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Colm Toibin - Nora Webster
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1.“Vocêdeveestardesacocheiodeles.Seráqueelesnuncavãoparardeviraqui?”TomO’Connor,seu
vizinho,estavaemfrenteàportadele,olhandoparaela,àesperadeumaresposta.“Eusei”,disseela.“Ésónãoatender.Éoqueeufaria.”Norafechouoportãodojardim.“Elestêmboaintenção.Aspessoastêmboaintenção”,disseela.“Noiteapósnoite”,disseO’Connor.“Nãoseicomovocêaguenta.”Noragostariadevoltarparadentrodecasasemprecisarresponderdenovo.Eletinhaumtomdevoz
diferente,umtomquenuncahaviausado.Falavacomosetivessealgumaautoridadesobreela.“Aspessoastêmboaintenção”,elarepetiu,masdessavezdizerissoadeixoutriste,afezmordero
lábioereprimiraslágrimas.QuandoseusolhoscruzaramcomosdeO’Connor,Noraentendeuquedeviaestarparecendoabatida,derrotada.Entrouemcasa.Naquela noite, bateramna porta quase às oito horas.Havia a luz de uma lareira na sala e os dois
meninosfaziamodeverdecasaàmesa.“Atendevocê”,disseDonalparaConor.“Não,atendevocê.”“Atenda,umdevocêsdois”,disseela.Conor,omaisjovem,foiatéaportadeentrada.Noraouviuumavozquandoeleabriuaporta,umavoz
demulher,masdeninguémconhecido.Conortrouxeavisitaparaaantessala.“ÉaquelamulherpequenaquemoranaCourtStreet”,elesussurrouparaela,quandochegouàsala.“Quemulherpequena?”,perguntouNora.“Seilá.”MayLaceybalançouacabeçacomtristezaquandoNorachegouàantessala.“Nora,espereiatéagora.NemconsigodizercomolamentopeloMaurice.”EstendeuobraçoesegurouamãodeNora.“Eleeratãojovem.Euoconheciquandoeramenino.NósconhecíamostodoselesnaFriaryStreet.”“Tireocasacoevamosláparadentro”,disseNora.“Osmeninosestãofazendoasliçõesdaescola,
maspodemvirparacáeacenderalareiraelétrica.Daquiapoucoelesvãomesmoparaacama.”MayLacey,comtufosdecabelogrisalhoàmostraporbaixodochapéu,aecharpeaindaenroladano
pescoço,sentou-sedefrenteparaNora,nasala,ecomeçouafalar.Depoisdealgumtempo,osmeninossubiram;Conor,quandoNoraochamou,ficoutímidoenãoquisdescerparadarboa-noite,maspouco
depoisDonalveioesentou-senasalacomelas,observandoMaycomatenção,semfalarnada.Agoraestavaclaroqueninguémmaisiaaparecer.Noraficoualiviadapornãoserobrigadaaentreter
pessoasquenãoseconheciamoupessoasquenãogostavamumasdasoutras.“Poisé”,prosseguiuMayLacey,“oTonyestavanohospitalnoBrooklyn,eaícolocaramotalhomem
noleitoaoladododele,osdoisconversaram,Tonyviuqueohomemerairlandês,eelecontouquesuaesposaeradocondadodeWexford.”Mayparouecontraiuoslábios,comosetentasseselembrardealgumacoisa.Derepente,começoua
imitaravozdeumhomem:“Ah,foideláqueeuvim,disseohomem,eentãooTonydissequeelaeradeEnniscorthy;ah,eutambémsoudelá.EperguntouparaoTonydequepartedeEnniscorthyelaera,eoTonyrespondeuqueeradaFriaryStreet”.MayLaceycravouosolhosnorostodeNora,obrigando-aamanifestarinteresseesurpresa.“Eohomemdissequetambémeradelá.Quecoisaincrível!”Parou,àesperadeumaresposta.“EntãoelecontouparaoTonyqueantesdetersaídodacidadefezaquelenegóciodeferro—comoé
queagentechama?—,umagradeouumaproteçãonoparapeitoda janela lánacasadoGerryCrane.Entãofui láolhareestava lámesmo.OGerrynemsabiadizercomofoiqueaquiloapareceuali,nemquando.Masohomemnacamaao ladodeTonynoBrooklyndisseque tinha feitoaquilo,queeleeraserralheiro.Nãoéumacoincidência?IssoacontecernoBrooklyn.”Norafezchá,quandoDonalfoiparaacama.Levouochácombiscoitosebolonumabandejaparaa
saladosfundos.Depoisqueserviramochánasxícaras,MayLaceybebeuumpoucoerecomeçouafalar.“Claro,todosmeusfamiliarespensavamdemaisemMaurice.Viviamperguntandodelenascartas.Ele
eraamigodeJackantesdeJackirembora.EclaroqueMauriceeraumgrandeprofessor.OsmeninosadoravamoMaurice.Sempreouvidizeremisso.”Olhandoparaalareira,Noratentavapuxarpelamemória,procurandosaberseMayLaceyjáestivera
algum dia naquela casa.Achava que não. ConheciaMay Lacey faziamuito tempo, assim comomuitagentena cidade, cumprimentava e trocavapalavras amáveis, ou entãoparava ebatiaumpapo rápido,casohouvessealgumanovidade.ConheciaahistóriadavidadeMayLacey,seunomedesolteira,sabiaem que jazigo no cemitério ela ia ser enterrada. Nora a tinha ouvido cantar um dia num concerto,lembravadesuavozestridentedesoprano—umadascançõesfoi“Home,SweetHome”ou“OftintheStillyNight”.NoraachavaqueMayLaceynãoeradesairmuitodecasa,excetoparafazercompraseiràmissano
domingo.EntãoasduassecalarameNoraachouquedaliapoucoMayiriaembora.“Foigentilezasuavirmevisitar”,disse.“Ah,Nora,tivemuitapenadevocê,masacheimelhoresperarumpouco,nãoquisficartumultuando
suacasa,comummontedegenteaqui.”Elanãoquismaischáe,quandoNorafoiàcozinhacomabandeja,achouqueMay,quemsabe,fosse
selevantarevestirocasaco,porémelanãosaiudacadeira.Norafoiaoandardecimaverseosmeninosestavamdormindo.Sorriuconsigomesmaaopensaremsimplesmenteirparacama,cairnosonoedeixarMayLaceyláembaixo,olhandoparaalareira,esperandoemvãosuavolta.“Onde estão as meninas?”, perguntou May assim que Nora desceu. “Nunca vejo as meninas, elas
viviampassandoparaláeparacáotempotodo.”“Aine está na escola em Bunclody. Agora vai morar lá”, disse Nora. “E Fiona está em Dublin,
estudandoparaserprofessora.”“Vocêvaisentirsaudadequandoelasforemembora”,disseLacey.“Eusintosaudadedetodomundo,
verdade,mas,éengraçado,detodosénaEilyqueeupensomais,apesardesentirfaltadoJacktambém.Haviaalgumacoisa,seilá,eunãoqueriaperderaEily.DepoisqueRosemorreu—vocêjásabedetudoisso,Nora—,penseiqueelafossevoltarparacasa,ficaraqui,arranjarumemprego,masumbelodia,umaouduassemanasdepoisdeelatervoltado,viqueestavamuitocaladaequeaquelenãoeraoseujeito normal, então ela começou a chorar namesa e foi aí que soubemos que o companheiro dela emNovaYorksóadeixouvirparacasaseelacasassecomele.Eelajátinhacasadocomele,lámesmo,semcontarnadaparanós.‘Bem,entãoéisso,Eily’,eufalei.‘Vocêprecisavoltarparaele,então.’Eunãoconseguiaolharnosolhosdelanemfalarcomela,eelamemandoufotografiasdosdoisjuntosemNovaYork,maseunãoconseguiolharparaasfotografias.Eramaúltimacoisadomundoqueeuqueriaver.Semprefiqueimuitotristeporelanãoterficadoaqui.”“Sim, fiquei triste quando soube que ela voltou para lá,mas talvez ela esteja feliz”, disseNora, e
quando May Lacey baixou os olhos com ar tristonho e uma expressão magoada no rosto, Noraimediatamenteachouquetalveztivessefaladoalgoquenãodevia.MayLaceycomeçouaremexerdentrodabolsa.Pôsnosolhososóculosdeleitura.“AcheiqueeutivessetrazidoacartadeJack,masdevoterdeixadoemcasa”,disseela.Examinouumpedaçodepapeledepoisoutro.“Não,nãotrouxemesmo.Queriamostraravocê.Tinhaumacoisaqueelequeriaperguntarparavocê.”Noranãodissenada.FaziamaisdevinteanosquenãoviaJack.“Talvezeuacheacartaláemcasaemandeparavocê”,disseMay.Levantou-separairembora.“Nãoachoqueelevaivoltarparacasa”,disseenquantovestiaocasaco.“Oqueiriafazeraqui?Eles
têmavidadelestodaláemBirmingham,jámeconvidaramparairláetudo,masrespondiparaoJackqueeupreferiachegaraofimdosmeusdiassemveraInglaterra.Masachoqueelebemquegostariadeteralgumacoisaporaqui,umlugarquepudessevisitar,talvezverosfilhosdeEilyoudeoutros.”“Bem,eletemvocêparavisitar”,disseNora.“Eleachouquevocê iavenderCush”,disseMay,enquantopunhaocachecolnopescoço.Ela falou
como se aquilo não fossenada,mas, aoolhar paraNora, sua expressão era dura e concentrada e seuqueixocomeçouatremer.“Elemeperguntousevocêiavender”,disseela,efechouabocacomfirmeza.“Aindanãofizplanos”,respondeuNora.Maycontraiuoslábiosdenovo.Nãosemexeu.“Gostariadetertrazidoacarta”,disse.“JacksempreadorouCusheBallyconnigar.Elecostumavair
lácomoMauriceecomosoutros,esempreselembra.Eolugarnãomudoumuito,deláparacá,todomundoiriaselembrardele.Naúltimavezemqueveio,nãoconheceumetadedaspessoasdacidade.”Noranãodissenada.QueriaqueMayfosseembora.“Voudizeraelequefaleicomvocêsobreoassunto.Étudoquepossofazer.”ComoNoranãorespondeu,Mayolhouparaela,nitidamenteincomodadacomosilêncio.Caminharam
paraohallepararamdiantedaporta.“Otempocuratudo,Nora.Éoquetenhoalhedizer.Edigoporexperiênciaprópria.”Suspirou,quandoNoraabriuaporta.“Obrigadapelavisita,May”,disseNora.“Boanoite,Nora,ecuide-se.”Noraobservou-aindoemboralentamentepelatrilha,acaminhodecasa.NorafoidecarroparaCushnovelhoAustinA40,numsábadodaquelemêsdeoutubro,deixandoos
meninos brincando comamigos e semcontar a ninguémpara onde estava indo.Seuobjetivonaquelesmeses, enquantoooutono se aproximavado inverno, era se empenharpara reprimir as lágrimas, pelobemdosmeninose,talvez,paraseuprópriobem.Ochoro,quepareciavirsemnenhummotivo,assustavaosfilhoseosperturbava,enquantoiamsehabituandoàausênciadopai.Norasedavacontadequeelestinham passado a se comportar como se tudo estivesse normal, como se na verdade nada estivessefaltando.Estavamaprendendoadisfarçaroquesentiam.Emtroca,Noraaprendeuaidentificarsinaisdeperigo,pensamentosquelevariamaoutrospensamentos.Noramediaseusucessocomosmeninospelograudecontrolequeconseguiatersobreosprópriossentimentos.Quandodesciaomorro,jáforadopovoadoTheBallagh,eteveaprimeiravisãodomar,lheocorreu
quenuncaatéentãohaviaestadosozinhanaquelaestrada.Durantetodosaquelesanos,bemnaquelepontodaestrada,umdosmeninos,ouumadasmeninasquandoerammenores,berrava:“Dáparaveromar!”,eNoraprecisavaobrigá-losaficarsentadosequietos.Em Blackwater, Nora pensou em fazer uma parada a fim de comprar cigarros ou chocolate, ou
qualquercoisaqueservisseparaadiarsuachegadaaCush.Mastinhacertezadequealgumconhecidoiriavê-lae iriaquerer lhedarcondolências.Aspalavrasvinhamcomfacilidade:“Lamentomuito”ou“Lamentomuitosuasituação”.Todosacabavamfalandoamesmacoisa,sóquenãohaviaumafórmulaprontapara responder. “Eu sei”ou “Obrigada”parecia insensível, quasevazio.E aspessoas ficavamparadas,olhandoparaela,atéNoranãoverahoradeselivrardelas.Haviaalgodefamintonamaneiracomoseguravamsuamãooufitavamseusolhos.Noraseperguntousealgumdiajáteriafeitoaquilocomalguém;achavaquenão,nunca.QuandovirouàdireitaparaBallyconnigar,sedeucontadequesesentiriapiorseaspessoascomeçassemaevitá-la.Comumchoque,lheocorreuqueprovavelmenteelasestavamfazendoissomesmo,sóqueelanãotinhanotado.Océuhaviaescurecidoegotasdechuvabatiamnopara-brisa.Alipareciamuitomaisdesertoemais
invernosodoquenocampo,naestradaparaBlackwater.Entrouàesquerdanaruadaquadradehandebolirlandês*quelevavaaCushesepermitiuumbrevedescansoparaimaginarqueaindaestavavivendoummomentodopassadorecente,umdiaescurodeverão,comocéuameaçador,e tinha idoaBlackwatercomprar carne, pão e jornal. Havia jogado suavemente asmercadorias no banco de trás, e a famíliaestavareunidadentrodacasajuntoaolagolodoso,Mauriceeosfilhos,etalveztambémmaisumoudoisamigos,eosfilhostinhamdormidotardeeagoraiamficarfrustradosporqueosolnãoestavabrilhando,mas aquilo não os impediria de ficar brincandode jogar e rebater a bola comumbastão ou de fazerbagunça na frente da casa, ou de ir para amargem do lago. Porém, se chovesse o dia todo, é claro,permaneceriam dentro de casa jogando cartas, até que os dois meninos se aborrecessem e fossemreclamarcomela.Nora sepermitiu imaginar tudo issoo tempoquequis.Porém, assimque teve avisãodomar edo
horizonteportrásdotelhadodeCorrigan,taisfantasiasjánãotiveramnenhumautilidade,eelavoltoudenovoparaomundonuecru.Conduziuocarropelatravessaeabriuatrancadosportõesgrandesdeferrogalvanizado.Estacionou
emfrenteàcasaefechouosportõesoutravez,paraqueninguémvisseocarro.Adorariaquealgumadesuas antigas amigas estivesse ali, CarmelRedmond ouLilyDevereux, que sabiam falar com ela comsensatez, não sobre aquilo que Nora havia perdido, ou que sentiammuito por ela, mas sobre filhos,dinheiro,trabalhodemeioexpedienteecomoviveragora.ElasouviriamNora.MasCarmelmoravaemDublinesóvinhanoverão,eLilyapenasdetemposemtempos,paraveramãe.Noraentrounocarrodenovo,enquantooventodomaruivavaàsuavolta.Acasaestaria fria.Ela
deviaterpegoumagasalhomaispesado.Sabiaquedesejarquesuasamigasestivessemaliousedeixarficarnocarrotremendodefriodaquelejeitonãopassavademeiosparaadiaromomentoemqueteriade
abriraportaeentrarnacasavazia.Entãooventobateuaindamais forteesibilanteedeua impressãodeque ia levantarocarro.Uma
coisa que Nora não se permitira pensar antes, mas da qual já estava consciente havia alguns dias,irrompeuemsuamente,eelafezumapromessaasimesma.Nuncamaisvoltariaali.Eraaúltimavezquevinhaàcasa.Agoraelaiaentrareatravessarospoucoscômodosdacasa.Levariaosobjetospessoaisquenãopudessemserdeixadoslá,fechariaaporta,voltariaparaacidadee,nofuturo,nuncamaisfariaaquelacurvanaruaestreitadaquadradehandebolirlandês,naestradaentreBlackwatereBallyconnigar.Afirmezadesuadecisãoasurpreendeu.Comopareciafácildarascostasparaaquiloquetinhaamado,
abandonaraquelacasanatravessaqueiadarnopenhascoedeixá-laparaoutraspessoas,queviriamnoverãoeaencheriamdebarulhosdiferentes.Sentada,olhandoparaocéumachucadoacimadomar,Norasoltouumsuspiro.Porfim,sepermitiusentirquantacoisahaviaperdidoequantasaudadeiater.Saiudocarro,aprumandoocorpocontraaforçadovento.Aportadafrenteseabriaparaumasaleta.Haviadoisquartosdecadalado,osquartosdaesquerda
combeliches,àdireitaumasala,umacozinhapequenaeumbanheiro,aoladodoqualficavaoquartodeles,sossegado,longedascrianças.Todoano,noiníciodejunho,elesiamparalá,todosjuntos,sábadoedomingo,mesmoquandootempo
não estava bom. Levavam escovas, esfregões, detergentes e panos para limpar as janelas. Levavamcolchõesbemventilados.Eraummomentomarcante,umalinhadivisórianocalendárioquesignificavaocomeçodoverão,aindaqueoverãofossecinzentoenebuloso.NosanosqueNoraqueriarecordaragora,ascriançaserambarulhentaseanimadasnoinício,comosefossemumafamíliadeamericanossaídadoprogramaTheDonnaReedShow.Imitavamosotaqueamericano,davaminstruçõesunsaosoutros,maslogoficavamentediados,seaborreciam,eNoradeixavaquefossembrincar,quedescessematéamargemdolagoe fossemapéparaopovoado.Eentãocomeçavao trabalhoduro.Quandoos filhossaíamdecena,Mauricefaziacoisascomopintaraspartesdemadeira,passartintaàbasedeáguanocimento;olinóleodochãoeracobertonoslocaisondehaviafuros,Noraremendavaopapeldeparedeondehaviamofooumanchasdemais,eparaissoelaprecisavadesilêncioeconcentração.Noragostavademediratéaúltimafraçãodecentímetro,daràcolaaconsistênciaexataecortarremendosdepapeldeparedevistosos,comestampasflorais.Fionatinhahorroraaranhas.Noraselembroudissoagora.Elimparacasasignificava,acimadetudo,
removeraranhas,percevejose todo tipode insetorastejante.OsmeninosadoravamverFionagritar,eFionatambémadoravadargritos,sobretudoporqueseupaiaprotegiacomgestoscalculados.“Ondeeleestá?”,gritavaopai,imitandoogigantedahistória“Joãoeopédefeijão”,eFionasevoltavaparaopai,queaabraçava.Isso era passado, pensou Nora enquanto entrava na sala, e não podia ser recuperado. O frio e a
estreitezadasalalheprovocaramumaestranhasatisfação.Haviaevidentementeumagoteiranotelhadodefolhasdeflandresgalvanizadas,poisseviaumamancharecentenoteto.Acasatrepidavaquandoumarajadadeventolançavaumjatodechuvacontraovidro.Asjanelasteriamdeserconsertadasembreveeamadeiracomeçavaaapodrecer.Equemsabequantotempofaltavaparaopenhascoserdevoradoatéolocalondeacasaestava,eelaentãoteriadeserdemolidaporordemdaprefeitura?Agoraaquelaseriapreocupaçãodeoutraspessoas.Outraspessoaspoderiamconsertarasgoteirasecuidardaumidadenasparedes.Outraspessoasiriamtrocarafiaçãoelétricaepintaracasa,ouabandoná-laàforçadanaturezaquandochegasseahora.NorapoderiavenderacasaparaJackLacey.Nenhummoradordaliiaquerercompraracasa;sabiam
queeraummauinvestimentocomparadocomascasasdeBentley,CurracloeouMorriscastle.NinguémdeDublinquevisseoestadodacasafariaumaproposta.Noraobservouasalaeestremeceu.
