível “desapego” em relação aos demais relacionamentos sociais

estáveis. Muito pelo contrário, nossos dados indicaram que não é significativa a

relação entre tempo de trabalho e estado conjugal. Isso significa dizer que mesmo

pessoas que são casadas, iniciam suas atividades como motoboys após o

casamento. Enfim, as análises das informações obtidas até aqui vem nos indicando

que o ingresso na atividade de motoboys não requer que uma pessoa deva estar

passando por um determinado “momento” “especial” de sua vida (ser novo, estar

solteiro, etc.) e nem que, por outro lado, deva possuir qualquer tipo de uma suposta

“aura” de irresponsabilidade e aventura no seu trato para com as coisas do

cotidiano. Aliás, observamos que a condição de paternidade é quase que

homogeneamente distribuída entre os motoboys, independente do tempo de

trabalho na. Com isso, fica cada vez mais claro que um discurso da

irresponsabilidade dos motoboys parece se sustentar em “realidades” meramente

imaginadas: a profissão dos motoboys não é coisa de “louco desvairado”. São

pessoas com família, esposa, filhos e outros dependentes que tentam conduzir suas

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vidas de maneira socialmente esperada, embora por meio de uma profissão que não

é valorizada. Investem como podem em uma profissão traiçoeira que de tempos em

tempos acomete um profissional a um acidente de gravidade variável. Talvez o

grande trunfo da profissão seja sua relativa estabilidade no mercado: se por um lado

a remuneração não é alta, em comparação aos riscos a que são submetidos, por

outro lado é uma opção de segurança de remuneração em uma realidade

econômica em que uma das armas que o capitalismo usa para exploração é a

insegurança social e financeira. Esse fato é um pólo que atrai muitas pessoas para a

profissão.

Aliás, quando indagávamos as razões pelas quais os trabalhadores

ingressavam na profissão, os entrevistados usualmente davam respostas que

podem ser resumidas na seguinte frase: ‘falta de opção’ ou ‘necessidade’ de que

ingressassem neste trabalho. Entre essas respostas, não era incomum alguns

afirmarem que estavam na profissão apenas temporariamente, visando

complementar a renda familiar. Outros afirmavam que sua história na profissão

estava marcada exatamente por essa questão: começaram como um trabalho

temporário, como “bico”, mas acabaram fincando. Em menor freqüência,

encontrávamos alguns que tendiam a argumentar as ‘vantagens das que a profissão

oferecem’ aos trabalhadores em comparação com outras profissões. Outros diziam

estar na profissão em função do ‘prazer’ que alguns profissionais afirmaram obter

por meio do trabalho57.

Dessas respostas evidenciam-se alguns pontos interessantes. Em primeiro

lugar, parece que a falta de opção é uma sombra perene (imaginária ou não) entre

os motoboys. Contudo, se a falta de opção é um discurso corrente, não podemos

interpretar que essa “falta de opção” signifique o mesmo que “última opção” para que

alguém realize esse trabalho. Isso porque se o trabalho de motoboys é repleto de

situações perigosas e requer um grande esforço pessoal, uma quantidade

importante de profissionais afirmou que o trabalho possui vantagens interessantes

ou lhes proporciona algum prazer. Tudo isso nos leva a compreender que o discurso

da ‘falta de opção’ significa talvez mais provavelmente ‘a melhor das opções’ entre

aquelas possíveis para quem não tem muito a oferecer para um mercado muito

competitivo e exigente. Até porque, em nossas idas aos pontos de encontro de

57 Faremos uma análise mais completa sobre a dimensão do prazer no trabalho no capítulo 06.

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motoboys, de uma maneira muito freqüente percebíamos um embate entre duas

experiências em relação à profissão, embate esse experimentado até por uma

mesma pessoa: de um lado um trabalho perigoso e desgastante, de outro uma

oportunidade profissional com algumas possibilidades interessantes, quando

comparados a outras profissões disponíveis para as pessoas com a mesma

qualificação profissional que esses trabalhadores – vimos acima como Veronese

(2004) define esse paradoxo mediante a utilização do conceito de “risco-

necessidade”. Há, pois, inúmeros prazeres na profissão, além do que o trabalho não

é tão negativamente apreendido pelos motoboys como se poderia inicialmente

supor. Exploraremos esse aspecto com mais detalhe no capítulo seguinte.

Chegamos, enfim, a uma compreensão razoável de quem é esse profissional

em Vitória: pessoas em geral jovens, com pouca escolaridade e que vêem no

trabalho uma opção real de sustento, mesmo que temporário58. Essas pessoas, ao

ingressarem na profissão, percebem entre os riscos da atividade, algumas

possibilidades e vantagens interessantes: empolgam-se com a adrenalina e com os

ganhos que o trabalho proporciona. Ingressam em um trabalho desvalorizado

socialmente, mas, como que em resposta a isso, têm a liberdade de desenvolver um

modo peculiar de lidar com a cidade e com a própria profissão. Entretanto, nem

todos são tão novos assim. Pessoas com mais idade também entram na profissão

por falta de uma opção melhor e vislumbram oportunidades interessantes por essa

atividade.

Claro que esse caminho não é linear. É cheio de surpresas e frustrações.

Muitas vezes, depois de o motoboy ter aprendido a conduzir sua moto em um nível

técnico bem acima do que normalmente as pessoas o fazem, o motoboy começa a

se decepcionar um pouco com a atividade. De repente, como que um “desencanto”,

o sonho rui: os sustos que leva no trânsito, dia-após-dia, ou os acidentes que

presencia em seus caminhos vão corroendo suas fantasias. O trabalhador tende a

se decepcionar um pouco mais com a atividade e a se frustrar em suas expectativas.

Mas aos poucos, os cacos vão se unindo em um novo futuro possível. Dessa vez

mais firme, mais realista. Um processo em que os motoboys se acomodam.

Faremos adiante uma pequena consideração sobre isso.

58 Esses dados mostram uma população de motoboys de perfil semelhante aos identificados por outros pesquisadores no país.

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O fato é que, com o passar do tempo na atividade, os motoboys vão

descobrindo a possibilidade de sentir prazer por meio dela59. Apostam no que o

presente pode fornecer como oportunidade para o futuro, passando a vislumbrar

caminhos que agora se desenham para um profissional que, no início, mal sabia por

onde “conduzir-se” (em todos os sentidos). Não que a profissão tenha se tornado

efetivamente uma “carreira”. Parece que essa é uma limitação ainda (e talvez

eternamente) existente na profissão. Porém, a despeito das limitações, o futuro se

torna uma aposta no seio dessa atividade, aposta muito semelhante a cada trajetória

percorrida: se se sabe em parte como e onde se quer chegar, não se pode prever,

de maneira alguma, como fazê-lo, que desvios e que riscos enfrentar. Para lidar-se

com essa aposta, investe-se em si, em seu domínio, seu autocontrole e nos

conhecimentos adquiridos previamente. Mas a profissão requer também a partilha

das experiências, pois em alguns momentos é com o outro que se contará. Daí,

então, que mesmo sem perceber, vão se constituindo laços próprios de um coletivo

em formação, coletivo esse que torna a atividade capaz de ser gerada e gerida por

cada um, em sua singularidade. Os estilos pessoais também vão sendo

desenvolvidos. Nesse processo de enfrentamento em que o motoboy busca um

misto de garantia de sobrevivência, aumento de seu valor profissional, prazer e

saúde, sem o perceber, o que se produz é efetivamente um trabalho. E em parte, um

trabalho artesanal, traços de um ofício.

Passaremos para o próximo tópico, onde poderemos discutir alguns dos

aspectos desse ‘ofício’.

A atividade dos motoboys: alguns aspectos das condições de organização do trabalho

A profissão é recente, o profissional é jovem, as transformações sociais que

determinam seu desenvolvimento ainda estão em curso. O futuro da profissão é algo

completamente incógnito. De um lado, é muito provável que no país afora uma

59 Segundo nossos dados, por exemplo, é mais provável que os profissionais que trabalham há mais de 3 anos na profissão utilizem mais freqüentemente em seus discursos respostas que evidenciam o prazer na profissão, quando comparados com os profissionais que trabalham há menos de 3 anos.

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legislação específica venha a ser criada na tentativa de reduzir um pouco os efeitos

deletérios do quadro atual; aliás, esse processo já está em curso em vários

municípios do Brasil e um debate nacional sobre o assunto já está posto. De outro, é

muito provável que enquanto houver uma dupla pressão mercadológica sobre a

atividade – de um lado um ‘exército industrial de reserva’, de outro, uma grande

demanda pelo serviço a preços razoáveis –, a regulamentação esbarre nos

interesses mais ‘imediatistas’ característicos do capitalismo nacional,

tradicionalmente escravista, extrativista, segregador, individualista, corporativista,

selvagem, corrupto e despreocupado com o futuro. Para dirimir um pouco esse

conflito, é importante conhecer um pouco mais os detalhes da atividade bem como

seus efeitos na construção de um coletivo de trabalho em constituição.

Retomemos a estória/história do nosso rapaz que entrou na profissão sem

grandes expectativas, pretendendo ganhar algum dinheiro temporariamente, mas

que com o tempo ou foi se frustrando com as dificuldades enfrentadas ou foi

descobrindo as potencialidades no trabalho. Imaginemos que ele não tenha se

frustrado: está satisfeito com algumas vantagens da profissão e tem investido

bastante na exploração de suas potencialidades.

Ele trabalha no centro de Vitória, em uma empresa que faz serviços de coleta,

entrega e resolução de problemas de documento – por exemplo, pega determinado

documento em uma empresa e leva para um determinado banco para pagar uma

determinada guia de recolhimento de algum imposto qualquer, retornando à

empresa contratante do serviço para levar de volta a guia paga. Parte do trabalho

dos motoboys é muito semelhante ao trabalho dos antigos office-boys, que eram em

geral meninos ou jovens que realizavam serviços externos (de banco, cadastro,

protocolo, etc.), das empresas nas repartições públicas e bancos no entorno da

empresa. Com o passar do tempo, o crescimento da cidade foi empurrando as

empresas para fora da região central das grandes cidades, obrigando esse rapaz a

se deslocar por longas distâncias. Ao aumento da cidade seguiu-se o aumento do

trânsito, exatamente em um período em que o tempo de resposta de uma empresa

às demandas do mercado tornara-se mais urgente. A saída pela contratação dos

serviços de motoboys resolvia muito adequadamente essas questões. Porém, a

manutenção de profissionais de moto-entrega para realização de serviços

esporádicos era muito mais custosa que a contratação dos chamados office-boys,

em geral estagiários ou pessoas contratadas por salários mínimos. Aqui já uma

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consideração: por mais “simples” e “desqualificado” seja o trabalho dos motoboys

aos olhos das pessoas, ele requer uma condição diferencial: o trabalhador tem que,

ao menos, saber conduzir uma moto. Isso pode parecer uma coisa menos, mas já é

por si só uma “qualificação” do trabalhador, que o impede de ser um trabalhador

qualquer ou uma versão atualizada do office-boy. Além disso, muito comumente,

exige-se deste trabalhador a posse de uma motocicleta. Esse é outro aspecto que

distingue essa profissão de outras que não exigem muita qualificação. Assim, se a

princípio não podemos dizer que o trabalho como motoboy não requer um amplo

conjunto de saberes formais que o permite diferenciar-se de outras profissões, por

outro lado, seu instrumento de trabalho deve ser de sua posse, que estará também

disponível para o trabalho. Assim, o contratante aluga o corpo e a energia do

trabalhador (sua força de trabalho) esperando que, como um cyborg, esteja colado

nele essa “extensão” de seu corpo, chamado moto (instrumento de trabalho). Isso

tem um custo mercadológico que pressiona razoavelmente o salário para cima,

tornando-a de certa forma uma profissão “especializada”60. Sendo assim, o custo da

manutenção desse serviço por uma empresa de pequeno ou médio porte pode ser

muito superior aos benefícios que ela fornece. Por essas razões, as empresas que

oferecem serviços de moto-entrega vêm se proliferando enormemente.

Voltemos, então, ao rapaz que faz esses serviços de moto-entrega para

empresas contratantes – em uma palavra, seus “clientes”. Ele chega ao ponto de

motoboys por volta das 8h da manhã. Seu “posto” de trabalho é em geral uma praça,

um beco ou uma simples calçada mais larga que os permite ficar esperando por um

serviço qualquer a ser contratado: entregar um lanche, protocolar algum documento,

entregar algum tipo de material. Esse “posto” de trabalho carece das condições

básicas esperadas em um local de trabalho regular. Além de ser a céu aberto, não

há qualquer estrutura de alimentação, banheiro, local de descanso, etc. Um local

inapropriado, improvisado, desqualificado, mas curiosamente “feito com muito

esmero”. Isso porque o trabalhador se apropria do espaço que ocupa, fazendo

bricolagens, tentando, a todo custo, torná-lo seu. Certa vez chegamos a uma das

praças no centro da cidade e verificamos que os motoboys haviam conseguido um

grande carretel de madeira, que originalmente servia para enrolar fios de alta tensão.

60 Especializada aqui é utilizado não no sentido taylorista, no qual o trabalhador especializado é aquele que assume um determinado posto de trabalho no qual deve realizar movimentos simples, repetitivos e cadenciados. Usamos aqui a expressão corrente no país que significa aquele profissional que possui uma determinada qualificação que os diferencia de outros profissionais.

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Este carretel foi transformado em mesa para se jogar carteado e dominó, o que

fizeram continuamente enquanto a mesa esteve no local. Claro que a Prefeitura não

permitiu que esse carretel ficasse por muito tempo na praça, mas esse tipo de

conformação espacial para suas necessidades é algo muito freqüente. Uns dois

meses antes, esses mesmos motoboys penduraram um balanço em uma árvore da

praça para ficarem balançando – brincando, ou melhor, “relaxando” – entre os

serviços contratados.

É interessante observar que os motoboys ficam “do lado de fora” dos

estabelecimentos em que trabalham em praticamente todos os locais que visitamos:

farmácias, pizzarias, empresas de entrega de documentos, etc. No caso das lojas de

autopeças e de entrega de revistas, jornais e malas diretas, algumas

particularidades destes serviços requerem constantemente a utilização da mão de

obra dos trabalhadores para outras atividades, além da entrega em si dos

documentos e objetos. Com isso, nessas empresas, é mais comum encontrar

motociclistas profissionais “dentro” do estabelecimento. De qualquer maneira, por

mais tempo que os profissionais venham a ficar no interior da empresa para qual

prestam serviços, é muito raro em Vitória empresas que possuem espaços

confortáveis para os motoboys esperarem entre as entregas. O motoboy é, portanto,

um profissional que “pertence” à rua e que ali deve permanecer.

Enquanto esperam por uma chamada telefônica do patrão ou da telefonista

“da central”, como alguns dizem, sentados em um banco da praça ou sobre o meio

fio, os motoboys passam o tempo conversando, jogando algum tipo de jogo,

mexendo em suas motos ou realizando alguma outra atividade relacionada ao

trabalho, como é o caso usual das lojas de autopeças, onde os trabalhadores

acabam tendo alguma incumbência diferente, tal como estocar as peças não

compradas, limpar a loja pela manhã, ou fazer café, antes de iniciar suas entregas.

Porém, não é sempre assim. Em alguns tipos de empresas de entrega de

documento, o motoboy não precisa esperar a chamada por um serviço que surgirá a

qualquer momento. Logo pela manhã ele recebe um conjunto de cartas,

documentos, malas direta, encartes de supermercado, revistas ou jornais que deverá

entregar naquele dia em uma determinada região da cidade ou região metropolitana.

Por um determinado período do dia, ou durante todo o dia, sua tarefa não consiste

em atender as demandas de clientes para entregas no momento e sim entregar os

documentos previamente determinados. Tal qual os funcionários dos correios,

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nessas empresas, o trabalhador deve fazer as entregas de uma determinada

quantidade de materiais que, pela manhã, lhe são designadas. Não é incomum que,

após a entrega dos documentos, esses motoboys tenham como finalizada a

prestação de serviços nesta empresa. Cabe, então, ao motoboy a organização da

rota que ele deverá percorrer para realizar o serviço. Assim, antes de iniciar a

entrega, os motoboys que trabalham nessa modalidade de contratação organizam

suas entregas para garantir agilidade na realização do serviço. Aqui não há tantos

períodos de tempo em que os motoboys devam ficar simplesmente “esperando” a

chamada de alguém.

De qualquer forma, mesmo que o serviço dos motoboys seja exclusivamente

de entregas a partir de demandas que surjam num momento qualquer, como o caso

de pizzaria, lanchonetes, drogarias ou empresas de documentos empresariais, a

maneira como o serviço é disparado varia profundamente. Em algumas empresas o

motoboy recebe uma chamada do patrão para ir em direção a um cliente – é o caso

das empresas de documentos – de quem receberá a ordem de serviço. Em outras, o

motoboy já sai com um roteiro mais ou menos pré-determinado para a entrega do

serviço final. Mostraremos que essas sutis diferenças implicam em enorme

complexidade de análise quanto aos saberes desenvolvidos na profissão. Por hora,

basta apenas observar que os serviços realizados por motoboys variam desde a

natureza do material que comumente entrega, até à organização desse serviço no

tempo e na própria organização do trabalho.

Após o recebimento dos serviços a serem realizados, os trabalhadores

partem rumo aos seus destinos. A complexidade de fatores que envolvem a

realização do serviço será mais bem trabalhada durante o capítulo 4, onde

mostraremos quais saberes são requisitados e desenvolvidos pelos trabalhadores

para lidar com as demandas cotidianas. Vale já apontar que as diferenças de

serviços realizados nos levam a ponderar se se trata de uma profissão em que

existem várias naturezas de serviços ou se se trata, na verdade, de várias

“profissões” diferentes que partilham, entre si, o fato de utilizarem a moto para tornar

viável sua realização e que se reúnem sob o nome motoboy. Ou, o que é ainda mais

intrigante: será que o que define determinado tipo de trabalho de motoboys e seus

efeitos no desenvolvimento de saberes é menos o que ele geralmente entrega e

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mais o tipo de empresa que o contrata61? Não responderemos aqui a estas

questões, visto que não fora nosso objetivo explorá-las exaustivamente. O objetivo

da pesquisa visava apresentar as questões gerais do trabalho, muito mais que

compreender suas diferenças intrínsecas. Porém, sempre que necessário,

recorreremos aos aspectos particulares de cada setor de trabalho, quando

acreditarmos que eles nos explicam/ revelam questões importantes para a

compreensão da atividade como um todo.

Um desses aspectos a serem levantados é conhecer em que vem sendo

empregada a mão de obra dos motoboys. Segundo nossa investigação, pudemos

perceber que parte importante dos trabalhadores desse setor trabalha na entrega de

documentos e similares (objetos de papel, incluindo jornais, revistas, etc.), ou seja,

realizam algum tipo de serviço que auxilia na circulação de bens e informações.

Outros bens comumente transportados são os alimentos. Entre os alimentos não se

encontram apenas aqueles destinados ao consumo imediato, mas também amostra

de alimentos para análise por serviços públicos ou empresariais, comércio e outras.

Outros produtos entregues: valores (em geral coletas de contribuições para ONGs

ou pagamento de serviços), objetos de pequenos portes (autopeças, peças de

computador, de eletrodomésticos, etc.) e medicamentos. Porém, não é incomum

vermos motoboys entregando coisas muito inusitadas, justificando as razões pelo

qual os motoboys respondem da seguinte maneira à questão sobre o que carregam

no trabalho: “levamos de tudo!”. Certa vez, vimos um motoboy levando em seu

guidom um rolo muito grande de plástico. Outro motoboy explicou-nos que ele

provavelmente carregava essa mercadoria à frente de seu corpo porque não

coubera no baú – e foi engraçado ouvir de outros motoboys gritando para ele que

ele estava de air-bag. Outra vez, um outro motoboy nos dissera sorridente que

presenciara um acidente com um motoboy que carregava frango congelado no baú e

que ao cair com a moto, os frangos caíram para tudo quanto é lado na avenida.

Logo que tombara com a moto, o motoboy se levantou rapidamente, antes mesmo

de ver se estava machucado, pra catar os frangos que estavam espalhados pela

61 Imaginem um motoboy que trabalhe para uma determinada empresa de documentos que utiliza um certo padrão de relacionamento comercial com seus clientes (contratos pontuais) e um determinado “modelo” de organização do trabalho (remuneração por serviço, controle rígido do tempo). Esse motoboy executa trabalhos de tal ordem diferentes e que requerem saberes também extremamente diferentes dos de outra empresa de documentos que possui formas distintas de relacionamento com o cliente (contrato mensal de entrega de malote) e de organização do trabalho (remuneração fixa, controle rígido da quilometragem, etc.).

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rua, antes que os pedestres roubassem o produto. Os motoboys carregam de tudo

mesmo, de jornal a prótese dentária62.

Sejam quais forem os materiais, é muito comum que os motoboys saibam o

que estão entregando. Com isso, é muito reduzida a possibilidade de que eles

venham a ser utilizados inadvertidamente em atividades ilícitas. Além disso, o

conhecimento sobre as diferentes mercadorias permite o trabalhador a tomar

decisões quanto ao modo de conduzir e de gerenciar o serviço. Isso é importante

não apenas na decisão da dimensão técnica da condução, como, por exemplo, a

maneira de proceder para pilotar carregando 3 botijões de gás cheios ou, o que é

bastante diferente, carregar 2 botijões vazios e um cheio. É também muito

importante saber o que se carrega para que o profissional possa gerenciar melhor as

dimensões espaço-temporais de sua condução e de sua atividade, ou seja, se é

necessário resolver alguma coisa com mais ou menos urgência ou se pode deixar

algo para depois. Daí, então, que não é apenas um direito do trabalhador conhecer o

que se carrega: é uma condição fundamental que lhes permite executar mais

adequadamente suas atividades.

Para facilitar nossa análise, agrupamos os diversos tipos de setores que

utilizam o serviço de moto-entrega nas seguintes categorias63: documentos/ entrega

e coleta de correspondências/ malote/ jornais; farmácia; autopeças/ peças de

computador; alimento/ amostra de alimentos; e a categoria denominada por nós de

diversos, em que se encontram os trabalhadores que trabalham em setores pouco

representativos e que impedem comparação entre eles e com os outros setores, tais

como pessoas que trabalham com entrega de tinta, cosméticos, botijões de gás,

etc64. Vale mencionar que vários trabalhadores exercem suas atividades em mais de

um local na condição de motoboy. Diante deste fato poderia se perguntar qual dos

vínculos produz mais efeito na maneira em que o trabalhador organiza sua vida para

dar conta das exigências da atividade. Porém, para que pudéssemos comparar

aspectos e efeitos específicos dos diferentes tipos de trabalho do setor de moto-

62 Até drogas são atualmente entregues por meio de moto-entrega, como noticiado algumas vezes em jornais e noticiários diversos Brasil afora. 63 Aglutinamos os diferentes tipos de serviço em alguns grandes grupos pela proximidade dos produtos entregues e também pelas dinâmicas específicas de cada setor. Não incluímos os próprios trabalhadores nesse processo. Acreditamos que esse envolvimento poderia ter nos auxiliado de maneira a revelar aspectos que inicialmente não foram percebidos por nós. 64 Por razões que não acreditamos necessário apresentar, reconhecemos os limites desse tipo de categorização, em particular em categorias tais como a diversos ou outros, que nada nos diz. Por outro lado, o uso de categorias nos permitiu analisar aspectos que, de outro modo, poderiam ter passado desapercebido. Por essa razão, decidimos mantê-la em nossas análises.

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entrega no cotidiano e na saúde dos motoboys, utilizamos para efeito de

comparação as respostas dos profissionais que trabalhavam, no momento da

entrevista, em apenas um local como motoboy – algumas exceções poderão ser

empregadas, sendo sempre sinalizadas.

A partir daí, podemos apresentar alguns aspectos que conformam a atividade

dos motoboys. Seguem abaixo alguns elementos importantes encontrados nas

nossas investigações.

Tipo de vínculo

O motoboy de nossa história iniciou seus trabalhos entregando documentos.

Poderia “escolher” entre inúmeras empresas para trabalhar, pois oferta de emprego

para motoboy era o que não faltava. Seu primeiro contrato ocorreu com uma

empresa de motoboys que presta serviço para cerca de 4 ou 5 clientes fixos, todas

empresas de porte médio da capital, que realizam a importação e a exportação de

inúmeros bens e commodities nos portos da região. O contrato que possui é

bastante inapropriado para o trabalhador, tanto que para os motoboys mais antigos,

essa empresa é considerada uma espécie de “escola”: “a empresa x serve para você

aprender os macetes e depois trabalhar com outras pessoas”, é o que diziam por aí.

Além de jogar os valores de mercado muito para baixo, o que despertou a ira de

inúmeras empresas de motoboys da região central do município, a empresa que

contratou os serviços de nosso motoboy pagava um salário fixo, sobre o qual incidia,

a partir do cumprimento de uma determinada meta de entregas, uma porcentagem

da comissão das entregas. A meta, no caso desta empresa, era o valor do piso

salarial da categoria assinado na carteira do trabalhador, descontando todos os

outros custos existentes. Após essa meta, o motoboy ganhava 35% do lucro líquido

do que fazia. Além do salário mais a comissão, o motoboy recebia uma pequena

cota mensal de gasolina, além de itens básicos da manutenção da moto (freio, pneu,

óleo, etc.). Seu contrato era formal, mas o patrão era considerado um explorador.

Depois de uns 6 meses, seu colega, que ficava mais rodando que parado, percebeu

que o garoto estava quase desistindo de trabalhar. Conversou com seu patrão, que

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também era um motoboy que tinha uma empresa que contratava pessoas

informalmente, e convenceu-o a contratar o rapaz, dizendo que ele já estava

“desembolando” todos os serviços. Dito e feito. O patrão do amigo lhe chamou e

acordou com ele que ganharia 55% de tudo que fizera – ou seja, 55% dos valores

brutos. Todavia, não tinha direito a nada: nem pneu, nem carteira assinada, nem

qualquer outro benefício. Se fizesse muito, o salário era bom. Se não fizesse nada, o

salário seria literalmente nada. Fez algumas contas e pensou... Aceitou o contrato.

Sabia que ficaria descoberto, mas o raciocínio financeiro falava mais alto.

A continuação dessa história semifictícia expõe e explica parte da rotatividade

existente dentro da profissão, já abordadas por nós quando discutíamos o trabalho

de Oliveira (2003). Como existem inúmeros tipos de vínculo empregatício na

profissão, e como a diferença de renda salarial é também enorme, os motoboys

movimentam-se sempre em busca de salários melhores ou de melhores condições

de trabalho. Essa variada gama de formas de contrato e de remuneração indicam

uma dinâmica complexa não apenas na mobilidade dos próprios motoboys, mas

também na disputa mercadológica entre as empresas de motoboys. O mercado é

bem disputado do ponto de vista das empresas, por outro lado, a demanda de

serviço também é bastante grande. Em contrapartida, a oferta de mão de obra é

igualmente grande. Como resultado, inúmeras combinações possíveis de um

sistema econômico-financeiro ainda bastante desregulamentado. Aliás, o Plano de

regulamentação da Prefeitura de Vitória previa apenas a regulamentação da

exploração do trânsito. Comercialmente, não existem mecanismos de

regulamentação na forma de contratação da mão de obra totalmente estipulados, a

despeito da Notificação Recomendatória do MPE, citado acima. A complexidade de

contratos e formas de remuneração é um bom exemplo dessa regulamentação. De

qualquer modo, em nossa pesquisa observamos que parte considerável dos

contratos é formalizada, embora existam contratos informais e aqueles que

trabalham como autônomos.

Quando analisamos as particularidades dos vínculos em cada tipo de setor,

percebemos certas tendências que merecem ser anunciadas: é menor a chance de

se encontrar trabalhadores vinculados por carteira assinada nos setores de entregas

de documentos e de alimentação, onde se encontram mais trabalhadores com

vínculos informais e autônomos. Por outro lado, parece que no setor de farmácia há

mais possibilidade de encontrarmos trabalhos com carteira assinada do que em

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outros tipos de serviços. Essas diferenças entre os setores nos levam a crer que os

tipos de vínculos entre motoboys e empresas são dimensões ainda a se consolidar

com o desenvolvimento da história do coletivo de motoboys.

Remuneração

Dizíamos acima que o trabalho no setor de moto-entrega pode ser

relativamente promissor. Considerando-se que parte importante do conjunto de

trabalhadores mal terminaram o Ensino Médio e que não tem nenhuma outra

qualificação formal além da permissão para pilotar uma moto, quando verificamos

que alguns trabalhadores chegam a ganhar R$ 2.000,00, deparamo-nos com um

mundo de possibilidades que trazem ingredientes importantes para compreender a

atividade em questão. É importante, pois, verificar que políticas públicas de

enfrentamento dos índices de acidentes baseadas em raciocínios simplistas – do

tipo “como os motoboys correm muito porque ganham por comissão, a solução para

redução dos acidentes é acabar com o trabalho por comissão” – tendem a não

produzir efeitos desejados, pois é muito provável que não venham a ser

efetivamente empregadas pelos próprios profissionais – a não ser que essas

políticas sejam fiscalizadas muito eficazmente pelos setores públicos

regulamentadores, como sugere o pacote de recomendações do MPT anunciado no

final de 2006. Esse tipo de reflexão, utilizada inclusive pelo próprio SINDIMOTOS,

encontra nos motoboys que recebem por comissão os primeiros inimigos atrozes.

Como poderemos crer que os riscos de acidentes cairão apenas pelo fato de se

ceifar na raiz a principal condição para que os motoboys venham a obter melhores

remunerações, a saber, o trabalho por comissão? E as condições de trânsito não

são importantes assim? E os próprios conhecimentos que são desenvolvidos pelos

trabalhadores para a redução dos acidentes? Será que eles teriam as mesmas

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importâncias que nas condições atuais? A causa dos acidentes tem unicamente a

ver com uma suposta “ganância” dos trabalhadores65?

Seja o que for, o que importa por hora é observar que em Vitória, o salário

médio dos trabalhadores gira entre R$ 600,00 e R$ 700,00, sendo que mais da

metade recebe até R$ 800,00. Apenas poucos recebem acima de R$ 1.500,00. De

qualquer modo, embora poucos ganhem um salário um pouco maior, o fato da

existência dessa possibilidade de remuneração cria referência real para os projetos

de vida dos trabalhadores. Discutiremos um pouco mais sobre isso adiante. Além

disso, é importante dizer, que há diferentes formas de remuneração e que elas

produzem diferenças no montante recebido mensalmente. Por exemplo, aqueles que

trabalham por comissão tendem a ganhar um pouco mais que a média dos outros

profissionais. Essa diferença não é homogênea, mas um sinal de que o trabalho por

remuneração amplia o leque de remuneração dos trabalhadores.

Aliás, a remuneração por comissão ou entrega é citada pelos motoboys e

pelas pessoas em geral como uma das principais causas de acidentes de trabalho

na profissão. Há, na verdade, diversas outras formas de remuneração e que

merecem também ser anunciadas: em um extremo há os que são remunerados

exclusivamente por meio de um salário fixo; em outro extremo, há os que ganham

apenas por produtividade, comissão ou taxa de entrega; entre esses dois extremos,

há uma infinidade de combinações de formas de remuneração. Essas combinações

variam tanto no tocante à existência de metas ou não para o recebimento de

comissão, quanto nas porcentagens de divisão do valor dos serviços realizados,

além das diferentes formas de cobrança das taxas de serviço ou comissão e de

alguns benefícios que parte dos trabalhadores recebem. Para simplificar, podemos

dizer que os trabalhadores trabalham exclusivamente com salário, ou recebem

salário mais comissão, ou são remunerados apenas por comissão. Já quando

dizemos “comissão” ou “taxa de serviço”, estamos nos referindo à basicamente 3

tipos de trabalho comissionados:

65 Não é o escopo desse texto debater essas questões, mas apresentar sobre qual panorama salarial estamos falando, mesmo que consideremos que nos parece existir, sim, relação entre a forma de remuneração e a intensificação dos riscos na atividade. De qualquer modo, compreender os mecanismos de remuneração permite entender melhor que possíveis soluções empreender para compor um conjunto de saídas políticas viáveis que resultem efetivamente em resultados satisfatórios para a redução dos acidentes de trabalho nessa profissão. É bom apenas lembrar que Silva (2006) não encontrou relação estatisticamente significativa entre o tipo de remuneração (por comissão ou salário fixo) e o n° de acidentes sofrido em 12 meses.

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a) aquele em que o trabalhador recebe um valor proporcional ao total

produzido em determinado período – mês, quinzena, semana, etc. –

independente da quantidade total de serviços que ele venha a fazer

naquele mês. Ou seja, não é estipulado uma meta mínima inicial que

deverá ser cumprida antes do motoboy ter direito a receber comissão.

Em geral é o tipo de contrato efetuado em acordos informais nos quais

se negociam percentagens variáveis em torno dos valores brutos

realizados – entre 50% e 65%. As vantagens desse tipo de contrato é

que a maior parte do faturamento vai para o próprio empregado. Em

geral, é nesse tipo de contrato que o trabalhador é mais bem

remunerado;

b) aquele em que o trabalhador recebe um valor fixo, geralmente o piso

acordado da categoria, mais uma remuneração variável em função da

produção. O que diferencia este caso do anterior é que aqui o motoboy

tem uma meta mínima de produção para, a partir de então, receber

participação nas comissões. Em geral é realizado em contratos

formais, nos quais as percentagens negociadas são menores que as

realizadas nos acordos informais – variam entre 40 e 50%. As

vantagens desse tipo de contrato são a segurança de um emprego

formal e a garantia de que, em tempos de pouco serviço, o trabalhador

vai receber, pelo menos, o salário assinado na carteira (em geral, o

piso salarial da categoria, que em Vitória no ano de 2006 estava em R$

393,53);

c) é aquele em que o trabalhador recebe a taxa de entrega cobrada nos

serviços; esse tipo de remuneração se diferencia do exposto na letra

“a” pelo fato de que a taxa de entrega é fixa e não varia em função de

um conjunto de possibilidades: entrega de produto, entrega de cartas,

entrega de alimentos. Longe de ser apenas uma digressão teórica, a

variação da taxa de entrega é uma questão fundamental na gestão dos

serviços de entrega. Voltaremos logo abaixo sobre essa questão.

O que vem nos chamando a atenção foi observar que, ao menos em Vitória, a

remuneração por salário fixo parece ser mais freqüente do que inicialmente

pressupúnhamos. Contudo, essa observação há que ser comprovada em pesquisas

com amostras mais representativas.

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Entretanto, esses modelos de remuneração identificados por nós não

parecem ser os únicos praticados no país. Diniz (2003), por exemplo, encontrou

outras formas de remuneração em Belo Horizonte. Lá existia também uma espécie

de contrato por hora de serviço despendido pelo motoboy para uma determinada

empresa. Por exemplo, imagine uma farmácia que não se interessa pelo contrato

direto de motoboys. Prefere contratar uma empresa de motoboys que irá organizar a

distribuição dos trabalhadores diante da demanda de entrega. Aloca, então,

determinado trabalhador x para ficar 8h pela manhã e tarde e, à noite, aloca dois

outros motoboys que trabalharão apenas 4h na farmácia. Porém, um desses dois

motoboys (y) trabalha das 16h às 18h em um laboratório. Este trabalhador y possui

um contrato com a empresa de motoboys de 6 h, enquanto o motoboy x possui um

contrato de 8h e o outro motoboy, de 4h. O pagamento não é por salário fixo e nem

por comissão, mas por hora trabalhada. Não sabemos se existe esse tipo de

contrato em Vitória. Diniz optou por grandes empresas de motoboy. Em Vitória, até

onde pudemos investigar, as grandes empresas existentes contratam ou por salário,

ou por comissão. É provável que esse contrato por hora também ocorra em outros

locais do país.

É importante dizer também que há diferenças de escolhas de determinado

tipo de remuneração entre em alguns setores. Por exemplo, é muito comum

encontrarmos trabalhadores recebendo remuneração variável entre aqueles que

entregam documentos, enquanto que entre as pessoas que trabalham em farmácia

e no setor de autopeças, a chance de encontramos trabalhadores recebendo salário

fixo é maior. Esse fato pode ajudar a compor, um pouco melhor, o cenário de

produção de suscetibilidades a acidente entre os motoboys. Da mesma forma,

parece não ser por acaso que entre aqueles que trabalham com salário fixo é que se

encontram as pessoas que recebem os menores salários (mais comum entre os

trabalhadores dos setores de farmácia e de autopeças).

Para ilustrar um pouco esse intrincado processo de remuneração, faremos

uma pequena consideração acerca de um grupo em particular de motoboys: aqueles

que trabalham na entrega de documentos de empresas de serviço, grupo esse que

se estabelece na região central do município e trabalha em cima daquilo que

denomina de “letra”. Quando o cliente liga, passa as informações necessárias para

algum contato na empresa (que pode ser desde a telefonista, secretária, um

coordenador, o dono da empresa ou o próprio motoboy) que entra em contato com

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os motoboys, seja por telefone, seja verbalmente. O motoboy, ao receber as

instruções, pega sua moto, dirige-se ao local demandado pelo cliente, retira alguma

coisa nesse local (geralmente documentos, boletos de pagamento, etc.) junto com

as instruções do que deverá ser feito com tais documentos, e se encaminha para o

destino necessário, que pode ser um banco, algum serviço público, algum

consumidor, etc. Ali chegando, entrega ou resolve as questões necessárias,

retornando para a empresa do cliente para entrega dos recibos e coisas

semelhantes ou, quando não há nada para ser devolvido à empresa contratante do

serviço, volta para seu ponto para esperar um outro serviço.

Como funciona a remuneração “por letra”? De um modo geral, é bastante

simples: a região metropolitana de Vitória é mapeada em determinados setores que

recebem uma determinada letra, que vai de A a E. Os setores compreendidos dentro

da letra A seriam aquelas regiões mais próximas ao ponto dos motoboys – a região

do centro da cidade e alguns bairros adjacentes. A letra E seria pertinente àquelas

mais distantes ou mais perigosas. Cada letra tem um determinado valor, indo do

mais barato, (A), até o mais caro, a (letra E). Porém, nem os valores, nem as regiões

em que se compreendem as letras são definidas por legislação, acordo coletivo ou

qualquer outra forma de regulamentação. Assim, dependendo do acordo que uma

determinada empresa tem com seu cliente, um serviço distante (e que pelo princípio

acima explicado poderia ser identificado como um serviço de letra E), pode ser

acordado entre eles como custo de letra C, por exemplo. O motoboy, em geral, não

é convidado a opinar acerca desses acordos. Para a empresa de motoboys, que em

geral não precisa se preocupar com os gastos do deslocamento, vale muito mais a

pena garantir a manutenção de determinado cliente, mesmo que a custo baixo. Mas

para os motoboys, dependendo do serviço, a remuneração não compensa o custo.

Porém, como não podem recusar o serviço, tentam criar estratégias para evitá-lo,

sempre que podem. Entram aí algumas estratégias utilizadas para reduzir esse

custo. Para dar um exemplo, voltemos ao caso em que um motoboy espera na praça

a ordem para realizar um serviço. Seu telefone toca. Ele diz: “quer ver que é

serviço? Aposto que é ruim!!!”. Atende o telefone e pergunta o que é. Diz que não

está mais no ponto e que já tinha ido para Cariacica realizar um outro serviço

deixado no final da tarde do dia anterior, por seu último cliente. Pergunta para onde

é o serviço, depois nega a possibilidade de realizá-lo. Ora, ele ainda estava no

ponto, mas se negou a fazer um serviço ruim. Por que fizera aquilo? Certamente

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porque não compensava. Da mesma forma que o patrão, a lógica de raciocínio dos

motoboys que trabalham por remuneração é sempre financeira e, para garantir suas

necessidades e interesses, lançam mão de recursos para tornar cada serviço o mais

valorizado possível66. Alguns patrões acreditam que tais profissionais são

irresponsáveis. Para nós, trata-se de saberes desenvolvidos ou, conforme a

Ergologia, de renormatização do meio (SCHWARTZ; DURRIVE, 2007).

Um outro caso reflete a astúcia do motoboy em relação ao raciocínio

financeiro. Há serviços que requerem pagamento no banco, ou espera na fila para

entregar determinados documentos. Quando isso acontece, usam de seus

conhecimentos para aproveitar o máximo da situação. Os locais em que é

necessário a espera dos serviços, o motoboy tem o direito de receber pelo tempo

que permanecem nas filas. Denomina-se esse tempo de “espera”, que geralmente

corresponde ao valor de uma letra A a cada meia hora que permanecem na fila.

Porém, em alguns estabelecimentos, a posição da pessoa na fila é regulado por

senha, o que lhes dá alguma liberdade para resolver outros serviços. Dependendo,

então, dos serviços acumulados, eles já ligam para o cliente e dizem que tem fila e

que terão que esperar. Com isso ganham tempo e dinheiro para resolver outros

serviços. Dependendo do dia, essa espera é prolongada propositalmente, para

ganhar mais naquele serviço. Como veremos no capítulo adiante, essa estratégia

não é utilizada à revelia. Vai depender das condições e da capacidade do motoboy

de gerenciar esse tempo, pois alguns acabam se “enrolando” nesses artifícios. Essa

astúcia é uma aprendizagem que requer bastante prudência e estratégia.

Portanto, teoricamente trata-se de um trabalho simples, com poucas

prescrições: um conjunto de prescrições comportamentais, tais como ser respeitoso,

ágil, esperto, paciente, etc.; algumas prescrições morais: não roubar, não agredir

ninguém; um conjunto de prescrições organizacionais: entregar os recibos, quando

solicitado, à empresa, responder sempre ao telefone, quando chamado pela

empresa; e um conjunto de prescrições sociais: respeitar as leis de trânsito, respeitar

as leis de segurança nos bancos, etc. Por outro lado, com um olhar mais atento,

observa-se que essas “poucas prescrições” contém em si fortes normas

66 Este relato foi baseado em um caso presenciado por nós.

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antecedentes67, dando a elas importante contornos na maneira em que se

estruturam. Com isso, esse trabalho “simples” explode em uma diversidade de

situações que requerem do motoboy muito mais que ser um simples e bom piloto.

Além de garantir sua segurança, gerenciar essa diversidade de situações em meio a

exigências de patrões, clientes e da própria sociedade é uma aprendizagem crucial

para o incremento da renda desses trabalhadores.

Em uma conversa com um determinado motoboy, considerado bom pelos

colegas, ele deixa muito claro que um bom motoboy é aquela que consegue

“desenrolar o serviço”, ou seja, consegue resolver várias coisas ao mesmo tempo,

permitindo dar conta dos problemas que surgem na sua execução burocrática – por

exemplo, uma guia preenchida errada e que vence no dia não é levada de volta para

a empresa; um bom motoboy consegue “desembolar” o serviço, resolvendo, sempre

que possível, o serviço por conta própria. Ao mesmo tempo, esse motoboy alega a

importância de resolver de maneira rápida as várias demandas simultâneas –

pegando vários serviços ao mesmo tempo, gerenciando da melhor maneira possível

para garantir tanto a satisfação do cliente, quanto a satisfação do patrão sua própria

renda. Dessa questão, uma determinada relação com o tempo e uma habilidade em

gerenciá-lo se eleva como ponto importante de análise que não poderemos nos

deter por enquanto. É por essa e outras razões que se entende porque o trabalho

dos motoboys varia tanto em remuneração e que não se referem exclusivamente ao

tipo de vínculo e de remuneração recebida no trabalho.

Isso se mostra, por exemplo, quando observamos que o fator tempo de

serviço parece influir significativamente na remuneração como motoboy. As pessoas

com mais tempo de trabalho têm mais chance de ganhar mais que as pessoas com

menos tempo de trabalho na profissão. Da mesma forma, pessoas mais velhas

parecem ganhar também um pouco mais, o que pode ter a ver com a própria

experiência adquirida ao longo da vida como profissional nesta e em outras

profissões.

67 Schwartz diferencia prescrições de normas antecedentes buscando incluir nas dimensões da prescrição das tarefas, em geral de cunho técnico, as dimensões dos desenvolvimentos e aquisições dos saberes coletivos, das relações de poderes, das dimensões dos valores (entre os quais os valores do bem comum), dos debates históricos, dos patrimônios (conceitual, científico, cultural) acumulados em/por uma determinada tradição (história). As normas antecedentes não são de natureza distinta das prescrições, tratando-se mais de uma ampliação de sua concepção. Por outro lado, produzem forte impacto nas relações de trabalho, uma vez em que estão incorporadas na subjetividade que os trabalhadores atualizam/produzem. (TELLES; ALVAREZ, 2004)

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Posse da moto

Um aspecto característico do trabalho dos motoboys, conforme já dito acima,

é o fato de que, em geral, eles são donos de seus próprios instrumentos de trabalho.

É importante relatar que essa dimensão de posse de seu instrumento traz elementos

interessantes em relação à dinâmica de cuidado, investimento e manutenção das

condições de trabalho da moto. Até porque é por meio de uma longa batalha entre

redução do custo de manutenção e busca de melhores condições de trabalho que o

motoboy vai produzindo estratégias para se manter no trabalho da melhor maneira

possível. É muito freqüente se chegar em um ponto de motoboy e encontrar algum

deles mexendo em algo em sua moto. Ainda mais freqüentes são os comentários

que uns fazem sobre as condições das motos de outros. Comentários que são, em

geral, um apontamento sobre algo que não vai bem, ou a partilha de alguma

informação sobre algum local de venda de peças mais baratas, entre outros.

Quando a moto não é de propriedade do motoboy, em geral as empresas

incumbem aos motoboys a responsabilidade sobre sua manutenção. Mas esse

parece ser uma realidade menos comum, pois a grande maioria dos motoboys são

proprietárias de suas motos. Até porque, a posse da moto é algo que se concretiza

pelo próprio trabalho, pois como dissemos, o aumento dos prazos de pagamento

facilitaram em muito a aquisição desse produto em longos períodos, o que facilita,

também, os trabalhadores a trocarem suas moto por modelos mais novos,

minimizando os riscos de não poderem trabalhar por defeitos na moto.

Há, porém, que observar que não é comum os trabalhadores receberem pelo

uso da sua moto. Vejamos o caso dos trabalhadores do setor de documentos: se ali

é mais provável encontrarmos profissionais donos de suas próprias motocicletas, em

contrapartida, nesse setor é mais provável de que não se receba pelo uso da moto.

Assim, o investimento que um trabalhador faz na manutenção e uso de sua moto

tende a pesar sobre sua própria remuneração. Em apenas algumas empresas se

encontram benefícios voltados para a manutenção ou remuneração pela locação da

moto.

Já no tocante à despesas com combustíveis, há que se observar a existência

de uma grande diferença entre os tipos de serviço. Enquanto que nos setores de

documentos e alimentação é mais provável que os próprios motoboys banquem sua

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gasolina ou o conserto de suas motos – e o custeio do combustível terá um efeito

muito importante na maneira de gerenciar seu serviço –, na farmácia e no setor de

autopeças a gasolina é bancada, em geral pela empresa. No caso do setor de

farmácias, é também mais freqüente que a própria empresa custeie a manutenção

das motos, até porque é nesse setor que se encontram as empresas que mais

possuem motos próprias, em comparação com outros setores.

Benefícios

Conforme dizíamos acima, o mercado de trabalho e de serviços dos

motoboys é extremamente complexo, variando em inúmeros aspectos. Diante disso,

procuramos conhecer um pouco mais como vem sendo oferecidos e negociados

benefícios trabalhistas pelas diversas empresas que contratam motoboys em Vitória.

Muitos motoboys alegam receber algum tipo de benefício trabalhista. Porém, quando

observamos aqueles que responderam que recebem algum tipo de benefício,

percebemos logo que a grande maioria refere-se os vinculados ao emprego formal

(FGTS, seguro desemprego, INSS, etc.). Poucos recebem plano de saúde, vale

transporte e vale-alimentação. Tudo isso corrobora a compreensão de que é um

trabalho muito pouco valorizado socialmente e de que os direitos trabalhistas estão

ainda por se conquistar.

Entretanto, é importante registrar que há diferenças significativas de

benefícios em relação aos diversos tipos de setores. Enquanto que no setor de

documentos é menos provável que se receba algum tipo de benefício, nos setores

de farmácia e autopeças encontram-se os locais onde há mais benefícios. Essas

diferenças estão marcadas, também, pelo fato de que é muito mais provável que

pessoas que recebem salário fixo recebam também mais benefícios. Não há, por

outro lado, diferenças em relação à idade e o recebimento de benefícios, mas sim ao

tempo de trabalho, em que as pessoas mais novas tendem a receber menos

benefícios. Esse dado parece se encontrar aos de Neto, Mutaf e Avlasevicius (2006),

que, como vimos acima, afirmam que parece haver uma espécie de “elite” de

profissionais na categoria entre os profissionais mais velhos.

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A experiência de Diniz em Belo Horizonte (ver DINIZ, 2003; DINIZ,

ASSUNÇÃO; LIMA, 2005a e 2005b) inaugura no setor de trabalho dos motoboys, a

utilização da investigação e análise do trabalho por meio de métodos da ergonomia

visando a construção de parâmetros para o Acordo Coletivo da categoria naquela

cidade. Em Vitória não nos enveredamos por esse campo de investigação que pode

ser bastante promissora.

Sindicato

Um discurso muito freqüente trata da relação entre os profissionais e o

sindicato dos motoboys – SINDIMOTOS. Em nossa avaliação qualitativa, ouvimos

freqüentemente uma avaliação negativa dessa instituição. Porém, ao iniciarmos a

aplicação do questionário, percebemos que parte das pessoas que critica o sindicato

sequer é filiada a ele. Aliás, a maior parte dos profissionais que responderam aos

nossos questionários não está filiado a qualquer sindicato.

Era nossa intenção descobrir se havia um determinado perfil do trabalhador

sindicalizado. Em parte, encontramos elementos que nos deram algumas dicas

importantes: eram pessoas tendencialmente mais velhas, com menor escolaridade e

que trabalhavam com empregos fixos, para apenas trabalhadores com 1 vínculo

como motoboys. Porém, como todas essas tendências são fracas, demonstram

apenas algumas pequenas tendências e não uma condição geral do perfil do

trabalhador sindicalizado. Não encontramos nenhuma outra relação entre o fato do

trabalhador ser ou não sindicalizado e outras características, tais como estado civil,

dependentes, acidentes ou satisfação com o trabalho. Parece-nos que um trabalho

recente, sem verdadeira tradição de mobilização sindical e que recebe novos

trabalhadores (e com pouca idade) a cada dia que passa, possui uma condição

razoavelmente difícil de produzir uma cultura de mobilização de massa. Por outro

lado, algumas mobilizações dos trabalhadores vêm chamando atenção das

autoridades. No início de 2008, as mobilizações dos motoboys em São Paulo

alertaram para a necessidade de discutir essa profissão com um pouco mais de

cautela.

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Procuramos também verificar a que sindicatos os trabalhadores estavam

eventualmente vinculados. A grande maioria dos profissionais sindicalizados está

vinculada ao SINDIMOTOS. Os demais se vinculam aos sindicatos dos

trabalhadores do setor em que estão contratados, tais como o Sindicato dos

trabalhadores das farmácias (Sintrafarma), sindicato dos trabalhadores do comércio

(Sindicomerciários), Sindicato dos trabalhadores de contabilidade (Sindicato dos

contabilistas), Sindicato dos trabalhadores de Hotéis, Bares e Restaurantes

(Sindibares), Sindicato dos trabalhadores rodoviários (Sindirodoviários), entre outros.

De um modo geral, a avaliação daqueles que são filiados aos diversos

sindicatos tendem a ser muito negativa, sobretudo a dos que são filiados ao

SINDIMOTOS. Aliás, podemos adiantar que as avaliações negativas do

SINDIMOTOS têm impacto importante na organização da categoria na luta por

melhores condições de trabalho e deve ser revistas, urgentemente, pela direção

daquela instituição.

Treinamento

Durante inúmeras vezes vimos argumentando o fato de que o trabalho dos

motoboys não requer uma grande qualificação profissional. Porém, argumentos

como esses servem, muitas vezes, para justificar a desvalorização desse

profissional. Quando começamos a compreender melhor as dinâmicas da profissão,

percebemos que vários aspectos culturais, subjetivos, de habilidade e de postura

profissional podem ou devem ser trabalhados com os profissionais do setor, tanto do

ponto de vista da segurança, como partilhar conhecimentos que auxiliem na

proteção da categoria, quanto do ponto de vista da sua valorização profissional.

Percebemos, pois, que se trata de uma profissão em que uma das questões centrais

é a maneira como esses trabalhadores se relacionam e negociam diversos aspectos

com outras pessoas – clientes, patrões, pessoas de repartições públicas, colegas,

etc. Essa negociação é sempre mediada pela capacidade de decisão acerca de

parâmetros importantes de deslocamento – o trânsito, a distância, o uso de

combustível, o aumento da renda, etc. Se somarmos a isso a possibilidade de se

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vislumbrar um investimento em autonomia empresarial, como fazem uma parcela

pequena, mas que produz importantes efeitos junto a categoria, observaremos que a

quantidade de cursos possíveis e necessários para os trabalhadores pode ser

fundamental para a melhoria da sua qualidade. E esse aspecto parece ser

claramente compreendido pelos trabalhadores, que consideram importante a

realização de treinamentos na profissão, embora aleguem que não recebam

qualquer espécie de cursos ou treinamentos.

Ora, se a importância dos cursos não é contemplada pelas empresas,

percebemos que se trata de uma compreensão bastante enviesada dos patrões e

empresários que acreditam que um bom motoboy é aquele que é responsável,

atencioso, disponível, cuidados na direção, etc. E podemos inferir que os patrões

das empresas partem do princípio que essas qualidades são inerentes ao

profissional. Parece que essa é uma realidade geral da categoria.

Já no tocante aos principais cursos oferecidos pelas empresas, eles tendem a

enfocar aspectos tradicionais de segurança no trabalho, tais como treinamentos em

torno do modo de conduzir, seguidos das reciclagens, geralmente deslanchadas a

partir de comportamentos inadequados e multas, além de treinamento para

atendimento ao cliente e primeiros socorros. Há ainda alguns relatos de cursos de

manutenção de motocicletas. Tudo isso nos leva crer que o foco principal está na

segurança do trabalhador, por meio do qual se pretende transformar as dimensões

comportamentais por meio das trocas de informação e sensibilização. Adiante

mostraremos algumas falas que se referem aos benefícios como cursos realizados

pela Polícia Militar do Espírito Santo vêm produzindo junto aos motoboys no

município. Entretanto, diante dos limites pedagógicos encontrados nesse tipo de

treinamento, faremos ao final do trabalho algumas sugestões para cursos que,

partindo desta pesquisa, possam gerar alguns efeitos interessantes para os

trabalhadores e, principalmente, para a consolidação do gênero da atividade

profissional.

É bom lembrar, ainda, as considerações que Veronese (2004) faz em seu

trabalho acerca dos limites que as Políticas de Promoção da Saúde, que focam

sobre as práticas de autocuidado e autocontrole, nos cabem aqui de maneira muito

apropriada. Bem como, as idéias de Parker (2000), sobre as práticas de controle da

epidemia da Aids, têm também a contribuir para o campo de intervenção do trabalho.

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Satisfação com a profissão

A despeito de qualquer consideração que podemos fazer acerca da profissão,

procuramos avaliar o grau de satisfação dos trabalhadores com a profissão.

Acreditávamos que a avaliação seria tendencialmente negativa, pois diante dos

riscos de acidente, das baixas remunerações e de um intenso esforço requerido pela

atividade, nos era factível crer que os trabalhadores teriam para com essa profissão

apenas uma relação de sustento, não havendo nenhuma possibilidade de sentido e

prazer. Porém, quando analisamos os dados, observamos que a média de

satisfação com a profissão não é tão baixa quanto esperávamos. Parte considerável

dos trabalhadores (mais da metade) se demonstrava bastante satisfeita com a

profissão. Esses dados são apenas uma dica importante que a despeito de todos os

enfrentamentos, há um investimento subjetivo importante sendo empreendido pelos

profissionais em torno de seus trabalhos. E mesmo que aqueles que o consideram

como bico, enquanto estão nessa condição, tendem a investir seriamente no

trabalho como forma de manutenção da saúde e da segurança. Seja como for,

essas informações nos auxilia a reconsiderarmos nossas avaliações sobre o

trabalho de outrem. No último capítulo mostraremos que essa avaliação positiva do

trabalho está atrelada a indícios de uma espécie de ofício em formação.

Tempo de trabalho na profissão

A profissão dos motoboys não tem muito mais do que 20 anos no Brasil.

Encontramos em Vitória alguns motoboys que trabalham há 15, 17, 20 anos como

motoboy. Ao mesmo tempo, encontramos trabalhadores que estava iniciando a

profissão no dia em que aplicamos o questionário. Com isso, pudemos perceber um

pouco da história profissional dentro da atividade de moto-entrega. Ressaltamos que

não estamos tratando de uma história da profissão, muito menos de um trajeto

obrigatório por qual cada profissional deverá passar. Até porque as variações são

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enormes e as condições de mobilidade dentro da profissão dependerão de inúmeros

fatores que vimos tentando apontar ao longo do texto.

De qualquer maneira, quando argumentamos que a profissão é recente e que

está em constituição, o fazemos pelo fato de que além de jovens, é também

freqüente encontrarmos profissionais que ali trabalham há muito pouco tempo. De

fato, o tempo médio de profissão é de cerca de 4 anos de profissão, sendo que mais

da metade dos profissionais tem até 3 anos de profissão. Observamos que somente

⅓ dos profissionais trabalham na atividade há mais de 5 anos e apenas poucos têm

mais de 10 anos de atividade no setor.

Se pensarmos que o aprendizado de qualquer atividade, por mais fácil que

seja, é sempre um processo histórico, no qual vai se cimentando paulatinamente um

conhecimento coletivo sobre a atividade, e no qual as pessoas que já acumularam

algum grau de experiência acabam assumindo um papel especial, percebemos

possíveis carências para a cristalização de sentido no trabalho dos motoboys, visto

que é potencialmente frágil a troca de experiências entre pessoas novas e mais

antigas no trabalho. Assim, a cada dia um grande contingente de profissionais vem

adentrando as fileiras de trabalho dessa profissão, não encontrando um suporte

histórico que lhes permita dizer, com segurança, que se trata efetivamente de um

ofício, no pleno sentido da palavra. Por tratar-se de uma profissão de risco, esse

talvez seja um fenômeno importante a se observar. Além disso, talvez muito

provavelmente por isso, o caráter de provisoriedade é lançado como um discurso

corrente nas falas desses profissionais. Como dissemos antes, é muito comum

ouvirmos motoboys dizendo “ninguém sonha em ser motoboy” ou “estou apenas

esperando algo melhor”. Por esse discurso, percebe-se que essa não é uma carreira

que se possa querer ter. Até porque, em certa medida, o máximo de ascensão

possível na carreira de um motoboy é ter a sua própria empresa. Como a mobilidade

empresarial não existe, há uma sensação de que a motivação para o investimento

na carreira é muito pequena. Oliveira encontrou uma realidade semelhante em

Salvador: “a rotatividade é alta. Os vínculos dos motoboys são instáveis. Eles trocam

muito de emprego. Não é uma ocupação para a vida toda”. Para o diretor do

Sindicato da categoria, em Salvador, “muda-se de emprego porque não se agüenta

mais as condições de trabalho. Procura-se, então, um outro melhor” (OLIVEIRA,

2003, p. 50). Assim, ao mesmo tempo em que essa não é uma ocupação para a vida

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toda, as condições de trabalho são bastante precárias. Todavia, veremos abaixo que

algumas falas parecem indicar um outro movimento em desenvolvimento, no sentido

de uma construção de modo específico de ser trabalhador.

A dimensão do tempo de trabalho produz diferenças importantes que foram

muito evidenciadas em discursos dos profissionais em nossas entrevistas e oficinas.

Entre elas, destacamos agora uma percepção que se tem na maneira de conduzir a

moto. Para os mais antigos na profissão, são os novatos que se utilizam dos modos

mais agressivos de condução das motos. Os mais antigos em geral alegam que já

passaram da fase de empolgação, de “adrenalina” e que reconhecem mais

claramente as situações de risco do trabalho dos motoboys, por isso conseguem

controlar o modo de pilotar, fazendo-o de maneira menos arriscada. Diante desses

dois estilos diferentes de pilotar a moto, poderíamos supor que entre suas causas

estão as condições sociais de cada um dos motoboys – se casado ou não, se tem

ou não filhos, idade, etc... Vimos, no entanto, que essas não parecem ser por si só

os únicos e significativos aspectos na determinação desses diferentes estilos. O

fenômeno é, pois bastante complexo. Voltaremos a ele logo abaixo.

Um outro ingrediente que poderia ser alçado como influente nas

determinações dos estilos de pilotagem é o conhecimento prévio que o motoboy

teria sobre a condução da motocicleta antes de ingressar na profissão. Por esse

raciocínio, poderíamos supor que os motoboys, por serem pessoas em geral jovens,

entrariam na profissão sem um conhecimento adequado na condução da moto e, por

isso, aprenderiam a pilotar de maneira arriscada, imprudente e apresentando muita

imperícia, acarretando no aumento dos riscos de acidentes. Aliás, esse é um

discurso corrente do senso comum e que pode ser encontrado mesmo junto a

pessoas que trabalham na área de controle do trânsito. Entretanto, observamos que

é bastante pequena a quantidade de trabalhadores que ingressaram na profissão

sem conhecimento prévia para a condução de motocicletas. Parece haver uma

tendência atual das pessoas ingressarem na profissão já com alguma experiência de

condução de motocicletas; pelos nossos dados, essa tendência parece ser mais

recente, pois não é incomum encontramos pessoas mais velhas e com mais tempo

de trabalho ingressando na profissão sem conhecimento prévio de condução.

É difícil entender exatamente as razões para essa tendência. Quiçá pelo fato

de que atualmente a menor dificuldade de aquisição de motocicletas permita adquirir

seus veículos para passeio ou condução ao trabalho antes de escolherem ingressar

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na profissão de motoboys. Quiçá houve uma “popularização” das motocicletas,

levando as pessoas a obterem suas habilitações na condução de veículos dessa

categoria. Quiçá ainda pelo fato de que conforme a fala de muitos veteranos na

profissão, o trabalho de motoboys tenha sido mais remunerado em anos anteriores,

sendo portanto uma opção mais vantajosa para diversas pessoas, mesmo para

aquelas que não possuíam habilitação (embora essa justificativa não se sustenta

com muita firmeza, pois há atualmente mais pessoas trabalhando na profissão do

que outrora).

Seja o que for, dizíamos acima que as pessoas mais antigas na profissão

acusam aos novatos de procederem de maneira indevida no trânsito, o que aumenta

os riscos da profissão, além de denegrir a imagem da categoria como um todo. É

verdade que, segundo nossa experiência com os motoboys, alguns comportamentos

indesejados socialmente, tais como arrancar propositalmente o retrovisor de um

carro que está em um corredor, são muito mais freqüentemente citados pelos

profissionais mais jovens – embora algumas pessoas mais antigas na profissão já

terem relatado esse tipo de comportamento. É verdade também que as pessoas

mais jovens tendem a assumir, com mais freqüência que as pessoas mais velhas, os

seus estilos mais agressivos na pilotagem da moto – embora reiteramos o fato de

que também pessoas mais antigas na profissão declaram realizar comportamentos

arriscados e, muitas vezes, não necessariamente ligados a uma demanda em

particular68.

Ora, se os comportamentos mais agressivos são de pessoas jovens, e se são

elas as que mais chances têm de ingressar com algum conhecimento prévio de

condução de motocicletas, fica fácil deduzir que o discurso corrente de que a

inexperiência produz riscos e estilos mais agressivos é enganoso. Pelo contrário.

Após algum contato com a categoria, os profissionais foram dando nomes de

colegas que pilotam mais agressivamente. Em geral jovens que tinham como

característica principal o fato de possuírem muita destreza como pilotos! Nada mais

enganoso, então, que o discurso da imprudência vir colado ao discurso da imperícia.

68 Não é incomum ouvirmos pessoas que não admitem serem ultrapassados por outros motoboys ou motociclistas. Há, para elas, como que uma disputa no trânsito onde o troféu é ser reconhecido pelo competidor como alguém com destreza e perícia. Um dos motoboys entrevistados por nós, e que trabalha no setor de autopeças, afirmou que só se tornou mais consciente dos riscos desse tipo de comportamento quando realizara um curso de direção defensiva oferecido pelo SEST/SENAT. Aliás, outros vários motoboys do setor de documentos valorizaram cursos semelhantes, fornecidos tanto por esse órgão quanto pelo Batalhão de Polícia Rodoviária da Polícia Militar do Espírito Santo. Iniciativas como essa parecem produzir efeitos reais nas vidas desses profissionais.

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Os próprios motoboys identificam a destreza de colegas e conseguem distinguir

habilidade profissional da habilidade técnica. Reconhecem, também, que a

habilidade técnica requer destreza. Essa é, sem dúvida, desenvolvida pela própria

experiência. Mas o fato de observarem que a “doidera” no trabalho é algo que, por

pior que seja, é legitimado e aceito no grupo, nos leva a considerar com mais cautela

o papel do risco no trabalho. Voltaremos a isso em um capítulo específico. Por hora,

basta guardarmos a informação de que uma das causas do estilo mais arriscado na

condução de suas motos talvez esteja menos atrelada à idade ou ao tempo de

condução e mais à habilidade e destreza que os profissionais adquirem,

desenvolvem ou introduzem durante suas atividades. Veremos, adiante, que esse

fator da destreza, que imprime riscos ao trabalho, pode ser paradoxalmente um fator

de proteção, pois é significativo o risco maior de acidentes entre aqueles que não

tinham conhecimento prévio da condução de motocicletas antes de ingressar na

profissão. No mesmo raciocínio, poderíamos argumentar que o tempo de habilitação

poderia influir no tipo de condução dos profissionais. Mas não conseguimos obter

dados mais claros que nos permita afirmar nada em relação a essa dimensão.

Isso tudo nos parece indicar que a destreza está menos relacionada ao tempo

de condução e mais ao grupo social no qual o motociclista está envolvido, às suas

características psicomotoras ou às experiências dentro da própria profissão. Quanto

a esse último aspecto, é muito interessante observar que independente dos estilos e

conhecimentos prévios na condução das motos, a profissão de moto-entrega

favorece, quase que obrigatoriamente, o desenvolvimento das habilidades técnicas

no modo de pilotar. Vários e vários motoboys irão dizer frases que validam essa

afirmação. E mesmo na técnica da autoconfrontação, era nítida para nós

pesquisadores e para os motoboys, a diferença de condução entre eles próprios e o

motociclista que conduzia o profissional de cinematografia (no caso, um estagiário

de iniciação científica da pesquisa). Ou seja, há uma forma peculiar dos motoboys

pilotarem suas motos, forma essa que não é exclusiva da categoria, mas é muito

mais freqüente de ser encontrada entre esses trabalhadores. Caracteriza-se como

uma capacidade de enfrentar situações que, aos olhos das pessoas não

adequadamente habilitadas, requerem um domínio maior da pilotagem e

demonstram uma condição mais arrojada e mais arriscada de pilotar. Com isso não

estamos afirmando que todos os motoboys pilotam de maneira arrisca, ou pelo

menos estamos tentando distinguir a avaliação externa sobre o que é ou não forma

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arriscada de pilotar, da avaliação dos próprios motoboys. Se os próprios motoboys

reconhecem diferenças de estilo na hora da pilotagem, e se essas diferenças estão

usualmente atreladas à forma de exposição e enfrentamento com o risco diante de

determinadas situações, não podemos deixar de registrar que, a seus olhos, nem

tudo que consideramos como risco é avaliado como tal por eles. Voltaremos a isso

adiante. Por hora pretendemos apenas registrar que a realização das atividades de

motoboys requererá deles o desenvolvimento na destreza dos modos de pilotar. E

lembramos uma vez mais: para se compreender os acidentes de trabalho nessa

profissão, imperícia deve ser descolado de imprudência. Quanto ao efeito do

desenvolvimento do modo de conduzir e seus efeitos no corpo, será objeto de

futuras intervenções e pesquisas.

Além das habilidades técnicas na condução da moto, outras condições

profissionais vão conformando um determinado tipo de profissional. Essa categoria,

por exemplo, é usualmente referida como um conjunto de profissionais mal-

remunerados, que para obterem uma renda salarial maior, acabam por trabalhar em

vários serviços diferentes por horas e horas a fio em cima de suas motos. O filme de

Caito Ortiz afirma isso muito bem. Se não temos como negar esse fato em outros

municípios, nem mesmo da região da Grande Vitória, encontramos indícios de que

pelo menos em Vitória a realidade talvez seja um pouco diferente. Em nossa

amostra, quase 82% dos motoboys afirmaram trabalhar em apenas 1 emprego na

condição de motociclistas, enquanto quase 17% trabalha em 2 empregos como

motoboys e apenas cerca de 1% trabalha em 3 empregos no setor.

Com isso, não queremos afirmar que essas pessoas trabalham em apenas

um local. Afirmamos apenas que em geral são pessoas que trabalham em apenas

em um emprego como motoboy. Os motoboys que trabalham com documentos

alegam, por exemplo, que ele não têm condição de trabalhar também com serviços

noturnos, pois, segundo eles, o horário de término das últimas entregas sempre

varia muito. Por outro lado, nossos dados apontam que os setores mais procurados

para se trabalhar em um segundo turno são os setores de alimentação e farmácia.

Isso se explica praticamente pelo fato de que, por ser um trabalho principalmente

noturno, várias pessoas têm no setor de alimentação a opção de complementar sua

renda como motoboy.

Trabalhar em apenas um emprego como motoboy, e nem sempre sendo essa

a sua profissão principal, também produz implicações importantes na concepção do

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senso comum em relação às condições de trabalho da categoria, pois parece que as

considerações sobre as exigências extremas da profissão, tomando como critério

unicamente a condição de que esses profissionais trabalham muitas horas em cima

de suas motos, podem ser enganosas. Por outro lado, o fato de que essa atividade

profissional contenha um grande contingente de trabalhadores que tem ali apenas

uma complementação salarial, talvez tenhamos com isso implicações importantes na

própria composição da categoria. Se parte desses trabalhadores, sobretudo dos

setores que realizam atividades à noite (pizzaria, lanchonetes, restaurantes), são

executados por pessoas que realizam outras atividades durante o dia, não é muito

improvável que o trabalho como motoboy seja considerado um “bico”. Uma profissão

que é formada com profissionais que a consideram passageira, temporária, corre o

risco de não obter dos profissionais o mesmo engajamento subjetivo quando

comparado a outras profissões em que os trabalhadores invistam mais

coletivamente nas conquistas por melhores condições de trabalho. Sobre esse

aspecto, ver, por exemplo, o que Cru (1987b) dizia sobre os talhadores de pedra que

estavam na profissão por tempo determinado e aqueles que ingressavam na

profissão como ofício. Talvez esteja aí um dos aspectos que auxiliem para que a

categoria de profissionais do setor de motofrete não seja, aos olhos dos próprios

motoboys, tão engajada politicamente. Sabemos, contudo, que essa explicação não

consegue responder a todos os aspectos envolvidos na questão, requerendo de nós

uma apreciação mais detalhada que será dada adiante.

A atividade dos motoboys: algumas contraintes da profissão

Dizíamos durante a revisão bibliográfica que o principal aspecto do trabalho

dos motoboys investigado pelas pesquisas até então realizadas referiam-se aos

aspectos negativos da profissão, destacando-se os acidentes de trabalho e as

condições precárias na atividade profissional. Apenas o trabalho de Neto, Mutaf e

Avlasevicius (2006) deu um pouco mais atenção para aspectos de uma suposta

“cultura” dos motoboys, enquanto que o trabalho de Diniz (2003), chamou a atenção

para aspectos subjetivos em torno da atividade desses trabalhadores, entre os quais

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se destacam os sistemas defensivos e os saberes operatórios desenvolvidos pelos

trabalhadores.

Em nossa pesquisa não pretendíamos nos desdobrar unicamente sobre as

dimensões negativas do trabalho, motivo pelos quais buscamos compreender

aspectos da organização do trabalho, conforme tópico anterior, e efeitos

constitutivos do trabalho no coletivo e na subjetividade dos trabalhadores, que

veremos nos capítulos seguintes. Entretanto, em relação aos aspectos negativos do

trabalho, mesmo que vários deles já tenham sido investigados por outras pesquisas,

achamos pertinentes divulgá-los neste texto, uma vez que o conjunto de informações

produzidas sobre esta ocupação poderá oferecer caminhos que conduzam a

políticas públicas mais eficientes do ponto de vista da saúde e da qualidade de vida

desses profissionais.

De fato, no tópico anterior, quando descrevíamos algumas características da

organização do trabalho dos motoboys, chegamos a discorrer sobre algumas das

contraintes com os quais os trabalhadores têm que lidar para tornar vivível o seu

trabalho. Arriscar-se em um vínculo empregatício informal em que, por meio de uma

remuneração por comissão, o motoboy possa ter aumentado sua renda salarial, são

algumas das condições que compõem um conjunto de questões que tornam a

realização desse trabalho um pouco mais penoso para o trabalhador. Veremos

abaixo alguns outros elementos que dotam o trabalho como motoboys como uma

atividade ainda mais difícil. Tratam-se, pois, de contraintes do corpo: cansaço

ocasionado pelo tempo em que fica em cima da moto; tempo esse que, somado à

idade, torna ainda mais desgastante esse tipo de atividade, pois com o passar do

tempo, o corpo não tem a mesma resistência de outrora; isso sem se considerar os

dias em que a falta de pausas para descanso ou mesmo para almoço só podem ser

recuperados no tempo que tem disponível para o sono; contraintes da resolução de

uma equação quase insolúvel, mas que deve ser equacionada cotidianamente:

demanda de urgência para realizar um serviço / velocidade necessária para se andar

no trânsito / trânsito congestionado, complexo e perigoso / transgressão às normas

de trânsito / vigilância policial e risco de multa; contraintes de sobrevivência: não se

pode errar, pois há o risco de acidentes; além da morte, horizonte real que assombra

quem pilota motos, o risco da sobrevivência inclui, também, o fato de que para

aqueles que não possuem carteira assinada, não possuem direito trabalhista

nenhum, ou seja, se não trabalharem, não ganham nada; contraintes psíquicos:

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excesso de cobrança, pressão para resolver os serviços, cobrança e controle do

tempo e da quilometragem por parte da organização; tensão no trânsito, por causa

dos congestionamentos e por causa de outros condutores.

É claro que a realização dos serviços de motoboys não se desenvolve de

maneira homogênea. É cheia de intensidades que variam com o tempo de serviço,

com o tipo de empresa em que se trabalha, com épocas do ano e até mesmo com “a

maneira como o cara acorda no dia”, como dizia um motoboy acerca das variações

internas que levam o trabalhador a pilotar de uma maneira específica em

determinados dias. De qualquer forma, os trabalhadores do setor de moto-entrega

são levados a perceber, desde cedo, que esse trabalho requer muito mais esforço

do que inicialmente imaginava, principalmente do ponto de vista mental. As pressões

enfrentadas cotidianamente refletem em grande parte a urgência do tempo que

comanda o capitalismo em que vivemos atualmente, que se caracteriza por seu forte

componente de trabalho imaterial. O espaço virou um obstáculo que deve ser

vencido. Os motoboys são parte dos instrumentos que permitem ao capital subjugá-

lo a seu tempo de consumo. Isso, contudo, tem um custo que se expressa em

cenários que intensificam as exigências da atividade.

Para compor parte do cenário, procuramos compreender a quantidade de

horas que o motoboy trabalha cotidianamente e quanto desse tempo permanece em

cima de uma moto. Procuramos ver também quais as disponibilidades de pausa para

alimentação e descanso, bem como se dá o usufruto das férias no trabalho.

Apresentemos dos dados a seguir.

Horas de trabalho e de pilotagem

Analisar apenas a quantidade de vínculo de trabalho como motoboy que um

trabalhador possui pode não ser uma condição apropriada para se avaliar os efeitos

do trabalho na conformação da saúde e das condições de trabalho desses

profissionais. Até porque, com o envelhecimento, o corpo tende a responde com

menos plasticidade às condições de trabalho. Cru e Dejours (1987), demonstraram

como os trabalhadores mais jovens da construção civil francesa acabavam por se

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lançar ao trabalho dando menos importância aos impactos do trabalho no corpo, que

os trabalhadores mais antigos. Perceberam, então, que os profissionais mais antigos

desenvolveram saberes procedimentais que lhes permitia executar suas tarefas com

menos impacto em sua saúde biológico-corporal.

No caso dos motoboys, como dizíamos acima, ainda não há uma longa

tradição de profissionais “anciãos”. Daí, então, que não é muito provável encontrar

um tipo de saber de proteção ao corpo amplamente partilhado entre os

trabalhadores. No entanto, vários trabalhadores com mais tempo de profissão já

reconhecem efeitos que a condução da moto causa ao longo do tempo em seus

corpos: dores na coluna, causadas pela posição e pela trepidação das motos69,

dores nos ombros, por causa do peso do capacete, dores nos pulsos, mãos e

pernas, por causa da pilotagem. Disso decorre que para eles, o tempo em que ficam

em cima das motos é um problema que têm que enfrentar cotidianamente. Com o

passar do tempo, o prazer da pilotagem dá espaço a um certo sofrimento do corpo

com o qual o trabalhador terá que aprender gerir.

Ao inverstigarmos a quantidade de horas diárias médias que os trabalhadores

realizam suas atividades como motoboys, observamos, por meio de nossa amostra,

que menos da metade dos entrevistados trabalha mais do que 10h diárias na

profissão de motoboy. A maioria trabalha entre 6 e 10 horas de serviço/dia. Porém,

verificamos que há diferenças de tempo de atividade diária em função dos tipos de

serviço existente: se os trabalhadores do setor de documentos tendem a informar

mais tempo de trabalho diário, os do setor de alimentação tendem a informar menos

tempo de trabalho por dia. Com isso, fica bastante evidente as diferenças de

trabalho, em termos de carga horária diária, e seus possíveis efeitos na saúde ou na

conformação das características da categoria. Como dito acima, o setor de

alimentação caracteriza-se, sobretudo, por um serviço realizado nos períodos

noturnos (embora não exclusivamente), nos quais trabalhadores do próprio serviço

de motoboys ou de outros setores vêem a possibilidade de obter alguma

69 Alguns motoboys, com mais tempo de profissão no setor de documentos, tendem a preferir baús, no lugar de pastas porque esses baús lhe permitem acomodar as costas mais eretamente enquanto pilotam. Entretanto, para nós, essa preferência se trata, ainda, de uma avaliação bastante particular. Os motoboys desse setor, em sua grande maioria, ainda preferem o uso de pastas, até porque ela protege ao trabalhador nas blitz policiais, uma vez que o motoboy pode se passar por um estudante ou alguém indo para o trabalho em um escritório qualquer. Quanto à trepidação da moto, achamos interessante a sugestão que um determinado motoboy dera para minimizar os seus efeitos. Disse que se houvesse uma mola debaixo do banco, talvez a trepidação pudesse ser minimizada, pois a mola absorveria parte do impacto das vias esburacadas. Quiçá seja essa uma sugestão aplicável para todos os motociclistas.

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remuneração complementar à sua remuneração principal. O horário de trabalho

desses profissionais é em geral das 18h às 24h, resultando daí os valores de 6h/dia

de trabalho. Esse é o período que foi negociado entre as empresas de alimentação

(pizzaria, restaurantes e lanchonetes) e a categoria de motoboys (SINDIMOTOS)

para regulamentar o serviço de entrega de alimentos na capital. Já o trabalho de

farmácia caracteriza-se, em sua maioria, por trabalhadores que possuem uma carga

horária de trabalho em geral semelhante ao setor de serviços (40h a 44h semanais).

Como vimos acima, os trabalhadores desse setor em geral possuem carteira

assinada e recebem seus direitos baseados na CLT, o que garante um controle

maior no respeito à carga horária de trabalho. Já no caso dos trabalhadores do setor

de documentos, as diferenças de investimento profissionais acabam conduzindo a

uma variação maior na quantidade de horas trabalhadas/dia. E isso não apenas pelo

tipo de remuneração característico desse setor (comissão por entrega), mas também

pelas condições específicas do trabalho nesse setor, que imprimem ritmos

particulares quando comparados aos outros setores. Voltaremos a isso logo adiante,

quando tentaremos dar um panorama geral sobre cada setor. Por hora, fiquemos

com a informação de que a quantidade de horas trabalhadas em cada setor dentro

da atividade de motoboys vai variar de maneira a produzir relações particulares com

a categoria. Essa diferenciação parece conduzir a dificuldades na construção

coletivas de estratégias de lutas sindicais e por melhores condições de trabalho.

À quantidade de horas dentro da jornada de trabalho deve se somar a

quantidade de horas que um trabalhador fica em cima de sua moto durante essa

jornada. Essa informação é importante porque a jornada de trabalho, embora um

dado importante, não é suficiente para explicar toda a carga de trabalho, ou seja, a

quantidade de esforço empreendido durante a hora de trabalho. Para tanto,

procuramos compreender qual era a quantidade de horas diárias que os

trabalhadores diziam passar em cima de suas motocicletas70.

Em geral, os trabalhadores alegam ficar cerca de 6,5h/dia em cima de suas

motos. Metade dos trabalhadores admite passa até 6 horas em cima de suas motos,

enquanto apenas poucos afirmam pilotar suas motos durante um período maior que

70 Verificamos que este, assim como outros dados acima são relativamente imprecisos e de difícil avaliação por parte dos trabalhadores. Comparando os dados obtidos no questionário, com nossas observações em campo, podemos certamente informar que há variações imensas quanto à jornada diária e a quantidade de horas que um motoboy passa em cima de suas motos, sobretudo em função dos dias da semana, mês e época do ano. Portanto, os dados apresentados a seguir são apenas referências que podem indicar elementos importantes, mas que devem ser analisados sempre com muita cautela.

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8h/dia. Aparentemente contrário ao que era esperado, ao analisar o tempo em que

os trabalhadores de cada tipo de serviço em particular71 ficam em suas motos,

percebemos uma tendência diferente entre esses dados e a questão da jornada de

trabalho. Se por um lado encontramos uma relação entre aqueles que trabalham

mais horas diárias e que ficam mais tempo em cima de suas motos, por outro lado,

quando analisamos essa questão em particular em cada setor, acabamos não

repetindo essa tendência. Não encontramos, por exemplo, uma tendência de que os

trabalhadores do setor de documento argumentarem ficar mais tempo em cima de

suas motos que os trabalhadores dos demais setores, mesmo que tenham jornada

de trabalho maior. Da mesma forma, não é diferente a carga de serviço entre os

trabalhadores do setor de farmácia e os demais trabalhadores. A única semelhança

se trata dos trabalhadores do setor de alimentação, que tendem a ficar menos tempo

em suas motos que os trabalhadores dos demais setores.

Mais que apresentar um conjunto de informações despropositadas, o que se

pretende aqui é compreender as nuanças do trabalho no setor de moto-entrega.

Temos visto, desde muito acima, que embora se trata de uma categoria que se

homogeneíza, em parte, pelo fato de partilharem o mesmo instrumento de trabalho,

por outro lado fica evidente que as diferenças entre os tipos de serviço são

extensas. Tanto do ponto de vista da carga horária, quanto do ponto de vista da

carga de serviço em que trabalhador fica em suas motos, sem contar com a questão

da remuneração e outros, fica evidente a diferença de demandas e contraintes entre

cada local de trabalho. No caso que acabamos de analisar, por exemplo, fica claro

que o trabalho no setor de documentos requer uma jornada de trabalho maior que

do setor de farmácias sem implicar, necessariamente, em trabalhar mais tempo

pilotando suas motos. Isso porque como a clientela daquele tipo serviço (empresas

de exportação, contabilidade e outros) pode variar em muito a demanda de seu

serviço, tanto no horário em que contrata o serviço, quanto na intensidade da

demanda, é muito importante que esses profissionais estejam disponíveis por um

período maior de tempo durante o horário comercial. Porém, isso não significa que

eles estejam em cima das motos, mas nos pontos em que esperam a chamada dos

clientes ou nos destinos a que foram mandado (repartições públicas, bancos,

empresas, etc.). Não é incomum chegarmos nesses pontos e encontrar pelo menos

71 As análises a seguir são específicas para aqueles que trabalham em apenas um local como motoboy, permitindo comparar com mais exatidão a carga de trabalho em cada serviço.

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alguns motoboys. Já no caso das farmácias, como elas atendem durante horários

mais amplos (das 06h às 24h, por exemplo), e como o contrato de trabalho firmado

entre empresa-motoboy tende a ser formal, o serviço tem que se organizar com 2 ou

3 turnos de trabalho, implicando um controle maior da carga horária de cada turno,

reduzindo assim a jornada em que o trabalhador fica disponível para as atividades

diárias. Por outro lado, embora os trabalhadores de farmácia fiquem menos horas no

serviço, eles estão sujeitos também a demandas intensas. Poderíamos até a inferir

que como a jornada de trabalho é maior nos motoboys que trabalham com

documentos, os trabalhadores do setor de farmácia tendem a ter uma maior

intensidade de serviços por hora trabalhada que aqueles, pois passam o mesmo

tempo do dia em cima de suas motos. Um outro aspecto que também podemos

inferir é que, diferente dos trabalhadores do setor de documentos, que muitas vezes

têm que fazer serviços em repartições públicas ou bancos, os trabalhadores de

farmácia em geral não ficam muito tempo fora das motos para entregar os

medicamentos, pois a entrega dos medicamentos para os clientes é muito mais

rápida do que a permanência em longas filas de banco, por exemplo. Essas análises

estão baseadas em nossas observações do trabalho deles em campo. Em visitas

aos pontos de motoboys, nos pareceu ser mais dinâmico o trabalho no setor de

farmácia que no setor de documentos.

Pretendemos frisar aqui que a idéia de horas em cima da moto não implica

em uma maior carga de trabalho ou em maiores riscos. Os motoboys alegam, por

exemplo, que o local mais perigoso de se transitar não é o centro da cidade, as ruas

internas aos bairros ou as ruas com mais corredores de veículos. Para eles, o local

mais perigoso é a Rodovia do Contorno, onde se encontram inúmeras zonas

alfandegárias e que, por isso, recebe um fluxo extremamente grande de caminhões,

além de ser o contorno da rodovia BR 101 por fora da cidade de Vitória. Essa região

é visitada quase que exclusivamente por motoboys do setor de documentos. Daí,

então, que a definição de uma carga de trabalho intensa deve levar em conta

inúmeras contraintes diferentes e não apenas a quantidade de horas expostas ao

trânsito, mesmo considerando que todos os motoboys aleguem que o trânsito é, sim,

um fator bastante extenuante.

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Horas de sono

Um discurso do senso-comum que vem geralmente atrelado ao discurso do

sobre-trabalho na determinação das causas de acidentes no setor de moto-entrega

é a dimensão do tempo que um trabalhador descansa nos seus horários de folga.

Motivados por reportagens e documentários, geralmente produzidos em São Paulo,

as pessoas são levadas a crer que todos motoboys trabalham indefinidamente,

vindo a descansar apenas 4 horas por noite. Sem pretender aprofundarmos nessas

questões, fica muito evidente para nós que, embora a quantidade do sono não seja

suficiente para avaliar sua qualidade, não nos parece muito razoável sustentar esse

tipo de discurso sobre os trabalhadores de nossa amostra. Mais da metade dos

profissionais alega ter um sono regular entre 6 e 8 horas diárias.

Ao dizermos isso, não o fazemos com o intuito de negar a importância do

sono na determinação de possíveis acidentes de trânsito ou seus efeitos na saúde

do trabalhador. O que procuramos argumentar é que é muito mais provável que as

determinações mais concretas das condições de trabalho e de trânsito tenham peso

muito maior na contribuição para a qualidade de saúde e segurança dos

trabalhadores que a dimensão do sono desses profissionais. Não encontramos, pois,

em nossos dados nenhuma relação significativa entre o fato de já ter sofrido

acidente no trânsito e a quantidade de sono. E isso tanto pela pesquisa qualitativa,

quanto pelas entrevistas e depoimentos tomados em campo.

Uma outra consideração importante é o fato de que não encontramos também

diferenças entre grupos de trabalhadores de setores diversos acerca dessas

questões. Portanto, aparentemente a quantidade de horas de sono é independente

de questões relacionadas ao tipo de serviço. Por outro lado, nada podemos afirmar

sobre a qualidade do sono. Não é improvável que aqueles trabalhadores que

passam por situações estressantes tenham sonos menos reparadores que aqueles

que não estão submetidos a essas condições. Além disso, se o efeito do sono pode

não ser percebido mais imediatamente, é possível que com o passar dos anos a

qualidade do sono de uma pessoa venha a se manifestar de alguma maneira na

saúde desse profissional. Isso, porém, é apenas uma conjectura que não pode ser

comprovada pela presente pesquisa.

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Pausas no trabalho: lanche, almoço e férias

De acordo com nossa investigação, observamos que é muito variável o tempo

que os trabalhadores conseguem descansar. Há momentos repentinos em que

parece que “a correria começou”, como eles dizem, se referindo às situações que

eles não conseguem parar nem para almoçar. Em outros momentos, consegue-se

encontrar vários motoboys juntos conversando, como que esperando algo

acontecer. Parece ser mais comum que os trabalhadores dos serviços de entrega de

documentos da região central da cidade relacionam os horários matutinos, sobretudo

no começo da semana, e os meses de janeiro e começo de fevereiro como os de

menor movimento. Durante o fim de semana é a vez de se ter a “correria” no setor

de alimentação e pizzaria. É interessante observar, porém, que a “correria” não é,

em si, um problema, principalmente para aqueles que recebem por comissão. O

problema é que o ritmo dessa “correria” não é controlável, ou seja, às vezes tem que

se trabalhar excessivamente mesmo quando não se quer.

Há que se observar, porém, que em alguns setores, o tempo de pausa é algo

regulamentado: um direito trabalhista. Os profissionais que trabalham em farmácia,

por exemplo, tendem a respeitar essa condição quase “religiosamente”. No caso dos

trabalhadores de algumas empresas do setor de documentos que fazem entregas de

correspondência – e que se caracterizam pelo fato particular de que após o serviço

eles podem ir embora –, a questão da pausa toma uma outra dimensão: menos

pausa, mais tempo para outro emprego. Enfim, essas considerações estão sendo

lançadas apenas para demonstrar a complexidade da categoria. Isso não impede,

contudo, que venhamos a realizar uma avaliação geral das pausas no trabalho.

Em geral, a grande maioria dos profissionais tem algum tipo de pausa para

alimentação e descanso. O tempo de pausa dos motoboys varia entre 0 e 1h, sendo

que quase metade deles tem algo em torno de 30 a 40 minutos de pausa. Apenas

um quarto dos motoboys entrevistados por nós possui mais do que 1 hora de pausa

para almoço e descanso.

Reiteramos aqui, uma vez mais, que a dimensão da pausa no trabalho dos

motoboys não deve ser analisada de uma maneira simplificada, visto que se por um

lado eles ficam parte do tempo à espera de outros serviços e, por isso, acabam

tendo certo tempo de “descanso”, por outro, esse tempo é, em geral, despendido em

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locais sem as devidas condições e sem a capacidade de definir, exatamente, o

momento em que pode ou quer retornar aos serviços. Além disso, nesses momentos

de “descanso” entre tarefas, os motoboys estão sempre atentos tanto à fila de quem

é o “da vez”, como dizem, que é a seqüência de disponibilidade para os serviços,

quanto em geral estão também atentos ao que se passa no meio de trabalho – a

hora, quem vai para onde, o que poderá aparecer até determinado horário, trânsito,

etc. – para que consigam responder mais eficazmente e de maneira mais bem

remunerada às demandas que poderão surgir.

Uma última consideração em relação às pausas e aos momentos de espera

entre um serviço e outro: nesses intervalos entre os serviços os trabalhadores ficam

geralmente em grupo trocando idéias sobre inúmeras questões, o que produz uma

aproximação fundamental na consolidação de dimensões coletivas no trabalho.

Alguns poucos preferem dormir, “jogados” nos bancos das praças e passeios

públicos, e quase não encontramos pessoas lendo – a não ser revistas

pornográficas. Comumente vemos motoboys jogando algum tipo de jogo para passar

o tempo. O tempo da pausa, como veremos adiante, é um tempo de descanso, mas

também de negócio, de consolidação da identidade e da aprendizagem. Nossa

pesquisa aconteceu exatamente nesses momentos. Sem essas pausas, ela seria

impossível. O valor desses momentos parece ser inestimável para a consolidação de

um coletivo que nos parece ainda bastante deficitário.

Finalmente, no tocante ao usufruto das férias, esse parece ser um benefício

pouco utilizado pelos trabalhadores, que, quando podem, preferem vendê-las, no

lugar de usufruí-las. Já os trabalhadores informais, o usufruto das férias é um “luxo”

que eles não podem se dar. Sem trabalho, não há renda...

Multas

O histórico das multas é um fator curioso no caso dos motoboys. Quase

metade deles alega nunca ter recebido multas. Esses dados parecem não variar em

função da idade, mas parecem sofrem influência do tempo de profissão, sendo um

pouco mais freqüente que as pessoas que trabalham há mais tempo já tenham

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recebido algum tipo de multa. É também mais provável que encontremos

trabalhadores que tenham recebido alguma multa no exercício da profissão entre

aqueles que tenham mais de um vínculo do que naqueles que tem apenas um

vínculo na profissão. Essas duas condições parecem apontar para o fato de que

quem passa maior tempo em suas motos, têm mais probabilidades de receberem

multas. Esse aspecto assemelha-se à “inevitável” história do acidente na profissão,

pois, como veremos, parece que a questão dos acidentes seja quase que um “sine

qua non” na profissão dos motoboys. Aliás, há uma relação significativa entre ter

recebido multas e ter sofrido acidente no trabalho como motoboy, sendo mais

provável encontrar pessoas que já receberam multas entre aqueles que alegam já

ter sofrido acidentes.

Tomando as informações acima, pareceria claro que a questão da pressão

para atingir metas no trabalho seria o eixo condutor que definiria tanto a questão dos

acidentes quanto das multas. Porém, a pressão na atividade dos motoboys não é

produzida unicamente pela questão da meta, mas também por outras dimensões

complexas que atravessam o cotidiano dos motoboys: o trânsito e as relações entre

clientes e patrões podem também contribuir para o aumento da freqüência de

pilotagem em situações de pressão. Porém, quando observarmos que o fato das

pessoas receberem ou não multas não varia em função do tipo de remuneração que

recebem, podemos perceber que essa dimensão tem muito a ver com o estilo de

pilotagem que está envolto em um certo gênero da atividade, marcado, sobretudo,

pelo aumento da capacidade de uso e da gestão das pequenas infrações, inclusive

as do trânsito. Esse gênero tem como um de seus reveses o acidente e a multa. Em

contrapartida, talvez seja exatamente sua existência que permite ao trabalhador

obter maiores remunerações em seu trabalho, pois é significativa a relação entre

aumento de renda e o histórico de multa, sendo mais provável encontrar pessoas

que já receberam multas entre aqueles que recebem os maiores salários.

No tocante aos modos de condução específicos de determinados grupos de

motoboys, é comum ouvirmos motoboys que já passaram por trabalho “na letra” (ou

seja, prestação de serviço no setor de documentos) dizendo que nesse setor o

trabalho é mais “correria”. Em uma determinada atividade de grupo que realizamos

com os trabalhadores, em que motoboys de diferentes setores puderam colocar em

debate as diferenças existentes naquilo que se denomina de atividade de motoboys,

ficaram visíveis as diferenças de percepção acerca do valor simbólico da “correria”

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entre motoboys de diferentes setores. Parece que a tão propalada “correria”

pressupõe, por parte dos trabalhadores que estão no setor de documentos, uma

valorização maior de um determinado modo de conduzir mais agressivo, ousado e

veloz. Por sua vez, nos parece que essa valorização está, em parte, atrelada a

especificidades quase que culturais desse grupo de motoboys. Isso porque, entre

esses trabalhadores, é mais comum encontrar tipos de contrato informais e

autônomos que implicam em modos específicos de lidar com o trabalho e com a

dimensão financeira, além do fato de que é mais provável que os profissionais

desses setores tenham contato permanente com pares. Em outros setores que

utilizam motoboys, a quantidade de motoboys por empresa tende a ser bastante

reduzido – salvo em grandes farmácias, pizzarias e lanchonetes – o que acarreta em

um contato menos freqüente com pares. Decorre daí diferenças no cotidiano de

trabalho, donde se destacam: a valorização da improvisação, a capacidade de

resolubilidade diante das exigências e a capacidade de gerenciamento de vários

serviços simultâneos. Entre os trabalhadores do setor de documentos, nos parece,

também, que se valoriza mais a capacidade individual de antecipação dos riscos e

da virilidade. Essas diferenças entre categorias não estão totalmente claras para

nós, merecendo uma avaliação mais detalhada posteriormente. No momento, basta

para nós registrarmos uma vez mais as dificuldades em se compreender o trabalho

dos motoboys de uma forma geral sem observar especificidades nos tipos de

serviço, de vínculo profissional e de remuneração, especificidades essas que,

segundo vimos observando, parecem produzir efeitos específicos entre os

trabalhadores de cada setor. Entretanto, ao afirmamos tais inferências, não estamos

argumentando que não se pode estudar a atividade profissional dos motoboys como

um todo, mas apenas registrar, quando necessário, a possibilidade de diferenças

existentes entre os motoboys. No capítulo sobre saberes, mostraremos como

aspectos levantados por Diniz (2003) talvez indiquem aspectos mais marcantes de

um determinado grupo de trabalhadores do que uma característica geral do trabalho

dos motoboys.

Antes de seguirmos adiante, é interessante considerar um outro aspecto

acerca das multas recebidas pelos motoboys: os tipos de multas mais

freqüentemente recebidas. Observarmos que o avanço de sinal e a velocidade

respondem pela metade dos casos de multas recebidas. Essas e outras multas

relativas ao modo de condução (ultrapassagem indevida, conversão na contramão,

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andar no acostamento e manter pequena distância) respondem por grande parte das

multas recebidas. Tudo isso reforça a idéia de um determinado modo de conduzir

que condiz um pouco com as percepções que o senso comum produz sobre esse

trabalhador. A relação desse modo de conduzir é, todavia, calcado em fatores

diversos, como vimos mostrando, indo desde as pressões para o trabalho e

chegando até um determinado modo de conduzir característicos de determinados

grupos de trabalhadores.

Finalmente, é importante registrar que a tentativa dos motoboys evitarem

multa se torna uma tarefa de difícil resolução. Os motoboys, pelas razões ditas

acima, têm que percorrer longas distâncias para resolver demandas de serviços em

locais os mais inusitados, às vezes com muito pouco tempo para resolução dos

serviços, enfrentando filas em bancos, ou procurando endereços que ninguém

conhece, ou se deparando com porteiros de edifícios que impedem a subida do

motoboy para a entrega de um determinado documento que deve ser assinado

urgentemente por uma cliente que não pode sair de sua cama, pois está doente.

Nessa miscelânea de fatores, uma das saídas mais comuns que os motoboys

utilizam para resolver os problemas é acelerar no trânsito, realizando pequenas

transgressões das normas. O risco de serem multados é contínuo, mas as

exigências da realização dos serviços também. Realizar o serviço implica em

garantia de emprego, aumento de renda ou mesmo satisfação pessoal (“a pessoa se

sente o máximo”, dizia-nos um motoboy acerca da sensação que a pessoa fica

quando consegue resolver problemas quase insolúveis). O risco de ser multado é

mais um fator que deverá gerenciar. O problema é que na cidade de Vitória, existe

uma grande quantidade de agentes de trânsito, tornando essa tarefa bastante

desgastante.

Além do trânsito, os motoboys se arriscam continuamente quando deixam de

pagar algum tributo da moto para economizar dinheiro. Essa decisão é sempre muito

complicada, mas não é incomum encontrar motoboys com carteiras vencidas, sem

IPVA ou devendo alguma coisa. O risco de blitz é permanente. Diante dessas blitz,

tendem a comunicar aos colegas sobre os locais em que elas estão

acontecendo72. Entretanto, muitos não são contrários a elas, pois acham que as blitz

72 Diniz (2003) referiu à mesma estratégia em Belo Horizonte. Em Salvador, Oliveira informou que a Polícia Militar procedia com menos idoneidade, tendendo a, sempre que possível, extorquir dinheiro dos trabalhadores, por meio de blitz não autorizadas ou outras formas de abordagem. Felizmente, não ouvimos nenhum tipo de relato semelhante em Vitória.

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auxiliam na redução de roubos de motocicletas. O problema é que vários motoboys

são pegos nessas intervenções. Por isso, andar irregular é sempre um risco que os

motoboys acabam tendo que correr, dando à profissão ainda mais razões para

tensões, pressões, enfim, contraintes.

Pressão e tempo

Compreender a dimensão da pressão que os motoboys enfrentam

cotidianamente não é tarefa fácil e não vamos nos deter nela por muito tempo. Os

trabalhos de Veronese (2004), Oliveira (2003) e Diniz (2003), já trazem um grande

conjunto de informações sobre o assunto. Para nós, essa experiência é fruto de um

conjunto de variáveis que se combinam das mais inusitadas formas e que não

podem ser analisadas isoladamente. Como tentamos mostrar, ao risco de ser

multado, soma-se aos efeitos, no corpo, do tempo em que um motoboy passa em

cima da moto, tornando ainda mais desagradáveis as cobranças dos clientes para

que um determinado serviço entregue às 15h30 em um lado da cidade seja entregue

às 16h no lado oposto do município.

De uma forma geral, a palavra-chave para compreender a pressão do

trabalho dos motoboys é o tempo. Quem demanda dos serviços desses profissionais

demanda, inevitavelmente, agilidade na entrega. Ninguém quer um alimento frio ou

pagar uma multa por atraso de recolhimento de um imposto. Tudo é para ontem.

Entretanto, outros aspectos compõem o cenário da pressão. Por mais que os

motoboys digam: “transito não é problema não”, pois segundo um deles “não há

trânsito para motoboys”, já que eles farão de tudo para não ficar preso no meio dos

carros, por outro lado, eles mesmos reconhecem que “o trânsito me estressa

demais”. Isso porque se requer atenção para pilotar com segurança. Veremos

adiante que parte importante dos acidentes é atribuída a condutores de outros

veículos. Este é um discurso comum entre os profissionais dessa categoria. Em

contrapartida, reconhecem que devem estar, o tempo inteiro, atentos ao trânsito:

devem sempre “olhar adiante”.

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200

O trânsito os estressam, também, porque não possuem uma relação tão

amistosa com outros condutores. Alegam que os motoristas de ônibus são muito

traiçoeiros e os de táxi não os respeitam. Reproduzem o discurso de que mulheres e

idosos não sabem dirigir direito e fazem distinção do modo de conduzir de

moradores e usuários de vias de determinadas regiões. Acreditam que em algumas

regiões da cidade (em geral áreas não comerciais) as pessoas usam o carro mais

para passear, para pegar o filho na escola, o que, por falta de prática, não permite

aos motoristas desenvolver a malícia adequada que, segundo os motoboys, o

trânsito de Vitória requer. Enfim, o trânsito é um cenário de relações que

incrementam a dose da pressão no trabalho. Aliás, como morador de Vitória,

podemos afirmar que é muito comum um discurso que avalia os condutores dessa

cidade como entre os piores do país. Esse discurso é também comum entre os

motoboys.

Além do trânsito e do tempo, os motoboys são levados a resolver as

exigências impostas pelo trabalho de uma maneira constantemente controlada, seja

pelas ligações telefônicas, do tipo “você já está aí? Já fez o serviço tal?”, seja pelo

controle da quilometragem que o trabalhador percorreu para a entrega de um

produto, seja pelo controle do horário que o motoboy sai e volta. Esse conjunto de

estratégias de controle dota o serviço de uma intensidade de exigências que elevam

o grau de percepção de pressão para resolver suas atividades.

Diante de todas essas considerações, podemos compreender com mais

profundidade as dimensões por trás dos dados a seguir. Analisando o grau de

pressão para atingir as metas de produção a que estão submetidos os profissionais,

percebemos que os trabalhadores tendem a avaliar o ritmo de trabalho como

bastante forte. Por outro lado, os trabalhadores admitem que essa pressão para

atingir metas não se traduz, necessariamente, em pilotar em situação de pressão.

Acreditamos que parte dessas respostas. Uma possível explicação para esse fato é

de que os motoboys tenderam a afirmar que conseguem manter o autocontrole com

receios de serem avaliados negativamente, pois é socialmente indesejável ser

avaliado que as pessoas não tenham autocontrole e conduzam sob pressão. Seja

como for, o que importa é verificar que embora não tão forte como se poderia

esperar, é muito comum encontrarmos profissionais que estão pilotando em

situações que consideram de extrema pressão.

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A percepção de pilotar em situação de pressão não é constante. Varia, por

exemplo, em função da escolaridade, sendo percebido como submetido a maiores

pressões proporcionalmente ao grau da escolaridade. Outra diferença gira em torno

da quantidade de horas que a pessoa trabalha por dia. Aqueles que trabalham mais

que 8 horas por dia tendem a dizer que pilotam em situação de pressão um pouco

mais freqüentemente que os que trabalham menos do que oito horas na profissão de

motoboy. Essas diferenças podem estar indicando a existência de um determinado

limiar de tolerância às exigências da atividade, que passaria a ser considerada mais

insegura e insuportável quando é ultrapassada. Esse limiar, contudo, é apenas uma

hipótese que deverá ser analisada da maneira apropriada em pesquisas posteriores.

Um fator que torna mais plausível a existência desse limiar é o fato de que as

pessoas que pilotam em situação de pressão tendem a ter sofrido acidentes na

profissão de motoboy de uma maneira mais constante. Esse suposto limiar, porém,

pode ter sido produzido exatamente por essa experiência do acidente. Mas vai

receber outros tipos de influência, tais como a escolaridade e o próprio acúmulo de

esforço exigido do corpo ao longo do tempo. Aliás, é significativa a relação entre a

pilotagem em situação de pressão e a percepção do grau de impacto que o trabalho

causa na saúde. Ou seja, quanto maior a percepção dos impactos deletérios do

trabalho na saúde, mais freqüentemente o motoboy percebe pilotar em situação de

pressão e vice-versa. Diretamente relacionado a esse fato, constatamos que as

pessoas que pilotam em situação de pressão tendem a relatar mais freqüentemente

que sentem dores no corpo. Ainda como que compondo esse cenário do limiar de

pressão, é importante observar que é significativo o fato de que as pessoas que não

tiram férias tendem a considerar que pilotam em situação de pressão de uma

maneira mais freqüente que os que tiram férias.

Independente disso, tentamos demonstrar que a pressão para realização do

trabalho é percebida como alta, da mesma maneira como se pilota em situação de

pressão. O esgotamento no trabalho, acarretado pela falta de férias, pelo tempo que

se pilota motos, pela idade, pela experimentação de acidentes, pelo grau de

percepção dos impactos deletérios do trabalho no corpo, enfim, por uma espécie de

consciência sobre os aspectos deletérios da profissão, tudo isso torna o trabalho

mais difícil, mais penoso. Esse limiar, essa tolerância parcial e temporária aos

contraintes do trabalho é corroborada quando observamos as percepções que os

motoboys possuem do trabalho em sua saúde: mais da metade deles sentem dores

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no corpo. Essa sensação tende a aumentar com a idade e com o fato da pessoa ter

filhos. Há uma tendência de que as dores sejam sentidas também com o passar do

tempo na profissão, com o fato da pessoa trabalhar em mais de um local como

motoboy e com o fato da pessoa trabalhar mais horas como motoboy. Seja como for,

elas indicam um conjunto de elementos que denunciam, de maneira clara, que o

tempo em que os motoboys passam em cima de suas motos, trabalhando em mais

de um emprego, para custear uma família, recendo parcos recursos, com o passar

dos anos de trabalho e com a idade, vão apontando um cenário onde a capacidade

de resistência do corpo começa a se transformar em um fardo para o próprio

motoboy: sua resposta deixa de ser ideal, seu corpo dói, mas, apesar de tudo, ele

não pode parar. Esse parece ser um destino marcado não só pela sombra de

acidentes, mas também pela sombra da dor.

Porém, não podemos ser tão trágicos assim. Há que se considerar em que

medida os próprios motoboys constituirão estratégias para que consigam suportar as

imensas sobrecargas de um trabalho que implica em ficar sobre uma moto em

posições pouco confortáveis. Essa investigação está ainda por fazer, pois apenas

poucos profissionais vêm suportando isso há tempo suficiente para que possamos

fazer qualquer consideração generalizável. Esse estudo aponta, todavia,

possibilidades de estudo dessa temática.

De qualquer maneira, é importante observar que a experimentação dessas

situações de contraintes não se dá de maneira passiva. Por exemplo, no tocante à

relação dos motoboys com o tempo, veremos que ela pode ser menos a de um puro

constrangimento temporal para resolução do serviço, vivenciada como uma pressão

interminável sobre si, e muito mais a capacidade de dominá-lo. Ou seja, não é

apenas a moto que deve ser dominada, mas também o tempo. Quando o faz, o

motoboy aprende outras relações de prazer com o trabalho. Eis um ponto nodal

dessa atividade. Aprender a lidar com as dificuldades, as pressões, os riscos é uma

tarefa coletiva que dota a profissão de ares de ofício. Nesse processo emerge mais

que um trabalhador: emerge um coletivo de trabalho que torna possível que o

trabalho exerça sua função psicológica no máximo de sua potencialidade.

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203

Ao avaliar-se essa dinâmica da pressão, não se pode furtar às questões

sobre o risco de acidente73. Ao analisar a realidade dos acidentes junto à categoria

dos motoboys, deparamo-nos com uma monstruosidade de fenômenos possíveis.

Daí, então, resolvermos apresentar os dados para somente assim fazermos alguma

possível conjectura. De qualquer modo, é importante perceber que os dados trazem,

por si só, inúmeras informações muito importantes.

Acidente

Em primeiro lugar, é muito comum encontrarmos trabalhadores que já

sofreram acidentes nesse tipo de trabalho. Mais de 60% dos motoboys já se

envolveram em acidentes na profissão. Desses, quase 65% ficaram afastados do

trabalho em função desse acidente. Essa, desde já, é uma informação importante

nos cálculos de produtividade da profissão. Porém, se considerarmos que parte da

categoria não possui muitos direitos trabalhistas, parte dos custos desse acidentes

são sentidos unicamente pelo próprio condutor e seus familiares.

Dos que ficaram afastados, mais da metade ficou em até 15 dias e quase

35% ficaram afastados mais de 30 dias. Essa situação fica ainda mais dramática

quando observamos que quase 35% dos profissionais que ficaram afastados

relataram não ter tido acesso a nenhum tipo de benefício social, seja da empresa,

seja do INSS. Tão marcante quanto essa situação é o fato de que é muito comum

encontrar motoboys que tenham conhecido algum motoboy que se envolvera

73 Antes de considerarmos mais detalhadamente essa complexa dimensão, uma outra ressalva quanto ao questionário. Não compreendíamos a complexa dinâmica do trabalho dos motoboys quando elaboramos o questionário. E ao aplicarmos o pré-teste, tentamos apenas observar se era um questionário capaz de se fazer instrumental para a compreensão daquele grupo. Porém, ao longo do contato com a categoria, observamos um fenômeno que não fora pensado quando da elaboração e aplicação do questionário: essa categoria tem uma imensa variabilidade. Não tanto no sentido que as pessoas deixam de trabalhar de uma hora para outra na profissão, mas sim porque, pelo fato de que estão sempre antenados em melhores oportunidades, eles trocam muito constantemente de setores, empresas, regiões de atuação, clientes, etc. Assim, ao investigarmos as dimensões do acidente, não levamos em consideração do tempo em que ele ocorreu. Dessa maneira, como alguns motoboys que responderam afirmativamente ao fato de terem se envolvido em acidentes poderiam estar em outros locais de trabalho na época em que sofreram esse infortúnio, a discussão em torno do tipo de emprego ou forma de remuneração mais perigosa não é senão muito frágil. Resolvemos apresentar esses dados mais pelo fato de que ele pode auxiliar em pesquisas futuras que para elencar dimensões mais afirmativas na compreensão do fenômeno.

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gravemente em algum acidente de trabalho. Quase 90% deles relatam essa

situação.

Esses dados são um indicativo de que o fenômeno do acidente é uma

constante que paira sob o cotidiano incerto desses trabalhadores. Em contrapartida,

eles muito seguramente afirmam: “a gente não pensa nisso não. A gente não pilota

com medo”, como nos disse um trabalhador do setor de farmácia. Por outro lado, se

não pensam de maneira focada nessa discussão, eles empreendem inúmeros

procedimentos visando reduzir os riscos de acidentes, como nos relata Diniz

(2003)74.

Para se compreender a dimensão dos acidentes, requer-se ingressar nos

dados com um pouco mais de cautela. Dizíamos acima que há uma possível relação

entre a condição de pilotar em situação de pressão e o fato de já ter sofrido algum

acidente na profissão. Dizíamos ainda que esse fenômeno poderia indicar algum

limiar de esgotamento da tolerância ao trabalho. Por outro lado, poderia estar

sinalizando uma espécie de limiar de segurança, pois pela experiência obtida, talvez

os motoboys acidentados estejam sinalizando para si próprios que pilotar sobre

determinadas condições pode ser mais arriscado do que gostariam. Esse limiar é um

indicativo de que se deve estar mais atento à situação, o que certamente aumentará

a carga de trabalho e as exigências da atividade, mas, por outro lado, poderá

proteger o trabalhador de outros acidentes.

Porém, a dimensão do acidente está relacionada a outros aspectos ainda

mais reveladores. Se não podemos afirmar que nossos dados estão corretos do

ponto de vista da amostra, não devemos acreditar que a não identificação de relação

estatística entre o risco de sofrer acidentes e a forma de remuneração como mera

conseqüência do erro amostral. Isso porque, por pior que seja a pressão para que

alguém sofra para realizar determinadas tarefas, temos que considerar sempre que

inúmeros fatores farão parte dessa complexa questão que é o mundo dos acidentes,

sobretudo quando consideramos que o ambiente de trabalho dos motoboys é a

própria cidade. Assim, como poderemos argumentar que as pessoas que trabalham

unicamente recebendo remuneração por salário fixo estarão mais seguras na

condução da suas motos, quando observamos que parte dos acidentes é provocada

por outros veículos que desrespeitam completamente a lógica da proteção a qual

74 Descreveremos algumas dessas estratégias no próximo capítulo.

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tem por direito obedecer? Além disso, dados de Silva (2006), corroboram esse

aspecto. Esta autora sugere que o peso da remuneração seja menor do que de

outros aspectos da profissão.

Ao dizermos isso, não estamos negando que não haja relações entre o risco

de acidentes e as formas de remuneração. Vimos que os profissionais que

trabalham por comissão tendem a ficar um pouco mais preocupados com a resposta

às demandas dos clientes e patrões. Porém, ressaltamos uma vez mais:

compreender o mundo dos acidentes requer muito mais que justificá-lo unicamente

por essa razão.

O tempo de trabalho é uma questão importante na experimentação de

acidentes. É mais provável encontrar um trabalhador com mais de 3 anos de

profissão que tenha sofrido acidente que aqueles que tem menos de 3 anos de

profissão. Essa é uma tendência que cresce com o tempo de trabalho. Ou seja, o

discurso dos motoboys nos alerta o tempo inteiro: “todo mundo vai cair um dia”. Esse

parece ser um destino quase que já traçado por e para todos os motoboys. Porém,

enquanto esse dia não vem, luta-se desesperadamente para afastá-lo do seu

horizonte.

O risco de acidente é maior, também, entre aqueles que passam mais tempo

trabalhando como motoboys. O risco de acidentes entre aqueles que trabalham mais

de 8h/dia é superior aos que passam menos de 8h/dia nessa profissão. Outro

aspecto importante é que parece não haver diferença entre o risco de acidente entre

aqueles que trabalham em um ou mais vínculos como motoboy. Mesmo que se

considere que esse resultado seja enviesado em função das imprecisões do

questionário, não podemos deixar de conjeturar que os efeitos de horas-extras na

determinação de acidentes tenham um peso mais importante que o próprio fato da

pessoa ter mais de um vínculo na profissão. Isso parece ser importante quando

pensamos, por exemplo, na fala de um dos motoboys que nos disse certa vez: “não

tem ninguém que não treme quando recebe um serviço às 17h30 para ir para a

Rodovia do Contorno”. Ora, essa “hora-extra” é arriscada não pelo tempo extra de

trabalho que a pessoa terá que passar em cima da hora, mas provavelmente porque

em geral os serviços “de última hora” são comumente os que se requer mais

agilidade em horário em que as pessoas tendem a estar mais cansadas e mais

estressadas em meio ao horário em que o trânsito está mais movimentado. Esse

ponto, porém, deverá ser mais bem avaliado em uma pesquisa futura.

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Por outro lado, se existem fatores de proteção, esses parecem menos ligados

à própria situação social do trabalhador que à sua história no trabalho e, talvez, em

cima da moto. Tanto o estado civil, quanto a existência ou não de dependentes ou a

escolaridade não influem na experimentação de acidentes. Por outro lado, o fato da

pessoa ter ingressado na profissão sabendo ou não pilotar parece um fator que

aumenta ou protege o trabalhador de acidentes. Há, pois, um risco maior de que

pessoas que não pilotavam antes de ingressar na profissão tenham sofrido

acidentes do que aqueles que já pilotavam suas motos antes de se tornarem

motoboys. Talvez uma certa “cultura” do trabalho dos motoboys venha se

desenvolvendo incorporando valores de uma “cultura” anterior: a cultura da moto.

Será? Não o podemos responder por hora. O fato é que não é o tempo de

habilitação que influi efetivamente no risco de acidente, mas que bagagem trazia

antes de se lançar nas ruas para a “correria”. Essa “cultura” da moto, essa “ousadia”

pode configurar um determinado estilo de pilotar que incrementa os riscos na

profissão. Voltaremos a isso adiante.

Verificamos, assim, que inúmeros fatores parecem influir nessa dimensão dos

acidentes. Mas aos olhos dos próprios profissionais, quais são as razões de

acidentes no trabalho dos motoboys?

Segundo os motoboys, as principais razões para os acidentes vêm do modo

de condução da moto, tais como imprudência, imperícia, avanço de sinal, etc.,

seguido de motivos cognitivos, tais como falta de atenção, cansaço, abuso de

confiança, etc., e as dinâmicas do trabalho, tais como a pressão sofrida para realizar

os serviços, excesso de trabalho, etc. As condições de trânsito foram

responsabilizadas por poucos trabalhadores.

É interessante que nessa questão, alguns trabalhadores chegaram a informar

os responsáveis pelos acidentes. A maior parte dos profissionais responsabilizaram

todos os condutores (tanto motoboys quanto condutores de outros veículos) como os

principais responsáveis pelos acidentes. Por outro lado, parte importante dos

motoboys responsabilizou os motoristas de outros veículos como responsáveis pelos

acidentes, enquanto que outra grande parte responsabilizou os próprios motoboys.

Apenas poucos trabalhadores responsabilizaram a empresa e clientes.

A partir dessas informações, pode-se compreender que a maioria dos

trabalhadores parece não relacionar de maneira imediata as questões da

organização do trabalho e os acidentes ocorridos com os motoboys. De qualquer

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maneira, isso nos sinaliza para a importância de se pensar no envolvimento de todos

os condutores na redução de acidentes de motociclistas, pois os motoboys

reconhecem que a determinação de acidentes não é unicamente de

responsabilidade deles.

Análise dos acidentes de moto e motoboys: algumas possíveis ponderações

Andando pelas ruas das cidades, não é muito difícil verificar que quantidade

de acidentes em motos é extremamente maior em homens, quando comparado às

mulheres. Claro que essa tendência reflete em parte as habilitações no país: dados

do DENATRAN informam, por exemplo, que em 2003, 73,27% das habilitações eram

de homens, enquanto 23,73% eram de mulheres. Esses dados não especificam as

categorias de cada uma dessas habilitações, ou seja, quantos por cento das

habilitações de motos são de homens ou de mulheres. Porém, se considerarmos os

acidentes terrestres (BRASIL, 2005), as motos representam 14% do total de

acidentes com mortes entre os homens e somente 7% dos acidentes entre as

mulheres. Além disso, se cerca de 84% das mortes de acidentes eram de homens,

excluindo-se pedestres e não especificados, quando consideramos somente as

motos, esse total vai para quase 90%.

Portanto, uma constatação: moto mata mais homens que mulheres, seja

porque os homens pilotam mais motos que as mulheres, principalmente nas grandes

cidades, seja talvez porque eles se arriscam mais nesse veículo, e, quiçá, porque

mais homens trabalham como motoboys que as mulheres. A questão, por si só, no

entanto, não elucida nenhum aspecto acerca do trabalho dos motoboys, pois mesmo

que a quantidade deles seja expressivamente maior de homens, a falta de dados

não permite comparar estatisticamente a quantidade de acidentes entre motoboys

homens e mulheres.

Independente desse fato, a partir desse dado observamos um dos efeitos da

relação homem-moto, fenômeno de forte impacto cultural em nosso país. A

apreensão da moto como um instrumento masculino leva-nos a considerá-la como

um símbolo fálico por excelência. Basta entrar nos diversos sítios de motoclubes na

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rede mundial de computadores, a Internet, para logo verificar a proximidade entre a

cultura da virilidade e a cultura da moto. É essa proximidade que explica em parte,

de acordo com Neto, Mutaf e Avlasevicius (2006), o orgulho que alguns profissionais

têm de ser motoboy, pois em seu imaginário

pode-se identificar aí o orgulho de pertencer a uma profissão de risco, que necessita de coragem para suportar a adrenalina do dia a dia nos corredores apertados de carros ...Os profissionais do ‘motofrete’ sabem da sua importância e dos riscos que correm, orgulham-se de sua condição de viris desafiadores da ‘selva’ que é o trânsito em veículos pequenos e desprotegidos

Nesse mesmo estudo, os autores entrevistaram motogirls, e identificaram um

preconceito muito grande enfrentado por elas, pois consideram a categoria

extremamente machista. E isso acontece também nas relações patrão-empregado,

pois de acordo com as motogirls, quando os patrões consideravam o trabalho mais

complicado, passavam-no sempre para os homens. Opinião semelhante é da

motogirl Patrícia Vieira, que em uma reportagem para a revista Proteção/SP

(REIMBERG, 2005), informa sofrer um duplo preconceito: por ser motoboy e por ser

mulher. E esse preconceito vem tanto por parte dos condutores dos demais veículos,

quanto por parte dos próprios motoboys.

Será que a virilidade que a moto representa, quando incorporada pelo

condutor, dá-lhe a sensação de se tornar como que um grande deus guerreiro que

pode atravessar qualquer obstáculo, pois será sempre vitorioso? Se não podemos

responder isso com certeza, por outro lado, essa aproximação entre morte de

motocicletas e gênero nos aponta uma segunda categoria possível de análise que

trataremos logo adiante: a questão do risco. Antes, é importante afirmar um outro

dado que corrobora a especificidade da categoria risco junto à análise do trabalho

dos motoboys e o discurso da “adrenalina” que povoa seus imaginários - “para se

tornar motoboy, basta uma moto e coragem para enfrentar o trânsito”, foi o que disse

um motoboy em uma entrevista a Oliveira (2003, p.49) em Salvador; esse mesmo

discurso foi encontrado por nós diversas vezes. Os dados do SIM de 2003 (BRASIL,

2005) revelam que a quantidade de mortes em motos é muito maior entre pessoas

que têm entre 15 e 39 anos - representando cerca de 81% das mortes de

motocicletas em homens e cerca de 73% das mortes de mulheres - que nas demais

faixas etárias.

A condução da moto, além de atrelada a uma cultura da virilidade, é também

representativa de uma cultura da juventude e da liberdade. Vimos no início do

trabalho que durante a segunda metade do século XX, inúmeros filmes

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hollywoodianos retrataram a cultura da moto como um ideário da juventude e da

liberdade, o que acarretou na produção em massa de um determinado modo de ser

jovem, influenciando multidões no mundo todo. Porém, se não nos contentarmos

somente com esse fato, chegaremos logo à conclusão de que conduzir uma moto

exige do condutor um certo uso do corpo que talvez explique um pouco melhor essa

relação da moto com a idade.

Para conduzir uma moto, não basta girar um volante enquanto se aciona

pedais e se passa a marcha. Embora não seja considerado um veículo difícil para se

aprender a conduzi-lo, a motocicleta requer do condutor um uso do corpo que não

tem paralelo na condução de outros veículos automotores. Vários condutores

alegam o prazer da direção, o vento no rosto, a sensação e adrenalina em deitar o

corpo na curva. Além disso, aprender a andar em alta velocidade requer do

motociclista a aprendizagem sobre como se manter em cima da moto. Essa relação

do corpo com o veículo é de tal ordem interessante que os motoboys por nós

entrevistados expressaram algumas frases muito significativas: “você sente que está

pilotando bem quando sente que você realmente domina a moto; quando você sente

que você e a moto são um”. Um outro motoboy nos disse: “Nenhum piloto tem

coragem de andar na garupa com outro piloto. Eu sou piloto, ele é piloto. Eu não

ando na garupa dele não e nem ele na minha”; “por que” perguntamos; “porque não

dá, não tenho coragem. Ele pilota diferente. Eu não vou conseguir acompanhá-lo”;

perguntamos, então “mas é sempre assim?” e ele nos disse: “não, quando a pessoa

está acostumada a andar com você, é como se você e ela fosse um”.

Esses dois pequenos trechos remetem-nos para a questão: a moto é um

veículo que não se dirige simplesmente; ela se pilota, é o que afirmam os motoboys.

Antes de seguir, um breve relato para uma constatação interessante: perguntados,

em momentos distintos, sobre a sensação de pilotar a moto, utilizando exatamente

esse termo, pilotar, ambos, um dos estagiários de iniciação científica da pesquisa

que também tem uma moto e um amigo de um dos pesquisadores, disseram que

eles andavam de moto; não pilotavam... Em outra oportunidade, presenciando a

conversa entre fans de motocicleta – pessoas que fazem trilha, participam de

motoclubes, etc. – observamos que eles se referiam à condução da moto também

como pilotar. Uma constatação, então: existe uma relação diferenciada entre

simplesmente pilotar a moto e conduzi-la, expressa em terminologias distintas –

pilotar a moto e andar de moto. O uso do corpo, aqui, parece ser fator crucial para

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compreender essas diferentes terminologias, além, é claro, de outros fatores que

entram na distinção do uso entre um ou outro conceito, tais como o grau de domínio

da moto exigido em cada situação ou a velocidade da condução. Seja como for,

essa distinção parece clara aos motoboys: perguntado sobre a diferença entre andar

de moto e pilotar, um motoboy me disse que “andar de moto é quando você está

passeando com a família, tranqüilhinho; pilotar é você estar ligado, prestando

atenção a tudo”.

Daí, ao que parece, um adequado uso do corpo é um fator primordial para

que os jovens homens viris consigam “portar” aquele “falo mecânico”, nas palavras

de Oliveira (2003), com a destreza e resistência física necessária que os mais velhos

talvez não tenham com tanto vigor. E a utilização do corpo, dominando aquele

instrumento potente, é uma afirmação de que você é alguém que tem controle sobre

si e sobre sua realidade. Ora, os dados consideravelmente maiores de mortes entre

jovens serão, sem dúvida, explicados pela maior quantidade de condutores nessa

idade. Mas pensar nas dimensões subjetivas da virilidade atreladas a essa faixa

etária nos ajuda a compreender um pouco melhor o que é conduzir uma moto e,

certamente, poderá nos auxiliar a compreender ainda mais o trabalho dos motoboys

e sua relação com o risco cotidiano de acidentes.

O conjunto de dados até agora apresentados não nos permite compreender

em que medida os acidentes fatais envolvendo motociclistas profissionais

representam do total de acidentes envolvendo motocicletas. Por outro lado, nossa

investigação revelou que a amostra de motoboys da cidade de Vitória é, em sua

maioria, de jovens – a idade média de um grupo específico de motoboys do

município foi de 26 anos, sendo que cerca de 81% deles tem até 29 anos e apenas

5% tem mais que 35 anos –, são do sexo masculino, oriundo de classes baixas e de

pouca escolaridade – a grande maioria (95%) só tem até o Ensino Médio – sendo

que desses, quase 34% concluíram nem o Ensino Médio –, poucos cursam

universidade ou freqüentaram cursos técnicos; é muito comum motoboys que nunca

trabalharam em outra profissão. Esse suposto perfil encaixa-se adequadamente com

os dados de acidentes com mortes extraídos do SIM.

Contudo, reiteramos uma vez mais que não podemos concluir que o

crescimento de acidentes fatais com motociclistas está diretamente ligado ao

aparecimento dos motoboys pelas ruas da cidade. A tese central por nós levantada,

é exatamente o contrário. Acreditar que o fato dos motoboys da cidade de Vitória

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estarem submetidos a longas e estressantes jornadas de um trabalho estigmatizado,

com pressões ininterruptas para serem velozes e submetidos a condições quase

desumanas de trabalho, explicam definitivamente as altas taxas de mortes em

motociclistas seria desconsiderar um fato fundamental, levantado por Diniz: “os

motociclistas profissionais desenvolveram saberes, manifestados através de

inúmeras estratégias e modos operatórios que garantem o atendimento dos clientes

com pontualidade, presteza e confiabilidade, bem como a sua sobrevivência” (2003,

p. 30). Além disso, uma certa cultura da motocicleta parece também determinar o

modo de se conduzir a moto, exercendo um papel importante tanto nos dados

coletados e, também, na maneira em que os motoboys pilotam suas motos, cultura

essa que supomos auxiliar em certa medida aos trabalhadores a realizarem suas

atividades com a eficiência necessária e com o mínimo possível de riscos.

Na medida em que a experiência em qualquer atividade vai permitindo ao

trabalhador desenvolver um conjunto de saberes que o levam a dominar essa

atividade, acreditamos que ao iniciar suas atividades de motoboys, os antes

“condutores de motos” acabam dominando essa máquina e se transformam em

pilotos. E isso é um fenômeno inevitavelmente coletivo. Retomemos um trecho da

frase dita logo acima: “eu que sou piloto, ele que é piloto”. Trata-se, sem dúvida, de

um reconhecimento dos pares. Um motoboy estava se referindo ao colega, ao

mesmo tempo em que tocava no ombro dele. Por outro lado, é mais comum um

motoboy, ou outro motociclista qualquer, se referir a um terceiro motoboy, não

presente na conversa, como motoqueiro. Portanto, nomear-se como piloto é

ascender a, e partilhar de, uma categoria que, a despeito de toda a estigmatização

social, não é para qualquer um. Requer coragem sim, como disse o motoboy de

Salvador, Vitória ou de São Paulo, mas requer, sobretudo, experiência. Experiência,

não para se acostumar a um trabalho penoso, mas para aprender a construir-se

como uma nova pessoa, dada aquelas determinadas condições. Um exercício ativo

de produção de novas formas de se viver.

Um outro exemplo: determinado dia chegamos em um grupo de motoboys

entre os quais havia um rapaz que estava trabalhando há poucos dias. Ele estava

literalmente desesperado. Dizia que não queria aquilo não, de forma nenhuma. Por

que o desespero?, ficamos pensando. Ora, isso é simples de responder: certamente

porque não é um trabalho fácil. A “loucura”, tão propalada, só vem com o tempo. É

uma conquista que vai sendo pouco a pouco partilhada por um coletivo que parece

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estar sendo configurado em torno de um gênero da profissão (CLOT, 2006). Antes

disso, a pessoa terá que reaprender a ser e se reinventar. E pelo que pudemos

inicialmente constatar, esse processo, no caso dos motoboys, parece relativamente

penoso. Pena que não tivemos oportunidade de acompanhar mais intensamente

aquele rapaz, para saber como está sendo sua reconstrução de si, se é que já não

desistiu do trabalho!

Um outro fato importante: menos contundente que Neto, Mutaf e Avlasevicius

(s.d.) afirmam, ao negar a existência de uma suposta “identidade” “motoboy”,

parece-nos que os motoboys identificam-se parcialmente em torno de algo que aqui

chamamos de coletivo. E se não se trata ainda, é claro, de uma categoria tão

especial quanto a dos médicos ou jornalistas, por exemplo, pois ainda não

encontramos nenhum motoboy que acredita estar em uma profissão definitiva. Por

outro lado, a própria população em geral parece já perceber isso, tanto pelo aspecto

negativo – quando um motoboy é agredido, logo juntam outros para apoiá-lo –,

quanto pelo aspecto positivo: certa vez, um dos estagiários do Programa de

Iniciação Científica presenciou um acidente de um motoboy. Parou para verificar o

que estava acontecendo. Junto dele pararam mais outros 3 motoboys e logo

chegaram mais outros. Além dos motoboys, alguns transeuntes do local foram se

juntando para ver o ocorrido. Logo depois chegou a polícia e a ambulância. O

bolsista aproveitou a ocasião e dada a não gravidade da situação, começou a

entrevistar as pessoas do local. Quando conversava com outros motoboys, chega

uma senhora que os parabeniza pelo companherismo dos motoboys, e diz ficar

admirada com a solidariedade do grupo.

Talvez essa fala da senhora tenha uma explicação: poucos dias após o

acidente, este mesmo bolsista presenciara um outro acidente com motoboy no

mesmo local, dessa vez um pouco mais grave. Como também utiliza a moto como

meio de transporte, e pelo fato do acidente ter sido um pouco mais grave, decidiu

não fazer nenhuma entrevista. Na verdade, resolveu ir embora, pois ficara chocado

com o aspecto da perna do motoboy, que se quebrou em dois locais em formato de

z. Será, então, que essa senhora já está tão acostumada a presenciar motoboys se

acidentando nesse local, levando-a a perceber que eles realmente param para

socorrer seus colegas? Será isso uma triste constatação? Independente disso, esse

fato se assemelha a um anúncio de uma certa cultura profissional de uma nova

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categoria que vai se firmando como presença constante entre as ruas das grandes

cidades.

Sendo assim, se um determinado conhecimento sobre si e sobre o uso da

moto seja uma tarefa que deverá ser lograda individualmente por cada um dos

trabalhadores que querem ingressar nessa profissão, por outro lado, ao que parece,

essa tarefa não vai se dar exclusivamente de modo solitário. Uma cultura partilhada

pelos motoboys, ou pelo menos uma “pré-cultura”, parece ser alguma coisa que

torna possível trabalhar naquelas condições. Isso é um outro aspecto que

pretendemos confirmar ao longo de nossos trabalhos futuros.

Em suma, os dados de acidentes fatais envolvendo motocicletas nos apontam

que a condução da moto envolve, de fato, maiores riscos que outros meios de

transporte. Porém, diversos artifícios culturais, simbólicos, sociais e um conjunto de

estratégias pessoais e coletivas tornam o trabalho de motociclistas profissionais

tolerável e, quiçá, menos perigoso, além de eficiente. Assim, se é importante

compreendermos que esse trabalho está continuamente envolvido em situações de

risco, deveremos partir para a compreensão de como os motoboys constroem

estratégias para lidar com ele ou, ainda, tentar descobrir se os comportamentos de

risco têm algum sentido ou causa específica relacionada a tal ou qual condição de

trabalho.

Passemos para a compreensão desses saberes.

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4. OS SABERES DA ATIVIDADE DOS MOTOBOYS: COMPETÊNCIAS PRODUZIDAS PELOS TRABALHADORES

No texto da Classificação Brasileira de Ocupações – CBO, publicada em 2002

pelo Ministério do Trabalho e Emprego (BRASIL, 2002), a profissão dos

motociclistas profissionais é denominada “Motociclista no transporte de documentos

e pequenos volumes”, ou, em reconhecimento ao termo popular da profissão,

“motoboy”. Para realizar as descrições das ocupações identificadas no país, a

comissão organizadora da CBO escolheu como base do empreendimento o método

Dacum - Developing a Curriculum. Este método de descrição da atividade envolve

um grupo de 8 a 12 trabalhadores de cada setor que deverá descrever, a partir da

intervenção de um facilitador e seguindo algumas diretrizes previamente estipuladas,

as atividades desenvolvidas a partir de sua própria experiência profissional (SILVA;

YOSHIDA; GUERRA, 2004; DELUIZ, 2001). Todo resultado descritivo é, então,

revisto por um comitê também de trabalhadores, que tem a função de consolidar e

validar o processo realizado pelo grupo inicial (BRASIL, 2002). Baseado neste

método, a CBO estabelece um conjunto descritivo das condições gerais do exercício

da profissão, bem como a formação e a experiência necessária para seu exercício,

as atividades e competências envolvidas na execução da profissão e as ferramentas

e equipamento (recursos) que são utilizados no cotidiano de trabalho.

Entre as atividades do motoboy, a CBO descreve detalhadamente as tarefas

que compõem cada um dos grupos de atividades realizadas pelos motoboys, a

saber:

a) a execução de entregas e coletas de documentos, objetos e

encomendas, compostas por tarefas tais como entregar talões de

cheques e cartões de crédito, entregar brindes, encomendas, convites,

jornais e revistas, entregar botijões de gás ou entregar resultados de

exames médicos;

b) a roteirização das coletas e entregas de documentos, objetos e

encomendas, que incluem as tarefas de analisar entregas e coletas,

separar pedidos de entregas e de coletas por áreas, ordenar entregas

priorizando cargas perecíveis ou calcular necessidade de combustível;

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c) a realização dos procedimentos de coletas e entregas, sendo que esta

atividade se diferencia da descrita na letra a na medida em que

envolve os procedimentos que acompanham cada uma das entregas.

Entre esses procedimentos encontram-se: preencher protocolo de

entrega, colher assinatura do cliente, emitir recibo da coleta/entrega ou

subsidiar empresa na atualização do cadastro de clientes;

d) realizar serviços bancários e de cartórios, que se executa por meio de

tarefas como: descontar cheques, pagar títulos, realizar transferências

de valores entre bancos ou reconhecer firmas em documentos;

e) conduzir o veículo com segurança, que se realiza por meio do respeito

ao limite e à carga do veículo, ao respeito à legislação de trânsito, à

direção defensivamente ou à redução da velocidade em condições

adversas;

f) conservar o veículo, composta por tarefas tais como verificar nível de

óleo e combustível, regular freios, trocar óleo e manter documentação

do veículo em ordem;

g) demonstrar competências pessoais.

Oliveira (2003) reconhece que o trabalho descritivo da CBO resume

adequadamente o trabalho dos motoboys. De fato, dentre as atividades

especificadas em cada um desses itens, algumas parecem ser bastante evidentes

aos olhares de quaisquer pessoas, pois fazem parte das exigências impostas pelo

serviço, tais como transportar refeições, identificar-se aos clientes ou realizar

depósitos bancários. Entretanto, aos olhares mais atentos, outros aspectos descritos

na CBO parecem ser mais uma normalização sobre o comportamento esperado do

que uma prática real do trabalho dos motoboys. Basta citarmos, por exemplo, todo o

conteúdo descrito na atividade “conduzir veículos com segurança”. Se é inegável

que os trabalhadores procuram conduzir suas motos com a máxima segurança

possível – até porque ninguém sabe mais do que eles acerca dos riscos que correm

cotidianamente nas ruas das cidade – os procedimentos para a garantia da

segurança não se dão necessariamente por meio do respeito ao limite e à carga do

veículo, da legislação de trânsito ou da utilização da marcha adequada com a via.

Na verdade, dentro desse campo, inúmeros aspectos e aprendizagens cotidianas

vão se agregando aos saberes dos motoboys, lhes permitindo conduzir suas motos

com o máximo de segurança possível. Deficiências semelhantes podem ser

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encontradas em vários outros aspectos da CBO que não cabem no escopo desse

trabalho.

Enfim, o que pretendemos afirmar é que essa discrepância entre o descrito e

o realmente percebido nas ruas não se deve à qualidade do método ou do

procedimento da descrição, embora críticas a esse modelo e a outros semelhantes

podem ser encontradas em alguns artigos75. É de nossa opinião que os elementos

acima descritos refletem em parte as atividades que os motoboys realizam, até

porque foi realizada por meio da participação direta dos trabalhadores, esforço esse

que reconhecemos como fundamental. Entretanto, a simples utilização dos

trabalhadores como informantes, embora importante, não garante a compreensão de

todos os aspectos envolvidos em seu trabalho, uma vez que a verbalização

mobilizada por simples entrevistas, na ausência de um dispositivo que garanta um

determinado tipo de análise do trabalho, costuma reiterar o prescrito, até porque

vários aspectos do trabalho não estão totalmente acessíveis à consciência ou não

estão bem estruturados para o próprio trabalhador (GUÉRIN et al. 2001;

SCHWARTZ; DURRIVE, 2007) 76.

Além disso, se tomarmos como referência o conceito de atividade conforme a

Ergonomia e a Ergologia (SCHWARTZ; DURRIVE, 2007; LAPLAT; HOC, 1998;

CLOT, 2006), veremos que os limites epistemológicos do método escolhido não nos

permitem compreender as dinâmicas do trabalho subjacentes às tarefas e às

atividades descritas. Isso porque, entre outras coisas, esse processo descritivo não

deixa explícito quais os papéis exercidos pelos trabalhadores e pelo coletivo de

trabalho na execução da atividade. Explicita, ainda menos, quais fatores estão

sendo mobilizados e envolvidos no e pelo trabalhador, sejam eles corporais,

perceptivo, cognitivo ou intuitivo; quais os contraintes e infidelidades que o meio de

75 Ressaltamos a importância do papel que os saberes dos trabalhadores exercem nesse método de descrição da atividade. Lembramos, contudo, que a própria ergonomia admite que não é incomum que os próprios trabalhadores tendam a explicar suas atividades destacando aquilo que é prescrito. Sobre críticas mais específicas aos métodos funcionalistas, entre os quais se encontram o Dacum, ver Deluiz (2001) ou Lima (2005). 76 Não é intenção deste trabalho realizar uma análise crítica sobre a importância ou valor político-institucional da CBO. O que se pretende é partir desse exemplo para afirmar que descrições de atividades ocupacionais tendem a solapar a vida das pessoas que trabalham, o que pode acarretar, em caso de utilização dessas descrições de maneira direta, em perdas potenciais para a qualidade de vida, para a saúde e para o desenvolvimento das pessoas que estão diretamente envolvidas na atividade. Essas descrições tendem a ser ainda mais graves se considerarmos que um dos sustentáculos de toda a área da Gestão de Pessoas (ou Recursos Humanos), tem como uma das bases estruturais a descrição e o preenchimento dos cargos, a despeito do enorme esforço para tornar essa descrição mais dinâmica e capaz de responder às alterações cotidianas do mundo do trabalho (LUCENA, 1999; BOHLANDER; SNELL; SHERMAN, 2003; CHIAVENATO, 1999). Esse processo tende a ser, em larga escala, um procedimento claramente burocrático, prescritivo e normativo, produzindo efeitos consideráveis na maneira em que se organizam currículos de formação profissional, processos seletivos ou recolocação profissional.

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trabalho lhe impõe (CANGUILHEM, 1995); como o coletivo, em toda a complexidade

que ele representa, o mobiliza durante a atividade – coletivo esse que envolve desde

os suportes culturais, sociais, de gênero (CLOT, 2006) até a maneira como se dá o

uso de si pelos outros e a formação das entidades relativamente pertinentes

(SCHWARTZ; DURRIVE, 2007). As descrições do trabalho dos motoboys na CBO

aparentam ser a realização de atividades e tarefas que são independentes do

próprio trabalhador e que se formam de desdobramentos “naturais” da própria

ocupação, seja pelo próprio propósito da ocupação – entregar mercadorias –, seja

pela obediência a seus processos prescritivos: separar pedidos de entregas e de

coletas por áreas, levantar referências do local da entrega, etc.

O que a CBO não revela – e nem é sua intenção, é bom que isso fique claro –

é que parte das atividades descritas é fruto de uma composição de saberes

desenvolvido pelo coletivo para dar conta das tarefas solicitadas e que tornam os

objetivos da ocupação77 mais eficientes, com mais segurança para si e mais

qualidade para os clientes (DINIZ, 2003). Nesse sentido, não é possível verificar nas

tarefas descritas pela CBO quais são, quando são e como essas tarefas são

transgredidas, ou quais os motivos que conduzem à transgressão. Além disso, o

método descritivo da CBO tende a tornar a apreensão da atividade como um

fenômeno estático e prescritivo, mesmo que se admita sua transformação ao longo

do tempo. Porém, as sucessivas revisões da CBO parecem nos apontar para um

cenário de macro alterações no mundo do trabalho, deixando transparecer que as

atividades em análise são sempre fenômenos vivos e em constante transformação.