EntrounosquartosdosfilhosenoquartoquetinhasidodelaedeMauriceepercebeuque,paraJackLacey,emBirmingham,serdonodaquilorepresentavaumsonho,partedeumalembrançadedomingosdesolcausticante,meninosemeninasandandodebicicletaepossibilidadesesplêndidasàfrente.Poroutrolado,NoraimaginouJackentrandonacasadaliaumoudoisanos,quandofossepassarquinzediasdefériasnaIrlanda,comotetomeiotombado,teiasdearanhaportodolado,opapeldeparededescascado,asjanelasquebradasealuzcortada.Eodiadeverãoescuro,comumchuviscoincessante.Nora abriu as gavetas,mas ali não havia nada que desejasse. Só jornais amarelados e pedaços de
barbante.Mesmoas louças eosutensíliosde cozinhapareciamnãovaler o trabalhode levá-losparacasa.Noquarto,achoualgumasfotografiaselivrosdentrodeumarmáriofechadoàchave,eosjuntoupara levarconsigo.Nadamais.Osmóveisestavamimprestáveis,as luminárias jágastasedesbotadas.NoralembrouquehaviacompradoaquelaspeçasnaWoolworth’s,emWexford,poucosanosantes.Tudoapodreciaedesbotavanaquelacasa.Achuvacomeçouacaircommaisforça.Noratirouumespelhodaparededoquartoenotoucomoo
espaçoqueelecobriaestavamaisclaro,comparadocomopapeldeparededesbotadoepoeirentoemtodaavolta.Aprincípioachouqueasbatidasqueouviueramalgumacoisaqueesbarraranaportaouoventona
janela.Comoasbatidascontinuarameelaouviuumavoz,entendeuquetinhavisita.Ficousurpresa,poisachouqueninguémhavianotadosuachegadanemvistoseucarro.Aprimeirareaçãofoiseesconder,massabiaquejátinhasidovista.Quandoabriuoferrolho,aportadafrentequaseagolpeou.Afiguraláforausavaumanoraquegrande
demaisparaseutamanho,ocapuzenormecobrindometadedorosto.“Nora,ouviobarulhodocarro.Vocêestábem?”Quandoocapuzbaixou,ela reconheceuasra.Darcy,aquemnãoviadesdeoenterro.Asra.Darcy
seguiu-aparadentrodacasa,quandoNorafechouaporta.“Porquenãotelefonouantesdevir?”,elaperguntou.“Nãovimparaficarmuitotempo”,respondeuNora.“Pegueocarroeváláparacasa.Vocênãopodeficaraqui.”Maisumavez,Norapercebeuotomintimidante,comoseelafosseumacriança,incapazdetomaras
próprias decisões.Desde o enterro,Nora tentava ignorar aquele tomde voz, suportar aquilo.Tentavaentenderquesetratavadeumsinaldegenerosidade.Naquelemomento,teriaficadoaliviadaempegarseuspoucospertencesdacasa,pô-losnocarroeir
emboradeCush.Masnãopoderiafazerisso,tinhadeaceitarahospitalidadedasra.Darcy.Asra.Darcynãoquisirdecarrocomela,insistindoqueestavamolhadademais.Iriavoltarapépara
casa,enquantoNorairiadirigindoseucarro,disse.“Vouficarmaisalgunsminutos.Daquiapoucoalcançovocê”,disseNora.Asra.Darcyolhou-aespantada.Norahaviatentadoimprimirumtomnaturalàvoz,masemvezdisso
deuaimpressãodequecontavaumsegredo.“Sóqueropegarumascoisinhasparalevarparacasa”,explicou.Osolhosdavisitantebateramnasfotos,noslivrosenoespelhoencostadoàparede,observandoem
seguida tudomaisquehaviana sala.Norapercebeuque a sra.Darcy entendeude imediatooque elaestavafazendo.“Nãodemoremuito”,disse.“Vouprepararumcháparavocê.”Quandoasra.Darcyfoiembora,Norafechouaportaevoltouparadentrodacasa.Estava feito.Comseuolhar abrangentepara a sala, a sra.Darcy tornara aquilo real.Noradeixaria
aquelacasaenuncamaisvoltaria.Nuncamais iriacaminharporaquelas trilhas,enãoiriasepermitir
nenhumarrependimento.Estavaacabado.Pegouaspoucascoisasquehaviajuntadoepôsnoporta-malasdocarro.
***Acozinhadasra.Darcyestavaquente.Elapôsunsbolinhosfrescoscommanteigaderretidanumprato
eserviuochá.“Ficamosaquipensandoemcomovocêestaria,masBillParlenoscontouque,nanoiteemqueelefoi
lá,suacasaestavacheiadegente.Talvezdevêssemosterido,masachamosmelhordeixarparadepoisdoNatal,quandovocêtalveznecessitassemaisdecompanhia.”“Recebimuitasvisitas”,disseNora.“Masasenhorasabequeésemprebem-vinda.”“Bom,hámuitagentequegostabastantedevocê”,disseasra.Darcy.Elatirouoaventalesentou-se.“Todosnósficamospreocupadoscomvocê,pensandoquenuncamaisvocêiriavoltarparacá.Carmel
Redmond,sabe,estavalongequandoaconteceu,eficouchocada.”“Eusei.Elameescreveu”,disseNora.“Edepoisfoimevisitar.”“Elanoscontou”,disseasra.Darcy.“ELilyestavaaquinaqueledia,edissequedeviaestarcuidando
devocê.Eusempreficavaesperandoodiaemquevocêsvinhamparacáedeixavamacasaumbrinco.Paramim, era o começoda temporada do tempobom.Meu coração ficava leve quando eu via vocêschegando.”“Eumelembrodeumano”,disseNora,“estavachovendotãofortequevocêtevepenadagenteenos
trouxeparacá,todosnós,paratomarmoschá.”“Sabe”, disse a sra. Darcy, “seus filhos tinham um comportamento excelente. Eles sãomuito bem-
educados. Aine adorava nos visitar. Todos eles gostavam, mas ela era quem conhecíamos melhor. EMauricecostumavavirnodomingo,sehaviajogonorádio.”Noraolhouachuvaláfora.Sentiua tentaçãodeenganarasra.Darcyedizerqueelescontinuariam
vindoparaacasa,masnãofoicapazdefazerisso.Eteveasensaçãodequeasra.Darcyhaviaentendidoseusilêncio, tinhaprocuradoalgumadica,algoditoousilenciado,paraconfirmara impressãodequeNoraiavenderacasa.“Poisé,oquenósdecidimos”,disseasra.Darcy,“équenoanoquevemvamosarrumaracasapara
vocês.Euestavacomeçandoatratardissoagoramesmoepensandonumjeitodefazeralgunsreparosnotelhado.Nós vamos ter de fazer essemesmo trabalho no celeiro, então eles podemmuito bem cuidardisso tambémnasuacasa.Nós iremosnos revezarparacuidarde tudo.Tenhoumachaveepodíamosfazerumasurpresaparavocês,masLilydissequeanteseudeviaperguntaravocê,eeuiafazerissosódepoisdoNatal.Lilydissequeacasaerasuaequenósnãodevíamosnosintrometer.”Norasabiaqueagoraprecisavalhecontar,mashaviaalgodetãoefusivoetãoafetuosonotomdevoz
dasra.Darcyqueelaseconteve.“Achei que seria agradável para você”, prosseguiu a sra. Darcy, “chegar e encontrar a casa toda
arrumada.Nãoprecisadizernadaagora,masmeavisesenãoquiserqueagentefaçaisso.Eupossoficarcomachave,amenosquevocêaqueiradevolta.”“Não.Claroquenão,sra.Darcy.Gostariaqueasenhoraficassecomachave.”Nocarro,enquantovoltavaparaBlackwater,Norapensouquetalvezasra.Darcytivesseacreditadoo
tempotodoqueela iavenderacasa,e imaginadoquefazera limpezaeosconsertosfosseaumentaro
valordoimóvel;outalvezasra.Darcynãotenhapensadonada, talvezaprópriaNoraéqueestivesseanalisandodemaisaspessoas,noesforçodedescobriroqueestavampensandodela.MasNorasabiaquetinhasecomportadodemodoestranhoaofecharosportões,depoisdeestacionarocarronafrentedacasa,sabiaquetinhadadoaimpressãodesemovimentarquasefurtivamente,quandoasra.Darcybateunaportaetambémaonãoaceitardeimediato,ourecusar,aajudadelaparacuidardacasa.Norasoltouumsuspiro.Foiinconvenienteedifícil,masagoraestavaacabado.Iaescreverparaasra.
Darcy,paraLilyDevereuxeparaCarmelRedmond.Muitasvezes,nopassado,quandoelatomavaumadecisãocomoessa,acabavamudandodeideianamanhãseguinte,masdessaveznãofoiassim.Elanãoiamudardeideia.Naestrada,voltandoparaEnniscorthy,Noracomeçouafazercálculos.Nãosabiaquantoacasavalia.
IapensarnumvaloremandarparaJackLaceynumenvelope—nãoquerianegociarcomMayLacey—e,casoeleoferecessemenosdoqueelapedia,aceitaria,contantoquefosseumaquantiarazoável.Noranãoqueriaanunciaracasanojornal.OsimpostosdocarroeoseguroestavampagosatéoNatal.Noratinhaplanejadoselivrardelenofim
do ano,mas se vendesse a casa, pensou, ficaria como carro ou compraria ummodelomais novo.Odinheirodacasa tambémpagariaapedrademármorepretadasepulturadeMauricequeelaqueria,eNoraaindapoderiaalugarumtraileremCurracloe,porumaouduassemanas,noverãoseguinte.Comoque sobrasse, poderia cobrir as despesas da casa e ainda comprar roupas novas para ela e para asmeninas.Eguardariaalgumacoisa,paraumaemergência.A casa,Nora sorriu consigomesma, seria como as duas libras e seis pence que umhomemdera a
Conoralgunsverõesantes.Noranãoconseguialembraremqueverãotinhasido,masforaantesdeopaideleadoecereantesdeConorsercapazdeentenderovalordodinheiro.ConortinhadadoodinheiroaMaurice,paraquecuidassedele,edepois,durantetodooverão,todavezqueelesiamaBlackwater,eleusavaaqueledinheiro,pedindoaopai,comtodaasegurança,umapartedasoma.Quandolhedisseramqueodinheirotinhaacabado,Conorserecusouaacreditar.NoraescreveuparaMayLaceyeanexouumacartafechadaparaJack.Poucotempodepois,recebeu
umacartadeleconcordandocomopreçoqueelahaviaproposto.Norarespondeu,representadaporumadvogadodacidadequefariaocontratodecompraevenda.Nora esperou o momento certo de contar aos meninos sobre a venda da casa em Cush e, quando
começou,ficouchocadaaovercomoosdoisparecerampreocupados,atentos,comose,escutandocomcuidado,pudessemouviralgoqueteriaumefeitogravesobreofuturodeles.EnquantoNoraexplicavacomo o dinheiro seria útil, se deu conta de que os dois já sabiam que ela planejava vender o carro,embora aindanão tivesse lhes contado.Osdois não sorriramnem semostraramaliviados quando eladissequeiriamficarcomocarro.“Aindavamospoderirparaauniversidade?”,perguntouConor.“Claro”,respondeuela.“Porqueestáperguntandoisso?”“Quemvaipagar?”“Eutenhodinheiroguardadoparaesseobjetivo.”Nora não quis contar que talvez tio Jim e tia Margaret fossem pagar. Eram o irmão e a irmã de
Maurice, que não haviam casado emoravam juntos na antiga casa da família na cidade. Osmeninoscontinuavamabsolutamente imóveis; olhavam fixo para amãe.Nora foi à cozinha, acendeu o fogodachaleirae,quandovoltouparaasala,elesnãotinhamnemsemexido.“Nas férias, vamos poder ir a lugares diferentes”, disse ela. “Vamos poder alugar um trailer em
CurracloeouemRosslare.Nuncaviajamosdetrailer.”“SeráquevamospoderficaremCurracloenamesmaépocaemqueosMitchellestãolá?”,perguntou
Conor.“Sequisermos,sim.Podemosdescobrirquandoelesvãoouatéirjuntocomeles.”“Vamosficarumaouduassemanas?”,perguntouConor.“Atémais,sequisermos”,disseela.“Masnósvamosc-c-comprarumt-t-trailer?”,perguntouDonal.“Não,vamosalugar.Comprarumtrailerseriaumaresponsabilidadegrandedemais.”“Quemvaic-c-compraracasa?”,perguntouDonal.“Issoaindaéumpoucosegredo.Seeucontar,vocêsnãopodemdizerparaninguém,masachoqueo
filhodaMayLaceyvaicomprar.Sabem,aquelequemoranaInglaterra.”“Foiporissoqueelaveioaqui?”“Achoquefoi,sim.”Norafezocháenquantoosmeninosfingiamvertelevisão.Elasabiaqueoshaviadeixadoperturbados.
ConortinhaorostomuitovermelhoeDonalolhavafixoparaochão,comoseesperassealgumcastigo.Nora pegou um jornal e tentou ler. Sabia que era importante ficar na sala, não deixar os meninossozinhos,apesardagrandevontadedeirparacimaefazerqualquercoisa,esvaziarosarmários,lavarorosto,limparasjanelas.Porfim,teveaimpressãodequeprecisavadizeralgumacoisa.“PodemosiraDublinnasemanaquevem.”Elesergueramosolhos.“Porquê?”,perguntouDonal.“Passarumdiafora,vocêspodemfaltarnaescola”,disseNora.“Tenho p-p-prova de ciências na quarta-feira”, disseDonal. “É chato,mas não p-p-posso faltar, e
tambémtenhof-f-francêscomamadameDuffynasegunda-feira.”“Podemosirnaquinta-feira.”“Decarro?”“Não,detrem.EpodemosvisitarFiona,elatemmeiodialivre.”“Agenteprecisair?”,perguntouConor.“Não.Sósequisermos”,respondeuela.“Oquevamosdizernaescola?”“Voumandarumbilheteexplicandoquetemosdeiraomédico.”“Nãoprecisodebilhete,seforsóumdia”,disseDonal.“Então,pronto.Vamosterumbelodiadefolga.VouescreverparaFiona.”Noratinhaditoissosóparaquebrarosilêncioeparaqueosmeninossoubessemquesemprehaveria
passeios,coisasparafazer.Sóqueparaelesnãofeznenhumadiferença.AnotíciadequeNoraestavavendendoacasaemCushpareceutertornadopresentealgoqueelesvinhamconseguindomanterlongedeseuspensamentos.Nosdiasseguintes,porém,osmeninosseanimaramoutravez,comosenadativessesidodito.ParaaviagemaDublin,nanoiteanteriorNoratiroudoarmárioasmelhoresroupasdosfilhos,mandou
queengraxassemossapatoseosdeixassemjuntoàporta.Quandotentoufazerosmeninos iremparaacamacedo,osdois reclamaramque iapassarna televisãoumprogramaqueelesqueriamver,eNoraacaboudeixandoque ficassemacordadosaté tarde.Mesmodepoisdoprograma,nãoquiseram irparacamae,quandoNorainsistiu,elesficaramentrandoesaindodobanheiroeacendendoeapagandoaluz
doquarto.Porfim,elasubiuparaoquartodeleseviuqueestavamdormindo,aportadoquartotodaaberta,as
camasdesarrumadas.Noratentouarrumarasroupasdecamademaneiramaisconfortávelparaeles,masquandoConorcomeçouaacordar,eladesistiuefechouaportasemfazerbarulho.Demanhã,osmeninosacordaramesevestiramantesdela.LevaramocháparaNora,fortedemais,e
as torradas.Quandoela se levantou,deuum jeitodederramarochánapiadobanheiro semqueelespercebessem.Faziafrio.Iriamdecarroatéaestaçãoferroviária,Noraexplicou,eodeixariamnaRailwaySquare.