Por tudo isso é que à apresentação descritiva do trabalho do motoboy, devem

se seguir dados que nos permitam compreender os elementos cognitivos, afetivos,

subjetivos, sócio-culturais que transformam esta ocupação em uma atividade viva e

em desenvolvimento. Até porque se as descrições da CBO forem utilizadas como

única fonte de informações para subsidiar a construção de currículos de treinamento,

formação ou seleção de profissionais, o risco de que o resultado desses cursos e

treinamentos tenha efeitos limitados é muito grande. Isso porque a utilização de

métodos tais como o Dacum tende a conduzir à construção de processos formativos

77 Segundo a CBO os objetivos da ocupação são: Coletar e entregar documentos, valores, mercadorias e encomendas. Realizar serviços de pagamento e cobrança, roteirizar entregas e coletas. Localizar e conferir destinatários e endereços, emitir e coletar recibos do material transportado. Preencher protocolos, conduzir e consertar veículos

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descontextualizados da atividade78 e que tomam como princípio a realização da

tarefa e não o trabalhador em sua relação com um meio, com um coletivo e em

desenvolvimento pscio-sócio-histórico (MANFREDI, 1998; DELUIZ, 2001).

Este capítulo pretende contribuir um pouco para esse debate, mais

particularmente demonstrando que dimensões dos saberes e conhecimentos são

requeridos, utilizados e desenvolvidos pelos motoboys para realizar sua tarefa de

maneira satisfatória. Mostraremos ainda neste capítulo como uma análise sobre os

saberes e competência em torno do trabalho dos motoboys revela não apenas o

efeito da atividade na vida do trabalhador, mas principalmente como ela sinaliza e

constitui um arcabouço linguageiro comum que serve de referencial instrumental

partilhado entre os membros do grupo auxiliando-os no enfrentamento de seus

problemas cotidianos. Esses saberes auxiliam no processo de subjetivação dos

membros do grupo, por meio do qual passam a partilhar mais que experiências

vividas no cotidiano; o processo de subjetivação vai auxiliando os motoboys a

tornarem suas formas de vida mais comuns e afetadas pelo desenvolvimento do

grupo como um todo.

Para tanto, tomamos como ponto de partida os resultados do estudo de Diniz

(2003). Por meio da identificação dos saberes e competências que os motoboys

mobilizam para realizar suas atividades de maneira eficiente, segura e trazendo a

satisfação dos clientes, o autor alega que se podem desdobrar daí inúmeras

respostas sociais mais adequadas à realidade, tais como bases para um acordo

coletivo (DINIZ, 2005a) ou para um processo de formação da categoria. A despeito

da importância dos outros textos sobre motoboys publicados no Brasil, estes não

revelam de maneira satisfatória as dimensão dos saberes mobilizados no cotidiano

de maneira tão compreensiva como o faz Diniz. Além disso, sua escolha pelo

desenvolvimento de um estudo ergonômico para compreender a atividade de

trabalho a partir do ponto de vista do trabalhador, lhe permitiu revelar um conjunto

de elementos da atividade dos motoboys que dificilmente seria apreendido de outro

modo.

78 Tomamos aqui atividade em seu sentido ergonômico, conforme Leplat e Hoc (1998) e Montmollin (1997) e ergológico (SCHWARTZ; DURRIVE, 2007).

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Limites da prescrição: variabilidades

Algo que faz chamar a atenção no trabalho dos motoboys é, sem dúvida, o

comportamento e a quantidade de profissionais em atividade profissional nas ruas

das grandes cidades. É muito comum as pessoas resumirem o trabalho dos

motoboys ao tempo em que acham que eles ficam em cimas das motos. Acreditam

que sua atividade limita-se ao exercício do ir e vir entre pontos diversos, carregando

sempre consigo algumas coisas para entregar aqui ou acolá. Disso resulta o

desenvolvimento da sua habilidade e coragem no modo de pilotagem, bem como lhe

dá confiança para arriscar mais no trânsito. E só... É praticamente isso que o

motoboy aprende no trabalho.

Como vimos no capítulo anterior, algumas dessas idéias sustentam-se em

percepções aparentemente verdadeiras. Por exemplo: é fato que os motoboys ficam

muito tempo em cima das suas motos. Entretanto, diferente do que as pessoas

pensam, a condução da moto representa, talvez, um dos aspectos menos

importantes do sentido do trabalho dos motoboys. Seu trabalho torna concreto,

material, efetivo, um conjunto de procedimentos que são disparados por outros

meios de comunicação: a entrega de um produto comprado pela Internet ou

telefone, o protocolo de um documento em uma determinada agência reguladora, ou

a certificação bancária de um pagamento que não pode ser realizado por meios

eletrônicos. Tudo isso só tem seu sentido concretizado quando um determinado

motoboy traz diante de nós a materialização daquela negociação anteriormente feita.

Como ele não entrou previamente em nenhum momento no processo de

negociação, é comum imaginar que o que ele faz limita-se a trazer a comida para

nós. Mas não é bem assim.

Para dar conta das exigências impostas pela profissão, o motoboy tem que

realizar um conjunto de outras ações diferentes de somente “conduzir sua moto com

segurança no trânsito”, conforme demonstramos acima na CBO. Mais do que

entregar o produto, ele tem que agradar ao cliente que contrata o serviço ou que

necessita de sua atividade. Para tanto, o motoboy não simplesmente conduz

mercadorias: ele gerencia variabilidades, acasos, desejos e produz satisfação. Sem

a sua intervenção cognitiva, seus conhecimentos e manhas, certamente os produtos

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seriam entregues fora dos prazos esperados ou possíveis, e a satisfação dos

clientes não se dariam na mesma intensidade. As prescrições em qualquer tipo de

atividade humana, por melhores que sejam, são sempre insuficiente para dar conta

dos inusitados. No trabalho dos motoboys isso não é diferente. Entre as dificuldades

e eventualidades relatadas, destacamos:

a) os prazos para entrega são sempre apertados: “você pega o serviço na

empresa 15h30 e tem que lá em tal lugar as 16h. É aquela pressão que

rola, o telefone ligando, ‘onde que você está?’ e se vai demorar. Rola

isso aí. Muito’”, “o camarada manda você pegar um documento 9h.

Você tem que estar no lugar 9:05h, porque senão o cara liga e diz:

‘você já pegou o documento já?’’”. Ouvimos frases como essa de

inúmeros motoboys. Falas semelhantes são encontradas em

praticamente todas as pesquisas realizadas até o momento. O cliente

quer que a comida chegue ainda quente em sua casa, pois ele não

quer nem saber que além dele, o motoboy teve que atender outras 5

casas no mesmo momento; a botija de gás acabou e o cliente precisa

do gás para fazer almoço; outro quer sua peça na oficina logo porque

tem que usar o carro daqui a uma hora; para o cliente, seu pedido é

sempre urgente.

b) As distâncias que eles percorrem diariamente também são enormes.

Em Vitória ouvimos motoboys dizendo que andam entre 100km e

230km por dia. Não há qualquer zoneamento de entregas. Se existem

rotas, como veremos, elas são construídas ou pelos próprios

trabalhadores ou pelo despachante, mas as rotas não são exclusivas

de qualquer motoboy. É o “da vez” que pegará a próxima rota. Quando

terminar a ou as entregas em determinada região, poderá ter que

pegar um serviço para resolver no lado oposto da cidade.

c) O trânsito é confuso, desde “quando você sai de casa, pega um

trânsito ‘muito complicado’”; o trânsito “é igual a uma selva”. “Ninguém

respeita motoboy”, é o que se fala o tempo inteiro. As dificuldades do

trânsito não são tanto no sentido de diminuir o tempo de entrega,

“porque moto não tem trânsito não. A gente passa por entre os carros,

a gente passa na calçada”. Mas o trânsito estressa, exige atenção,

cuidado: “motoboy tem que ter atenção redobrada no trânsito”.

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221

d) Os clientes exigem muita habilidade no trato relacional, pois “é gente

[cliente] discutindo com você o tempo todo, neguinho fazendo gracinha

com você”. O motoboy desdobra-se para responder às cobranças dos

clientes a todo o custo, mesmo sabendo que “a empresa não está nem

aí se você vai chegar vivo ou se vai chegar morto. Ela quer o

documento na mão dela”. Eles sentem a cobrança dos clientes – às

vezes diretamente, às vezes repassada pelo patrão – ao mesmo tempo

em que sentem que o serviço é muito desvalorizado: “o nosso serviço é

muito desvalorizado. O risco que a gente corre, de um modo geral, não

paga o sacrifício que a gente faz não”.

e) O salário nem sempre é satisfatório. “Se a gente toca no assunto de

aumentar um risquinho nos preços, eles já vão dizendo: ‘ó, tem outras

firmas aí cobrando um preço bem menor’”, é o que nos dizia um

trabalhador que executava os serviços como autônomo. Como o

salário da categoria é muito baixo, a remuneração por entrega ou

comissão é um incentivo para “correria”. Então a pessoa topa pegar

tudo o que vê pela frente.

f) As intempéries são muitas. O tempo: “João pegou um serviço 15h40.

Se não me engano foi segunda feira, estava assim: chuvia e sol. Aí,

pegou 15h40 para estar lá no Busines Center79, na Enseada do Suá.

Ele subiu o prédio, sol. Quando ele desceu já estava rolando uma

chuva. Aí ele parou para colocar a capa. Aí não deu tempo para chegar

lá. Quando chegou já era 16h05. A pessoa não quis receber o

documento. Se fosse através dele ... Nós é que fomos lá e

conversamos, aí ela foi lá e assinou a notinha. Se fosse através dele,

ela não iria assinar a notinha”. Problemas com a moto: “Eu estava a

80km, 90km e eu estava indo reto. Eu não senti que o pneu furou. Ele

simplesmente “fuuu” [fez sinal com a mão mostrando o pneu

esvaziando bruscamente]. Ele esvaziou. E no que ele esvaziou, eu

estava entrando na curva. Entrando na curva aí,...”. Assalto: “Essa

questão [do assalto] é o seguinte: você recebe uma ligação fazendo o

pedido de uma pizza. Aí você chega no local, não existe o endereço. Aí

79 Os substantivos próprios de todas as fala são fictícias.

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quando você está ali, naquela situação, perdido, querendo achar, você

é abordado por alguém. Esse alguém faz a voz de assalto e você não

tem como reagir”.

Enfim, um conjunto de outras dificuldades, tais como endereços não

localizados, filas nos locais, entre outros, vão exigindo mais dos trabalhadores do

que uma simples entrega. Esses dados corroboram os de Veronese (2004), Oliveira

(2003) e Diniz (2003). As variabilidades com que os trabalhadores devem enfrentar

colocam em cheque os prazos e as condições estabelecidas pela organização de

trabalho. De acordo com Diniz,

os determinantes não controláveis colocam em relevo o paradoxo da organização do trabalho dos motociclistas profissionais. De um lado, os objetivos da produção a exigir pontualidade, presteza e confiabilidade. De outro, os determinantes não controláveis, as precárias relações de trabalho, a elevada densidade de trabalho, o tempo real menor que o prescrito, a pressão das chefias e a estreita margem de liberdade para mobilizar as competências desenvolvidas (2003, p.76).

No meio desse paradoxo, soluções como o aumento na quantidade de

motoboys prestando serviços ou a negociação de prazos maiores para a resolução

das tarefas são as últimas alternativas dos patrões. As exigências recaem sempre

sobre o trabalhador, que deverá se desdobrar para conseguir atender às exigências

conforme solicitado. Como conseqüência, um desgaste enorme se abate sobre o

coletivo profissional. Vimos que a pesquisa de Lourenço e Martins (2006) dá indício

de que pelo menos 50% da categoria em Juiz de Fora está acometido a um nível

mediano de estresse. Em nossa pesquisa, 55% dos trabalhadores reclamaram de

dores no corpo. Esses dados não estão entre os mais alarmantes, do ponto de vista

da Saúde Pública, mas traduzem as condições com que os trabalhadores lidam

cotidianamente.

Por outro lado, veremos que a satisfação na resolução dessas atividades é

relativamente alta. Isso porque para realizar tais ações, os motoboys mobilizam

inúmeros saberes e competências que tornam essa atividade possível. E parece

que, pelo em parte, essa capacidade de resolubilidade é reconhecida entre os pares

e pela hierarquia. Os trabalhadores vêm conseguindo desenvolver meios de tornar

solucionável o paradoxo que Diniz aponta. Esse mesmo autor identificara esse

processo. Parece não perceber, porém, que essa capacidade de resolução não

exerce apenas um papel na capacidade de resolução das tarefas. Para nós, há um

processo em curso que aponta para cenários fundamentais no campo da saúde no

trabalho. O papel do coletivo é central nesse mecanismo. Voltaremos logo a ele.

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Vejamos, antes, quais são os saberes que os trabalhadores vem desenvolvendo

para realizar suas atividades.

Saberes em movimento

Diniz (2003) e Diniz, Assunção e Lima (2005b) identificam um conjunto de

saberes desenvolvidos pelos trabalhadores para realizar os serviços demandados de

maneira tal que consigam aliar as exigências dos clientes à sua segurança. Embora

não desenvolvam ou estruturem suficientemente todos os saberes dos motoboys,

dos textos de Diniz e colaboradores, podem-se extrair elementos bastante

elucidativos acerca dos conhecimentos desenvolvidos pelos trabalhadores na busca

de realização sua atividade profissional. Partiremos de suas contribuições para

elucidar um pouco melhor a complexa dinâmica em torno da composição de saberes

e o desenvolvimento de competências pela categoria.

Avaliação (e negociação) do serviço demandado

Segundo Diniz, a capacidade de “avaliar a situação para não ser dominado

pelas urgências” (2005, p.909) é uma das aprendizagens que os trabalhadores

desenvolvem com o tempo, por meio da qual conseguem “avaliar antecipadamente

se o tempo disponível é compatível com as demandas estabelecidas” (2003, p.71). A

partir dessa avaliação, os motoboys lançam-se a um outro patamar na negociação

com patrões e clientes acerca da viabilidade ou não de realização de um

determinado serviço. Isso porque, caso avaliem que um serviço é impossível de ser

realizado com a segurança necessária, passam a utilizar melhores argumentos na

negociação com os patrões, para tentar recusá-lo. Diniz nos alerta, porém, que esse

tipo de negociação nem sempre é autorizada por determinadas empresas que

utilizam serviços de motoboys, mesmo quando esses patrões reconhecem que os

motoboys, quando não conseguem negociar a realização de serviços, transportam

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para o modo de pilotagem a urgência dos serviços demandados. Segundo o autor,

essa constatação é reforçada pelos próprios trabalhadores.

Em nossa investigação, confirmamos o desenvolvimento desse tipo de saber.

Entretanto, parece-nos que Diniz subestima um pouco a importância do

desenvolvimento da capacidade de analisar e julgar os serviços disponíveis. Isso

porque ele não explicita que os demais saberes desenvolvidos pela categoria só

podem ser possíveis se uma boa avaliação sobre cada serviço for realizada. Nesse

sentido, a análise do serviço demandado implica na mobilização de competências

diversas, que tornam a compreensão sobre o trabalho dos motoboys muito mais

complexa do que comumente se supõe.

Antes de qualquer coisa, o motoboy precisa familiarizar-se com o tipo de

serviço que sua empresa presta aos consumidores ou clientes. Embora a

classificação da CBO ou a avaliação do senso comum sobre o trabalho dos

motoboys tomam como referência a atividade profissional de todos os trabalhadores

que executam serviços de entrega por meio de utilização das motos, é importante

frisar que as especificidades de cada tipo de empresa contratante conduzem ao

desenvolvimento de saberes às vezes muito específicos entre os trabalhadores. Por

exemplo, os trabalhadores de empresas de autopeças devem aprender a diferenciar

as peças que carregam, sabendo nomeá-las adequadamente e, com o tempo,

compreender sobre que família de peças ela se trata. Aliás, segundo um motoboy de

uma empresa desse setor, os motoboys, que representavam o tipo de serviço menos

valorizado dentro da sua empresa, têm uma chance real de ascensão na loja caso

consigam entender um pouco sobre as peças da loja, bem como os locais em que

devem ser guardadas no estoque. A ascensão profissional, no caso desta loja, se dá

por meio do acesso ao posto de estoquista, que é um posto anterior ao posto de

vendedor, muito almejado pelos funcionários, visto que os vendedores ganham

comissão por venda. O desenvolvimento cognitivo que se dá no caso dos motoboys

de serviços de autopeças é deveras diferente das exigências cognitivas e

conhecimentos desenvolvidos pelos motoboys de empresas distribuidores de jornais

e revistas. Isso porque neste tipo de empresa, o serviço requerido – entrega de

jornais e revistas para assinantes em casas e apartamentos de pessoas físicas –

requer dos motoboys, mais que qualquer coisa, a capacidade de decorar as casas,

os números das ruas, os acessos a elas, bem como devem aprender a organizar a

entrega de maneira tal que otimizem o tempo da distribuição ao longo do percurso.

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Essa minuciosa capacidade de mapeamento de uma determinada região da cidade,

exigida aos motoboys dessas empresas de distribuição de cartas e jornais, não é

exigida da mesma forma aos das empresas de autopeças, pois os consumidores de

seus serviços não são, em geral, pessoas físicas, mas sim mecânicas de veículos

que fazem parte da carteira de clientes da loja de autopeças. Ou seja, os motoboys

das lojas de autopeças desenvolvem um outro tipo de mapeamento da cidade, não

tão minucioso quanto os de empresas de distribuição, mas que exigem o

conhecimento de áreas muito mais abrangentes da região metropolitana. Vimos

também, no capítulo anterior, que existem inúmeras variáveis em jogo na atividade

de trabalho: o tipo de remuneração, o tipo de vínculo profissional, modalidades de

controle, tempos distinto de pausas e como elas implicam em variações imensas no

salário dos trabalhadores. O conhecimento apropriado dos detalhes dessas

dimensões também é de fundamental importância para que o trabalhador consiga

empreender uma análise adequada do tipo de serviço a ser realizado.

Decorre disso alguns elementos que justificam a centralidade da capacidade

de avaliar os serviços em relação à execução adequada da atividade dos motoboys.

A avaliação de um determinado serviço implica em colocar em análise diversas

variáveis em torno de cada entrega, tais como: qual é o tipo de serviço ou produto

que a empresa presta para os clientes; qual é o tipo de documento entregue; que

tipos de produtos foram solicitados e como devem ser carregados; que tipo de

atividade bancária será necessário se realizar para cumprir a tarefa; em quais

órgãos governamentais, em quais guichês, e quais os profissionais precisam ser

visitados para protocolar tal ou qual certificado, entre outras inúmeras variáveis.

Disso resulta conhecer o local em que o serviço será realizado; os fatores envolvidos

no serviço demandado (se há ou não filas, se implica ou não em retorno à empresa

demandante do serviço, se ele está próximo de outros serviços que o motoboy

deverá ou poderá vir a realizar); o valor pago pelo serviço (isso em casos em que os

serviços dos motoboys são remunerados por comissão); o tempo que a realização

de determinado serviço leva para ser executado; os impactos deletérios da atividade

no corpo, as dificuldades e os riscos envolvidos para a realização do serviço; a

urgência da entrega; qual cliente demandou o serviço (alguns clientes têm mais

prioridades para os motoboys autônomos ou para empresas de motoboys, visto que

fazem parte da sua carteira de clientes fixos); os efeitos decorrentes da não

realização de tal serviço no prazo necessário (se há ou não multas, quem as pagará,

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o que isso implicará no futuro para a “carreira” do motoboy na empresa, etc.), os

custos e formas de remuneração envolvidas no serviço, o tempo de pausa que o

trabalhador terá entre um e outro serviço, as condições fisiológicas que o motoboy

se encontra, entre outros. A partir da análise dessas variáveis, e das variáveis

citadas por Diniz, eles poderão mobilizar os demais planejamentos que tornarão

possível a realização dos serviços de maneira adequada. Além disso, em empresas

em que o trabalhador recebe por remuneração, uma boa análise das variáveis pode

possibilitar aumento de renda, visto que o julgamento de cada serviço implicará em

gerenciar o máximo de serviços possíveis sem risco de se “embolar”, como dizem os

motoboys, ou seja, respondendo às demandas adequadamente.

A realização de uma boa análise do serviço oferece ainda vantagens

financeiras nos casos em que o motoboy possui condição de escolher qual serviço

irá realizar, permitindo-lhe aproveitar o máximo possível das oportunidades

oferecidas. A possibilidade de escolha se dá em casos de empresas que demandam

muitos serviços simultâneos (tais como farmácias muito solicitadas ou empresas que

trabalham com documentação de empresas e na realização de serviços financeiro-

administrativos) e que possuem rotas de entrega muito distintas. Nesses casos, a

empresa requer, ao mesmo tempo, dois ou mais motoboys. O “da vez”, ou seja,

aquele que é o primeiro da fila para receber os serviços, tem, geralmente, a

possibilidade de escolher qual a rota que vai fazer. Geralmente, para realizar essa

escolha levam em consideração os aspectos acima descritos, e incluem, também, no

processo de análise raciocínios do tipo: “a escolha que eu fizer é a que todos eles fazem [risos]. Que é o da vez, claro. Ele vai pegar o que vai render mais pra ele e que ele vai gastar menos gasolina e que ele vai estar sempre por perto. O que é mais fácil ele fazer e que vai render mais. Ou ele pode ir também pra longe, mas que seja assim, que ele faça uma rota. Tipo assim, que ele vá lá no ABC80, mas só que aí ele vai passar pelo aeroporto, vai na UFES, vai em outro lugar e aí já vai compensar”.

Ou seja, a análise dos serviços implica em capacidade de extrair dele maior

remuneração, seja por meio de mais serviços realizados em uma mesma “rota” de

serviços, seja por meio do menor gasto de gasolina, seja porque tal serviço coloca o

motoboy em local estratégico da cidade, contando com o fato de que aqueles mais

bem localizados na cidade possuem mais chance de receberem outros serviços

antes de voltarem para o ponto de origem, tornando sua “vez” mais rentável. Mas,

80 Nome fictício de uma determinada empresa do setor de importação e exportação, localizada em uma rodovia bastante distante do ponto em que o motoboy se encontra.

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mesmo considerando os motoboys que não possuem meios de escolher as rotas a

serem percorridas, veremos que outras estratégias são tomadas que tornam essa

capacidade de escolha relativamente real. Tais estratégias envolvem, sobretudo, a

capacidade de mobilização daquilo que Diniz (2003) chama de uma rede solidária.

Finalmente, um outro aspecto substancial para a qualidade dos serviços e

que dependem diretamente da capacidade de avaliação, são os saberes de

resolubilidade, tão requeridos para esse tipo de profissional. A importância desse

tipo de competência é de tal ordem que o discutiremos mais adequadamente em um

tópico especial. Por hora basta lembrar que quaisquer problemas a serem

enfrentados pelo motoboy só poderão ser adequadamente resolvidos se ele

conseguir avaliar de maneira satisfatória o máximo de questões em torno do serviço.

Quando o motoboy conhece bem o serviço realizado ele consegue encontrar as

soluções de maneira mais adequada, permitindo empreender planejamentos

temporais e rotas mais bem realizadas, além do fato de que consegue gerir as

eventualidades com maior autonomia e desenvoltura.

De um ponto de vista menos focado na atividade de trabalho, há ainda, no

caso particular dos motoboys autônomos ou daqueles que montam sua própria

empresa, uma exigência de se avaliar o mercado de serviços de moto-entrega, por

meio do qual o motoboy deverá negociar os preços com os clientes, observando as

margens de lucro e os ganhos com a inclusão de novos clientes. Além disso, é

fundamental que consigam avaliar também a qualidade do serviço prestado e a

satisfação dos usuários de seus serviços. Não há, para esses motoboys, alguém que

intermedeie sua relação com as pessoas que necessitam de seu serviço; toda a

relação é feita diretamente com os clientes, tornando sua satisfação muito mais

importante do que para um motoboy contratado por uma empresa de motofrete.

Na mesma linha de raciocínio, e de maneira não menos importante para os

motoboys de uma forma geral, temos o fato de que uma boa capacidade de análise

do mercado de emprego de motofrete e dos tipos e custos de serviços prestados por

motoboys de outras empresas auxiliam-lhes a construir sistemas de proteção à sua

saúde, no qual o principal mecanismo é a recusa das empresas desinteressante.

Mostrávamos acima que os motoboys mais antigos alegam, e os mais novos

reproduzem, que a sua remuneração do trabalho era melhor antes do que

atualmente, em função, segundo os mais velhos, da enxurrada de oferta de

trabalhadores no mercado de trabalho, geralmente novos e que, segundo eles, são

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menos comprometidos com a segurança, com o valor da remuneração e com a

qualidade do serviço. Mesmo que levemos em conta que essa idéia seja um

fenômeno de uma memória coletiva que idealiza um determinado passado para

reprovar o presente, independente da avaliação que no passado esse grupo social

fazia de seu presente (CHOLEZ, 2004)81, temos que compreender que esta

memória coletiva, potencialmente “idílica”, constrói referências que o coletivo toma

para empreender seus julgamentos e afirmar suas posições sobre as coisas da vida.

É, pois, uma memória que produz valores e mobiliza pessoas. No caso dos

motoboys, a construção dessas referências lhes permite, principalmente aos que

possuem mais tempo de serviço, não se satisfazerem com determinadas empresas

de motoboys. Isso porque conseguem perceber com um pouco mais de nitidez que

possibilidades estão abertas aos trabalhadores desse setor. Na medida em que

avaliam os custos para realização dos serviços e conseguem compará-los com o

mercado e com o tipo de serviços que outros vem realizando, eles começam a criar

parâmetros que lhes permite recusar algumas empreitadas. Como já dissemos, a

rotatividade na profissão é alta também em função dessa recusa. Há empresas que

eles assim identificam: “é para pegar as manhas”; ou seja, são empresas que

geralmente contratam motoboys novos porque pagam muito pouco ou porque os

tratam muito mal. A recusa para esse tipo de empresa em geral é muito grande, pois

os trabalhadores vislumbram a capacidade de ganhar mais com o tempo. Outro

motoboy, que já trabalhou em empresa de gás nos dizia: “É muito difícil pegar a

botija de gás, subir escada, geralmente é muito morro. Então é muito estressante,

então ninguém pára em depósito de gás. Geralmente o cara fica 6, 7 meses, vai

direto para outro serviço”. Outro, que trabalhou em depósito de refrigerante, cerveja

e água, confirma essa idéia.

Esse tipo de manifestação torna factível a suposição da existência de uma

gênese de algo próximo do que conhecemos como carreira profissional82. De

81 A autora refere-se à HALBWACHS M., La mémoire collective, Paris, Albin Michel, 1968, sobre o assunto. 82 Mostrávamos no capítulo anterior alguns indícios de uma “gênese” de carreira no trabalho dos motoboys. Em um encontro que realizamos com os profissionais, um motoboy que trabalhava há pouco tempo em uma farmácia que fazia entrega para uma determinada parte da região metropolitana de Vitória, referia-se a um colega que sabia todos os endereços como um parâmetro do que seria um bom patamar a se de chegar na profissão. Ele verificava que esse determinado motoboy recebia as melhores entregas em sua “vez” ou era chamado a fazer algumas entregas especiais. Entretanto, o motoboy deste encontro reconhecia que o salário era jogado para baixo com a oferta contínua de mão de obra oferecendo-se para o trabalho. Por outro lado, acreditava que sua renda melhoraria um pouco com o passar do tempo em função das aprendizagens que teria com o exercício da atividade. De qualquer modo, atestava a existência de diferenças de remuneração em função de uma certa “trajetória” na profissão. Eis aí um outro exemplo de “carreira” na atividade dos motoboys.

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qualquer maneira, essa recusa só pode ser realizada com o passar do tempo e por

meio da capacidade que o motoboy possui de avaliar os serviços que realiza na

empresa, seus efeitos no corpo, na saúde, os riscos a que estão submetidos

constantemente e os retornos financeiros e de qualidade de vida em troca de tal

trabalho. Esse é, para nós, um aspecto que a própria categoria parece não ter uma

total compreensão ou mesmo consciência dos possíveis benefícios a ela atrelada.

Mas nos parece que ela representa a condição de uma recusa real a um

determinado tipo de pressão que as empresas exercem sobre os trabalhadores e

que tem a ver com o saber desenvolvido ao longo do tempo e partilhado entre os

profissionais.

Planejamento Temporal das Tarefas ou gestão do tempo

Após a avaliação sobre que tipo de serviço (ou de demanda) o motoboy é

solicitado a realizar, é hora de organizar tal demanda entre outras existentes (se este

for o caso). Isso implica em dizer que, considerando-se o tempo disponível que ele

possui para realizar atividades ao longo do dia, e considerando-se que todo

deslocamento espacial pressupõe o gasto de uma determinada quantidade de

tempo, o motoboy deverá construir um meio de “calcular” o tempo que tem

disponível, visando distribuir as demandas existentes, para preenchê-lo de maneira

adequada. Esse cálculo deve envolver tanto o ponto de vista de sua rentabilidade,

quanto o ponto de vista de sua segurança, sem desconsiderar as pressões

exercidas pelos patrões e clientes. Trata-se de realizar aquilo que Diniz chama de

Planejamento Temporal das Tarefas (2003; DINIZ, ASSUNÇAO e LIMA, 2005), ou, o

que para nós é mais apropriado, de “gestão do tempo”, conforme explicaremos logo

adiante.

Diniz ressalta a importância do planejamento temporal das tarefas para o

exercício da atividade dos motoboys. Sem um correto planejamento temporal, eles

não conseguiriam realizar vários serviços ao mesmo tempo, não poderiam organizar

a distribuição dos serviços ao longo de um período do dia e não conseguiriam

chegar aos locais demandados nos momentos necessários. Diniz não define

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exatamente o que denomina de planejamento temporal, mas revela que esse saber

se desenvolve por meio da aquisição de inúmeros conhecimentos que facilitam a

realização da tarefa. Entre os conhecimentos que se fazem necessários

desenvolver, destaca:

a) os horários de funcionamento dos estabelecimentos, que permite aos

motoboys organizar os serviços de acordo com os horários possíveis

para a realização de cada serviço. Ou seja, os serviços de banco, que

só podem ser realizados até as 16h, terão prioridade sobre aqueles

que podem ser executado até as 17h ou 18h, etc.;

b) o tempo gasto em cada estabelecimento, visto que alguns elementos

existentes nesses estabelecimentos poderão aumentar ou reduzir a

quantidade de tempo despendido para a realização das tarefas: se há

ou não filas no estabelecimento, ou o horário e dia da semana em que

as filas são mais constantes, ritmo do andamento da fila, se há serviço

de senha no estabelecimento, se ali há conhecidos, permitindo atalhos

que reduzem o tempo de permanência no local, etc.

c) a organização dos serviços ao longo do dia, por meio da distribuição

das atividades específicas em horário também específicos, tentando

conciliar serviços que podem ser feitos em momentos e em locais

próximos, tais como, por exemplo, aproveitar para realizar a entrega de

envelopes nas empresas próximas a um banco que geralmente possui

grandes filas.

A dimensão do planejamento temporal, do nosso ponto de vista, é em parte

subestimada por Diniz. Este parece não perceber que o que denomina planejamento

temporal requer do motoboy a utilização de um processamento perceptivo-cognitivo

que transforma essa ação em verdadeiro gerenciamento de variáveis bastante

complexas. Nesse sentido, parece-nos mais plausível afirmar que se trata de um

gerenciamento do tempo, no lugar de planejamento temporal das tarefas. Isso

porque, em primeiro lugar, o uso do termo gestão implica em reconhecer, de acordo

com Schwartz (2004), o esforço de todo aquele que trabalha para enfrentar e dar

conta dos equívocos da prescrição e das variabilidades existentes em todo processo

de trabalho. Quando algo inusitado, inesperado, indesejado, insuspeitado emerge

em meio à atividade, todo processo previamente planejado – seja pela organização

do trabalho, seja pela própria tradição dos modos operatórios – é colocado em

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cheque e testado em seus limites. Nesse momento, o trabalhador, em meio a

inúmeros interesses, valores e princípios, tem que se mobilizar por meio do uso de si

por si para fazer possível a resolução de saídas que tornam pertinentes a resolução

dessas atividades. Para tanto, lança mão de escolhas que deve assumir perante a

si, aos pares e à organização. Trata-se de um processo que envolve dramáticas, ou

seja, verdadeiros micro-dramas do cotidiano do trabalho, mobilizando o trabalhador

naquilo que lhe é mais caro: seus valores em meio a exigências e contraintes frente

às quais deve posicionar-se, buscando aproximar e resolver o paradoxo das

exigências da empresa e a economia do uso de si. Esse processo é dinâmico,

continuado e envolve alternâncias entre ganhos, satisfações, desgastes, dor e, no

pior das hipóteses, sofrimento patogênico.

Quando Diniz sugere o planejamento temporal, parece que ele se refere muito

mais ao exercício que o trabalhador executa previamente à deflagração das ações

que conduzem à realização das tarefas. Ou seja, o motoboy lança mão de

conhecimentos adquiridos ao longo de sua história na profissão (ou mesmo anterior

a ela), colocando-os em movimento, para “calcular” o tempo que gastará, como nos

disse um motoboy, para resolver essa atividade. Outro nos dá um exemplo desse

tipo de cálculo:

E – Você falou que são muitos cálculo. Calcule. Você fala que tem que estar sempre preocupando com muitas coisas. Para terminar, eu queria que você falasse um pouco mais só disso, de que coisas eu devo pensar para resolver isso.

M – De,... tipo assim. Você pegou o serviço, aí você já olhou no relógio. Aí você tem que saber que você vai andar tantos quilômetros, por mais que você não saiba quantos quilômetros que seja daqui lá no shopping. Mas que você já tem já uma noção. Então você calcula que daqui-lá você vai gastar uns 10 minutos. É, uns 10 minutos. Aí você sabe já calcula mais ou menos, que não ... você sabe que é 10 minutos, mas calcula como se fosse 8 minutos. Porque esses 2 minutos pode ser o que: todos os sinais que você pega fechado. Pode ser isso. ... e... Outra coisa também. Você vai mais gastar 8 minutos para voltar. E você vai gastar também é...

E – Sei que são 10 minutos e então eu devo calcular 8 porque eu vou dar uma corrida para ir rápido para voltar.

M – Não, mas olha só. Esses cálculos que eu falo assim não são cálculos, assim, é...Como é que eu explico para você... é....

E – Estimativas, assim?

M – É!!! Não é que você vai pegar uma cadernetinha, ou então uma calculadora e.... Não! Você vai ter uma base, mais ou menos: ‘não, eu vou gastar uns 20 minutos para fazer isso. Aí eu vou gastar mais uns 20 para fazer tal coisa e gasto mais uns 10 para voltar para cá’. Então o que, já são 50 minutos. Então ta. Que hora são agora? São duas horas. Então, então eu ainda vou ter tempo de fazer aquele ABC que fecha, fecha 3 horas. Então que que eu faço: esses 10 minutos já seriam o tempo de eu ir lá no ABC, com 10 minutos eu vou lá, subo lá, já pego o memorando, e saio de lá umas 3:10h mais ou menos. Pronto. Já está concluído, porque eu só vou voltar lá com o memorando para pegar ééé ... esse BL já liberado. Aí eu já pego e volto, chego aqui, vamos colocar que alguma coisa deu errado e aí eu chego aqui uns 10 minutos atrasado. Aí isso aí, vai ser, eles não vão considerar isso não.

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Aí que que vai acontecer mais. Aí eu já vou ter um BL lá liberando já. Então, enquanto a Karla libera que eu to aqui, eu já ligo para a central e ‘e aí, tem alguma coisa daqui para ir para lá?’. Ou então eu ligo para alguma, sei lá, procuro saber com os caras se já tem alguma coisa para lá e aí já pego e corro para lá e já calculo também: ‘pô, então eu estou indo para lá e vou gastar mais uns 25 minutos, para eu fazer isso’. Ai eu pego, depois desses 25 minutos, aí eu volto, vou gastar uns 15 minutos para eu voltar. Voltando eu passo na ABC, volto para cá. Então, até ... 4 horas eu já estou aqui de volta. Entende. É esse tipo de cálculo.

A deflagração da atividade requer, como vemos, um planejamento prévio à

atividade. Porém, essa atividade não é estanque. A todo o momento o motoboy é

confrontado com questões que inviabilizam a obediência ao que planejara. Em sua

própria fala, percebe-se que ele reconhece a existência da possibilidade do erro e

que, no exemplo acima, já previra alguma margem de segurança contra o inusitado

em planejamento: “vamos colocar que alguma coisa deu errado e aí eu chego aqui

uns 10 minutos atrasado” ou “porque esses 2 minutos pode ser o que: todos os

sinais que você pega fechado”. Essa margem de inusitado é, também, aprendido

com o tempo. Os motoboys sabem, com o tempo, que tipo de problemas mais

freqüentes aparecem em meio a seu trabalho. Porém, o inusitado é sempre

inusitado. Então, mais importante que se aguerrir a seu planejamento, é fundamental

que ele exercite e desenvolva a capacidade de gerir as variabilidades.

Schwartz chama atenção para o fato de que “gerir é deslocar-se sobre uma

multiplicidade de registro” (2004, p.25), registros esses que vão da gestão das

eventualidades à gestão das relações, prazos e materiais envolvidos nas tarefas.

Chamamos a atenção que a gestão da temporalidade é crucial para a atividade dos

motoboys. À capacidade de uma avaliação adequada das tarefas – o exemplo acima

demonstra bem que o trabalhador deve conhecer o que cada tipo de tarefa implica –,

some-se, em acordo com Diniz, a necessidade de um planejamento temporal das

atividades, em geral, prévia à sua execução. Porém, no momento mesmo da sua

realização é que entram em jogo um intenso uso de si por si para tornar possível

gerenciar as inúmeras eventualidades, adequando-as dentro de um tempo que é

muitas vezes cronológico, mas que em algumas ocasiões, é bastante intempestivo83.

A gestão do tempo inclui o planejamento temporal da atividade, mas a ultrapassa, na

83 O motoboy não é confrontado apenas com um movimento linear de um tempo que se esgota. Ele é constantemente confrontado com tempo que são cheios de movimento, intensidade, furtividade. São as urgências e casualidades que aparecem no meio de um planejamento; são os sustos que levam no trânsito, tornando sua vida comprimida em milésimos de segundo; são suas fantasias e devaneios que lhes escapam do controle cognitivo e emergem à consciência, atrapalhando a seqüência idealizada de procedimentos. Gerir o tempo cronológico requer uma tarefa quase impossível, que é colocar, dominar, resolver, minimizar, enquadrar o tempo intempestivo dentro daquele tempo cronológico. Uma discussão mais apropriada sobre as diversas definições filosóficas do tempo, ver Pelbárt (1998).

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medida em que requer dinamismo e flexibilidade para transformar o planejado em

fato.

Um segundo aspecto merece consideração em torno do limite da

compreensão do conceito de Planejamento Temporal das Tarefas. O texto de Diniz

nos sugere que o que está em jogo no uso desse saber – e todos os outros que

descreve – é a resolubilidade da tarefa. É claro que o trabalhador está focado na

tarefa, quando deflagra qualquer ação. Porém, como o próprio Diniz anuncia em

outros momentos, é de nossa compreensão que o trabalhador não se foca apenas

na tarefa quando põe em movimento a gestão do tempo. O que está em jogo, para

ele, é a capacidade de tornar o uso do seu tempo mais lucrativo, rentável ou

apropriado para sua saúde e segurança. O trecho acima nos ilustra isso muito bem.

É fundamental que o trabalhador planeje temporalmente as atividades, mas não

para que as tarefas sejam mais bem resolvidas, mas para que seu tempo seja mais

otimizado e estrategicamente utilizado. Daí, então, o trabalhador irá abrir mão de

qualquer planejamento caso se faça necessário tornar seu tempo mais qualificado

financeiramente. Diniz mesmo indica que toda a organização do trabalho é feita para

ocupar todos os poros possíveis de tempo dos trabalhadores. Referia-se, no

entanto, mais aos modos como é organizada a distribuição da contratação de tempo

de um trabalhador ao longo de um determinado período. Para nós, a ocupação dos

poros de tempo é um exercício cotidiano que o próprio trabalhador coloca em

movimento no aqui-e-agora. Para tornar esse preenchimento possível, não é o

planejamento temporal das atividades que está em jogo, mas como o tempo do

trabalhador será gerido por si e por outros em meio às demandas, às variabilidades

do meio e aos contraintes do trabalho. O foco da gestão do tempo não está na

resolubilidade das tarefas, mas sim no próprio uso do tempo pelo trabalhador.

É importante ressaltar que nem todos os tipos de serviços de motoboys

requererão as mesmas habilidades e a mesma importância na gestão do tempo.

Esse tipo de pré-requisito operacional é mais importante naqueles serviços em que

ele recebe remuneração por entrega e, em particular, naqueles em que essa

remuneração varia em função do tipo de serviço contratado. Em serviços em que o

trabalhador recebe remuneração fixa, a demanda do preenchimento do tempo é

muito maior por parte da própria organização do que dos próprios motoboys. É o que

nos alegava, por exemplo, um motoboy do setor de autopeças, quando afirmara que

a demanda no setor é muito grande, maior do que na pizzaria em que trabalha à

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noite. Isso porque, como a loja em que trabalha estipulou uma meta de que uma

peça só poderá ficar na loja até 10 minutos, então o trabalhador é chamado para

nova viagem, mesmo se acabou de chegar da entrega de outro serviço. Aqui o uso

do tempo de trabalho requer outros tipos de estratégias que não pudemos explorar a

contento. Quiçá, nesse tipo de empreitada, o esforço esteja muito mais em evitar o

máximo a colonização do tempo por parte da organização, impondo alguns limites

para o uso de si por outros. Essa hipótese há que ser confirmada em outras

investigações mais específicas junto a grupos de motoboys que recebam salários

fixos. Independente disso, porém, há que se ressaltar o fato de que mesmo em

serviços de salário fixo, os mecanismos de controle, as pressões dos patrões e

clientes e o excesso de trabalho a ser realizado em um curto período de tempo

impõem ao trabalhador, de qualquer maneira, as condições que só podem ser

adequadamente solucionadas se ele realizar uma gestão apropriada de seu tempo

durante suas tarefas.

Para empreender uma gestão adequada do tempo, o trabalhador se verá

requisitado a mobilizar outros saberes, além do conhecimento dos horários de

funcionamento dos estabelecimentos, do tempo que em média se gasta nele e da

organização da entrega ao longo do dia, conforme nos revelou Diniz. Para nós,

esses saberes não funcionam como pré-requisitos para o exercício de cada tarefa,

mas um repositório de conhecimentos que se mobiliza mais ou menos em função do

tipo de demanda existente e das condições em que o trabalhador se encontra. Influi,

também, nesse processo o tipo de serviço que o trabalhador executa, o tipo de

contrato que ele possui, o tipo de organização de trabalho e o sistema de

remuneração. Não pretendemos esgotar aqui a questão, até porque não

acreditamos que ela seja esgotável. Os trabalhadores estão, neste exato momento

em que o leitor lê esta pesquisa, reinventando suas práticas e seus saberes, pois o

processo é continuo e qualquer tentativa de transformá-lo em conceito será sempre

um exercício limitado, parcial, incompleto e mais ou menos ultrapassado. Além

disso, acreditamos que o uso desses saberes não é distribuído uniformemente entre

os próprios trabalhadores. Até porque nem todos são considerados pelos pares

como bons profissionais. A lista de saberes abaixo serve-nos apenas para

compreender a complexidade de processos mobilizados pelos trabalhadores para

dar conta de suas atividades. Entre que identificamos, além dos anunciados por

Diniz, destacam-se:

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a) Classificação das urgências: se com o auxílio da CBO podemos dizer

que o planejamento temporal permite aos trabalhadores priorizar os

serviços que são urgentes, ela não determina o que é urgência. Ora,

praticamente todo cliente solicita urgência em suas entregas. Nesse

sentido, a definição da urgência de um determinado serviço

demandará, também, da capacidade de avaliação dos motoboys

acerca da disponibilidade de resolução de tal serviço no tempo futuro,

tomando como parâmetro, entre outras coisas, seu planejamento

temporal previamente realizado. Não podemos ignorar, por outro lado,

que a pressão do patrão ou usuário do serviço, exercida diretamente

sobre os motoboys, também irá se somar na definição sobre quando se

dará a realização das urgências. Como resultado, o movimento de

gestão do tempo implica em solucionar não apenas a maneira como se

faz o uso de si por si, mas também como mediar o uso de si por outros

em busca de uma acomodação das exigências da eficiência e da

eficácia.

b) O cálculo do tempo: para realizar um bom planejamento temporal das

tarefas e, principalmente, para que o motoboy consiga gerenciar seu

tempo de maneira adequada, é preciso aprender a calcular o tempo

previsto para realizar cada um dos serviços e o dia como um todo. O

trecho acima registrado reflete um pouco o que o motoboy leva em

conta. O trecho abaixo nos revela ainda mais: E – O que devo considerar para calcular o relógio? Que coisas eu tenho que prestar atenção. Aí vou calcular... se devo calcular o relógio, que devo calcular?

M – Você deve calcular ... [pensa um pouco]. Tem lugares que a gente vai que tem hora pra fechar. Então você tem que calcular mesmo, porque você pode pegar um outro serviço e pode não dar tempo. Você pode se enrolar. E aí se você se enrolar, você sabe a história né. O que que acontece. E... Você tem que calcular também que... que... Você tem mais coisas pra fazer. Por mais que você saia, que você... Você vai ter aquele serviço ali que você pegou e que você vai pegar em outra empresa. Mas só que vai aparecer outros serviços. Então você vai ter que calcular o tempo pra você voltar logo. Você tem que voltar logo. E você tem que calcular também que eles precisam desses serviços até tal horário, também. Nossa, são muito cálculos, cara.

E – Eu calculo o tempo que eu tenho que voltar e o tempo que eles precisam desse serviço. Mas e...tá ok. Mas eu calculo isso rapidinho ou esse cálculo vai acontecendo ao longo da andada.

M – Você já tem que ter uma noção. Você já sai já com seu cálculo. Assim que for acrescentando as coisas, você vai acrescentando seus cálculos.

E – Vai refazendo esses cálculos.

M – Claro. Eu trabalho assim. Se você for trabalhar no meu lugar, você vai ter que ser assim. A partir do momento que você pega aquele serviço, você já começa a

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calcular aonde você vai, o tempo que você vai gastar e por onde você vai passar e onde vai ficar melhor você passar. Onde que você vai gastar menos tempo.

Os saberes que Diniz elenca acima são informações que o motoboy

também deve levar em conta para calcular o tempo. O que importa, de

qualquer maneira, é que o tempo deve ser calculado para que o

trabalhador tenha claro quais os tempos livres que terá disponível,

quais outras ações poderão ou não ser desencadeadas em função

desse tempo livre, o que deve ser priorizado, ou seja, como permear

seu tempo com mais renda, mais recursos, mais valor, etc. Para tanto,

deve considerar, entre outras coisas:

I. Qual é a distância do serviço a ser realizado, baseado na

experiência: “você já tem já uma noção”, e o tempo gasto no

trajeto, considerando-se todas as variáveis (semáforo, trânsito,

desvios, fluxo de veículos, etc.);

II. Se os serviços possuem horário para terminar;

III. Qual a quantidade e o tipo de serviços que possui no momento e

quanto tempo cada um deles vai levar;

IV. A melhor rota para realizar os serviços (a melhor rota pressupõe,

sempre, a que leva menos tempo ou a que lhe dá coloca em

melhor condição logística), considerando-se a seqüência de

serviços a se realizar;

V. Qual é a quantidade possível de novos serviços a se pegar com

uma margem de segurança de resposta. É interessante observar

que nem todos os motoboys consideram os riscos de

imprevistos no trabalho quando fazem o cálculo do tempo que

vão utilizar para realizar as tarefas. O mesmo motoboy do

diálogo acima afirmou, um pouco antes deste trecho, que não é

sempre que utiliza essa margem de segurança de tempo para

resolver os problemas não. Ele mesmo diz: “Eu particularmente,

na hora eu não lembro muito dessas coisas não. Mas é

importante”. Porém, na resposta anterior, ele dizia assim: “Você

precisa também ééééé´... se planejar o tempo todo. Ser uma

pessoa precavida. Porque pode chover, seu pneu pode furar.

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Você tem que ter sempre isso em mente também”. Incoerência?

Inconsistência? Uma crença exagerada em sua

indefectibilidade? Talvez bastante deste último, mas certamente

não incoerência. O que se deduz dessa informação é que não se

pode perder tempo com tempo inutilizado. Um tempo de

segurança seria, talvez, um tempo sem uma utilização precisa e

rentável. Isso não é lucrativo. O que importa, mais que

considerar essa margem de segurança temporal no cálculo é

considerar na sua capacidade de gerir as eventualidades. Por

isso é que, atrelado ao cálculo do tempo, o motoboy deve estar

apto a utilizar um outro conjunto de aprendizagens que

trabalharemos adiante;

VI. Que compromissos já estão agendados, pressupondo-se a

avaliação que já se realizou levando-se em conta o cálculo do

tempo;

VII. Qual o tempo que gastará para retornar à base de trabalho.

Em suma, o que se espera é que o motoboy consiga contabilizar, a partir da

hora em que recebe determinado serviço, o tempo disponível para realizá-lo

considerando-se as outras atividades a serem efetuadas dentro do intervalo que ele

tem para todas as atividades do dia (se é de manhã, se é de tarde, se há algum

serviço já planejado para determinado horário, enfim, saber quanto tempo ele tem

para realizar este novo serviço ou qualquer outro a ser demandado). Como dito

acima, para isso é extremamente importante que o trabalhador saiba analisar

adequadamente a tarefa que se lhe solicita, pois por meio dela ele consegue avaliar,

entre as possibilidades de serviços disponíveis (quando isso é possível) qual é o

mais fácil, qual o que tem a rota que mais compensa financeiramente, qual gastará

mais ou menos gasolina, qual o local de deslocamento, etc., dando-lhe as condições

de decidir quais dos serviços serão admitidos, se há tempo para atividades extras, o

que pode ser negociado, o que deverá ser feito necessariamente, qual a rota deverá

ser utilizada. O planejamento temporal das tarefas, atrelado a uma excelente

capacidade de gestão do tempo, comporão as competências básicas que o

trabalhador deverá desenvolver para destacar-se na atividade.

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Antes de prosseguir, algumas considerações importantes: ao longo desse

texto, não fizemos a distinção teórica entre o planejamento temporal das tarefas e a

gestão do tempo. Entretanto, utilizamos em alguns momentos o primeiro e o

segundo termo como aspectos distintos. Ora, ainda não estamos convencido de que

existem dois processos distintos em curso. Para nós, o planejamento temporal das

tarefas é muito mais um instrumento dentro de uma competência mais ampla e

importante para os motoboys, que é a gestão do tempo. Por outro lado, o uso

instrumental dos saberes de um Planejamento Temporal das Tarefas nos facilita

observar um processo cognitivo – que é realizado previamente ao início da tarefa –

mais facilmente do que a gestão do tempo. Porém, é de nossa opinião que a

capacidade de gestão, e tudo o que ela envolve, implica em colocar em cálculo

outros tipos de registro em jogo, registros não puramente cognitivos ou mesmo

conscientes. São registros do corpo, de um corpo que também é sujeito, embebido

de uma sensibilidade única, fortemente intuitiva, uma entidade biopsíquica que

Schwartz denomina, por meio da Ergologia, de corpo-si (SCHWARTZ; DURRIVE,

2007) ou que, em uma abordagem esquizoanalítica Rolnik, por exemplo, denomina

“corpo vibrátil” (2007). Porém isso não é tão explícito assim para o trabalhador. Aliás,

nem mesmo o próprio processo de calcular é tão explícito assim, ou melhor, a

complexidade de fatores envolvidos nesse processo não são totalmente consciente

assim para os profissionais: eis a nossa segunda ressalva. No trecho acima, após a

explicação sobre que fatores os trabalhadores devem levar em conta para realizar

um cálculo adequado para planejar suas tarefas, o motoboy se surpreende com o

conjunto de variáveis que deve considerar: “Nossa, são muito cálculos, cara!”, diz

em tom de surpresa. Esses saberes são levados em conta de maneira tão intuitiva

quanto o corpo é simbioticamente acoplado à moto. “Não é que você vai pegar uma

cadernetinha, ou então uma calculadora e....”, é o que dizia o motoboy acima, ou

seja, esses cálculos são realmente processos cognitivos, mas parcialmente

inconsciente.

A dimensão do uso e gestão do tempo que encontramos em nossa pesquisa

parece relativizar os achados de Gilvando Oliveira (2003), acerca do trabalho dos

motoboys em Salvador. Segundo esse pesquisador,

o motoboy quase não exerce controle sobre seu ritmo de trabalho. Ele quase não pode definir o tempo em que deve gastar para entregar uma mercadoria ou quanto tempo ele deve descansar entre uma entrega e outra. O que determina esse ritmo é antes a necessidade do cliente. Não há legislação que garanta tempo mínimo para entrega ou descanso específicos para os motoboys (p. 68).

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Concordamos apenas em parte com o que afirma esse autor, pois é verdade

que tanto não há legislação que regulamente os tempos despendidos entre trajetos,

quanto não dá para prever, com exatidão, o tempo que será gasto em cada serviço.

Devemos afirmar, por outro lado, que nossas análises parecem revelar que os

motoboys são menos vítima das condições a que estão sujeitos do que inicialmente

supúnhamos, principalmente porque seu trabalho é praticamente inexistente sem a

aprendizagem de uma gestão adequada desse tempo, requerendo dele estratégia,

esperteza e solidariedade. Mobilizemos mais uma vez Diniz, Assunção e Lima

(2005):

quando a margem de organização do trabalho permite, os motociclistas profissionais tentam cumprir os objetivos estabelecidos pelo setor, sustentando-se nas redes sociais solidárias, no planejamento das rotas, no controle temporal das tarefas, nas negociações das demandas de serviço com chefias e clientes (p.50).

Ou seja, o controle do tempo pode não ser total. Isso, os acidentes que os

motoboys sofrem confirmam: os motoboys se vêem sim obrigados a se acelerar para

dar conta das atividades. Por outro lado, é inegável que existe aí uma margem

gestionária de tempo, onde a pessoa exerce minimante um controle seu. Schwartz

(2004) o afirma com base nos clássicos estudos de operárias de empresas

tayloristas francesas (TEIGER, LAVILLE; DURAFFOURG, 1992). Para nós, a

atividade de trabalho dos motoboys requer uma autonomia muito maior do que se

exige nas atividades da indústria. Aliás, essa autonomia é requerida de um bom

profissional desse setor. Daí, então, que pelo menos em parte, eles possuem ou se

esforçam por obter um controle razoável do tempo.

Um outro aspecto que não teremos condição de trabalhar aqui, e que será um

pouco mais aprofundado adiante, é que existe uma dimensão mais microscópica da

gestão do tempo que se dá no próprio processo de condução das motos. Trata-se,

pois, da capacidade de antecipação de si no processo da pilotagem e que requer

dos motoboys um outro conjunto de saberes e de cálculos que merecem muita

atenção por parte dos próprios trabalhadores e de quem por eles se interessam.

Essa dimensão microgestionária é tão complexa porque está no nódulo central que

os envolve em riscos cotidianos de acidente.

Finalmente, nunca é suficiente lembrar que nosso trabalho privilegiou o

estudo com um grupo de profissionais em particular, que representavam um

determinado coletivo profissional de motoboys. Como dito, sua atividade difere em

inúmeros aspectos das de profissionais de outros setores, o que implica no

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desenvolvimento de conhecimentos também muito específicos. Nesse sentido, a

compreensão do conjunto de saberes utilizados pelos profissionais será sempre

parcial. Essa consideração se aplica de igual maneira a Diniz (2003), que privilegiou

apenas 2 empresas de motoboys e que executavam serviços distintos dos das

empresas que investigamos em Vitória.

Planejamento da Rota

Além dos saberes relativos ao tempo, Diniz sugere que os motoboys lançam

mão de um recurso que é muito importante para a organização das tarefas: o

planejamento da rota. Este saber se mobiliza através da “seqüência de

descolamentos, buscando uma relação de equilíbrio entre o atendimento com

presteza, pontualidade e consumo de combustível” (p.77). Para ele, “o planejamento

da rota é uma alternativa ao comportamento de risco” (p.82), pois por meio dele a

categoria aumenta a agilidade sem necessitar correr tanto para resolver as tarefas.

O planejamento da rota se dá por meio da construção de um trajeto por onde um

motoboy irá passar ao longo de um determinado período de tempo para realizar

seus serviços. Por meio desse planejamento, eles definem que ruas seguir e qual a

ordem de realização dos serviços. Porém, para que esse tipo de planejamento seja

possível, o motoboy irá calcar-se na experiência e, quando ela não for suficiente,

contar com auxílio de pares ou de outras pessoas ou mesmo de consultas a guias

ou mapas84. Segundo Diniz, para realizar o planejamento da rota, o motoboy irá:

a) Tomar como ponto de partida o ponto inicial e o final, as ruas de

acesso possível para chegar ao endereço desejado (ou ponto

próximo), os atalhos disponíveis, o sentido do trânsito nas ruas que

84 Em Vitória, o principal personagem citado pelos motoboys como fonte de informação fora o taxista que, segundo os motoboys, geralmente conhecem muito bem a região em que têm ponto. Quanto à utilização de mapas e guias, isso dependerá enormemente do tipo de serviço que o motoboy realiza, pois há tipos de empresa de motoboys que executam serviços que são “carta marcada” como dizem, ou seja, são sempre os mesmos clientes. Entre essas empresas, encontram-se aquelas que trabalham exclusivamente com documentos, lojas de auto-peças e de outros produtos especializados (contabilidade, etc.). Já em empresas em que o cliente é a pessoa física ou domicílio, geralmente se torna mais comum encontrar motoboys consultando mapas ou guias, pois a quantidade de ruas e avenidas a decorar é muito maior. Entre essas empresas encontram-se as farmácias, lojas de alimentação, empresas de entrega de cartas, revistas, etc.

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conduzem ao local, os locais de conversão, os números conhecidos

nas ruas a que se destinam, entre outros;

b) Escolher as avenidas com melhor escoamento e fluidez, com os

maiores desvios possíveis, com menos semáforos e muita sinalização.

Este ponto é particularmente interessante porque nos remete ao que

Clot (2006) denomina atividade negada. Como vimos no capítulo 1,

Clot diferencia o trabalho real do real da atividade. Para ele, a

concepção predominante de trabalho real não traduz toda a

complexidade existente em uma atividade de trabalho. Em sua leitura,

o trabalho real é aquele que envolve as condições em que a tarefa se

exerce e que se exprime por meio da resultante de um esforço

empreendido pelo trabalhador para tornar factível a execução de uma

tarefa prescrita em dada situação. Ou seja, a “tarefa real”, na versão

apresentada por Leplat e Hoc (1998), se define pelos “objetivos e

condições a se ter em conta que são efetivamente tidos em conta” pelo

trabalhador (1998, p.170). O conceito de trabalho real procura dar

conta do efetivamente realizado pelo trabalhador. Para alguns

ergonomistas, aí se inclui tudo o que o trabalhador – pessoal e

coletivamente – mobiliza para dar conta do trabalho prescrito em uma

situação concreta (BRITO, 2006), processo a ser sempre melhor

explorado. Clot, talvez como uma estratégia para valorizar sua

contribuição, prefere dar maior importância às concepções mais

redutoras da Ergonomia, sugerindo que o conceito ergonômico de

trabalho real não considera tudo o que é mobilizado pelo trabalhador

para realizar uma tarefa. Para ele, em cada atividade existe um

conjunto de outras ações e intenções que são postas em movimento,

mas que não são completamente visíveis, não obstante joguem um

papel igualmente importante na realização da tarefa. Entre essas

ações, encontra-se aquela de suprimir atividades que tentam se tornar

manifestas durante a execução de uma tarefa. Esse processo requer

um grande esforço, uma vez que além de ter que realizar sua

atividade, o trabalhador deverá controlar impulsos e desejos, o que

pode ser muito doloroso para ele. Baseado em seu estudo com

maquinistas de trem na França, observa, por exemplo, que os

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condutores dos trens urbanos tendem a manifestar mais sofrimento do

que os que conduzem trens de longos trajetos. Uma das razões deve-

se a que o condutor de trens urbanos é confrontado a ter que

continuamente suprimir sua vontade de andar, de deixar a máquina

correr. Parece-nos que entre os motoboys algo semelhante ocorre.

Embora não o consigamos ainda comprovar, os motoboys tendem a

escolher as vias com melhor escoamento não só porque permitem um

maior ganho de tempo, mas também porque, por meio delas, não

precisam esforçar-se tanto para ter que desviar do traçado da própria

pista. Parece que para eles, desviar-se de sua rota, de sua linha de

condução, torna-se um exercício penoso:

Eu gosto de trabalhar com uma rota praticamente subindo, né. Uma rota onde você vai, sem desviar caminho. Por exemplo, se você vai no Centro e Vila Velha, eu não tenho que nada que ir fazer entrega aqui na Ilha [de Santa Maria], ou fazer entrega em Maruípe pra depois subir. Por que? Porque eu vou gastar tempo e vou gastar mais gasolina, concorda? Então eu viso muito isso, é meu jeito de trabalhar. Trabalhar sempre subindo. Se eu tenho que fazer o centro da cidade, então, eu vou fazer o Centro, Vila Velha e vou voltar pra loja. Vou economizar tempo e economizar gasolina.

Trabalhar sempre subindo significa andar em um caminho lógico,

seguindo as vias principais, como se as etapas da tarefa passassem

mais rápidas. Desviar o caminho implica em “perda de tempo”, “gastar

mais gasolina”, ou seja, andar mais. Esse motoboy não recebe

comissão. Seu salário é fixo, a moto é da empresa e a gasolina

também. Nos informou que o patrão não controla a gasolina. Mas

mesmo assim, ele não quer perder tempo ou andar mais. A atividade

que aqui é negada talvez seja a que dá mais prazer aos motoboys:

correr, sentir o vento no rosto. Negar esse impulso é tornar o trabalho

mais real possível. A análise do real da atividade nos revela que além

de modos operatórios, também há desejos, impulsos e fantasia em

jogo. Tudo isso, entretanto, é apenas uma inferência a se confirmar.

c) Conhecer e recordar os n° das casas, as referências para lembrar

delas, etc.;

d) Conhecer a natureza do trânsito em determinadas ruas, considerando-

se determinados horários – o que às vezes leva o motoboy a utilizar

caminhos alternativos;

e) Organizar os serviços (entregas) de acordo com a rota estabelecida;

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f) Evitar voltas perdidas, retornando a algum local já passado para fazer

um outro serviço.

É importante mencionar que não é em todo tipo de serviço que a rota é

completamente seguida. Em várias empresas, entre elas farmácia, lojas de

autopeças, cartucho de tintas, lanchonetes e pizzarias, pelo menos a direção da rota

é definida pelo conferente, despachante, telefonista ou secretária da empresa à qual

o motoboy está prestando serviço. Nesse sentido, se não podemos seguir o mesmo

raciocínio que Oliveira (2003) utilizou em relação à falta de controle que eles

supostamente têm sobre o tempo, por outro lado, não podemos dizer que o

planejamento da rota é um procedimento do qual eles possuem total autonomia.

Assim, ele é conformado a seguir para determinadas zonas, restando-lhe a

incumbência de decidir por quais caminhos realizará seu trajeto e qual a ordem dos

locais deverá passar primeiro. De qualquer maneira, é interessante observar que,

como no exemplo dado acima, esse planejamento da rota é confrontado com

impulsos diferentes dos que autonomamente o motoboy escolheria para si. É

importante lembrar aqui que dentro de um limite variável, haverá sempre margem

para negociações. Isso significa dizer que antes da escolha das rotas, o motoboy

tentará exercer, por meio da análise prévia dos serviços, suas habilidades de

negociação visando evitar aquele tipo de serviço que menos lhe interessa ou que irá

tirá-lo da rota.

Além desses aspectos que o profissional deverá levar em conta no

planejamento da rota, e que foram revelados por Diniz, identificamos também a

necessidade do motoboy:

a) considerar as características peculiares dos serviços envolvidos, pois

às vezes a melhor rota não é a rota possível, porque o horário de

realização dos serviços (fechamento de banco, de repartições públicas,

etc.) não permite a escolha da melhor rota. Por outro lado, o uso de

uma determinada rota “não racional” pode levar o motoboy a aproveitar

melhor o tempo para realizar outras atividades enquanto essa rota vai

sendo desenvolvida. Esse aproveitamento do tempo – ou seja, uma

vez mais, uma gestão do tempo – pode levar, no caso de um

determinado grupo de motoboys de Vitória, a uma outra alternativa

para aumento da renda, muito interessante: a transgressão por meio

da espera, ou, como alguns deles dizem, uma “canetada”. Dizíamos no

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capítulo anterior que uma espera85 tem um determinado valor.

Entretanto, é importante observar que esse mecanismo pode não ser

financeiramente compensatório, pois o valor que ganharia com a

espera poderia ser bem menor que o valor de um serviço que o

motoboy poderia pegar enquanto se, ao invés da espera, voltar para

seu ponto original:

[Acerca da questão se é melhor fazer a espera ou voltar...] Compensa mais voltar para praça, pois assim a gente pode agilizar outros serviços. Outras coisas. Meia hora parado lá, recebe apenas uma letra, agora meia hora na praça, a gente consegue fazer até três letras, dependendo do dia. Então é melhor voltar.

b) esforçar-se para manter a rota na cabeça. Diante de inúmeras

questões que o motoboy tem que lidar durante sua pilotagem, algumas

acabam imprimindo um outro curso de pensamento em sua cabeça.

Fatos tais como a distração causada por uma mulher bonita que passa

na rua, uma fechada que leva ou mesmo alguns pensamentos ou

lembranças que simplesmente lhe surgem à cabeça (tais como dívidas

atrasadas ou mesmo hábitos nos seus trajetos), tudo isso pode levar o

motoboy a perder o controle do planejamento da rota que fizera

previamente. Se a rota é feita para otimizar o trajeto, economizando

tempo e gasolina, uma distração indesejada pode lhes desviar de sua

rota inicial, fazendo-o perder o caminho e o precioso tempo que dispõe,

além de alguns indesejáveis reais. Por exemplo, observe esse trecho

de uma entrevista com um grupo de motoboys. Estávamos

conversando sobre a questão da rota e um deles começou a nos falar

acerca dos pensamentos em sua a cabeça. Utilizando-nos da mesma

linguagem que o motoboy utilizava, continuamos: “Mas, essa coisa de

você já ir ‘fazendo’ o pensamento daqui para lá, traz para você alguma

complicação antes de você chegar nesse local?”. Um dos motoboys

nos respondeu:

você sai com a cabeça pensando que vai passar por isso, por isso e por isso. Igual comigo hoje rolou uma situação, mas não foi bem assim. Eu estava com minha rota já na cabeça. Beleza, vou sair de um lugar e passar já no outro. Só que aí eu coloquei outro pensamento na cabeça: tipo assim ‘PIS amanhã’ [risos]. Aí: ‘putz, pagar negócio de PIS’!!! Era para chegar na ponte ali, ir pra cá para ir no CB&A, na Enseada do Suá, na Praia do Suá. Eu peguei o contorno e já fui direto para o Vitória

85 Espera é o tempo que o motoboy fica disponível em um determinado local para realizar um determinado serviço, por exemplo, fila de banco, repartição pública, ou mesmo aguardando a conclusão de um serviço pelos clientes.

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Office Tower ali. Pô, depois é que eu me liguei. Eu falei: ‘pôxa, não era para vir para cá não’. Aí eu dei a volta, e vim embora. Pô, que vacilo.

O esforço da manutenção da rota na cabeça é ainda mais difícil para o

motoboy que está habituado a um determinado trajeto e que, de repente, pega um

serviço que em parte segue o trajeto habitual, mas que em alguns trechos deve

prosseguir por outros caminhos. Aliás, é muito provável que o hábito, que é a

acomodação do corpo a um determinado movimento, pode exercer um papel

problemático em outras circunstâncias, sobretudo durante a pilotagem no trânsito.

Esse é um outro aspecto a se investigar futuramente.

Do nosso ponto de vista, Diniz parece perceber o planejamento da rota como

mais importante do que a gestão do tempo ou a avaliação e negociação dos

serviços. Isso porque descreve esse tipo de saber com muito mais detalhe do que os

demais. Para nós, Isso se deve mais ao tipo de empresa que observou que à

atividade de trabalho do motoboy propriamente dita. Um motoboy do setor de

farmácia refere-se a um trabalhador experiente como aquele que sabe tudo quanto é

“buraco” da região onde faz entrega de medicamentos. Já os motoboys que

trabalham “na letra” referem-se ao bom profissional como aquele que consegue ter

resolubilidade. Ora, fica claro que as competências necessárias variam em função

do tipo de serviço que se faz. Daí, o planejamento da rota ser um aspecto

extremamente importante para um conjunto de motoboys e não tão importante para

outros. De qualquer modo, esses saberes sobre o tempo e sobre a rota não são

verdadeiramente dissociáveis, até porque, como se referia um motoboy acerca da

indagação se se devia dar mais atenção ao espaço percorrido ou ao tempo

decorrido de um serviço:

Tempo e espaço. Você tem que se preocupar com tempo e com o espaço. Porque eu acho que, sei lá, tempo é espaço. Querendo ou não, que seja um espaço curto, ou... não. Mas é tempo, e espaço. É uma coisa que você sempre tem que calcular. Tempo e espaço. Espaço é tempo, tempo é espaço. [risos].

Observa-se, porém, que no cotidiano é mais comum que a construção da rota

sofra menos necessidade de gestão do que o tempo. Por isso é que para nós o

termo Planejamento da Rota parece suficiente para explicar o processo em curso.

Por outro lado, algumas falas citadas acima mostram claramente que o espaço

transcorrido é inevitavelmente levado em conta na gestão do tempo. Ou seja, na

gestão da atividade como um todo, a rota a seguir é como um marco referencial que

o motoboy planeja previamente e que, por meio dela, para a ter certa condição de

seguir suas atividades e elucubrações com uma certa segurança e comodidade. O

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único risco é deixar-se levar por demais em suas elucubrações, confiar por demais

no corpo e no hábito e, por isso, perder o curso do que fazia.

Mobilização de rede solidária pertinente

Um outro conjunto de estratégias que operam um papel fundamental no

trabalho dos motoboys é a mobilização da rede solidária pertinente. Esse processo,

identificado também por Diniz (2003), merece uma pequena consideração prévia.

A despeito do clima descontraído que existe em qualquer ponto de motoboy –

basta chegar lá para observar que as piadas são contínuas e as gozações de um

sobre o outro são quase que uma norma –, e da freqüência com que se relacionam

com outras pessoas para execução dos serviços prestados, é fato que este trabalho

seja um trabalho relativamente solitário, pois os trabalhadores tendem a passar boa

parte do tempo em cima da moto, em filas de bancos ou repartições públicas

trocando poucas palavras com outras pessoas. Porém, a constante utilização de

artifícios entre eles revela uma dimensão coletiva fundamental para a segurança do

trabalho: por meio de uma rede coletiva, os motoboys conseguem reduzir o

dispêndio de tempo e de combustível sem perder a agilidade e pontualidade.

Segundo Diniz, trata-se mesmo de “uma intensa rede solidária de ajuda mútua”

(2003, p.79) pelas quais eles trocam serviços, compartilham tarefas e auxiliam o

colega. Diniz dá alguns exemplos interessantes, que vão desde a busca de

informações sobre como chegar mais facilmente a determinado local, ou sobre locais

de ocorrências de blitz policiais, quanto à troca de tarefas entre os colegas.