Seria cômodoparaquandoelesvoltassemànoite, disse.Osdois concordaramcoma cabeça, comarsério.Játinhampostoocasaco.A cidade estava quase deserta enquanto eles seguiam de carro para a estação. Amanhã estava na
semiescuridãoeasluzesdealgumascasasaindaestavamacesas.“Dequeladodotremagentevaisentar?”,perguntouConorquandochegaramàestação.Estavam vinte minutos adiantados. Nora havia comprado as passagens, mas Conor não quis ficar
sentadocomelaeDonalnasaladeesperaaquecida,quisatravessarapassareladeferroeacenarparaelesdooutrolado;quiscaminharatéacabinedosinaleiro.Atodoinstanteelevoltavaparaperguntaraquehorasotremiachegar,atéqueumhomemlhedisseparaobservarasinaleiraentreaplataformaeotúnel;quandoelabaixasse,significavaqueotremestavachegando.“Masagentejásabequeeleestáchegando”,disseConorcomimpaciência.“Asinaleiravaibaixarquandootremestiverdentrodotúnel”,disseohomem.“Seagenteestivessedentrodotúneleotremchegassederepente,agenteiavirarpicadinho”,disse
Conor.“Oraessa,éclaro,sóiamacharpedacinhosdevocê.E,quersaber,todosospiresexícarassacodem
dentrodascasasquandootrempassaembaixodelas”,disseohomem.“Nanossacasanãosacodem.”“Issoéporqueotremnãopassaembaixodasuacasa.”“Comoéquevocêsabe?”,perguntouConor.“Ah,euconheçobemasuamãe.”Nora reconheceu o homem, ela conhecia muitas pessoas na cidade; achava que ele trabalhava na
oficinadeDonoghue,masnão tinhacerteza.Algumacoisano jeitodelea irritou.TorciaparaquenãofosseparaDublincomeles.Poucoantesdeo tremchegaredeosmeninos terem idomaisumavezatéacabinedosinaleiro,o
homemsevirouparaela.“Achoqueelesaindasentemfaltadopai”,disse.OhomemobservouorostodeNora,àesperadeumaresposta,eestreitouaspálpebras,olhandocom
curiosidade.Norateveasensaçãodequeprecisavadizeralgumacoisadepressa,adverti-locomfirmezade que não devia falarmais do assunto e, acima de tudo, impedir que se sentasse junto com eles naviagem.“Essaéaúltimacoisaqueelesprecisamouvirnestemomento,obrigada”,disse.“Ah,claro,eunãotiveaintenção…”Noraseafastouquandootremchegou,eosmeninoscorreramempolgadospelaplataformanadireção
da mãe. Nora sentiu o rosto ficar vermelho, mas eles não perceberam, enquanto discutiam sobre osmelhoreslugaresparasentarnotrem.Quandoo tremcomeçouaandar,elesqueriamtudo:verobanheiro, ficardepénoespaçoprecário
entreosvagões,deondesepodiaveraterrapassandodepressaporbaixodotrem,iraorestaurantee
comprar limonada.Nahoraemqueo tremparouemFerns, tinhamfeito tudo issoe,nahoraemqueotremchegouaCamolin,tinhamadormecido.Noranãodormiu;haviapassadoosolhospelo jornalquecompraranaestação,odeixarade ladoe
observava os dois meninos desabados em suas poltronas, dormindo. Adoraria saber o que estavamsonhando.Naquelesmeses,elasedeuconta,algohaviamudadonarelaçãodiretaefácilentreelaeelese,talvez,paraosmeninos,entreumeoutro.Noratinhaasensaçãodequenuncamaisiriasesentirseguraarespeitodosfilhos.Conoracordou,olhouparaelaevoltouadormircomacabeçaaninhadanosbraçoscruzadossobrea
mesa.Nora estendeu amão e tocou no cabelo dele, deixou asmãos correrempela cabeça, virando ocabeloparaoladoepondo-ooutraveznolugar.DonalobservavaNora,seuolharcalmosugeriaqueeleentendiatudoqueestavaacontecendo,quenãohavianadaqueelenãopercebesse.“Conorestádormindopesado”,disseNora,sorrindodepois.“Ondeagenteestá?”,perguntouDonal.“PertodeArklow.”EmWicklow,Conortinhaacordadoeidoaobanheirodenovo.“Oqueacontecesedouadescargaquandootremestánaestação?”,perguntou.“Acoisacaiemcimadostrilhos”,elarespondeu.“Equandootremestáandando,paraondeelavai?”“Vamosperguntaraobilheteiro”,disseNora.“Ap-p-postoquevocênãovaiperguntar”,disseDonal.“Quemalfariaseeufosseaobanheirocomotremparadonaestação?”,perguntouConor.“Iaficarcheirandomal”,respondeuDonal.Nãoventavanaquelamanhã,asnuvensnohorizonteestavamcinzentaseomaratrásdeWicklowtinha
cordeaço.“Quandovãocomeçarostúneis?”,perguntouConor.“Agora,jáfaltapouco”,respondeuNora.“Depoisdapróximaestação?”“Sim,depoisdeGreystones.”“Faltamuitotempo?”“Leiasuarevistaemquadrinhos”,sugeriuNora.“Ostrilhossacodemmuito.”Noprimeirotúnel,osmeninostaparamosouvidosporcausadobarulhotrovejante,brincaramumcom
outro,fingindoqueestavamcommedo.Otúnelseguinteeramuitomaiscomprido.ConorquisqueNoratapasse os ouvidos também, e ela fez isso para agradá-lo, porque sabia que omenino tinha dormidopouco,podiaficarirritadiçoeseaborrecerfacilmente.Donaljáestavaentediadodetaparosouvidos,masseaproximoudajanelaquandootremsaiudotúnelparaumadescidaacentuadaemdireçãoàságuasagitadasláembaixo.ConoragoraestavaaoladodeNoraeobrigou-aatrocardeassentoparaqueelepudesseficarnajanelatambém.“Agentepodiadespencar”,disseele.“Não,não,otremsóandanostrilhos.Nãoécomoumcarro”,explicouNora.Ele ficou como nariz grudado no vidro, fascinado como perigo.Donal tambémnão se afastou da
janela,mesmoquandootremchegouàestaçãodeDúnLaoghaire.“Aquiéofim?”,perguntouConor.“Jáestamosperto”,disseela.“Eaondeagentevaiprimeiro?VamosveraFionaprimeiro?”
“VamosparaaHenryStreet.”“Oba!”,gritouConor.Estavatentandoficardepéemcimadapoltrona,masNoraobrigou-oasentar.“EvamosjantarnalojaWoolworth’s”,disseela.“Noself-service?”“Issomesmo,assimagentenãoprecisaficaresperando.”“Possotomarsucodelaranjanojantar,emvezdeleite?”,perguntouConor.“Pode”,respondeuNora.“Podetomaroquequiser.”DesembarcaramnaAmiensStreet ecaminharampelaestaçãoúmidaedegradada.Andaramdevagar
pelaTalbotStreet,parandoa fimdeolharasvitrines.Noraseobrigoua relaxar,nãohavianadaparafazer,podiampassarotempoondequisessem.Deudezxelinsparacadaumgastar,masassimquefezissoteveaimpressãodequeestavacometendoumerro,eradinheirodemais.Elesexaminaramodinheiroeolharamparaelacomardesconfiado.“Agentetemqueco-compraralgumacoisa?”,perguntouDonal.“Talvezagentecompreunslivros”,disseNora.“Podemoscomprarrevistasemquadrinhosouumaagenda?”,perguntouConor.“Aindaestámuitocedoparaumaagenda”,disseDonal.QuandoseaproximaramdaO’ConnellStreet,quiseramvero lugarondeanteshaviaummonumento
chamadoColunadeNelson.**“Eumelembrodela”,disseConor.“Vocênãopo-podelembrar.Vocêeramuitopequeno”,disseDonal.“Lembro,sim.EraaltaeoNelsonficavaláemcima,eaíexplodiramtudoemcaquinhos.”AtravessaramaO’ConnellStreetatentosaotrânsitoquevinhadeváriasruasestreitas,esperandocom
cuidadoosinalficarverde.QuandoentraramnaHenryStreet,Norateveconsciênciadequeelesdeviamdara impressãodeserpessoasdocampo.Osmeninosconseguiamassimilar tudoe,aomesmotempo,mantertudoàdistância.Comocantodosolhos,elesobservavamaquelemundodegentedesconhecidaedeprédiosestranhos.Conorficouimpacienteparaentrarnumaloja,emqualquerloja,paracompraralgumacoisa.“Gostaria de ver sapatos?”, perguntou Nora, imaginando que quando ele dissesse não, se sentiria
satisfeitoportersidoeleadecidiraondeiam.“Sapatos?”Elefranziuorosto,contrariado.“FoiparaissoqueagenteveioaDublin?”“Entãoaondevocêquerir?”,perguntouNora.“Querosubiredescernumaescadarolante.”“Evocêtambémquerfazerisso?”,elaperguntouaDonal.“Eua-achoq-q-quesim”,elerespondeudemauhumor.NalojaArnott’s,naHenryStreet,ConorquisqueNoraeDonalficassemvendoenquantoelesubiade
escadarolante,depoisesperassemeovissemdescer.Fezquestãodequenãofossemjuntocomeleenãosaíssemdolugar.Obrigouosdoisaprometer.Donalseaborreceu.Naprimeiravez,Conorficouolhandoparatrás,nadireçãodeles,eNoraeDonalesperaramenquanto
elesumianoaltoedepoisreaparecianaescadarolante,descendo.Conorsorriuradianteparaeles.Nasegundavez,tomoucoragemesubiualgunsdegraus,doisdecadavez,sempreapoiadonocorrimão.Navezseguinte,quisqueDonalfossejunto,masfezquestãodequeNoracontinuasseláembaixo,esperando.Noraexplicouqueaquelateriadeseraúltimavez,quetalvezpudessemvoltaraliàtarde,masquesubiredesceraescadarolantetrêsvezesjáeraosuficiente.Quandoelesvoltaram,NoraviuqueDonaltambémestavaanimado.Disseramquetinhamachadoum
elevadormaisadianteequetambémqueriamsubiredescernoelevador.
“Sómaisumavezepronto”,respondeuNora.Ela seafastouecomeçouaolharosguarda-chuvas,observoualgunsqueeramdobráveise ficavam
pequenosobastanteparaguardardentrodabolsa,algoquenunca tinhavisto.Pensouemcomprarum,para o caso de chover. Enquanto esperava na fila do caixa, procurou os meninos, mas eles nãoapareceram.Depoisquepagou,Noravoltouaopontodeencontroedepoisaolugarpertodeumaportalateralàqualoelevadordavaacesso.Osmeninos não estavam lá.Nora ficou esperando entre os dois pontos, olhando emvolta o tempo
todo,embuscadosmeninos.Pensouempegaroelevadortambém,massedeucontadequeissoapenasserviriaparaaumentaraconfusão.Seficasseali,pensou,acabariaencontrandoosfilhos.Quandoelesaencontraram,fingiramquenão tinhaacontecidonadademais,queoelevadorapenas
haviaparadoemtodososandares.QuandoNora lhesdissequepensouqueeles tinhamseperdido,osdois se olharam, como se algo tivesse ocorrido com eles no elevador e não quisessem que a mãesoubesse.Àstrêshoras,tinhamvistotudoquedesejavamveremDublin.TinhamidoàMooreStreetecomprado
umsaquinhodepêssegos, tinhamjantadonoself-servicedaWoolworth’seforamà lojaEason’s,ondecompraram revistas em quadrinhos e livros. Os meninos estavam cansados quando sentaram no caféBewley’sàesperadeFiona.NoraachavaqueaúnicacoisaqueaindamantinhaConoracordadoeraaideiadequepodiapegarquantosbolinhosdepassasquisessenopratodedoisandares.“Vamosterquepagarpelosbolinhos”,disseNora.“Mascomoelessabemquantosbolinhosagentepegou?”“Aspessoascostumamserhonestas”,disseNora.Quando Fiona chegou, osmeninos ficaram agitados e alegres outra vez, os dois querendo falar ao
mesmotempo.ParaNora,Fionapareceumagraepálida,quandosentoudiantedela.“QuerouvirosotaquedeD-d-dublin?”,perguntouDonalparaairmã.“FomosàMooreStreet”,disseNora.“Comprarpêssegosmaduros”,falouDonalcomvozcantadaesemgaguejar.“Olhemeulifro”,acrescentouConor.“Queengraçado”,disseFiona.“Desculpeoatraso,passamdoisoutrêsônibusjuntosedepoisagente
precisaficaresperandoumtempãopelopróximoônibus.”“Queroirnosegundoandardeumônibusduplo”,disseConor.“Conor,deixeaFionafalarumsegundo,depoisvocêfala”,disseNora.“Estãotendoumdiaagradável?”,perguntouFiona.OsorrisodeFionaeratímido,porémotomdevozeraadultoeconfiante.Elahaviamudadoaolongo
daquelespoucosmeses.“Sim,masagoraestamostodoscansados,eébompodermosficarsentadosaqui.”Ninguém parecia saber o que dizer em seguida. Nora se deu conta de que sua resposta tinha sido
formaldemais,comoseestivessefalandocomumapessoaestranha.Fionapediucafé.“Vocêcomproualgumacoisa?”,perguntouFiona.“Naverdadenãodeutempo”,respondeuNora.“Compreiumlivro,sóisso.”Nora notou a maneira seca e eficiente de Fiona pedir o café e como olhou em redor com olhos
aguçados,quasecríticos.Quandofaloucomosirmãos,porém,setornouquaseinfantiloutravez.“TevenotíciasdeAine?”,perguntouNora.“Elamemandouumacartapequena.Achoqueficoucommedodequeasfreiraslessemacarta,ecom
razão,porqueelas leemmesmo.Portanto,Ainenãocontougrandecoisa.Sóquegostadoprofessordeirlandêsequeestátirandonotasboasderedaçãoemfrancês.”
“Podíamosirvisitá-lanasemanaquevem.”“Elafalousobreisso.”“Vamosvenderacasa”,disseConorparaFiona,derepente,emvozalta.“Evãomorarnarua?”,perguntouFiona,rindo.“Não,agentevaialugarumtraileremCurracloe”,disseele.FionaolhouparaNora.“EstoupensandoemvenderacasadeCush”,explicouNora.“Euimagineimesmo”,disseFiona.“Sóresolvihápoucotempo.”“Entãovaimesmovender?”“Vou,sim.”Noraficousurpresadeverque,enquantoFionatentavasorrir,havialágrimasemseusolhos.Elanão
tinha chorado no enterro deMaurice, apenas permaneceu calada, perto da irmã e das tias,masNorapercebeuoqueelaestavasentindo,emaisaindaporjustamentenãodemonstrar.Noranãosabiaoquemaisdizeraela.Tomouumgoledocafé.Osmeninosnãosemexeramnemfalaram.“AAinesabe?”,perguntouFiona.“Nãotivecoragemdecontarporcarta.Voucontarquandoeuestivercomela.”“Evocêjádecidiumesmo?”Noranãorespondeu.“Eutinhapensandoemirlánoverão”,disseFiona.“AcheiquenoverãovocêfosseparaaInglaterra.”“Evou,nofimdejunho,masasaulasterminamnofimdemaio.Eutinhapensadoempassaromêsde
junhoemCush.”“Lamento”,disseNora.“Eleadoravaaquelacasa,não?”“Seupai?”Fionabaixouacabeça.NoralevouConoraobanheiro.Quandovoltou,pediumaisumcafé.“Paraquemvocêvaivenderacasa?”,perguntouFiona.“JackLacey,ofilhodeMayLacey,queestánaInglaterra.”“MayLaceyfoiláemcasa”,interrompeuConor.Donalcutucouoirmãoepôsodedonoslábios.“Odinheirovaiviracalharagora”,disseNora.“Daquiadoisanos,passareiareceberumsalário”,disseFiona.“Precisamosdodinheiroagora”,disseNora.“Vocênãovaireceberumapensão?”,perguntouFiona.“Issonãoficouacertado?”Noraachouquetalveznãodevesseterditoqueprecisavadodinheiro.“Issosignificaquenãovamosprecisarvenderocarro”,explicouNora,tentandosinalizaraFionaque
talvezelasnãodevessemperturbarosmeninosfalandodedinheiro.“Passamosverõesmaravilhososlá”,disseFiona.“Eusei.”“Étristepensarquevamosperderacasa.”“Vamospassarasfériasemoutroslugares.”“Penseiquesempreteríamosacasa”,disseFiona.
Elasnãodisseramnadaporalgunsminutos.Noraqueriairembora,levarosmeninosdevoltaparaaHenryStreet.“Quandovocêvaivender?”,recomeçouFiona.“Assimqueocontratoestiverpronto.”“Ainevaificarchateada.”Noraseconteveparanãodizerquenãosuportavamais irpara lá.Nãoseriacapazdedizerali,na
frentedosmeninos;iasoaremotivodemais,reveladordemais.Noraselevantouparairembora.“Comoéquesepagaaqui?Nãomelembromais.”“Temdechamaragarçoneteparaelapreencheracomanda”,respondeuFiona.“Evocêvaiterquedizerparaelaquantosbo-bolinhospegou”,disseDonal.QuandoelessaíramparaaWestmorelandStreet,NoraquisfalarmaisalgumacoisaparaFiona,mas
nãolheocorreuoquê.Fionapareciaabatida,paradanarua.Porummomento,Norasesentiuimpacientecomela.Fionaestavacomeçandoavida,podiamorarondequisesse,fazeroquebementendesse.Nãotinhaquepegarotremevoltarparaacidadeondetodomundoaconheciaeondetodososanosquetinhapelafrentejálheestavamtraçados.“NósvamosandandoatéaHenryStreet,pelaponteHa’penny”,disseNora.“Cuidadoparanãoperderemotrem”,disseFiona.“Comovocêvaifazerparavoltaràfaculdade?”,perguntouNora.“EuiapassarprimeironaGraftonStreet.”“Nãovaiatéaestaçãoconosco?”,perguntouNora.“Não,precisoirembora”,disseFiona.“Tenhodepegarumacoisaantesdevoltar,porqueporalgum
temponãovireioutravezaocentro.”Enquantoasduasseolhavam,NorasentiuqueFionapareciahostil,eseesforçouparaselembrarde
comoafilhadeviaestarabalada,alémdesolitáriatambém.Sorriuquandodissequetinhamdeiremborae, em troca, Fiona sorriu para ela e para os meninos. Porém, assim que se afastou, Nora sentiu-sedesamparadaesearrependeudenãoterditoalgogentilouespecial,denãoterconsoladoFionaantesdese despedirem; quem sabe até algo simples, como perguntar quando ela iria visitá-los outra vez, oumesmoenfatizarcomoestavamansiososparavoltaravê-la.Noragostariade terum telefoneemcasaparamanterumcontatomaisregularcomFiona.Achouquepoderiaescreverumbilheteparaafilhanamanhãseguinte,agradecendoporelateridoseencontrarcomeles.Na Talbot Street, a caminho da estação de trem, Conor quis gastar o que restava de seu dinheiro
comprandoLego,masnãoconseguiadecidirquecordaspeçasdeviaescolher.Apesardecansada,Noraescutou, prestou atenção e ofereceu sugestões, enquantoDonal semantinha à parte. Ela sorriu para ocaixaquandoConormudoudeideianahoradepagarevoltouparatrocarumacaixadeLegoporoutra.Agoraestavaescuroecomeçavaaesfriar.Elessentaramembancosdeplásticoquebradosnopequeno
café da estação ferroviária. Quando Nora meteu a mão na sacola de compras para pegar sua bolsa,descobriu que os pêssegos, que poucas horas antes pareciam tão frescos e firmes, estavam moles eencharcados.Osacodepapeltinhaserasgado.Elajogouospêssegosnumalatadelixo,sabendoquenãoadiantavatentarlevá-los,poissóiriamapodreceraindamaisnotrem.Osmeninosnãotinhamimaginadoquejáestariaescuronahoradevoltarparacasa,equandootrem
começouaviagemparaoSul,ovidroda janelaestavacobertopelacondensação.AbriramacaixadeLegoeConorbrincoucomele,enquantoDonal lia.Depoisdealgumtempo,Conor foiparao ladoda
mesaondeNoraestavaedormiuencostadonela.QuandoNoraolhouparaDonal,notoucomoelepareciaestranhamenteadultoaovirarumapáginadeseulivro.“Amanhãagentevaiparaaescola,nãoé?”,perguntouele.“Ah,sim,claro,euachoquevocêsdevemirmesmo”,respondeuNora.Donalfezquesimcomacabeçaevoltouaolharparaolivro.“QuandoaFionavaivoltar?”,perguntouele.AconversadelacomFionanocafé,Norasabia,iriaproduzirumefeitosilenciosonamentedomenino.