Encontramos também em Vitória exemplos semelhantes. Determinado dia,

enquanto conversávamos com um grupo de motoboys do setor de serviço,

reparávamos que eles recebiam ligação telefônica e não saíam direto para o

trabalho. Ficavam lá “coelhando”, como esse grupo dizia: ficar agachado, como que

esperando algo acontecer. Depois de determinado tempo cada um deles, em seu

ritmo, resolve partir. Quando se levantam, outros lhe perguntam para onde vão.

Indagamos a um deles porque não partira de imediato. Ele nos respondeu que seria

para ver se haveriam outros serviços para fazer, pois como recebem por entrega,

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vale sempre a pena fazer mais de um serviço ao mesmo tempo. Daí, naquela tempo

em que ali permaneciam, avaliavam a urgência, o tipo provável de serviço a ser

realizado, entre outras coisas e, a partir daí, decidiam que caminhos tomar. Disse

ainda que os motoboys mais apressados acabavam perdendo os melhores serviços.

E de repente ele foi embora. Um certo tempo depois, retornou e disse que não

conseguira fazer o serviço porque a repartição pública onde levaria um documento

estava fechada. Logo depois, chega um outro que pega com ele um determinado

material. Combinam o custo do serviço, o quanto cada um estava devendo ao outro,

e o outro motoboy vai embora. Perguntamos do que se tratava aquela conversa, e

ele explica. Quando estava ali esperando, recebera duas outras tarefas, uma em Vila

Velha e outra em Cariacica86. Como se tratava de caminhos completamente distintos

um do outro, ele ligou para um amigo que sabia que estava indo para Cariacica e

pediu-lhe para entregar um dos documentos em seu lugar. Perguntamos como ele

sabia que o amigo estava indo a Cariacica, e ele disse que sempre que alguém sai,

ele pergunta para onde a pessoa vai. Indagamos se isso acontecia com todo mundo.

Ele disse que não, que só fazia isso com os colegas mais próximos. Disse-nos ainda

que alguns nem têm costume de dizer para onde vão e que essas trocas são

realizadas, só com esse amigo mais próximo, até porque nem a empresa, nem o

cliente deveriam saber que elas estavam acontecendo. Indagado sobre as formas de

controle da dívida, ele brincou: “dívida a gente nunca esquece!!!” E saiu.

Nessa estratégia, revela-se uma rede solidária de ajuda mútua, é verdade.

Mas é verdade também que essa rede não é para todo mundo, a priori. Há que se

estabelecer laços de amizade entre os profissionais que tornam possível o arriscar-

se em conjunto. Esse processo requer tempo, maturidade e investimento subjetivo.

A confiança é um fator dos mais caros para o trabalhador, Dejours nos mostra isso

muito bem (2002). Até porque, o que está em jogo nessa troca é a própria carreira

do motoboy. O que ele tem que levar em conta não é apenas se conseguirá ou não

fazer o serviço, mas principalmente qual será a disponibilidade que esse trabalhador

terá para resolver os problemas. Ou seja, ao se passar o serviço, passa-se também

a responsabilidade para resolvê-lo. Porém, quem recebe o serviço deverá dar a

garantia de que o outro terá o mesmo tipo de responsabilidade que ele teria:

86 Cidades da região da Grande Vitória e que se acessa por caminhos diferentes. Como parte importante da cidade de Vitória é uma ilha, se chega a Cariacica e a Vila velha por meio de pontes. Porém, além de pontes distintas, os trajetos para se chegar a cada um dos municípios são bastante distintos.

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Eu recomendo muito ao cara ‘pelo amor de Deus [com ar de exclamação/recomendação/pedido], qualquer coisa você liga pra mim. Isso aqui é isso, isso e isso. Tal hora isso aqui tem que estar em tal lugar. Se alguma coisa der errado, ligue pra mim, por favor’. Eu faço isso. Se eu achar que essa pessoa não vai seguir as minhas recomendações, eu não faço não. Porque isso é difícil também. São poucas as pessoas que eu posso confiar a fazer isso.

Quando se trata de uma mesma empresa, onde todos estão sob a mesma

responsabilidade e possibilidade de controle, etc., a solidariedade se amplia, pois as

condições de troca são mais viáveis e a confiança já está mais ou menos

estabelecida. Mas mesmo dentro de uma mesma empresa, o nível de confiança e de

risco envolvidos é ponderado antes de qualquer troca.

A fala deste último motoboy também é interessante porque no revela um outro

aspecto que será um pouco mais trabalhado adiante: a disponibilidade para o

serviço é outro fator chave para que o motoboy consiga dar conta das variabilidades

do meio. Esse parece ser um dos elementos centrais do processo de “confiar a

minha entrega”. Ora, o processo de gestão da atividade, já discutido acima no

tocante à dimensão temporal, encontra aqui um outro registro: o motoboy é levado a

gerir suas contraintes por meio do uso de outras pessoas que estão em processo de

atividade. Esse processo só pode ser construído com o tempo. Um motoboy certa

vez nos confessou, cheio de planos, que “estava ganhando muito dinheiro”. Ainda

relativamente novo no ramo, trabalhava como autônomo há alguns meses.

Descobrira a mina de ouro! Já fazia planos diversos para um outro futuro que se lhe

abria diante dos olhos. Mas via-se numa encruzilhada: sabia que não poderia seguir

trabalhando sozinho por muito tempo, mas não conseguia decidir-se por quais

colegas chamar para trabalhar com ele. Mesmo seu irmão, que trabalhava numa

empresa que partilhava o mesmo ponto, não era um trabalhador em que ele poderia

confiar. Como gerir as diversas demandas ao mesmo tempo em que deveria gerir

encontros e relacionamentos? A solução não seria fácil, pois precisava de pessoas

com quem não teria que se preocupar. Precisava de pessoas com o mesmo perfil

que o seu. Eis uma dificuldade central para o desenvolvimento de seu negócio. Na

mobilização da rede solidária pertinente, os motoboys enfrentam dificuldades

semelhantes, pois ela requer em parte, esses mesmos requisitos de confiança,

dedicação e responsabilização pelo serviço em curso. Contudo, essa confiança

existe e se propaga entre os trabalhadores. Basta verificar o que fazem

cotidianamente. Uma rede coletiva de solidariedade de trabalho está formada.

Diniz sugere que a mobilização da rede solidária se manifesta na(o):

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a) Busca com os colegas (ou outras pessoas, tais como taxistas,

transeuntes, etc.) sobre as informações de que não dispõe (local e

trajeto para se chegar em determinadas ruas, etc., por meio de

informações sempre ricas em detalhes);

b) Aprendizagem das rotas, serviços ou outras manhas, às vezes

acompanhando os colegas no exercício das suas atividades;

c) Repasse de serviços para colegas que estão em (ou que irão para) o

local determinado pelo serviço;

d) Construção de uma rede de relacionamento nos estabelecimentos a

que se destinam para agilizar os serviços nesses locais.

Diniz até se refere ao uso do rádio ou do celular para acionar a rede solidária,

o que faz cair por terra a idéia de que se trata de um serviço individual. Entretanto,

em nossa opinião este autor não dá o crédito merecido à importância fundamental

da comunicação neste serviço. Para nós, este aspecto é mais um dos componentes

fundamentais do trabalho dos motoboys e que merece um tópico à parte. Quanto à

rede solidária, veremos que ela se transforma em um aspecto do trabalho que

exerce um papel muito importante para sua atividade, seja porque auxilia no

enfrentamento das contingências, seja porque solidifica o sentimento de pertença ao

grupo, conformando um processo de subjetivação que joga um importante papel no

processo de produção de saúde e satisfação no trabalho. A rede solidária pertinente

é uma das raízes em que se nutre a idéia de formação de um gênero da atividade e

de um coletivo de trabalho. A sua base calcada em confiança e cooperação produz,

além disso, reconhecimento e prazer no exercício da atividade (DEJOURS, 2002).

Talvez não possamos supor hoje a existência de um gênero nos moldes que

determina Clot (2006) pois, segundo o autor, um gênero de ofício requer um

patrimônio acumulado de experiências substanciais e partilhada pelo menos por

algumas gerações. Parece inegável, entretanto, que a força de um coletivo de

trabalho constitui-se e nutre-se dessas pequenas, mas preciosas, experiências de

partilha e solidariedade. Poder-se-ia talvez, como sugere Athayde (2008)87, falar em

coletivo de trabalho e gênero de trabalho (à diferença de coletivo e gênero

profissional ou coletivo e gênero de ofício). Essas experiências, se não são tão

fundamentais ao sentido e à vivência psicológica do trabalho, como sugere Clot

87 Notas de orientação com Milton Athayde, UERJ, 2008.

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acerca dos gêneros da atividade profissional, certamente operam funções psíquicas

muito importantes para a saúde dos trabalhadores. E, uma vez mais, vale a pena

ressaltar que, conforme Diniz, a utilização dessas redes implicam em resolver

melhor o trabalho, com mais segurança e maior remuneração. No último capítulo nos

deteremos um pouco mais especificamente sobre o papel desse coletivo de trabalho

posto em curso pelos motoboys e seus efeitos em sua saúde.

Há que se observar, também, que o papel da rede solidária pertinente é muito

maior que simplesmente servir de suporte instrumental para a realização das

obrigações de cada trabalhador. Ela é um campo de aprendizagem, partilha e

suporte emocional. Neto, Mutaf e Avlasevicius (2006) mostraram as partilhas de

códigos, vestimentas e valores. Essa é a teia do comum do qual se embebeda o

trabalhador para tornar seu trabalho culturalmente localizado. Mas não é só isso.

Para nós, todos os saberes já aqui mencionados não seriam viabilizados sem um

desenvolvimento adequado de uma rede solidária ou, quiçá, de um coletivo de

trabalho. A idéia de coletivo de trabalho em Psicopatologia do Trabalho tem no

estudo de Cru sobre os talhadores de pedra na França (1987a, 1987b) um

importante capítulo. O que define esse coletivo é a formação de um conjunto de

trabalhadores que exercem uma determinada tarefa em comum, mediado e

organizado por regras que devem ser incorporadas e atualizadas individualmente

por cada membro do coletivo, membro esses que são de mesmo nível hierárquico. O

coletivo de trabalho e suas regras organizam as relações entre os trabalhadores,

criam referências para o exercício das atividades, inauguram uma linguagem de

ofício e fortalecem o sentimento de pertença e de identificação grupal. Veremos no

capítulo 6 se é pertinente utilizarmos a idéia de coletivo de trabalho no caso dos

motoboys. De qualquer maneira, se para realizar as tarefas os motoboys

prescindem, em muitas situações, do envolvimento direto de outros colegas, em seu

fazer cotidiano o trabalhador sempre se localiza dentro de um grupo referencial. Seu

acesso às empresas, suas experiências, suas dificuldades são sempre traduzidas

em linguagens e conversas referidas a um coletivo. A confissão relatada acima

sinaliza a desconfiança em relação a outros trabalhadores. Mas ela nos revela o

reconhecimento da necessidade de se partilhar o seu negócio. Será impossível dar

conta de tudo sozinho. O que essa confissão não revela é a história anterior ao

momento em que ele trabalha. O jovem empreendedor relatado acima trabalhava em

uma empresa por meio de contrato informal. Com o tempo, foi conquistando a

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confiança exclusiva de alguns clientes que passaram a contratá-lo diretamente.

Onde aprendeu a ser “tão bom”? Como sabia quais eram as demandas do mercado?

Onde conseguiria seus clientes? Com quem aprendeu a “ler” o mercado? Sua

história na atividade, escutando, trocando, observando o que os outros faziam, tudo

isso vai construindo um modo de ser motoboy, um modo que é de interesse para o

que se demanda desse tipo de trabalhador em Vitória, mais particularmente, nesse

tipo de serviço que realiza. É no meio do grupo que se forma, que se

aprende/apreende seu fazer. Um fazer que não é só seu. Ele se apropria, a seu

modo (criando seu estilo, cf. Clot, 2006), daquilo que está já aí no grupo.

Dessa forma, a rede é solidária e pertinente porque permite o acesso aos

outros. Mesmos havendo pelejas entre os mais velhos e os mais novos na profissão,

é fato que não há recusas quando há demanda quanto ao fazer. Em todos os grupos

que fomos, não há divisões explicitadas in locu entre os que estão há mais tempo e

os que estão há menos tempo na profissão. Essas acusações se dão mais ao nível

de discurso do que propriamente uma reação no cotidiano da atividade. E isso ficou

muito claro para nós que não poderia ser diferente, já que as dimensões do coletivo

entre pares na atividade dos motoboys são sem dúvida mais cruciais para sua vida.

Disponibilização e mobilização comunicacional

A construção de uma rede solidária não seria possível sem o

desenvolvimento adequado de saberes comunicacionais. Mas não apenas porque é

por meio da comunicação que o trabalhador consegue acionar a rede existente.

Com o tempo, ele vai percebendo que a comunicação é mais um recurso em que a

atividade se sustenta e que deve ser dominado: o processo de comunicação é um

instrumento chave na qualidade do trabalho. Um dos saberes comunicacionais a se

aprender é explorar o serviço demandado. Quanto mais informação sobre um

serviço, mais facilmente o profissional poderá atendê-lo. Um motoboy nos diz: M.: Ah, uma coisa muito importante: é ... a comunicação. Quanto mais comunicativo você for com essas pessoas.

E.: que pessoas?

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M.: Com as recepcionistas, sempre nas agências também, ... as empresas. Os locais que a gente freqüenta. Quanto mais comunicativo você for, melhor você vai se destacar. Vai ficar bem mais fácil as coisas pra você …

E.: Você falou que eu tenho que ser comunicativo. Comunicativo como?

M.: Eh... Por exemplo, que nem as vezes. Eles passam o serviço pra gente. Aquela coisa assim: ó, vou pegar e vou passar ó, faz isso e pronto. Não, não é assim. De repente ela esquece de falar alguma coisa, de te dar uma informação. De repente ela te dá o documento. Mas esquece de falar que tem que chegar lá e dar o recado a ciclano, pra dar o carimbo tal e tal. Tem sempre uma coisinha que ela esquece. Então é bom você chegar, “não, mas vem cá, então eu vou pegar o numero do BL é esse aqui mesmo? É isso e tal?”. Porque às vezes eles têm tanto serviço que eles acabam esquecendo. Então é esse tipo de comunicação, de saber ... trabalhar em equipe com ela.

Ou seja, “trabalhar em equipe com ela” significa partilhar de suas

necessidades, usar a sua experiência adquirida para explorar o que se quer, o que

se precisa. O motoboy deve aprender que não se basta sozinho e que o uso de si

pelos outros também não funciona prescritivamente. A prescrição é importante, mas

falha desde o princípio. O motoboy precisa construir meios de preencher as falhas

da prescrição e das demandas. A comunicação é chave nesse processo. Saber

falar, perguntar, explorar, criar um vínculo com quem demanda seu trabalho. Para

Schwartz, o motoboy deve antecipar vazios de saber ou “vazios de normas”

(SCHWARTZ; DURRIVE, 2007). Essa comunicação vai permitir ao trabalhador

conhecer melhor o serviço, instrumentando-o a analisar melhor do que se trata a

tarefa, suas urgências, os custos em torno dela, os caminhos de ir e vir. Sem essa

comunicação, o motoboy pode realizar uma análise inadequada, acarretando em

possíveis erros e todo o planejamento temporal das atividades e da rota podem se

tornar ineficazes. O motoboy não terá como gerir seu tempo de trabalho e muito

provavelmente não obterá ganhos satisfatórios e nem conseguirá resolver o que se

lhe demanda no tempo adequado. Seus esforços serão mais penosos e a

insatisfação dos clientes e dos patrões também.

Uma comunicação instrumental que lhe permita conhecer o serviço. Para

tanto, é preciso ser objetivo, ser conciso, fazer as perguntas certas. A comunicação

adequada lhe dá o conhecimento dos termos utilizados, lhe permite expressar aquilo

que acontece na prática. Quando fazíamos entrevistas sobre a atividade, era muito

difícil – e ainda é – utilizar os termos adequados sobre a atividade. Aprender a

utilizar a linguagem de maneira instrumental para explorar o serviço requer tempo,

prática e se torna um saber extremamente importante.

Mas não é apenas em torno da instrumentalização da linguagem em direção à

atividade que se deve utilizar a comunicação. Um outro exemplo, do mesmo

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motoboy, nos revela algo ainda mais interessante. Durante a técnica das instruções

ao sósia, onde os motoboys nos ensinavam o que fazer, em caso de um

determinado problema acontecer durante a execução de uma tarefa qualquer (por

exemplo, o pneu furado em um momento em que o trabalhador estivesse com

tarefas urgentes a realizar), o motoboy nos responde:

A sua melhor estratégia, cara, é a comunicação. Sempre. Cara, o serviço de motoboy, seja em qualquer circunstância, você tem que ter uma boa comunicação. Não uma boa comunicação de você falar bonito [esse ‘falar bonito’ foi dito meio cantando, como se sinalizasse a um outro gênero lingüístico], não. Conversa prática, entende. Mas que seja,... que te ajude. Ajude a você, ajude as pessoas que você está trabalhando, e as pessoas que estão esperando de você aquele trabalho, entende? O tempo todo. Se seu pneu fura, se... um documento está errado, se você demorou pra chegar no lugar. Procura manter a calma, procura ter controle das coisas, porque quanto mais você se desesperar, pior é. Porque você está trabalhando no trânsito, e a sua vida está em risco. O tempo todo. Sua vida e seu trabalho, né, ... sua profissão. [como que uma lembrança importante].

Esse exemplo nos mostra claramente que a instrumentalidade da

comunicação não serve apenas para explorar melhor a atividade. A

instrumentalidade da comunicação exerce um papel importante, também, no modo

de acionar a rede solidária. Não uma conversa explanatória, não um discurso

político. O motoboy deve aprender a acionar, mobilizar, utilizar a rede solidária. Faz-

se o uso de si por si, em meio ao uso de si por outros, para conseguir fazer o uso de

outros por si: “uma conversa prática ... que te ajude e ajude as pessoas que você

está trabalhando, e as pessoas que estão esperando de você aquele trabalho”, é o

que nos dizia um motoboy. Uma comunicação prática, cheias de catacreses

linguageiras, em que o trabalhador se lança “recorrendo aos meios que eles ainda

assim lhe oferecem, meios mais ou menos presentes no repertório genérico mantido

pelo coletivo” (CLOT, 2006, p.175). A comunicação instrumental, prática, recorre ao

gênero do trabalho, pois ali se depositou, ao longo do tempo, os saberes, valores,

conhecimentos e modos operatórios para dar conta da operação. O motoboy

exemplifica como:

Não perca a paciência. Não perca. Seja paciente, cara. Seja paciente o tempo todo. Não perca a paciência. Não perca o controle das coisas não. E, primeira coisa. Você precisa de reforços. Aí é que está. Você já telefona: ‘central, ó, meu pneu furou. Meu pneu furou, estou em tal lugar, hora tal, sujou. Liga pra tal pessoa e procura saber quem está mais próximo de mim’. E aí você já começa ligar também. Você já liga pra empresa e fala: ‘ó, meu pneu furou, vai demorar a chegar aí. Estou procurando saber quem está próximo de mim pra pegar esse serviço e estar aí o mais rápido possível’. Já deixa todo mundo ciente. Não procura resolver o problema você sozinho não. Você pode [como que em interjeição nessa e nas frases seguintes, mas termina a sentença no tom anterior]. Você pode conseguir. Você pode dar conta, mas não é bom você arriscar não. É muito importante você trabalhar em equipe. Principalmente nos momentos mais difíceis, né, claro. É como uma guerra, uma batalha.

E continuando logo adiante:

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Pneu furou. Pelo menos um minutinho você tem. Você tem pelo menos um minutinho pra você [rindo] ...[arfando] respira, respira fundo e agora? Você vai ter um minutinho pra isso. Você respira, pensa... Tal hora,... cara, você já liga.... ‘ó, Helena, o negócio é o seguinte. O pneu ta furado, o documento precisa estar em tal lugar em tal hora, tal, tal, tal, tal, tal, tal’. Você vai procurar o que? Você já tá procurando um reforço psicológico, já. Você já ta procurando, né, energias pra ... aí ela vai, né, te ajudar a pensar. Já são duas cabeças. Aí você já liga pra empresa: ‘olha, o pneu furou. Pq, já é desculpa, né. Você está falando a verdade. Primeiro que você ta falando a verdade. Então você já está se desculpando já, ‘ó... pneu ta furado’. Então eles já estão preparados já pro que pode acontecer. E... Aí você já começa já... a menina de lá da central já vai estar já correndo atrás, ligando pra um ou pra outro, pra saber quem é que vai passar por ali pra pegar o serviço com você e terminar, concluir o serviço. Aí que vai acontecer: aí já cabe também, aquela pessoa que vai pegar o serviço comigo, se ela tiver um serviço também, também procurar trabalhar em equipe, ... Você também, cabe também a você passar pra essa pessoa, ... dessa pessoa querer trabalhar também em equipe com você e passar esse serviço para uma outra pessoa que vai caber à essa pessoa, entende, já... tipo assim....

Essa comunicação permite não só acionar, mas sustentar a rede solidária.

Até porque o serviço, dada sua complexidade e grande variabilidade, requer o

controle de muitas informações que não estão sempre disponíveis para a pessoa no

momento em que se encontra. A rede é ampla e deve reverberar. Nem sempre é

apenas uma pessoa que deve ser contatada. O cliente deve saber, alguns colegas

devem saber, o pessoal deve saber o que está acontecendo. Mas o motoboy deve

aprender para quem ligar primeiro, seja porque tem na pessoa um “reforço

psicológico”, seja porque essa pessoa poderá resolver o problema para ele. Para

tanto, deverá saber como comunicar e o que se passar; saber o que se diz e o que

não se diz. Aprender a ser sincero, e não correr das necessidades. Porém, dizer o

que precisa ser dito. E pronto.

Alguns motoboys podem não ter o mesmo tipo de disponibilização: “Às vezes

eles ficam com pena de gastar telefone, fica... entende? Não quer gastar muito com

telefone. Ou então às vezes não tem até o mesmo raciocínio de fazer isso, de

procurar sincronizar as coisas. Mas, eu faço isso.”, é o que nos dizia esse mesmo

motoboy acerca da postura de alguns de seus colegas. Trata-se, pois, de um estilo

seu de resolver os problemas. Mas esse estilo não é uma aberração coletiva. É uma

apropriação particular que esse motoboy desenvolveu a partir do momento que

começou a trabalhar como motoboy. Assim, se é verdade que alguns tenderão a

procurar trabalhar mais confiantes em suas habilidades e competências, enquanto

outros tenderão a sustentar-se em alguns poucos amigos mais próximos, fato é que

o coletivo de trabalho fornece os instrumentais comunicacionais que devem ser

adequadamente aprendidos para viabilizar seu uso quando necessário.

Aliás, mesmo que essa comunicação seja utilizada apenas para que o

trabalhador consiga adiantar alguma coisa, para obter novos serviços, para se livrar

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de constrangimentos88, ou simplesmente para tornar o trabalho mais agradável89, é

a comunicação o que garante a conexão do motoboy com o mundo. Essa atividade

é um trabalho de comunicação antes de qualquer questão. Não diríamos que se

trata de um ‘planejamento comunicacional’. O motoboy não precisa organizar antes

de cada tarefa o que vai falar, quando e com quem vai falar. Ele deverá saber o que

falar, quando falar e com quem falar no momento necessário: uma gestão

linguageira, quiçá. Trata-se, com certeza, mais de uma disponibilização e

mobilização comunicacional em torno de um esforço para utilizar da linguagem de

maneira prática, para que consiga explorar adequadamente o serviço realizado,

fazer-se disponível para a comunicação e acionar e sustentar a rede solidária

quando necessário. Aprender a dispor-se da linguagem do coletivo, da atividade é

mais um dos saberes fundamentais dessa profissão e que nos aponta, com ainda

mais rigor, para a constituição de uma dimensão coletiva no trabalho exercendo um

papel central na sua atividade de trabalho.

Identificamos em nossa pesquisa outros tantos conjuntos de saberes que

merecerão uma discussão mais aprofundada a ser realizada em outro local. Apenas

apresentaremos seus fundamentos, lembrando que vários deles já foram apontados

por outros autores que por uma razão ou por outra não preferiram dar o devido

destaque a elas. Acreditamos que esses saberes são tão estratégicos quanto os

apresentados até aqui e por isso devem ser devidamente destacados. Alguns

produzem efeitos na segurança do profissional, outros na renda salarial ou na

agilidade de trabalho. Suas aprendizagens dependerão também, em maior ou menor

grau, do repertório genérico construído pela categoria. Um trabalho específico sobre

saberes poderá trabalhá-lo minuciosamente, extraindo com exaustão toda a sua

riqueza.

88 Um motoboy deu exemplo de uma placa que tem na perna e que é um problema para entrar no banco. Alega, no entanto, que em vários estabelecimentos já conseguiu uma amizade com os guardas que lhe evita perder tempo e constrangimentos com a porta travando. 89 Já dissemos algumas vezes que a categoria utiliza muito das piadas, das brincadeiras e das “sacanagens” em relação aos colegas. Os motoboys riem muito. Qualquer coisa é motivo de gozação.

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Gerenciar transgressões

Um conjunto de saberes que para nós merece um destaque importante se dá

exatamente sobre uma das coisas que mais chama a atenção no trabalho dos

motoboys: sua capacidade de transgressão e ousadia. Diniz argumenta que

a busca por agilidade e economia de combustível conduziu os motociclistas a elaborar procedimentos distintos. Alguns não incrementam os riscos de acidentes: consultam o guia da cidade; não desligam a motocicleta ao colocar a correspondência na caixa do correio; empurram a motocicleta desligada sobre passarelas e faixas de pedestres; solicitam auxílio do coletivo de trabalho e atendimento prioritário nas repartições. Outros, ao contrário, apesar de alcançarem os resultados pretendidos, incrementam os riscos: andam na contra-mão do trânsito e sobem à calçada com a motocicleta ligada (2003, p.87).

Para agilizar o serviço, alguns motoboys lançam mão de pequenas (ou não

tão pequenas assim) transgressões, tais como subir nas calçadas com as motos

ligadas, entrar na contramão, etc. Estas se tornam parte do seu cotidiano. Diniz

(2003), Oliveira (2003), Veronese (2004) e Silva (2006) observam que a

transgressão é fruto de uma organização do trabalho em que o trabalhador é

lançado em um paradoxo crucial: ter agilidade sem aumentar a velocidade! Exige-se

dele que utilize dos meios que lhes estão disponíveis – sobretudo a perícia na

pilotagem – para obedecer às pressões dos prazos exíguos e da sobrecarga de

trabalho para atender às demandas dos clientes. Por outro lado, se o repreende

pelas transgressões que comete. Esse paradoxo é quase insolúvel. Até porque a

transgressão faz parte do cotidiano, ao ponto de não ser possível mesmo pensar o

trabalho sem uma dose de comportamentos transgressores.

No entanto, como vimos acima, Diniz adverte que essa atitude transgressora

não é utilizada pelos trabalhadores de maneira igual por todos. Mas Diniz parece

não explorar adequadamente aquilo que ele mesmo percebe, ou seja, que essas

transgressões não são utilizadas a esmo. As transgressões, sempre que possível,

são planejadas e avaliadas em sua periculosidade, tomando-se como parâmetro as

condições do local, tais como se há ou não veículos, guardas, pessoas no contexto

da transgressão, as condições da pista, a velocidade dos objetos da cena, etc. O

motoboy que incrementa o risco não é um suicida em potencial: ele aprende a usar

as “manhas” da profissão por meio de uma aprendizagem “na marra”. Aliás, não

estamos mesmo convencidos de que se pode distinguir tão nitidamente dois estilos

diferentes de condução, como o faz Diniz. Se por um lado é verdade que alguns

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motoboys distinguem modos de direção diferente, mais marcadamente apontado na

distinção entre profissionais mais novos e mais antigos – como vimos acima, esse

aspecto foi citado em Veronese (2004), Oliveira (2003) e Neto, Mutaf e Avlasevicius

(2006) e corroborado em nossa pesquisa –, por outro, é nítido que mesmo aqueles

que utilizam do conjunto de procedimentos socialmente “adequados”, vez por outra

lançam mão de saberes de transgressão. Um deles uma vez nos relatou: “Essa fita

não pode parar em mãos erradas”, antes de nos contar um tipo de transgressão

utilizado pela categoria. Outra vez, um grupo de motoboys nos confessa algo

transgressor e depois nos diz: “cuidado com o que você vai dizer”. Essas falas

sugerem que, mesmo que eles não utilizem as transgressões de maneira corrente,

elas fazem parte do repertório de instrumentos possíveis dos quais os trabalhadores

podem se utilizar para desenvolver adequadamente sua atividade.

É claro que concordamos em parte com Diniz acerca do fato de que essas

transgressões muitas vezes incrementam os riscos de acidentes. Por outro lado,

como veremos no capítulo seguinte, a dimensão do risco envolve muito mais do que

simplesmente um determinado padrão de comportamento ou de estratégias

utilizadas pela categoria.

Na condição que atualmente nos encontramos, a atividade dos motoboys é

praticamente impossível sem a transgressão90, principalmente porque embora se

espere que os trabalhadores reduzam o tempo da entrega entre o pedido e o

consumo, nada se faz para a melhoria das condições dos trajetos por onde esse

produto passará. Resta-lhe, então, lançar mão de sua inventividade e ousadia. Além

disso, como vimos no capítulo 3, a transgressão se torna compatível e condizente

com uma atividade que se desenvolve em ambientes completamente eivados de

improvisações: parte dos motoboys geralmente aguarda suas tarefas nas praças e

saídas de edifícios, sem qualquer tipo de suporte organizacional. Nesse ambiente, o

trabalhador simplesmente “se vira” para sobreviver. Arranjam comida, água e

descansam onde podem. Oliveira (2003) também denuncia algo semelhante em

Salvador:

Uma das maiores reclamações dos motociclistas profissionais é a falta de espaço apropriado para permanência dentro da empresa. O ambiente de espera não tem uma estrutura adequada para o funcionário e geralmente carece de conforto. Os motoboys podem aguardar os pedidos dentro da própria empresa, na porta dela ou em um estacionamento dela. Mesmo as empresas que mantêm uma sala especial

90 Aliás, em certa medida, em todas as atividades de trabalho há um componente transgressor, é o que a Ergonomia e a Ergologia nos ensinam.

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para o motoboy em espera não costumam ter uma ambiente mais confortável. Muitas vezes, existe apenas um banco para duas pessoas, obrigando os motociclistas revezarem o descanso. O ambiente da empresa normalmente não oferece conforto nem para os motoboys, nem para os patrões e funcionários administrativos, principalmente nas pequenas, com menos de dez funcionários (p.70).

Oliveira deixa claro que essa improvisação e descaso não é sempre um

“privilégio” dos motoboys, o que nos fortalece a idéia de que toda a atividade é

considerada como menos importante que outras atividades profissionais. Em Vitória

não pudemos visitar muitas empresas de motoboy, o que não nos permite comparar

a realidade experimentada pelo patrão e outros funcionários das empresas. Alguns

patrões, geralmente também motoboys, ficavam junto com os trabalhadores nas

praças. Outros ficavam em suas casas ou escritórios, deixando nas praças alguém

para coordenar as atividades. De qualquer maneira, o que queremos dizer é que

este não é tido como um emprego qualificado e os trabalhadores têm que se

contentar com essa precariedade. Um trabalho precarizado, sem a importância

adequada, acaba criando no ambiente cultural da profissão algo que ouvimos em

uma outra situação drasticamente diferente: em um encontro de travestis e

transexuais do qual participamos em função de outros compromissos profissionais,

presenciamos a discussão de uma travesti representante das “profissionais do sexo”,

argumentando para as colegas acerca dos ganhos e perdas existentes em torno de

uma regulamentação da “profissão”. Dizia que para a profissão ser regulamentada e

que, a partir daí pudesse reivindicar o respeito como profissionais, seria muito

provável que elas deveriam ter que abrir mão de um determinado tipo de

comportamento muito comum no grupo: a transgressão. Ora, como ser “profissionais

do sexo” é estar na marginalidade, é tolerado socialmente que cometam algumas

transgressões que não seriam toleradas em situações socialmente “respeitosas”, tais

como comportamentos extremamente expansivos, acordos ilegais de proteção,

cafetinagem, suborno policial, etc. Pois bem, guardadas as devidas proporções, nos

parece que no mundo do trabalho dos motoboys existe algo semelhante a essa

experiência da marginalização. Eles têm que se virar nas ruas para o trabalho. Em

contrapartida, tolera-se deles comportamentos que são esperados daqueles que

estão nas ruas. Seus comportamentos no trânsito refletem um pouco disso também.

Não se dá espaço para eles, não se os protegem, não se importa com eles. Eles

então revidam: assumem as brechas, invadem a contramão e desafiam as normas.

“O trânsito é uma selva”, foi dito mais de uma vez. A sobrevivência na selva deve ser

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batalhada às custas da norma. A desregulamentação do mercado, da profissão, da

atividade reflete-se em um trabalhador que deve aprender a transgredir, a burlar a

norma. É uma profissão do jeitinho.

Repetimos, porém: não é que o trabalhador aplique esse princípio o tempo

inteiro. O trabalhador aprende a transgredir. Ser esperto, ser malandro é uma

característica que se aprende no Brasil desde cedo. Entre os motoboys, essa

malandragem também é aprendida. Até porque não se trata tanto de uma escolha.

Nisso Diniz (2003), Oliveira (2003) e Veronese (2004) estão corretos. Essa

transgressão está intimamente relacionada aos princípios da organização da

atividade. Porém, não podemos negar que se trata de um recurso disponível a todos

os trabalhadores.

Dizíamos acima, por exemplo, que o trabalhador de um determinado tipo de

serviço aprende a utilizar da “canetada” para obter maiores recursos financeiros. Por

meio da criação ou manipulação das “esperas” que supostamente ou realmente os

motoboys fazem nas ruas, têm-se ali possibilidades de se ganhar alguns preciosos

reais. Porém, certa vez presenciamos uma discussão entre eles acerca de um dos

motoboys que estava no grupo que não estava conseguindo gerenciar essa

“canetada” adequadamente. Esse fato estava trazendo perigosas suspeições por

parte dos clientes. O fato era mais ou menos assim: um dos profissionais, um

empregado informal de uma empresa criada por três motoboys que também

trabalhavam com seus empregados91, estava abusando do uso das “canetada”.

Estava utilizando as esperas indiscriminadamente em qualquer empresa, mesmo

naquelas que já não estava mais dando esperas a qualquer custo. Num dia em

particular, esse profissional pedira 3 esperas para uma empresa que estava dando,

no máximo uma hora de espera (ou seja, 2 esperas). A redução das esperas por

parte do cliente se dava, em primeiro lugar, para reduzir custos e, em segundo lugar,

porque como vários funcionários dessa empresa-cliente iam com uma certa

freqüência aos locais em que os motoboys fazem as entregas de documentos, os

91 Na verdade, nesse tipo de contrato geralmente não há uma relação patrão-empregado, como comumente se tem em outros tipos de serviços. Os motoboys dizem que eles trabalham um para os outros. Até porque os supostos “patrões” são também motoboys e geralmente chamam colegas em que confiam para trabalhar com eles. Mas essa não é uma regra. Algumas empresas informais procedem de maneira menos “coletivizada” assim. Uma determinada empresa que executava contratos informais com seus funcionários procedia de maneira diferenciada entre os trabalhadores: os mais novos recebiam salário fixo; os que tinham mais tempo, ganhavam comissão. O fato é que a falta de regulamentação e fiscalização permite uma gama inimaginável de contratos dentro dessa atividade profissional. Os dados mostrados no capítulo 03 deram apenas um panorama geral do que se pode encontrar no mercado de trabalho.

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gerentes da empresa-cliente já haviam percebido que as esperas não eram tão

longas como eles estavam habituados a pagar. Os 3 colegas, donos da empresa de

motoboy, cortaram então uma das 3 esperas “canetadas” pelo motoboy. Ele ficou

revoltado com o corte. Não admitia que perdesse a espera. Porém, o que ele não

percebia é que essa espera expunha de maneira indesejável a prática dos motoboys

para os clientes. De fato, o motoboy tentava simplesmente dar uma “canetada” como

muitos fazem. E o planejara adequadamente: ele foi e voltou, com o serviço

realizado, em 20 minutos, mas esperou na praça mais uma hora antes de levar o

protocolado de volta para a empresa cliente. Acreditava que enganaria a empresa-

cliente, pois, de fato, demorara 1h30 para pegar o serviço e trazer o protocolado de

volta para a empresa. Porém, para os patrões dessa empresa de motoboys, ele

estava “sem noção das coisas”. Um desses patrões nos ensinava:

Você tem que saber usar isso. É muito importante você dar umas canetadas. Assim de espera, porque é uma grana a mais, né [...] Eu, sempre faço tendo espera ou não: ‘olha, tem meia hora que estou aqui já, hein’. Pra quê? Para quando eu chegar ali, ficar: ‘ah, mas não deu isso tudo. Como é pode dar isso tudo?’. Então, eu já aviso: ‘o problema aqui está sendo esse, esse, esse e vai demorar [...]’ Às vezes se ele tivesse resolvido dessa maneira, ele não tivesse que ficar ouvindo nada de Marcelo ou do Pedro [donos da empresa]. Porque o problema seria dela com alguém. Que ele chegasse lá e falasse, se tivesse afim de dar uma canetada, ficasse lá. ‘Juliana [a pessoa que controla os gastos com motoboys da empresa cliente], o negócio é o seguinte. Está tendo um problema aqui, a maquina está com defeito. Tem um cara aqui na minha frente que está com um bolão de protocolo e vai demorar’. Antes ele resolvesse dessa maneira.

Os donos da empresa não estavam proibindo a transgressão. Muito pelo

contrário. Ele até nos ensinou como fazer. Ou seja, trata-se de um saber que se

partilha, transmite. Mas é claro que o tempo vai ensinando o profissional a realizar

essas atividades da maneira mais adequada, ao ponto dela fazer parte da maneira

como o motoboy trabalha. O motoboy continua um pouco à frente: “São detalhes

que você tem que está ali, na pele para você entender essas coisas”.

Alter (2001) sugere mesmo que “a transgressão é uma ‘carreira’”, já que

conduz o trabalhador, por meio de um verdadeiro processo de aprendizagem das

práticas e valores identitários de transgressão, “a uma descoberta progressiva das

‘vantagens’ da transgressão depois da criação de uma identidade desse tipo” (p.76).

Ou seja, a transgressão não se dá de maneira individualizada e desvinculada do

grupo em que este motoboy se encontra. Aprende-se com o grupo os valores que

fornecem a cada um dos membros uma forma de identificação, possibilitando, nesse

processo, a se incentivar, a se produzir e a se tolerar alguns comportamentos,

pensamentos, atitudes. De maneiras variadas entre os grupos, a transgressão é um

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dos cenários possibilitados por cada coletivo de trabalhadores. Alter (2001)

argumenta, porém, que essa prática não é particular de determinados tipos de

trabalho ou organizações. Para ele, a transgressão está na raiz do processo de

inovação e sempre envolvido em meio a riscos diversos. Chama atenção, também,

que o valor da transgressão se altera em cada grupo, em cada situação e pelos

julgamentos em torno dela. De qualquer forma, mostra que em certa medida, as

atualmente tão propaladas inovações que se espera dos trabalhadores, não podem

vir descolados de um ambiente que permita experimentações. Porém, não é muito

comum encontrarmos organizações em que este ambiente experimental esteja

disponível para os funcionários. Dessa maneira, o trabalhador se vê em meio a um

impasse: ter que ser inovador sem que se tenham os meios adequados para esse

processo experimental de inovação. Os riscos são enormes, tanto do ponto de vista

do sucesso do processo inovatório – que se for mal-sucedido implicará em prováveis

punições por parte da empresa –, quanto do ponto de vista da segurança do

trabalhador e seus pares. Mas há compensações: prestígios, mais recursos e

reconhecimento. Por outro lado, a experimentação do processo inovatório é muitas

vezes vivida como uma intensa contrainte pelo trabalhador.

Concordamos em parte com as idéias de Alter, uma vez que o processo

inovatório requer um meio adequado para o desenvolvimento de sua potencialidade.

Ele admite que a inovação também seja um fato que se dá no cotidiano,

independente das condições dadas às pessoas para experimentá-la. Contudo, Alter

não explora a riqueza de possibilidades existentes nas micro-inovações que os

trabalhadores produzem no cotidiano e seus efeitos no coletivo de trabalho. Não

percebe adequadamente que o processo de criação de novas práticas para a

realização do trabalho não conduz apenas à incorporação de novas tecnologias ou

novos bens de consumo ao mercado – tecnologias essas que se desenvolvem em

processos de invenção –, mas permitem a renovação contínua dos saberes coletivos

partilhados pelos trabalhadores.

Alter parece também dar muito crédito aos princípios “evolutivos” do processo

de incorporação de invenções à sociedade. Baseado em Schumpeter, Alter nos dirá,

por exemplo, que para um invenção ser agregada à vida das pessoas, ela

geralmente avança por 3 estágios: o primeiro momento é aquele em que

determinados indivíduos marginais ao circuito econômico-mercadológico utilizam das

inovações para reconstruírem seus modos de fazer e pensar; o segundo momento

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se trata do estágio em que há uma explosão de imitações dessa primeira

experiência dos pioneiros, explosão caracterizada pela completa deregulamentação

das práticas, uma vez que no primeiro momento não se criaram regras e normas que

tornassem possível regular o uso da invenção; o terceiro momento é quando há uma

institucionalização das práticas inovadoras, tornando a invenção parte do cotidiano.

Seguindo essa idéia, poderíamos inferir que os motoboys estariam em uma etapa de

transição entre o segundo e o terceiro movimento, pois se já não há mais aquela

experiência de sucesso financeiro e mercadológico vivido pelos pioneiros, por outro,

a explosão de práticas desregulamentadas conduzem a um cenário de violência que

caracteriza o segundo momento do processo de inovação. Porém, diante do cenário

confuso em que se propaga uma dupla necessidade de utilização dessas práticas de

trabalho, seja pelo mercado que não consegue mais viver sem os motoboys, seja

pela necessidade de organização e redução dos riscos de acidentes e precariedade

de trabalho envolvendo esses profissionais, a sociedade se vê levada a iniciar um

processo de institucionalização e organização do processo de trabalho desse setor;

é o que vem acontecendo em várias cidades do país.

Entretanto, não dá para se ter certeza de que esse processo “evolutivo” das

inovações seja realmente sine qua non de incorporação de invenções de práticas e

bens sociais. Não temos certeza, por exemplo de que a atividade de trabalho dos

motoboys será, realmente, regulamentada, antes que venha a fenecer. De qualquer

maneira, as idéias de Alter, a partir de Schumpeter, fortalecem os indícios de que a

realidade de trabalho dos motoboys esteja se perpetuando em um meio

parcialmente à parte dos circuitos centrais do mercado. Essa marginalidade oferece

condições de tornar as práticas transgressivas menos indesejadas ou perigosas.

Com a vantagem de que, para os centros institucionalizados de controle e poder, o

sacrifício das vidas dentro desse campo de marginalidade são de responsabilidade

de quem nele se lança. Ou seja, se os trabalhadores se ferem, se acidentam, isto é

uma conseqüência de seus atos e escolhas: por não terem escolhido

adequadamente em que tipo de trabalho ganhar suas vidas, porque não percebem

os riscos de maneira adequada, porque exageram na velocidade, porque são

imprudentes, porque são irresponsáveis, etc. Os custos desses acidentes, porém,

estão tão altos que o próprio Estado se vê, agora, obrigado a repensar suas

práticas. Além do aumento do Seguro Obrigatório de Danos Pessoais Causados por

Veículos Automotores de Vias Terrestres (DPVAT), os custos com a internação de

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acidentados por motocicletas na rede do Sistema Único de Saúde (SUS) estão

atingindo valores insustentáveis. Trata-se, pois, de um motivo a mais que nos

permite suspeitar algo semelhante ao terceiro movimento de institucionalização das

práticas inovatórias dos motoboys ao centro de regulamentação do mercado.

Voltando, então, à dimensão da transgressão, observamos que ela permeia a

atividade do motoboys por várias razões: por ser virtualmente impossível a

realização do trabalho, nas condições existentes, sem a transgressão; por ser um

valor partilhado pelo coletivo de trabalhadores; por ser uma prática tolerada em

grupos sociais marginalizados; por ser aceitável em meio a arranjos produtivos

improvisados e precários. De tudo isso, observa-se que as transgressões não são

frutos de uma escolha propriamente individual. Mostramos que ela faz parte dos

saberes que o coletivo de trabalho partilha e sustenta. Cabe a cada um ir

aprendendo como se aproveitar dela, ingressando nessa “carreira”, seja para tornar

seu trabalho mais rentável ou menos desgastante, seja para conseguir aproveitar um

pouco o tempo durante a condução. O motoboy deve se esforçar para incorporá-la,

torná-la uma coisa “da pele”, para que consiga gerenciar seu uso de maneira

adequada no cotidiano. A transgressão coloca em jogo uma aposta que envolve

riscos, mas engaja o trabalhador na exploração de suas próprias capacidades. Os

efeitos desse processo no trabalhador e no coletivo são fundamentais. Discutiremos

isso um pouco no capítulo seguinte, onde nos deteremos, também, sobre a

investigação de um determinado conjunto de saberes que estão diretamente

vinculados às transgressões nos modos de condução, a saber, a pilotagem. Esses

saberes não são propriamente coletivos, mas envolvem princípios que têm um efeito

importante na maneira como se constrói e se valoriza a experiência de risco, razão

pela qual ela merecerá um destaque no capítulo vindouro. Observaremos lá que a

pilotagem da moto é talvez a aprendizagem que se dá de maneira mais individual na

profissão, mas ao mesmo tempo, envolve dimensões extremamente coletivas,

principalmente no que concerne às aprendizagens de estratégias de proteção e os

sistemas coletivos de defesa.

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A complexidade do trabalho

Vimos, até o momento, apresentando um conjunto de saberes que os

trabalhadores aprendem no cotidiano para conseguir realizar suas tarefas de

maneira apropriada. Deixamos claro que esses saberes não são homogeneamente

utilizados por todos os trabalhadores e em todos os setores da categoria. A

descrição desses saberes nos auxilia enormemente a compreender que, a despeito

do fato de que as tarefas dos motoboys sejam realizadas em geral individualmente,

sua realização está calcada em saberes desenvolvidos e partilhados pelo coletivo,

ou seja, no repertório genérico da profissão. Desses saberes cada um vai se

nutrindo para incorporar e desenvolver as saídas e oportunidades que o patrimônio

coletivo lhe fornece.

Por essas análises empreendidas, podemos também observar que o trabalho

dos motoboys é muito mais complexo do que inicialmente se pressupõe. A riqueza

de detalhes e de combinações não podem deixar de ser trazidas à tona. Mesmo que

eles constantemente o naturalizem e digam: “ser motoboy não é difícil não. Tipo

assim, eu acho que uma semana que você já pegou tudo já – só se você for muito

cabeça dura mesmo”. No final de uma aplicação da técnica das instruções ao sósia,

um motoboy nos disse, ao lhe afirmarmos que não seria fácil substituí-lo: “é fácil

substituir sim. Sabe o que que é isso? É porque eu acabei sendo detalhista demais.

Ou não [risos]. Sei lá. Eu acho que teve detalhes/92 Eu não entrei em certos

detalhes, para você entender tanto detalhe, entende. [Risos]”. Fomos obrigados a

dizer: “Entendi”. Havíamos realmente entendido? Curiosamente sim, ao mesmo

tempo em que não. Entendemos que toda a complexidade da atividade do trabalho

que ele havia nos fornecido era insuficiente para compreender a gama imensa de

outros detalhes que ele não disse. Se quiséssemos ficar apenas mais próximo do

prescrito, os detalhes teriam sido em excesso, porém, por mais rico tenha sido o

conjunto de instruções dadas, o motoboy não tinha condições de ensinar toda a

riqueza aí presente. Esses detalhes não ditos forneceriam outras pistas para o

exercício da atividade, mas possivelmente não fazem parte do cotidiano das

92 Essa barra “/” significa aqui que ele interrompeu o fluxo do raciocínio para iniciar outra sentença. Essa interrupção não foi pausada. É como se, antes de terminar uma sentença, ele iniciasse uma outra que seria mais convincente.

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discussões linguageiras. São detalhes que se detalham pelo corpo, pela “pele” do

trabalhador, em uma referência ao que Schwartz chama de corpo-si. Por outro lado,

é hilário, e ao mesmo tempo óbvio, que não entendemos exatamente o que o

trabalhador queria dizer: “detalhes não ditos que não permitem compreender tantos

detalhes”?

Os motoboys alegam, contudo, que a aprendizagem da profissão é rápida.

Mais de uma vez os ouvimos dizendo: “Aqui com um mês dá pra saber se ele vai ser

bom ou não. Se o cara for ruim, com uma semana já se sabe, devido à forma que

conduz o trabalho”, ou: “como são locais fixos para ir, para fazer as entregas, em

média um mês já dar para está apto, dá para fazer o trabalho legal”. Mas se a

aprendizagem geral da profissão é rápida, por outro lado é com o tempo que ele vai

“pegando os macetes” da profissão. Eles não conseguiam precisar o tempo para que

esse processo acontecesse. Isso, porém, não é um problema. O desenvolvimento

dos saberes é constante. Um motoboy inova de uma maneira e rapidamente esse

saber reverbera entre os colegas. Certa vez um deles nos contou que um colega

havia descoberto um determinado local que ficava a alguns metros de seu ponto,

onde poderia realizar um tipo de serviço que só podia ser realizado a quilômetros de

distância, no trecho mais temido para eles irem. Por mais que esse motoboy

tentasse guardar o segredo para si, pois lucrava muito realizando ali o serviço, já

que cobrava o mesmo valor da ida para o local sem precisar nem mesmo utilizar a

moto, os outros logo perceberam essa brecha, generalizando a prática pelos

colegas. Com o tempo, as empresas também perceberam o movimento e

começaram a não pagar mais o mesmo valor previamente cobrado para o

deslocamento. Esse exemplo mostra que as práticas são continuamente

reinventadas e reverberam por entre os colegas.

A complexidade do trabalho caminha pari passu ao desenvolvimento da

atividade e do coletivo de trabalho. Nessa história, definem-se, também, as

competências da atividade que vão estabelecendo referências importantes para os

trabalhadores. A despeito da importância desse tipo de análise, não discutiremos

aqui a riqueza das análises das competências para a compreensão dessa atividade,

uma vez que essa análise escapa sobremaneira do escopo dessa pesquisa.

Utilizaremos apenas uma pequena contribuição de Schwartz (1998) ao debate sobre

as competências para extrair o que, para nós, parece ser uma, senão, a questão

chave da atividade dos motoboys.

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Raciocínio de resolubilidade

Schwartz (1998) lança mão dos princípios da Ergologia para definir de

maneira mais apropriada elementos ergológicos que estão em torno das

competências. Reconhece a importância do processo avaliativo em torno delas, mas

acredita que as práticas tradicionais as reduzem a dimensões que não permitem

explorar diversas outras competências em torno das quais os trabalhadores lançam

mão para tornar sua atividade capaz de resolver as demandas que se lhe impõe.

Propõe, então, a descrição do que denomina ingredientes da competência, ou seja,

um conjunto sinérgico de elementos que estão envolvidos na atividade de trabalho e

que vão conformando referências das quais os trabalhadores devem se apropriar

para tornar seu trabalho possível.

Define 6 ingredientes. O primeiro deles refere-se às dimensões da

antecipação e generalização: para qualquer atividade haverá sempre um grau de

antecipação, prescrição, normatização que o trabalhador deverá minimamente

manipular. Os saberes coletivos, os instrumentos de trabalho, os limites do exercício,

tudo o que diz respeito ao que está posto como saber, como dado, como tradição,

como história refere-se a esse ingrediente.

O segundo ingrediente refere-se ao exercício oposto ao da antecipação, ou

seja, a capacidade de improviso e inventividade diante dos limites inevitáveis das

prescrições, trata-se da dimensão em que uma determinada atividade (ou mais

precisamente, um determinado momento em que a prescrição é limitada) requer

uma improvisação para se tornar factível.

Um terceiro ingrediente refere-se à necessidade do trabalhador fazer uma

dialética desse processo: colocar em diálogo os dois primeiros ingredientes,

encontrando uma saída factível e coerente com a resolução das tarefas. Nesse

exercício, o trabalhador repõe à prescrição os desenvolvimentos e saberes que

aprendeu no processo de improvisação e inovação.

O quarto ingrediente refere-se ao uso do corpo nesse processo, ou seja,

como se faz uso de si por si por meio do uso do corpo-si, seus saberes tácitos, os

processos quase “intuitivos” em torno dele, onde se sabe sem saber que se sabe. É

o ingrediente do uso das percepções não conscientes do momento.

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O quinto ingrediente remete às reverberação que esse corpo produz em todos

os demais ingredientes, ou seja, as apropriações e mobilizações que esse corpo-si

faz de todas os ingredientes anteriores e, o que é fundamental, como ele os coloca

em movimento a partir das dimensões dos valores em debate em cada escolha, em

cada tomada de decisão. É o ingrediente que permite ao trabalhador se posicionar

como pessoa, em sua integralidade, nos dilemas e dramas da atividade, lançando

mão da história, das percepções, dos valores em jogo, dos usos de si e dos outros

na situação. Um corpo que “incorpora” as normas, traduzindo-as e modificando-as

“na pele” em um jogo silencioso, mas ao mesmo tempo fundamental, para a

resolução das necessidades imposta pela atividade.

O sexto ingrediente refere-se à maneira como se acessa e se mobiliza o

coletivo do trabalho em torno da atividade. Trata-se de um ingrediente em que há um

retorno da experiência ao grupo, mas também um acionamento adequado àquilo

que se precisa e se pressupõe da coletividade, na composição de entidades

coletivas relativamente pertinentes (SCHWARTZ; DURRIVE, 2007)

A definição desses ingredientes não significa que todos as atividades de

trabalho requerem na mesma intensidade os 6 ingredientes. Enquanto algumas

profissões utilizam mais do primeiro ingrediente, como o caso da engenharia, outras

requerem mais o uso do sexto ingrediente, como é o caso dos trabalhadores de

montagens de estruturas de eventos (CAU-BAREILLE; MEYLAN, 200593), onde o

exercício da capacidade de atuar na coletividade é algo sem a qual não é possível

realizar a atividade. Mas, de uma forma geral, as atividades requerem todos os

ingredientes descritos.

Usando essa descrição dos ingredientes da competência, somos inicialmente

levados a considerar o quarto ingrediente como o mais importante no trabalho dos

motoboys, pois sua atividade acontece por meio do uso da inteligência corporal para

a garantia de sua segurança no trânsito. Porém, por razões já suficientemente

descritas nesse trabalho, somos constantemente levados a crer que o aspecto

central do trabalho dos motoboys está justamente em como fazer o uso do corpo – o

ingrediente quatro – para dar conta das necessidades da improvisação – ingrediente

dois – que a organização do trabalho lhe impõe. Daí, então, que o ingrediente cinco

também é bastante requerido na profissão. Com isso, deduz-se que uma das

93 Este texto chama-nos atenção também por que nos ilustra como, nesta atividade, se partilham os conhecimentos acerca dos saberes de prudência.

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dimensões centrais do trabalho gira em torno da capacidade do profissional de fazer

uso de seus recursos, incorporados (“na pele”), para dar conta dos desafios

impostos pela profissão. A transgressão do trabalho é aqui um exemplo extremo

disso que acontece a cada momento. O trabalhador tem que “desembolar” o serviço,

como se disse acima, da maneira que puder; ele deverá improvisar para dar conta

da demanda. Nesse sentido, a transgressão é apenas uma via para tornar isso

possível. Acelerar é outra forma, mas a utilização dos saberes acima descritos – a

gestão do tempo, o planejamento da rota, a mobilização da rede solidária, o uso dos

saberes comunicacionais – são também utilizados para tornar a atividade

profissional possível.

Claro que outros saberes tomarão parte nesse processo. Em uma

determinada oficina, cujo material não pudemos gravar com qualidade,

impossibilitando a transcrição adequada, um motoboy referia-se à capacidade de

memorização e conhecimento dos endereços como uma qualidade característica

dos trabalhadores mais antigos. A memória é, então, fundamental para esse tipo de

serviço – no caso, um grupo de motoboys que trabalhava entregando medicamentos

para uma farmácia. Porém, a atividade de trabalho não se resume à memorização

dos endereços, mas como dispor dessa memória para compor as melhores rotas, a

melhor gestão do seu tempo de entrega, e como torná-la disponível para a resolução

de quaisquer intercorrências no transcurso da atividade.

Aliás, a resolução do erro é um fenômeno que merece uma observação em

particular na atividade dos motoboys. Durante a aplicação da técnica de

autoconfrontação, um dos motoboys cometeu um erro durante a execução de sua

tarefa. Deixara um documento em um local inapropriado. Ele houvera entregado um

documento errado porque misturara os documentos, em função da ordem em que

decidira distribuir os protocolos. Na gravação se ouve a conversa dele com a

secretária do local onde deixara os documentos indevidamente: “Ah, ficou um

documento que nem era de vocês...”. E ele comenta, rindo, para o pesquisador:

“Entreguei um documento errado”. “Você entregou errado”, dissemos. Na fita ele

continua: “vou lá buscar, então”. E ele comenta:

Eu misturei os documentos. Que nem eu estava falando pra você, de colocar o protocolo junto e tal. O documento ficou junto. Aí eu entreguei um junto com o outro”. “Isso foi em qual empresa”, perguntamos. “Foi o da FLM, eu entreguei junto com uns da Exportaid. Não tem o da RCA?... Eu não coloquei... Você lembra que eu coloquei o protocolo? Que eu falei para você, ‘ah, isso não tem importância, poderia ter jogado fora, e tal’, eu saí para fazer o serviço só da Exportaid. Então eu não coloquei o protocolo. Mas, no meio do caminho eu fui na FLM, lembra? Eu devia ter colocado

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o protocolo. Para não acontecer de/ Não, eu não lembrei. Aí eu peguei e coloquei os dois documentos juntos. Cheguei lá e entreguei os dois. O maço!!!

Perguntamos que sensações são desdobradas a partir desse “erro”. Ele se

diz chateado consigo mesmo. Perguntamos o que pensara na ocasião. Disse-nos

que como esse era um dia sem muito movimento, um dia tranqüilo de serviço, ele

não teria problema com o tempo necessário para resolver esse problema. Por isso

não ficara tão nervoso com a situação. Observamos, porém, que a partir daquele

momento ele passara a buzinar mais vezes. Ele responde que ficara mais tenso, por

isso precisava que eles [os carros] abrissem caminho para ele, pois estava com

pressa. Ele diz que ficara decepcionado consigo por ter vacilado no trabalho, mas

acreditava que isso não influenciaria sua condução no trânsito. A pressa seria maior,

e a tensão também, mas não pelo fato de ter ficado decepcionado consigo mesmo.

Perguntamos o que mais lhe pesava no “erro”: o tempo, ou o dinheiro. Ele diz que

procurava era pensar nas empresas, pois pretendia satisfazê-las o tempo todo. Daí

sua preocupação ser resolver o problema, ou não causar nenhum prejuízo ou

transtorno às empresas a quem prestava serviço. Disse que não estava com a

cabeça nem no tempo e nem no dinheiro, mas na satisfação dos clientes. Caso

fosse um dia em que tivesse muito serviço, ele certamente estaria cronometrando as

coisas na cabeça, fazendo cálculos – “eu passo em tal lugar, vou passar por lá

mesmo, mas por ali vai demorar, então tenho que ligar e dizer que vai demorar um

pouco aqui porque... inventar uma mentira, o trânsito está ruim” – e procuraria

resolver as coisas um pouco assim.

Ou seja, ao discutirmos o assunto, ficou evidente que o erro não era tanto um

problema em si. Claro que ficara decepcionado com o que ocorrera, pois perdera

tempo e dinheiro. Porém, mais importante que evitar o erro, para ele, o que

importava é que ele deveria ter condições de “resolver” o problema surgido para

satisfazer o cliente. Naquele dia em particular, como não haviam outras demandas,

ele simplesmente retornou ao local e pegou o documento, levando-o para o destino

correto. Mas, segundo ele, em outras situações, talvez fossem necessárias outras

saídas que ele não poderia descrever com exatidão no momento em que realizamos

a filmagem: mentir, correr, calcular, lançar mão de outros saberes. O que importa, de

qualquer maneira, é a disponibilidade do motoboy em resolver os problemas.

Daí, então, que identificamos essa competência de resolubilidade como

subjacente a todas os outros saberes identificados. A gestão do tempo ou o

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planejamento da rota são sempre temporais e não podem prescindir dessa espécie

de sagacidade para a resolução das tarefas. Eis aí o que se requer do trabalhador.

Eis aí o seu grau de inventividade. Eis, portanto, porque nessa profissão, por mais

que se use o corpo, trata-se de atividades em que é a mente que mais trabalha.

Trata-se, pois, de atividades extremamente cognitivas. A disponibilização e

mobilização cognitiva é um dos instrumentos. Pensar é outro.

Atividades cognitivas no trabalho

Vimos acima que além dos saberes coletivos, o motoboy deve se esforçar em

manter em sua mente os resultados dos cálculos e planejamentos a que chegou,

pois do contrário há o risco do motoboy perder-se na execução de seu

planejamento, o que implicará em certos prejuízos. Retomando o exemplo da rota,

vimos que a despeito da importância de seu uso, se não prestar atenção, o próprio

profissional pode esquecer a rota previamente planejada. Quando isso acontece, os

motoboys têm que dar voltas maiores que o previsto. Nesse processo, há que se

lidar com outros pensamentos que “teimam” em emergir, dentre os quais a força do

“hábito” é o mais comum.

Por outro lado, não nos pareceu que esse esforço requer um dispêndio muito

grande de energia. Mesmo assim, o fato de que o trabalhador deverá estar atento a

mais esse conjunto de informações é um esforço a mais dentro do já complexo meio

em que o trabalho é executado, que requer dele também atenção para lidar com o

trânsito, com o tempo, com o gasto de gasolina, com a vigilância dos guardas e

agentes de trânsito, com a satisfação dos clientes, com a cobrança dos patrões e

coordenadores, entre outros.

É interessante observar ainda que o processo da condução não pode ser tão

automatizado como de início se poderia pensar, pois a força do hábito pode levar o

trabalhador a realizar algo errado. Ainda na explicação sobre a rota, um trabalhador,

diante de um grupo de colega, nos diz assim: “eu já fui para o aeroporto e aí no

pensamento já ia me adiantar uma outra coisa e aí quando eu percebi, eu já estava

lá em Carapina, indo para Laranjeiras. Eu tinha que parar no aeroporto [risos]”. Nisso

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o motoboy perdera alguns quilômetros (ou, segundo eles, “100ml de gasolina”). O

interessante é que esse processo cognitivo até pode ser feito em cima da moto.

Porém, há coisas que se devem pensar e coisas que não se devem pensar quando

estão conduzindo suas motos. O planejamento da rota é uma das coisas que ele

deve se esforçar em prestar atenção, mas não de um modo que o leve a ficar o

tempo inteiro pensando que vai passar ali, aqui e acolá. Pelo contrário. Na

autoconfrontação ficou muito claro que quando o motoboy tem oportunidade, a

própria escolha do serviço a realizar já implica em uma determinada rota construída

e, quando não dá para escolher, a rota muitas vezes já é feita ao subir em sua moto,

enquanto sai do ponto. Esses primeiros momentos de saída são os momentos em

que a rota está sendo estruturada. Porém, os serviços não são realizados todos em

uma única vez. Ao longo do próprio dia, o motoboy distribui as atividades,

requerendo dele uma organização temporal e espacial bastante consciente. Mas,

antecipar uma decisão em situações inadequadas pode levar a prejuízos para o

próprio motoboy. Não se trata de falta de atenção, mas um excesso de variáveis que

lhe exigem atenção e decisão. Às vezes, em meio a essas variáveis, a força do

hábito acaba operando de uma maneira a conduzir o motoboy a uma situação

inadequada; é o que acontece no caso das rotas. Assim, em algumas situação,

como por exemplo durante a condução, o motoboy deve tentar tornar seu

pensamento o mais difuso possível. Se prestar muita atenção em uma coisa – nos

buracos, em outros carros – algumas decisões acabam sendo perdidas. É quando a

força do hábito fala mais. Da mesma forma, se ele calcula alguma coisa na cabeça,

ele tende a evitar arriscar-se, dirigindo mais no automático.

De qualquer modo, a questão da cognição – aliás, os motoboys reconhecem

que seu trabalho requer bastante esforço mental – não pode ser pensada

unicamente do ponto de vista da Psicologia cognitiva. A utilização da inteligência

astuciosa, como diria Dejours (2004c), é bastante evidente – Schwartz (1998)

considera essa inteligência como um componente do quarto ingrediente da

competência. As decisões não são tomadas de maneira totalmente consciente

quando se necessita solucionar alguns tipos de problema, principalmente

dificuldades no trânsito. Aliás, uma das características da moto – e que a torna

diferente do carro, daí os motoboys afirmarem continuamente que não dirigem, mas

pilotam motos – é que é o próprio balanço do corpo é que dá a direção que a moto

deverá seguir. Nesse sentido, a inteligência é sempre respondida pelo próprio corpo.

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Quando há problemas na condução, não é uma resposta mental que deve ser

deflagrada, mas uma resposta do corpo-si como um todo. A mente, inclusive, é

posterior à própria ação. Por exemplo:

E.1 – e como você faz para tomar uma decisão? Tão rápido? M.1 – Pensar rápido, igual você falou... É..., mas o cara já tem uma.... M.2 – a tua ação vai te fazer com que você venha tomar uma decisão. M.3 – ... o cara não vai lá ó, ‘lá na frente eu vou fazer tal coisa’. No momento que acontece ali você tem que saber a reação que você vai ter. E.2 – mas eu gostaria de saber: da onde vocês tiram essa fase para... Só para fazer uma comparação: eu vou fazer uma prova, eu mais ou menos estudei alguma coisa para fazer aquela prova...[antes de completar a frase, o motoboy continua] M.3 – só que acontece o seguinte: a prova você sabe a matéria que vai cair. O trânsito você não sabe o que vai encontrar lá na frente. E.2 – e aí? Como é que é isso? M.2 – eu utilizo [???: não deu para entender a palavra] igual no caso do corredor... M.1 – é a experiência do cara...É a experiência que eu tenho M.2 – é isso aí que ele falou e isso que eu estou colocando. Você tem que ter a experiência de já ter feito, e ter a sagacidade de saber como você vai fazer aquilo ali.

Essa “sagacidade de saber fazer aquilo” implica na capacidade de apreender

e utilizar os recursos que inicialmente são apenas corporais. O trabalhador aprende

a pilotar utilizando o corpo na exploração de seus limites, como veremos adiante,

mas também se partilha os saberes e experiências nas rodas de encontro de

motoboys. Ali o corpo se afina com o mente. A aprendizagem vai lançando mão de

um treinamento das percepções, das reações, das capacidades de antecipação e

raciocínio rápido, demandando treinamento de “tomar decisões” no tempo

adequado. É claro que esses são valores cheios de problemas, como veremos no

capítulo seguinte, mas é inevitável que esse exercício não seja puramente corporal.

É também à mente que se recorre, o tempo inteiro. Ademais, além das decisões

quase atemporais que se deve tomar por uma espécie de raciocínio corpo-mente-

moto, há um imenso esforço em saber se controlar, evitar impulsividades, domar as

angústias, observar o entorno para que o processo de pilotagem não venha

aumentar as margens de risco, tudo isso ao mesmo tempo em que o trabalhador não

pode deixar-se perder por outros pensamentos que o façam perder seus

planejamentos prévios. Soma-se a isso uma contínua pressão temporal que se

reforça por um telefone que toca constantemente para cobrar agilidade e

resolubilidade. O motoboy desenvolveu até meios de usar o telefone enquanto

pilota. Em cima da moto, com seu escritório colado ao rosto, seguro pela pressão do

próprio capacete – telefone que os motoboys dizem que é seu “escritório” – o

motoboy recebe novas ordens, que lhes impõe a necessidade de refazer seus

cálculos prévios, enquanto deve observar o entorno em defesa da própria vida!

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Eis um trabalho cognitivo. Mas um cognitivo que não é pura consciência: ele

deve “saber qual reação ele vai ter”, ou seja, é um corpo treinado, adestrado,

domesticado para o trânsito que sabe, pelo próprio corpo, o que fazer. O outro

motoboy resume de maneira brilhante: “a tua ação vai te fazer com que você venha

tomar uma decisão”. Não é a decisão que gera a ação. Pelo contrário, a reação deve

ser aprendida. A decisão é fruto dessa aprendizagem, desse corpo domesticado e

bem compreendido. É uma inteligência da percepção, da mente, do corpo que, aliás,

é também máquina. Enfim, a cognição do trabalho dos motoboys explode as

fronteiras da separação corpo-mente. O susto opera aí um grande papel, bem como

o medo, que se transforma em um excelente freio para o trabalhador. Uma nova

fronteira corporal: um corpo-máquina-mente-sentimento é o que se produz nesse

equipamento único que é o motoboy.

Primeiras conclusões

No capítulo anterior mostramos como vem se constituindo essa profissão dos

motoboys ao longo desses pouco mais de 20 anos de existência. O perfil das

pessoas que engrossam as fileiras da categoria, algumas das contraintes com as

quais deve lidar cotidianamente, e que arranjos de organização do trabalho estão

em jogo na definição dessa atividade de trabalho. Apontamos ali, sempre que

possível, algumas dimensões mais sociológicas e subjetivas mobilizadas em torno

da atividade, mas não havia naquele momento, condição de explorá-las melhor. De

qualquer modo, tentamos deixar claro os impasses existentes no trabalho que

tornavam mais difícil a constituição de um coletivo de trabalho sólido, historicamente

sustentado e politicamente embasado. Mostramos que a explosão da profissão é

recente, que parte importante da categoria é formada por profissionais ainda novos,

sem uma tradição em atividades profissionais caracterizadas pela sua experiência

de enfrentamento político e organização coletiva, e mostramos também que não

houve ainda tempo histórico suficiente que permitisse o conhecimento sobre os

efeitos da profissão nas pessoas com mais tempo de atividade. Porém, ainda

naquele capítulo, já conseguimos observar que a despeito dessas condições,

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parecia-nos digno de nota a existência de algumas raízes de coletividade que se

enredavam em formas-comportamentos que reverberavam em toda a rede de

profissionais. Uma proto-forma de gênero da profissão em constituição.

No presente capítulo, por meio da análise dos saberes que a categoria vem

desenvolvendo para enfrentar a profissão, foi se tornando cada vez mais evidente a

idéia de que a atividade de trabalho dos motoboys guarda em seu repositório

simbólico-cultural alguns aspectos que permitem identificar algo como que um pré-

gênero da atividade profissional. O trabalhador, ao ingressar na profissão, é

confrontado com situações que requererão dele inventividade e resolubilidade,

porém, ele não “reinventa a roda” para dar conta das suas demandas. Ele se nutre

dessa espécie de repertório genérico para conseguir, a seu modo, construir saídas

financeiramente interessantes, ao mesmo tempo em que satisfatórias para seus

clientes e patrões. O trabalhador não está sozinho:

E. – Como aprendeu o trabalho? M.1 – Rapaz, você aprende na marra. M.2 – Com a experiência do dia a dia você vai melhorando seu serviço. M.3 – Vai aprendendo a fazer isso. E. – Houve treinamento? M.2 – não. Nenhum. M.3 – Só que, no caso, o que acontece é um outro motoqueiro que já tem mais experiência que você, que vai te ajudar, te dar algumas dicas, uma manhas. M.1 – Indicações. E. – E como foi a relação de aprendizagem com os colegas? M.2 – Quem pode ajudar, ajuda mesmo. Aqui, pelo menos aqui na praça, o cara pode chegar sem saber nada aqui que qualquer um que ele perguntar vai ajudar a ele. M.3 – De vez em quando eles informam errado [rindo]. [...,] mas têm boa vontade.

Os motoboys aprendem com os colegas, isso é claro para todos, mesmo que

se admita, como nessa frase, que as relações para a transmissão dos

conhecimentos são ainda relativamente frágeis. Eles não respondem pelo coletivo

de trabalhadores motoboys como um todo; referem-se em particular ao coletivo de

trabalho ao qual pertencem. De qualquer modo, mostram a existência de um coletivo

que dá suporte para a ação de cada um. A aprendizagem é “na marra”, ou seja, se

dá na e pela prática. Porém, a prática está permeada de sentidos, manhas, idéias,

“macetes” que os trabalhadores partilham, ensinam, trocam, descobrem, inventam.

Esse coletivo produz um sentimento de pertença ao grupo. Isso não é tão explícito

assim. Mas o meio de trabalho de motoboy está sempre povoado. Não é comum ver

um motoboy em um ponto, solitariamente. E mesmo que esteja só, este não é o tipo

de profissional isolado.

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Veremos, no capítulo a seguir, que além das aprendizagens sobre a prática

do trabalho, os motoboys partilham também saberes menos instrumentais. A partir

de uma análise sobre os modos de condução e seus efeitos no desenvolvimento da

atividade e na experimentação do risco, veremos que é o coletivo de trabalho que,

em última instância, está fornecendo o suporte necessário para que o trabalhador

consiga realizar a atividade de maneira mais adequada e saudável para si.

Mostraremos, contudo, que algumas das estratégias desenvolvidas por esse coletivo

podem estar apontando para cenários que não parecem ser tão valiosos do ponto de

vista da segurança. Por outro lado, veremos que existem movimentos distintos

acerca da experimentação do risco dentro da categoria, revelando cenários um

pouco distintos e que trazem à tona a experiência de uma categoria em plena

ebulição.

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5. SISTEMAS DEFENSIVOS EM CONSTITUIÇÃO: ENTRE O RISCO, A VIRILIDADE E A SOLIDARIEDADE

Embora a profissão dos motoboys não se limite ao período em que passam

em cima de suas motos, é inegável que o tempo despendido durante o vai-e-vem no

trânsito produz inúmeros efeitos na vida desses trabalhadores, merecendo de nossa

parte um pouco mais de atenção. Até porque é durante a pilotagem que eles

enfrentam a maior parte dos riscos de acidente durante o exercício da profissão.

Mas não é apenas o fenômeno “acidente” que chama atenção nesse processo: é

também por meio dessa experimentação cotidiana que um conjunto de

conhecimentos e sensibilidades vai se constituindo entre esses trabalhadores na

relação com suas motos, permitindo um acoplamento de uma ordem tal que, para

alguns, “é como se o corpo e a moto fossem um”. Trata-se, pois, da constituição de

um novo corpo que, por meio de um adestramento da percepção, parece incorporar

como parte de si, as partes que são da máquina sobre qual assentam. Algo como se

o corpo dos motoboys passassem a ser uma espécie de corpo-máquina em que

suas ramificações nervosas ultrapassassem a pele e se espraiassem pelas peças da

moto. A maneira em que há o acoplamento entre o corpo e a máquina é tão intensa

que certa vez um trabalhador nos relatou que achava a moto de seu irmão muito

estranha. O curioso é que a moto de seu irmão era idêntica à sua: mesmo modelo,

mesmo ano! Ou seja, é como se houvesse um “encaixe diferente”, como ele disse,

entre ele e a moto do irmão, “encaixe” que funcionava muito bem entre ele e sua

moto.

Porém, longe de ser um simples efeito de uma “habituação” do corpo à moto,

esse acoplamento corpo-máquina permite um ganho fenomenal ao trabalhador para

a realização de suas atividades com uma certa segurança e agilidade, uma vez que

ao apreender pilotar os dois objetos (seu corpo e a moto) como um só, ele consegue

lidar com os imprevistos na exata velocidade em que se conduz pelo trânsito. Esse

corpo máquina aprende a perceber-se em conjunto com a moto, a ponto de não

precisar mais pensar nela como algo à parte de si. Para ser mais preciso, talvez

pudéssemos dizer que o motoboy não pilota a moto: ele se pilota com a moto.

Resulta disso que, diante de qualquer eventualidade, ele consegue reagir na exata

medida de sua segurança, pensando não no movimento que fará com a moto, mas

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na reação que seu corpo-máquina terá diante do trânsito. Daí a razão para o

motoboy ter dito, conforme a descrição um pouco anterior, que no “momento que

acontece ali você tem que saber a reação que você vai ter”. Ou seja, “a reação que

você vai ter” inclui a apropriação dos conhecimentos sobre o conjunto de

movimentos necessários para que esse corpo-máquina consiga encontrar a saída

necessária diante de qualquer problema colocado pela situação. Se o motoboy

raciocinasse sobre partes distintas, talvez não conseguisse responder às

eventualidades no tempo necessário.

Entretanto, é interessante indicar também que o trabalhador deve saber

quando se desconectar desse corpo-máquina. Mais de uma vez, motoboys nos

relataram que um dos vícios mais perniciosos entre aqueles que não possuem a

malícia adequada na pilotagem se manifestam quando, em determinados tipos de

colisão, o condutor se prende à moto, seja para tentar lhe controlar, seja para se

segurar nela como se ela fosse lhe proteger. Para eles, em colisões desse tipo, que

incluem aquelas em que a moto é bruscamente parada, a melhor saída é deixar que

a própria inércia do corpo lhe jogue para fora da moto soltando o guidão na hora do

choque, pois o impacto da batida será menor que a queda junto com a motocicleta,

uma vez que neste caso, as lesões serão certamente múltiplas, enquanto naquele

caso, é possível que apenas alguns hematomas se manifestem. Sem pretender

discutir a veracidade desse relato, o que importa é observar que o motoboy aprende

a perceber-se como parte da moto e vice-versa, mas que esse encaixe tem seus

limites na sua segurança.

Para tanto, um longo processo de experimentação, de treinamento, de

exercício se faz com a moto no cotidiano, permitindo ao corpo incorporar-se à moto

num “encaixe perfeito”. Um processo simbiótico entre a moto e corpo que multiplica

a relação homem-máquina, já tão debatida desde a emergência do taylorismo, a

níveis praticamente incomparáveis. Jouanneaux (1999) também nos demonstra a

importância das sensibilidades corporais no processo de pilotagem de aeronaves de

passageiros. Aliás, esse autor – ele próprio ex-piloto de linha – nos revela que a

condução dos aviões depende tanto de uma apropriação sensível e perceptual do

corpo sobre cada modelo de aeronave, quanto do desenvolvimento dos saberes das

especificidades técnicas e instrumentais de cada avião em particular. Mostra-nos,

pois, que a pilotagem manual requer a mobilização dos conhecimentos e saberes

que são imiscuídos às reações comportamentais e corporais, aos quais estão

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intimamente ligados e que são “realizados por um impulso muscular” (p. 91). Em um

outro texto, Jouanneaux e Clot (2002) reforçam essa idéia: “os gestos necessários à

inscrição da ação sobre a trajetória prevista, e a seqüência de parâmetros

calculados se encadeiam naturalmente na espontaneidade corporal dos pilotos”

(p.60). De qualquer modo, não se trata de uma simples reação corporal, trata-se isto

sim de uma verdadeira “trama mental e corporal” que envolve cognição e impulso

corporal. De uma maneira muito semelhante ao que dizia o motoboy acima,

Jouanneaux nos diz que “esta trama mental [da pilotagem] deve ser concebida e

materializada antes da ação, levando-se em conta todos os elementos do contexto”

(1999, p.91). Ou seja, uma materialização da cognição que traduz de maneira

bastante adequada a fala dos motoboys descrita acima: “a tua ação vai te fazer com

que você venha tomar uma decisão”. Ou seja, uma decisão consciente que é

conseqüente à materialização de uma trama mental-corporal anterior. Um corpo que

reage impulsionado por uma outra ordem de relação mente-corpo. Um corpo-si, na

linguagem de Schwartz (SCHWARTZ; DURRIVE, 2007).

É interessante observar esse fenômeno por meio do ter que os motoboys

utilizam acerca da condução de motos: pilotar. Será uma referência a uma particular

forma de conduzir que se expressa em apenas algumas determinadas situações?

Por mais que tentássemos trazer à tona um reconhecimento dos motoboys sobre a

especificidade dos modos de pilotagem da categoria, nos deparávamos sempre com

uma resposta negativa: os motoboys não conduzem diferente de outros

motociclistas, segundo nos insistem em dizer. Eles não conseguem reconhecer, no

trânsito, quem é motoboy e quem não é. Sabem que outros motociclistas,

geralmente referidos como motoqueiros, também pilotam suas máquinas com a

mesma destreza que eles. Reconhecem que pilotam mais agressivamente do que os

que usam a moto menos freqüentemente no cotidiano, ou que não possuem tanto

prazer por motos. Entretanto, argumentam que o fazem porque ficam mais tempo

nas ruas e porque são levados a correr um pouco mais para dar conta das

demandas. É-lhes inegável, então, que os motoboys adquirem um domínio da moto

com o passar do tempo, domínio que não é tão comum entre pessoas que andam há

pouco tempo de motocicleta. Mas a pilotagem parece não ser exclusividade deles.

Mesmo que se possa discordar dessa avaliação, o que nos chama atenção é

que, a despeito das inúmeras diferenças entre a pilotagem de um avião e de uma

moto, as relações entre a apropriação da máquina pelo corpo apontam para um

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papel fundamental que o corpo exerce nesse processo de condução. Mas devemos

observar que Jouanneaux também diferencia a atividade de pilotagem de todo o

processo de condução do avião, do qual o piloto é responsável. Para ele, a

pilotagem refere-se melhor à manobra da aeronave, enquanto que a atividade do

piloto implica na condução da aeronave e das pessoas entre destinos traçados.

Enquanto o processo de pilotagem é mais corporal, a condução implica em uma

intervenção mais constante de reflexão, julgamento, análise e decisão. Trata-se,

pois, do processo em que o piloto utiliza as informações que possui para realizar as

escolhas sobre que procedimentos realizar acerca de todos os aspectos do vôo: a

condução tipificada do modelo de avião, a condução do avião em sua trajetória, a

condução do itinerário e as complexidades enfrentadas (tempo, altitude, tráfego

aéreo) e da missão (tempo de vôo, satisfação dos passageiros, segurança, etc.).

Jouanneaux reconhece, pois, que se a pilotagem pode ser automatizada, a

condução não, visto que requer aquilo que é humano: dar conta dos imprevistos

existentes em cada missão. Por isso, a condução é o aspecto mais nobre e

complexo da atividade do piloto de linha.

Para nós, essa diferenciação é deveras importante, como vimos tentando

mostrar no capítulo precedente, pois se nos limitarmos a compreender a atividade

dos motoboys como semelhante ao processo de pilotagem, certamente deixaremos

de lado o aspecto referencial mais importante para o trabalhador, que é a sua

“missão” a cumprir, qual seja ela. Por outro lado, diferentemente do avião, em que os

aspectos da segurança envolvem milhões de dólares e horas de treinamento, entre

os motoboys, as exigências das máquinas do capital levam inúmeros trabalhadores

sem o menor preparo para resolver demandas dos quais não possuem os

conhecimentos e habilidades necessárias, sobretudo aquelas que dizem respeito ao

processo de “condução” da atividade específica dos motoboys e que são

apreendidas com o tempo e com o coletivo de trabalhadores. Mas, mesmo os

conhecimentos adequados sobre o processo de pilotagem devem ser conhecidos

para que esses trabalhadores consigam lidar com as variabilidades no tempo

adequado para suas seguranças. Nesse sentido, se torna necessário, da nossa

parte, apreender com um pouco mais de atenção quais processos de aprendizagem

e conhecimento se põem em movimento no exercício de produção desse corpo-

máquina dos pilotos com suas motos.

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Antes, porém, uma ressalva: diferente do que vimos discutindo até então em

relação a outros aspectos da atividade do trabalho e em particular aos saberes

utilizados pela categoria, esse processo de aprendizagem de transformar o corpo em

máquina e a máquina em corpo não parece ser propriamente uma aprendizagem

com muitos aspectos coletivos, mas fruto de uma experiência extremamente

pessoal. A experiência é de tal ordem pessoal que na tentativa de aplicarmos a

técnica da instrução ao sósia a um grupo de motoboys, onde o objeto da instrução

seria exatamente o modo de conduzir, a pessoa escolhida simplesmente respondeu:

“é impossível alguém fazer o que eu faço” e todos concordaram com a informação,

praticamente inviabilizando a continuidade da discussão. O processo de pilotagem é

muito individual porque cada um tem seu jeito de curvar, de usar o corpo para entrar

nos corredores, de acelerar e de frear. E esses trabalhadores aprendem esse

processo sem uma consciência exata de toda a complexidade de movimentos e

micro-decisões que tomam o tempo inteiro.

Esta aprendizagem da pilotagem implica em algumas conseqüências que

serão discutidas neste capítulo, em particular as dinâmicas de risco e os sistemas

coletivos de defesas.

Saber pilotar

Do trabalhador é exigido a realização de atividades no trânsito já no primeiro

dia de trabalho. Entrevistamos uma pessoa do setor de autopeças que alegou que

comprara a moto para trabalhar como motoboy. Essa pessoa, que tinha mais do que

35 anos e nunca tinha andado de moto antes, conseguiu o emprego logo após tirar a

carteira de condução. Com o tempo, porém, ele foi entendo como conduzir de

maneira mais apropriada para as atividades de trabalho. Os trabalhadores afirmam

que o ingresso na profissão não é muito difícil: a prova para uma pessoa tirar uma

carteira como motociclista é muito fácil, é o que alguns argumentam. Assim, o

trabalhador novato acredita que é porque aprendeu a dar umas “voltinhas” por aí,

está pronto para trabalhar como motoboy. Reconhecem, também, que neste início a

“adrenalina” fala muito alto. Os mais novos se empolgam com a destreza que vão

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aprendendo por meio da pilotagem e começam a se arriscar mais no modo de

conduzir.

Por outro lado, eles explicam que a aprendizagem dessa malícia, dessa

destreza na condução, é fruto de um saber-fazer cotidiano desenvolvido por acerto e

erro. O problema é que esse treinamento on the job, se dá em um local não

preparado para erros: o trânsito das avenidas. Trata-se, por isso, de um treinamento

extremamente vulnerável.

O motoboy logo irá perceber, entretanto, que as ultrapassagens não são

exercícios de uma aventura, mas frutos de “cálculos” e “planejamentos” que devem

ser observados para que se garanta um pouco de segurança na pilotagem. Esse

planejamento é propiciado, em primeiro lugar, porque o motoboy se posiciona de

uma maneira tal entre os carros que consegue obter mais informações sobre o

trânsito em sua volta, do que os motoristas de automóveis: ele está com visão acima

dos carros, pois o banco da moto é mais alto do que o assento do carro, e possui

uma mobilidade entre eles que lhe aumenta a visibilidade. Além disso, embora o tipo

de capacete autorizado para o trânsito no país reduza em parte a visibilidade do

motoboy, principalmente pela qualidade de viseira produzida, por meio do uso da

visão periférica o motoboy consegue uma boa noção do que se passa em sua volta

utilizando apenas rápidas viradas de pescoço.

As vantagens da qualidade e quantidade de informações que possuem em

comparação com as motos lhes permitem respostas que são impensáveis do ponto

de vista de motoristas de automóveis. Daí os motoristas julgarem como loucos os

motoboys que, de seu ponto de vista, percebem fazendo “loucuras”. Entretanto,

mesmo que todo o planejamento seja cuidadosamente feito, o motoboy vai com o

tempo compreendendo que não possui total controle do movimento dos veículos à

sua frente. Sua percepção sobre o trânsito é, pois, passível de frustração. Por outro

lado, a incorporação desse conhecimento não é tão “natural” assim. Em geral,

atribui-se a um outro, diferente dele, as responsabilidades pela ineficácia de sua

capacidade preventiva:

“A gente tem um problema sério com taxista, taxista não gosta da gente, nem a gente gosta de taxista, a verdade é isso mesmo”, ou “os caras são tudo sacana bicho, começa a sacanear a gente, eles derrubam mesmo, fecham, fecham e ainda dá risadinha”, ou ainda “Sobre os pedestres eu acho que, eles poderiam olhar um pouquinho mais antes de atravessar a rua, eles atravessam não na faixa e quando atravessam, atravessam no meio dos carros ainda e não olham o corredor”.

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Curioso, no entanto, é que ao mesmo tempo em que a percepção dessa

experiência seja inevitavelmente individual, é apoiado no coletivo de trabalho que os

motoboys vão se nutrindo de justificativas que explicam esse “limite” de seus

planejamentos no trânsito. O discurso de culpabilização é generalizado entre os

profissionais. Existem, é claro, aqueles que reconhecem que os próprios motoboys

fazem suas loucuras e cometem imprudências, mas, mesmo assim, em geral

remetem essa responsabilidade aos mais novos ou a “outros” que se distingue

deles, em geral um outro “abstrato”: “tem muito motoqueiro imprensando o outro,

instigando para correr”. Em alguns depoimentos, alguns trabalhadores revelam-se

também partícipes desse tipo de prática: “cara, eu não podia ver uma pessoa me

passando que eu ficava louco...”. Por outro lado, alguns motoboys, em geral mais

novos, incorporam esse discurso de agressividade e irresponsabilidade como uma

marca a ser exibida, contando rindo sobre as peripécias que já fizeram. Entre elas, o

que parece lhes dar mais prazer é arrancar um retrovisor com os pés. Entre os mais

velhos, correr é mais justificado como fruto de um misto de pressão pela urgência de

uma entrega e de uma malícia devidamente adquirida para a pilotagem da moto.

De qualquer forma, usando ou não usando formas mais agressivas de

pilotagem, os motoboys dizem ter consciência das condições precárias do trânsito

na cidade – o que é difícil negar, pois estão o tempo inteiro no trânsito levando

fechadas ou presenciando e sofrendo acidentes: “quase bate toda hora”, é o título de

um capítulo de Diniz (2003), extraído de uma fala bastante elucidativa da atividade

desses profissionais. Assim, é de se esperar que utilizem estratégias para dar conta

das dificuldades. Não foi nossa intenção compilar todas as estratégias utilizadas

pelos motoristas para evitar acidentes. A título de ilustração, apenas apresentaremos

alguns “macetes” que esses trabalhadores desenvolvem por meio da aprendizagem

da destreza de conduzir. Diniz (2003) debateu alguns outros saberes que também

merecem destaque. Informamos desde já que não sabemos em que medida essas

estratégias são coletivas, já que, para nós, a aprendizagem da pilotagem é a mais

individual dentre as desenvolvidas na profissão, principalmente porque contempla

uma dimensão do corpo que é um pouco menos consciente que os saberes acima

descritos.

De qualquer modo, o desenvolvimento e o reconhecimento da destreza se dá

com o tempo, quando o motoboy começa a perceber que “com o tempo você adquire

mais habilidade e começa a passar em locais sem colocar os pés no chão, que

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antes colocava”. Por outro lado, não reconhecemos nenhuma espécie de ritual ou

sentido que o coletivo estabelece diferenciando os que pilotam com mais ou menos

destreza. Parece que em cima das motos, cada um pilota como quer. Nesse sentido,

o reconhecimento da destreza se aponta mais como um processo individual que

coletivo, muito embora alguns motoboys identifiquem aqueles que pilotam melhor.

Mas o destaque parece se dar mais pela qualidade desses que se destacam que

pela incapacidade de pilotagem dos que estão apenas aprendendo a pilotar. Essas

são algumas pistas a serem mais bem investigadas em outras pesquisas.

Seja qual for a qualidade da pilotagem dos motoboys, não é desnecessário

reiterar que este se trata de um saber que passa pela maneira do uso do corpo num

“encaixe” com a moto, corpo esse que é mais que percepção, raciocínio e intuição:

“é a cumplicidade com a sua moto”, completa um motoboy. Assim, quando uma

pessoa monta em uma moto que não é sua, é como se ele tivesse que aprender a

andar de moto de novo. O saber do corpo é quase um adestramento para produzir

uma simbiose adequada entre moto e corpo. Acima dizíamos que um motoboy não

possui coragem de andar na garupa de outro, porque são dois “encaixes” diferentes

na mesma moto, só que apenas um deles tem o controle sobre ela. Isso é

assustador para eles, porque a máquina vai obedecer ao “encaixe” do outro, não ao

seu comando: as curvas são feitas de maneiras diferentes, o tempo da frenagem e a

velocidade nos cruzamentos também. De forma semelhante, um motoboy não

possui coragem de fazer coisas que faz com sua moto, usando a moto de outra

pessoa. Já relatamos o caso de um rapaz que possuía um modelo de moto idêntico

ao da moto, que tanto estranhava, do irmão. Outros casos mais extremos também já

foram relatados, inclusive casos fatais. Há, também, um outro tipo de adestramento

que se desenvolve com o corpo, que requer ainda mais tempo para se consolidar.

Trata-se, pois, de uma conformação do corpo ao próprio exercício da atividade,

como a necessidade do motoboy adequar-se à postura do corpo na moto ou com o

peso do capacete durante horas seguidas. No início, o peso do capacete é enorme,

mas ao longo dos dias e meses o corpo aprende a suportar este peso de maneira

mais natural, mesmo em dias de vento forte, quando o peso do capacete parece

aumentar muito. Da mesma forma, a dor nas costas vai cedendo nos primeiros dias

e o incômodo de ficar em uma praça sem nenhum banco para se sentar, vai se

tornando mais tolerável. Contudo, com o passar dos anos, a tolerância ao peso

desse capacete ou da posição na moto parece cada vez menor. As dores ficam mais

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freqüentes, e em determinados dias, se tornam mais drásticas: em um dia de vento,

o peso do capacete triplica; em ruas esburacadas, a dor nas costas se torna quase

insuportável. Há, pois, limites variáveis para o adestramento do corpo que se

intensificam com o corpo; é o que nos parece.

Além da aprendizagem de base para construir esse “encaixe” entre ele e sua

moto, o motoboy deve aprender também um conjunto de outras estratégias de

condução que dependem em maior ou menor grau desse acoplamento, tais como:

a) A capacidade de antecipação do que se passa adiante no trânsito. O

motoboy deve aprender a prever os movimentos dos veículos da frente

por meio da análise de seus movimentos, de suas características (se

carro, caminhão, etc.) e o sentido da via no momento atual. Extrai-se

dessa percepção o tempo que demorará a atingir um determinado

ponto a que se quer atingir adiante. Para tanto, toma como base sua

velocidade e a velocidade do motorista à frente ou ao lado. Além disso,

deve calcular também o espaço disponível para se realizar tal ou qual

movimento, bem como os sinais que indicam quais as direções que os

carros estão indo e quais os comportamentos prováveis que esses

veículos à frente emitirão. Já dissemos acima: o motociclista deve estar

atento ao que acontece lá à frente, no momento em que olha, e deve

ser capaz também de antecipar o movimento adiante, prevendo o que

se sucederá daí a poucos segundos. Sua reação dependerá dessa

antecipação. Com um cálculo adequado, o motoboy poderá decidir se

tem ou não condição de realizar o movimento desejado. Porém, é

fundamental calcular todas as variáveis possíveis para realizar uma

previsão, a mais correta possível, garantindo sua segurança na

decisão que tomar dentro do tempo em que se expõe à margem de

incerteza. Entre os elementos citados estão a quantidade e a

velocidade de veículos no entorno, se há ou não obstáculo à frente, se

o motorista demonstra que irá realizar algum tipo de movimento com o

veículo, o espaço existente entre os carros, a velocidade de sua moto,

os riscos envolvidos, entre outra infinidade de variáveis em questão.

Trata-se, como alegam, de uma ação raciocinada, embora não

necessariamente, ou melhor, completamente consciente, é o que

pressupomos. De qualquer maneira, o motoboy aprende a observar o

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máximo de informações possíveis que lhes permite tomar uma boa

decisão. Trata-se de uma destreza cognitiva sustentada por um

treinamento perceptivo muito significativo;

b) O treino da visão periférica: o motoboy deverá desenvolver a

capacidade de perceber e traduzir as informações que se passam à

sua lateral. O uso da visão periférica é fundamental e bastante

freqüente. Serve para inúmeros propósitos: na redução da abrangência

do ponto cego, na percepção de um veículo lhe cortando pela direita ou

pela esquerda, na percepção da velocidade dos carros, na percepção

dos espaços em seu entorno. Enfim, o uso da visão periférica aumenta

a quantidade de informações disponíveis para o motoboy realizar uma

correta antecipação do trânsito à sua volta;

c) Saber como sair de um problema: os motoboys sempre possuem uma

explicação para os acidentes, independente de quem o sofreu. Para

eles, muitas decisões são erroneamente tomadas. E acreditam que

eles devem possuir algum conhecimento prévio do que fazer em

determinadas condições. Não ficou claro para nós como se dá a

aprendizagem adequada de todo tipo de resposta necessária para um

motoboy. Vimos que parte desses saberes é partilhada nas rodas de

motoboys. Vimos, também, que a experiência cotidiana é uma

poderosa (e perigosa) escola de produção de conhecimentos.

Entretanto, podemos inferir que algumas informações disponibilizadas

por meio de cursos de direção defensiva também estejam nutrindo o

coletivo de informações básicas sobre como se portar em

determinadas situações no trânsito. Alguns motoboys disseram que

quando têm possibilidade treinam algumas respostas corporais diante

de algumas situações, tais como simular a frenagem brusca ou o uso

do corpo para desviar-se de obstáculos. Mas não sabemos o quão

sistemático esses exercícios são utilizados pelos trabalhadores e

certamente sabemos que não há qualquer tipo de treinamento prático e

continuado disponível para os motoboys de Vitória (com exceção de

cursos pontuais sobre direção defensiva);

d) Para alguns motoboys, o ponto chave para evitar um acidente é

planejar mentalmente um ponto de fuga, uma área de escape, uma

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margem de segurança ao se tomar uma decisão qualquer. Prevê-se,

com isso, que comportamentos e reações poderão ser utilizados em

caso de erro. Além disso, no momento em que se decide por algum

movimento arriscado com sua moto, é bom que o motoboy o faça com

velocidade, ou seja, ele deve reduzir ao máximo o tempo de exposição

ao risco. Como qualquer decisão implica em testar uma previsão, já

que a pilotagem não é um cálculo matemático, é fundamental que se

reduza ao máximo o tempo em que o motoboy se coloca em uma

situação em que percebe que possui pouco controle sobre ela. Nesse

sentido, aumentar a margem de segurança é um imperativo que

implica em mais consciência sobre a situação, atenção redobrada e

firmeza na decisão. Aliás, para eles, a pior coisa que pode acontecer

com um motoboy é a dúvida em uma situação de risco, pois se

vacilarem um segundo que seja, isso pode significar que não terão

condição ou tempo necessário para definirem a saída adequada. A

dúvida os faz perder tempo, segurança, firmeza. Há, pois, que se

manter a certeza, para que ao menos o motoboy tenha tempo de

reagir. Disso decorre que se a adrenalina do risco é avaliada de uma

maneira muito positiva pelos trabalhadores, o medo, advindo de

situação em que o motoboy perdeu o controle da situação de risco, se

torna um sinal que erige alguns limites a serem respeitados. O medo

pode ser, assim, um poderoso instrumento de balizamento do grau de

risco a que um motoboy se disponibiliza a correr. É claro que essas

balizas são muito individuais, mas algumas delas parecem permear a

todos da categoria, como veremos logo adiante;

e) Saber arriscar é outro dos ensinamentos que os motoboys aprendem

com o tempo. Certa vez um motoboy nos relatou que quando se está

com pressa, se necessita de mais segurança, pois, ao se correr mais,

deve-se ter maiores garantias sobre o que se está fazendo, pois o

tempo de resposta em caso de engano é menor. Ou seja, a margem de

segurança deve ser aumentada quando a velocidade e o risco são

maiores. Isso, porém, só escutamos de um motociclista. Resulta daí

que a “tomada” de risco não necessariamente reduz a segurança. Às

vezes, como ele mesmo diz, a segurança é redobrada para que ele

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não precise muito pensar nela. Porém, esse mesmo motoboy, nos

relata que de vez em quando, ele mesmo arrisca ao ponto de não

conseguir mesmo saber o que pode acontecer. Diz que nesses casos,

ele pensa: “não, não vai ser agora. Não é possível que vai ser agora.

Agora não”, diz rindo. “É uma espécie de fé, entende. Não! Agora não!

[rindo]”. “E aí você vai. Só vai...”, completamos. E ele segue: “E aí

nessa hora o coração está batendo”. Completa essa frase analisando

essa emoção e toda a “adrenalina” em volta. Retomaremos a

discussão desse tipo de discurso e seus efeitos no coletivo logo

abaixo;

f) Um comportamento muito comum dos motoboys é sua desenfreada

busca de estar à frente dos veículos. Saber usar o corredor pode lhes

economizar preciosos minutos, pois conseguem adiantar centenas de

metros por entre os espaços vazios deixados pelas colunas paralelas

de carros. Da mesma forma, estar à frente dos veículos lhes permite

acelerar pelo espaço vazio deixado pelos sinais vermelhos,

recuperando preciosos segundos ali perdidos. Também existem outros

benefícios: quando se posicionam à frente, eles conseguem uma visão

melhor do trânsito, permitindo-lhes obter melhores informações sobre o

que se passa adiante, levando-os a melhores decisões sobre qual

caminho tomar. Finalmente, os motoboys alegam que ao estarem na

frente eles conseguem arrancar antes dos veículos em suas traseiras,

reduzindo o risco de receberem colisões de outros veículos;

g) A aprendizagem que parece mais rapidamente aprendida é a

necessidade do motoboy evitar passar entre ônibus e caminhões.

Muitos disseram algo semelhante. Dizem que os motoristas de ônibus

os “fecham” propositalmente, justificando a fala com alguma história

em que levaram uma “fechada” dos motoristas e, ao olharem no

retrovisor do ônibus, viam o motorista olhando para eles e rindo.

Passar entre dois veículos grandes deve ser evitado a qualquer custo;

h) Com o tempo, o motoboy vai aprendendo a aproveitar as “brechas” que

o trânsito dá. Na autoconfrontação um motoboy nos explica que há

duas formas de evitar o fechamento do corredor quando passa uma

ambulância: ou ir à sua frente, ou ir atrás dela. Ele prefere ir logo no

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“vácuo” dela, outros preferirão ir à frente dela. De modo semelhante,

ele nos explica que uma grande oportunidade para o motoboy é

quando conseguem “ir na poeira” de outro motociclista, ou seja,

acompanhá-lo de perto em sua traseira, o que lhe dá ganho de tempo

com redução de riscos, pois enquanto o motociclista da frente vai se

arriscando para abrir os espaços, o de trás só acelera acompanhando

quem está na frente. Brechas como essas devem ser aproveitadas

sempre;

i) Os motociclistas devem também aprender a conhecer o limite da moto.

Certa vez um motociclista nos contava como era perigoso passar de

110km/h em sua moto, porque ela não possuía uma estrutura

adequada para suportar, em caso de necessidade, o uso de uma

frenagem brusca. Além disso, dizia que a própria aerodinâmica da

moto não era propícia para altas velocidades, pois após uma certa

velocidade, dizia que sua moto inteira começava a tremer. Esse limite

deve ser explorado com a própria experiência e respeitado para se

manter uma segurança adequada;

j) O motoboy deve perceber, com o tempo, os efeitos de seu “estado de

espírito” antes de iniciar a pilotagem. Por motivos que eles não

conhecem claramente, alegam que há dias em que a pessoa se sente

bem para correr, para andar mais acelerado94. É como se seu corpo

estivesse mais propício para atender às exigências da pilotagem. Há

outros dias em que a pessoa não acorda tão bem assim, neste caso

ele deve perceber que se correr, se andar muito depressa e se arriscar

mais, ele terá mais chances de se acidentar. Para eles, se a pessoa

não dá valor a essa sensação, corre mais riscos. Há, pois, como que

um reconhecimento de que não há uma constância na maneira de

conduzir.

Se você for bater uma foto aqui: ‘vou fazer uma relação de como o cara vai trabalhar no dia’. Tem dia que o cara vai querer andar devagar, tem dia que o cara vai querer andar rápido... ‘Isso é verdade’ [respondem outros motoboys] Aí o cara passa no

94 Os motoboys não souberam explicar bem o que determina isso. Talvez o jeito que o cara dorme, se tudo ocorreu bem na noite anterior; ou o jeito que ele acorda, sua disposição para o trabalho no dia; talvez o fato de que não ter nada para fazer logo no início da manhã; talvez o dia da semana – embora não entrassem em um acordo sobre qual dia seria esse: se sexta feira, que é uma unanimidade como o dia em que as pessoas estão mais animadas, e porque é o dia que geralmente tem mais serviços, ou se seria um outro dia qualquer. Fato é que as variações são identificáveis e percebidas como um “estado de espírito” bastante corporal.

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corredor, durante o dia, faz um monte de coisa. Beleza, por enquanto está dando tudo certo para o cara. O cara está se sentindo um herói, está se empolgando. O cara vai com tudo, vai embora. Ele vai chegar no serviço achando que é um herói. Tem outro dia que o cara: ‘pô, amanhã eu vou fazer isso de novo’. Uma hora o cara vai dar errado”. Outro motoboy continua: ‘tem dia que eu saio de casa e falo: ‘hoje eu não estou legal’, olho para o corredor e falo: ‘hoje eu não estou para fazer corredor’

A variação do “estado de espírito” tende a conduzir o motoboy a um

determinado padrão de pilotagem que, com o tempo, aprende a

identificar e, idealmente, a respeitar. Os que aprenderam a perceber

essa alteração do “estado de espírito” dizem que fazem o que fazem,

em função da maneira que acham que podem fazer naquele dia.

Acreditam que esse respeito ao corpo é fundamental. Mas admitem

que tenha gente que não percebe essa diferença e se arrisca mesmo,

independente de como está. Vale a pena verificar os efeitos das

exigências do capital ao não respeito a esse saber: estariam os

acidentes relacionados ao desrespeito aos limites corporais de cada

trabalhador?

k) De tempos em tempos, o motoboy também tem que aprender a olhar a

sua moto. Ele não precisa ficar toda hora cuidando dela, mas de

quando em quando, deve verificar o freio, o pneu, etc. Trata-se, pois,

de seu instrumento de trabalho e de sua segurança, além de que uma

boa manutenção auxilia na redução dos custos com gasolina, foi o que

alguns nos informaram. É interessante que os motoboys gastam parte

de seu tempo trocando óleo da moto, limpando alguma peça do motor,

ou discutindo algo dessa natureza com os colegas.

A destreza no modo de pilotagem pode ser observada também quando alguns

motoboys distinguem o modo de pilotagem no trabalho e fora dele. Alguns motoboys

dizem que quando não estão trabalhando, andam de moto, enquanto que no

trabalho a tensão, a observação e responsabilidade é maior, até porque têm mais

coisa para levar em consideração, sobretudo o valor da entrega. Outros, porém,

dizem que é a mesma coisa. Revelam-se assim, como em todas as discussões

acima, formas distintas de se abordar e compreender a dinâmica da pilotagem.

Tratam-se, pois, de estilos diferentes acerca da pilotagem ou mesmo do trabalho:

alguns ficam preocupados em achar os locais, enquanto outros gostam

simplesmente de correr, diziam-nos os motoboys de uma farmácia. Citaram como

exemplo deste último grupo um colega que bateu em um sinal exatamente em frente

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à farmácia, logo na saída para uma entrega. Segundo eles, bater ali seria algo

praticamente impossível, bastando para tal simplesmente olhar para trás.

Essa “empolgação” que o trabalhador tem de conduzir vem, às vezes, junto

com exercícios de proteção, já discutidos um pouco acima neste tópico. O extrato de

uma técnica de instruções ao sósia nos revela bem:

M – Você precisa... andar na defensiva. Você precisa se defender, o tempo todo. Seja rápido, decisivo. Mas, se defenda. Você precisa calcular... é, você está andando aqui, só que você tem que ter noção de que muita coisa pode estar acontecendo lá na frente. Alguma coisa lá na frente pode acontecer. Olhe pra frente. Tenha sua visão assim, pro horizonte mesmo. E não se esquecer também dos detalhes ali, ao seu redor. Sempre se defendendo, sempre no que pode acontecer, porque, às vezes quando você está ali no corredor, às vezes está ali, aquele movimento ali à 40 por hora. Tranqüilo. Olha só, 40 por hora e você no meio à 60. Um pouco mais veloz e o corredor assim está bem largo, entende? Então você se sente bem à vontade. Você coloca na sua de que cabeça que pode acontecer. Pode acontecer. Às vezes o trânsito está parado. Olha só que segurança!!! Senta o pau. Pô!!! Não faça isso. Porque pode uma criança atravessar ali, pode um não atravessar na faixa de pedestre.

E – Você não corre não. Você segura.

M – Não. Eu só corro se eu sentir que eu realmente, eu procuro olhar nas calçadas. Às vezes, ... Você vai passar um ônibus assim, um caminhão, e você não olha que alguém, que vai sair alguém da calçada para atravessar ali. Então é melhor você parar, cara. Parar, dar uma buzinadinha. Passa de vagarzinho nesse momento. Quando está aquele, quando tiver aquele monte de carro assim, pequeno, que dá para você olhar por cima assim, que você vai ver quem vai passar, você vai. E se você vê que não tem nenhuma seta, se não tem nenhum carro saindo da garagem, porque às vezes alguém dá um espaçozinho assim pro cara que está saindo da garagem entrar. E o que acontece: a frente do carro entra um pouco assim no corredor; e às vezes o cara quebra a cara nisso aí também. Não faça isso não. Se você ver que tem um espaçozinho assim é porque tem algum carro pra entrar na rua, sacou, ou então é um carinha com a bicicleta, ou então é um cara saindo da garagem. E tudo isso.

Os esquemas de proteção envolvem a incorporação de experiências vividas

pelo grupo e partilhadas por entre conversas de colegas ou por relatos de casos.

Destaca-se aqui um ponto crucial para a nossa análise: a necessidade do coletivo

de trabalho em busca de proteção para os colegas. Entretanto, a apropriação das

experiências de outrem não é suficiente para a aprendizagem da destreza. Acima

dizíamos que o motoboy deverá aprender “na marra”, como eles dizem. E que essa

aprendizagem é inevitavelmente individual. Sua experiência é na rua, no trabalho.

Trata-se, pois, de um local inapropriado para um tipo de aprendizagem. Por outro

lado, o motoboy vai desenvolvendo toda uma dinâmica de relação com o risco que o

permite avançar de maneira importante no desenvolvimento de si. É o que

discutiremos no tópico abaixo.

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Dinâmicas de risco e afirmação de si: exploração positiva dos riscos

Baseados nas idéias de Deleuze (1992) acerca da passagem de uma

sociedade disciplinar, anunciada por Foucault (1987), para uma sociedade de

controle, Moraes e Nascimento (2002), exploram as transformações recentes que se

operam por meio da emergência de uma sociedade de controle dos riscos do

cotidiano, gradualmente tomando o lugar central na regulação dos corpos e dos

desejos, que outrora fora ocupado pelos mecanismos de poder de produção de

normas e de normalização dos sujeitos. Através desse estudo, constataram que a

operação do risco vai assumindo papéis cada vez mais importantes em nossa

contemporaneidade, implicando, inclusive, na constituição de uma nova

temporalidade.

Nesse texto discutiram a emergência das análises sociológicas,

principalmente durante a década de 80, nas quais, por meio de caminhos teóricos e

abordagens epistemológicas distintas aos de Deleuze e Foucault, o conceito de risco

era interpretado como importante mecanismo de poder e eixo fundamental na

conformação de transformações centrais na contemporaneidade. O sociólogo Ulrich

Beck (1992) talvez tenha sido o principal divulgador desse tema. Suas idéias de uma

sociedade do risco giram em torno da constatação de uma surpreendente escalada

dos perigos reais de extinção da vida na Terra, atrelados ao imenso

desenvolvimento técnico-científico, principalmente em função do potencial

universalmente destruidor da corrida armamentista, do aumento inescrupuloso da

poluição e do contínuo esgotamento da natureza desencadeados pela

superprodução industrial em escala mundial. Soma-se a isso a grandeza potencial

da extensão territorial e temporal dos acidentes industriais (tais como o acidente

nuclear em Chernobil, na antiga URSS em 1986) que escapam da capacidade

imediata de controle de autoridades locais onde se encontram as grandes indústrias

e, mais recentemente, a escalada de grandes pandemias, como a da Aids, que se

articulam a comportamentos tão fundamentais ao homem, quanto o sexual. Resulta

disso uma nova dimensão social dos riscos à sobrevivência, dos controles dos

acidentes, dos prejuízos crescentes à natureza, das outras relações econômicas

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impondo novas interpretações e relações sociais entre algumas das instituições

centrais da modernidade (o Estado, a Família, a “Fábrica”, a Escola).

Outros autores, dentre eles se destacando Castel (1987), fizeram uma

articulação do problema dos riscos a um outro diagrama de poder que se distingue

da sociedade disciplinar, descrita por Foucault (1987). Castel nos mostra, por

exemplo, que os mecanismos de gestão das populações se distanciam das práticas

insulares características do período disciplinar e se adaptam muito mais às

transformações colocadas em curso na contemporaneidade. Assim,

prevenir é primeiro vigiar, quer dizer, se colocar em posição de antecipar a emergência de acontecimentos indesejáveis (doenças, anomalias, comportamentos de desvio, atos de delinqüência, etc.) no seio de populações estatísticas, assinaladas como portadoras de riscos. Mas o modo de vigilância promovido por essas políticas preventivas é totalmente novo em relação ao das técnicas disciplinares tradicionais (CASTEL, 1987, p.125-126).

É nesse sentido que o conceito de risco vai se tornando, cada vez mais, um

instrumento de controle social, no qual a ciência e seus experts, são um dos

principais elementos de produção de normas e a mídia um dos grandes aparelhos

de controle. A criação de noções tais como populações de risco e comportamento de

risco, bem como uma minuciosa, intensiva e ampla investigação dos

comportamentos humanos atrelados a longos estudos sobre patologias, acidentes,

morbidade, enfim, uma extensa aplicação de instrumentos bio-políticos95 e uma

crescente cientifização do cotidiano são efeitos diretos da operação desse

mecanismo de poder que tem no risco o seu principal instrumental.

Porém, o que estamos definindo como risco? Trata-se de um conceito

universal?

Sem pretensão de definir exaustivamente o que se compreende por risco,

uma constatação surge de imediato quando se pensa nesta palavra: risco é algo que

implica em deixar de ver realizado no futuro algo que, a princípio, a partir das

condições que se colocam no presente, poderiam se ver concretizados. Ou, de

maneira inversa, ver realizado no futuro algo que, se não for atentado devidamente

95 Os instrumentos bio-políticos estão calcadas em princípios diferentes dos que sustentam as disciplinas. Objetivam apreender o funcionamento da massa, da população. Buscam controlar os processos aleatórios de doença, de acidentes, de envelhecimento que se passam em grupos de pessoas, mas que, se analisados coletiva e estatisticamente, são fenômenos que se dão em série, freqüentes e facilmente apreensíveis. Essas técnicas, portanto, buscam coordenar e intervir na regularidade desses fenômenos biológicos que diminuem a força da população, e centram-se não mais na intervenção sobre os corpos individuais que trazem as mazelas ao grupo. Sua intervenção “centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-lo variar; tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma bio-política da população” (Foucault, 1988:131).

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no presente, não poderá mais ser desfeito. Ou seja, uma tentativa de controle sobre

o futuro, desencadeada a partir da apreensão das dinâmicas possíveis do presente,

ou melhor, uma construção sobre o presente, buscando garantir um futuro

controlado, mas não disciplinado. Uma tentativa de tornar a experiência de vida no

presente mais controlada, regulada, assistida, para garantir que, num determinado

futuro, as previsões realizadas no presente sejam (ou não) efetivadas, mantendo-se,

no futuro, algo que se deseja aqui no presente. Uma tentativa de imortalizar o

presente no futuro. Um presente não restrito, relativamente aberto, mas controlado

para um futuro “controlável” ou “desejável”. Risco é justamente o controle sobre essa

dobra futuro-presente. Enfim, de uma maneira mais conceitual, segundo Castiel,

o risco se constitui em uma forma presente de descrever o futuro sob o pressuposto de que se pode decidir qual o futuro desejável ...O conceito de risco iguala as contradições no presente, estabelecendo que só se pode administrar o risco (o futuro) de modo racional, ou seja, através da consideração criteriosa da probabilidade de ganhos e perdas, conforme decisões tomadas. (CASTIEL, 2003, p.83).

Em uma palavra, um exercício de temporalidade e um mecanismo de poder.

Porém, as concepções sobre o risco, tal como qualquer conceito, não são únicas

nem uniformes. Nesse sentido, para Castiel, qualquer discussão que ignore

aspectos sociais em torno desse debate corre o risco de ignorar as determinantes

sociais sobre as diferentes visões de mundo. Isso não implica em negar que

determinadas ações podem resultar em eventos indesejáveis. O que se argumenta

são os efeitos que tais constatações ditas científicas provocam nos conjuntos das

relações humanas e subjetivas.

Nesse mesmo sentido, Mary Jane Spink (2001) apresenta uma das dinâmicas

do risco em nossa sociedade contemporânea. Atentando para uma dimensão

positiva – embora não afirmativa – do risco, Spink afirma que as transformações

contemporâneas, sobretudo aquelas vinculadas à constituição de uma sociedade

neo-liberal, tornaram a experiência do risco enquanto uma experiência de aventura

e/ou sucesso, num fenômeno político-ideológico que reforça as práticas

individualizantes e destradicionalizantes típicas da volátil e cambiante

contemporaneidade. O risco-aventura, segundo sua perspectiva, seria muito mais

que uma experiência individual ou coletiva, mas uma verdadeira metáfora da

chamada modernidade tardia. Uma ilustração de “novas sensibilidades decorrentes

do imperativo do enfrentar a imponderabilidade e volatilidade dos riscos modernos”

(SPINK, 2001, p.1278).

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Atravessando uma longa discussão sobre a história do conceito de risco,

desde sua emergência durante o fim da idade média, até a conceituação de que

vivemos uma sociedade do risco (BECK, 1992), Spink busca demonstrar que o

conceito de risco emerge concomitante à invenção do capitalismo e logo se

transforma em uma maneira bastante específica das subjetividades capitalísticas

experienciarem o futuro. Trata-se, segundo a autora, da inclusão do cálculo objetivo,

da abstração das normas e da modelagem dos processos nas antecipações

desejadas do futuro. O futuro assume um caráter estatístico e calculado, deixando

de se relacionar solidariamente com as práticas tradicionais e de trabalho, tal como

era encarada a experiência do futuro na Idade Média. Uma ruptura da continuidade

sólida, solidária e naturalizada entre o tempo presente e o futuro desejado,

inaugurando um futuro marcado pelos “cálculos de risco”.

Seguindo Spink, pode-se argumentar que a operação do risco como poder

procede, de uma forma resumida, da seguinte maneira: através dessa intensa

intervenção bio-política no controle sobre os corpos, a ciência, principalmente por

intermédio da mídia, mas também através de inúmeros organismos, sejam de

assistência social, sejam ONGs, vai mapear uma série de comportamentos que, num

futuro próximo ou distante, poderão acarretar doenças, acidentes, violência, enfim,

problemas à saúde e ao bem-estar das pessoas. Numa antecipação de um futuro

projetado sobre uma observação atenta dos atos do presente, a vigilância sobre o

comportamento individual, exercida através de uma auto-observação e controle,

acaba restringindo o leque de comportamento socialmente esperado e valoriza,

numa hierarquização já não mais estampada sobre a norma, alguns

comportamentos sobre os demais.

Entretanto, a maneira como Spink assume o debate sobre risco deixa de lado

um outro aspecto que Caponi (2001) identifica como crucial: o exercício do risco

como afirmação também de uma potência de vida. Como afirma Caponi,

incorporando materiais de Canguilhem: “saúde [...] é a capacidade de assumir riscos

e de poder superá-los” (CAPONI, 2001, p.1307). Assim, a sociedade do risco

emerge enquanto poder se não se pretende articular uma certa experiência do risco

enquanto afirmação da potência da vida. Porém, se se opera a vida enquanto saúde,

e a aposta é uma de suas expressões, o conceito de risco pode restabelecer um

outro conjunto de acepções e o paradoxo se revela com mais clareza, requerendo

reflexões para resolver tais questões na chamada pós-modernidade. Um primeiro

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passo é dado quando debates como esse reforçam a urgência em se repensar a

Saúde Pública para melhor adequá-la aos instrumentos de resistência e produção

de um novo mundo. Como afirma Oliveira (2001, p.1308) “o reconhecimento da

existência de diferentes sentidos para risco seria um bom começo para a necessária

revisão da concepção sanitarista de risco, a qual, com raras exceções, tem sido

arrogantemente proposta como verdade”.

Aqui estamos ingressando em um terreno muito mais árido, pois se trata de

um paradoxo ainda por ser resolvido em nossa sociedade, uma vez que a operação

do risco como técnica de poder é calcada em uma lógica simples: faça isso ou deixe

de fazer aquilo para que você tenha mais saúde ao envelhecer. É sempre em nome

da saúde e da vida que se impõe a lógica do risco. Todavia, se olharmos mais

atentamente a concepção de saúde de Canguilhem, saúde pode ser definida,

justamente, como a capacidade de assumir risco e levar adiante essa escolha.

Assumir risco, em certa medida96, pode significar a tentativa de por a vida em

movimento, caminhando para a construção de uma autonomia sobre seu corpo e

sobre si e sobre a sua vida. Risco, nessa acepção, se aproxima então da saúde.

Mas, não como opera o poder. Exatamente pelo contrário, risco se aproxima da

saúde na medida em que ao lançarmos mão de comportamentos de risco nos

embrenhamos pelas imensas e múltiplas estepes do imprevisto, onde o que importa

é um grande conhecimento de suas capacidades criativas e seu potencial de

resolução de problemas e colocação de novos problemas. Saúde, então, é saber

lidar com os riscos de maneira ousada e autônoma, apostando no movimento da

vida e do acaso. A tomada de risco é uma expressão da potência humana e de sua

saúde. É a aposta no devir e a experimentação do prazer a partir da fruição do

mundo e de si, afirmando a autonomia das escolhas e da produção do mundo e de

si.

Nesse ponto, devemos nos manter um pouco mais atentos, pois aqui se

alicerça um dos pilares que demarcam terrenos de luta em nossa

96 Medida essa baseada em limites tais como autonomia da escolha ou a preocupação coletiva pela segurança dos ambientes em que os comportamentos de risco são eliciados. Devemos observar que algumas dimensões do risco são amplamente produtoras de sentido e significado para a saúde, como as experimentações das pessoas nas escolhas de parceiros sexuais. Por outro lado, alguns trabalhadores são lançados a executar atividades em ambientes completamente insalubres, onde é aumentado enormemente o grau de risco de acidente. Nesses casos, não se trata tanto de uma condição de possibilidade de escolha, mas de submissão a situações degradantes de trabalho. Para nós, essas relações não são de experimentação do corpo e da vida, mas de exploração do corpo alheio. Trata-se, então, mais de uma experiência de violência do que de risco. O comportamento de risco dá lugar, aqui, à exposição ao perigo.

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contemporaneidade, distinguindo-se duas concepções de construção do mundo:

potência versus controle; afirmação versus determinação. No campo da Saúde, a

experiência do risco circula também entre esse vasto leque. Caponi, em um ensaio

sobre uma possível interpretação da “Saúde como abertura ao risco” (2003), usa

exaustivamente Canguilhem para afirmar que na compreensão da experiência da

saúde e a da doença, o que está em jogo não é, de fato, uma definição científica,

uma experiência de uma curva estatística (do normal ao patológico), mas uma

disposição filosófica. Saúde, então, não deve ser compreendida de maneira abstrata

sob a tônica do raciocínio científico, mas de maneira política e afirmativa.

Saúde, para Canguilhem (1995), é a capacidade de o organismo responder

ao seu meio, incorporando-o em novas relações, e não apenas adaptação às

transformações da realidade. Ter saúde, portanto, é ser capaz de se afetar e se

transbordar de afeto. A incapacidade de uma pessoa que sofre alguma dor, em

achar sentido nessa dor, ou de compreender aquilo que se experiencia ou sofre,

impedindo-a de desgrudar desse sofrimento ou de responder a essas pressões é o

que poderíamos chamar de doença. Saúde é criação e recriação de si e do mundo

em relação. Doença é cristalização de um modo de ser. Saúde, então, não está no

campo do corpo puro, mas de um corpo repleto de sentido. Não puramente uma

imagem corporal; muito menos a experiência de constituição de uma determinada

subjetividade, mas sim a expressão de uma interseção entre o corpo biológico, a

imagem corporal, a subjetividade que atravessa e arrasta o corpo, o sentido de si, o

in-sentido de si, sua inconsciência. Uma experiência de um corpo-si, como diria

Schwartz (SCHWARTZ; DURRIVE, 2007).

Saúde, então, para Caponi, é muito mais que uma simples experiência. É um

campo de possibilidades que o organismo tolera em torno de si e de seus atos, que

garantem a esse organismo sua recomposição com o real. É a capacidade de tolerar

os riscos, de se acometer em falhas e ressurgir para afirmar-se enquanto agente de

construção. É a capacidade de escapar ao que está predeterminado. Afirmar a

aposta: é isto que está em jogo na saúde: “a possibilidade de abusar da saúde faz

parte da saúde” (CANGUILHEM, 1995, p.162).

A capacidade singular de cada um de transitar e abusar da sua saúde,

apostando seu corpo na tentativa de contornar os “acidentes e infidelidades do meio”

é o que torna a experiência da saúde como uma experiência eminentemente

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subjetiva. Entretanto, as definições históricas da constituição dos corpos das

pessoas – seja a partir da imposição de condutas-padrão desencadeadas pelas

campanhas higienistas e preventivistas, seja pela simples exposição a condições

insalubres – vão interferir no campo de possibilidades das escolhas e apostas de

cada um.

As práticas de saúde, então, não devem ser mais que uma “capacidade de

administrar de forma autônoma esta margem de risco, de tensão, de infidelidade, e

por que não dizer, de ‘mal-estar’, com que inevitavelmente devemos conviver”

(CAPONI, 2003, p.68). Isso porque a centralidade da aposta, do risco, no seio da

capacidade inventiva humana é aquilo que nos torna seres incansavelmente

criadores. Ficará para uma outra oportunidade o debate sobre a maneira como a

Saúde Pública pode aproveitar um pouco mais da contribuição sobre esse conceito.

Por hora, passemos a analisar como o conceito de atividade, se apoiando nessa

concepção de saúde, nos permite ampliar ainda mais essa noção de positividade do

risco.

Num texto extremamente valioso, na mesma linhagem canguilhemiana

presente na perspectiva ergológica, Nouroudine (2004) vai nos indagar se é possível

construir um conceito positivo do risco. Ele faz essa indagação ao investigar as

práticas teóricas e sociais em torno dos riscos nos mundos do trabalho.

Como dito acima, as análises sobre o trabalho articulam diversas dimensões

humanas: a da economia, a da invenção, do corpo, etc. Nessa articulação, o

conceito de modos de produção emerge como fundamento da constituição

(produção/reprodução) da sociedade. E um dos aspectos-chave do conceito de

produção é a capacidade inventiva do homem. Inventar implica em lançar-se ao

desconhecido, em operar os limites e abrir-se ao risco. Abrir-se ao risco é agir-

saúde.

Nouroudine, entretanto, vai um pouco além, afirmando que a busca de

incorporação do conceito positivo do risco pode ser uma importante arma contra os

efeitos perigosos do arriscar-se. Isso porque as práticas que afirmam a positividade

do risco tendem a basear-se em articulações políticas e coletivas bastante positivas

na construção de experiências humanas mais produtivas e saudáveis, tais como a

autonomia, a autogestão, a coletividade e a solidariedade. De maneira inversa, as

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práticas de controle dos riscos no mundo do trabalho, segundo Nouroudine97,

tendem a se limitar em:

• identificar as situações e fatores de risco que influenciam na atividade

posterior;

• produzir ou mobilizar conhecimentos sobre estes fatores;

• implementar disposições ou medidas tendo em vista impedir que o

risco se transforme em perigo.

Entretanto, Nouroudine nos aponta que não se pode mensurar, com

propriedade e exaustão, aqueles fatores de risco, visto que eles incluem experiência

humana, a atividade humana, a interpretação desses riscos, etc. Tudo isso não é

objetivável. Portanto, qualquer tentativa de utilizar tais ferramentas na esperança de

controle dos acidentes será pouco eficaz. O que se produz, quando muito, é um

conjunto de comportamentos resistentes às normas e sujeitas a punição. Basta

lembrar que não é incomum encontrar trabalhadores da construção civil sem

equipamentos de proteção individual (como capacete) nos canteiros de obra,

principalmente quando neles a questão é tratada de maneira a, fundamentalmente,

proteger a empresa no plano legal. Até porque virtualmente não há qualquer tipo de

controle ou vigilância do funcionamento dos equipamentos de proteção coletivo.

Sem estes, a função protetora dos equipamentos de proteção individual reduz-se

consideravelmente, sem contar com o fato de que esses equipamentos de proteção

individual são em geral bastante desconfortáveis para o trabalhador, chegando

mesmo, em algumas situações, a reduzir a capacidade dos trabalhadores em

realizar adequadamente suas atividades.

Entretanto, mesmo que a prática tenha sido essa, Nouroudine se pergunta por

que as pessoas tendem a não se acidentar. Com isso em mente, ele sugere que

existe uma série de fenômenos na determinação dos riscos. Entre eles, encontram-

se os saberes-fazer de prudência (CRU 1987b; CRU; DEJOURS, 1987), já

trabalhados acima. Tudo se passa, basicamente, através de certa “confiança” que as

pessoas adquirem sobre a sua realidade, permitindo-lhes “abusar” cada vez mais

dela. Ou seja, com o passar do tempo, o domínio sobre a realidade permite às

pessoas testar novas formas de fazer o seu trabalho, recompondo, por meio de

novas experiências e outros usos de si, outros saberes sobre si, sobre seus colegas

97 Podemos extrapolar esse conceito para as práticas em Saúde Pública em geral.

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e sobre sua realidade. A criação de um novo cenário e a recomposição de si com

sua prática produtiva se revelam como fundamentais para a manutenção da saúde.

Além disso, Nouroudine insere o ponto de vista e o conceito de atividade

nessa discussão. Para ele, a experiência do risco se encontra no cerne de qualquer

atividade. Atividade aqui pode ser definida como a mobilização do corpo singular e

todo o conjunto de experiência, emoção, subjetividade, sensação de uma pessoa na

realização de uma ação de produção. Atividade implica em construir, o que quer que

seja, gerindo os instrumentos e ferramentas disponíveis, as características da

situação, a realidade do corpo, o conjunto de normas e procedimentos apreendidos

na história com o mundo e o coletivo. Toda atividade implica em uma “re-”invenção,

uma “releitura”, por mais micro que seja, sobre as determinações e meios que se

utiliza na experiência de invenção. Atividade, em suma, é a experiência de

transformar o mundo à sua cara. O que se dá a todo instante nas mais diversas

atividades nas quais estamos empreendendo. No momento em que realizamos

atividades, inauguramos um campo de possibilidades onde está em debate um

conjunto de regras socialmente adquiridas, as regras corporais em cena, as

contingências específicas de cada situação, os desejos e temores que atravessam o

corpo e a mente em determinado momento, os saberes de prudência postos em

análise, as reservas de segurança, etc. Durante o momento de atividade, um debate

de normas se coloca em ação. Um caldeirão na qual a resultante escapa às

determinações da consciência. Uma experiência do corpo que escapa e transborda

a ele, registrando no mundo as marcas de cada um. É pela atividade humana que o

homem (re)constrói o seu mundo.

A atividade humana tem como característica exatamente a possibilidade, a

capacidade da transformação da realidade (e de si). Entretanto, como não se sabe o

que se produz em qualquer momento produtivo, pois só se pode apreender a

experiência produtiva a posteriori da criação, a atividade humana inclui, em seu

cerne, a experiência do acaso. A pessoa que se lança em uma atividade, seja a de

produzir um poema ou apertar parafusos de uma placa de som em uma linha de

montagem de eletrodomésticos, não consegue determinar, com precisão, os efeitos

de sua atividade. Nesse ínterim, entre a avaliação complexa da pré-atividade e o

produto feito, uma série de forças, sensações, experiências cruza o corpo da

pessoa, abrindo um campo de possibilidades em que os sujeitos se sentem mais ou

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menos confortáveis. Nesse campo de possibilidades, se produz, necessariamente,

algo novo, diferente, por ínfimo que seja, do que foi produzido anteriormente.

Essa abertura ao novo é sempre uma aposta. No momento da criação, o risco

toma de assalto o protagonista da atividade de corpo inteiro. Debates entre desejos

e forças, normas e expectativas cruzam em faíscas, lampejando a escuridão. O

controle escapa à consciência e o corpo se nutre de acaso. Uma aposta, afirmativa:

o efeito esperado é sempre o de finalização da atividade. Mas nessa aposta, o que

está em jogo não é o sucesso da ação, mas a avaliação da própria capacidade de

atividade. Quanto se lança no escuro do acaso, acendem-se luzes de possibilidades

que se encaixam em resultantes nas quais o sujeito se apropria imediatamente. Uma

dessas resultantes é a própria construção de saber e de norma. A atividade, nos

aproximando de Canguilhem, é ação de instituir novas normas, é a condição de

(re)normatizar. A saúde se expressa, então, pela condição de atividade. Abusando

de suas palavras:

o risco está presente em toda atividade humana. O risco seria então a réplica lógica de uma dupla impossibilidade ligada à natureza da atividade humana quaisquer que sejam a forma e a organização histórica que ela tome: impossibilidade de neutralização das singularidades nas atividades humanas e impossibilidade de antecipação total dos elementos constitutivos do processo da atividade. É uma outra maneira de negar toda neutralidade nas atividades humanas no que diz respeito a sua realização e seu conhecimento. É neste sentido que as atividades humanas são lugar de um engajamento daqueles que são seus autores. Este engajamento é ilustrado sem ambiguidade nos atos de infração que revela toda análise das atividades. (NOUROUDINE, 2004, p.54)

Instituir normas é resultado de um lançamento de si no acaso, o efeito de uma

aposta. No cerne dessa aposta, o risco afirmativo da potência da vida. Nesse

sentido, atividade cheia de risco é atividade cheia de potência de transformação. O

conceito de risco se centrando no miolo da atividade e a atividade sendo o operador

da saúde. Pensar na articulação entre esses três conceitos, atividade, risco e saúde,

é produzir uma nova forma de compreender a saúde. O que está em foco aqui é a

potência, e não o poder.

Indo além, Nouroudine busca articular esses três conceitos também filosóficos

à experiência humana biológica, sugerindo que a vivência do corpo em suas

interfaces simbólicas, sociais, cognitivas, sensíveis, é o principal instrumento que

baliza as correntes durante o risco da atividade. Aqui, nesse momento, o

pensamento deixa de ser raciocínio e se torna pura sensibilidade. Em suas palavras,

“se encaramos o risco no trabalho como experiência, isto é, como atividade humana,

então é preciso considerá-lo em sua relação com os atores do trabalho em dois

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planos deferentes, mas não separáveis: o corpo e o pensamento engajados no

corpo-si” (NOUROUDINE, 2004, p. 47-8).

De maneira geral, a utilização do conceito de atividade por Nouroudine, na

compreensão do conceito de risco permite rechear este último conceito com uma

força que auxiliaria na capacidade das próprias pessoas em se mobilizar com

melhores níveis de segurança em torno de suas ações. Isso porque, se se

considerasse a positividade do risco, e tudo o que ela implica nas práticas de

prevenção e produção, a dimensão de criação e da atividade humana também

estariam postas em cena, visto que o que se mobiliza na atividade humana é o

campo da autonomia e da troca de experiências com o mundo. E incorporar tal

conceito no campo da saúde, permitiria assumir a dimensão da saúde como um

fenômeno singular e que remete apenas às pessoas. A questão, portanto, não é

permitir às pessoas tomarem consciência sobre as suas ações e os efeitos dela,

mas permitir que o comportamento seja assumido como expressão de si e enquanto

experiência de atividade e potência: eis aí o princípio da saúde98.

É por meio da reflexão de Nouroudine que conseguimos compreender de uma

maneira um pouco mais abrangente o que se passa nas tomadas de risco dos

motoboys. De fato, está claro para todos que pesquisam o trabalho dos motoboys

que eles executam suas tarefas em meio a um risco real e cotidiano de acidentes e

assaltos. É fato, também, que esta experiência se dá exatamente pelas imposições

das condições de trabalho. Porém, tentamos ampliar um pouco nossa análise,

lançando a hipótese de que essa experiência do risco é reconstruída pelos

motoboys, conformando um conjunto de saberes em que ela deixa de ser um efeito

da realidade e passa a tomar um papel central em sua atividade cotidiana. Vejamos

porque.

Já citamos, acima, o reconhecimento de Oliveira (2003) em torno da

dificuldade de se abrir mão de um estudo de acidentes de trânsito entre os

motoboys. A despeito disso, esse pesquisador preferira ater-se à “cruel realidade de

vitimização a que estavam expostos” (2003, p. 25), uma vez que ao se prender nos

riscos, as pessoas esqueciam dos processos de vitimização em jogo na profissão.

98 É importante deixar claro que não fazemos apologia ao risco, Reconhecemos os limites que as condições de trabalho impõem à possibilidade de escolha e de experimentação por parte dos trabalhadores. Há, pois, exposições a situações de risco, ou mais propriamente, exposição a condições de perigo, dos quais os próprios trabalhadores possuem poucos recursos para enfrentar. Mas, mesmo nessas condições há que se verificar as estratégias em exercício pelo trabalhador.

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De fato, é muito difícil pensar no trabalho dos motoboys para além da questão

dos riscos enfrentados no cotidiano de seu trabalho, pois os dados apresentados e

os comportamentos visíveis à população logo tornam sinônimos a imprudência e o

motoboy. Ao mesmo tempo, é muito importante destacar toda a sujeição

organizacional, histórica e social a que eles estão submetidos em seu cotidiano.

Porém, ao se dar demasiada atenção aos aspectos da sua vitimização, tende-se a

abrir mão de um princípio que para nós é fundamental: todos são agentes em suas

vidas e cada um, por meio de sua potência produtiva, interfere ativamente em suas

realidades; o que implica em, minimamente, relativizar o papel de vítima a que

alguém está sujeitado. Dizemos isso não para afirmar que não existem vítimas em

relações diferenciadas de poder, ou que os motoboys não são vítimas de um

trabalho perverso, etc... É claro que existem sujeições, sim. Porém, como o próprio

Oliveira (2003) afirma, a violência, sobretudo no trabalho, não se dá de forma

estática, sendo sempre uma relação na qual cada um produz ou assume ali um

determinado papel. Com isso, as dinâmicas subjetivas vão podendo ser mais bem

compreendidas, pois do contrário, perderíamos a compreensão de que o processo

de produção do agressor em geral relaciona-se ao processo de produção da vítima.

Ou, em outras palavras, o processo de produção da vítima e do agressor é

subjacente a essa relação, sendo, pois, um conjunto de fenômenos sociais que

ultrapassam a individualidade de cada um e que conformam esses papéis

diferenciados, que delegam a um ou a outro, mais ou menos capacidade de

exercício de poder. A violência é, então, menos puramente vitimização ou agressão;

é um jogo duplo em que vítima e agressor produzem e são produzidos por meio de

sentidos e sentimentos sociais que dão significado àquela relação. Portanto, se

acreditamos importante pensar nos processos de vitimização do motoboy,

acreditamos de igual importância compreender seu papel ativo nesse processo. Uma

das formas de compreender isso é exatamente estudar suas relações com o risco.

Para isso, recorramos uma vez mais a Diniz (2003). Vimos que esse autor

nos informa que as urgências da entrega vão pressionando os motoboys a se

arriscarem no trânsito. Ele explica, ao mesmo tempo, que essa ousadia é um

processo adquirido ao longo do tempo. Além disso, em função dos riscos

enfrentados, os trabalhadores vão desenvolvendo competências que lhes permitem

responder às demandas com o máximo de segurança possível. Vimos, também, que

pela experiência que esses trabalhadores adquirem, chegam mesmo a recusar

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determinados serviços que acreditam impossível de ser realizado no tempo

disponível para fazê-lo com a devida segurança. Chegar a essa conclusão não é um

processo fácil e natural, mas sim um longo exercício que requer um determinado

período de experimentação de si, da cidade e das condições do trabalho. Até porque

a baliza financeira é um marco contínuo na vida desses profissionais. Diniz afirma

também que os mais antigos no trabalho também conseguem dominar seus ímpetos

e passam a trabalhar com mais segurança, utilizando os comportamentos de risco

somente em condições especiais, demandados pelo trabalho. Sem o citar, Diniz vai

se aproximando da concepção que Nouroudine tenta construir sobre o risco, uma

vez que é por meio da experiência cotidiana, em geral marcada por uma história de

acidentes vivenciados ou presenciados, que os modos de se comportar e lidar com

os riscos vão sendo desenvolvidos numa contínua experimentação de si como

condutor da moto. Arriscar-se, então, é um comportamento que tem como um dos

motores uma intensa pressão para o trabalho, ao mesmo tempo em que é uma

busca por adquirir um domínio paulatino de si, de sua moto, de sua condução e de

suas antecipações no trânsito. Para isso, é necessário, com certeza, um pouco (ou

talvez muita) coragem.

A vitimização, portanto, é aqui menos explícita porque em geral os

trabalhadores não se arriscam sem saber ao mínimo como se arriscar e a

experiência os levam a fazê-lo com mais freqüência em seu cotidiano.

Paradoxalmente, é com o passar do tempo que os motoboys sentem mais e mais

confiança no controle de suas manobras. Nesse sentido, o que se percebe como

risco para um observador externo é, para quem se arrisca, um comportamento

relativamente seguro e o acréscimo da ousadia pode não significar,

necessariamente, um acréscimo do risco. Para tanto, o uso de saberes na condução

das manobras arriscadas tornam-se poderosos recursos de proteção, tais como a

redução do tempo de exposição ao espaço de risco e o aumento da margem de

segurança pelo acréscimo dos espaços de fuga e do maior investimento cognitivo na

manobra.

Para relatar um exemplo: vimos acima como os motoboys acreditam ser

arriscado passar por entre dois caminhões, dois ônibus ou um ônibus e um

caminhão; dizem que é perigoso tanto pela pouca visibilidade que esses veículos

permitem ao motociclista, quanto porque alguns motoristas, segundo eles, gostam

de “sacanear” os motoboys. Um motoboy nos dizia certa vez que tentava evitar ao

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máximo se arriscar, mas que acabava fazendo isso de vez em quando. Disse-nos,

por exemplo, que de vez em quando passava a quase 100 Km em um corredor ou

por entre dois ônibus ou caminhões. Perguntamos se ao chegar em casa, no final do

dia, tinha algum impulso de refletir sobre o assunto. Ele foi enfático: “você pensa

nisso é na hora: ‘Tenho que maneirar’”. Ele diz reconhecer o risco e que o faz

porque, sem pensar, acredita que dá. É uma aposta. O risco parece, então, não ser

uma condição única de pressão da organização do trabalho, mas uma produção de

conhecimento sobre a realidade e uma aposta que o motoboy dará conta dela. Essa

aposta é sempre perigosa, mas é sinal também de um domínio de si sobre essa

mesma realidade. Perguntamos então a ele se já havia sofrido acidente. Ele nos

disse que sim, que foram dois. Um deles aconteceu quando entrou em uma curva

onde havia uma poça de óleo. Quando viu a poça, sentiu que perdera o controle da

moto e caíra. Por sorte não havia carro atrás, nem ele estava em alta velocidade. Foi

um pequeno acidente. Foi um ato de risco? Não. Imperícia? Não. O comportamento

de risco não explicava essa situação. O que explica esse acidente é mais o descaso

que nosso poder público tem para com o trânsito. De qualquer maneira, uma lição:

não entrar na curva com muita velocidade, pois você não sabe como está a pista. O

outro acidente: o motoboy vinha pela pista da direita. Viu um carro saindo da

garagem, mas ele acreditou que estava sendo visto, que a pessoa iria parar.