Ela se perguntou se haveria alguma coisa que poderia dizer para evitar queDonal se preocupasse eficasseremoendooassunto.“Sabe,aFionavaiadorarotrailer”,disseela.“Doje-jeitoqu-queelafalou,nãoparece”,elereplicou.“Donal,nóstemosquecomeçarumavidanova”,disseNora.Ele refletiu um pouco sobre a afirmação da mãe, como se tivesse diante de si um dever de casa
complicado.Emseguidaencolheuosombrosevoltoualerseulivro.Com delicadeza, Nora empurrou Conor para o lado, enquanto tirava o casaco, pois estava quente
demais no trem. O menino acordou um instante, mas nem chegou a abrir os olhos. Nora anotou namemóriaqueprecisavaperguntarsobretrailersemCurracloe.Empensamento,elafoiparaacasadeCushetentouimaginarosfilhosnumdiadeverão,pegandoas
roupaseastoalhasnovaraledescendoatéabeiradolago,ouelaeMauricecaminhandopelastrilhasemdireçãoàcasa,nocrepúsculo, tentandoseesquivardoenxamedemosquitoseentrandonacasaaosomdosfilhos,quejogavambaralho.Tudotinhaacabado,nãoiamaisvoltar.Acasaestavavazia.Noraimaginou os quartos pequenos na escuridão e como eles deviam estar tristes. Inóspitos. Imaginou obarulhodachuvanotelhadodemetalgalvanizado,asportaseasjanelaschacoalhandocomabatidadovento,ascamasnuas,osinsetosàespreitanasrachadurasescuraseomarsemprerevolto.Enquantoo tremse aproximavadeEnniscorthy,Nora tevea sensaçãodequeagora a casadeCush
estavamaisdesoladadoquenunca.Quando Conor acordou, olhou em volta e sorriu para ela, sonolento. Espreguiçou-se e deitou-se,
encostadoemNora.“Jáestamospertodecasa?”,perguntouConor.“Agorafaltapouco”,respondeuela.“Quando estivermos em Curracloe”, disse Conor, “vamos pôr o trailer perto de Winning Post ou
vamosficarnoestacionamentodetrailerslánoaltodomorro?”“Ah,pertodeWinningPost”,respondeuela.Norasabiaquetinharespondidorápidodemais.DonaleConorrefletiramcomarsériosobreoquea
mãedissera.Emseguida,ConorolhouparaDonaleesperouareaçãodele.“Issoéd-d-definitivo?”,perguntouDonal.Enquantootremreduziaavelocidade,Noraconseguiurir
pelaprimeiraveznaqueledia.“Definitivo?Claroquesim.”Quandootremsacudiueparou,elesjuntaramseuspertencesrapidamente.Nocaminhoparaaporta,
encontraramobilheteiro.“Pergunteparaelesobreosba-banheiros”,sussurrouDonal,cutucandoamãecomocotovelo.“Voudizerquevocêéquequersaber”,disseNora.“SeráqueestasalsichinhaaínãoquerseguirconoscoatéRosslare?”,perguntouobilheteiro.“Ah,não,eleprecisairàescolaamanhã”,respondeuNora.“Nãosousalsichinha”,disseConor.
Obilheteiroriu.
***NahoraemquemanobravaocarroparadeixaraRailwaySquare,Noraselembroudeumacoisaese
viudizendoaosmeninosoquelhepassoupelacabeça.“Umavez,poucodepoisquenoscasamos,devetersidonasfériasdeverão,chegamosàestaçãode
carro,demanhã,evimosquetínhamosperdidootremporumsegundodeatraso.Otremtinhaidoemborae,meuDeus,ficamosarrasados.Masnaquelediaogerentedaestaçãonãoeraomesmodesempre,eraumjovemquetinhasidoalunodopaidevocês,entãoelenosdisseparavoltarmosparaocarroeirmosatéFerns,poiseleiapedirqueotremnosesperasselá.Ficavasóadezouonzequilômetrosdedistância,eassimacabamosconseguindopegarotremnaquelamanhãefomosparaDublin.”“Vocêd-d-dirigiuoufoielequed-d-dirigiu?”,perguntouDonal.“Papaidirigiuocarro.”“Eledevetercorridofeitolouco”,disseConor.“Eledirigiamelhordoquevocê?”,perguntouDonal.Elasorriuenquantorespondia.“Eleeraumbommotorista.Vocênãolembra?”“Lembrodeumdiaemqueeleatropelouumaratazana”,disseDonal.Asruasdacidadeestavamdesertasenãohavianenhumoutrocarro.Osdoismeninospareciamalertas,
prontospara falarmais,perguntaremmais.Quandochegassememcasa,pensouNora,ela iaacenderalareiraeosdoislogosemostrariamcansadosdepoisdaqueledialongo.“Porque,naqueledia,vocêsnãoforamdecarroparaDublinedeixaramotremparalá?”,perguntou
Donal.“Nãosei,Donal”,respondeuNora.“Vouterdepensarsobreisso.”“UmdiaagentepodeiraDublindecarro?”,perguntouConor.“Eagentepodepararondequiser?”“Claroquesim”,elarespondeuenquantoparavaocarronafrentedacasa.“Eubemquegostariadefazerisso”,disseele.Empoucotempoelahaviaacendidoalareiraeosmeninosestavamdepijamaeprontosparadormir.
Tinhamficadomaisquietos,eNorasabiaqueiampegarnosonoassimquealuzdoquartoseapagasse.Norapensousealguémteriaidoàcasadelaàtardeeimaginouumapessoaseaproximandonoescuro,batendo na porta da frente sem que ninguém atendesse, esperando ali por algum tempo e depois indoembora.Noraserviu-sedeumaxícaradecháesentounapoltronapertodalareira.Ligouorádio,masestavam
falando dos resultados esportivos e ela desligou o aparelho. Quando subiu, encontrou os meninosdormindo profundamente e ficou olhando para eles um pouco antes de fechar a porta e deixá-losentregues à noite. Desceu e pensou que podia estar passando algo interessante na televisão. Ligou oaparelhoeesperouapareceralgumaimagem.Comoelairiapreencherashoras?NaquelemomentoNoradaria tudopara estar de novono tremou andandopelas ruas deDublin.Quandoo televisor acendeu,estava passando uma comédia americana. Nora assistiu por algum tempo, mas os risos enlatados airritarameeladesligou.Acasaficouemsilêncio.PensounolivroquehaviacompradoemDublin.Nãoconseguialembraroquealevaraacomprá-lo.
Foiàcozinhaeoprocurounasacola.Assimqueabriuolivro,baixou-odenovo.Fechouosolhos.No
futuro,elaesperava,menosgenteviriavisitá-la.Nofuturo,depoisqueosmeninosfossemparaacama,ela teria a casa só para simais vezes.Aprenderia como passar aquelas horas.Na paz das noites deinverno,planejariadequejeitoiriaviver.
*Esporteemqueosjogadoreslançamabolacomamãocontraumaparedealta,nofundodaquadra,eapanhamorebote.(N.T.)**MonumentoerguidoemDublinem1808edestruídoem1966,porumabombalançadaporrepublicanosirlandeses.(N.T.)
2.TiaJosiefoivisitarNorasemavisar,numsábado,nofimdejaneiro.Noratinhaacendidoalareirana
salaeosmeninosestavamlá,envolvidoscomumprogramadetelevisão,enquantoelalavavalouçanacozinha.Quandoouviuabatidanaporta,pensouquedeviatiraroaventalearrumar-sediantedoespelhoantes de atender, mas em vez disso enxugou as mãos no avental despreocupadamente e atravessoudepressaasalinhaquedavaparaaportadafrente.NoraquaseadivinhouqueeraJosie,aoespiarpelovidro embaçado; como se houvesse algo na presença da tia à espera, na entrada, algo cortante,impositivo,impaciente,quesefaziasentirmesmoatravésdamadeiraedovidro.“Euestavalánacidade,Nora”,disseJosie,assimqueaportaabriu.“EJohnmedeucarona.Agoraele
temunsnegóciospararesolver,masvaimepegarmaistarde.Euqueriavervocê.”NoraviuJohn,ofilhodeJosie,manobrandoocarroeseafastandodacasa.Elasegurouaportaaberta
enquantoatiaentravanasaleta.“Osmeninosestãoaqui?”“Estãovendotelevisão,Josie.”“Eestãobem?”Norapercebeuquenãopodialevaratiaparaasaladevisitaseligaralareiraelétrica.Asalaestava
friademais.Mas tambémsabiaque,seJosie fosseparaasaladeestar, ia fazerquestãodeconversar,poiselanãosabiaficarcalada,eosmeninosteriamdedesligaratelevisãoouficarsentadosbempertodoaparelhoparaconseguirouvir.Noranãolembravaqueprogramaelesestavamvendonemquandoiaterminar.Osmeninosraramenteficavamjuntosdaquelejeito;elagostariadeterdadoodevidovaloràcalma,àpaz,aocontentamentoquehavianacasaantesdeJosiebaternaportaeentrar.“Bem,suasalaestálindaeaquecida,issosouobrigadaareconhecer”,disseJosie.Quandocumprimentouosmeninos,elesselevantaramcomcuidado.“Ah,cadavezmaisaltostodavez
queeuvejovocês,ah,vejasó,unshomenzinhos.Donaljáestádaminhaaltura.”NoraviuqueDonaleConorlançavamolharesemsuadireçãoeelaquasepediuqueJosienãofalasse
muitoatéoprogramaqueelesestavamvendoterminar.“Easmeninas?”,perguntouJosie.“Comovãoelas?”“Ah,estãoótimas”,disseNoraemvozbaixa.“Fionanãoveiopassarofimdesemanaemcasa?”“Não,eladecidiuficaremDublin.”“EaAine?”“Elaestámuitobem,Josie.”
“Bunclodyéumcolégiomuitobom.Estoufelizqueelaestejalá.”Norapôsalgunspedaçosdelenhanalareira.“Eu trouxe uns livros para você”, disse Josie, pondo no chão a sacola de compras que estava
segurando.“Nãoseioquevocêvaiachardeles, temunsromanceseorestopodechamarde teologia,emboranãosejamtãoáridosquantopareçam.OlivrodecimaédeThomasMerton,eujáfaleidelecomvocê,logodepoisdoenterro,etemumdoTeilharddeChardin.FaleisobreelecomMauricenohospital.Enfim,vejaoquevocêacha.”NoraolhouparaDonaleConor.Elestinhamosolhosfixosnatelevisão.Noraestavaàbeiradesugerir
queaumentassemovolume.“Quebomsaberque todosestãobem”,disseJosie.“Ainedeveestarestudandomuito.Hojeemdia
issoémuitobom,hámuitacompetição.”Norafezquesimcomacabeça,educadamente.“Esseprogramanãovaiacabartãocedo”,disse.“Osmeninosquasenuncaveemtelevisão,masgostam
desseprograma.”DonaleConornãotiravamosolhosdotelevisor.“Ah, quando eles ficam lá em casa, são grandes leitores, os dois. Só vemos televisão na hora do
jornal. Nada desses programas americanos podres”, disse Josie. “A gente nem entende o que estãofalando,nessesprogramasamericanos.”Quando Donal se virou para falar, Nora notou que sua gagueira estava mais acentuada. Ele não
conseguiu terminar a primeira palavra; Nora nunca tinha visto Donal fazer um esforço tão grande efracassar,gaguejandoantesmesmodecomeçar.Seuirmãomenor,elaviu,moveuobraçonadireçãodele,como se quisesse ajudá-lo. Nora tentou imaginar o que Donal queria dizer e, por ummomento, tevevontadedecompletarafraseparaauxiliá-lo,afimdeinterromperosombloqueadoeemstaccatoqueDonal emitia, com a testa contraída por causa do esforço. Em vez disso, ela desviou os olhos, naesperança de que ele conseguisse relaxar e expressasse o que queria dizer.No entanto, quando ficouclaroqueDonalnãoiaconseguir,eleparoudeseesforçar,desistiue,àbeiradaslágrimas,virou-separaatelevisão.Norasepegoupensandosehaviaalgumlugarparaondepudesseir,algumacidadeoupartedeDublin
comumacasacomoaquela,umacasamodestaeumpoucoafastada,numaestradamargeadadeárvores,ondeninguémpudessevisitá-loseelespudessemficarsozinhos,ostrês.Entãoviusuamenteindoparaopensamentoseguinte—apossibilidadedeumlugarassim,deumacasaassim,incluiriaaideiadequeoque havia acontecido pudesse ser apagado, que o fardo que pesava sobre ela agora pudesse serremovido,queopassadopudesseserreconstruídoeavançar,semesforço,emdireçãoaumpresentesemdor.“Nãoconcorda,Nora?”,disseJosie,olhandoparaelacomatenção.“Nossa, eunão sei, Josie”, ela respondeue levantou-se, imaginando seo assuntoda conversa teria
mudadoeresolvendoqueomelhorseriaoferecercháeumsanduícheparaatia,ouumpedaçodebolo.“Nãoquerodartrabalhoparavocêagora,bastaumaxícaranaminhamão”,disseJosie.Nora sorriu, aliviada, quando se viu na cozinha. Sabia que os meninos não iam tirar os olhos da
televisão,amenosqueJosiesedirigisseaelesdeformadiretaeenfática,e,pelosilêncioquevinhadasala,sabiaqueJosiecontinuavapensandoqueperguntaseriamelhorfazerparaatrairaatençãodosdoismeninos.Enquantoferviaachaleiraepreparavaumabandejacomxícarasepires,Noraescutavaatenta,massóouviaasvozesabafadasvindasdatelevisão.Atéagora,pensou,osmeninosestavamvencendo.Quandooprogramaterminoueelesselevantaramparasairdasala,Noranuncatinhavistoosdoistão
estranhos,nãoapenas tímidos,masestabanados,quasecommausmodos.OrostodeDonalcontinuava
vermelho;elenãoconseguiafitarNoranosolhos.Josiecomeçouafalarcomelessobreotrabalhoqueplanejavafazernojardim,agrandehortaqueiria
criar atrás do celeiro, e depois falou sobre os vizinhos dela.Quando osmeninos saíram da sala e atelevisãofoidesligada,JosieperguntouaNorasobreoNatal.“Puxa,quebomqueoNataljáacabou”,disseJosie.“Semprepassojaneirotododizendoisso.Agente
percebequeosdiasvãoficandomaislongos.”“NossoNatalfoitranquilo”,disseNora.“Etambémfiqueicontenteporelejáteracabado.”“Masdevetersidobomterasmeninasemcasa,nãofoi?”“Foi bom, sim.Mas todas nós temos nossos pensamentos e às vezes era difícil saber o que dizer.
Fizemosomelhorpossível,todosnós.”Depois demanifestar sua admiração pelo cardigã queNora estava usando, Josie passou a falar de
roupasemoda,oquenãoera,pensouNora,umassuntoquenormalmenteinteressavasuatia.“Sabe, há uma loja em Wexford chamada Fitzgerald’s”, disse ela, “e eu a notei quando estava
passando;omeuproblemaeramatarotempoporduashoras,atéoJohnterminarnãoseiquenegócioeleestava fazendo. Então entrei e veio uma vendedora muito gentil e disposta a ajudar. Comecei aexperimentarasroupaseelatrouxeumaporçãodeacessórios.Vocêprecisavaverospreços!Ah,elamevestiutodaumasdezvezeseaindafoibuscarmaiscoisasquepoderiamcairmelhoremmim.Euestavaalisófazendohora.Fiqueinalojaumahorainteirinha.Elanãoparavadefalardacor,datonalidade,docorte,danovamoda,doquecaíabememmimedoquenãocaíabememmim.Depois,quandovestidenovominhasroupasemeprepareiparairembora,nãoéqueelareclamoudemimcomraiva,dizendoque tomei o tempodela à toa?E ainda foi andando atrás demimaté a porta emedisse para eunempensarementrarnalojadeladenovo.”Norariutantoquesuabarrigaficouapontodedoer.Josiecontinuouséria,sócomumacintilaçãonos
olhos.“Portanto,nãovouàlojaFitzgerald’scomprarminhasroupasdeprimavera”,disseelacomartristee
balançandoacabeça.“Quedescaramentodaquelamulher!Quedesaforada.”Josierevirousuabolsaetiroudeláumenvelopegrande.“Olhe,euestavafazendoumafaxinanumcantodacasavelha,Nora,coisaqueeuraramentefaço,ou
entãocomeçoafazeredepoisparo,porissoolugarestánaquelepéssimoestado,tenhoatévontadedemedivorciardomeufalecidomaridopordesleixo.Umaviúvadivorciada.Bem,masacabeiencontrandoistoaqui.Elessempredevemterestadocomigo,eacheiquedeviamostraravocê.”Dentrodoenvelope,haviaumapastavelhadecorsépia,comfotografiasempretoebranconumbolso
eosnegativosnooutro;acosturaentreosdoisbolsosestavabastanterasgada.QuandoNorapuxouasfotografias,namesmahorareconheceuseupai,eemseguidaviuqueacriançanocolodeleeraela;afotografia seguinte mostrava o pai e a mãe juntos, de pé, posando orgulhosos, eles deviam ter vintepoucosanos,pensouNora;usavamroupasboas.Orestantedasfotoseradeseupai,desuamãeoudosdoisjuntose,emalgumas,elamesmaaparecia,quandobebê.“Nuncasoubedaexistênciadessasfotos”,comentouNora.“Nuncatinhavisto.”“Achoquefuieuquetireiessasfotos”,disseJosie,“nãotenhocerteza.Seiqueeutinhaumacâmera,
eraaúnicaquepossuíaumacâmeranaépoca,nacertamandeirevelaredepoismeesquecidelas.”“Eleeramuitobonito,nãoera?”“Seupai?”“Sim.”“Ah,eramesmo.Melembrodetodasnósdizendoaelaque,senãosecasasselogo,outramulheriria
secasarcomele,ebemdepressa.”
“Vocêachaquemeupaieminhamãetambémnuncaviramessasfotografias?”,perguntouNora.“Anãoserqueessassejamcópias”,disseJosie.“Eunãosei.Éesquisitoeunãolembrar.Podemter
sidotiradasporoutrapessoa,masentãonãoseiporqueasfotografiasestariamcomigo.”“É engraçado como eles sabiam pouco na época”, disse Nora. “Como todos nós sabíamos pouco.