Acreditou!!!! O acidente se consumara, pois ele estava enganado: o carro entrou em

sua frente. Foi um ato imprudente? Não. Comportamento de risco? Também não,

pois ele estava em sua pista, indo reto e atentamente. Porém, desse acidente o

motoboy tirou outra lição. Nunca andar pela pista da direita, principalmente quando

vir um carro saindo da garagem pela sua mão. Imaginemos, então, uma situação

hipotética: esse motoboy tem que entrar em uma rua à sua direita logo à frente;

antes, porém, avista um carro saindo da garagem também pela sua direita. O que

ele alega fazer, a partir do acidente, é passar para a pista da esquerda quando vê

um automóvel vindo pela direita para entrar na pista em que o motoboy está. Só

depois que passa pelo automóvel é que o motoboy volta para pista da direita.

Imaginemos, agora, que vindo pela pista da direita ele observa o carro saindo da

garagem. Ele pula para pista da esquerda. Ele o faz sem usar a seta. Imagine uma

situação pior: ele se arriscou ainda mais, entrando na frente de algum carro que

vinha na pista da esquerda. Ele literalmente entrou na frente do carro. Certamente o

motorista que visse esse comportamento pensaria: “cara, esses caras são tudo

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louco”. Pois bem. Um risco empreendido, para evitar um risco!!! Porém, entrar na

frente de um carro é um comportamento que ele domina, que ele sabe que dá ou

não para fazer, pois de relance ele calcula o espaço, sua velocidade, a velocidade

do carro vindo pela esquerda e avalia mentalmente se o tempo dá e se seu corpo

está preparado para tal. Ele realmente vai emitir um comportamento de risco, que

pode ou não dar certo. Mas ele aposta que dará certo e o faz porque ele confia em

si, ele aprendeu que é capaz. Por outro lado, ficar na pista da direita, mesmo sendo

o mais correto a se fazer, quando se tem um carro saindo da garagem se tem um

risco potencial que ele não domina, não controla! Daí, então, que o comportamento

de risco não ser um ato impensado, imprudente ou totalmente perigoso. Ou melhor,

perigoso, segundo sua experiência, é fazer o que é certo!

Por outro lado, para alguns, essa “confiança” que se desenvolve ao longo do

tempo, quando se torna excessiva, pode levar os motoboys a se acidentarem. Ou

seja, um dos reveses do aprender a se arriscar é que os trabalhadores acabam

“tomando confiança” de maneira excessiva nos comportamentos mais ousados, é o

que nos dizem outros motoboys. É como se os trabalhadores precisassem

desenvolver uma certa prudência no uso dos saberes de prudência, ou melhor, o

grande saber de prudência é exatamente possuir uma moderação no uso dos

saberes de proteção. As manhas e macetes não seriam completamente confiáveis.

Para alguns, esse excesso de confiança se dá mais comumente quando eles pegam

muitos serviços concomitantes e acabam “se enrolando” na sua execução, passando

a confiar quase que exclusivamente na redução do tempo gasto nos trajetos entre os

locais de entrega. Para tirar o atraso, acabam tendo que correr mais. Como sabem

pilotar bem sua moto, esses motoboys acabariam andando no limite da capacidade

de arriscar-se com segurança, aumentando a chance de acidentes.

Não podemos ignorar que nem todo acidente é causado por motivos ligados

aos comportamentos de risco. Mas para nós, a questão principal nesses pontos de

vista é que o risco se torna nesse processo algo natural. Veronese (2004) reconhece

essa naturalização dos riscos em Porto Alegre. Diniz também identifica em Belo

Horizonte que “a pouca margem de liberdade fez com que alguns motociclistas

passassem a considerar o comportamento de risco como algo normal, inerente à

profissão” (2003, p.73). Essa naturalização dos riscos poderia ser compreendida,

porém, não somente como uma naturalização ideologizante de uma defesa coletiva,

mas também como uma conquista do coletivo no desenvolvimento de saberes para

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enfrentar as condições de trabalho. Uma conquista que é ambígua em seus

princípios, uma vez que compreende em parte seu lado pernicioso, pois não mobiliza

os trabalhadores em direção a uma luta por melhores condições coletivas de

trabalho, mas que por outro lado permite uma certa sobrevida das pessoas na

realização de sua atividade.

A maneira como partilham esses conhecimentos ficou evidente nas conversas

de rodas, em que os trabalhadores comentavam os sustos levados ou os acidentes

vivenciados por eles. Ficou evidente, também, num acidente presenciado por nosso

estagiário de iniciação científica, por meio de uma constatação interessante que se

destacou daquele trágico cenário: logo que os motoboys perceberam que estava

tudo bem com o colega acidentado99, eles começaram a contar histórias de

acidentes ou incidentes que eles presenciaram ou que experimentaram. Como se

não apenas o motoboy acidentado necessitasse elaborar psiquicamente o acidente;

parecia que toda a categoria necessitasse elaborá-lo, pois naquele acidente era

como se toda categoria houvesse se acidentado. Será que nessas elaborações se

trocam sentimentos, se acolhem as dúvidas e se tentam localizar as angústias e os

medos em um coletivo que dá suporte e significado a esses sentimentos? Parece

que sim, pois comumente encontramos grupos de motoboys comentando sobre os

sustos por que passaram, bem como sobre os acidentes em que estiveram

envolvidos. Parece, então, que esse conhecimento partilhado vai sendo resgatado

como recurso que permite enfrentar o trânsito no dia-a-dia, aumentando as margens

de segurança do trabalho sobre o cotidiano, levando-os, por isso, a se arriscar mais.

O risco é, pois, sempre uma conquista, um sinal de que se domina mais e mais o

seu ambiente. É sinal, também, de que existe ainda uma aposta de que tudo vai dar

certo. Abandonar a profissão, quando não motivada por oportunidades mais

vantajosas de dinheiro, seria, quiçá, a descrença na aposta sobre o controle dos

riscos.

Vimos como a antecipação inclui uma margem de segurança e vimos

também, num trecho logo acima, como o instrutor do sósia lhe explicava para

observar o espaço entre um veículo grande e um outro à frente: poderia ser sinal da

entrada de um veículo à direita – ensinamento esse quase idêntico ao exemplo do

motoboy que se acidentara com o veículo saindo da direita. Dessa maneira, arriscar-

99 Ele sofrera algumas escoriações e “apenas” um membro quebrado. “Não” fora “nada grave”!!!

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se no trabalho não é necessariamente fazer o que os outros denominam de

imprudência. A nomeação que um ato é de risco é geralmente fruto de uma

percepção externa à pessoa que a emite. Não sabemos muito as condições que

levam à escolha desse “ato inseguro”. Vimos, entretanto, em vários locais como

essa “tomada de risco” não se dá a esmo, mas é fruto de um estado de espírito

propício, de um conjunto de cálculos, de antecipações relativamente seguras, da

observação das margens de segurança, de uma destreza na pilotagem, de uma

pressão para o alcance das metas, de necessidade de ser decidido, estar sempre

atento e ser um bom observador. O motoboy não pode obter essa capacidade sem

explorar ativamente as situações de risco. Uma exploração positiva dos riscos, pois

dela se produzem novas formas de ser e de se perceber a realidade, ao mesmo

tempo em que se adestra o corpo e se solidificam as identificações coletivas por

meio da pilotagem. Talvez por isso os motoboys mesmo digam: “a gente não pensa

muito nisso não”, referindo-se aos riscos. Outro completa: “acho que se a gente

pensar muito, não trabalha”. Será que se trata neste último relato apenas da

revelação de um sistema coletivo de defesa de tipo ideológico em exercício,

denunciado pelo uso da negação? Talvez em parte, mas não necessariamente! 100

Os motoboys não duvidam dos riscos. Eles simplesmente não o vêem exatamente

da mesma forma que nós, até porque, como vimos, o risco é uma noção construída

sempre a posteriori. Nesse sentido, se se considera como risco a emissão de um

determinado tipo de comportamento que, diante de alguns parâmetros normativos

ou epidemiológica e estatisticamente embasados, se define como redutor da

margem de segurança, é bem provável que os motoboys não necessariamente os

reconheça como arriscado. Para os motoboys, parece que uma situação de risco só

se torna evidente quando alguma coisa falha em seus “cálculos”. O susto, “o medo

segura muito a gente”, é o que nos disse uma vez um motoboy. Isso se dá quando

ele encontra seu limite, sua fragilidade. Talvez passar dali seja arriscar-se. Diante do

susto, “a pessoa fica mais prudente”. O risco, então, não é o arriscar-se. É mais

provável que o risco se dê quando um motoboy não observar seus limites,

ultrapassar os princípios os quais deve obedecer para uma boa decisão. Até porque,

nunca é demais repetir: nem todos os acidentes são frutos de imprudências do

motociclista. Mesmo que suspeitemos dos relatos dos motoboys, que tenderão a

100 Veremos logo abaixo que alguns sistemas defensivos parecem estar, de fato, em uso pelos motoboys.

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responsabilizar outros por seus infortúnios, presenciamos no trânsito inúmeras

situações em que o motociclista é nitidamente desrespeitado em seus direitos. Um

de nossos estagiários, que também é motociclista, nos confirmou isso diversas

vezes.

Não estamos querendo dizer aqui que não acontecem acidentes quando os

motoboys se arriscam. Pelo contrário. É provável que parte importante dos acidentes

estejam vinculados a esses comportamentos de risco. E eles sabem que

determinados comportamentos aumentam a probabilidade de que alguns acidentes

venham a acontecer ou que, pelo menos, em função de comportamentos ditos

arriscados, a gravidade dos acidentes pode aumentar consideravelmente. Alguns

são muito enfáticos nisso: para estes, é a imprudência dos próprios motociclistas

uma das principais causas de acidentes. O que afirmamos aqui é que, por um lado,

não dá para se reduzir os acidentes aos comportamentos de risco dos motoboys no

trânsito: vários acidentes são provocados por outros condutores, por exemplo. Por

outro lado, todo comportamento de risco envolve aspectos diversos e que vão além

de uma simples sujeição do motoboy a determinadas pressões sociais para que ele

se comporte de uma maneira que aumenta os riscos de acidente. Além disso, estes

comportamentos não obedecem a determinações puramente individuais

desvinculadas do contexto em que se manifestam. Ou seja, não são frutos de um

prazer patológico, ou de uma incapacidade cognitiva ou moral que o motoboy

carrega consigo, tal como a noção de imprudência parece nos sugerir. Na verdade,

são vários os aspectos que vão compondo um cenário em que o uso dos

comportamentos tidos como arriscados se faz útil e tem sentido. Para compreendê-

lo, requer-se o conhecimento das dinâmicas em que o motoboy age com base em

decisões sempre limitadas, insuficientes e freqüentemente provisórias, tornando, por

isso, o risco como um fator inevitável. Mas nem por isso, a atividade se torna

impedida, pois, por meio de inúmeros esforços, entre as quais um nítido empenho

cognitivo e uma grande mobilização subjetiva, o motoboy colocará seu corpo-si em

movimento em direção às decisões mais apropriadas e que tornem as

conseqüências nefastas as mais improváveis possíveis. Para que isso seja possível,

há que se explorar ativamente os limites de si, de seu corpo, da moto, do trânsito.

Há que se esgarçar a abrangência dos conhecimentos e do domínio que se tem da

moto, bem como se faz fundamental ampliar os limites das condições que, a

princípio, são tidas como impensáveis ou impossíveis de se realizar. É por isso que

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esse processo de risco acarreta sempre em seu próprio desenvolvimento pessoal, o

que está em extremo desacordo com a concepção de que o risco é produto de uma

série de lacunas sócio-cognitivas que tornam a pessoa menos preparadas para

determinadas situações. Nesse sentido, se não podemos afirmar que é saudável ou

desejável que as pessoas se coloquem em situações de risco, não podemos tratar

quem o faz puramente como vítima, como desinformado ou como vulnerável. É

fundamental observar nas atividades de risco o conjunto de produções de

subjetividade (sempre coletivas) em torno do enfrentamento dessa situação.

Vale considerar ainda que, como veremos, os sentimentos de juventude e de

virilidade, que estão em torno da áurea da cultura do motoboy, parecem interferir

ativamente nessa dinâmica do risco e que também devem ser levados em

consideração para conseguirmos pensar em soluções que reduzam os acidentes de

trabalho. Porém, se há que se definir o risco, talvez o melhor seja apreendê-lo

também como um exercício de aprendizagem de si. É esse exercício de treinamento

de si, de suas potencialidades e limites, da aplicação prática do que se partilha e

apreende em grupo, em teoria, em apropriação dos saberes genéricos da atividade

é que definimos como uma exploração positiva do risco. Esse exercício é

reconhecido como um instrumento dinâmico e importante e que prepara,

continuamente, o motoboy para a sua profissão. A exploração positiva do risco não

tem fim. O motoboy aprende cada vez mais com o seu trabalho e explora a

positividade do risco não apenas no trânsito, mas também quando larga um salário

fixo para receber por remuneração, passando depois para mais uma ousadia, que é

iniciar seu próprio negócio.

Aliás, Veronese (2004) mostrou isso muito bem. Para ela, os motoboys não

conseguem dissociar o trabalho do risco. Por meio de um processo de

aprendizagem que se dá na profissão, os motoboys vão aprendendo sobre o

conjunto de riscos a que têm que enfrentar na profissão, indo do risco de acidentes

até o risco de assalto ou ficar desempregado. A partir da aprendizagem das

destrezas da exploração, o motoboy vai percebendo que os efeitos dos riscos de

ficar desempregado seriam maiores do que os custos dos riscos de acidentes, ou, o

que seria ainda mais apropriado, o motoboy percebe que possui mais condições

para lidar com os riscos de acidentes do que para lidar com o desemprego. Nutre-se,

pois, dos saberes disponibilizados a ele pelo coletivo e também pela própria

aprendizagem prática. Enfim, o trabalhador se arrisca para não correr o risco de ficar

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desempregado, sem dinheiro, sem melhores oportunidades que a própria profissão

poderá lhe dar. É por meio do risco que o trabalhador angaria mais recursos.

A exploração positiva do risco é, portanto, um instrumento que se manipula e

que se desenvolve individualmente, mas que está imersa em saberes coletivos. Há

um reconhecimento de sua importância, razão pela qual os motoboys não

desprezam os comportamentos de risco. Recomendam, porém, que haja treino. Daí

os novatos serem tão criticados: eles abusam dessa exploração. Não que não

devam se arriscar, mas os limites da aprendizagem devem ser respeitados, seja pela

observação do corpo, seja pela simples observação do que os outros ensinam.

Parece que o risco não é um problema em si para os motoboys. O problema talvez

estivesse na falta de solidificação desse (e de todos os outros) tipos de saberes em

um gênero profissional historicamente fundamentado e politicamente embasado. A

observação de processos distintos de sistemas coletivos de defesa parece sinalizar

bem esse processo. Por outro lado, a exploração positiva dos riscos pode estar

reforçando, em alguns aspectos, as dinâmicas dos sistemas defensivos, tornando as

situações de risco suportáveis e, contraditoriamente, de uma certa forma imutáveis.

Veremos porquê.

Modos de lidar com o risco: sistemas defensivos em torno do “olhar”

A despeito das limitações que temos em torno da percepção visual,

principalmente em uma situação em que há inúmeros estímulos cruzando o campo

da visão em velocidades tão variadas e portando um visor que reduz

consideravelmente a visibilidade externa, vimos que os motoboys esforçam-se para

desenvolver a capacidade de “olhar adiante” como a estratégia principal na proteção

de seus modos de pilotar. Como um deles certa vez nos disse: “Você tem que tem

que ter noção que alguma coisa pode acontecer ali na frente. Você tem que olhar

pro horizonte mesmo e não deixar de pensar nos detalhes ao seu redor. Sempre se

defendendo”. Esse “olhar adiante” envolve muito mais que uma boa atenção no

trânsito em que se encontra. A qualidade da segurança depende, principalmente, da

capacidade do motociclista antecipar as posições do trânsito em sua volta, tentando

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identificar, por meio dessa antecipação, em que localização ou qual o caminho será

o mais seguro para o motoboy utilizar ou ficar. Para antecipar o trânsito em sua

volta, vimos que os motoboys deverão utilizar todos os sinais identificáveis

possíveis. Não é incomum os ouvirmos dizendo que conseguem ver, pelo retrovisor

dos carros à sua frente, para onde o motorista do veículo está olhando e se, pelo

tipo de olhar, o motorista vai entrar ou não em seu caminho. Mesmo quando

questionados sobre a velocidade desse comportamento, que por ser rápido demais

pode permitir avaliações incorretas, os motoboys insistem na viabilidade do uso

desse tipo de estratégia que, segundo eles, se desenvolve pela força do hábito, o

que lhes permite utilizá-la com segurança. É interessante, também, que eles utilizam

outros “sinais” do trânsito, como uma pequena “girada” do pneu ou o

“comportamento” de um veículo um pouco mais à frente, que sinalizará, como numa

reação em cadeia, uma determinada alteração no “comportamento” do veículo

observado. É impressionante que essas percepções ocorrem de maneira muito veloz

e aparentemente de maneira relativamente eficaz. Uma aprendizagem que se dá por

um profundo engajamento do corpo no próprio processo de produção de uma forma

de pilotar, como vimos acima.

Porém, a despeito dessas impressionantes habilidades desenvolvidas, de

modo distinto ao discurso apresentado acima, um determinado motoboy nos

apresentou uma outra maneira de enfrentar os riscos do cotidiano, e que nos conduz

para outros pontos de reflexão também interessantes: “para você ter segurança no

trânsito, você tem que se fazer enxergar”. Dizia isso em relação ao princípio mais

fundamental que, segundo ele, lhe garante pilotar com segurança. Trata-se, pois, de

um procedimento que parte do princípio de que direção defensiva não é somente o

desenvolvimento de habilidades de percepção audiovisual no processo de condução

(habilidades essas, por sinal, muito importantes): uma boa direção defensiva deve

incluir um outro na história. Não contar unicamente consigo, ou melhor, não contar

apenas com aquilo que “sei ou sou”. Se eu pretendo garantir a “minha vida”, devo

garantir que os outros prestem atenção em “mim”!!!

A questão fundamental, tanto para um tipo de estratégia que o trabalhador

utiliza para proteger-se de acidentes quanto para o outro, é a questão do olhar.

Porém, se na primeira delas (que chamamos aqui provisoriamente de potência

antecipatória do olhar) o que está em jogo é a ação do próprio motoboy, na outra

(que denominamos também provisoriamente de defesa pelo olhar do outro), ocorre

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uma mudança de foco sobre a questão e de posicionamentos do sujeito: sai de cena

o olhar do motoboy sobre um futuro previsto e entra em cena um motoboy que deve

ser enxergado no aqui-e-agora. Com a certeza de que é enxergado por outros

motoristas, ele se sente mais à vontade para se lançar às “loucuras” no trânsito, pois

sabe que a sua segurança não será garantida unicamente por si. Diferente da

utilização da estratégia da potência antecipatória do olhar, por meio do qual o

trabalhador se coloca no trânsito e enfrenta os riscos “apostando” na sua

capacidade de “antecipar” o que se passa à sua volta e de se “proteger” diante

daquilo que consegue perceber, a estratégia por meio da defesa pelo olhar do outro

inclui como peça chave na capacidade de antecipação, a necessidade de tornar o

motoboy como uma “peça” a mais no tabuleiro do jogo de “antecipação” e de

proteção dos demais motoristas. A proteção dos riscos da atividade não é apenas

um exercício de si, mas também de outros que transitam nas mesmas vias que o

motoboy. Assim, visando ser olhado, o motoboy buzina, demora um pouco mais ao

lado do carro, fica um pouco mais à sua frente, foge do ponto cego dos retrovisores.

A questão da visibilidade é, de qualquer modo, um aspecto central para esses

trabalhadores. Podemos, aliá, encarar a questão da visibilidade dos motoboys a

partir de uma outra dimensão do trabalho, que é bastante diferente, embora não

menos importante: a solidariedade entre pares. Muito comumente escutamos relatos

sobre a “solidariedade” dos motoboys, que parecem se defender mutuamente diante

adversidades no trânsito ou em momentos em que esses se deparam com

desavenças com outros motoristas. Quando um motorista fecha um motoboy,

quando um deles se acidenta ou quando alguém tenta agredir um motoqueiro,

outros colegas de profissão vão se juntando em torno da vítima como se houvesse

um enxame de abelha para defender uma colméia ameaçada. Para nós, parece

existir, de fato, um certo cuidado dos profissionais para com colegas em situações

de perigo, que merecerão uma discussão um pouco mais cuidadosa no próximo

capítulo. Entre esse tipo de solidariedade, destaca-se aquela em que o coletivo se

lança num esforço para assistir aos que se acidentaram. Os motoboys relatam essa

solidariedade como uma das características positivas da categoria, pois sabem que,

em situações de dificuldades, poucos se dispõem a ajudar um motociclista

acidentado ou em situação de perigo. E essa solidariedade já é uma identificação

que as pessoas fazem da categoria. O caso acima relatado, em que um dos

estagiários da pesquisa presenciava um acidente de trabalho e todo o esforço

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empreendido para acudir o rapaz acidentado, tem o seguinte desfecho: uma senhora

se aproximou do estagiário e começou a dizer que se admirava com a união dos

motoboys. Dizia isso porque no local onde estavam – e que era próximo da casa

dessa senhora – sempre aconteciam acidentes envolvendo motociclistas e em todas

as situações apareciam vários motoboys para ver em que poderiam ajudar.

Em contrapartida, quando se aborda a questão do corporativismo dos

motoboys, em geral a mídia e o senso comum enfocam mais a dimensão da

violência e da intimidação que muitas vezes se desenrolam em torno dele. Várias

reportagens demonstram uma cerca “agressividade” entre os motoboys, quando

tentam se proteger. É como se para se fazer ver, os motoboys se esforçassem para

chamar a atenção dos outros por meio da força, do medo, da ameaça. Em uma

comunicação verbal realizada em Vitória durante o ano de 2006, o ex-Secretário

Nacional de Segurança Pública, Luis Eduardo Soares, dizia que a questão da

violência urbana estava diretamente atrelada à dimensão da visibilidade: o jovem

das comunidades mais pobres ingressam nos grupos de infratores (como grupos de

narcotraficantes), entre outras coisas, para se fazer visível à sociedade que teima

tampar os olhos à realidade em que vivem. Um recurso dramático para “roubar” uma

atenção que lhes é negada desde sempre. Profunda semelhança com o dito

comportamento “violento” dos motoboys parece não ser mera coincidência. Será que

essa tentativa de se fazer visível aos olhos das pessoas por meio de ameaça e terror

não é uma reação para mostrarem à sociedade em geral que estão vivos, que se

recusam a serem vistos somente como pessoas morrendo e que querem mostrar um

pouco de sua “potência”? Ou se trata, tal qual Dejours sugere (1992), de um modo

de encontrar uma saída, “representada pela emergência de atos de violência ‘anti-

social’, em geral desesperados e individuais” (p.35), diante da inexistência ou

inoperância de sistemas defensivos coletivos no enfrentamento de riscos reais?

Essa não é uma questão facilmente respondível. E não o pretendemos fazê-lo aqui.

Observamos, contudo, que se os trabalhadores reconhecem a solidariedade

dos colegas nas situações em que há algum tipo de perigo, não encontramos em

Vitória a mesma agressividade como a que se diz dos motoboys de São Paulo,

bastante evidenciada no filme de Caito Ortiz (MOTOBOY, 2003). Ademais, quanto à

mobilização dos trabalhadores de uma maneira mais organizada, em torno de

objetivos programáticos comuns de reivindicação social, a categoria também

reconhece que não consegue a mesma união. Ou seja, a visibilidade buscada é

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sempre condicionada às experiências de perigo e não a movimentos reivindicatórios.

Os poucos testemunhos de comportamentos mais organizados e coletivizados, tal

como as “motociatas” – que é como em Vitória se chama as passeatas de motoboys

–, foram sempre marcados por uma percepção de incapacidade de mobilização para

se fazerem escutar diante de um debate político mais amplo e mais vantajoso para o

grupo. Esses testemunhos vêm carreados de sensações de que a sociedade não os

reconhece em seu valor. Apenas os acidentes, os riscos, as ameaças, as situações

de exploração, de informalidade e de precariedade nas relações de trabalho a que

estão sujeitos parecem produzir algum tipo de repercussão na sociedade. Ou seja, a

“sociedade” desperta para a questão dos motoboys somente por meio de aspectos

negativos.

Ora, se lançarmos mão das idéias de Foucault (1987), que dizia que o poder

disciplinar, desenvolvido durante os séculos XVII a XX, caracteriza-se exatamente

por lançar ao centro do poder cada um de nós, talvez compreendamos que a

questão da visibilidade sobre os motoboys é menos “desinteressada” do que parece.

O poder disciplinar tenta, de uma maneira “visível e inverificável”, observar a vida de

cada um, buscando intervir no corpo de todos de uma maneira sempre

individualizada, permanente e incorpórea, tendo como fim o objetivo de aumentar as

forças produtivas da sociedade por meio de uma constante vigilância. Como efeito, o

poder desenvolve no próprio corpo, por meio de um diagrama que Foucault chama

de Panóptico, um mecanismo de autovigilância que tende a se tornar perene:

quem está submetido a um campo de visibilidade, e sabe disso, retoma por sua conta as limitações do poder; fá-las funcionar espontaneamente sobre si mesmo; inscreve em si a relação de poder na qual ele desempenha simultaneamente os dois papéis. Torna-se o princípio de sua própria sujeição. Em conseqüência disso mesmo, o poder externo (...) tende ao incorpóreo; e quanto mais se aproxima desse limite, mais esses efeitos são constantes, profundos, adquiridos em caráter definitivo e continuamente recomeçados (FOUCAULT, 1987, p. 168).

O comportamento dos motoboys está, nesse sentido, muito mais visível sob

os “olhares” do “poder” do que se possa imaginar. E de uma maneira mais positiva,

constitutiva. De fato, mesmo que levemos em conta as transformações atuais por

que passa a sociedade contemporânea – já anunciada acima, acerca da mudança

da sociedade disciplinar para a sociedade de controle (DELEUZE, 1992) –, toda uma

intrincada rede de informações e mecanismos de controle vão sendo desenvolvidos

para acompanhar as trajetórias do desenvolvimento desses profissionais. Em

primeiro lugar, os guardas e agentes de trânsito começam a reconhecer, entre os

transeuntes, aquele novo personagem. Logo após, os sistemas de tributação vão

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criando classificações que permitam recolher tributos dessa nova atividade. Mais

recentemente, um conjunto de regulamentações e normatizações vêm sendo

propostos e aplicados em vários municípios do país, visando organizar a circulação

e o setor econômico de moto-frete. Nesse sentido, é tão intensa a visibilidade da

categoria que os próprios motoboys não conseguem organizar-se de uma maneira

que permita construir um sentido “mais comum” sobre a categoria. Até porque, como

a ação desses mecanismos de controle é individualizada e como os próprios

profissionais não possuem uma história coletiva de mobilização, individual ou

coletivamente101, se torna muito difícil construir entre eles um movimento coletivo

sustentável. Os motoboys até se mobilizam de vez em quando, sobretudo quando

existe algum tipo de pressão financeira sobre algum tipo de tributo que eles pagam.

Foi assim com a mobilização dos motoboys no início de 2006 em Vitória e no início

de 2008 em São Paulo: o foco dos protestos era o aumento do seguro DPVAT. O

conjunto de trabalhadores se rebela contra aquilo que lhes atinge individualmente.

Porém, quando se pensa em dimensões mais coletivas, como a luta por melhores

condições de trabalho ou de segurança, as mobilizações existentes são menos

expressivas. Diante do limite da intervenção de uma mobilização comum, cada um

“se vira” como pode, mesmo que consideremos que cada um aprende a “se virar” a

partir de um conjunto de saberes coletivamente desenvolvidos.

É interessante observar, também, que esses sistemas de vigilância em torno

dos trabalhadores se preocupam mais com a utilidade financeira e normativa do

motoboy no município, deixando-se de lado outras condições importantes, tais como

a dimensão da saúde e da qualidade de vida no trabalho. Mas talvez seja

exatamente por essa contínua vigilância que os motoboys começam a hipertrofiar o

valor da dimensão do olhar como estratégia de defesa, sobretudo entre aqueles que

contam com a potência antecipatória do olhar. Isso porque, se os mecanismos de

vigilância do poder são desenvolvidos a tal ponto que se viabilizam através da

assunção, pelas próprias pessoas, de mecanismos de autovigilância e autocontrole,

talvez pudéssemos aventar a idéia de que como conseqüência inesperada dessa

autovigilância, emerja entre os motoboys a idéia de uma supervalorização da

potência do seu olhar: “olhar adiante” ou “estar atento ao que está à sua frente” se

101 Vimos como os motoboys ingressam na carreira em geral com pouca idade. Dessa forma, a chance deles terem participado de alguma profissão em que há uma tradição de mobilização social é pequena. Além disso, a própria categoria possui pouca história de mobilização.

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tornam elementos quase que suficientes para garantir a sua segurança no trânsito.

Ou, o uso contínuo de um discurso que valoriza sobremaneira a atenção no que se

passa, na capacidade adequada de antecipar o movimento do trânsito adiante, na

minuciosa utilização do olhar, tudo isso parece apontar para uma idéia de que basta

a própria vigilância sobre a situação para que se garanta a proteção aos acidentes.

Isso porque se trata do desenvolvimento de um mecanismo que coloca sobre o

próprio indivíduo a responsabilidade sobre suas ações. Aliás, as propagandas

educativas sobre o trânsito recorrem constantemente a essa dimensão do

autocontrole, da prudência e da responsabilidade. Assim, uma autovigilância sobre o

próprio comportamento permitiria ao motoboy desenvolver saberes que valorizarão,

de maneira significativa, essa capacidade de “vigiar”, de “estar atento”, de “olhar

adiante”. E como vimos, parece que é exatamente isso o que acontece entre esses

profissionais.

Porém, em que medida esse tipo de discurso da potência antecipatória do

olhar não é relativamente “perigoso” para a própria categoria, uma vez que o cálculo

de antecipação requer lidar com variáveis nem sempre conhecidas? Em que medida

o uso da defesa pelo olhar do outro não seria uma estratégia melhor? Ainda não o

sabemos. Independente disso, a nós parece que a idéia da potência antecipatória do

olhar está diretamente relacionada à tentativa dos trabalhadores de se fazer

reconhecer na imagem de um corporativismo relativamente “ameaçador”. O que os

une em um mesmo sistema discursivo é um outro conjunto discursivo que é bastante

comum entre os motoboys e que parece compor com eles um verdadeiro sistema

coletivo de defesa: uma espécie de discurso da adrenalina102 e da virilidade, que

tem na valorização de si e de sua potência um dos eixos centrais. Ora, fazer-se

reconhecido socialmente pelo medo que produz nas outras pessoas parece reforçar

exatamente esse senso de que o motoboy é “invencível”, que é alguém que mantém

as “rédeas” da própria vida e que tem a coragem, o “poder” e a “habilidade” de

seguir adiante em qualquer situação. Esse discurso da virilidade, sustentada por

uma autovigilância requerida e treinada desde os primórdios da infância, e

compartilhada entre os pares, se traduz em comportamentos também viris de

hostilidade e de defesa de um corporativismo que é capaz de enfrentar qualquer

realidade. A ele se atrela um discurso que valoriza as sensações e afetos gerados

102 O discurso da adrenalina é como em geral se define a aventura mobilizada por comportamentos arriscados no trabalho. Encontramos discursos semelhantes em policiais militares. Ver Moreira et. alli. (2000).

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pelo comportamento de pilotagem em meio ao risco de acidentes. O discurso da

adrenalina remete a um misto de afetos diferentes que são disparados tanto pelas

condições de pilotagem no trânsito quanto pelas pressões temporais exercida pelas

demandas da tarefa. Entre sustos levados quando sofrem uma fechada, pressões

intermináveis para se acelerar a motocicleta mesmo em vias muito movimentadas, e

a necessidade de se cumprir uma tarefa em tempo quase imediato, enfim, o

motoboy alega que é por meio da adrenalina que ele enfrenta situações bastante

perigosas, contra as quais possui ferramentas (algumas das quais já descrevemos

neste e no capítulo anterior) que são, em geral, incapazes de fornecer a total

garantia de proteção ao trabalhador, porém das quais deve se apropriar e por em

prática para conseguir conduzir sua moto e resolver as tarefas de maneira mais

eficaz e segura possível. O discurso da adrenalina sugere que esse afeto se torna

quase que um pano de fundo da atividade dos motoboys com o qual o trabalhador

deve aprender a lidar e, o que é mais importante, deve aprender a se afeiçoar para

produzir, por meio dele, um sentido muito profundo de identificação e de auto-

reconhecimento das suas práticas profissionais103. Esse processo de

reconhecimento e identificação com a profissão disparada por meio do discurso da

adrenalina se sustenta na avaliação que o motoboy tem de sua capacidade de

superar as dificuldades por meio da mobilização de recursos pessoais em situações

onde, às vezes, a própria vida está em jogo. E mesmo que não haja reconhecimento

de chefias sobre essas micro-conquistas – embora em muitos casos os patrões

valorizem os trabalhadores que são resolutivos e que fazem os serviços com

agilidade – o que importa é o trabalhador perceber-se como capaz. Eis aí uma das

funções psicológicas da atividade sendo colocadas em exercício. Principalmente se

considerarmos que parte das condições para o exercício dessa atividade nutre-se de

um pré-trabalhado coletivo, o qual abordaremos mais adiante. Trata-se, de qualquer

103 As discussões que Spink (2001) provoca em torno da experiência risco na contemporaneidade, em que o risco-aventura se elege como um eixo de identificação para jovens e adultos, principalmente por meio de esportes radicais (onde o prazer está diretamente atrelado ao grau de risco que se enfrenta) se aproxima em grande parte dessa experiência dos motoboys. O que se distingue entre os motoboys e as práticas de risco identificadas por Spink é a condição de produção do cenário em que essa prática de risco se produz: os motoboys devem aprender a lidar com o risco real, onde sua vida está em jogo, seja porque podem realmente se acidentar durante o trânsito, seja porque devem trabalhar nessa profissão para garantir sua sobrevivência; já as práticas de esporte radical, por exemplo, são cenários de experimentação do risco atrelados ao prazer e que são vivenciados por pessoas que possuem alguma condição financeira e que podem escolher a vivenciar essas condições ou não. Além disso, nas práticas de esporte radical, em que pese o perigo que se enfrenta, há todo um controle das condições de segurança que reduzem o risco real de acidente a números próximo de zero. De qualquer modo, é por meio de uma mesma valorização da adrenalina que se sustentam, ou se justificam, essas experiências de risco.

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forma, de um discurso que produz um efeito extremamente poderoso entre os

trabalhadores. Essa fala abaixo traduz muito bem o significado desse discurso da

adrenalina:

Cara, tem momentos que o coração bate forte, hein. Adrenalina... Adrenalina...Eu acho que uma das coisas que me faz gostar de ser motoboy é isso, essa sensação. Essa substância, entende. Que o nosso corpo libera. Isso é bom pra caramba, cara. Nossa, é muito bom. Por exemplo, você está com pressa, você tem que estar tudo cronometrado, você tem que atingir aquela meta ali e seu coração ali pulsando e você acreditando, quando você, é..., alcança, cara. Po, que satisfação. Eu que não fumo sinto vontade de acender um cigarro [...] Você se sente um pouco mais, entende... É bom

Ou seja, os discursos da adrenalina e da virilidade permitem criar condições

subjetivas entre os trabalhadores para que eles consigam enfrentar as situações

extremas colocadas pelas tarefas, o que nos remete a Dejours. Este autor irá dizer

em determinado momento (1999) que a estratégia de enfrentamento que lança mão

da virilidade como atitude principal não é senão uma estratégia coletiva de defesa,

baseada no cinismo viril e que tem como cerne a questão do medo:

A análise de todas essas situações de trabalho em que a virilidade está a serviço de estratégias coletivas de defesa mostra que invariavelmente a virilidade é solicitada quando o medo está no cerne da relação vivenciada com as pressões do trabalho: medo de acidente, medo de não saber lidar com problemas e dificuldades, medo do fracasso, medo da exclusão e da solidão, medo da perseguição e da violência, etc. (DEJOURS, 1999, p. 131).

É importante observar, além disso, que o discurso da virilidade, da coragem,

não está descolado de um discurso de vitimização que os trabalhadores lançam mão

constantemente e que Oliveira (2003) explorou intensamente. Isso, porém, parece

não ser um contra-senso, uma vez que o reconhecimento das condições de penúria

e sofrimento torna ainda mais valorizado a “força” e a “capacidade” que esses

trabalhadores possuem para enfrentar esse trabalho “tão” perigoso: “há muita oferta

de emprego para motoboy porque as pessoas não têm coragem de trabalhar como

motoboys” é o que nos disse certa vez um trabalhador. E essa relação entre

vitimização e virilidade parece ser um efeito colateral de um tipo de reportagem que

dá demasiado destaque às dificuldades que os motoboys enfrentam no trânsito.

Como se, por meio de uma profecia auto-realizadora, esse tipo de reportagem

anunciasse aquilo que ela própria ajuda a produzir. De um lado, um conjunto de

profissionais discursando sobre a inevitabilidade da pressão do trabalho, como se

fossem “vítimas” de demandas e exigências muito complicadas. De outro, uma

afirmação de potência, força e autonomia, como se diante das adversidades, os

trabalhadores se tornassem mais resistentes e importantes, realizando “com

segurança” comportamentos arriscados e perigosos.

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Esse tipo de estratégia visa alterar a percepção que o coletivo de trabalho tem

sobre as condições de risco e não sobre o risco em si. Daí, então, que por mais

arriscado seja a compreensão da realidade perigosa, o desenvolvimento de atitudes

masculinas viris dará ao profissional a percepção de que possui as condições para

que possa transitar por entre as vias de maneira a garantir para si a segurança.

Porém, como o próprio Dejours salienta, os sistemas coletivos de defesa tendem a,

paradoxalmente, proteger o trabalhador de um sofrimento psíquico no trabalho, sem

alterar as condições de trabalho a que estão submetidos. Ou, em outras palavras,

incrementando o próprio risco, desafiando-o, fazendo chacota dele, o trabalhador se

expõe às condições perigosas sem precisar temer ou sofrer.

Dejours irá dizer, desde o início de seus estudos em Psicopatologia do

Trabalho (1992), que os sistemas defensivos são recursos mobilizados pelos

trabalhadores para superarem o sofrimento no trabalho. Com o desenvolvimento da

Psicodinâmica do Trabalho (2004a), Dejours redimensiona o papel do sofrimento,

tornando-o uma relação primordial no trabalho, por meio do qual o corpo faz a

experiência do mundo e de si mesmo (2004b). Isso porque o trabalhador se depara,

continuamente, com os limites de suas técnicas e conhecimentos para realizar suas

atividades, às quais o mundo resiste inevitavelmente. É, pois, por meio dessa

resistência que o trabalhador é convidado a prosseguir no trabalho de investigação e

descoberta, entretanto, sempre apreendido sob a forma de experiência vivida

(DEJOURS, 2002). O real do trabalho para Dejours, de uma maneira um pouco

distinta de Clot (2006), remete-nos ao campo de um inevitável sofrimento do qual o

trabalhador, por meio de seu corpo, (e tudo o que nele se compreende como afeto,

sentimento, sensação, percepção, inteligência astuciosa e tácita) e de sua

subjetividade, deve reagir

na busca de meios para agir sobre o mundo, visando transformar este sofrimento e encontrar a via que permita superar a resistência do real. Assim, o sofrimento é, ao mesmo tempo, impressão subjetiva do mundo e origem do movimento de conquista do mundo. O sofrimento, enquanto afetividade absoluta, é a origem desta inteligência que parte em busca do mundo para se colocar à prova, se transformar e se engrandecer (DEJOURS, 2004d, p.28-9).

Entre os meios de busca de superação do real e do sofrimento, encontram-se

os saberes de prudência e os sistemas coletivos de defesa. Estes últimos são mais

comumente denominados de estratégias coletivas de defesa, termo do qual o uso

generalizado pode conduzir a incompreensões, uma vez que Dejours e

colaboradores identificaram e vem tentando diferenciar entre os tipos estratégicos e

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ideológicos de defesas coletivas (ATHAYDE, 2008)104. Para Athayde, a

compreensão de que os sistemas defensivos de tipo ideológico seriam uma

radicalização dos sistemas defensivos de tipo estratégico se trata de uma

simplificação que não expressa adequadamente os processos produtores de um ou

outro tipo de sistema defensivo. Para ele, esse tipo de análise se sustenta no fato de

que, uma vez que ambos os tipos de sistema defensivo orientam o curso do

pensamento, criando obstáculos para a emergência de espaços de debates e

deliberações coletivas sobre o trabalho e ocultando uma parte substancial da

realidade que não é posta em debate, a radicalização do tipo defensivo ideológico

tornaria a relação com o real tão distanciada ou distorcida que os trabalhadores já

não saberiam mais como transformar a Organização do Trabalho para trabalhar

melhor e com menos dor. Entretanto, Athayde sugere uma definição mais

apropriada: para ele, a forma ideologizada da defesa coletiva deixa de ter como alvo

a luta contra a via do sofrimento em direção ao adoecimento ou ao acidente. Nos

sistemas defensivos de tipo ideológico, desaparecem quaisquer espaços de

deliberação coletiva ou, o que parece ser mais grave: qualquer movimento que

sinaliza a presença de um sofrimento é alvo de chacota, acusação, violência e

exclusão por parte do coletivo. Assim, ao invés de deliberação, emerge a violência.

Athayde vai ainda mais longe: recorrendo a Dejours, quando este tenta diferenciar

qualitativamente os sistemas defensivos de tipo estratégico e ideológico por meio de

um exemplo de greve, Athayde sugere que quando um determinado sistema

defensivo de tipo ideológico está em exercício, e dado a distância que esse tipo de

sistema toma em relação ao real da atividade, os trabalhadores não conseguem

propor qualquer alteração nas dinâmicas da atividade e na organização do trabalho

para torná-las mais salutares ou eficazes, mesmo que algum tipo de mobilização

coletiva venha decorrer diretamente desse sistema defensivo. No caso de existência

de um sistema defensivo de tipo estratégico, esse espaço de deliberação coletiva é

ainda relativamente respeitado e o afastamento para com o real não impede a

emergência de soluções coletivas em torno das transformações necessárias para

tornar o meio de trabalho mais salutar. Trata-se, portanto, de uma diferença de

intensidade dos sistemas defensivos, mas também de uma diferença de postura

frente as situações de trabalho. As defesas de tipo ideológico sugerem a total

104 Notas de orientação com Milton Athayde, UERJ, 2008.

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incapacidade coletiva para transformas as condições dadas dos meios de trabalho, o

que parece não acontecer no caso das defesas estratégicas.

Athayde nos lembra, contudo, que do ponto de vista do trabalhador, o uso de

um sistema defensivo ideológico não deixa de ser um instrumento “estratégico”, uma

vez que o permite a realizar as suas atividades, suportando os sofrimentos

disparados nas condições de trabalho que lhes são fornecidas. Daí o cuidado em

não se valorizar por demais um ou outro tipo de sistema defensivo, pois qualquer um

dos dois sugere uma tentativa dos trabalhadores em lidar com as condições dadas

do meio de trabalho, mesmo que através das transformações das percepções em

torno dos meios de trabalho, no lugar do enfrentamento coletivo em direção ao

desmantelamento das condições produtoras dos riscos de acidente ou adoecimento.

O que se deve produzir são transformações dos sistemas ideológicos em direção às

defesas estratégicas, resgatando os espaços de deliberação e análise coletiva sobre

o trabalho e a atividade. Somente assim, os trabalhadores poderão sugerir ou

mesmo transformar as condições de trabalho, transformando paulatinamente a

maneira como os trabalhadores se organizam coletivamente.

Partindo da idéia da existência de, pelo menos, dois tipos de sistemas

coletivos de defesa, logo somos levados a “encaixar” os dois tipos de estratégias de

enfrentamento dos riscos por nós identificados (a potência antecipatória do olhar e a

defesa pelo olhar do outro) nesse modelo de sistemas defensivos de tipo ideológico

e estratégico. Antes de assim proceder, entretanto, é fundamental observar que por

não utilizarmos os preceitos metodológicos da Psicodinâmica do Trabalho expostos

em vários locais por Dejours (2004a, 2004b), nossas análises sobre os sistemas

defensivos só poderão apontar para algumas pistas sobre os meios que os

trabalhadores utilizam para o enfrentamento das condições de risco em suas

atividades. Ficará para uma outra oportunidade a investigação detalhada acerca da

existência ou não desses sistemas defensivos em exercício na atividade dos

motoboys.

Sem muito esforço, podemos aventar a idéia de que um duplo sistema

defensivo esteja sendo utilizado pelos trabalhadores, ambos baseados nas

oscilações entre os discursos da adrenalina e da virilidade, por um lado, e a

dimensão da cautela, por outro (pólos esses representados pelos discursos da

potência antecipatória do olhar e da defesa pelo olhar do outro). Somos

imediatamente levados a identificar o primeiro tipo de discurso com os sistemas

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defensivos ideológicos, enquanto nos parece mais crível imaginar o segundo tipo de

discurso mais próximo das defesas de tipo estratégico. Entretanto, algumas

considerações talvez não nos permitam proceder de maneira tão imediata assim. É

verdade que ambos discursos parecem ser em parte eficazes para os trabalhadores,

na medida em que tornam suportável a convivência com o risco. Vimos com Diniz

(2003), porém, que além desse conjunto de estratégias, existe outro conjunto que

tem na segurança seu principal pilar:

alguns incrementam o risco de acidentes, despertando na sociedade uma percepção estigmatizante, distante do reconhecimento do esforço implementado a fim de garantir que o serviço seja feito no tempo solicitado; outros, ao contrário dos primeiros, garantem para si maior segurança, contribuindo para a redução dos riscos de acidentes (DINIZ, 2003, p. 30)

Esse segundo conjunto de estratégias identificadas por Diniz parte do

princípio de que o trabalho dos motoboys é, realmente, perigoso e que o incremento

dos comportamentos de risco, longe de ser uma demonstração de coragem e

virilidade, é antes uma atitude desprovida de necessidade. Não se trataria tanto aqui

de um sistema defensivo, mas um conjunto de saberes de prudência que tendem a

ser utilizados para reduzir as condições acidentogênicas dos trabalhadores: por meio

dos saberes partilhados coletivamente, resiste-se às condições impostas pela

organização do trabalho e da atividade. Por meio do que Diniz identifica, e que aqui

nós reforçamos, podemos alegar que os saberes partilhados entre os trabalhadores

lhes permitem afastar, ao menos em parte, dos riscos da atividade. Não é apenas

uma mudança de percepção, como no caso dos sistemas defensivos, mas também

uma mudança relativa das condições em que se trabalha.

Porém, os motoboys reconhecem os limites dos saberes partilhados. O

simples fato de estar nas ruas é, por si, condição de risco: isso a experiência

também os ensinou, tanto por meio de acidentes vivenciados, quanto por acidentes

presenciados. Nesse sentido, os saberes de prudência não parecem ser suficientes

para que se consiga enfrentar o trânsito com a segurança necessária ou desejada,

razão pela qual é bastante plausível a existência de sistemas defensivos entre os

motoboys. A aposta na potência antecipatória do olhar é, sem dúvida, o discurso

mais comum entre os trabalhadores em Vitória, o que nos permite suspeitar de que

se trata efetivamente de um sistema defensivo em atividade. Além disso, pelo fato

de que os trabalhadores não discursam abertamente sobre os riscos, como vimos

acima, nos parece que a negação da realidade em curso sugere que realmente se

trata de um sistema defensivo de tipo ideológico. Um outro aspecto reforça essa

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idéia: em uma das atividades por nós desenvolvidas – e que debateremos um pouco

mais profundamente no capítulo 6 –, apesar de reclamarem enormemente do

sindicato e da natureza de suas reivindicações, os trabalhadores simplesmente não

conseguiam pensar de maneira mais propositiva para as transformações sobre o

trabalho. As sugestões dadas pelos trabalhadores para modificações na realidade

do trabalho, em ocasiões em que um verdadeiro debate coletivo se tornara possível,

não foram em modo algum diferente das já amplamente anunciadas na mídia (pista

exclusiva para moto, educação no trânsito, mais fiscalização, etc.). Não é exagero

que os trabalhadores parecem não saber exatamente como mudar as condições de

trabalho. Por outro lado, não tivemos oportunidade de identificar, em nenhum

momento, ações de exclusão ou de violência, de qualquer ordem, contra

trabalhadores ou situações que denunciavam o sofrimento subjacente ao trabalho

dos motoboys. Mesmo assim, o discurso da potência antecipatória do olhar nos

parece uma verdadeira ideologia defensiva.

Já em relação à estratégia de defesa pelo olhar do outro ainda não temos

elementos para deduzir se se trata de um sistema defensivo ou de saberes de

prudência. De fato, um discurso em torno desse tipo de estratégia operatória, o qual

ouvimos em pouquíssimas ocasiões, parece apontar para um cenário onde a

pilotagem é realizada com um pouco mais de segurança, uma vez que o torna visível

para os outros motoristas, reduzindo a chance de que acidentes ocorram em função

da velocidade em que os motociclistas cruzam os carros, sem que estes os vejam.

Todavia, mesmo utilizando essa estratégia, os acidentes continuam como um

acontecimento possível. Nesse sentido, o uso da estratégia da defesa pelo olhar do

outro parece fornecer, tanto quanto a potência antecipatória do olhar, um meio de se

superar o sofrimento diante dos riscos. Além disso, o uso da defesa pelo olhar do

outro não exclui, necessariamente, certa valorização da virilidade. Os trabalhadores

que alegavam esforços para aumentar a segurança no trânsito não deixavam de

valorizar suas capacidades de enfrentar os contraintes da atividade. Porém, esse

tipo de estratégia parece incluir como condição inevitável da pilotagem a

incapacidade do trabalhador dar conta, somente por meios próprios, de sua

segurança. Nesse sentido, os acidentes não seriam apenas causados por

“intenções” perniciosas dos outros motoristas querendo “sacanear” os motoboys,

mas fruto de um conjunto de elementos dentre os quais a pilotagem dos motoboys é

parte essencial. Um dos motoboys que alegava utilizar esse tipo de estratégia disse

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que deixara de pilotar de modo extremamente agressivo, pois percebera que esse

modo era um ingrediente a mais nos riscos da condução. Ou seja, esse tipo de

estratégia parece alterar, em alguma medida, as condições de trabalho, porém

fornece ao mesmo tempo um suporte discursivo e valorativo que permite o

trabalhador enfrentar as situações de risco sem precisar ficar pensando nele

constantemente. Trata-se, pois, de uma estratégia que oscila entre saber de

prudência e sistema defensivo. Há que se verificar em estudos posteriores a melhor

definição desse tipo de saber movimentado por parte dos trabalhadores.

Independente de como possamos classificar esse tipo de estratégia

operatória, o que importa é dar relevância, conforme Diniz sugeria, para pelo menos

dois nítidos estilos de condução que parecem coexistir entre os motoboys: uns

incrementam mais os riscos, enquanto outros parecem se esforçar mais para a

garantia da segurança. O que discordamos de Diniz é que os saberes acima

identificados para facilitar a execução das tarefas não são utilizados apenas pelos

trabalhadores que escolhem estilos de condução mais focado na segurança. O que

parece determinar o estilo de pilotagem é mais a crença na capacidade que o

trabalhador tem de garantir sua própria segurança: aqueles que parecem valorizar

por demais a potência antecipatória do olhar aparentam mais aguerridos em modos

de condução que implementam os riscos, enquanto os que utilizam da defesa pelo

olhar do outro parece incorporar os limites dessa capacidade como condição

inevitável da pilotagem. Isso são apenas algumas suposições a se confirmar em

pesquisas futuras. De qualquer modo, para nós é certo que os motoboys em Vitória

demonstram muito bem essa duplicidade de estilos.

É interessante também observar que, mesmo que cada um possua seu estilo

de trabalho – que se nutre aparentemente de um mesmo gênero coletivo do trabalho

(CLOT, 2006), já que no trânsito, as estratégias e os modos operatórios

implementados pelos motoboys são diferenciados, mas os saberes estão disponíveis

a qualquer um – cada um desses estilos não deixa de ser reconhecido como viável e

legitimado pelos pares, sendo passível de utilização por quem por ele se interessar.

Porém, nem tanto uma convivência harmônica, em que a liberdade individual impera

como absoluto respeito à alteridade. Parece que no caso dos motoboys, trata-se de

uma tolerância relativamente conflituosa: às vezes há uma pressão de parte da

categoria para que se reduza a utilização de comportamentos exacerbadamente de

riscos, pois isto tende a denegrir a imagem da categoria como um todo. Por outro

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lado, o discurso da satisfação no trabalho parece estar mais freqüentemente

atrelado aos discursos de comportamentos de risco, pois a “sensação” provocada

pela “adrenalina” no corpo produz uma satisfação no modo operatório de conduzir

que não é ignorado pelos motoboys, mesmo por aqueles que não utilizam desse

estilo de pilotagem. É nesse ambiente ambíguo que as duas, para não dizer mais,

estratégias operatórias (ou, quiçá, sistemas coletivos de defesa contra os perigos

enfrentados na profissão) vão se constituindo. Ainda está para se definir se, com o

passar do tempo, essas estratégias se manterão, ambas, ativas junto à categoria.

Por hora, podemos afirmar que sim, uma vez que há um contínuo ingresso de

pessoas ainda muito novas na profissão, muitas vezes contrapondo em discurso e

em comportamento o grupo de profissionais que vem permanecendo na profissão

por anos a fio. Até porque o uso dos discursos que valorizam sobremaneira a

potência antecipatória do olhar não é exclusivo dos mais novos, mas é mais comum

ser encontrado entre eles.

Independente desse conflito, verificamos que os sistemas defesivos e os

saberes de prudência utilizados pela categoria se desenvolvem por meio de práticas

aprendidas e compartilhadas ao longo do tempo e acabam sendo parcialmente

incorporadas pelos novatos, independente de suas vontades. Nesse sentido, a

solidariedade e o sentimento de comunidade é algo que merece um importante

crédito para a construção desse substrato genérico subjacente ao exercício da

atividade de cada profissional. E parte desse sentimento de solidariedade indica um

esforço dos trabalhadores de investirem subjetivamente na profissão de uma

maneira tal que é muito superior à simples tentativa de sobreviver. Os trabalhadores

aprendem, apesar de todas as dificuldades, a gostar do trabalho. Assim, alertar para

esses dois estilos de condução/estratégias/sistemas defensivos não nos permite

dizer, de antemão, que uma situação é mais correta ou mais desejável que a outra –

embora possamos aventar a idéia de que seus efeitos venham a ser diferentes na

história pessoal e coletiva dos motoboys. Como dito, ambas são legitimadas pela

própria categoria. O que importa argumentar aqui é que se há diferenças de estilos

na construção de estratégias de enfrentamento às situações de perigo, é por meio

de um grande conjunto de esforços e também de solidariedade que se busca

constituir os meios de se proteger das condições a que os motoboys estão sujeitos.

Indo um pouco além, Clot argumenta que “os conflitos entre variantes que se

afrontam são, aliás, freqüentemente o melhor sinal que se procura estabilizar um

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gênero” (2000, p. 277, tradução livre). Ou seja, o fato de que podemos observar

alguns discursos, mais ou menos consolidados entre os trabalhadores, pode estar

nos sinalizando para uma tentativa bastante importante de consolidar um gênero

profissional entre os motoboys. As vantagens desse gênero certamente se farão

sentir pela categoria como um todo.

Assim, chamamos a atenção para o fato de que um foco demasiado no

acidente, na violência, embora importante, pode apontar apenas uma dimensão

negativa da realidade, que tende a reduzir a capacidade de intervenção e de

transformação das condições reais de trabalho desses profissionais – isso se, na

melhor das hipóteses, não se tornar uma tentativa de impor transformações de

maneira violenta, moralista ou desvinculada com o real. Vimos logo acima que há

toda uma exploração positiva dos riscos sendo empreendida pelos trabalhadores,

exploração essa que produz alteração na própria experiência subjetiva do

trabalhador, pois se mobiliza o corpo, em toda a sua profundidade, na busca de

construção de meios de apreensão dessa realidade de trabalho – aquilo que Dejours

denomina de ‘atividade subjetivante’ (2002, 2004d). Não temos condição, por hora,

de compreender exatamente o papel da exploração positiva dos riscos na

construção dos sistemas defensivos e dos saberes de prudência que auxiliam os

trabalhadores a enfrentar e suplantar os riscos do trabalho. Sabemos que essa

exploração positiva dos riscos é um instrumento fundamental de aprendizagem da

condução, porém, não podemos argumentar com a mesma certeza se essa

exploração é possível com ou sem a existência de sistemas defensivos, tais como os

discursos de adrenalina e virilidade. A nós, parece que esses processos estão

intimamente relacionados; por outro lado, não podemos deixar de inferir que parte

da recusa sobre a idéia de risco não se trata somente de um sinal de um tipo

ideológico defensivo presente, mas simplesmente a idéia de que os riscos não são

dimensões a serem confrontadas, mas exploradas, conhecidas, domesticas,

domadas. E não tanto para uma domesticação dos sentimentos que os riscos

disparam; vimos em inúmeras ocasiões que os motoboys não ignoram os

sentimentos provocados pelos sustos e os medos que passam em cima das motos.

A “domesticação” dos riscos parece remeter, realmente, à necessidade de se

produzir saberes que permitam controlar a moto em situações em que os riscos são

maiores. Nesse sentido que a exploração positiva dos riscos é um exercício que

além de não negar o risco, torna-o como fenômeno fundamental para a própria

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qualidade da resolução das tarefas. O que importa, a despeito disso, é observar que

inúmeros processos estão em exercício entre os trabalhadores para tornar essa

“simples” e “perigosa” profissão, em uma atividade que se espalha cada vez mais

pelas cidades brasileiras e que vai se tornando cada vez mais parte de nosso

cotidiano.

Além disso, a análise da atividade do motoboy vem nos revelando que uma

compreensão equivocada sobre esses trabalhadores pode deixar de revelar

aspectos importantes que esses profissionais muito têm a nos ensinar: como viver

sob risco e conseguir “gostar do trabalho”, ser solidário, ser feliz? Em que dimensão

será possível discutir o trabalho dos motoboys sem dar muita importância ao próprio

trânsito é algo praticamente impensável entre nós. Porém, talvez tenhamos que nos

desapegar um pouco do fato de que “o motoboy vive em cima da moto” para

compreender que “enfrentar o trânsito” é apenas parte do trabalho. Quiçá nem a

principal. Lições como essas só poderão ser compreendidas se nos aproximarmos

da atividade em si, e não da imagem que dela fazemos.

Outras conclusões

Vimos no capítulo anterior como os profissionais desse setor desenvolvem

saberes sobre a atividade de modo a tornar possível a realização das tarefas diante

das inúmeras contraintes do trabalho. Nesse capítulo, tentamos demonstrar como a

dimensão do coletivo influi de maneira não tão direta na definição dos modos de

pilotagem, mas que, por outro lado, compõe um suporte sócio-cultural, subjetivo e

instrumental para recepcionar e acolher os enfrentamentos com os quais os

motoboys lidam cotidianamente no trânsito. Demonstramos ainda como a dinâmica

da aprendizagem da pilotagem envolve uma apropriação pelas dinâmicas de risco,

sobretudo pela incorporação da idéia de que o risco é um fator crucial com o qual o

trabalhador terá que lidar em sua profissão. Verificamos, a partir disso, as

oportunidades que essa exploração positiva dos riscos permitem ao trabalhador.

Mostramos, em contrapartida, que parte dessa apropriação coletiva dos riscos

se sustenta em saberes de prudência ou sistemas defensivas que se, por um lado,

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protegem o trabalhador do sofrimento no trabalho, por outro, tendem a limitar os

recursos coletivos em torno dos fenômenos estruturantes da profissão. Nesse

sentido, um debate mais politizado poderia fortalecer a composição de uma outra

coletividade do trabalho, em que os repertórios de saberes de prudência exercessem

um papel mais valioso para a definição dos critérios de ingresso e manutenção na

atividade.

Veremos no capítulo seguinte que atualmente existe sim uma dinâmica de

constituição de algo em direção ao gênero atividade da profissional. Todavia,

mostraremos que o coletivo de trabalho dos motoboys, embora complexo e rico, é

frágil e carece de investimentos. Demonstraremos, enfim, que um esforço maior

nessa empreitada poderia produzir efeitos ainda mais interessantes para a qualidade

de vida e a segurança desses profissionais.

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6. ENTRE O DRAMA E O PRAZER DE SER MOTOBOY: UM GÊNERO EM CONSTRUÇÃO

Ao se buscar compreender o sentido do trabalho à luz de quem o vive

cotidianamente, percebemos uma riqueza e uma complexidade de experiências que

não deveriam deixar de ser enfocadas, com o risco de não compreendermos

adequadamente o fenômeno. Entre essas questões, nos chamaram a atenção os

motivos que levam pessoas a ingressarem em uma profissão sabidamente perigosa,

sem recursos financeiros vultosos em jogo e aparentemente com chances de

ascensão profissional bastante limitadas. Mais ainda: chama-nos a atenção o fato de

que esses profissionais não apenas entram nessa profissão, mas também ficam nela

por anos a fio, mesmo após sofrerem acidentes ou passarem por situações de

grande risco, tais como assalto ou agressões por parte de outras pessoas.

Buscar respostas para essas questões nos ajudará a compreender melhor a

experiência de quem vive profissionalmente como motoboy, suas aspirações, seus

anseios e desejos. A partir daí, instrumentos mais precisos, eficazes e condizentes

com o universo simbólico-cultural dos motoboys poderão ser produzidos para os que

pretendem produzir intervenções sociais na redução dos graves índices de

morbidade nesta atividade. Portanto, nos voltaremos uma vez mais sobre a análise

dos fenômenos em torno do ingresso da pessoa na profissão para que consigamos,

a partir daí, debater alguns fenômenos que nos demonstram mais claramente

indícios de como vêm se constituindo as dimensões do coletivo entre os motoboys.

O ingresso e a permanência na profissão

Veronese (2004) nos mostra que as decisões que levam o pretendente a

enfrentar os riscos da profissão de motoboys dependem de uma análise realizada

pelos trabalhadores, por meio do qual poderão comparar os benefícios, os riscos e a

gravidade de seus possíveis danos, chegando à conclusão de optar ou não pela

carreira de motoboy. Ou seja, através de uma análise detalhada sobre a dialética

risco-necessidade, e considerando-se que a experiência de risco seja uma constante

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distribuída de maneira não uniforme em nosso mundo – pois se o motoboy não

quiser enfrentar o risco de acidentes deverá enfrentar os riscos atrelados ao

desemprego – o trabalhador hierarquiza e dimensiona os riscos produzidos pelo

trabalho, discriminando os que dependem de seu controle e os que não dependem.

Com isso, consegue estruturar formas de gerir essa complexa rede de fatores

produtores de situações de risco, posicionando-se de maneira segura para que

continue na profissão. Porém, essa análise não é descontextualizada das origens

dos motoboys, ou seja, vai variar em função das trajetórias de vida e das influências

sócio-culturais de cada um. Os sentidos sociais em relação à profissão –

preconceitos e discriminação –, bem como as características implícitas do trabalho

dos motoboys – uma certa informalidade tanto no aspecto jurídico quanto na sua

apresentação visual –, ou as condições e possibilidades de emprego ou

remuneração disponíveis às pessoas – desemprego, falta de qualificação

profissional, idade avançada para reingressar no mercado de trabalho quando

demitido –, tudo isso vai pesar para mais ou para menos na escolha do ingresso ou

não na profissão.

Em nosso entendimento, a utilização do termo “escolha” ou “opção” que uma

pessoa tem por essa profissão careceria de consistência empírica, pois o ingresso

neste (ou em qualquer tipo de trabalho) não depende unicamente (ou sempre) de

uma decisão tão cognitiva e racional como aparentemente pretende Veronese.

Vimos acima que várias pessoas vão ingressando na profissão por motivos muito

diversos uns dos outros, mas que podem ser agregados sob as seguintes razões

principais: a necessidade em “pagar as contas”, entre elas a própria prestação da

moto; a ampla oferta de emprego de motoboys anunciada cotidianamente nas

agências de emprego e nos classificados de jornais; a remuneração razoável

permitida pelo trabalho de motoboys, considerando o mercado atual; ou

simplesmente porque acabam sendo conduzidas a fazê-lo pelo contato próximo com

alguém que é motoboy, induzindo-os à profissão. Neto, Mutaf e Avlasevicius (2006)

também nos chamam a atenção de que o ingresso na profissão envolve muitas

vezes uma vontade explícita, mesmo que carreada de simbolismos, mitos e

fantasias. Para eles, o simbolismo cultural atrelado à moto, conotando uma “força

fálica”, um apelo de ousadia, liberdade e de contestação, é reforçado com as

exigências e perigos enfrentados na profissão. O trabalhador do setor de motofrete

sente-se, assim, beneficiado em poder unir o prazer da condução da moto com a

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remuneração para fazê-lo e, quando o faz, sente-se viril, ou como nos disse certa

vez um motoboy, “você se sente um pouco mais”, ou como disse um outro: “meio

que se sente herói”.

Alguns motoboys afirmam que, com o tempo, essa “fissura” em conduzir a

moto tende a perder um pouco do prazer que tinham logo no início da atividade.

Seja como for, não é unânime a escolha ativa de uma pessoa pela profissão, bem

como não dá para imaginar que todos têm o mesmo prazer em exercê-la

cotidianamente. Além disso, os processos que conduzem as pessoas a trabalharem

como motoboys é muito diversificado e sofrem influências diretas da origem social,

do grau de relação com a moto, das perspectivas financeiras e das experiências em

outros serviços. Finalmente, as pessoas não entram na profissão conhecendo

totalmente a dimensão dos riscos e dos benefícios envolvidos pelo trabalho. Pensar,

então, que se trata somente de uma opção racional e cognitiva, fruto de uma análise

puramente mental é, talvez, ignorar o fato de que aspectos emocionais, corporais,

subjetivos, de sensações e prazeres também vão se somando ao cenário prévio ao

ingresso da pessoa na profissão. Além disso, esses fatores vão exercer um papel

tão importante na manutenção do motoboy no seu trabalho quanto as ponderações

cognitivas e racionalizadas que Veronese nos aponta acima.

Ou seja, para nós escolha ou opção por uma profissão é, de certa forma, um

processo diferente de desejo e prazer por ela engendrado. Mesmo que haja um

arrefecimento no prazer na pilotagem com o passar do tempo105, a idéia de desejo

atrelado à profissão deve ser mantida em mente, pois como veremos adiante, o

desejo em trabalhar na profissão, somado aos prazeres desenvolvidos em seu

exercício, exercem um papel importante na produção de processos subjetivos que

compõem um universo de sentido importante na função psicológica dessa atividade

na vida de seus profissionais. Já os termos escolha ou opção remetem a uma

decisão cognitiva que, por mais influenciada que estejam dos demais aspectos

subjetivos, ligam-se a uma decisão entre possíveis objetivados diante da vida: ou

sou motoboy, ou sou outra coisa. Porém, não é verdade que as outras coisas estão

tão claramente objetivadas para as pessoas como pareceria a princípio. Muito pelo

105 Veremos logo abaixo que se há de fato um arrefecimento do prazer pela pilotagem, em contrapartida, o tempo e tudo o que nele está envolvido, sobretudo a aprendizagem de saberes e a partilha de sentidos comuns, ensina ao motoboy a obter prazer no próprio exercício da profissão. Quando isso acontece, o prazer da condução é subsumido por um outro prazer mais solidificado em dimensões genéricas. Essa ampliação do prazer sinaliza um processo subjetivo extremamente importante.

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contrário, pois muitos motoboys alegam que não tinham outra opção de escolha de

emprego quando assumiram ser motoboys. É verdade que Veronese deixa claro que

as opções possíveis são: ficar desempregado ou trabalhar como motoboy. Porém,

diante das condições atuais do mundo contemporâneo, ficar desempregado não

pode ser considerado propriamente uma escolha ou opção. Nesse sentido, é mais

fácil compreender que parte dos motoboys acaba sendo “empurrada” para a

profissão, do que propriamente “optam” por nela ingressar.

Por esse raciocínio, podemos compreender um pouco melhor o argumento

muito utilizado pelos motoboys para justificar as razões que estão na profissão: a

falta de outras oportunidades ou a imposição de necessidade. Em nossa pesquisa,

quase 47% das respostas à pergunta do questionário que tentava esclarecer porque

estavam na profissão, girava em torno da falta de oportunidade em conseguir outros

empregos – o termo mais comum era falta de opção – e pelas necessidades

financeiras das pessoas, que não conseguiam emprego de outra maneira. Esse fator

foi citado também por Oliveira (2003), Veronese (2004) e Diniz (2003). Oliveira

(2003) salienta ainda que as condições sócio-econômicas dos candidatos irão definir

não só o ingresso na profissão, mas também a alta rotatividade dos profissionais,

pois tão logo apareçam opções melhores, os motoboys deixam a profissão para

ingressar em outros ramos profissionais. Essa prática também está atrelada,

segundo ele, ao esgotamento da tolerância às condições de trabalho, ou

simplesmente porque os motoboys pretendem desfrutar do seguro desemprego106.

De qualquer modo, quando argumenta que a falta de opção é a justificativa principal

para o seu ingresso na profissão, o que o motoboy pode estar querendo afirmar é

que não teve muita escolha: ou entrava ou continuaria numa situação muito

vulnerável. Não se trata, então, de interpretar a idéia de falta de opção como a

última opção que alguém poderia querer, mas de que ser motoboy era a única opção

possível. Ou, em outras palavras, o motoboy não tinha literalmente como optar. Não

se tratava de uma dimensão do desejo, mas da necessidade de sobrevivência:

nesse sentido, falta de opção é falta da possibilidade de optar. Enfim, nem sempre

há uma opção pela carreira, mas um ingresso nela.

106 Essa última razão parece carecer de evidências, pois desfrutar o seguro desemprego não é uma possibilidade real para todos os motoboys, até porque parte importante deles (cerca de 18% em Vitória) não tem relações empregatícias formais com os empregadores, que não pagam ou descontam o INSS dos seus empregados, além daqueles que executam trabalhos como autônomo.

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Por outro lado, quando uma pessoa inicia suas atividades como motoboy, o

discurso em relação ao futuro não é sempre algo do tipo: “quando aparecer uma

coisa melhor, deixo de ser motoboy”. Pelo contrário, o que muitos motoboys alegam

é que “Permaneço porque eu não vejo nada melhor em vista, por enquanto,

entendeu?” ou

se eu fosse trabalhar num emprego que não me desse condições de realizar esses sonhos, então não adiantava de nada. Aqui eu consigo, de uma certa forma, fazer minhas coisas de casa, que nem eu estou construindo, [...], pago a minha moto, eu e minha esposa, a gente conseguimos, no caso comprar as coisas para dentro de casa.

Outros vão alegar que a profissão permite atingir outros sonhos: “como eu

disse pra você, é uma profissão que você levanta uma grana com muita facilidade

entendeu, mas não é pra minha vida inteira, é coisa temporária”. Outros dirão ainda:

“Como eu gosto da profissão, eu pretendo ficar pelo resto da vida”. O fato é que a

vantagem principal do trabalho dos motoboys é que ela permite, para as pessoas

que vivem nas condições sócio-econômicas mais desfavorecidas, criar

possibilidades de escolha. Daí, então, que a entrada na profissão se dá por falta de

possibilidade de escolha, mas a continuidade nela, não. Aqui, talvez, haja um

processo em que a opção, a escolha pela continuidade no trabalho, exerça um papel

mais ativo, mesmo que consideremos que essa escolha em continuar sendo

motoboy não seja um processo puramente cognitivo. Veremos por que.

Oliveira (2003) reconhece que ingressar na profissão, em alguns casos, pode

significar a ampliação da empregabilidade de uma pessoa. Dá o exemplo de um

motoboy que iniciou as atividades em um hotel que ofereceu oportunidade aos

próprios servidores a assumirem esse cargo. Relatos semelhantes ouvimos em

Vitória: por exemplo, o de um motoboy que iniciara suas atividades na profissão a

partir de um convite do patrão da padaria em que trabalhava como ajudante de

vendas. Vimos em capítulos anteriores que a partir do ingresso do motoboy na

profissão, inicia-se a construção de algo próximo daquilo que poderíamos chamar de

uma “carreira”, a despeito dos limites reais da aplicação desse conceito à atividade

dos motoboys. Essa carreira envolve menos a promoção entre cargos ascendentes

de uma determinada profissão e mais uma busca consciente dos profissionais em

direção a um emprego onde as condições sejam mais favoráveis a si. No caso desse

rapaz, as perspectivas do trabalho na padaria eram muito limitadas. Preferiu assumir

o cargo de motoboy em uma loja de autopeças, pois lá a possibilidade de ascensão

e o valor do salário pago eram melhores. Desdobra-se daí que parte da instabilidade

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dos motoboys na profissão não é apenas um esforço de recusa do trabalho de

motoboy, como sugeria Oliveira (2003). Trata-se também de uma busca incessante,

da parte dos profissionais, por uma oportunidade mais rentável financeiramente, ou

emocional e fisicamente menos exigente. Um fator chave que garante esse vai-e-

vem dos motoboys, como dito, é a empregabilidade possibilitada pela profissão. Ser

motoboy atualmente é garantia de emprego, condição não tão disponível para

jovens e adultos com qualificação formal limitados ao Ensino Médio. Inúmeros

motoboys nos relataram situações em que ao procurar determinado local que

anunciava no jornal sobre a necessidade de motoboy, se surpreendiam com a

necessidade do anunciante que os solicitava a iniciar as atividades naquele exato

momento. Um deles chegou a relatar que ao chegar em um local à procura de

emprego para trabalhar à noite, o empregador nem esperou o fim da conversa,

colocou um baú em cima de sua moto e já o mandou fazer entregas. Nesse sentido,

compreender que ser motoboy se dá unicamente por falta de opção é deixar de

observar inúmeros benefícios atrelados à profissão. E tais benefícios vão compondo

um complexo cenário diante do motoboy que torna muito difícil pensar unicamente

nas limitações e riscos enfrentados no exercício da profissão.

Isso porque vantagens de ser motoboys não param aí: em nossa pesquisa,

cerca de 33% das respostas que relatavam sobre os porquês dos entrevistados

estarem na profissão de motoboys, referiam-se às vantagens que a profissão

fornecia. Entre as vantagens incluem-se: o salário, que é melhor que muito emprego

para pessoas sem qualificação formal; a empregabilidade, já referida acima; a não

exigência de qualificação formal do trabalho; uma exigência ou um impacto

relativamente menor que este trabalho impõe ao corpo quando comparado com

outros mais exigentes, tal como trabalhos como pedreiro ou comércio; a liberdade, a

autonomia e um certo controle sobre a atividade de trabalho; o prazer da condução

da moto; o fato de que a profissão, quando exercida em firmas que não são do setor

de comércio, não requerem trabalhos em fins de semana, em horários noturno e em

feriados; a possibilidade de ter mais de um emprego; a distância física em relação ao

patrão ou supervisor; não ficar o tempo inteiro em escritórios; poder utilizar roupas e

se comportar de maneira mais informal; entre outros. Entretanto, compreender como

esse conjunto de causas compõe um cenário possível em direção à “escolha” para

ingressar e se manter na profissão deve ser ainda mais bem explicado. Até porque,

como nos lembra Veronese, os riscos são enormes e todos os motoboys têm

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consciência disso. Uma pista importante, contudo, talvez possa ter visibilidade se

mobilizarmos as contribuições de Cru em Psicodinâmica do Trabalho, acerca do

“coletivo de regras”, como veremos adiante.

Por tudo isso, fica claro para nós que o ingresso e, principalmente, a

permanência na profissão é um longo processo que, de maneira não

fundamentalmente consciente, se constrói a partir de sonhos, desencantos e

aprendizagens. Os efeitos do trabalho na vida dos motoboys são muito variados,

mas um dos muito citados é o fato de que o trabalho, na pior das hipóteses, torna

possível o sonho das pessoas acerca de outras possibilidades de vida, de

empregabilidade, de socialização. Mas mais que isso: ao ingressar na profissão,

algo vai se constituindo de uma maneira muito surda na vida dos trabalhadores,

transformando sobremaneira o que previamente se pressupunha acerca desse tipo

de trabalho. O trabalho temporário acaba assumindo, aos poucos, conotação de

profissão. Talvez ainda não em sentido tão intenso quanto a idéia de ofício. Mas,

para alguns motoboys, trabalhar na profissão é mais que uma escada para outros

tipos de serviço, mesmo que esses trabalhadores não pretendam ficar eternamente

na profissão. Com o passar do tempo, parece que se desenvolve algo que

poderíamos chamar de produção de um profissional motoboy.

A produção de uma profissão e de um profissional

O processo que leva uma pessoa a tornar-se motoboy parece divergir, em

grande parte, daquilo que Oliveira (2003) registra em sua pesquisa:

geralmente o motoboy tem uma visão negativa do seu trabalho, o que o leva a afirmar que não quer permanecer na atividade por muito tempo, desaconselhando os pretendentes a se inserir na ocupação. Nesse caso, o trabalho significa apenas uma forma de sustento (p.52).

Tanto teoricamente, quanto empiricamente, não podemos concordar que um

trabalho que requer tantos sacrifícios e tantos riscos produzidos em um cenário de

contínuos contraintes temporais, cognitivos e emocionais seja mantido simplesmente

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devido a remuneração107. Se assim o fosse, não ouviríamos relatos como o que se

segue: durante uma entrevista em que um motoboy assistia sua própria atividade

capturada em vídeo108, espontaneamente, ao ver a imagens em que as imagens

começam a demonstrar a atividade do trabalhador a partir de seu ponto de vista109,

com sorriso no rosto, e como se fosse confessar algo que lhe deixa feliz, ele diz: M - eu gosto de trabalhar de motoboy. Eu gosto de ser motoboy. E - Gosta? M - Gosto. E - Por que? M - Eu gosto da sensação de liberdade. A sensação de liberdade é incrível E - Que sensação é essa? M - Sensação de liberdade... me sinto que nem uma criança às vezes, entende? Sem ninguém para ficar me perturbando. Apesar que o pessoal liga para caramba, o telefone toca o tempo todo, querendo saber o que está acontecendo, se está tudo certo, e tal. Mas, pô, a sensação compensa, cara. Não é um lugar, um ambiente fechado, que você trabalha naquele ambiente, naquela pressão. É uma pressão, mas, você está respirando o ar, está do lado de fora, sentindo o clima, sentindo o sol, o vento... Isso é bom pra caramba. A gente vê coisas, pessoas.

Longe de ser uma exceção, relatos como esse nos foram dirigidos diversas

vezes e em situações também muito diferentes. Mas o que chama ainda mais

atenção nesse relato é que ele se refere à infância para explicar a sensação de ser

motoboy. Lança mão de um outro gênero discursivo, remontando a outro período da

vida, para explicar algo que lhe falta explicação do ponto de vista do gênero da

atividade. Com base no conceito de catacrese subjetiva (CLOT, 2006), talvez

possamos denominar essa apropriação do discurso produzido em outro local de

catacrese discursiva. O que importa por hora é que a infância é um período de

descoberta, de experimentação e, principalmente, de aprendizado. Esse

aprendizado, esse esforço enorme de crescer e de se desenvolver, se dá por meio

da brincadeira, do prazer. É certo que o aprendizado não é o resultado direto da

simples brincadeira, até porque há sacrifícios e dificuldades em aprender, mesmo

durante as brincadeiras. Mas um dos processos básicos subjacentes à

107 Aliás, a questão da remuneração não é tão simples quanto inicialmente se pressupõe. A remuneração não trata meramente da necessidade de sobrevivência da pessoa, mas também de tornar possível a produção de vida, de saúde, de desejo de si, do coletivo e do grupo social com que convive (família, colegas, etc.). 108 Parte da técnica da auconfrontação. 109 Até esse momento, a filmagem ocorrera do ponto de vista de um observador: a filmagem era tomada da garupa de uma outra motocicleta que seguia o motoboy realizando seus serviços pelas ruas da cidade. A partir desse momento, o câmera subiu na garupa do motoboy e começou a filmar o trânsito com a câmera na altura do peito do motoboy, tentando acompanhar todos os movimentos realizados por ele. Essa alteração de perspectiva visava promover discussões distintas acerca de como ver e viver o trabalho. Os resultados, nesse sentido, não foram tão satisfatórios como pretendido, pois a câmera não conseguia acompanhar adequadamente o ponto de vista dos motoboys. Seriam necessários outros equipamentos que permitissem um acompanhamento mais preciso desses movimentos. Por outro lado, serviu enormemente para trazer à tona elementos que não foram possíveis observar pelo ponto de vista do observador, tais como os impactos do som na pilotagem, os efeitos da chuva, os constrangimentos espaciais e os efeitos das condições da pista no corpo do motoboy. Acreditamos que uma aplicação dessa técnica com aparelhos mais apropriados elevaria ainda mais o nível das discussões que se seguiram durante a entrevista de autoconfrontação.

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aprendizagem e ao desenvolvimento, durante a infância, é a atividade lúdica. Nesse

período, as crianças percebem o mundo com algumas limitações, tidas por vários

autores como egocêntricas, ou seja, a dificuldade das crianças perceberem o mundo

a partir das perspectivas dos outros, seja pelas limitações dos próprios esquemas

construídos, seja como efeito das próprias estruturas cognitivas desenvolvidas110. É

fato que a capacidade de fantasiar das crianças tende a torná-las mais hábeis em se

distanciar temporariamente do mundo real, aparentando, para um observador, que

ela consegue viver mais independente em um mundo cognitivo só dela. Essa

capacidade se torna cada vez mais rara entre os adultos e, com o tempo, a

aprendizagem para se viver no mundo vai transformando o próprio processo de

aprender mais complicado, mais frio, mais difícil. As simples sensações deixam de

ser importantes. O prazer de ser, simplesmente, se torna uma constelação cada vez

mais longe e intangível. Mas o motoboy da cena acima consegue remeter-se a essa

sensação de ser livre, de “curtir” um ar, um vento, uma brisa. Um simples, mas

fundamental, prazer de ser. No momento de pilotar a moto, é como se o mundo

fosse seu. O egocentrismo da infância retorna. Cheio de diversão, de possibilidades,

de sonhos e fantasias. Uma liberdade fugaz e não totalmente entregue, é verdade,

pois a pressão é contínua. Mas na fugacidade, encontra um prazer incomensurável,

que lhe permite dizer de bom grado: “eu gosto de ser motoboy”.

Livre poderia aqui significar também sem responsabilidade, ou

responsabilidade na medida do que lhe é suportado. Aliás, outro aspecto que chama

atenção na infância é que ela não precisa se responsabilizar pelo próprio sustento, o

que dá à criança a condição de ousar nas suas invenções. Com o passar do tempo,

e com o aumento das responsabilidades, a criança vai transformando a ousadia em

obediência. Ao remontar a esse sentimento infantil, o motoboy pode estar se

referindo, então, a um aspecto muito importante: o domínio da moto e do trabalho é

de tal ordem que lhe é possível sentir-se livre, mesmo dentro dos limites reais dos

constrangimentos espaço-temporais com que lida cotidianamente. O motoboy sente-

se livre porque se sente em simbiose com a moto e com a atividade. Esse é seu

campo em que se produz como sujeito. Esse é um momento em que se testa, se

controla, se produz, e fantasia. Apenas assim, pode a liberdade tornar-se possível.

110 Entre esses autores, Piaget é um dos que se destacam nesse campo (WADSWORTH, 1995), embora pesquisas recentes venham demonstrando que as crianças são menos egocêntricas do que se supunha (BEE, 1996).

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Uma liberdade que se dá na responsabilidade que se assume pelo trabalho. Não é

somente o prazer da pilotagem. O vento, o ar, as pessoas, são tão importante

quanto a brisa no rosto. E não se exclui dessa fala a pressão, os telefonemas.

Apenas se os reconfigura, remetendo-os a um campo de sentido em que se tornam

toleráveis e, no limite, prazerosos. Daí sentir-se como criança: transpor o real, para

torná-lo mais interessante; um processo quase fantástico de reconstrução do mundo

em sua volta. Trata-se de algo da ordem do emocional. Não um fenômeno

estritamente ou fundamentalmente cognitivo – se é que é possível separar tão

distintamente cognição e emoção (conação). Trata-se de uma experiência de pele,

de sensações, de prazeres. Essa mobilização emocional não é possível em um

trabalho “meramente” para retorno financeiro. As funções psicológicas do trabalho,

conforme Clot (2006), se tornam aqui ilustradas de uma maneira fenomenal: o

motoboy consegue sair de si para dar conta de uma realidade complexa e, no fim,

tem como sentimento uma realização que lhe remete aos prazeres da infância,

fazendo ressonância simbólica, nos termos da psicanálise, como sinaliza Dejours.

Esse relato confirma, também, o sentimento de realização quando o trabalhador

consegue viabilizar uma atividade que estava complicada em se fazer. A sensação

de prazer é um retorno pelo investimento subjetivo no exercício da atividade.

Há ainda um outro aspecto que merecemos considerar: a postura de

confissão no relato acima. Em uma outra situação, um outro motoboy, também

afirmando gostar da profissão, nos relatou: “olha, para falar a verdade, eu até que

gosto de ser motoboy”. Dizia isso diante de um grupo de motoboys que debatiam

acerca do futuro de cada um na profissão. Esse desabafo fora, também, em tom de

confissão – ‘para falar a verdade’. É como se fosse dizer uma coisa que, na verdade,

todo mundo naturalmente negaria. E o uso do termo foi muito importante para

ressaltar que diante de tantos aspectos negativos que estavam sendo citados, o

prazer da profissão era tão importante quanto todos os riscos, dificuldades e

constrangimentos enfrentados. Nossa percepção é de que ambas as falas ilustram

um movimento às vezes mal interpretado pelas pessoas em geral, a despeito dos

riscos de ser essa uma interpretação enganosa de nossa parte: a negatividade do

trabalho, conforme nos aponta Oliveira (2003), é apenas uma parte, quiçá até menos

importante, dos discursos e sentimentos dos motoboys. Eles se queixam muito do

trabalho, o que parece muito compreensível, diante de uma atividade que se

desenrola em uma situação tão precarizada. Porém, a liberdade da moto, muito

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referida inclusive por Oliveira, aponta para um profissional que é vivo e criativo, e

que se solidariza em diversos aspectos com o prazer e o zelo por seu trabalho. O

sentimento de prazer encontra-se em cheio com a idéia do desejo a ingressar ou a

se manter na profissão, como sugerido por nós e por Neto, Mutaf e Avlasevicius

(2006), coroando de sentido positivo o ser motoboy. Mas, independente da

existência ou não de desejo manifesto na condução de um motoboy à profissão, é

fato que para muitos a profissão não é a expressão de um grito de desespero. É a

afirmação de um ser possível que descobre prazeres onde inicialmente não se

supunha, que faz uma transformação dos sofrimentos em prazeres. Em outras

palavras, por mais desgastante que seja, ainda é possível viver e sentir-se bem

nessa profissão. Esse é o apelo da confissão do relato acima: não deve ser fácil

fazer compreender que isso pode ser bom. Não deve ser fácil admitir que esse

trabalho, tão desvalorizado, seja prazeroso. Não parece crível que alguém se sinta

tão bem executando um trabalho tão desqualificado socialmente. Mas o tom de

confissão indica serem admissíveis tais idéias.

Todavia, há que se compreender mais apropriadamente o porquê da

confissão. Clot nos alerta, em um dado momento, que

a ‘beleza’ e o interesse de um ofício não estão só em seu exercício, mas também nessa consciência partilhada que une secretamente e com grande intensidade aqueles que a praticam, sejam ou não da mesma geração. Assim, tudo o que perturba a cristalização dessa consciência contribui para diminuir a vitalidade do ofício (CLOT, 2006, p.71).

O receio em se dizer, de alto e bom tom, que se gosta de ser motoboy não

seria um fenômeno que se produz também dentro do próprio coletivo profissional,

um sinal de que o gênero da profissão ainda não está construído, o que auxilia a

tornar ainda mais precária as relações de trabalho nessa atividade? Um outro

episódio ocorrido no curso de nossa pesquisa parece sinalizar algo nessa direção.

Durante a aplicação de uma das técnicas que serviram como dispositivo de análises

da atividade de trabalho com um grupo de motoboys, um deles, que trabalhava na

profissão há mais tempo, disse que não gostava de ser motoboy e que achava que

ninguém gostava. Retornamos o comentário para o grupo, perguntando se gostavam

ou não do trabalho. “E aí, vocês gostam de ser motoqueiros?” Imediatamente todos

disseram que não. Comentamos para o grupo que já tínhamos escutado de alguns

motoboys que gostavam da profissão, e outros disseram que não gostavam, etc...

Os motoboys, entre eles o que iniciou o assunto, nos disseram que até tinha

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algumas coisas interessantes, mas que a profissão apresentava inúmeros

problemas, tais como a desvalorização social, os riscos, as condições de trabalho, a

falta de união da categoria, entre outras razões explicitadas. Tudo isso dito numa

postura muito característica de auto-vitimização. Entretanto, surpreendeu-nos o fato

de que findada a atividade de grupo que havíamos proposto, alguns vieram

conversar individualmente conosco. E começaram a falar da pesquisa, da categoria,

do sindicato, etc. Vários que tinham se levantado para esperar fora da sala, voltaram

para ver o que estávamos falando e, quando perceberam o assunto que estava em

pauta, voltaram para continuar a conversar. Eis então que o mesmo motoboy que

havia dito que não gostava de ser motoboy disse exatamente o contrário, que ele

gostava sim e que aquela era a sua profissão. Ficamos surpresos com o comentário,

porque afirmara há poucos minutos algo exatamente diferente no grupo, referindo-se

inclusive que se tratava de um sentimento geral da categoria. Neste segundo

momento, ele dissera a frase parecendo estar mais afetado por um sentimento de

incertezas, dúvidas, e indignação em relação à categoria e ao sindicato. Duas frases

antagônicas, mas de forma alguma contraditórias!!!! A dimensão “profissão motoboy”

emergiu no centro do debate. Parecia que a questão em cena era exatamente a

questão: “profissão” ou “bico”? Um saber constituído versus uma atividade comum

que qualquer um pode fazer. Um status de profissional versus o de "temporário”,

“informal". Parecia-nos muito claro que um tal gênero profissional da atividade

(CLOT, 2006) parecia querer se afirmar, mas não encontrava reverberações

possíveis nem mesmo dentro da própria categoria. Passado esse momento, um

pouco mais tarde retornamos à atividade em grupo, onde se seguiu um longo debate

acerca das posturas da categoria em torno do trabalho e sobre o papel do Sindicato

nas lutas por melhores condições de trabalho. Tudo isso parecendo confirmar a idéia

de que, de fato, entre os motoboys existe uma potência de produção de um

profissional que, no entanto, ainda não conseguiu tornar-se a tal “consciência

partilhada que une secretamente e com grande intensidade aqueles que a praticam,

sejam ou não da mesma geração”, a que Clot se referia. A postura de confissão fora

também característica desse episódio, pois apenas quando restavam 3 ou 4

motoboys discutindo sobre o assunto, é que o profissional revela tal compreensão

sobre a categoria. É como se, subjacente ao discurso de se recusar uma profissão

que não tem valor, existisse um lado da pessoa que, em algumas ocasiões, pode

sentir-se à vontade em dizer que, apesar de tudo, é bom ser motoboy. À

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negatividade do trabalho, a necessidade em revelar um processo, às vezes

inevitável, de se tornar um profissional com o passar dos anos.

A positividade do ser motoboy ecoa também na positividade do produto do

seu trabalho. Diniz (2003) acertadamente conclui em seu trabalho que há um

enorme esforço dos trabalhadores do setor na busca do desenvolvimento de

estratégias, ou modos operatórios, capazes de tornar seu trabalho mais produtivo,

aumentando a satisfação dos clientes, ao mesmo tempo em que possam se

beneficiar em cada serviço prestado, com o máximo possível de recursos. As

estratégias, extensamente debatidas nos capítulos anteriores, podem envolver mais

ou menos riscos, dependendo de inúmeros fatores que não podem ser descritos

completamente aqui. O que importa é que essas estratégias são utilizadas quase

sempre de maneira muito instrumental pelo motoboy, ou seja, eles desenvolvem

saberes que lhes permitem aumentar a ousadia no modo de condução, mantendo

uma margem de segurança que consideram suficientes para realizar os serviços de

maneira satisfatória. É claro que alguns tendem a utilizar mais constantemente

modos mais arriscados e outros tendem a se proteger um pouco mais

acentuadamente. Aliás, essa diferença revela, como vimos acima, um debate aberto

entre distintos modos de se produzir seu saber-fazer, debate esse produzido e

afirmado cotidianamente e que envolve outros personagens em diálogo: setores de

trânsito, outros condutores de veículo, clientes, patrões, etc. A existência desse

debate reforça ainda mais a idéia de um gênero profissional em busca de se instituir

e confirmar. De qualquer modo, vimos que a precariedade das relações de trabalho

a que estão submetidos não impede que eles se envolvam de maneira bastante

intensa com suas atividades, propiciando seu desenvolvimento subjetivo ao mesmo

tempo em que constroem saberes coletivamente, em busca de aumento de

eficiência e de segurança na condução dessas atividades.

Nesse sentido, mais que as vantagens obtidas com o ser motoboys, quando

um trabalhador vai ficando na profissão, não se trata também de um mero

comodismo, como eles relatam. Aliás, retomando um pouco as razões que

conduzem um motoboy à profissão, é comum ouvir dos que ingressam na profissão

ainda novo, com uma expectativa relativamente alta sobre ela: uma certa

“adrenalina” no cotidiano de trabalho, uma certa áurea de “liberdade” e uma

determinada expectativa financeira suficiente para satisfazer as necessidades de

jovens adultos. Porém, se decepcionam no começo da carreira, quando percebem

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que as coisas não eram exatamente como esperavam. Só com o passar do tempo é

que aprenderam a constituir um conjunto de saberes que lhes permitiu uma

remuneração um pouco melhor. É muito provável que esse desenvolvimento exigira

dedicação e investimento psíquico, tornando um pouco mais distante a possibilidade

de sonhar com outras coisas. Fato é que nem todos são bons motoboys, pois, como

eles mesmos dizem, bom motoboy é aquele que sabe “desembolar” o serviço, ter

resolutividade e capacidade de gerenciar várias demandas ao mesmo tempo. Isso

só se aprende “tomando várias pancadas”. Nesse sentido, trata-se de uma profissão

que se aprende e de um profissional que se produz.

Como dito acima, alguns começam porque a profissão foi a que unia algumas

vantagens e os menores custos (esforço, tempo, complicação,etc.). É mais comum

ouvir desses motoboys frases tais como M - Tem uma motinha, está desempregado, e é o que aparece. No começo não é o que vc queria, mas a necessidade é mais importante. Compra um moto para dar umas voltas com os conhecidos, logo não arruma trabalho, tem que pagar as parcelas, então um colega acaba chamando para ser motoboy. A vaga de motoboy sempre tem, apesar do salário ser defasado, mas sempre existe oportunidades e pessoas para trabalhar. E - Que expectativas tinham antes de entrar? M - Não existiam expectativas. A profissão apenas para passar um tempo, e assim tentar arrumar um emprego melhor. Entra na necessidade e para não ficar parado. Acaba ficando.

Com o tempo, eles também vão se apropriando do trabalho e, como outro

motoboy reconhece: “conheci as empresas que trabalhavam no autônomo, avulso, ai

comecei a trabalhar com eles e de uma certa forma, vi quanto eu ganhava aqui, daí

aprendi a gostar do serviço e trabalho até hoje” (grifo nosso). Ou seja, uma vez

mais, a aprendizagem do trabalho, do ser motoboy é, também, um debate de

valores, um processo de produção de prazeres e desejos em torno da atividade.

Entretanto, esse processo de “acabar ficando” na profissão se dá, aos olhos

dos próprios motoboys, porque as pessoas “se acomodam”. Não concordamos

totalmente com essa interpretação. Em nosso entendimento, não se trata

meramente de uma acomodação, no sentido negativo de preguiça ou falta de força

de vontade, mas uma acomodação no sentido piagetiano. Para Piaget, quando uma

pessoa encontra um determinado objeto do conhecimento que não se encaixa em

nenhum esquema mental prévio, ou ele modifica seus esquemas, ou ele cria

esquemas novos, reorganizando o conjunto prévio de esquemas mentais existentes

(WADSWORTH, 1995). Ou seja, quando uma pessoa acaba “resolvendo” ficar na

profissão, é porque em meio à vida profissional ela encontrou, a partir da própria

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atividade e por meio de muita emoção, esforço a da reconstrução de esquemas

prévios, uma forma de viver a vida e produzir sentidos novos para si e para o mundo

a partir dessa nova realidade de trabalho: ser motoboy. Já não se trata mais, então,

um trabalho temporário que alguém acaba ficando porque está acomodado, mas

uma acomodação de um sentido de vida na qual ser motoboy se torna uma forma

suportável (e mesmo prazerosa) de ser alguém.

Enfim, o que se deve verificar é que ser motoboy pode significar,

efetivamente, a construção de si como um profissional. Tal como em outras

profissões, alguns extraem dessa atividade profissional meios bastante salutares de

desenvolvimento de si, tanto do ponto de vista subjetivo, quanto do ponto de vista

social. Mesmo que muitos não venham a ficar na profissão por mais que alguns

meses, outros tornam a atividade como uma forma de relação de si com o mundo.

Acreditamos que essa pode ser uma das chaves para a compreensão das razões

das pessoas ficarem na profissão. O prazer se desenvolve na profissão,

reelaborando o sofrimento, mais facilmente percebido.

O que queremos afirmar, a partir de agora, é que essa dinâmica sofrimento-

prazer não é possível sem um processo de construção de um sentimento de

coletividade que já fora anunciada em outros trabalhos – em particular, Neto, Mutaf e

Avlasevicius (2006), mas também em Silva (2006) e Diniz (2003). Apenas por meio

de um coletivo que dá sustento à atividade é que se pode desenvolver um prazer

constitucional dessa ordem entre os motoboys. Nesse sentido, a profissão parece-

nos muito mais que um “bico”. Os desafios enfrentados cotidianamente, atrelados

aos benefícios de sua suplantação por meio da mobilização dos saberes partilhados,

permitem compreender melhor como as relações que as pessoas desenvolvem com

atividades tão pouco salutares podem tornar-se fonte constitucional e produtora de

subjetividade.

Dimensões coletivas no trabalho dos motoboys

Até o momento, vimos discutindo a maneira como o exercício dessa profissão

produz sentidos e prazeres para alguns trabalhadores. Apontamos, durante essa

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discussão, que parte desse prazer envolve dimensões coletivas da atividade, porém

não exploramos adequadamente seus papéis nesse processo. Tentamos

demonstrar, de qualquer maneira, que a dimensão do prazer envolve

inevitavelmente a constituição de uma determinada forma de ser, vivida de maneira

bastante pessoal, mas que implica na incorporação de saberes, conhecimentos e

discursos que são, de certa forma, partilhados pelos motoboys. É exatamente nesse

ponto que nos direcionamos à questão central dessa pesquisa, qual seja a de

investigar as dimensões coletivas em exercício na atividade de trabalho dos

motoboys.

O saber do trabalhador, convocado à cena por uma investigação de

perspectiva ergológica, mobilizando a Ergonomia da Atividade, a Psicodinâmica do

Trabalho, e a Clínica da Atividade, não é a expressão de uma experiência singular,

muito menos uma simples opinião pessoal sobre determinado assunto. Toda

produção conceitual e analítica daquilo que Oddone et al. (1986) denominam

Comunidade Científica Ampliada e que Schwartz avança identificando como um

Dispositivo Dinâmico de Três Pólos (2001) – e que no Brasil, na proposição de Brito,

Athayde e Neves (2003), denominam Comunidade Ampliada de Pesquisa –, deve ter

como base uma espécie de validação consensual, também assinalada por Dejours

(2004b) –, que é a confirmação da compreensão coletiva sobre os nexos

identificados entre a experiência de trabalho, o ambiente e seus efeitos na saúde e,

principalmente, como o coletivo se posiciona diante dos modelos e propostas de

transformação dessa realidade, construídos a partir de uma determinada

investigação e análise do trabalho. Sem discutir a cientificidade da validação

consensual (entendemos que para a Ergologia trata-se de um instrumento de debate

e não de validação científica em si), que já fora questionada por Laurell e Noriega

(1989) e em Ergologia por Cornu (2003) vale considerar que essa temática,

juntamente com o conceito de grupo homogêneo, apontaram para Oddone caminhos

em direção à identificação e descrição do papel que a construção coletiva de

conjuntos de sentidos e contextos exercem na mobilização subjetiva dos

trabalhadores. Cornu (2003), baseado em Oddone, define esses conjunto de

saberes e sentidos como planos-programas (na formulação cognitivista de então),

que tem como função organizar a experiência operária num plano anterior a ele e

profundamente coletivo. É mediante um conjunto de sentidos comuns, lingüística,

emocional e corporalmente compartilhados, que se permite um fazer em coletivo.

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Esse contexto operacional é fundamental para explicar, tanto ao trabalhador quanto

para o grupo em que está inserido, o que se faz, como se faz, porque se faz e

quando se faz aquilo que os trabalhadores estão fazendo. Isso porque esse plano-

programa liga o saber coletivo ao fazer por meio de cada um, conectando o saber-

fazer de um trabalhador ao saber-fazer de outro trabalhador o que produz um forte

sentido de comunidade. Esses planos, construídos como resposta coletiva aos

problemas e enfrentamentos partilhados, conformam os planos-programas

individuais. Assim, cada atividade empreendida se desenvolve dentro de um plano

individual que é uma variação de um plano coletivo (CORNU, 2003; CLOT, 2006).

Yves Clot, posteriormente, dirá que o papel do plano individual no meio de trabalho é

também fundamental, na medida em que permite o gênero reviver, transformando-o.

Ou seja, não é senão pela capacidade das pessoas singularizarem o gênero coletivo

– conceito bakhtiniano que Faïta e Clot utilizam para designar esse plano-programa

– que o gênero mantém sua vitalidade, se revigora e se atualiza. De fato, o grupo só

conserva uma função para o sujeito se ele lhe permite fazer face à situação

desenvolvendo seu poder de agir. Inversamente, o sujeito exerce uma função no

grupo quando ele permite ao grupo ampliar seu raio de ação (CLOT, 2006). Faïta e

Clot denominam de estilo essa apropriação individual do gênero coletivo. Entretanto,

a definição e o papel coletivo exercido pela relação gênero e estilo é, em Clot, ainda

mais importante para a compreensão do coletivo da função psicológica do trabalho.

O conceito de gênero profissional na Clínica da Atividade

Clot (2006) tenta construir um suporte teórico sobre a função psicológica da

atividade tomando como base as idéias já anunciadas de Bakhtin sobre gênero e

estilo, conforme as indicações de Faïta (1997). Lança mão, também, das

contribuições das acepções de desenvolvimento conforme definido pela abordagem

de Vigotski, o qual estabelece que para a compreensão dos processos subjacentes

a uma atividade qualquer, o que se deve investigar é principalmente o seu

desenvolvimento e não a atividade em si, como se esta fosse algo imutável, pronta e

acabada. No caso em particular do trabalho, este se diferencia das demais

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atividades por ser uma atividade dirigida a um determinado fim, mas também dirigida

a atividades de outras pessoas, bem como é objeto da direção da atividade de

outrem. Além disso, em geral, as atividades de trabalho no mundo capitalista se

destacam porque não são determinadas por quem em geral as executa.

De qualquer modo, Clot reforça ainda mais a importância da compreensão da

história do desenvolvimento quando observa que nesse processo, encontra-se a

história dos impedimentos do desenvolvimento. Observa, pois, que na base

conflituosa de qualquer desenvolvimento, encontra-se também a fonte de dor ou, no

pior dos casos, de sofrimento patogênico. Assim, ao se investigar a raiz do que

propicia ou impede um desenvolvimento da atividade, se tem a possibilidade de se

estudar sua complexidade e tudo o que a põe em movimento. Clot irá mostrar,

porém, que na base dessas relações conflituosas de qualquer atividade de trabalho,

não é senão por meio de uma dimensão coletiva da atividade profissional que se

encontram os suportes que permitem aos trabalhadores superar as dificuldades e

desenvolverem-se em seu meio de trabalho.

Isso porque parece a Clot que “a ausência ou enfraquecimento de um

trabalho de organização promovido e mantido por um coletivo esteja na origem dos

desregramentos da ação individual mediante os quais é indicada a perda do sentido

e da eficácia do trabalho” (2006, p.18). Porém, explorando melhor o sentido do

coletivo, Clot perceberá que o desenvolvimento de uma Psicologia dos meios de

trabalho e de vida (na linhagem de Canguilhem) está para além do estudo de um

coletivo independente da atividade, pois sem a existência de um meio genérico no

qual a pessoa se nutra para exercer suas atividades, a pessoa estará lançada à

própria sorte, devendo inventar sempre por si só os meios necessários para realizar

alguma coisa. Assim, não se trata de um estudo das relações humanas no trabalho.

Aliás, do ponto de vista da realização da atividade, isso parece importar menos do

que supõem as organizações; ou mais precisamente, talvez essas relações

humanas sejam mais conseqüências que causas dessas dimensões diretamente

ligadas ao coletivo genérico e a atividade do trabalho. Mas Clot não se detém sobre

essas discussões.

Entre outras coisas, Clot observa que as ações se formam quando irrompem

de um meio saturado de atividades heterogêneas. Este meio povoado de

heterogeneidades, porém, não é externo à ação, mas o próprio meio em que a ação

é possível, ou seja, seu interior. Isso porque o trabalhador está sempre submetido a

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um conjunto de diferentes intenções que lhe são estranhas e estrangeiras, o que lhe

impõem um certo limite no uso de suas próprias intenções e interesses. Nesse

sentido, as ações de qualquer pessoa não podem ser compreendidas apenas a

partir delas mesmas, mas sempre ligadas às atividades, às intenções e às trocas

que essas ações realizam em direção a outras pessoas nos contextos nos quais são

produzidas. Esse meio do qual se nutre e se produz a ação de um trabalhador é o

ambiente genérico da atividade.

O gênero da atividade é, portanto, um substrato de conhecimentos, valores,

regras, discursos, enfim, princípios informais e impessoais que cimentam, organizam

e configuram o meio do qual o trabalhador irá se apropriar para executar as suas

tarefas, permitindo o intercâmbio entre si e os demais companheiros. Mas é também

um pré-trabalhado que permite ao trabalhador apropriar-se desses saberes e

informações coletivizadas para torná-las instrumentos úteis na resolução de suas

próprias tarefas. Isso porque elas recheiam as informações que faltam a cada

trabalhador em particular, dando suporte e orientação para a preparação,

mobilização e disponibilidade de cada um. É esse referencial coletivo que inscreve

os saberes-fazeres das pessoas na história de um coletivo. Esse gênero contém

regras que permitem relacionar os trabalhadores entre si e legislam também a

relação deles com os objetos e instrumentos de trabalho. Porém Clot adverte que

não se trata puramente de regras de ofício, conforme o que compreende ser a

formulação de Damien Cru (como veremos a seguir). Isso porque “D. Cru fala ao

mesmo tempo de regras e de linguagens de ofícios. Portanto, nem tudo é regra.

Esse é o motivo por que conservaremos aqui o conceito de gênero que visa também

a pensar as maneiras sociais de falar e de tocar de um dado meio profissional”

(p.47). O gênero é, pois, um verdadeiro pré-trabalhado que organiza, adianta,

antecipa, dá sentido e valor na relação do trabalhador com o objeto de trabalho, com

o instrumento de trabalho, com o instrumento linguageiro e nas relações com os

colegas: “denomina-se aqui gênero [...] um corpo intermediário entre os sujeitos, um

interposto social situado entre eles, por um lado, e entre eles e o objeto do trabalho,

por outro” (p.41). Ou, conforme um pouco mais adiante: “quanto ao gênero, este

não é senão o sistema aberto das regras impessoais não escritas que definem, num

meio dado, o uso dos objetos e o intercâmbio entre as pessoas; uma forma de

rascunho social que esboça as relações dos homens entre si para agir sobre o

mundo” (p.50).

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O gênero não é, pois, apenas uma história, uma espécie de relato mítico

sobre a ação de gerações passadas. Na verdade, trata-se mais de uma memória

impessoal de um meio de trabalho que se constitui para a atividade pessoal, sem,

porém, determinar a sua ação, mas fornecendo as condições para que a ação de

cada pessoa reverbere e transforme o próprio meio do qual ela se nutre. De fato, “o

gênero pode definir-se como o conjunto das atividades mobilizadas por uma

situação, convocadas por ela. Ele é uma sedimentação e um prolongamento das

atividades conjuntas anteriores e constitui um precedente para a atividade em curso”

(p.44). Aqui é importante ressaltar o papel que as gerações exercem na estruturação

das dimensões genéricas de um meio de trabalho. O gênero inclui, pois, “aquilo que

foi feito outrora pelas gerações de um meio dado, as maneiras pelas quais as

escolhas foram decididas até então nesse meio, as verificações às quais ele

procedeu, os costumes que esse conjunto enfeixa” (p.44). Nesse sentido, o gênero

vai criando uma consistência às invenções e saberes que os trabalhadores

desenvolvem, mas inclui também princípios, regras, linguagens, sentidos que

organizam as relações entre eles e solidifica o sentido de pertencimento a um grupo.

De fato, Clot reconhece que “os gêneros assinalam a pertinência a um grupo e

orientam a ação oferecendo-lhe, fora dela, uma forma social que a ‘re-presenta’,

precede-a, prefigura-a e, por isso, a significa” (p.47).

Enfim, o gênero fornece ao trabalhador instrumentos para lidar, organizar e

controlar parcialmente o real da atividade:

sistema flexível de variantes normativas e de descrições que comportam vários cenários e um jogo de indeterminações que nos diz de que modo agem aqueles com quem trabalhamos, como agir ou deixar de agir em situações precisas; como bem realizar as transações entre colegas de trabalho requeridas pela vida em comum organizada em torno de objetivos de ação (p.50).

Clot mostrará, além disso, que o desenvolvimento do gênero obedece a

princípios de economia da ação, uma vez que evita ao trabalhador ter que recriar a

todo instante as estratégias e saberes para lidar com os vácuos das prescrições

(2000). Quando em situação real, o gênero tornará dispensável certos esforços para

a criação daquilo que já está disponível e pré-trabalhado pelo coletivo. Até porque

Clot argumenta que o desenvolvimento dos gêneros da atividade só é possível por

meio da sua utilização em situações reais. Quando postos à prova da realidade, os

trabalhadores imprimem, nesse pré-trabalhado genérico, informações, inteligências,

competências, valores e sentidos que permitem à dimensão genérica tornar-se apta

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para aquela nova situação. Isso porque o gênero da atividade não é descritivo, mas

apenas referencial e aberto ao desenvolvimento. Da mesma forma, não é temporal,

mas organizador das dimensões do tempo. O uso estilístico desse gênero atualiza,

torna vivo e dinâmico o gênero profissional, permitindo seu desenvolvimento:

O gênero assume sua forma acabada nos traços particulares contingente e únicos que definem cada situação de trabalho vivida. O acabamento do gênero se divide em dois momentos no decorrer da atividade iniciada: a atividade do sujeito que se engaja pressupondo a atividade de outrem, o qual se engaja então fazendo uso do gênero adaptado à situação (p.51).

De uma maneira geral, podemos dizer que o gênero de atividade profissional

sinaliza o exercício cooperativo entre os trabalhadores na criação e recriação de

uma história que se torna instrumental e disponível para o uso de cada trabalhador.

Da mesma forma, podemos dizer que a história de um meio continua se, e somente

se, os homens que o vivem investem o tempo passado nas situações de trabalho

para modificar o tempo futuro, seja seu tempo ou o tempo imemorial do coletivo

(CLOT, 2000). Dessa forma, sem a existência de um gênero, haverá possibilidade

de perda de eficácia da atividade e da organização do trabalho. Clot apontará ainda

que as defesas coletivas emergem exatamente quando não se encontram

referências a um gênero da atividade (2000, 2006). Ou seja, em um meio

profissional, não se abandona jamais a idéia de fracionar as formas de vida em

comum sem conseqüências deletérias para os trabalhadores; a renúncia ao gênero,

por todas as razões que se pode imaginar, é sempre um início de desregramento da

ação individual.

A partir dessas contribuições de Clot, para nós fica no ar a questão: já existe

ou não gênero da atividade no caso dos motoboys? Vimos acima que um conjunto

de saberes vem sendo desenvolvido nessa atividade e que eles são partilhados de

maneira explícita entre os trabalhadores. Porém, não podemos afirmar, ainda, se

essa dimensão genérica está ou não estabilizada, muito embora tenhamos mostrado

sinais nessa direção. Se acrescentarmos, contudo, ao debate sobre o gênero

profissional, as contribuições de Cru (1987a) sobre o coletivo de regras e de Dejours

(2002), sobre os papéis do coletivo na Psicodinâmica do Trabalho, poderemos

compreender com mais consistência as dimensões coletivas em movimento na

atividade de trabalho dos motoboys. A confrontação desses três autores, que

guardam suas divergências teóricas em vários momentos e que serão utilizados

respeitando esses limites teóricos, nos mostrará quais as dimensões coletivas vêm

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sendo produzidas pelo coletivo profissional dos motoboys e quais seus efeitos para

cada trabalhador. Veremos, com isso, que a vivência de prazer, advindo do exercício

da profissão, está diretamente relacionado a aspectos da coletividade do trabalho.

Por outro lado, veremos que a maneira como ela vem se exprimindo pela categoria

aponta para impasses que parecem atravancar o desenvolvimento desse mesmo

coletivo.

O conceito de coletivo de trabalho em Psicodinâmica do Trabalho, especialmente em Cru

Conforme Athayde (1996), foi nos Seminários Interdisciplinares sobre

Psicopatologia do Trabalho, (denominado “Prazer e Sofrimento no Trabalho”), nos

anos de 1986-1987 (portanto antes da proposição de uma outra abordagem,

denominada Psicodinâmica do Trabalho, só informada à comunidade científica em

1993), que as pesquisas de Damien Cru do início dos anos 80 (posteriormente

desenvolvidas por Dejours) vão ser apresentadas e discutidas nos dois primeiros

seminários (DEJOURS, 1988), versando sobre coletivos de trabalho e língua de

ofício, colaborando decisivamente para compreender a construção dos sistemas

defensivos (no tópico seguinte, veremos estes materiais com um pouco mais de

rigor).

Dejours, estudando a maneira como vem se tratando o fenômeno da

subjetividade na perspectiva “organizacional”, sobretudo a partir do uso da idéia de

Recursos Humanos, coloca em análise as abordagens culturalistas e subjetivistas

em torno das idéias de Recursos Humanos e Gestão de Pessoas. A partir dessa

análise, que não cabe no escopo da tese, Dejours apresenta os fundamentos das

dinâmicas subjetivas entre o coletivo de trabalho e o trabalhador individual,

principalmente na constituição de seu prazer e da normalidade, tendo a saúde como

horizonte. Para Dejours, é de tal ordem a relação entre os trabalhadores e o coletivo

que “todo ato técnico e toda atividade de trabalho estão submetidos a uma

regulação pela interação entre as pessoas” (2002, p. 49). Ele explica os motivos a

partir de análise da inventividade operária mobilizada pelo uso astucioso da sua

inteligência da prática, ou inteligência astuciosa, do corpo. Para ele, é por meio da

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mobilização dessa inteligência astuciosa que o trabalhador consegue superar os

limites da prescrição, o que o lança em um mundo paradoxal de liberdade diante das

prescrições e de autonomia em relação aos colegas, mas também de segredo,

perante a hierarquia. Isso porque, uma vez que o uso da inventividade auxilia a

superar os limites da prescrição, ao utilizá-la, os trabalhadores acabam literalmente

desrespeitando as normas e regras.

Dejours se aproxima muito, até aqui, das discussões sobre o risco da

inovação, trazidas por Alter (2001), conforme apontamos acima. Porém, Dejours

distancia-se de Alter em parte porque dá mais importância ao papel da publicização

e julgamento, que se dá entre os pares, do uso da inteligência astuciosa,

transformando-a, através da dinâmica do reconhecimento, em sabedoria prática

(2004c). Para Dejours, a partilha dos macetes para a resolução e enfrentamento dos

problemas evita a fragmentação do coletivo e mantém um sentido de coesão na

equipe, sendo por isso que existe uma grande reação dos trabalhadores contra

atitudes muito individualistas dentro dos coletivos de trabalho. Daí, portanto, que a

engenhosidade do uso dos saberes coletivos deve ser ao mesmo tempo discreta,

evitando a visibilidade para a hierarquia, mas visível para os coletivos: “a visibilidade

é portanto a condição de passagem do estatuto subjetivo da engenhosidade à

objetivação de seus achados. A visibilidade aparece então como um elo teórico

incontornável de toda concepção científica do fator humano” (2002, p. 52).

Essa visibilidade só é sustentável do ponto de vista da confiança entre pares,

pois sem ela não há porque tornar público algo que possa incriminar o ator do

desrespeito às normas. Para Dejours, “a confiança é não somente o requisito da

visibilidade, como também a condição sine qua non da coordenação e cooperação”

(p. 53), pois por meio dela, se deixa de lado momentaneamente as relações de força

entre trabalhadores, bem como coloca em movimento fundamentos éticos que estão

no substrato das relações entre as pessoas.

A confiança e a cooperação, e todo suporte ético que a elas está relacionado,

permitem, também, tornar equânime os julgamentos e avaliações que o outro exerce

sobre a atividade e sobre os usos que cada trabalhador faz da sua inteligência

astuciosa. Esse julgamento, que para Dejours pode ser de “utilidade”, quando

proveniente da hierarquia, ou de “beleza”, quando proveniente dos pares, exerce um

importante papel na constituição de um sentimento de pertença ao ofício: “é a partir

do julgamento de conformidade ao trabalho que o sujeito recebe de volta um

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julgamento sobre aquilo que faz dele um indivíduo como os outros. Esse julgamento

diz respeito então às qualidades comuns ao ego e ao outro” (p.55). Ou seja, se a

ação de um trabalhador mantém em conformidade tanto a execução das tarefas,

quanto a manutenção da circulação das tradições das artes de ofício, em

conformidade com o pertencimento ao coletivo, ele terá acesso ao uso dos mesmos

saberes e princípios de julgamento que os outros fizeram sobre ele. Clot entende

que Cru e Dejours não exploram essa dimensão adequadamente e suficientemente,

daí, como vimos, preferindo agregar ao conceito de coletivo o de gênero profissional.

Entretanto, como vimos, quando um trabalhador põe sua atividade e,

principalmente, sua inteligência astuciosa e transgressões a ela inerentes à prova,

um determinado julgamento coletivo será realizado sobre elas. Quando o julgamento

coletivo desse processo reconhece (mesmo que eventualmente considerando-o

inapropriado, a ser abandonado) o valor e a utilidade desses esforços, dessas

inventividades operatórias, inicia-se aí uma psicodinâmica fundamental na

manutenção da normalidade (na perspectiva de luta pela saúde) e na constituição de

uma determinada subjetividade desse tipo de profissão. O que está em jogo aqui é,

pois, a psicodinâmica do reconhecimento, já abordada acima. O que se destaca

nessa análise de Dejours é que o reconhecimento do coletivo sobre o trabalho de

qualquer profissional se dá antes sobre o reconhecimento do fazer de cada um.

Somente após o reconhecimento desse fazer é que o ser de cada trabalhador passa

a ser aceito como parte de um coletivo. É, assim, por meio do reconhecimento do

engajamento da subjetividade (sempre corporal, é bom lembrarmos) e do uso da

inteligência astuciosa que cada trabalhador coloca em movimento as dinâmicas

subjetivas no trabalho: trabalhar é “fazer funcionar o tecido social e as dinâmicas

intersubjetivas indispensáveis à psicodinâmica do reconhecimento, que [...] é o

caráter necessário em vista da mobilização subjetiva da personalidade e da

inteligência” (p. 58). Este autor retoma essa discussão também em outro texto

(2004b).

Dejours demonstra ainda que a partir do momento em que se torna público

determinada invenção astuciosa, os trabalhadores empregarão um intenso debate

para arbitrar sobre a adoção ou não dessa invenção às tradições coletivas. Essas

arbitragens fazem evoluir as regras do coletivo de trabalho, tornando-as vivas e em

constante consonância com as alterações das prescrições da atividade. Mais uma

vez, Dejours antecipa Clot. Contudo, este o critica como defensivista, daí preferindo

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agregar os conceitos de gênero e estilo, já que para Clot, é o estilo que torna vivo o

gênero do trabalho. Seja como for, tanto um, quanto o outro, demonstram que o

investimento subjetivo na atividade de trabalho só possui seus efeitos se fazem

reverberar o coletivo que julga e se apropria daquilo que cada trabalhador criou a

partir de um movimento dialético de apropriação dos saberes do coletivo. Dejours

chama atenção, porém, que essa dinâmica de arbitragens tem um papel

fundamental porque permite ao coletivo manter evidenciado em que medida as

inventividades vão se imiscuindo às normas do coletivo. Até porque, baseado em

Cru, Dejours reconhece que são as normas que tornam possível a cooperação e a

existência do próprio coletivo.

Dejours chama atenção, nesse texto, ao fato de que não basta a confiança

para sedimentar esse processo identitário do coletivo de trabalho. Para ele, essas

arbitragens, embora não propriamente conscientes, só podem ocorrer com a

existência de um determinado espaço público de deliberação coletiva no meio de

trabalho, onde as pessoas se reconhecem e se compreendem como pares. Isso só é

possível se se observa 3 critérios: a inteligibilidade, ou seja, a capacidade de um

trabalhador conseguir se fazer entender por meio da mobilização e construção de

um corpo linguageiro particular àquele grupo; atenção ao sofrimento no trabalho e a

maneira em que se usa as defesas contra o sofrimento, pois o sofrimento e as

defesas contra o sofrimento podem atravancar a visibilidade das inteligências

astuciosas; e a autenticidade, que é o reconhecimento da paridade entre as pessoas

e que nesse embate todos estão disponíveis a desestabilizar seus conhecimentos,

valores e princípios, ou, em outras palavras, só é autêntico quem se permite

mobilizar, modificar, sensibilizar pela experiência do par.

Diante da análise desse processo de produção do coletivo e de seus efeitos

nas dinâmicas subjetivas do trabalhador, Dejours aponta a importância do coletivo

de trabalho e o processo cooperativo a ele subjacente: é pelo coletivo que

“convergem as contribuições singulares e cristalizam-se as relações de dependência

entre os sujeitos” (2002, p. 97). Indo um pouco além, nessa longa citação abaixo,

Dejours resume o papel que o coletivo de trabalho, movimentado pela cooperação,

joga no mundo do trabalho:

[A cooperação] constitui um todo não-redutível à soma das partes. Em outras palavras, a cooperação permite desempenhos superiores e suplementares em relação à soma dos desempenhos individuais. Permite, em especial, que se assumam erros e falhas humanas singulares. Não implica uma natureza humana ideal, nem sujeitos invulneráveis e perfeitamente competentes. A cooperação

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funciona sem idealização do operado humano [...]. Constitui [...] o nível humano de integração das diferenças entre as pessoas e funciona precisamente como articulação de talentos específicos de cada sujeito. [...] É o nível de conjugação das qualidades singulares e de compensação das falhas singulares. É graças à eficiência do coletivo de trabalho que os ‘erros humanos’ podem ser minimizados. Portanto, a cooperação é fundamentalmente o nível de organização das condutas humanas no trabalho, que reconhece o lugar dos erros individuais, mas permite, pelo jogo cruzado das ações, corrigir ou prevenir um bom número de suas conseqüências no processo de trabalho (p. 97-8)

Em suma, a qualidade e a confiabilidade do trabalho dependem da

cooperação entre os pares e do desenvolvimento do coletivo de trabalho.

Aqui emerge um ponto importante: no texto da tese, usamos inúmeras vezes

o conceito de coletivo de trabalho, mas em nenhum momento o definimos com

propriedade. Para tanto, utilizaremos as contribuições de Cru (1987a), na medida em

que ele nos aponta fenômenos muito importantes em jogo nas dinâmicas e

conformações dos coletivos.

Em primeiro lugar, Cru define precisamente a idéia de coletivo de trabalho:

trata-se, pois, de uma atividade que envolve vários trabalhadores em direção de uma

obra comum no respeito à regra. Ou seja, mais que um grupo de trabalhadores que

partilham algumas tarefas comuns, um coletivo de trabalho se sustenta em alguns

princípios fundamentais:

a) deve partilhar a existência de vários trabalhadores, mesmo que esses

trabalhadores não façam parte da ação concreta em que um

determinado profissional esteja atuando; ou seja, a existência de vários

trabalhadores implica na participação de pares no presente, no

passado ou no futuro;

b) deve existir uma obra comum entre os trabalhadores que os impliquem

em direção à cooperação, à partilha de conhecimentos ou mesmo à

simples troca de idéias; sem algum produto que os catalise, os

trabalhadores são apenas um grupo de trabalhadores que partilham

um mesmo espaço;

c) os trabalhadores devem partilhar uma ou várias regras de ofício. Cru

define com mais precisão as regras de ofício em outro texto (1987b).

Para ele, as regras de ofício são regras partilhadas por todos que se

percebem pertencentes ao coletivo de trabalho. Por outro lado, para

serem eficientes, elas devem ser personalizadas, incorporadas pelas

pessoas. Em contrapartida, os trabalhadores devem implicar-se

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psiquicamente, elaborando-a e incorporando-a como uma regra que é

intimamente sua, mesmo que a partir da modificação de si, para que

somente assim possa tornar-se parte desse coletivo de regras.

Todavia, nesse processo de interiorização, as regras paradoxalmente

deixam de ser pessoais e se tornam de um coletivo, que é tão presente

quanto tão impessoal. A língua de ofício exerce aqui um papel central.

Cru nos aponta, porém, que embora sempre implícitas, as regras

constrangem de maneira muito poderosa aqueles que não se encaixam

ou se envolvem com o coletivo de trabalho; da mesma forma, sem

serem explicitadas, essas regras dão liberdade aos trabalhadores que

aceitam participar do coletivo, pois protegem o trabalhador das

ingerências e arbitrariedades que se manifestam nos meios de

trabalho, ao mesmo tempo em que dá garantias ao trabalhador para

executar suas atividades a seu modo e em seu ritmo (dentro de limites

apontados pela própria regra). Além disso, as regras não são

intransponíveis ou imutáveis. Na verdade, elas operam mais como

referências ou marcos que orientam o trabalhador em sua

renormatização cotidiana dos meios de trabalho. Desse papel mais

referencial e normativo, observa-se que as regras não prevêem

castigos, visto que o próprio não respeito às regras pode conduzir a

situações pouco confortáveis ou perniciosas no exercício da atividade.

Por outro lado, o não respeito continuado às regras implica em

exclusão da pertença ao coletivo. De qualquer modo, mesmo que por

meio de limites referenciais, as regras introduzem sempre uma lei no

trabalho de ofício. Chamamos atenção que as referências ao conceito

de lei são totalmente sustentadas por uma bagagem de tipo

psicanalítico presente neste grupo de Psicopatologia do Trabalho

(grupo AOCIP, cf. ATHAYDE, 1996), que depois tomou o nome de

Psicodinâmica do Trabalho. Nessa mesma base psicanalítica, Cru

demonstra também que as regras introduzem um jogo entre os

trabalhadores, permitindo que as dimensões inconscientes entrem em

ressonância e circulação. De qualquer modo, e o que para nós é o

mais importante, as regras de ofício induzem nos trabalhadores uma

“arte de viver”. Ou seja, um coletivo de regras consolida uma forma,

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uma estética de viver que, mais que normativa, dá sentido e prazer

para o modo de ser produzido naquele ofício. Essa arte de viver diz

respeito, sobretudo, à dimensão do prazer.

d) Cru identifica que um coletivo de trabalho permite um respeito durável

das regras para cada trabalhador, pois cada um tem seu próprio

caminho e tempo para incorporar essas regras. De qualquer maneira, é

sempre importante que as pessoas tenham interiorizado algo dessas

regras de ofício.

Cru demonstra os efeitos do coletivo no trabalho: o coletivo é capaz de

assumir as funções de organizar as pessoas para efetivar a produção da obra

comum, por meio da coesão e da adaptação das pessoas entre si. Da mesma forma,

o coletivo defende as regras contra as ameaças exteriores e interiores a ela. Ou

seja, o coletivo reconstrói as regras, readaptando-as às mudanças de organização,

de instrumento, num esforço de manter sempre uma referência capaz de ser

interiorizada por cada um. Na verdade, por meio dessa defesa da regra, o que o

coletivo defende é mais a capacidade de auto-regulação e de iniciativa entre os

trabalhadores que a regra em si (até porque ela é mutável), pois a iniciativa não é

dada a priori, mas é uma construção que envolve a todos no sentido da construir um

espaço aberto às inventividades individuais e coletivas. Nesse sentido, Cru

demonstra que o oposto de um coletivo não é um indivíduo, mas um grupo sem lei

ou regra, onde se manifestam apenas hierarquia e regulamentação.

Finalmente, Cru dirá que pela pertença que uma pessoa tem a um coletivo, o

trabalhador consegue se diferenciar dos demais mantendo suas características,

seus jeitos de ser, seus humores e suas qualidade, sem ser importunado por tal. Ele

encontrará terreno para desenvolver-se como é, em suas contradições e em suas

singularidades. Em suma, por meio do coletivo, cada trabalhador é incentivado a

assumir a responsabilidade por seu trabalho de uma maneira amparada em um

coletivo que é mais amplo e anterior a ele. Esse apoio é fundamental pela qualidade

e segurança no trabalho.

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O coletivo de motoboys

Apoiamo-nos nesses três autores para definir sobre que dimensões do

coletivo de trabalho estamos tratando neste texto. Se, por um lado, concordamos

com Cru no fato de que as condições para a existência de um coletivo devem ser

encontradas em um meio de trabalho para que tenhamos sua consolidação, por

outro lado estamos de acordo com Clot acerca da idéia de que a dimensão genérica

é mais ampla que um coletivo de regras e coletivo liguageiro, conforme as acepções

de Cru. Além disso, tanto Clot quanto Dejours chamam atenção para o fato de que o

exercício da coletividade requer que um determinado período de tempo, bem como

certa constância nos contatos tenham transcorrido entre pessoas que permanecem

em uma profissão. Por outro lado, a constituição e consolidação de um coletivo

também exigem a incorporação, pelos trabalhadores, de um tempo simbólico que os

permite constituir subjetivamente a idéia de um passado, de um presente e de um

futuro pertinente e possível para a profissão. Esse tempo simbólico demanda dos

trabalhadores um engajamento subjetivo em direção ao investimento em sua ação e

em direção à transformação dos meios de trabalho. Eis um ponto chave que torna a

dimensão coletiva do exercício da atividade extremamente importante do ponto de

vista subjetivo. De qualquer modo, tanto Cru, quanto Dejours e Clot nos dão

indicações valiosas sobre o que procurar para verificarmos a existência, ou não, de

fenômenos coletivos em exercício na profissão. Se Cru nos remete mais às regras

de ofício, Dejours chama mais atenção às dinâmicas de reconhecimento,

considerando a confiança, julgamento e cooperação na base e em torno do coletivo

de trabalhadores. Já Clot define de maneira mais ampla essa dimensão genérica

que, em contrapartida, é também menos explícita ou objetivável, já que se trata de

um verdadeiro coletivo em um ato singularizado. Mais que um saber-sem-se-saber,

a dimensão genérica da atividade é o que torna possível a construção e partilha de

saberes entre os trabalhadores. Esse pré-trabalhado dos trabalhadores é uma

ferramenta que os liga de maneira aparentemente muito “natural” ao exercício da

atividade, mas que, de modo algum, é, de fato, um fenômeno que independe de um

intenso esforço produtivo dos trabalhadores na tentativa de apropriação dos meios

de trabalho. Na verdade, não apenas o gênero profissional, mas também a idéia de

coletivo de trabalho pressupõe um intenso exercício dos trabalhadores na

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construção de um sentido para sua atividade e para sua vida profissional. Assim, as

funções psicológicas do trabalho se amplificam de maneira surpreendente porque o

trabalhador, por meio do fruto de sua atividade, não apenas renormatiza os meios de

trabalho, mas produz também um coletivo neste meio da atividade. Esse coletivo irá

suportar, tolerar e cooperar com o trabalhador para tornar viável a execução da

atividade, bem como auxiliará o profissional a extrair do exercício dessa atividade, os

benefícios mais profundos para (e da) sua vida profissional.

Para identificar a maneira como se manifestam e se organizam esses

coletivos, é importante observar alguns sinais entre os trabalhadores: a existência de

linguagens comuns, de discursos partilhados, de saberes constituídos, formalizados

e espalhados entre os trabalhadores, a proximidade entre os modos de encarar a

vida, a proliferação de engajamentos subjetivos e a explicitação de prazeres,

sobretudo perante aquilo que Cru denomina de “arte de viver”. É portando esse

conjunto de princípios que, diante do exposto, temos agora condição de responder à

primeira etapa da questão central desse texto: analisar a maneira como vem se

constituindo o coletivo de trabalho dos motoboys.

No capítulo 4 discutimos a maneira como a experiência dos motoboys

constituiu um corpo de saberes que os auxilia na execução das suas tarefas.

Gastamos tempo suficiente naquele capítulo, e no capítulo seguinte, inventariando

esses conhecimentos que se aprendem com o tempo por meio da própria

experiência, mas também por meio de contatos cotidianos dos trabalhadores com

seus pares. Naquele momento, ainda não tínhamos definido propriamente o que

seriam essas dimensões coletivas e genéricas do trabalho. De qualquer modo,

sugerimos ali, em mais de uma ocasião, que esses saberes eram constituídos pelo

grupo a partir das trocas e das observações da atividade entre pares. Mostramos,

além disso, que alguns dos saberes eram fundamentalmente voltados para as

dimensões coletivas da atividade, tais como a capacidade de mobilização da rede

solidária, enquanto outros eram mais individuais, tais como os modos de pilotagem.

Entre um e outro extremo do alvo a que se dirigiam esses saberes instrumentais,

mostramos que os trabalhadores partilhavam desde simples dicas e macetes, até

diretrizes complexas sobre os modos de gerenciamento do tempo e da rota.

Podemos concluir, a partir de tudo o que discutimos até então, que os trabalhadores

partilham valores e discursos em comum, além dos saberes e das defesas coletivas.

Por exemplo, se lembrarmos que pelo menos para um determinado grupo de

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trabalhadores a noção do que seja um bom motoboy é uma idéia bastante corrente

entre os trabalhadores, podemos sugerir que os valores que estão subjacentes a

essa idéia sejam igualmente partilhados entre eles. Isso porque, ao se compartilhar

saberes que instrumentalizam os trabalhadores na direção desse patamar idealizado

de trabalho, se partilha também determinados valores sobre o trabalho e sobre a

vida – que torna coerente esses saberes coletivos – e determinados modelos de ser,

permitindo inaugurar coletivamente referências e diretrizes que auxiliam aos

trabalhadores a se posicionar diante das inúmeras encruzilhadas que se formam ao

longo dos processos de renormatização do meio.

No que tange à coletivização de um sistema linguajeiro coletivo ao grupo de

motoboys, mostramos desde o capítulo 3 que alguns discursos e termos particulares

aos motoboys são construídos e utilizados de maneira muito generalizada. Termos

como desembolar, desenrolar, letra, acelerar, adrenalina, entre outros, bem como

um determinado modo de dizer as coisas entre os colegas – muita piada e gozação,

por exemplo –, mas também o uso muito intenso do corpo para explicar as coisas,

além da capacidade (ou necessidade) de utilização de uma linguagem muito

instrumental; enfim, tudo isso são outros indícios fortes da existência de um coletivo

de trabalho e de um gênero do trabalho que está em pleno engendramento. E os

indícios não param aí.

No capítulo 5 mostramos que as dimensões do risco, em toda a sua

complexidade ou paradoxos, envolvem os trabalhadores em um engajamento muito

forte na busca de sustentação de um discurso sobre a atividade, principalmente

amparado na idéia de uma virilidade111 que, baseados em Dejours (1999), naquele

momento definimos como estratégia coletiva do cinismo viril. Vimos um pouco acima

que Clot sugere que é a falta de uma dimensão genérica que provoca a emergência

111 Talvez seja por esse discurso que se discrimina tanto as mulheres entre os motoboys. Essa discriminação não é sempre explícita. Certa vez um trabalhador contava-nos que tinha trabalhado em um local em que havia uma garota e que ela nunca havia se acidentado, enquanto que todos os outros trabalhadores já haviam sofrido acidentes. Contava-nos acreditando estar valorizando a qualidade feminina na condução e no exercício da profissão. Porém, um pouco depois, e sem perceber, esse mesmo trabalhador relatara que essa mesma menina nunca pegava serviços urgentes ou muito complicados. Ele não explicitara, em nenhum momento, que estava justificando para nós as razões da trabalhadora ter passado incólume por tanto tempo. Porém, não podemos deixar de pensar que essa “justificativa” se tratava de um esforço, mais para si do que para nós, para tornar o fato coerente com os discursivos defensivos utilizados pela categoria. Em uma outra situação, um motoboy nos contava que não gostava de ver mulheres pilotando, não porque não acreditava na capacidade delas para tal. Mas, como acreditava que um motoboy inevitavelmente irá cair algum dia, para ele as mulheres sofreriam mais com a queda do que os homens. Disse isso e logo após relatara um caso em que vira uma motogirl colidindo com um veículo e batendo fortemente na divisória entre pistas de uma avenida. Disse que se sentira muito pior vendo aquela cena que quando presencia um profissional masculino. Os discursos da virilidade são, claramente, machistas.

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de defesas coletivas, sobretudo as de caráter ideológico. Não discordamos de Clot,

até porque não utilizamos exatamente do método proposto pela Psicodinâmica do

Trabalho (2004a) para podermos afirmar que esses discursos de virilidade operam,

no coletivo, como verdadeiras defesas coletivas. Por outro lado, acreditamos que a

complexidade e periculosidade de uma situação de trabalho como a dos motoboys

não nos permite distinguir esses processos como completamente antagônicos. Em

outras palavras, como os motoboys estão sujeitos a riscos que ultrapassam

enormemente as condições que têm de evitá-los totalmente por meios unicamente

próprios a eles, não podemos deixar de supor a existência de algumas defesas

coletivas que convivem, até um determinado limite, com saberes de prudência.

Estes, por sua vez, fornecem alguma instrumentação que permita ao trabalhador

executar suas atividades com segurança, a despeito dos limites da amplitude de

suas eficácias.

Além disso, no caso dos motoboys, a existência de um discurso partilhado e

sustentado sobre uma lógica de virilidade reforça a idéia de que existe um esforço

coletivo da categoria em direção à defesa do próprio coletivo. E mesmo que

consideremos que o discurso da virilidade em geral fortalece os valores do

individualismo, pois geralmente se diz de quem se acidenta como aquele que

“vacilou” (isso quando não se pode culpabilizar outros motoristas), os trabalhadores

tentarão, a todo custo, proteger essa cultura da coragem e da ousadia como algo

importante para se manter. Assim, quando um trabalhador diz que conseguiu fazer

tal ou qual no trânsito, ou que resolvera tal ou qual serviço em tanto tempo, enfim, o

que ele está tentando dizer é que, por suas condições, e pelos macetes que o grupo

bem sabe quais são, ele é capaz de executar suas tarefas, vencendo os inúmeros

contratempos a que os profissionais dessa ocupação estão submetidos. Tudo isso

sinaliza um esforço de manutenção do discurso da virilidade pela categoria.

Todavia, mostramos também no capítulo 5 que o discurso da virilidade não é

igualmente distribuído na categoria, sendo mais partilhado por determinados

motoboys que parecem apropriar-se desses valores, enquanto outros parecem

partilhar valores um pouco diferentes. Estes, aparentemente mais velhos e com mais

tempo de profissão, parecem se dedicar mais à valorização de um discurso de

eficiência e de defesa do profissionalismo da categoria. De qualquer modo, esse

embate não é tão contraditório assim. As pessoas que incorporam um ou outro

discurso convivem e trabalham de maneira relativamente amistosa entre si.

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361

Podemos supor, inclusive, que essa diferença de apropriação discursiva, e que é

reforçada pelo estilo que cada um conduz suas motos, não só supõe um coletivo em

vias de estabilização, como supõe uma riqueza e uma vitalidade na produção desse

coletivo.

Aliás, longe de ser uma mera compilação de saberes, competências e

discursos, o que tentamos mostrar nos capítulos 3, 4 e 5 é que diante das condições

do meio e da organização do trabalho que são extremamente precários, os

trabalhadores vêm produzindo vias de escape e formas de renormatização dos

meios de trabalho que são complexas e bastante criativas. Destaca-se, nesse

processo, que esses saberes e discursos são sempre, ou quase sempre, amparados

em suportes coletivos. Com isso, não fica difícil identificar claramente nesses

suportes indícios de dimensões genéricas em exercício. Entretanto, poderíamos

supor que o tempo para que gerações e gerações tenham solidificado um conjunto

sustentável e eficaz de saberes, discursos, idéias, valores, instrumentalizações dos

meios de trabalho, etc., tenha sido insuficiente para a consolidação do gênero

profissional. Por outro lado, como o trabalho dos motoboys parece ter surgido

agregando valores e saberes anteriores a seu surgimento, não podemos ignorar a

possibilidade que na raiz desse gênero profissional esteja aquele velho “bando” de

motoqueiros que fora outrora (e ainda é) tão valorizado entre jovens de determinada

classe social e região do país. Eis aí, aliás, um outro campo de investigação histórica

a se realizar: será, pois, que na base de gêneros profissionais se incorporam

saberes oriundos de outros gêneros? No que tange ao trabalho dos motoboys,

parece que a resposta a essa questão é afirmativa.

Um outro aspecto que parece importante para a compreensão da maneira

como o coletivo de motoboys vem se apresentando diz respeito à existência ou não

das regras do coletivo de trabalho, conforme sugere Cru. Antes de qualquer coisa,

em nossa pesquisa nós não nos detivemos a identificar essas regras de ofício, razão

pela qual não lhes dedicamos nenhum tópico em particular. Até porque, ao início da

pesquisa, supúnhamos que, por razões já explicitadas, o trabalho dos motoboys não

constituía propriamente um ofício. Mas, com o tempo de investigação, algumas

regras de organização dos coletivos de trabalhadores puderam se fazer observar.

Por hora, identificamos duas, devendo sua mais investigação mais detalhada ficar

para um outro momento.

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A primeira, a qual já abordamos, diz respeito à maneira como se deve

gerenciar as transgressões neste trabalho. Além de saber como e quando se

transgredir, mostramos que o trabalhador deve observar alguns limites estabelecidos

pelo coletivo para garantir que todos possam se utilizar das transgressões quando

necessário. Esse limite, que não é explícito, ampara-se em uma idéia de bom-senso

que o trabalhador vai ter que perceber por meio da observação ou por meio da

repreensão de colegas, conforme demonstramos acima. Essa regra se torna,

portanto, uma referência que permite ao coletivo uma importante estruturação das

margens que são toleráveis para a realização de transgressões no curso da

atividade.