Sobretudo.Euestavacomele,quandoelemorreu.”“Todosvocêsestavamcomele.”“Não,nãoestávamos.Euestavasozinha.Tinhacatorzeanos.”“Suamãe sempre contou que vocês todos estavam com ele em volta da cama, quando elemorreu.
Nora,foiissoqueelasempredisse.”“Seiqueeladiziaisso,maselainventou.Nãofoiverdade.Eladiziaissoaténaminhafrente.Maseu
estavasozinhacomeleeespereiumoudoisminutosantesdedesceraescadacorrendo.Espereiumoudoisminutossóparapoupá-los,ouparapouparamimmesma.Fiqueialicomele,emsilêncio,depoisqueelemorreu.Eassimqueconteiàminhamãe,elacorreuparaaruaberrando,nuncaentendiporqueelafezaquilo,epraticamenteacidadeinteiraentrouemcasaquandoeleaindaestavaquentenacama.”“Devemterrezadoorosáriooualgoassim.”“Ah,orosário.Esperonuncamaisouvirumrosário.”“Nora!”“Éverdade.Deussabequeéverdade.Prefirodizerlogo.”“Àsvezeselasnosconfortambastante,asantigasorações.”“Amimnãoconfortamnada,Josie.Oupelomenosorosário.”Josiepegouasfotografiasdenovoecomeçouaolharparaelas.“Vocêsemprefoiafavoritadoseupai,mesmodepoisqueosoutrosnasceram.”ElapassouaNoraa fotoemqueela estavanos joelhosdamãe.Noraviu suamãeposandoparaa
câmera,sentada,rígida,comoseobebênocolonãolhepertencesse.“Achoqueelanãosabiaoquefazercomvocê”,disseJosie.“Desdeoiníciovocêsoubeoquequeria
davida.”“Foimaisfácilparaosoutrosdois”,disseNora.Josiecomeçouarir.“Lembraoqueeladissesobrevocê?Efoiculpaminha,porterperguntadodequaldosdoisenteados
elagostavamais,eelarespondeuque,quantomaispensavanoassunto,maisseconvenciadequegostavadosdoisenteadosedasoutrasduasfilhasmaisdoquedevocê,Nora.Eeunemtinhaperguntadonadasobrevocê.Nãoseioquevocêtinhafeitoparaelanaépoca.”“Nemeu.Mas tenho certeza de que tinha feito alguma coisa.Ou talvez não.Talvez não tenha feito
nada.”Josieriudenovo.“Vocêficouumaferacomigo,quandolhecontei.”“Mastenhoaimpressãodequetambémacheiengraçado.Outalvezsótenhaachadoengraçadodepois,
quandopenseinoassunto.”“Sejacomofor,encontreiessasfotografiasetenhocertezadeque,comosnegativos,PatCranepode
fazercópiasparaosoutros,casoelesseinteressem.”“Claroqueelesvãoficarchateadospornãoaparecerememnenhumafoto.”“Acho que vão gostar de terem uma nova fotografia damãe, quando ela era jovem.Acho que não
tirarammuitasfotografiasdelanessaépoca.Elesvãogostardevercomoelaera,quandojovem.”Noraentendeuasimplicaçõesdocomentárioeasugestãodequeelanãoiagostar.OlhouparaJosiee
sorriu.
“Sim,éverdade.”
***Osmeninosentraramnasalaederamboa-noitemuitoantesdeJosieirembora.Maistarde,Norasubiu
para dar uma olhada: eles estavamdormindo.Depois de trancar as portas e apagar todas as luzes debaixo,Norafoiparaseuquartoesepreparouparaanoite.Nacama,ficouacordadaporalgumtempo,lendoaapresentaçãodolivrodeThomasMertonqueatiahaviatrazido.Quandonotouquenãoestavaseconcentrando,apagoualuzeficoudeitadanoescuro,antesde,lentamente,irpegandonosono.Quandoacordou,nãosabiaquehoraseram,masachouquedeviaestarnomeiodamadrugada.Umdos
meninoshaviagritado.O som foi tão alto e cortanteque ela achouque alguém tinha invadido a casa;pensousedeviaabrirajanelaegritarparaosvizinhos,tentaracordaralguémepedirquechamassemosguardas.Quandoogritodomeninosooudenovo,elapercebeuqueeraDonal.OfatodeConornãotergritado
também assustou-a aindamais e levouNora a pensar, de novo, se devia pedir socorro, em vez de irdireto ao quarto dos filhos.Quando abriu a porta de seu quarto e parou no patamar da escada, ouviuDonalgritandoalgumaspalavrasedepoisgritandodenovo.Eleestavatendoumpesadelo.Noraabriuaportadoquartodosmeninoseacendeualuz.QuandoDonalaviu,sentou-senacamaecomeçouagritarmaisaltoainda,comose fossedamãequeele tivessemedo.QuandoNorasemoveunadireçãodele,Donalseencolheueesticouasmãosparaafrente,comosequisesserechaçá-la.“Donal,éumsonho,ésóumsonho”,disseela.Agoraeleestavamaischorandodoquegritandoeenterrandoasunhasnosbraços,deaflição.“Querido,ésóumsonho.Todomundotempesadelos.”Noravirou-seeolhouparaConor.Eleolhouparaelacomarcalmo.“Vocêestábem?”,perguntouNora.Elefezquesimcomacabeça.“Talvezsejamelhoragentedescereprepararumcopodeleiteparaele.Vocênãogostariadeumcopo
deleite,Donal?”Eleestavasebalançandoparaafrenteeparatrás,soluçando,enãorespondeu.“Vocêestábem”,disseela.“Éverdade,estátudobemcomvocê.”“Elenãoestábem”,disseConoremvozbaixa.“Oquehádeerradocomele?”,perguntouNora.Conornãorespondeu.“Conor,vocêsabeoquehádeerradocomele?”“Elegemedormindotodanoite.”“Masnãocomohoje.”Conorencolheuosombros.“Donal,comoquevocêsonhou?”Donalcontinuavaabalançarocorpoparaafrenteeparatrás,masagoraestavacalado.“Vocêmeconta,seeutrouxerumcopodeleiteparavocê?Querumbiscoitotambém?”Elefezquenãocomacabeça.Noradesceuepegoudoiscoposdeleite.Nacozinha,viuquefaltavamquinzeparaasquatro.Láfora,
aescuridãoeratotal.Quandosubiudenovoeentrounoquarto,notouqueosmeninosestavamolhandoumparaooutroequedesviaramosolhosquandoelaapareceu.“Oqueé?”,perguntouNora.“Foisóumpesadelomesmo?”
Donalfezquesimcomacabeça.“Evocêlembrasobreoqueera?”Elecomeçouachorardenovo.“Vocêquerqueeudeixealuzacesa?Possodeixaraportaabertatambém.Issoseriabom?”Elefezquesimcomacabeça.“Oqueeleestavafalando,quandogritou?”,NoraperguntouaConor.ElapercebeuqueConorestavaavaliandodequemaneiradeviaresponder.“Nãosei”,respondeu.“FoiavisitadeJosie?”,NoraperguntouaDonal.“Foi issoqueperturbouvocê?Vocênãogostade
Josie?”Noraolhoudeumparaooutro.“Vocêsnãogostam?”,elarepetiu.Nenhumdosdoisrespondeu.Conorpareciadispostoaseenrolardenovosoboscobertores.Elenem
tinhatocadonoleite.DonalbebeudevagareevitouoolhardeNora.“Vamosconversarsobreissoamanhãdemanhã?”Donalfezquesimcomacabeça.“Podemosiràmissadasonzehoras,portantopodemosdormiratémaistarde”,disseela.Maisumavez,Norapercebeuqueosdoisseentreolharam.“Háalgumacoisaerrada?”,perguntou.DonalolhouparaalémdeNora,comosealgonopatamardaescadativessechamadosuaatenção.Ela
olhouparatrásenãoviunada.“Voudeixaraportadomeuquartoabertatambém.Assimficamelhor?”Donalfezquesimcomacabeçamaisumavez.“Vocêachaquevaiconseguirdormirdenovo?”,perguntouela.Donalacaboudebeberoleiteepôsocoponochão.“Emechame,setiverpesadelosoutravez.”Eletentousorriremsinaldeconcordância.“Eseeuapagaraluzdoquarto,deixaraportaabertaealuzdocorredoracesa?”“Estábem”,sussurrouele.“Depois que a gente acorda, os pesadelos não voltammais”, disse Nora, enquanto saía do quarto
lentamente.“Achoqueagoravocêvaificarbem.”Nodia seguinte, enquanto ela preparavao cafédamanhãdeles, ficou claroqueDonal não iria lhe
contaropesadelo,mesmoqueselembrassedele,eNoraresolveunãotocarmaisnoassunto,anãoserqueeleouConortomasseainiciativa,etambémresolveunãocomentaroquehaviaacontecidoànoite,para não deixar Donal mais nervoso. Iria perguntar ao dr. Cudigan se algo podia ser feito sobre agagueira,masnãolevariaDonal.Noraachavaquechamaraatençãoparaaquilosóserviriaparapiorar.Talvezagagueiraacabassepassando.Ninguémdaescolanuncahaviafaladocomelasobreoassunto,eNoraseperguntavasenãoeraumacoisaquesóaconteciaemcasa.A ideiadequeaquilocontinuariacomeleavidatoda,oumesmoportodaaadolescência,aassustavatãoprofundamentequeNoraevitavapensarnoassunto.Enquanto tomavacafédamanhãcomos filhosedepois, andandocomelespelaBackRoad rumoà
catedral,edurantetodaamissa,aimagemvoltavaaela,dosdoiserguendoosolhosquandoJosietinhaentrado na sala na noite anterior. Houve algo de inquietante, de quase pânico no olhar deles,
especialmentenodeConor,mas tambémnodeDonal.NahoraelapensouqueeraporqueJosievinhaatrapalhar o programa de televisão deles. Mas depois, quando Donal acordou do pesadelo e elamencionouavisitadeJosie,osdoisemudeceram.Maistarde,sesurgisseaoportunidade,pensouNora,ela falariasobreJosiedenovoparaobservara reaçãodeles,masdepois tambémlheocorreuqueeramelhordeixaraquilodeladoporalgumtempo,torcerparaqueDonalnãotivessemaispesadeloseparaqueosmeninossehabituassemàcasa,queaospoucoselesseacostumassemcomaideiadequeopaitinha morrido, mas que a vida continuava, que as coisas iam mudar, e que talvez algumas coisasmudassemparamelhor.ApesardenenhumdosdoisfalardeJosie,omodocomoreagiramàpresençadelapermaneceunoarà
medidaqueasemanapassava,atéqueNoracomeçouaseperguntarseJosieteriavindonosábadoparadealgummodosondaro terreno,paravercomoosmeninosreagiamaelaoudescobrirseeles tinhamcontadoalgosobreelaparaNora.ElarefletiasobreavisitadeJosie,sobrecomosuatianãoparoudefalarquandochegou,comoseestivessenervosacomalgumacoisa.EquantomaisNorapensava,maisestranho parecia. Os meninos haviam ficado com Josie nos dois meses que precederam a morte deMaurice,edesdeoenterronãoatinhamvistomais.Semdúvida,quandoJosieentrounasala,osmeninosdeveriamtersemostradomaisamigáveise,naconversa,eradeesperarquetivessehavidoreferênciasaotempoqueficaramjuntos,atépiadasoucomentáriossobrecoisasquetinhamfeito.Josiesemostroudistantedeles,assimcomoelesdela,comoseJosiefosseumaestranhaoualgopior,pensouNora.Nasexta-feira,Fionachegouparapassarofimdesemana.Nodiaseguinte,Noracontouaelaeaos
meninosqueiaaWexfordfazercomprasequevoltarianahoradochá.Fionalevantouosolhosdeseulivro, mas não fez nenhuma pergunta. Os meninos, pensou Nora, ainda eram pequenos demais paraimaginarquesuamãementissesobreolugaraondeestavaindo.NoraseguiudecarroemdireçãoaBunclodyedepoisseafastoudorio,acaminhodacasadeJosie.
Talveznãotivessesorte,pensou,poisJosiepodiamuitobemtersaídoouteralgumavisitaemcasa,masNora tinhaasensaçãodequeeramelhorchegarassim,semavisar,e fazeraquilo logo,paranãoficarmaispensandosobreoquepodiateracontecidonosdiasemqueosmeninosficaramnacasadeJosie,mesesantesdamortedeMaurice.Depropósito,nãoplanejouoquedizernemcomocomeçaraconversa.Simplesmentefoiseguindoem
direçãoàcasadeJosie,acreditandoquesaberiaoquefazerassimquevisseatia.Josietinhaconstruídosua própria casa ao lado da velha casa de fazenda, quando John se casou e ela se aposentou comoprofessora.Tinhaorgulhodoprojetodacasa,dojeitocomoelaficou,parecendopartedacasaoriginal,comjanelasdomesmoformatoeotelhadocomtelhasiguais.Elatinhaconstruídoumaaladeveraneio,umasaladeestarnoandarsuperior,comvistaparaasmontanhas,eumquartopequenocombanheiroaolado. Embaixo, havia outro quarto com banheiro e depois uma aconchegante sala de estar com umalareira aberta e uma pequena cozinha à parte. Os portais e os banheiros, ela adorava contar isso àsvisitas, foramprojetados para permitir a passagemde uma cadeira de rodas,mas ela ainda não tinharesolvidoemqueandaririamorarquandonãopudessemaisandar.Emseguidariadaideiadenãopodermaisandar.Preenchiaseusdiascuidandodojardim,lendo,ouvindorádioefalandoaotelefone.Nora tentoulembrarcomofoiqueosmeninosacabarampassandodoismesesnacasadela,seNora
tinha pedido a Josie ou se a própria Josie havia se oferecido. Pensou naquela época, mas algumasimagens estavam tão carregadas de detalhes, algumas horas estavam tão repletas demomentos puros,inesquecíveis,queotemporestantedavaaimpressãodeservistoatravésdeumvidrocobertoporáguadachuva.EntrarcomMauricenosaguãodohospitalcientedequeele talveznãosaíssevivode lá.O
momentoemqueeledissequegostariadeverocéumaisumavezequeeladeviaesperá-lonosaguão,deixá-lofazeraquilosozinho.Edepois,delonge,vendo-ochorarassimquechegouàporta.Tudoaquiloeradolorosoerecentedemaisparaqueoutrascoisas,comoasprovidênciasqueprecisoutomarparaqueosmeninosficassemnacasadeJosie,viessemcomclarezaàsuamemória.Nora acabaria se lembrando do que tinha acontecido, ela sabia disso. Ela estava presente e alerta
quandoaquelasprovidênciasforamtomadas.Quaisquerquetivessemsidotaisprovidências,Noraestavacertadequepareceramalgonaturalnaocasião,umasoluçãoóbvia.NorasesentiugrataaJosieporelaficarcomosmeninos,ealiviadaporelesestarememsegurançaelongedeMauricequandoelevoltoudohospitalparacasaesuasaúdecomeçouadeclinardeumaformaqueerapreferívelqueseusdoisfilhosnãofossemobrigadosapresenciar.Maurice não havia morrido em casa, claro. No final, ela teve de removê-lo para Brownswood, o
antigohospitaldetuberculosos,naperiferiadacidade,agorausadoporpacientesemgeral,quandoadorse tornougrandedemais,as faculdadesmentaisdeMaurice fraquejarameNoranãofoimaiscapazdecuidardele.Emboraestivessenumamaca,deolhosfechados,esemdizerumafraseclarasequerdurantedias,Nora sabiaqueMaurice tinha consciênciadeque estavadeixando sua casapelaúltimavez.Elaseguravaamãodele,mastodavezqueMauricetentavaapertaramãodeNora,suamãoestremecia,foradecontrole,comoumagarra.Pelomenososmeninosnãoestavamaliparapresenciaraquilo.NoraconduziuocarroatéacasadeJosiepelalongaalamedacheiadesulcos,abriuefechouosdois
portõesdeferroquehavianocaminho,tentandonãopisarnaspoçasdelamaeesterco,notouanudezdasvalasdosdoisladosealgumasfloresmuitovermelhascujonomenãosabia.Océuescurecia,comnuvensbaixaspairandoacimadasmontanhasBlackstairs.Norapercebeuquetremiaquandoparounocaminhodecascalhos.OcarrodeJohn,elanotou,nãoestavalá.NoranãosabiaseeramelhorbaterprimeironaportadaantigacasadefazendaoudaravoltaebaternaportadacozinhadacasadeJosie,queeraaúnicaentradaparaapartedeladacasa.Comonãohavianenhumsinaldevidanacasadefazenda,Noradeuavolta,comosapatoafundandonagrama.Devia terchovidoumpoucoantesali,maisdoquenacidade,elapensou.Quandoolhoupelajanela,viuumapoltronacomumamesinhaaolado,unsóculosemcimadeumjornalabertoeoutramesacomumvasodelíriosradiantesmisturadoscomfloresvermelhasiguaisàsquetinhavistonavala.Atravésdeoutrajanela,Noraviuumacamadecasaldesfeitaelivrosespalhadospelochão,quedavamaimpressãodetercaídodacama.Josiedeviaestardesfrutandodeseuisolamento,pensouNora,sorrindo.Norabateudelevenaportadacozinha,masnãohouveresposta.Agoraeraaquelesilêncioabsoluto
queaimpressionava,umsilênciorompidoapenaspelocrocitardoscorvosaolongeedepoispelodébilsomdeumtratorquedeiníciopareceuestarseaproximando,masquedepoispareceuestarseafastando.Noraolhouaoredor,paraoslariçoseasbétulas,quequaseencobriamotelhadodemetalgalvanizadodoceleiro.Haviaumatrilhaatravésdagramaatéolocalondeelasabiaque,antigamente,ficavaumpomar.Lembrava-sedeumainesperadasafradeperasemaçãs,algunsanosantes,quenasceramcomtamanhaabundânciajustamenteporqueninguémhaviacuidadodasárvores,ninguémhaviapodadoosgalhos,oupelomenosfoioqueJosielhecontou,edepoisdaquelacolheitaimensaasárvoresmorreram,oualgumasmorreram,easoutrasnãoderammaisfrutos,excetoalgumasmaçãssilvestresqueninguémquiscomer.Eramaisfácil,oudavamenostrabalho,disseJosie,comprarmaçãsnosupermercado,eninguémgostavadasperasdurasquedavamali,mesmoquandodeixadasparaamadurecereamaciarumpouco.Emtodocaso,Josiedecidirasededicaraumjardimnovoquetinhafeitoatrásdopomar,aoladodo
celeiro.JohnpreparouaterraparaelaeJosiecomproulivrosemanuaisqueensinavamaplantarfloreselegumes.Em suavelhice, como tinhaprazer de explicar, Josie aospoucosdescobrira umbommotivoparamorar numa fazenda, e pela primeira vez havia entendido a serventia não só do estrumemas da
própriaterra,enaverdadedasestaçõesdoano.Noraquasepodiaouviravozdelafalandotudoaquilo,enquanto se enfiava sob os galhos das árvores e se esquivava dos arbustos espinhentos, para ver seconseguiaencontraratianojardim.Subiuosdegrausquepassavampela cercadahorta. Josie estavaplantandoalgoqueexigia fiosde
arameevarasdebambu.Noranãotevecertezaseerampésdeframboesa.Aolado,haviacovasbem-feitas ondehaviam sidoplantadas batatas.Atrás delas, ficavamos canteiros de flores,mas agora nãohavianenhumaflorali.Tinha-seaimpressãodequeotrabalhoeraenormenopomar,eNoraseperguntoucomoascostasdeJosieaguentavamtodoaqueleesforço.Nahoraemqueelasevirou,viuatiaesedeucontadequeJosieaobservavaemsilênciofaziaalgumtempo.“Nora,vocêvaiestragarseusapato”,disseJosie.Elaestavacomumancinhopequenoealgunstalos
deplantanamão.Usavaluvasdejardinagemquepareciamgrandesdemaisparaela.“Nãovivocê.”“Penseiemdeixarvocêàvontadeporumtempo,paravercomoeutrabalhoduro.”HaviaumtoquededesafionotomdevozdeJosie,comoseseuterritóriotivessesidoinvadido.Ela
deviaestarimaginando,pensouNora,qualseriaomotivodavisita,enoentantofalavacomoseasduasjáestivessemnomeiodeumaconversa.“Achoquejátrabalheibastanteporhoje”,disseJosie.“Emgeralcomeçocedo,estoudeixandotudo
prontoparaeupodersemearalgumasplantasanuaisassimqueotempomelhorar.Depoiseuleioojornal,tomoocafédamanhãevoltodenovo,paraver tudoquejáfiz.Aessaalturadodia, já terminei.Vimagorasóparaadmirarmeutrabalhoearrumarumpoucoolugar.”EnquantoandavanadireçãodeNora,elapareciapreocupadacomalgumacoisa.Seupassoeralentoe
estudado,oslábiosestavamcontraídos.“Quandovocêficarvelha,vaiver,Nora,aívocêvaisaber.Éumamisturadesealegrarmesmocomas
mínimascoisasedepois sentirumagrande insatisfaçãocom tudo.Nãoseioqueé isso.Nãomesintocansadaotempotodo,masaindaassimficoexaustasódemelevantar.”Ela se apoiou em Nora para subir a escadinha que atravessava a cerca da horta e tirou as luvas
enquantocaminhavampelopomar.“Agora vamos lá para cima”, disse, quando chegaram à casa. “Está mais arrumado lá, tenho um
aparelhonovodefazerchá,umageladeirazinhanohalldaescadaetudoomais.Vousólavarasmãoseorostoenuminstanteencontrovocê.”Nora tinhaseesquecidodecomoos tetosdoscômodoseramaltosnoandardecima.Asalaestava
tomada por uma luz pesada, cinzenta e aquosa, que batia no tapete cinzento, nas paredes pintadas debranco, nas luminárias muito azuis, nas almofadas azuis sobre o sofá, nas cortinas azuis, no tapeteestampado e na comprida estante de livros, e dava à sala uma espécie de opulência queninguémqueviessepelaalamedaouqueolhasseparaacasadeforaouqueandassepelopomarmortopoderiaprever.Quandoparoujuntoàjanelaeolhouparafora,ocorreuàNora,pelaprimeiravez,comoosdoisfilhos
deviamterperturbadoavidadaquelescômodos,arrumadoscomtantoesmero.AtéodesleixofaziapartedavidadeJosie,umavidaquepareciacriadaparanãoserperturbada.Norapensouquetinhasidoumaideiarazoáveldeixarosfilhoscomatiaemvezdedeixá-loscomas irmãs.Noranãoos levouparaacasadeCatherine,emKilkenny,apesardeCatherineterseoferecido,porqueCatherinejátinhadecuidardosprópriosfilhos.EUna,a irmãmaisnovadeNora,semudouparaacasadelaecuidoudeAine,etambém de Fiona, quando ela vinha no fim de semana. Una não conseguiria cuidar também dos doismeninos, e tampoucoMargareth, a irmã deMaurice, apesar de ser louca por eles. Nora também nãopodiadeixarosmeninosaoscuidadosdosvizinhosoudosprimos.Josie,porseulado,tinhaespaçoemcasa,tinhatempoemoravabempertodacidade;osmeninosconheciamJosie,JohneamulherdeJohn;a
casadafazendaeatéaampliaçãoconstruídaporJosieeramfamiliaresaeles.Naocasião,lhepareceuumaideiarazoável.Masagora,quandoNoraolhoupelajanelaedepoisseviroueavaliouoespaçoqueJosiehaviapreparadoparasuaaposentadoria,aideiadequeelahaviadeixadoosmeninosaliportantotemponãolhepareceumaistãorazoávelassim.Josie tinha penteado o cabelo e vestido um suéter de caxemira. Veio para a sala empurrando um
carrinhocomumachaleiraeduasxícarasepires,alémdeumaçucareiroeumajarradeleite.“Vamosdeixarochádescansarumpouco”,disse,indodepoisatéajanela.“Aqui é agradável quando o tempo está bom e o sistema de calefação funciona; agora fica quente
dentrodecasatambémnoinverno.Andeipreocupadacomacalefação.Penseiqueelafossedeixaroarseco,masfuncionabem…”“Josie,euquerialheperguntarsobreosmeninos”,interrompeuNora.“Elesestãobem?”,perguntouJosie,andandonadireçãodocarrinho.“Nuncapergunteiparavocêcomofoificarcomelesaqui.”“Comofoiparamim?”,perguntouJosie.Noranãorespondeu.“Eumeofereciparaficarcomeles,Nora,efizissocomsinceridade.”“Comofoiparaeles?”,perguntouNoraemumtomtranquilo.“Nora,vocêestámeacusandodealgumacoisa?”,perguntouJosie.“Não,estouapenasperguntando,sóisso.”“Bem,sente-seeparedemeolhardessejeito.”Norasentou-senosofáeJosienapoltronaaoladodela.“Donalvoltouparacasacomaquelagagueirahorrível.”“Sim,elecomeçoucomelaaqui,Nora.Começouaqui.”“EoConor.Nãoseioquehácomele.Donalteveumpesadelonosábadoànoite.Issofoiopior.”Josiecomeçouaservirochá,depoisdepuxarocarrinhomaisparaperto.“Ponhaoaçúcareoleitevocêmesma.Nuncaconsigoacertaraquantidade.”“Oqueaconteceucomelesaqui?”,perguntouNora.Josiecolocouumtorrãodeaçúcarnocháedepoisumpoucodeleite.Tomouumgoleebaixouaxícara
sobreocarrinho.“Achoqueelesestranharamosilêncio”,disseJosie.“Osilêncio?Sóisso?”“Sim.Elessãodacidade.Talvezeudevesseterdadoumjeitodeelesbrincaremcomosmeninosda
região, mas eles também não quiseram saber disso. Então ficavam em casa. E havia muito silêncio.Achavam que você ia chegar, e você nunca chegava.Às vezes, quando um carro começava a subir aalameda ou estacionava na beira da estrada, os dois logo paravam o que estavam fazendo e ficavamalertas.Eo tempofoipassando.Nãoseioquevocêestavapensandoquandoosdeixouaquipor tantotempo,semvirvê-losnemumavez.”“Mauriceestavamorrendo.”“Conorfaziaxixinacamaquasetodasasnoites.Nãoseioquevocêestavapensandoquandoosdeixou
aquiportantotempo”,repetiuJosie.“Eunãotinhaescolha.”“Poisé.Evocêachouqueelesiamvoltarparacasasemnenhumaalteração?”“Nãoseioqueeupensava.Quisviraquieperguntaravocê.”“Poisbem,jáperguntou,Nora.”Asduas ficaramemsilêncioporalgunsmomentos.Noracomeçoua falaralgumacoisa,masdepois
parou.“EuestavacuidandodeMaurice”,disseporfim.“Qualquerquesejaamaneiracomovocêprefiraencararoproblema,paramimestáótimo.Quando
Conorcomeçouaficaragitado,tenteiconversarcomele,tranquilizá-lo,maseunãosabiaquandovocêviria.EununcasabiaoqueDonalestavapensando.Édelequevocêvaiterdecuidarcommaisatenção,outalvezprecisecuidarmesmodosdois.Eutelefonavaparaaquelapensãoondevocêsehospedou,masvocênuncameligavadevolta.”“Ascoisasmudavamtodososdias.”“Eutelefonavaevocênuncaligavadevolta.”“Todomundoviviamefazendoperguntas.”“Eeutambémeratodomundo?”“Eununcasabiadizerquantotempo…”“Eosmeninostambémnão.Entãotodosnósfizemosomelhorquepudemos.Nofim,elesmelhoraram.
Nofim,Conorsófaziaxixinacamaalgumasvezes.”“Eunãosabiadoxixinacama.Sougrataavocêpeloquefez.”“Agoravolteparajuntodeles.”“Voufazerisso,Josie.”Elanãohavia terminadoochá,mas se levantou.Esperouummomento,pensandoqueJosie também
fosseselevantar,masJosienãoselevantou.Suatiaestavainclinadaparaafrentenapoltrona,olhandoparaochão,comosombrosarqueados.“Talvezagentevenhavervocêembreve”,disseNora.“Voudarumpulonasuacasaoutravez,quandoeuforàcidade.”Noradesceuaescadaedeuavoltapelacasa,emdireçãoaocarro.Aindaeradetarde.Quandoolhou
paraorelógiodepulso,viuquesuavisitanãotinhaduradonemmeiahora.AindahaviatempoparairaWexford,sequisesse,efazerumascomprasantesdevoltarparacasa.
3.Jim,ocunhadodela,estavasentadonumapoltronareclinável,dooutrolado,emfrenteàlareira.Ele
esperouatéqueosmeninosentrassemnasaletaparatirarasfolhasdepapeldobolsointernodopaletóeentregaraela.“Vocêaindaquerusaressasorações?”,perguntouele.“Quero”,disseNora.“Tínhamosesperançadequevocêtivessemudadodeideia.”Margaret,acunhadadela,sorriu.“Jimnãogostadasorações”,eladisseaNora,quaseemtomconfidencial,comoseJimnãoestivesse
presente. “Para a sua mãe e para as nossas, sabe Deus, só temos as orações simples dos cartõesfúnebres.”“Alémdisso,elasiriamcustarmaiscaro”,disseJim.“VaiserpoucoparaoMaurice”,disseNora.“Evaimedeixarfeliz.”“Nósnãoconhecemosessasorações,emabsoluto”,disseMargaret.NoraolhouparaafolhadepapelqueJimlhederaecomeçoualer:“‘Jovemdemaisparamorrer,dizem.Jovemdemais?Não,melhordizerqueeleéabençoadoporser
tãojovememesmoassimtãorapidamentesetornarimortal.Eleescapoudasmãostrêmulasdotempo.’Aquidizumacoisaimportante.Elesetornarimortalrapidamente.”“Por que vocêmesmanãomanda imprimir isso?”, sugeriuMargaret. “Nós cuidaremos das orações
maissimples.Temosconhecidosantigospelaregião,todoopessoalládeKiltealy,osRyanemCork,eelestambémvãoacharmuitoestranho,Nora.TodosprefeririamumcartãofúnebresimplesparalembrardeMaurice.”“Seráqueelesnãovãopensarquenósbrigamos,sefizermoscartõesfúnebresseparados?”,perguntou
Nora.“Elessabemquesomosmuitounidos,Nora,sobretudoagora.”“Essadeveseramelhorsolução”,disseJim.EntãoficouclaroparaNoraqueeleeMargarettinhamconversadosobreaquiloemminúciasantesde
chegaremàcasadela.Noraficoucontentecomatolerânciadeambosefelizpornãotercedidoàvontadedeles,quedesejavamcartõesfúnebressimples,comasmesmasoraçõesantigasquetodomundousava.O silêncio foi logo quebrado por uma batida na porta. Um dosmeninos atendeu e os três adultos
prestaramatenção,quandoouviramumavozdemulhernaentrada.Noraguardouospapéisemsilêncio;nãosabiaquemera.Atravessouasalaeabriuaporta.
“Ah,sra.Whelan,entre”,disseela.“Queprazerverasenhora.”Maurice tinhamorrido seismeses antes e asvisitashaviamdiminuído; emalgumasnoites, ninguém
aparecia, eNora sentia-sealiviada.Nãoconheciabema sra.WhelaneachavaqueMauricenão tinhasidoprofessordenenhumdosfilhosdela.Talvezelestivessemfrequentadoaescolavocacional,pensouNora,maselanemsabiaaocertoseelescontinuavammorandonacidade.“Não vou demorar”, disse a sra. Whelan. Depois de cumprimentar Margaret e Jim, ela acabou
aceitandoocuparumacadeira,emboranãotivessetiradoaecharpeeocasaco.“Nãoénada,apenastenhoumrecadoparavocê,porissonãovoudemorar…Não,eunãoquerouma
xícaradechánemnada.Vimsótransmitirorecado.AgoraeutrabalhoparaosGibney,nãoseisevocêjásabia.Detodomodo,PeggyGibneymepediuqueeulhedissessequeelaadorariaconversarcomvocê,eoWilliamtambém,qualquerdiadessesdepoisdoalmoço.Elaestásempreemcasa,massevocêindicarumdia,elescertamentepodemviraqui.”Nora notou que Margaret e Jim examinavam a sra. Whelan com atenção; perceberam que aquele
convitenãoeragratuito.ApesardeNora terestudadocomPeggyGibney, faziaanosquenãoavia.E,antesdecasar,NorahaviatrabalhadocomWilliam,noescritóriodomoinhodafamíliadele,naépocaemqueopaidirigiaaempresa.AgoraWilliameraoproprietáriodetudo,nãosódomoinhocomotambémdomaiormercado atacadista da cidade. Ele e Peggy nãomandavam nenhum convite à toa, ela sabiadisso.Depoisquesemudouparaacasadopaieherdoutudo,Williamsetornouumhomemdistante,oupelomenoseraoqueNoratinhaouvidofalar.“Qualquerdiaqueelesquiserem,sra.Whelan”,respondeuNora,“paramimestáótimo.”“Digamosentãonaquarta-feira,quetal?Àstrêshoras?Trêsemeia?”“Quarta-feiraestáótimo.”Asra.Whelanrecusouocháoutravezeinsistiuquenãoiaficarmais.Nasaída,sozinhacomNora,
começouafalaremsussurros.“Eles gostariam que a senhora voltasse a trabalhar no escritório. Mas talvez seja melhor não
mencionarissoquandoestivercomeles.Deixequeelesmesmosfalemdoassunto.”“Háumavaganoescritório?”,perguntouNora.“Émelhorqueelesmesmosfalemtudocomvocê”,sussurrouasra.Whelan.Quandovoltouàsaladevisitas,NorapercebeuqueMargareteJimexaminavamseurostoembuscade
umsinaldoquetinhasidoditonasaída.QuandoNorasentou,porummomentonenhumdosdoisfalounada,àesperadequeelalhescontasse.Norapôsmaislenhanalareira,comoformadealiviaratensão.“OsGibneyestão fazendomuitodinheiro,euacho”,disseMargaret.“Estãose ramificandoem todo
tipodenegócios,alémdomoinho.Todosos fazendeirosvão láembuscade implementosagrícolas,emuitasvezesagentevêfilascompridasdecaminhonetesnomercadoatacadista.Asvendasporatacadoestãoindodeventoempopa.Osfilhossãomuitodinâmicos.”“Defato,nãosepodedeixardereconheceraforçadeles”,disseJim.Logo depois, Donal e Conor entraram na sala para dar boa-noite e Jim eMargaret se levantaram,
dizendoqueestavanahoradeiremparacasa.Noraacompanhou-osatéaporta.“Então,vamosmesmofazercartõesfúnebresseparados”,disseJim.“Talvezcomamesmafotografia.”Noraassentiucomacabeçaenãodissenada.Abriuaportadafrente.QuandoJimpassouporela,entregou-lhedisfarçadamenteumenvelope.“Apenasparaajudarnasdespesas”,disseele.“Nãodiganada.”“Nãopossoaceitarmaisdinheirodevocê.Vocêjápagoutudo.”“Só para ajudar a cobrir as despesas”, disse ele de novo, e ela entendeu pelo seu tomde voz que
voltaratrabalharcomGibneydepoisdevinteeumanosnãosóteriaaaprovaçãodeJimcomoatenderia
asexpectativasdele.AntesdeJimdesceraescadinhaparaarua,lançouumolharsignificativoparaela,eNoraseperguntouseopróprioJim,queconheciatodomundonacidade,nãoteriadadoumamãozinhaparaqueasra.Whelanlhefizesseaquelavisita.Depoisqueelesforamembora,NorasentoudenovonapoltronaepensouemGibney.Lembrouque,
depoisqueopaidelamorreu,asfreiras,emespecialairmãCatherine,foramàsuacasaperguntarasuamãesenãohaviaalgumacoisaquepudesseserfeita,qualquercoisa,senãohaviaumjeitodearranjardinheiroparapagarmaistrêsanosdeestudoparaNora,quedepoiselaatépoderiaconseguirumabolsadeestudosparacursarauniversidade,mascertamentepoderiaarranjarumempregobemremuneradonoserviçopúblico.Norasabiaqueamãetinhatentadoe,aotentar,acabarabrigandocomosdoisladosdafamília. Sabia que a mãe não tinha dinheiro, portanto, como também se sabia que Nora era bastanteinteligente,conseguiramarrumarumempregoparaelanaempresadeGibney,emvezdeelacontinuarnaescola.Noracomeçouatrabalharlácomcatorzeanosemeio;comquinze,teveaulasdeestenografiaedatilografia à noite, a fim demelhorar suas oportunidades de promoção.Nos primeiros anos, quandorecebia o salário, entregava tudo à mãe, cuja lojinha dispunha de poucas mercadorias; ela vendiacigarros por unidade e aumentava a receita cantando em casamentos na catedral, quando as pessoastinhamdinheiroparapagar.Naqueletempo,suamãe,aprópriaNoraeasduasirmãsviviamcomquasenada,atéqueUnaeCatherinetambémarranjaramempregoemescritóriosnacidade.Então, por onze anos Nora trabalhou cinco dias e meio por semana na empresa de Gibney, mal