Uma outra pista que observamos, nos sugerindo uma regra de ofício, diz

respeito à maneira como o trabalhador se posiciona no trânsito. Semelhante ao que

Cru identifica na construção civil entre os talhadores de pedra como a “regra da

passagem livre” (1987b), nos parece que entre os motoboys, uma regra desse tipo

também está em exercício. Durante as filmagens para a autoconfrontação pudemos

observar duas situações em que essa regra parece ter se manifestado de maneira

explícita. A primeira situação dizia respeito à maneira como se organiza o fluxo entre

os trabalhadores dentro dos corredores de automóveis. Essa discussão pôde ser

deflagrada quando um dos motoboys filmados dera passagem ao ouvir a buzinada

de um outro que estava com mais pressa que ele. Na discussão sobre esse fato,

usando as imagens, o trabalhador deixou claro a importância em se abrir espaço

para o colega que está com pressa. Dizia que isso é uma prática muito comum entre

eles, pois eles reconhecem a importância da “acelerada” do companheiro. Quando

um motoboy que está atrás de outro buzina pedindo passagem, o da frente só pode

fazer duas coisas: ou sair da frente, se não estiver tão apertado assim, ou acelerar,

se ele também estiver com alguma urgência para resolver. O motoboy nos alegara

que se o motociclista da frente for um motoboy, ele sempre toma uma das duas

opções. Outros motoboys nos disseram que esse hábito, que por hora tomamos

denominamos também de regra da livre passagem, pode se transformar em uma

espécie de jogo que alguns chegam a praticar: quando alguém pede passagem,

buzinando para sair da frente, se instala ali uma verdadeira disputa para ver quem

consegue ir mais rápido. Esse mecanismo, que se dá em torno da disputa entre os

trabalhadores e que certamente se sustenta na idéia da virilidade – uma espécie de

disputa para ver “quem pode mais” – talvez possa ser útil também como um

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instrumento para aliviar ou extravasar um pouco as tensões adquiridas ao longo da

jornada de trabalho. Mesmo que alguns trabalhadores chegassem a dizer que

“ficava louco quando alguém passava na minha frente”, essa prática parece tornar o

trabalho mais tolerável e prazeroso, mesmo que com isso se incrementasse o risco

de acidentes. Essa prática nos remete ainda mais às idéias de Dejours sobre

defesas coletivas (1992). De qualquer maneira, mesmo que somente alguns mais

“loucos” entrem nesse tipo de jogo, parece que essa regra da livre passagem se

manifesta muito ativamente entre os motoboys.

Um outro fenômeno que reforça essa idéia da regra da livre passagem diz

respeito ao momento em que esse mesmo trabalhador registrado na imagem usada

para autoconfrontação quis estacionar sua moto, ao lado de outras, em um local

específico para motos. Após uma séria de tentativas infrutíferas para estacionar a

moto no local devido, o motoboy acaba se manifestando, durante a filmagem e

durante a entrevista, muito contrário à atitude dos outros motoqueiros, que

estacionaram suas motos de modo a impedir que o motoboy pudesse parar no local

permitido para motos. Na entrevista, ele argumenta que aquelas motos não eram de

motoboy, pois o tipo de moto não era comum entre os motoboys, além de que

nenhuma possuía baú. Além disso, dizia que em geral os motoboys também

respeitam o limite dos colegas, guardando sempre o espaço para que mais motos

possam aproveitar dos poucos espaços específicos para motos na cidade. Por outro

lado, se um motoboy não o faz como deve, ocupando uma vaga

desnecessariamente, ele diz que sempre aparece um outro motoboy que fará

alguma coisa em sua moto para retardar esse motoboy desatento, como que um

aviso “para o cara acordar para a vida” e deixar de ser desatento: “você não estava

com pressa? Agora você vai perder mais tempo aí”. Diz que, embora aconteçam, em

geral os “toques” que são dados não envolvem prejuízo financeiro (como quebrar a

seta), sendo mais comum o outro motoboy tirar a vela do lugar, ou mexer na correia

para que esse motoboy passe um pouco de sufoco e perca um certo tempo tentando

resolver o problema. Segundo nosso entrevistado, esse gesto é menos uma punição

que um “toque” que um motoboy dá no motoboy desavisado: “duvido que da próxima

vez ele ocupará duas vagas, no lugar de uma”, é o que dizia.

Talvez possamos dizer que o nome mais apropriado para essa regra da livre

passagem seja “não retardar o colega”, pois o que está em jogo é menos a

passagem em si que o atraso para execução das tarefas. De qualquer modo, há que

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se investigar mais apropriadamente esta e outras regras para que as dinâmicas

coletivas em exercício possam ser compreendidas em maior profundidade. Seja

como for, a identificação dessas duas regras já nos indica outros aspectos que

parecem apontar para um coletivo de trabalho e um gênero profissional em plena

atividade entre os motoboys.

Chegamos, enfim, na idéia de que o coletivo de trabalho exerce um papel

fundamental nos processos trabalho, saúde e subjetivação no caso desses

trabalhadores. Entre outras coisas, Cru alega um importante papel que o coletivo de

trabalho exerce na produção de uma “arte de viver”. No tópico anterior, onde

discutíamos o processo de produção da profissão e do profissional motoboy,

mostramos como o trabalhador aprende a ser motoboy, da mesma forma que

aprende a gostar do que essa profissão oferece. Eis aqui um ponto chave para nós.

Parece que a aprendizagem do trabalho envolve muito mais que a mera

aprendizagem dos complexos saberes disponíveis pelo coletivo. Além das regras,

dos discursos, dos valores, o que nos parece mais importante do ponto de vista

psicológico é que, com o tempo, o trabalhador vai aprendendo uma “arte de viver”,

ou mais propriamente, uma “arte de ser” motoboy. Nos parece que, se o ingresso na

profissão inicialmente prescinde de um grande investimento subjetivo e no suporte

coletivo em torno do trabalho, a permanência na ocupação está diretamente

relacionada à assunção dessa arte de viver como legítima e possível para se viver.

Por meio dessa assunção, o trabalhador se engaja numa atividade. Mas, mais que

isso: engaja-se em um coletivo que o auxilia a tornar sua vida dentro de uma

determinada “normalidade” partilhada por aquele grupo. Cru exemplifica que, no

caso dos talhadores de pedra, viver essa arte de ser talhador de pedra pressupõe ou

torna comum os encontros fora dos locais de trabalho: os trabalhadores faziam

churrascos ou idas a bares. Alguns dos motoboys que estudamos também partilham

de momentos comuns fora do trabalho: o futebol é o principal ponto de encontro,

mas outros, embora em menor número, participam de motos-clube ou simplesmente

se encontram nos bares e quadras dos bairros em que moram. Seja como for, para

nós, a idéia de arte de viver diz mais respeito à idéia de que um trabalhador

esteticamente se esforça para tornar um determinado produto de sua atividade como

uma produção que tem veia de “arte”, ou, em outras palavras, que seja “bonita” aos

seus olhos ou aos dos colegas, aproveitando a idéia de Dejours sobre “julgamento

de beleza”. Como vimos acima, os motoboys dizem com muito orgulho que

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conseguem fazer proezas para executar suas tarefas, sobretudo quando elas

envolvem o “desembolar” as tarefas que estão deveras complicadas. Eis aí um

momento em que se manifesta a apropriação de uma arte de viver motoboy. Talvez

agora fique mais clara para nós uma cena que nos surpreendera enormemente no

momento em que a presenciamos: um motoboy cruzara por nosso carro de maneira

muito veloz, enquanto inclinava seu corpo para um lado e para o outro, como um

joão-bobo, fazendo sua moto balançar demais. Parecia que estava brincando, mas

na hora achávamos que não precisava desse tipo de comportamento, estava

extrapolando. Porém, hoje, munidos de nossas análises e discussões, talvez

possamos suspeitar que aquele comportamento do motoboy tenha sido uma

tentativa de manifestar seu estado de espírito após a realização de algum tipo de

serviço que deveria estar muito difícil. Seria possível que ele também estive se

sentindo naquele momento, como dizia nosso motoboy, “que nem criança”? Nunca o

poderemos saber. Seja como for, por meio da compreensão desse fenômeno

identificado por Cru, fica claro que o prazer da profissão está relacionado a uma arte

de viver que aos poucos se consolida e se torna uma verdadeira forma de ser, ou

mais precisamente, um modo de subjetivação. Assim, se ainda é cedo para

dizermos que a profissão dos motoboys é um ofício, no sentido estrito da palavra,

não podemos negar que há um exercício coletivo nessa direção.

Por outro lado, um importante fator que parece colocar em cheque a

pertinência ou a potência do coletivo entre os motoboys se trata do seguinte: no

capítulo 4, quando discutíamos acerca dos saberes em torno da mobilização da rede

solidária, tentamos demonstrar como a idéia da confiança exerce um papel muito

importante para o grupo de trabalhadores, sobretudo na constituição dessa rede

solidária. Faz-se necessário registrar que essa rede solidária não é idêntica à noção

de coletivo de trabalho (talvez possamos dizer que se trata de uma das

configurações do coletivo de trabalho), visto que a rede solidária envolve um

conjunto de pessoas que, presentes no meio da atividade, tornam possível sua

execução de maneira mais eficaz e eficiente; já o coletivo de trabalho refere-se mais

propriamente aos pares. De qualquer modo, a partir dessa idéia de rede solidária, ou

de uma entidade coletiva relativamente pertinente (SCHWARTZ; DURRIVE, 2007),

podemos observar possíveis diferenciações entre a maneira como se constrói (ou

não) coletivos de trabalho e gênero profissional na profissão de motoboy.

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Concordando com Dejours acerca da idéia de que a confiança é um dos

principais elementos para a construção de um ambiente propício onde o coletivo

possa emergir, e considerando que a decisiva cooperação entre os trabalhadores é

um dos reflexos imediatos desse coletivo construído, veremos que no caso dos

motoboys as dimensões coletivas parecem ser, de certa forma, independentes da

existência desses laços e sentimentos subjetivos. Isso por duas razões: em primeiro

lugar, essa atividade nunca, ou quase nunca, é exercida coletivamente. Existem

inúmeras empresas que possuem apenas um motoboy e muito comumente esses

trabalhadores passam muito mais tempo nas ruas que os de empresas que possuem

mais de um trabalhador realizando serviços de entrega por motocicleta. Assim, é

bastante provável que os trabalhadores dessas empresas tenham uma oportunidade

menor de partilhar valores, discursos e saberes de uma maneira sistemática com

outros trabalhadores da categoria. Mas, mesmo assim, isso não parece impedir

totalmente a partilha de saberes comuns entre esses profissionais, a despeito do

tempo que passam isolados de seus pares. Em segundo lugar, vimos no capítulo 4

como a questão da confiança em torno da categoria é colocada em cheque de

maneira muito corrente entre os motoboys, tornando mais difícil a generalização de

algumas práticas de transgressão, sobretudo aquelas que envolvem recursos

financeiros. Nesse sentido, se o papel que a confiança exerce na constituição de um

coletivo de trabalho pode estar indicando, no caso dos motoboys, um ligeiro

afrouxamento dos laços de solidariedade e cooperação, por outro lado, as

dimensões genéricas, conforme apontadas por Clot, parecem não sofrer um impacto

tão excessivo desses mecanismos de confiança e cooperação. Daí, então, que

independente da existência de coletivos para o exercício da atividade, nos parece

inquestionável a construção de um gênero profissional em curso. Daí que, em parte,

esse conceito parece ser mais apropriado para explicar como esses conhecimentos

se alastram por entre os trabalhadores. Mas não é apenas a confiança que se

mostra um fenômeno prejudicial ao exercício da produção de um coletivo de trabalho

e de um gênero profissional. Veremos logo abaixo que uma certa individualização na

atividade dos motoboys pode ser também um outro desafio importante a se vencer

para a consolidação do papel do coletivo e do gênero de motoboys.

De qualquer forma, pelas razões acima mencionadas, podemos afirmar que,

ao problema central desse trabalho (analisar a maneira como vem se constituindo o

coletivo de trabalho dos motoboys), temos condição de responder, de uma maneira

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bastante peremptória, que ela se processa de maneira muito profusa, diversificada e

em vias de solidificação; pelo menos no que tange ao município de Vitória.

Acreditamos, contudo, que em cidades maiores e onde a atividade é mais antiga,

análises semelhantes devam estar sendo realizadas, permitindo que mais adiante

possamos ter uma concepção mais rigorosa e generalizante sobre o assunto.

Entretanto, “nem tudo são flores” acerca da realidade do coletivo de trabalho

dos motoboys, como se diria por meio de um velho ditado popular. Tanto por causa

das dinâmicas da confiança entre esses trabalhadores, quanto por causa de um

grande individualismo aí presente, tudo isso aponta para a redução da potência, do

vigor e da abrangência desse coletivo. Além disso, dissemos há pouco que mesmo

com um coletivo em vias de solidificação, ainda é grande a quantidade de acidentes,

principalmente porque as condições de trabalho estão ainda muito distantes de se

tornarem salutares. Nesse sentido, é mais que justificável questionar os limites da

força desse coletivo ou a real eficácia do coletivo de trabalho e do gênero

profissional dos motoboys, sobretudo em face a uma condição de intensa

precarização e degradação do trabalho, como no trabalho de motoboys. É por isso

que, sem nos deter por demais nesse debate, faz-se necessário destacar no próximo

tópico alguns indícios que nos apontam entraves para a solidificação e

potencialização do coletivo do trabalho, sobretudo em direção à qualidade de vida e

à segurança pessoal e coletiva no exercício da atividade. Veremos, assim, que a

despeito da constituição de um coletivo e de um gênero, os trabalhadores enfrentam

alguns obstáculos que devem ser ultrapassados para que toda a vantagem oferecida

por esses mecanismos possa ser absorvida em sua máxima potência.

Entraves para o coletivo

Dejours, ao discutir a necessidade de publicização da inventividade operária

(em um espaço público interno nas empresas), chama atenção para a resistência

que os trabalhadores de um ofício têm às atitudes individualistas no meio de

trabalho. O “cada um por si” dos trabalhadores é combatido às vezes com muita

radicalidade. Vimos, porém, que o individualismo na atividade dos motoboys parece

ser mais forte do que se poderia esperar de um trabalho de ofício. Tanto do ponto de

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vista do próprio discurso da virilidade, que reforça parcialmente o valor do indivíduo,

quanto do ponto de vista da realização muito individualizada das atividades, além do

fato de que parte importante da categoria não tenha a oportunidade de encontrar um

grupo de motoboys de maneira muito sistemática, tudo isso compõe um cenário em

que as ações individuais acabam tomando mais força do que alguns motoboys

gostariam. Não parece muito fantasioso observarmos que, a partir de Cru, podemos

até supor que o ingresso em um coletivo de trabalho permite certa margem de

individualismo ou, mais propriamente, singularidade. Isso porque na medida em que

alguém faça parte de um comum, as suas características individuais se tornam mais

toleradas pelo grupo. O problema é que, no caso dos motoboys, o individualismo

parece reduzir em parte a potência do coletivo, principalmente na sua capacidade de

mobilização como forma de luta política. Aliás, em uma atividade em grupo que

desenvolvemos com cerca de 50 trabalhadores para mobilizar análises sobre o

trabalho, uma crítica ferrenha ao individualismo tomou parte importante do debate.

Alguns motoboys chegaram mesmo a duvidar da existência da tão propalada

solidariedade entre pares diante de acidentes envolvendo motoboys. Ou seja, a

crítica feroz ao individualismo dos trabalhadores da categoria parece proporcional à

força com que esse individualismo se manifesta para eles. E curiosamente, mesmo

que alguns saberes sejam construídos e partilhados pelo coletivo, o individualismo

parece tornar essas conquistas sempre muito pessoais. Nesse sentido, fica claro

porque a confiança necessária para se mobilizar a rede solidária não é geral, mas

restrita apenas a um grupo próximo ao trabalhador.

O individualismo parece estar envolvido, também, nas dificuldades de

mobilização da categoria em direção a uma luta por melhores condições coletivas de

trabalho. Como já dito, vimos observando algumas manifestações de trabalhadores

em relação a um desejo de transformação das condições de trabalho da profissão.

Por outro lado, nos parece que essas manifestações se tornam mais expressivas

somente quando elas atingem a cada um dos trabalhadores, como no caso do

aumento do DPVAT. No caso do número elevado de acidentes entre motoboys,

como eles não acontecem todos ao mesmo tempo, parece que a tolerância (ou

impotência?) produzida pelo individualismo não é suficiente para romper sua inércia.

Sobre a questão dos acidentes, temos indícios de que outros aspectos também

estão envolvidos na manutenção de seus altos índices, mesmo se pressupondo a

existência da partilha de saberes de prudência entre os trabalhadores.

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Uma outra razão que explica o individualismo, mas que também ajuda a

esclarecer porque a força do coletivo é relativamente limitada, diz respeito à

facilidade com que se entra na profissão. Os trabalhadores mais velhos talvez

critiquem os mais novos exatamente porque, como se trata de uma profissão de

“porta aberta”, ou seja, de acesso mais facilitado em comparação com outras que

exigem um mínimo de pré-requisitos (e que acarretam em relativo limite aos

potenciais candidatos), os efeitos do coletivo dos motoboys vão sendo minimizados

pela quantidade de novos integrantes que já entram realizando atividades e serviços

a despeito do que se produz e se partilha entre os pares. Essa crença de que se

pode realizar o serviço independente de conhecimentos prévios acaba tornando a

atividade dos motoboys mais recheada de valores pessoais e de individualidades

dos que o tempo necessário para que os novatos se apropriem das dinâmicas e do

gênero coletivo. Em suma, o ingresso continuado de novos profissionais nas fileiras

da profissão, sem passar por qualquer tipo de treinamento ou “iniciação112”

profissional, impõe limites para a construção de uma dimensão coletiva que, como

vimos em Cru, Dejours e Clot, requer tempo, tradição e gerações.

Outro aspecto importante em relação aos limites da coletividade no trânsito

pode estar relacionado ao fato de que as dimensões do coletivo de trabalho

parecem criar muito mais referências para as dinâmicas de execução das tarefas

que propriamente sistemas de proteção para os modos de pilotagem. Como a

pilotagem se dá sempre de uma maneira muito individual, como se cada um fosse

lançado para a batalha para cumprir sua missão113, a influência do coletivo encontra

aí limites importantes. Nesse momento do trânsito, o “cada um por si” criticado pelos

trabalhadores talvez acabe por se manifestar mais como um “ter que me virar para

garantir minha sobrevivência”. Dessa forma, é exatamente no momento em que

talvez mais se precisasse de um suporte coletivo em direção à defesa e proteção da

segurança do trabalhador que o coletivo se vê impotente diante das especificidades

de um trânsito pernicioso e individualista. Eis um outro aspecto a se investigar mais

apropriadamente.

112 Em torno dessa idéia de iniciação, estamos nos referindo a um movimento coletivo que visa introduzir o trabalhador, mesmo que de maneira tácita, nas dinâmicas coletivas da atividade, em toda a sua complexidade: as pessoas que dela fazem parte, os grupos existentes, as várias possibilidades de posicionamento em jogo na profissão, entre outros. 113 Uma semelhança desse discurso da guerra, da batalha, com aos encontrados por Figueiredo e Athayde entre os mergulhadores de águas profundas (2004), não são meras coincidências.

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370

Como vimos, o individualismo parece impactar, também, na cooperação, pois,

por causa do individualismo, as dinâmicas da confiança limitam o exercício de

solidariedade entre os trabalhadores. Até porque, como o trabalho dos motoboys

pode ser razoavelmente realizado sem o auxílio direto de uma outra pessoa, a

cooperação é geralmente requerida por alguém em situações em que alguma coisa

muito importante está em jogo: um determinado serviço ou um problema enfrentado

pelo trabalhador. Nesse momento, a necessidade de confiar é muito maior, pois os

riscos são também maiores. Assim, por causa de uma rede coletiva não consolidada

e uma rotatividade muito grande, o que está em jogo é também o limite da

cooperação. Não dizemos aqui que não há cooperação entre os trabalhadores.

Argumentamos apenas que essa cooperação encontra limites com os impedimentos

do coletivo.

Há, contudo, nesses limites da coletividade alguns fenômenos que são mais

estruturais. Durante o capítulo 3, mas também no capítulo 4, tentamos mostrar que

as diferenças entre tipos de serviços são, em algumas situações, tão grandes que

tornam factível o questionamento se se trata apenas de uma profissão ou de várias

profissões distintas em uma única família ocupacional, tal como as profissões de

pedreiro, assistente de pedreiro, mestre de obras e carpinteiro compõe a família dos

profissionais da construção civil. Por hora, ainda não temos razões suficientes para

distinguir os diversos trabalhadores do setor de motofrete como profissões distintas.

Na verdade, é nossa opinião que as semelhanças são maiores que as diferenças e

os trabalhadores incorporam esses diversos tipos de serviços como manifestações

distintas de uma única profissão. De qualquer maneira, talvez as inúmeras

diferenças existentes entre os trabalhadores dos diferentes setores nos falem mais

da existência de, não apenas um coletivo, mas, mais propriamente, de um coletivo

de coletivos. Na medida em que um coletivo de trabalho requer inúmeros aspectos

em comum em exercício na atividade, os coletivos dos motoboys tenderiam a se

formar mais em torno dos serviços e não tão profundamente entre um sentido mais

geral (e por que não, abstrato?) do que se chama genericamente de motoboy. Há

aqui, contudo, uma discussão que nos remete novamente a um debate teórico já

anunciado: será que o coletivo de trabalho diz respeito exatamente à mesma escala

de agrupamento de profissionais de que se trata o gênero do coletivo? Essa

resposta não está dada pelos textos de Cru ou Clot. Entretanto, se observarmos o

que Jouanneaux (1999) nos diz sobre as diferenças entre um aspecto mais geral da

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profissão piloto de linha, que ele denomina de cultura profissional – e que se remete

exatamente ao que Clot chama de gênero da atividade profissional –, e as

dimensões mais particulares de cada empresa de aviação, mais comumente

definidas como cultura organizacional, somos levados a pensar que o coletivo de

trabalho diz mais respeito a uma dimensão particular, e talvez atualizada, de um

gênero da profissão, que é mais impessoal e mais atemporal que aquele. Nesse

sentido, haveria um gênero profissional dos motoboys que se atualizariam

cotidianamente em torno de coletivos de trabalhadores de setores específicos da

profissão. Ou seja, o gênero seria uma espécie de coletivo de coletivos dos

motoboys. Por outro lado, se retomarmos as idéias de Cru acerca da arte de viver,

veremos que os motoboys parecem partilhar, não na mesma estatura, de uma

mesma arte de viver que é muito particular desses profissionais e que se alastra de

maneira semelhante por entre os trabalhadores dos diversos tipos de serviço de

entrega de motoboy.

Com tudo isso, somos levados a observar que a riqueza de fenômenos em

torno das experiências de ser motoboys, incluindo aí as diferenças de serviços em

jogo, não são um problema em si para os trabalhadores. O coletivo de coletivos

parece se manifestar, de uma forma ou de outra, como um exercício exploratório e

produtivo da renormatização dos meios de trabalho. Entretanto, a diversificação

exacerbada pode significar um problema mais crucial: o excesso de oportunidades

para o trabalho pode alargar por demais a rede de coletivos, tornando-a cada vez

mais frágil, porém mais rara e menos alinhavada entre seus nós. Eis aí um desafio à

solidificação desse coletivo de coletivos: por quanto tempo mais conseguiremos

identificar um trabalhador do setor de transporte de documentos se sensibilizando

com as questões vividas por um trabalhador do setor de autopeças?

A distância dos coletivos entre si pode indicar, também, a falta de espaços

para discussões coletivas sobre a atividade ou simplesmente para os momentos de

julgamento sobre as inteligências astuciosas em ato. Dejours sugere (2002) que a

existência de um espaço de arbitragem entre os trabalhadores é fundamental para

que eles possam realizar os julgamentos e avaliações sobre o trabalho e o uso da

inteligência astuciosa por outrem. Esse espaço é um dos fatos fundamentais para

consolidar o coletivo de trabalho em toda a sua potência. Somos levados a pensar,

então, se os encontros entre os trabalhadores nas rodas de motoboys em seus

pontos de trabalho, não acabam por limitar os espaços de arbitragem a apenas o

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coletivo imediato, tornando deficitário um espaço mais abrangente para que uma

discussão e arbitragem geral do coletivo de coletivos possa se manifestar acerca do

trabalho como um todo. É verdade que a alta rotatividade de trabalhadores,

sobretudo em busca de melhores condições de trabalho, permite certa

permeabilidade entre os grupos, auxiliando a tecer-se entre os coletivos, uma rede

genérica que dá coesão e consolida como possível (e até desejável), a vida de uma

arte de viver. Por outro lado, a inexistência de espaços mais sistemáticos em direção

a esse fim, pode ser um outro aspecto importante a dificultar o coletivo de

trabalhadores a se solidificar. A idéia de uma estrutura formal de formação exigida

para que alguém iniciasse suas atividades como motoboy poderia auxiliar a

construir, entre os novatos e também entre os coletivos de trabalhadores, a idéia de

uma única profissão em exercício. Isso poderia tornar consciente a existência da

produção de um gênero que os auxilia a proteger suas vidas e seus futuros.

Nesse mesmo sentido, um outro aspecto que sinaliza alguns dos entraves à

manifestação de um coletivo em exercício refere-se aos julgamentos dos

trabalhadores que se manifestam nesses espaços coletivos: parece que os

julgamentos sobre a inteligência astuciosa são muito mais voltados para as práticas

do trabalho que para os estilos de conduzir dos motoboys. Isso porque tanto o

julgamento de beleza, quanto o de utilidade giram mais em torno da eficácia que o

trabalhador mobiliza para vencer as barreiras do tempo e do espaço do que sobre o

seu modo de conduzir. É como se não importasse muito como o trabalhador dirige:

isso é um “problema dele”. O que importa é mostrar a eficiência no trabalho, quando

se trata da visibilidade de sua astúcia para os chefes, ou as sagacidades e

“malandragens”, quando se trata da visibilidade de suas atividades para os pares114.

Por isso, é no campo das ações tomadas em trânsito que os impedimentos do

coletivo parecem se mostrar mais drásticos. Se lembrarmos que é exatamente no

momento em que os conhecimentos coletivos de proteção poderiam ser mais

preciosos, fornecendo um saber-fazer de proteção que lhes permitiria explorar o

trânsito com o máximo de segurança e eficácia, é que eles parecem se tornar mais

raros. Ou seja, no processo de pilotagem, os limites do coletivo encontram aí uma

114 Nesse sentido, se a questão da visibilidade está no cerne das defesas coletivas, como vimos no capítulo anterior, talvez a ânsia do trabalhador para se fazer visível – ânsia que para nós é necessária –, esteja conduzindo o trabalhador a lançar mão de artifícios que incrementam os riscos, sobretudo quando esses artifícios se sustentam na produção da idéia de invulnerabilidade. Seja como for, é importante resgatar aqui, uma vez mais, a idéia de que a visibilidade exerce um papel chave entre os trabalhadores, sobretudo como um componente dos índices de acidentes de trabalho.

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barreira de difícil sobreposição. Talvez em parte porque, no processo de pilotagem,

as individualidades se manifestam com mais vigor. Aliás, a própria “arte de viver” dos

motoboys parece estar relacionada com um certo gozo que o trabalhador tem em

pilotar no seu próprio estilo. É como se, em cima da moto, quem mandasse fosse o

próprio motoboy: pilota-se sempre como se quer. Por outro lado, não podemos

deixar de aventar a idéia de que a individualidade, neste momento, é reforçada em

função dos valores de virilidade e na crença exacerbada que o trabalhador tem

sobre sua capacidade individual de antecipação. De qualquer modo, por ser este um

momento em que se faz de maneira sempre muito individual, a crença exacerbada

na potência de si, ou mesmo o prazer de se conduzir como se quer, tende a reduzir

os benefícios de uma exploração positiva dos riscos, na medida em que se tornam

limitadas as capacidades de mobilização das margens de segurança e de proteção

no processo de pilotagem. O coletivo não protege o trabalhador no trânsito. Quando

muito, o coletivo resgata o trabalhador que se encontra no chão.

Outra possibilidade que parece relacionada a um determinado grau de

impedimento do coletivo é uma relação particular que esses trabalhadores produzem

com o tempo. Vimos no capítulo 4 que os trabalhadores devem aprender a gerir o

tempo de uma maneira tal que cada segundo é analisado continuamente para que

se possa preenchê-lo da maneira mais lucrativa e menos dispendiosa. O trabalhador

deve aprender a gerir o tempo presente de uma maneira muito eficiente,

principalmente nos serviços que são remunerados por comissão ou por entrega. As

razões para a valorização do presente podem estar na própria dinâmica da

atividade: há que se projetar o tempo futuro para, no máximo, o fim de cada dia de

trabalho (ou, quando muito, na semana). O que importa é gerir o tempo do presente.

Todos querem as entregas “agora”. É um trabalho da urgência.

Entretanto, certos motoboys não suportam trabalhar em empregos onde a

remuneração é por demais variável exatamente porque não conseguem trabalhar

apenas com as perspectivas salariais do tempo presente. Para esses trabalhadores,

não saber com quanto se poderá contar no próximo mês é um fardo que eles

preferem não suportar. Mas, até esses trabalhadores devem aprender a lidar com o

tempo presente da atividade, se pretendem gerir adequadamente seus afazeres

cotidianos. Assim, é factível pensar que o tempo presente produza neles uma marca

determinante, levando-nos a indagar se a força da tradição e das gerações, enfim, o

tempo constitutivo do gênero do trabalho, não encontra dificuldades para se fazer

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manifestar e solidificar nessa ditadura do presente. É bom ressaltar que o tempo das

tradições não é propriamente um tempo que requer lidar muito com uma projeção

muito intensa no futuro, da mesma forma que a relação com o passado não é tanto a

de se relacionar de maneira por demais aguerrida aos mitos dos antepassados.

Trata-se mais, como dizia Clot, de uma articulação entre os trabalhadores para

resgatar da experiência passada as condições para se lançarem em direção à

mudança do trabalho no futuro. Assim, a relação de um gênero profissional com o

presente é o de reatualizar o passado e antecipar o futuro em um único ato. Mesmo

assim, não dá para negar que uma preocupação por demais excessiva no tempo

presente possa tornar a existência de outros tempos muito difícil de se

manifestarem.

Há, ainda, que verificarmos que os trabalhadores lidam muito comumente

com um tempo futuro em que se manifesta, no lugar da atividade dos motoboys, a

expectativa de uma outra forma de remuneração mais rentável e menos perigosa

para se viver. Nessa esperança de um futuro melhor, é o próprio pertencimento à

profissão que se coloca em cheque. É muito comum ouvirmos dos motoboys,

mesmo os mais velhos, um prazo final para trabalhar na atividade. Alegam desgaste

físico e excesso de exposição aos riscos. Os sonhos vão desde ingressar em outros

ramos de atividade, mesmo que através dos conhecimentos desenvolvidos na

atividade, ou montar o próprio negócio, mesmo que no próprio ramo. A idéia de

quase todos é manter com a atividade uma relação de provisoriedade, por mais

permanente que esse provisório perdure. Portanto, a profissão é, para quase todos,

uma profissão sem futuro. Não acreditam em seu fim, pois reconhecem a

importância da atividade para a circulação de produtos e documentos nas cidades,

porém não se vêem nesse futuro. “Ninguém que ser motoboy para o resto da vida”,

já ouvimos mais de uma vez.

Ou seja, a expectativa está em um trabalho melhor e não necessariamente na

melhoria desta atividade profissional. Isso parece indicar, em conjunto com os

demais aspectos apresentados, limites em que o coletivo (ou coletivo de coletivos)

dos motoboys esbarra para atrair o investimento dos trabalhadores na medida

adequada para a produção de um ofício em que a mobilização em torno da luta por

melhores condições de trabalho se manifeste tanto quanto a intolerância diante da

um acidente de trabalho. Em suma, essa relação com o futuro denuncia um grave

problema: a incapacidade de melhorar as condições de trabalho. Os motoboys nos

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diziam, quando explicávamos a intenção da pesquisa: “se for bom para a gente, a

gente topa participar”. Ou seja, era como se nós, pesquisadores, pudéssemos fazer

alguma coisa por eles. Eles estão preocupados com o aqui e agora; este é seu

trabalho. É claro que querem melhorias, mas não possuem meios de buscá-las ou

não reconhecem os meios existentes como adequados, eficientes ou eficazes.

Assim, lidar com o futuro pode representar uma certa angústia que os trabalhadores

podem não conseguir suportar. Nesse sentido, mais que dizer que a questão do

futuro não seria de competência deles, ou de lembrar que esses trabalhadores não

conseguiram construir uma relação adequada com o passado, o que está em jogo é

construir esse jogo temporal entre passado, presente e futuro em direção às

transformações das condições de trabalho.

Indo para um outro campo de discussão, vimos que a despeito dos vários

indícios que apresentamos em torno dos saberes de prudência constituídos pelo

coletivo, a convivência com os acidentes parece mais tolerável do que a princípio se

poderia desejar. No capítulo 3 apresentamos informação que indicam que muitos

trabalhadores já sofreram acidentes de trabalho na profissão de motoboy. Da

mesma forma, muitos conhecem trabalhadores que se acidentaram gravemente ou

vieram a falecer durante o exercício da atividade. Mesmo assim, nos torna factível

pensar que o coletivo de trabalho procura não se abalar exacerbadamente com essa

experiência (nos sinalizando, talvez, para a ação de um pesado sistema defensivo).

Certa vez, uma de nossas estagiárias de pesquisa presenciou um trágico acidente

que resultara em morte de um carteiro motorizado dos Correios115. Alguns motoboys

que estavam no local e que pararam para socorrer o profissional, ao verem o estado

em que esse trabalhador se encontrava, se mostraram visivelmente abalados. Seus

comentários circulavam em torno da denúncia da gravidade da profissão até o

anúncio de que os motoboys deveriam parar de trabalhar. Porém, passada a cena –

que fora inclusive noticiada em jornais –, virtualmente nada acontecera de efetivo na

categoria. Ouvimos apenas alguns motoboys dizendo que este trabalhador tinha

“vacilado” por causa de razões “a” ou “b”, que não nos cabe nesse momento. A

trágica morte, mesmo que extremamente noticiada, não abalara a profissão ou a

categoria profissional. As defesas coletivas parecem de tal forma solidificadas que,

mesmo quando algum trabalhador desiste da profissão por causa de acidentes ou

115 Já consideramos em capítulos antecedentes as proximidades da atividade destes profissionais com as atividades dos motoboys.

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coisas semelhantes, o coletivo parece não relutar, tal qual Figueiredo e Athayde

(2004) identificaram no estudo com mergulhadores. Não é difícil imaginar o porquê:

são tantos os acidentes, são tantos os problemas que se enfrenta na profissão que

os acidentes e a própria desistência parecem claramente justificáveis aos olhos dos

profissionais. A idéia de uma pessoa capaz de superar a tudo isso, tal qual

sugerimos em torno das defesas coletivas do cinismo viril, são profundamente

condizentes com essa exacerbação do individualismo. O coletivo de trabalho e o

gênero profissional encontram nesse movimento um outro impedimento importante.

A despeito disso, não dá para ignorar que os saberes de prudência promovem

algum tipo de proteção aos trabalhadores. Nesse sentido, a despeito dos entraves

para a manifestação e consolidação do coletivo nos modos de conduzir dos

motoboys, colocamos em questão se sem esse coletivo, mesmo que precário, os

acidentes não seriam ainda maiores. Não temos como avaliar essa questão neste

momento, mas um longo estudo sobre os efeitos do coletivo em locais em que esse

coletivo parece ter se solidificado, como no caso de Londres, pode nos dar pistas a

este respeito. Esse debate ficará para uma outra oportunidade.

Após a discussão sobre a maneira como o coletivo de trabalho vem se

manifestando (ou se tornando impedido) na profissão dos motoboys, podemos fazer

algumas conjecturas acerca dos desafios que a categoria encontrará no futuro da

profissão dos motoboys, sobretudo no tocante aos processos de subjetivação.

O futuro da profissão: efeitos sobre os processos de subjetivação

Ao longo dos capítulos anteriores vimos mostrando um conjunto de indícios

que permitem anunciar dimensões de um coletivo de trabalho se solidificando em

torno de saberes instrumentais a serem utilizados pelos trabalhadores, ou por meio

de sistemas coletivos de defesa, mecanismos de proteção, discursos e valores

partilhados pelos membros da categoria, entre outros. Neste capítulo, tentamos

demonstrar que entre os efeitos do desenvolvimento dessas atividades, para nós é a

dimensão do prazer a que mais chama a atenção. Ficou demonstrado que a

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despeito da precariedade da atividade de motoboy, os trabalhadores aprendem a

gostar do trabalho, a ter prazer com a profissão que eles mesmos criam. Essa

conquista não é puramente casual. Os trabalhadores percebem, a princípio

individualmente, que sua profissão tem valor para si e para outros que partilham

consigo a atividade. A dimensão do prazer, calcado sobretudo na dinâmica do

reconhecimento (DEJOURS, 2004), anuncia um grau de investimento psíquico dos

trabalhadores em direção à atividade que merece um certo destaque.

O investimento psíquico pode sustentar-se em inúmeros benefícios advindos

da profissão: salário razoável em contrapartida à pouca qualificação existente do

profissional; um grau de liberdade razoavelmente interessante, uma vez que parte

da atividade ocorre ao ar livre; a própria destreza na condução da moto; entre

outras. Mas é inegável que sem um reconhecimento dos patrões e clientes e

também dos pares, esse investimento tenderia a se reduzir, pois o enfrentamento

dos desafios a ser realizado de maneira solitária requereria dos trabalhadores muito

mais exigências psíquicas do que atualmente se exige para o trabalho. Sem um

coletivo de trabalho que dá um suporte razoável ao motoboy para auxiliá-lo no

enfrentamento da profissão, é provável que apenas as pessoas mais

autodeterminadas se mantivessem na profissão. Porém, da maneira como se

organiza a atividade atualmente, não parece importante nenhum tipo de requisito

desse tipo. O que se espera dos trabalhadores, e são eles mesmo que o dizem, é

que sejam capazes de gerir as dificuldades, propondo saídas pertinentes para a

manutenção da satisfação dos clientes e de sua própria segurança e renda

financeira. Nada se diz sobre a necessidade de se ser empreendedor ou possuir

determinação. O suporte social existente entre os trabalhadores parece suficiente

para acolher os mais variados tipos de pessoas, independente dessas

características.

Entretanto, mesmo que reconheçamos a existência desse coletivo de trabalho

(verificando alguns efeitos positivos que estão em torno de sua construção), vimos

que não podemos ignorar sua fragilidade. Os trabalhadores de um determinado local

reconhecem que a categoria é prestativa: “pelo menos aqui na praça, o cara pode

chegar sem saber nada aqui que qualquer um que ele perguntar vai ajudar a ele”.

Mas é visível que eles não generalizam esse reconhecimento para toda a categoria.

Algumas falas até generalizam dimensões de solidariedade como uma característica

dos motoboys, como vimos acima. Porém, quando se tenta colocar em debate o

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papel que o coletivo organizado exerce entre os trabalhadores, verificamos que a

omissão é a regra entre os motoboys. Parece-nos que o coletivo não conseguiu

generalizar instrumentos de mobilização em torno de suas próprias necessidades.

Essa carência poderia ser menos importante se o exercício dessa profissão

não fosse executada em um meio que produz tantas vulnerabilidades para o

profissional. O risco de acidentes, somado às dificuldades das próprias estruturas de

assistências à saúde, tornam a prática dessa profissão de alto risco para a saúde,

além do fato de que as seqüelas dos acidentes entre os motoboys tendem a ser

mais sérias que em outras profissões. Como vimos no tópico anterior, os modos de

enfrentamento desenvolvidos pelos trabalhadores, mesmo que coletivamente

sustentados, não conseguem estruturar-se em volume suficiente para fazer frente a

outras forças que pressionam os trabalhadores para altos índices de acidentes na

profissão. Nesse sentido, as histórias dos profissionais acidentados, alguns dos

quais fatalmente, se constituem como uma sombra discursiva que influem em

percepções coletivas que reforçam os sistemas coletivos de defesas de virilidade e

de “adrenalina”. Como resultado, muda-se o trabalhador, que se prepara para as

situações de risco, mas não se modifica o trabalho em questão.

Existem preocupações legítimas pela segurança. Elas vêm, em primeiro lugar,

dos próprios trabalhadores e de sua representação coletiva, depois dos órgãos de

trânsito e da saúde, incluindo os batalhões de trânsito das Polícias Militares, e

apenas mais recentemente é que a mídia vem emitindo maiores informações acerca

da questão. Mas uma mobilização coletiva em prol da segurança desses

trabalhadores é ainda uma paisagem distante. O principal desafio se dá, talvez, pelo

fato de que como o trânsito é um dos meios em que ocorre o trabalho desses

profissionais, fica evidente que não é possível uma intervenção eficaz na redução

dos acidentes sem uma articulação profunda de inúmeros aspectos e atores

envolvidos na atividade dos motoboys, na organização e coordenação do trânsito,

ou nas suas conseqüências mais nefastas. Desde o Ministério do Trabalho, o

Ministério Público do Trabalho, o Sindicato dos Motociclistas, até os órgãos

governamentais do executivo (em particular Saúde, Transporte e Trânsito,

Planejamento), do legislativo e do judiciário e, obviamente, os setores econômicos

que mais lucram na exploração dos serviços desses profissionais, em última

instância, deveria caber aos motoboys o papel de desenvolver meios de permear e

se aliar em torno de representantes de cada um desses setores da sociedade,

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mobilizando-os adequadamente em direção à construção de saídas que, ao mesmo

tempo em que permitam o fortalecimento das condições de segurança, não

imponham restrições às conquistas estabelecidas socialmente, sobretudo aos

ganhos financeiros obtidos pela profissão. Entretanto, como os profissionais não

conseguem se unir à altura das respostas que se requer diante de tão grande

desafio (qual seja, o de mobilizar um contingente representativo de instituições em

defesa de seus direitos), fica difícil imaginar que suas vozes terão a mesma

respeitabilidade nos diálogos existentes para construção desse cenário.

Durante uma das oficinas realizadas, enquanto discutíamos sobre as

dificuldades enfrentadas para uma mobilização mais eficiente dos trabalhadores na

luta pelos seus direitos, nos deparamos com um grande desconhecimento sobre os

modos de se organizar coletivamente nesse movimento. O interesse numa

qualificação da representatividade coletiva era quase consenso. Mas as saídas

sugeridas não conseguiam ir para além de uma prática discursiva voltada para um

denuncismo vazio de proposição: “o que acontece é que o sindicato...”,

apresentando-se, em seguida, as “denúncias” da ineficácia do SINDIMOTOS. E

ponto: parava-se aí a discussão. Em determinado momento, um dos motoboys

chegou até a falar: “a gente precisa de ajuda de alguém com mais conhecimento

para ajudar a gente a montar uma alternativa ao Sindicato...” num apelo diretamente

dirigido à nós. Com isso, deixava-se claro os limites reais da categoria em torno da

capacidade de uma mobilização coletiva expressiva e combativa. Em outro

momento, criticou-se a pouca mobilização conseguida em uma motociata realizada

em 2006. Os trabalhadores não compareceram em massa ao movimento.

O que se pretende argumentar com tudo isso é que, de um lado, há um

coletivo de trabalho que permite a emergência de saberes de prudência e que

investe na formação de um gênero da profissão. De outro, essa dimensão coletiva

não consegue cristalizar identidades fortes em torno dos valores de sua própria

carreira, ao mesmo tempo em que o individualismo não dá passagem à tradição. Os

motoboys não conseguiram, até o momento, produzir uma identidade motoboy

reconhecida e valorizada pelas pessoas em geral, da mesma forma em que não

conseguiram criar marcos de reconhecimento do próprio coletivo em prol deles

mesmos. Ora, um processo de subjetivação de um determinado gênero profissional

pressupõe que o trabalhador torne como parte de sua “pele” os sentidos coletivos

partilhados pela dimensão genérica da determinada atividade profissional. Entre os

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motoboys, esse processo de subjetivação ainda carece de uma nítida investigação,

mas aparenta existir ainda de maneira incipiente. O trabalhador aprende a “gostar do

trabalho”, bem como a resolver, “na pele”, algumas dimensões menos tangíveis do

trabalho. Além disso, conseguem partilhar sentimentos e valores comuns com os

demais colegas de trabalho – sentimentos tais como a virilidade, se “sentir o

máximo”; e valores tais como o discurso e a sensação da “adrenalina” – compartilhar

uma espécie de doutrina da proteção, o uso estratégico do discurso da direção

defensiva e os modos de pilotar com destreza e agilidade. Porém, esses discursos

não estão igualmente distribuídos entre todos os tipos de serviços. Entre os serviços

que propiciam o encontro mais cotidiano com os pares, esses sentimentos são

fortalecidos e intensificados. Contudo, vimos que parte dos motoboys está

espalhada em um sem fim de empresas que não se agrupam comumente. Nessas, é

aparente a influência de outros valores e princípios provenientes da empresa a qual

prestam serviços, tais como empresas de autopeças, pequenas pizzarias ou lojas de

entrega de gás ou água. Aqui, a profissão ou é um “bico”, ou uma escada para um

degrau superior dentro da própria empresa.

O gênero da profissão se esbarra nessas dimensões problemáticas e a

prática de trabalho não se converte em ofício. Reiteramos, porém, uma vez mais: há

prazer na atividade, há reconhecimento, sobretudo um reconhecimento de auto-

superação, autodomínio, autocontrole. Esse sentimento de reconhecimento muito

individualizado reforça a dinâmica da virilidade e das defesas coletivas. Mas exerce

um papel interessante também no orgulho de ser motoboy. O motoboy se reconhece

como trabalhador, mas como vimos, parece não perceber da sociedade o mesmo

tipo de valorização que acreditam merecer. A falta de uma dimensão mais coletiva

de reconhecimento, mesmo que dos pares, mas principalmente da sociedade, talvez

dificulte aos trabalhadores abrir mão de um apego a seu sentimento de potência.

Essa é apenas uma suposição. Porém, a identificação de discursos, ainda

incipientes, que reconhecem a necessidade de inserir a vulnerabilidade dos

trabalhadores nas próprias estratégias de proteção utilizadas pela categoria

sinalizam para a importância de se valorizar esse tipo de movimento, reconhecendo-

o adequadamente.

A emergência de um coletivo de trabalho e de um gênero profissional que se

cristalize em torno de um ofício requererá um exercício da categoria em demonstrar

sua própria capacidade de ser coletivo. Nos primeiros embates políticos que os

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motoboys de Vitória vêm enfrentando, vemos que os resultados ainda são muito

inconstantes. Mas o reconhecimento de que existe uma potência construtiva em

busca dessa atividade é um fenômeno que não podemos deixar de valorizar. A falta

de um ofício tende a reduzir o valor financeiro da atividade, propiciando sua

precariedade, facilitando-se assim o ingresso não regulamentado e não devidamente

preparado116 de profissionais ao grupo. A falta de um ofício tende, também, a tornar

mais socialmente tolerável a quantidade de acidentes e de mortes ocasionadas por

essa atividade. Além disso, a redução da idade do grupo tende a fortalecer alguns

sentimentos juvenis, tais como a percepção de indestrutibilidade e a virilidade,

deixando de lado um conjunto de valores que poderiam se transformar em sistemas

de proteção ao próprio trabalhador, tais como os valores de profissionalismo e de

autodefesa. Finalmente, a falta de um coletivo de ofício impede a valorização e a

mobilização da categoria em busca de seus próprios interesses.

Essa pesquisa com os motoboys nos revelou, contudo, um movimento

legítimo em torno dessa direção, mesmo que ainda tímido. Certa vez

conversávamos com um grupo que trabalha com documentos em uma praça no

centro da capital. Discutíamos sobre as coisas que eles mais conversavam no

cotidiano. A resposta foi: “moto, trabalho, mulher e política”. Como era época da

eleição presidencial, instigamos para ver se se tratava de uma contenda eleitoral.

Nos surpreendeu o fato de que gostavam muito de ouvir histórias sobre política. A

fonte dessa história era, para eles, o vendedor ambulante que distribuía lanches

para eles todos os dias. Segundo eles, essa pessoa, um pouco mais velha, era uma

pessoa com muito conhecimento da história, do período da ditadura e de outras

dimensões da política do Estado e do País. Deparamo-nos, então, com um grupo

que, carente de história, debruçava-se na história que lhe estava disponível. Não

podemos dizer que esse interesse é geral, mas percebíamos ali um desejo de

passado, de tradição. Essa dimensão da história que consegue localizar a pessoa

em uma rede que lhe significa, parecia importante para esses motoboys. Será que a

própria profissão não lhes poderia fornecer essa mesma teia de significado

histórico? Essa resposta, somente os próprios trabalhadores poderão construir. O

desejo está ali, entretanto. Ao futuro, cabe-lhes a atividade de construí-lo.

116 Devidamente preparado, para nós, significa com capacidade de observar, reconhecer e obter do gênero da profissão os instrumentos que um trabalhador utilizará para desenvolver sua atividade eficaz e eficientemente.

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POSSÍVEIS CONSIDERAÇÕES E ALGUMAS INDAGAÇÕES

A partir das análises acima efetuadas, podemos sugerir que os motoboys

encontram-se em uma encruzilhada histórica. Por um lado, observa-se algum nível

de movimento em direção à consolidação dessa atividade profissional como uma

alternativa de vida, mesmo que temporária. Esse movimento se desdobra em várias

linhas estruturais: aumento da demanda por esse serviço, aumento da oferta de

crédito e mais facilidade de financiamento para aquisição de motocicleta,

incorporação paulatina desses profissionais pela estrutura econômica de serviços e

pelas demandas da sociedade como um todo, manutenção da remuneração dos

trabalhadores em torno de valores razoáveis para o padrão de vida das cidades

brasileiras – que é, obviamente, muito baixo –, solidificação de discursos e de

valores coletivos em torno dos benefícios da profissão; materialização dos

sentimentos e das dinâmicas subjetivas (sejam elas favoráveis ou não) mobilizadas

pela (e em torno da) atividade como um modo de ser motoboy, que inclui desde

discursos comuns até a apropriação de uma determinada “arte de viver”;

concretização de saberes, estratégias e modos operatórios que permitem a atividade

a obter um importante papel psicológico no desenvolvimento e nos processos de

subjetivação dos trabalhadores, entre outros. Ou seja, no lugar de “bico”, vemos

surgir entre os trabalhadores um esforço de transformar a atividade de motoboys em

uma verdadeira profissão ou, por que não, no horizonte, um “futuro” ofício. Além

disso, ao longo desse texto, pudemos demonstrar que, ao menos no que tange às

questões dos saberes, das estratégias, dos valores, dos discursos e das dinâmicas

subjetivas, esses movimentos também envolvem aspectos bastante coletivizados,

reforçando a importância desse longo processo, que hora está em curso.

Por outro lado, vimos que esse coletivo esbarra em alguns obstáculos que

podem tornar mais difícil a incorporação dos benefícios desse movimento coletivo,

tais como: um grande individualismo presente no coletivo de trabalhadores, a

valorização excessiva de um sistema defensivo que supomos de tipo ideológico em

torno da ‘adrenalina’ e da potência antecipatória do olhar, sem contar com a entrada

continuada de mais motoboys, que não passam por qualquer espécie de formação

e, principalmente, “iniciação” na atividade. Os entraves desse coletivo tendem a

reforçar os comportamentos individualizantes que não conseguem impedir e alijar da

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prática de trabalho os comportamentos que são mais ou menos indesejados por

parte da sociedade como um todo e, mais especificamente, por parte de um coletivo

mais interessado no fortalecimento das dimensões oficiosas de seu trabalho. Por

exemplo, tanto um certo estilo de pilotagem, extremamente arriscado para si e para

outros, quanto um pacto excessivo dos trabalhadores com as práticas de

transgressão e agressividade são modos de ser que podem, com o tempo, rechear o

trabalho de motoboy de aspectos negativos que tenderão a reduzir ainda mais o

valor dessa profissão. Se um movimento nesse sentido se concretizar, é bem

provável que os saberes de prudência, que começaram a ser engendrados,

perderão parte de sua força e importância. Conseqüentemente, seria de se esperar

o aumento dos acidentes entre esses trabalhadores, bem como o reforço da idéia de

transitoriedade da profissão entre os trabalhadores do setor.

Por outro lado, o momento é uma oportunidade interessante para os

motoboys, uma vez que nunca se deu tanta atenção a eles. Os jornais noticiam fatos

envolvendo-os há um bom tempo. Mais recentemente, o aumento dos acidentes

envolvendo motociclistas – algo que na tese nos posicionamos explicitamente em

torno da necessidade de se compreender com mais exatidão o fenômeno – e a

consolidação desse tipo de serviço como quase-essencial para a vida cotidiana, têm

transformado o discurso da mídia em relação à atividade, abrindo outros canais de

expressão e despertando interesse sobre uma atividade presente, mas invisível.

Antes, era mais comum se noticiar temas em torno da profissão conotando os

aspectos marginais a ela ligados: o atropelamento do músico Marcelo Fromer (da

banda Titãs) e o uso de motoboy para a entrega de drogas ou realização de assaltos

eram, por si só, notícias. Atualmente, sobretudo nos anos de 2007 e início de 2008,

as reportagens parecem ter enfocado um pouco mais os contraintes temporais a que

esses trabalhadores estão submetidos. Assim, mesmo que consideremos que essas

reportagens dêem relevo apenas aos aspectos negativos da atividade, ao menos as

aparentes mudanças no teor das notícias dos jornais supõem indicar a passagem do

motoboy da figura de vilão para a figura de vítima. Com isso, é possível que uma

tolerância e consideração maior sobre a categoria também esteja em curso na

percepção da sociedade. Até porque, se o serviço dos motoboys é tão importante,

pareceria um pouco contraditório a conotação excessivamente culpabilizante em

torno dele.

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O que importa, de qualquer modo, é que se a notícia desperta focos de

interesses sobre a profissão, os motoboys devem saber aproveitar esses momentos

para transformá-las em oportunidades estratégicas das quais possam obter

vantagens financeiras e de segurança para eles. Tronti (1976) mostrara em um

estudo sobre o período de formação do movimento de trabalhadores nos Estados

Unidos e Europa durante os anos 1900-1950, que os sindicatos da época souberam

muito bem aproveitar as oportunidades históricas para obter ganhos reais para os

trabalhadores. Não é por menos que durante o período do pós Segunda Guerra

Mundial, este período de desenvolvimento econômico quase sem precedente foi,

também, um momento sem igual para os operários europeus e norte-americanos.

Aliás, parte desse desenvolvimento deveu-se exatamente a essas conquistas dos

trabalhadores no campo salarial, por exemplo, promovendo um aumento do

consumo e, em conseqüência, uma expansão da produção dos países centrais. O

Movimento Operário Italiano é, para Tronti, um outro exemplo fundamental dessa

capacidade de compreensão estratégica e histórica dos trabalhadores. Acreditamos

que é esta capacidade de compreensão histórica que deve ser mobilizada entre os

trabalhadores para aproveitar o período que nos aparenta estratégico para eles.

Porém, não é apenas pela oportunidade de espaço midiático que se sustenta

nossas considerações. Na verdade, não é difícil perceber que os diversos interesses

pelos motoboys vêm se consolidando de maneira bastante rápida e com ares de

urgência nos diversos setores do Estado. Em parte por causa do aumento do

número de acidentes, fatais ou com vítimas. Mas também em função das questões

da regulação dos setores de transporte e de trânsito. É de se esperar que, em breve,

os setores do planejamento econômico também venham se interessar por esse tipo

de atividade econômica. Nossa experiência sugere, contudo, que os setores de

Estado ainda estão relativamente distantes das compreensões mais fundamentadas

acerca do trabalho e da vida dos motoboys. Já dissemos antes que os discursos dos

técnicos dos setores de transporte parecem reproduzir quase letra por letra os

discursos divulgados pela mídia. Mas, mesmo que haja um relativo

desconhecimento da atividade de trabalho por parte desses e de outros técnicos dos

diversos setores de Estado, não podemos deixar de valorizar um legítimo interesse

que emerge atualmente em se intervir nas complexas dinâmicas que envolvem o

trabalho dos motoboys, principalmente para se garantir o máximo de segurança

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possível para os trabalhadores. Eis, pois, uma razão a mais para reforçar a idéia de

que o momento é estratégico para a categoria.

Finalmente, há que se tomar em consideração um último aspecto que sugere

um momento estratégico para uma possível valorização social e financeira da

atividade dos motoboys: esta atividade requer dos trabalhadores um conjunto de

competências que são atualmente bastante importantes para qualquer tipo de

trabalho, sobretudo aqueles do setor de serviço. Zarifian (2003), nós em outra

ocasião (MORAES, 2002), Hardt e Negri (2001), Lazzarato e Negri (2001), e

diversos pesquisadores ligados à Psicossociologia do Trabalho (ENRIQUEZ, 2000a

;2000b, AUBERT; GOULEJAC, 1992), para encurtar a lista de referências, vêm

mostrando que as competências previamente exigidas dos trabalhadores do setor de

serviços (resolubilidade, dinamicidade, pró-atividade, gestão do tempo, etc.) estão se

tornando “as” competências do mundo contemporâneo do trabalho. Alguns desses

autores, sobretudo Hardt, Negri e Lazzarato sugerem que esse processo se trata de

mais uma forma de apropriação do trabalho vivo pelo capital. Porém, de uma

maneira diferente de outrora: já não mais um aproveitamento do trabalho vivo

realizado na surdina de uma disciplina rigorosa, mas a pura expropriação das

dinâmicas subjetivas do homem, por meio da produção, em uma escala sem

precedentes, de subjetividades preparadas para enfrentar o mundo como simulacros

de potência. Daí, o que Foucault (1979; 1999) chama de biopoder e Deleuze de

sociedade de controle (1992).

Pois bem, a despeito dos mecanismos de poder produzindo essas mudanças

de perfil profissional, não dá para não considerar que, do ponto de vista dos

motoboys, a publicização das competências mobilizadas por esses profissionais

pode servir como uma importante moeda de valorização da profissão. E mais: se

ainda não percebemos nenhum movimento dos setores econômicos em direção à

convocação desses trabalhadores, em função das competências adquiridas nesses

serviços como fonte importante para o meio de trabalho de diversos setores em que

essas competências são também essenciais, não será muito ingênuo esperar que

pelo menos algum movimento desse tipo ocorra muito em breve.

Em suma, atentar a essas oportunidades históricas para o fortalecimento dos

laços coletivos e a solidificação do gênero profissional pode significar uma alteração

tão profunda na dinâmica do trabalho dos motoboys quanto qualquer tentativa

implementada sobre elementos mais externos à atividade, como criar vias

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específicas nas malhas viárias das cidades ou a regulamentação da profissão e seus

correlatos burocráticos (como a criação de licença própria para esse tipo de serviço,

geralmente conhecida como condumoto, a exigência de cursos próprios para a

profissão ou a exigência de motocicletas novas para o exercício da atividade, etc.).

Parece-nos importante ressaltar, no entanto, que se tem dado mais atenção aos

aspectos externos da atividade que aos elementos intrínsecos a ela. Apenas Diniz, e

um pouco o relatório organizado por FISCHER e colegas (2002), atentaram um

pouco mais detidamente para essas dimensões que são particulares à atividade dos

motoboys e que, se enfocadas como objeto de intervenção, podem produzir efeitos

tão importantes quanto às demais propostas oriundas dos órgãos governamentais

sobre os aspectos externos à atividade de trabalho. Além disso, em geral, é muito

comum os órgãos de Estado valorizarem em demasia os mecanismos burocráticos

de controle sobre a atividade profissional (a exigência para que os trabalhadores

adquiram uma licença própria para o exercício profissional ou que venha a trocar de

moto a cada x anos, são apenas alguns exemplos). Estes acabam não levando em

conta o fato de que esses profissionais só irão regularizar suas condições de

trabalho se apropriarem as exigências burocráticas de Estado como aspectos de

interesse para eles. Do contrário, permanecerão à margem da formalidade, uma vez

que os benefícios da formalidade/informalidade são sempre avaliados em inúmeros

aspectos, sobretudo, os econômicos. Para que se consiga mobilizar os

trabalhadores em direção às regulamentações dos órgãos governamentais, duas

estratégias, que não são necessariamente excludentes, podem ser utilizadas: por

um lado uma rígida fiscalização sobre a atividade profissional ou, por outro lado, um

conjunto de medidas de incentivo à regularização dos trabalhadores para que se

ajustem às normalizações prescritas. Porém, cada uma das estratégias pode

produzir efeitos politicamente indesejáveis. Por exemplo, se os sistemas de

fiscalização e controle ficarem por demais excessivos, alguns transtornos poderão

emergir dessa ação: a resistência e mobilização dos motoboys, aumentando a

quantidade de protestos; a cristalização de um sistema de trabalho ilegal em tudo o

que a ilegalidade envolve; o aumento do custo dos mecanismos burocráticos de

controle – criação de sistemas de controle, mais lei, novas taxas, mais contratação

de agentes de fiscalização; a criação de uma rede de influência e ilegalidade em

torno dos sistemas de fiscalização, visto que essa é uma prática comum na relação

Estado-empresário no país; a radicalidade da divisão entre os motoboys que serão

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regularizados ou não, aprofundando os impedimentos de fortalecimento do coletivo,

entre outros. Por outro lado, há muitas medidas possíveis para o incentivo em

direção à regulamentação: um pacote de financiamento para a troca regular da frota

de motos; a redução do custo de regularização da categoria; a criação de cursos

que sejam de interesse para o fortalecimento das necessidades da categoria, tais

como aqueles que fomentam a análise coletiva sobre o trabalho, ou os que

fortaleçam os exercícios práticos, principalmente por meio de sistemas de simulação

de situações reais, ou ainda os que instrumentalizam os motoboys a montar e

gerenciar micro-empresas e funcionários (reconhecer e analisar o mercado, realizar

planejamento estratégico e avaliar o desempenho da empresa, etc.); a valorização

das representações coletivas, por meio de cursos, intervenções baseadas em

análise institucional e mesmo um programa de fomento das representações coletivas

e sindicais, visando fortalecer a apropriação coletiva sobre a profissionalização da

atividade; o fomento para o aumento da renda salarial desses trabalhadores, etc.

Contudo, essas medidas de fomento da regularização esbarrarão, também, em

alguns desafios muito difíceis de serem transpostos: parcos recursos para as ações;

interesses políticos díspares inviabilizando ou distorcendo a abrangência e

legitimidade das medidas; falta de formação dos técnicos dos setores estatais para

conduzir uma política de formação e de negociação com os trabalhadores baseado

na lógica da análise das situações de trabalho, da saúde do trabalhador, entre

outros.

Diante dessas duas estratégias para mobilizar os motoboys em direção à

regulamentação da categoria, somos mais adeptos da idéia de que a promoção de

medidas incentivadoras para essa regulamentação seria mais eficaz e benéfica para

eles. De qualquer modo, acreditamos que, independente desse movimento dos

órgãos estatais, é mais que urgente o investimento dos trabalhadores na

apropriação da necessidade de transformar o seu trabalho em profissão reconhecida

e consolidada em torno de valores de ofício. Porém, para isso, é certo que os

motoboys deverão abrir mão de alguns benefícios que o trabalho como “bico”

oferece. Na verdade, a completa desregulamentação do trabalho permite ganhos

para algumas pessoas que, em caso de regulamentação, não seriam possíveis: não

pagamento de tributos, não controle sobre as relações comerciais e de trabalho,

facilidade para a troca de “mão de obra”, acesso facilitado aos meios de trabalho por

quem quer que seja, entre outros. Uma regulamentação do trabalho requereria que

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os motoboys reconhecessem que algumas dessas práticas, que individualmente

podem ser interessantes, coletivamente produzem efeitos perniciosos na profissão.

Esta apropriação, por parte da categoria, não será uma tarefa fácil e não pode ser

produzida como uma regulamentação puramente burocrática e imposta do exterior

ao coletivo de profissionais. Deve se tratar mais de um movimento de incorporação

desses valores, saberes, princípios e discursos ao gênero profissional. Para tanto, é

necessário se reforçar espaços coletivos de construção e análise das situações de

trabalho para que esse movimento se torne possível.

Enfim, o que se vem tentando dizer até aqui é que não se deve produzir

intervenções sobre a atividade de trabalho tomando como foco apenas as

dimensões materiais e objetivas da atividade. É também na direção do gênero

profissional, do coletivo de trabalho e das dinâmicas subjetivas do trabalhador que

se deve supor um conjunto de medidas que valorizem o trabalhador e sua atividade,

em sua integralidade. A presente pesquisa tentou sustentar essa tese que, em

prática, poderá ser exercitada em intervenções simples por meio de projetos

produzidos e conduzidos em conjunto com os coletivos de trabalho em qualquer

cidade do país, e mesmo de outros locais. Além de intervenções simples,

reforçamos aqui nossa opinião de que um conjunto de estratégias de formação

sobre o trabalho, partindo da premissa da análise do trabalho e do movimento de

simulação, poderá auxiliar na implementação dessas atividades. Assim, mais que

supervalorizar a idéia de direção defensiva, é de nossa opinião que uma formação

envolvendo profissionais considerados bons trabalhadores para conduzirem um

debate sobre a atividade de trabalho, em conjunto com os novatos, poderá auxiliar

nesse processo de construção coletiva de valores oficiosos sobre a profissão. Os

recursos metodológicos para essa formação deverão ser mais bem discutidos, mas

de antemão sugerimos que as considerações da Ergologia, muito bem explicitadas

nos trabalhos de Durrive (1999), são fundamentos que achamos essenciais para a

condução dessa formação. Já do ponto de vista dos métodos de intervenção, a idéia

do recurso do vídeo, transformado ou não em técnica de autoconfrontação cruzada,

permite aproximar essas análises do trabalho de uma auto-análise que é, também,

coletiva. Da mesma forma, a técnica da instrução ao sósia pode permitir reforçar a

elucidação de movimentos de auto-análise sobre a atividade, dando um salto

qualitativo no movimento de consolidação do gênero profissional. Outro recurso

técnico a ser mais bem analisado, porém tendencialmente promissor, é o recurso ao

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uso da simulação. Quiçá a elaboração de encenações de situações reais

incorporadas a aparelhos adaptados de jogos de fliperamas que utilizam a

simulação como instrumento de jogo. Para tanto, basta um grupo de trabalhadores

construírem em conjunto com alguns alunos de escolas técnicas na tentativa de

produzir simuladores semelhantes aos simuladores de vôos, tão essenciais na

formação da atividade de pilotos de aeronaves (JOUANNEAUX, 1999).

Entretanto, nossa tese deixou em aberto uma gama de questões a serem

respondidas por meio de outras pesquisas: uma compreensão da história do

surgimento da atividade e as relações entre ela e uma espécie de cultura do

motoqueiro na base do surgimento e da organização do coletivo de trabalho; o efeito

do coletivo do trabalho na proteção dos trabalhadores, tomando como ponto de vista

essa variável em análises epidemiológicas; a real abrangência dos efeitos dos

diferentes tipos de serviços na atividade de motoboy, tanto do ponto de vista dos

saberes mobilizados, quanto das dimensões coletivas do trabalho; a necessidade de

se verificar a existência ou não de sistemas defensivos entre os trabalhadores,

notadamente aqueles que aqui identificamos, tais como a potência antecipatória do

olhar e a defesa pelo olhar do outro, sendo que, no caso deste último, há que se

verificar ainda se se trata de um sistema defensivo ou de um conjunto de saberes de

prudência; ainda nesse sentido, há que se verificar se esses sistemas defensivos

são de tipo ideológico ou estratégico e se seu uso tende a aumentar ou reduzir os

riscos na atividade; de qualquer modo, há que se verificar mais intensamente o

papel do olhar nos modos de condução e suas relações com a exploração positiva

dos riscos; e acerca deste último conceito, verificar a pertinência de seu uso como

conceito elucidativo. Há que se investigar, ainda, as dimensões epidemiológicas

sobre a atividade, por meio de instrumentos e estratégias de pesquisa mais

adequadas, tentando esclarecer, em última instância, o papel dos acidentes de

motoboys entre os acidentes de motocicletas e, o que para nós é mais importante,

que ensinamentos os saberes de prudência e operatórios poderiam auxiliar aos

motociclistas em geral a se protegerem dos acidentes. Além disso, há que se

intensificar a investigação acerca das diferenças entre os tipos de serviços de

motoboys, sobretudo tentando verificar se a gestão do tempo, o uso do

planejamento da rota, o papel da avaliação dos serviços, a maneira como se

mobiliza os saberes de resolubilidade, o gerenciamento das transgressões ou o uso

de si por si e por outros é posto em movimento em cada tipo de serviço em

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particular. Isso, sem comentar a necessidade de estudar com mais afinco as regras

de ofício nos diversos tipos de serviço e na atividade como um todo, bem como o

papel das atividades negadas e seus efeitos na saúde do trabalhador, e explorar

ainda mais a pesquisa sobre outros saberes desenvolvidos e em uso pelos

trabalhadores. Ainda acerca da saúde e da segurança, há que se verificar se os

contraintes da atividade, impedindo os trabalhadores a reconhecerem e utilizarem os

sinais de seus limites corporais, intensificam os riscos de acidentes; da mesma

forma que é importante estudar o papel de um possível sentimento de impotência

dos motoboys diante da enorme complexidade que as transformações dos meios de

trabalho requer para redução dos índices de acidentes.

Do ponto de vista de alguns fenômenos gerais que se destacam da nossa

pesquisa e que não está necessariamente atrelado a essa população em específico,

podemos citar ainda alguns nichos de investigação. Em que medida as relações

produzidas entre os diversos atores no trânsito produzem efeitos perniciosos no

trabalho e como se pode intervir nessas relações? Trata-se, neste caso, de um

conjunto de pesquisas que envolvem desde a Psicologia e Engenharia do Trânsito

até a Antropologia Urbana, um estudo que auxiliará a elucidar meios de intervenção

sobre as dimensões do trânsito do trabalho dos motoboys, em particular suas

relações com a disputa pelo espaço. A partir da idéia de exploração positiva dos

riscos, há que se analisar de maneira mais profunda em que medida vale a pena

reproduzir esse mesmo raciocínio em outros processos sociais, tais como a violência

vinculada às drogas, ou o fenômeno álcool-direção, entre outros. Ou seja, há que se

testar esse conceito de apropriação dos comportamentos de risco em sua radical

positividade, aplicado em outras realidades, ainda pouco exploradas nesse sentido.

Mais próximo da presente pesquisa, há que se desenvolver, finalmente, dois

conjuntos de pesquisa que deverão ser elucidativas. Um deles, um estudo global

sobre a profissão, poderá auxiliar a compreensão de como vêm se constituindo as

medidas de regulamentação, informação, promoção de saúde e mobilização dos

motoboys em outros locais do planeta. Nesse estudo, deverá ser analisado, em

contrapartida, a maneira como esse próprio coletivo se organiza, se produz e se

reproduz, bem como os sentidos subjetivos, culturais e econômicos mobilizados em

torno e pela atividade profissional. Sem contar, é claro, na compreensão exata do

fenômeno a nível global: número de trabalhadores, renda, morbidade e mortalidade

na profissão, entre outros aspectos epidemiológicos. Apontamos, também, para um

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estudo específico em cidades em que o trabalho já vem sendo realizado há algumas

décadas, tais como Londres, para se verificar a existência ou não de um coletivo de

trabalho ou de um gênero profissional mais consolidado e, em caso positivo, quais

seus efeitos na atividade, na proteção ao trabalhador, na dinâmica de formação dos

profissionais, entre outros. No caso de um estudo em Londres, há que se verificar

ainda os efeitos do ingresso de profissionais de outros países na realização desse

tipo de atividade (tais como os brasileiros que vêm assumindo amplamente esse tipo

de atividade) e seus efeitos no coletivo e do coletivo entre esses trabalhadores. Ou

seja, seguindo uma tradição de estudo antropotecnológico inaugurado por Wisner,

será que há conflitos culturais na incorporação de grupos estrangeiros nesse gênero

profissional supostamente consolidado, como no caso dos motoboys de Londres?

Eis um conjunto de pesquisas que podem ser muito elucidativas para a

compreensão das pistas levantadas na presente pesquisa.

Enfim, deixamos aqui um rol de possibilidades que aumentariam o leque de

investigações em torno deste campo de pesquisa e intervenção que merece ainda

muito investimento por parte da Academia, dos setores estatais e dos próprios

trabalhadores. Os benefícios desse investimento não seriam circunscritos apenas

aos trabalhadores, mas indubitavelmente à sociedade como um todo. Mais

importante que isso, porém, é a mensagem aos profissionais: a riqueza do que vem

sendo produzido pelos motoboys merece destaque e atenção. Mas apropriar-se

dessa produção como estratégia em direção à transformação da realidade de

trabalho, é um obstáculo ainda por ultrapassar. O profissional que parece conseguir

multiplicar o tamanho do tempo deve agora observar que o tempo pode estar a seu

favor. Não um tempo espacializado, cronológico, mas um tempo devir, tempo de

produção de sentido que é, por definição, coletivo. Para tanto, urge um esforço

coletivo de apropriação consciente desse movimento tácito entre os motoboys. O

desafio está posto. Do coletivo de trabalhadores, e da sociedade como um todo

depende o sucesso dessa empreitada.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ANEXO I

Questionário aplicado entre os Motoboys

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