conseguiasuportaramãeemcasae,notrabalho,cumpriaastarefascomumaeficiênciaaindalembrada.Nosanosemquefoicasadaetevefilhos,jamaissonhouemvoltaraotrabalho;aqueleempregopareciapertenceraumpassadomuitodistante.Tinhasóumaamigadaquelaépoca,eelatambémhaviasecasado;elaeomaridosemudaramdacidade.NoraesuaamigaencaravamoescritóriodosGibneycomoumlugar onde haviam passado tantos anos trabalhando apenas por não ter surgido uma oportunidade quefizessejusàinteligênciadelas,inteligênciaque,nacondiçãodemulherescasadas,elashaviamcultivadocomzelo.Norapensavana liberdadequeocasamentocomMaurice lhehaviaproporcionado,a liberdadede,
quandoosfilhosestavamnaescolaouquandoumbebêdormia,poderirparaoquartoaqualquerhoradodia,pegarumlivroeler;aliberdadedeirparaasalaaqualquerhoraeolharpelajanela,paraaruaeparaomonteVinegar,dooutroladodovale,ouparaasnuvensnocéu,deixandoamenteàderiva,oudevoltaràcozinha,oudecuidardosfilhosquandoelesregressavamdaescola,mastudocomopartedeumavida tranquila que incluía suas obrigações. O dia lhe pertencia, ainda que outras pessoas pudessemvisitá-la,ocuparseutempo,distraí-la.Nosvinteeumanosemquesededicouàvidadoméstica,Noranuncasentiuumsómomentodetédiooufrustração.Agoraseudiaiasertiradodesuasmãos.SuaúnicaesperançaeraqueosGibney,quandoavissem,naverdadenãolheoferecessemumemprego.Trabalharnaqueleescritóriopertenciaà lembrançadeumtempoemqueviveraengaiolada.PorémsabiaquenãotinhacondiçõesderecusarapropostadosGibney,casoeleslheoferecessemdefatoalgumacoisa.Seusanosdeliberdadehaviamchegadoaofim;simplesassim.NoraolhoudenovoasoraçõesquehaviaescolhidoparaocartãofúnebredeMaurice.Poruminstante,
aspalavrasadistraíramdasreflexõessobrecomoiriaganharavidaequantacoisahaviaperdido,mas,quandoolhoudenovoasorações,lágrimasencheramseusolhos,eelaficoufelizporJimeMargaretnãoestaremmaisláeosmeninosteremidodormir,quandoleuasprimeiraspalavras:“NósosdevolvemosaTi,Deus,queosdesteanós”.Aquilo,pensouNora,estavabempróximodoquehaviaacontecido.ElatinhadevolvidoMaurice;não
haviaquasemaisnadaaserdito.Norapassouosolhosdenovopelasegundaoração.“Àsvezes,emsuainsensatez,algunsfalamdepessoasceifadasnaprimaveradavida.Elenãofoiceifado.Aocontrário,se
pudermosmodificarametáfora,elefoi,issosim,transportadomaisrapidamenteàprimaveradavida,àplenitudedavida.Foierguidoparaforadestanossavida,quenãopassadeumaesperaatéqueamortenos encontre. Ele foi retirado daqui. Ele escapou, esse homem do qual nos dizem que foi abatidoprecocemente.Jovemdemaisparamorrer,dizem.Jovemdemais?Não,melhordizerqueeleéabençoadoporsertãojovememesmoassimtãorapidamentesetornarimortal.Eleescapoudasmãostrêmulasdotempo.”Aspalavras,pensouNora,pareciamexatas.OndequerqueMauriceestivessenaquelemomento,ele
sentiriasaudadesdoconfortodaquelacasaedela,assimcomoNoragostariaqueoúltimoanodavidadelafosseapagadoequeMauricevoltasseparaeles.Naquarta-feirademanhã,Norafoiaocentrodacidade,fezocabeloeconversoucomBernie,nosalão
debeleza,arespeitodeumnovométododetingimentocapilarsobreoqualtinhalido,epensousejánãoestarianahoradetomaralgumaprovidênciaquantoaoscabelosgrisalhos.“Eunãogostariaqueeleficasseazul”,disse.“Entendooquevocêquerdizer”,respondeuBernie.“E, também, se ficarpretodemaisvaiparecerque foi tingido.Eeununca fui loura, todomundona
cidadesabequeeununcafuiloura.Existealgumcastanhobonito,quenãodêaimpressãodesertintura?”“Possoexperimentaresteaqui.”Berniemostrouumapastacoma fotografiadeumamulhercomum
cabelocastanhocacheadodeaspectobemnatural.“Talvezagentepossacomeçarsócomumpouquinho”,sugeriuNora.“As instruçõesdizempara aplicar tudodeumavez. Jáusei essa cor.Émuitopopular.Você ficaria
surpresasesoubessequemestáusando.”“Entãoexperimente”,disseNora.Quandoatinturafoiaplicada,BerniepôsumarededenáilonnacabeçadeNoraedeixou-afolheando
revistas.Quandoviuquenãochegariaemcasaatempodefazerojantarparaosmeninos,searrependeudeteridoaosalãoeentendeuqueteriadeiremboradepressa.FezumsinalaBernie,agoraocupadacomduasmulheresquetinhamentradojuntasepareciamterdeseconsultarmutuamentesobrecadapequenatesourada.“Jávoucuidardevocê”,disseBernie.Quando chegou para retirar a rede,Bernie disse para ela não se preocupar nem ficar olhando com
muita atenção, pois a mudança de verdade só ocorreria quando o secador, a escova e o pentecomeçassema trabalhar.Nora estava cientedeque as duasmulheresqueBernie estivera atendendo aexaminavam com atenção.Nora se perguntou se não teria sidomelhor ter consultado outrasmulheresantesde tingir o cabelopelaprimeiravez,masnãoconseguiapensar emninguémaquempudesse terfaladodoassunto.Suas irmãs,elaachava, já tingiamocabelo,masNoranunca tinhaouvidonenhumadelascomentarsobreaquilo.Aospoucos,enquantoobservavaBernietrabalharcomosecadordecabelo,sedeucontadequeelatinhaadquiridooestilodeumamulhermuitomaisjovemequeasduasclientesqueassistiamatodaaoperaçãosabiamdissoeconversavamarespeitocombastantesatisfação.Quanto mais Bernie trabalhava, mais seu cabelo parecia uma peruca. Ela sabia que o tingimento
levaria tempopara sair,masno espelhoNoravia a satisfaçãodeBernie com seu trabalho.Não faziasentidoreclamar.“Nãoficouumpoucojovemdemaisparamim?”,perguntouNora.“Achoquevocêestáótima”,respondeuBernie.“Essecorteestánoaugedamoda.”
“Nuncativeumcortedecabelonoaugedamoda”,disseNora.Quandoo trabalho terminou,Norasabiaque todomundoqueavissenarua iapensarqueelahavia
perdido o juízo ou que estava tentando parecer jovem, em vez de uma mulher que ficara viúvarecentemente.“Vai levar algunsdias paravocê se acostumar”, disseBernie. “Masninguémmais fica comcabelo
grisalho.”“Masotingimentonãoficoumuitoartificial?”“Daquiaalgunsdiasvaificarcomumaspectodiferenteeaspessoasvãoacharqueseucabelosempre
foiassim.Vocêestápreocupadademais,prometoquenofimdesemanavocêvaiadorar.”“Vocênãopodetiraratintura,pode?”“Não,maselavaidescoloriregarantoquevocêvaivoltardaquiaummêspararepetiradose.Nunca
vininguémvoltaraocabelogrisalhodepoisdetertingido.Masquemsabedapróximavezagentefaçaumasluzes.Estãonacristadaondaagora.”“Luzes?Ah,não,achoquenãoquero.”Láfora,NoraergueuacabeçabemaltoetorceuparaquetodasasmulheresdaCourtStreetedaJohn
Streetestivessemocupadasnofogãoequenenhumaestivessenaportadecasa.Rezouparanãoencontrarninguémconhecido.Empensamento,fezumalistadospioresencontrospossíveis,aspessoasquemaisiriamdeploraraideiadeque,comomaridoapenasháseismesesnocemitério,Norahouvessetingidoocabelo de outra cor. Pensou em Jim e sabia que teria de encará-lo, assim comoMargaret, dali a umasemana.Elesnãoiamsaberoquepensar.Quandoviuasra.HoganvindopelaJohnStreetemsuadireção,Noranãosoubedizerseasra.Hogan
simplesmentenãoareconheceriaouseiriaquererpassarporelasemcumprimentar.Nahoraemqueasra.Hoganchegoubemperto,pareceudarumpulo.Seurostoestremeceuedepoiselaparou.“Puxa,vailevarumtempoparaagentesecostumarcomisso”,disse.Noratentousorrir.“FoiaBernie?”,perguntouasra.Hogan.Norafezquesimcomacabeça.“Ouvifalarqueelarecebeuunsprodutosnovos.MeuDeus,eutambémprecisodarumpulolá.”Seasra.Hogan,comseuaventalesapatosurrado,achava-senodireitodefazercomentáriossobreo
cabelodeNora,então,elapensou,nãohaviamotivonenhumparaelanãorespondercomumcomentáriotambém.“Bem, a senhora sabe onde ela trabalha”, disseNora em tom seco, olhando para o cabelo da sra.
Hogan, nitidamente sugerindo que faria bem a ela experimentar o tratamento.A sra. Hogan levou uminstanteparaconsiderarapossibilidadedeestarsendoinsultada.OencontrofezNorasesentircorajosa.Nãoiapararparaconversarcommaisninguém,massabiaque
oqueocorreraforaumerro.Tentoulembrarsejáhaviafeitoalgoassimnavida,sejátinhaagidoporimpulso, sem pensar nas consequências. Lembrou que um dia, antes de se casar, quando voltava dotrabalhoparacasa,nahorado jantar,viuumapilhade livrosvelhossobreumabancada,naportadosLeiloeirosWarren,aopédaCastleHill.Quandoexaminouosvolumes,encontrouumlivrodepoemasdeBrowningelembrouque,naescola,tinhaadoradoumpoemadele.Estavafolheandoaspáginas,quandoasra.Carty,daBohreenHill,apareceuaseulado.Asduasolharamopreçodolivro,anotadoalápisnacontracapa. Estava caro demais e, de qualquer forma,Nora não tinha dinheiro.As duas seguiram emfrente juntas, passando pela praça Friary e subindo omorro Friary.Quando se separaram, no alto domorro,asra.Cartylheentregouolivro,quetiroudedentrodocasaco.“Ninguémvaiseincomodarcomisso”,disse.“Masnãoconteaninguémondeconseguiuolivro.”
CaminharparacasacomocabelotingidofezNoraselembrardecomohaviaentradonacasadamãecomovolumedepoemasdeBrowning.Eraomesmosentimentodeculpa,omesmosentimentodequealguémiriasegui-la,desmascará-la.Assim que chegou, pôs algumas batatas para cozinhar, abriu uma lata de ervilhas e levou três
costeletasdeporcoàfrigideira.Quandoosmeninoschegaram,asbatatasaindanãoestavamprontas.Elaestavaesperandonoandardecimae,delá,avisouaelesqueojantariademorarumpouco.Sentou-senafrentedoespelhodapenteadeiraetentouimaginaralgumacoisaquepudessefazercomocabeloparaeleficarcomumaspectomaisnatural.Gostariade terditoaBernieparanãopôr laquê,queagoraestavagrudentoetinhaumcheiroadocicado.Assim que os meninos a viram, ficaram calados. Donal desviou os olhos, enquanto Conor se
aproximoudela.Estendeuamãoetocouemseucabelo.“Estátododuro”,disse.“Ondevocêfezisso?”“Fuiaosalãohojedemanhã”,respondeuNora.“Gostou?”“Oquetemaíembaixo?”“Embaixodoquê?”“Embaixodissoquevocêpôsnacabeça.”“Oqueeutenhonacabeçaéomeucabelomesmo.”“Evocêvaisairnaruacomisso?”,perguntouele.Donallançouumolharparaelaedesviouosolhosdenovo.Noranão tinhacertezadoquevestirpara irverosGibney.Casosearrumassedemais,podiadara
impressãodequenãoprecisavadeumempregoequeestavaindoàcasadelescomoalguémdomesmonível, numa visitameramente social.Mas também não podia usar roupas velhas. O problema do quevestirnão tinha fim,Norasedeuconta.Sevoltasseparaoescritório, seriavistapor todoscomoumaamigadeWilliamePeggyGibney.LáaindahaviapessoasqueNoraconheceranaquelaépoca,muitosanosantes,mascomasquaisnãomantiveramaiscontato.Noratinhacertezadequeelasiamencará-lacomdesconfiança,tratá-lademodoestranho,casovoltassederepenteatrabalharcomelas.DepoisqueresolveuirdecarroatéooutroladodacidadeeestacionarnaRailwaySquare,paraque
ninguémcomentassesobreseucabelo,Noranãosentiumaismedo.Olhouparaasroupaspenduradasnoguarda-roupa e escolheuuma saia cinzenta e umablusa azul-escura. Ia calçar seumelhor sapato.Nãosabia o que osGibney pretendiam lhe dizer ou se iammesmo lhe oferecer um emprego.Dificilmentediscutiriamvaloressalariaisduranteumchádatarde,pensouela.Sejaláoquetivessememmente,Noraagoraachavaimportantenãochegaraocasarãodelescomoumapessoaquepassassenecessidade.Aportafoiabertapelasra.Whelan,queconduziuNoraaumaamplasaladeestaràdireitadaentrada.
Asalaestavarepletademóveiscomestofamentoescuroepinturasantigas.Apesardeaindaserdetarde,asalaestavacheiadesombras.Ajanelacompridanãodeixavaentrarmuitaluz.PeggyGibneyselevantoudapoltrona.Quandoocardigãquetinhasobreosombrosescorregou,asra.
Whelanseadiantouàspressaspararecolocá-lonolugar.PeggyGibneynãoagradeceuogesto,comoseelefizessepartedosserviçosnormaisprestadosaela,habitantedeumasalaluxuosa.DisseaNoraparasesentarnumapoltronaemfrenteaelaedepoissevoltouparaasra.Whelan.“Maggie,poderiatelefonarparaoescritórioeavisarosr.Gibneyqueasra.Websterchegou?”Noralembrouque,anosantes,quandoPeggydescobriuqueestavagrávida,elaaindanãoeracasada
comWilliam,equeospaisdelenãoaaprovavam.Certodia,quandoestavanarecepçãodoescritório,Noraouviuavozdovelhosr.GibneydizendoaWilliamquePeggypodiairparaaInglaterra,terofilhoe
encontrarumacasaparamorarlámesmo.QuandoWilliamsaiudoescritórionaqueledia,NoraimaginouqueeleiaseencontrarcomPeggyparalhecontaradecisãodopai.Porém,emvezdisso,elesecasoucomPeggy,queteveofilhonumamaternidadedacidade,eaospoucosospaisdeWilliamsehabituaramaelaeseafeiçoaramaoneto.AgoraPeggyGibneymoravanaquelacasaeestavaaliconversandocomNoracomosenuncativessehavidodúvidasobreolugarqueocupavanomundo.AvozdePeggynãotinhanadadavelhaentonaçãodescuidadadaspessoasdacidade.Elafalavadeum
jeitoquasepreocupado.“Ah,poisé”,disse,comoseNoraoualguémtivesselevantadoaquestão.“Comtodososimpostosque
existemhojeemdiaecomocustodevidadojeitoqueestá,nãoseicomomuitagenteconsegueviver.”QuandoNoraperguntousobreoirmãoeasirmãsdela,Peggysedeucontadequehaviacometidoum
erro.“Vãobem,Nora,muitobem”, respondeucomum tomque se tornou ligeiramentepomposo. “Vamos
todostocandoasnossasvidas.”NoraentendeuqueaquilosignificavaqueelesnãofrequentavamasaladeestardePeggy.Noentanto,
quandoperguntousobreosfilhosdePeggy,elalogoseanimou.“Sabe,oWilliamquisquetodosseformassemantesdecomeçarematrabalharnaempresa,paraque
tivessemumaespecialidade.”Apalavra“especialidade”foipronunciadademaneirabemdestacada.“Assim,oWilliamJunioréumcontadoraltamentequalificado,Thomaséespecialistaemeficiênciae
Elizabeth fez um curso de comércio numa das melhores faculdades de Dublin. Portanto, todos sãocapazesdesevirarporcontaprópria.”“Émesmo,Peggy?”,comentouNora.Elapensounavelhasra.Lewis,daMillParkRoad,cujoúnicoassuntodeconversaeramosfilhose
suas carreiras, e como toda vez ela terminava dizendo que agora planejava fazer da sua filha caçula,Christine,umadatilógrafa.NoraachoudifícilnãoriralinoarsombriodasaladePeggy.Eraobrigadaaseconcentrarcommuitoesforço,paramanterorostosério.“Muitacoisamudounacidade,éoquevivemmedizendo”,continuouPeggy.“Eunãosaiomuitode
casa, e, sabe,vamosaRosslarequandopodemos.Láébemsossegado,mas,ondequerqueeuesteja,sempredescubroquetenhomuitacoisaparafazer.”NoratentouselembrardequemhavialhecontadoquePeggytinhaumaempregadaemhoráriointegral,
alémdasra.Whelan.“MasnãoconsigoconvencerWilliamatirarfériasdeverdade.Ah,elevivepreocupadodemaiscom
umacoisaououtra.ElevaidecarrocomigoatéRosslare,éverdade,masnãochamoissodeférias.”QuandoWilliamentrounasala,pareceumaisbaixodoqueNoraserecordava.Vestiaternoecolete.
AoapertaramãodeNora,elaseperguntouseeleaindase lembrariadamaneiracomoopaiohaviatratadodepoisqueotiroudaescola,comdezesseisanos,decomoohaviapunidoaolongodosanosedecomosereferiaaelecomo“otolo”nafrentedequemquisesseouvir.MasagorafaziamuitotempoqueopaideWilliamhaviamorrido,aempresapassaraparaasmãosdele,pensouNora,etudoaquilotinhaseapagadodalembrançadetodos,excetodasua.“Foimuitabondadesuaviratéaqui”,disseele,sentando,enquantoasra.Whelanentravacomcháe
biscoitos.“Sensato,sensato”,acrescentouele,comosesuacabeça tivessesevoltadoparaoutroassunto,mais
sério.Noraolhouparaeledemodoserenoenãodissenada.Nãoiaagradeceraeleporcoisanenhuma.“Meu pai sempre disse que você era a melhor e que nunca cometia nenhum erro, você e Greta
Wickham. Ele costumava dizer: ‘Se Nora e Greta estivessem aqui agora, nós não estaríamos nestabagunça’,aindaquenãohouvessebagunçanenhuma.”“Ah,elefalavadevocêcommuitaafeição”,interveioPeggy.“EWilliamJunioreThomassótinham
coisasboasadizerdeMauriceWebster,quandoelefoiprofessordeles.LembroqueumdiaoThomastevefebreequeríamosqueeleficassedecama,maselenãoquis,ah,não,porquetinhaumaauladupladecomérciocomosr.Websterenãopodiafaltar.VocêsabequequeriamqueoThomasficasseemDublin,quandoeleseformoulá?Ah,elerecebeupropostascomótimasperspectivas!Dissemosqueeledeveriaavaliá-lasbem,masThomaspreferiuvoltarparacasa.Poisé.E foiassim tambémcomWilliam.ComElizabeth,agentenuncasabe.Elapodeirparaqualquerlugar.Elaéquenosdáalgumapreocupação.”Na loquacidade de Peggy Gibney, na maneira como se sentia à vontade para falar de si e de sua
família,haviaalgoqueNorajulgoucalculado,quaseintencional,paraminá-la,paradeixarestabelecidoquePeggyeraalguémcomumaopiniãomuitoelevadadesimesmaequeesperavaqueosoutrostambémtivessem.William, Nora supôs, devia empregar umas cem pessoas, talvezmais. Nora imaginava quedevia ser difícil para PeggyGibney continuar sendo uma pessoa comum,mas não viamotivo para sesentaràfrentedelaenãolheoferecernadamaisqueosilêncio.ComWilliameradiferente.Eleparecia resmungare tinhaumjeitonervosoderepetiraspalavrase
depoisparar,comoseprocurasseoutrapalavra.“Sempretivemosumavaga,Nora”,começouele,“umavaga…”Noraolhouparaeleesorriu.“Algumasgarotasdoescritóriomalconseguemescreverdireitoalgumaspalavras”,interveioPeggyde
novo. “E mal sabem fazer contas, mas quando se trata de tirar dias de folga e faltar porque estãodoentes…”“Poisé”,disseWilliam.“Poisé.”Nora observouWilliam com atenção, em busca de alguma indicação de que ele achasse Peggy tão
irritantequantoelaachava,masWilliampareciamuitodistanteenervosoparasequernotaraesposa.“Eamaneiracomoalgumassevestem,então!Elizabethdiz…”“Thomasacha”,interrompeuWilliam,“queomundodasrta.Kavanagh,eelaéachefedoescritório,e
talvezseeuconseguirquevocêeThomastomempédosdetalhesrapidamente,eosdetalheseleconhecemelhordoqueeu.”ParouummomentoeolhouparaNora,comoseestivesseinsegurodoquedeveriadizeremseguida.“SóDeus sabe”,prosseguiu, comosolhos fincadosno tapete. “Souapenasodiretordaempresa,o
cabeçadaempresa.Maselepodeapresentarvocêàsrta.Kavanaghedepoisvocêpodia,seentendeoquequerodizer,começarquandoachassemelhor.Vocêpodecomeçarquandoquiser.”“ÉaFrancieKavanagh?”,perguntouNora.“Achoquesim”,respondeuWilliam.“Emborajáfaçaumbomtempoqueninguémachameassim.”“Ah, claro”, disse Peggy. “Você a deve ter conhecido nos velhos tempos. Thomas fala dela com
entusiasmo.Masvocêsduascontinuaramamigas?”“Desculpe,oquevocêdisse?”,perguntouNoraemtomseco.“Pergunteisevocêeasrta.Kavanaghcontinuaramamigas.”Apergunta implicavaquePeggy,ao longodosanos,não tivera tempoparasedarao trabalhodese
informar sobre tais assuntos ou paramanter amizade com quem quer que fosse. No entanto, Nora seperguntavaquantacoisaelasaberia,seestivesseciente,porexemplo,deumaquinta-feira,vinteecincoanosantes,oumais—certamenteaquilotinhasidocomentado—,umdiadetrabalhodemeioexpedientena empresa dosGibney, quandoNora eGretaWickham resolveram fazer um passeio de bicicleta atéBallyconnigar,eFrancieKavanaghpediuparairjunto,easduaspedalarambemdepressaparaficaremà
frente dela e depois foram para Morriscastle em vez de Ballyconnigar. E como riram quasedescaradamente,emvezdepedirdesculpas,quandosouberamqueopneudabicicletadeFrancietinhafuradopertodopovoadoTheBallagh,acaminhodecasa,eelaficoutodaensopadacomachuvaquecaiudepois do anoitecer, abrigou-se embaixode uma árvore e só voltou para casa nas primeiras horas damadrugada.Depoisdisso,Francienuncamaisfaloucomelas.WilliamePeggyobservavamNoracomatenção.Elanão tinha respondidoàperguntasobreFrancie
Kavanagh e agora era tarde demais para isso. Portanto, pensouNora, ao longodaqueles anos emqueestevecasadaetevefilhos,FranciecontinuaranaempresadosGibneyesetornarachefedoescritório,assimcomoPeggyGibney,queagoraerguiaaxícaradechácomumgestoindolente,tinhaficadonaquelacasaeviajavaparaRosslarenoverão,setornarafalsamentesuperior,moldandoasimesmasegundoaimagem da sogra, ou da esposa de outro comerciante qualquer da cidade.Nora sentiu-se tão distantedaquelasduasmulheresquantoosilêncioestádistantedosom.Williamselevantouehouveumamudançanasala.Decertomodo,eleePeggyconseguiramsugerir
que,comoascordialidadestinhamterminado,Noraestavadispensada.Quandoelaselevantouparasair,Peggycontinuousentada;estavaclaroquenãosentiacomopartedesuaobrigaçãoacompanharaspessoasatéaportadacasa.WilliamapertouamãodeNora.“VocêpodeirfalarcomThomasnasegunda-feiraàsduashoras?Chame-onarecepçãodoescritório,
sim, na recepção do escritório”, disse, e em seguida se retirou da sala com ar alheio. Nora o ouviufechandoaportada frentedepoisdesair.Emseguida,asra.Whelan,que ficara rondandoocorredor,acompanhouNoraatéasaída.“Elavaificarencantadaporvocêtervindo”,sussurrou.“Sabe,elavêpoucagente.”“Émesmo?”, disse Nora. De novo ela se lembrou de seu cabelo tingido, quando a sra.Whelan o
examinoucomumacuriosidadequasedesavergonhada.
4.NoranãocontouaninguémsobreoacordoquetinhafeitocomThomasGibneynemsobreaprimeira
reuniãoqueteriacomFrancieKavanaghdepoisdemaisdevinteanos.LogocontariaaJimeMargaret,pensou,massentiu-segrataaeles,quandoforamdenovoàsuacasaenãoperguntaramcomotinhasidooencontrocomosGibney.QuandosuairmãUnaperguntouarespeito,Noraselimitouadizerqueaindanãohaviadecidido.“Ouvidizernoclubedegolfequevocêvaivoltaratrabalharlánoescritório”,disseUna.“Oclubedegolfeéumlugarexcelenteparaobter informações”, retrucouNora.“Eutambémficaria
sócia,sesoubessejogarousefossebembisbilhoteira.”Quandosuaoutra irmã,Catherine,escreveuparadizerqueNoraeosmeninosdeveriam ir ficarum
tempocomelae sua família,equepoderiam iremqualquer fimdesemana,Nora respondeuqueelesiriam na sexta-feira seguinte, pois osmeninos já haviam terminado o período letivo, e ficariam comCatherineatédomingo.Antesdeadoecer,Mauricegostavadeiràcasadefazendaondeelesmoravam,naperiferia de Kilkenny, no sábado à noite, e conversar com o marido de Catherine sobre colheitas epreços,discutirsobrepolítica,alémdeouvirnovidadessobreosvizinhos.Osdoiscasaismuitasvezesiamaumbar,deixandoosfilhosaoscuidadosdeFionaouAine.Osmeninostambémpareciamapreciaramudança de ares, pois dormiam em quartos estranhos, numa casa bem maior do que aquela ondemoravam.Eraverdade,pensouNora,oquesuamãetinhadito;quetodoseles, inclusivesuasirmãs,preferiam
Mauriceaelaedavammaisatençãoaoqueeledizia.Quandoosquatrosaíamparaumdrinque,osdoishomensconversavamumcomooutro,masCatherinegostavadeficarouvindoaconversadeles,oulhesfazer perguntas, ou levantar questões que, ela sabia, iam interessá-los.Noranunca se importou; ouviatudoporalto,porquenãotinhaopiniõestãodefinidasquantoMauricesobreoqueestavaacontecendonopaís.Alémdomais,Catherineeomarido,Mark,eramtãoreligiososquantoMaurice.Acreditavamemmilagresenopoderdaprece,mastambémgostavamdamaneiracomoaIgrejavinhasemodernizando.NenhumdelesjamaisperguntouaNoraoqueelaachavadaquilo;Noramesmanãotinhacerteza,apenassabia que não pensava damesma forma que eles e que era a favor de umamodernizaçãomuitomaisampladoqueeles esperavam.Noranãoencaravaas coisasdamesma formaqueeles.Tambémsobreoutros assuntos tinha ideias próprias,mas sentia-se felizmantendo-se à parte na conversa.Agora queMauricehaviamorrido,elaseperguntouseaquiloiriamudar,seelateriadefalarmais.Nahoraemqueosmeninoschegaramdaescola,Norajátinhafeitoasmalasepostonocarrotudode
que iam precisar. Combinou com eles que Donal podia ir no banco da frente até Kiltealy e depois
trocariadelugarcomConor,queirianobancodafrenteorestodaviagem.Nosvelhostempos,quandoelespassavampelaentradadedeterminadafazendadepoisdeMilehouse,
Mauriceficavatenso,fechadoemseuspensamentos,nãoimportavaoqueestivessesendoditodentrodocarro. Nunca haviam conversado sobre aquilo. Era algo que ele jamais quisera falar. Nora sabia doassuntoporqueouviraMargareteumprimoconversandonovelóriodesuasogra.Láficavaafazendadeonde, no fim do século anterior, o avô deMaurice fora despejado.Quando ele, a esposa e os filhoschegaramàcidade,oavôdeMauricenãopossuíanadaalémdeumamáreputaçãonapolíciaporcausade sua posição política e alguns livros e roupas guardados num saco velho. Nora sempre havia seperguntadoatéquepontoMauricelevavaasérioaquelefato,oupelomenosporqueelesemostravatãoestranhamentepreocupadosemprequepassavamnaquelelocal,dandoaimpressãodequesimplesmentefalardaquilojárepresentariaaprofanaçãodeumapartesagradadeumpassadosofrido.EmalgumpontodepoisdeTullow,ela sabia,haviaumacasaondeamãedeNora tinha trabalhado
comoempregadaeondeodonodacasa,ouoirmão,ouofilho,chegavapertodemaisdelatodososdiaseàsvezesànoite.SuatiaJosiehavialhecontadotodososdetalhesecomo,nofim,opadretevedeserchamado,equeopadreprocurouogerentedalojadedepartamentosCullen’s,emEnniscorthy,fazendo-lheumapeloespecialparaajudá-loasalvaravirtudedeumaempregadanumadistantefazendadepoisde Tullow. Nora se lembrou de que a ideia da virtude damãe, do padre, da casa remota depois deTullow,doproprietário,doirmãoedofilhohaviamlheparecidoalgotãoimprovávelquechegouaacharaquiloengraçado.QuandoJosieenfatizouqueeratudoverdade,Noraseviurindomaisainda,atéqueatiaaadvertiudequeelanuncadeveriacontaressahistóriaaninguém,masque,seofizesse,nãocontassequetinharido.AspessoaspensariammaldeNora,disseJosie,sesoubessemqueelaachavataiscoisasengraçadas.A estrada era estreita e Nora dirigia com cuidado. Aquelas histórias antigas, pensou, logo iriam
desaparecer. Logo ninguémmais se lembraria daquilo, ninguémmais daria importância a um despejoocorrido tanto tempoantes.OavôeaavódeMauriceestavamenterradosemsepulturasanônimas,nocemitério;ninguémnunca saberiaquem tinhamsidoaquelaspessoas.ENora supunhaquenenhumadesuasirmãssabiaacercadacasadepoisdeTullow,desuamãeedaqueleshomens.Eraprovávelqueelasnemsoubessemqueamãetinhatrabalhadocomoempregadadepoisqueabandonouacasadopai,atéodiaemquefoitrabalharnalojaCullen’s,emEnniscorthy.Depois deKiltealy, quandoConor já ia sentadonobancoda frente, ele contou aNora histórias da
escola,doscolegasedosprofessores.Pareciaansiosoparapassarumtempocomosprimosevisitarafazenda.“AcasadatiaCatherineémal-assombrada?”,perguntou.“Não,Conor,ésóumacasavelhaemaiordoqueanossa,masnãoémal-assombrada.”“Masmuitagentemorreudentrodela?”“Nãosei.”“Ecomoéqueumacasaficamal-assombrada?”,perguntouConor.“Sabe,euachoquetodaessahistóriadecasasmal-assombradasnãopassadeconversafiada.”“AcasadosPhelan,naBackRoad,émal-assombrada.JoeDevereuxviuumhomemdoladodefora,à
noite,eelenãotinharosto.Estavaacendendoumcigarro,masnãotinharosto.”“Euachoque isso foisóporcausadassombras”,disseNora.“SeoJoe tivesseuma lanterna, teria
vistoperfeitamenteorostodohomem.”“Porissoéquenósandávamosdooutroladodaruaquandovoltávamosparacasa”,prosseguiuConor.“Pelomenosvocênãoprecisamaisvoltarlá.”“Todomundosabequet-t-temumfantasmaládentro”,disseDonalnobancodetrás.
Eununcaouvifalardisso”,retrucouNora.Embora os meninos não falassem nada por algum tempo, ela sabia, enquanto o carro passava por
Borris,queoassuntocontinuavanacabeçadeles.“Achoquetodaessaconversadefantasmanãopassadebobagem”,disseela.“Mas deve termorrido umaporção de gente na casa da tiaCatherine. Sabe, nos quartos de cima”,
continuouConor.“Masfantasmaseespíritosnãoexistem”,disseela.“EoEspíritoSa-Santo?”,lembrouDonal.“Donal,vocêsabequeédiferente.”“Mesmoassim,eunãovousozinhoaoandardecimadacasadatiaCatherine”,disseConor.“Mesmo
dedia,eunãovoulásozinho,não.”Quandochegaram,jáfaziaalgumtempoqueelesestavamcalados.Noratentaramudardeassunto,mas
percebeu que não havia conseguido impedir os meninos de pensar em fantasmas e casas mal-assombradas. As estradas estreitas, ela refletiu, e o súbito isolamento das casas que passavam, comestradasquecorriamquilômetrosatéchegara fazendassolitárias, isoladasde tudo,valasmalcuidadasnasmargensdaestradaeárvorescomramosquependiamsobreela,tudoissocombinavacomaideiadefantasmas edebarulhosnoturnos.LogoqueCatherine se casou,Nora lembrava, a irmãcontava sobreuma casa cujo dono era primo deMark, uma construção antiga e coberta por hera, onde móveis semexiamsozinhoseaportaseabriasemmotivo.CatherineeMarkfalavamdaquilocomminúcias,semamenordúvidadequefosseverdade.Noraseperguntavasenãoteriaavercomalgumtestamento,ouumdinheiroantigo,ouumabriga,oucomalguémexpulsodacasa,mascomdireitodeficarlá.Emtodocaso,esperavaquenenhumdelesfalassedesseassuntocomosmeninosnofimdesemana.Uma das características de Catherine era que ela raramente ficava quieta. A mãe delas, Nora
lembrava,eradomesmojeito,sempreagitada.NoraeUnachamavamaquilode“mexe-mexe”.Opioréqueamãenãoadmitiaquemulheresficassemparadasquandoaindahouvessetrabalhoafazer.Aolongode todaa suavidadecasada,Nora semprecuidarade ficar sentadaequietaomaior tempopossível,todasasnoites,depoisdelavaralouçadochá;tentavaseassegurardequenadaaobrigariaaselevantardenovoparaficarmaistemponacozinha,exceto,talvez,seprecisasseferverachaleiraparafazercháparaelaeMaurice,ouprepararumagarrafadeáguaquentenoinverno.Assimquelevouamalaparaoquartoondeiaficarhospedada,omesmoquartoemqueelaeMaurice
sempre haviam ficado, Nora sentiu uma premência esmagadora de não sairmais dali, demandar umrecadodequenãosesentiabemeprecisavadescansar.AexpressãodorostodeCatherinequandoviuseu cabelo não tinha ajudadomuito; o fato de ela não ter falado nada na hora significava que estavaguardandoaquiloparamaistarde,eNoratinhacertezadequeairmãteriamuitoparafalar.AfazendadeMarkeragrande;Noranãosabiaquantosacreselepossuía,porqueCatherinenãotinha
contadoaninguémdoladodeladafamília.IssosignificavaqueelepossuíamaisterrasdoqueCatherinegostaria de admitir.Caso a fazenda fossepequena,Catherine teria gostadode ficar reclamandodisso.Durante todaavida,elahaviacompradoroupasde liquidaçãoenãomudouessehábitodepoisquesecasou.Masagora,quandosetratavadequalquertipodemercadoriaquenãoroupas,esobretudoquandosetratavadealgoparaacasa,Catherinegastavabastantedinheiro.AfrasedeMarkqueMauriceeNoramaisapreciavamera“umacoisasócustacaronodiaemqueagentecompra”.Talideiaerainteiramenteestranhaparaosdois.O resultado é que havia dois carros novos em folha na garagem, e sempre haviamóveis novos ou
objetosnovosnacozinha,compradosnaBrownThomasounaSwitzer’s,emDublin.NoratinhacertezadequeCatherinefaziaocabeloemDublinouemalgumsalãoespecialdeKilkennyqueatendiamulheresdefazendeirosricos.AideiadedeixarBernietingirseucabeloemEnniscorthyeraalgoqueapavorariaCatherine.SeMauriceestivessecomela,pensouNora,ofocodaatençãoseriaele,eMauricesaberiareagircom
naturalidade e um charme tranquilo.QuandoNora desceu a escada atapetada, observando o papel deparede caro e novo e as gravuras recém-emolduradasque ela sabia terempertencido àmãedeMark,Norasedeucontadeque,emboraparecessequeelaeraofocodasatenções,naverdadeelanãopassavade um objeto de comiseração. Catherine eMark ficariam felizes de ter Nora e os meninos em casanaquelefimdesemana,semostrariamgentisehospitaleiros,mastambémficariamcontentesquandoelafosse embora e eles tivessem acabado de cumprir sua obrigação. Quando começasse a trabalhar naempresadeGibney,pensouNora,usariaissocomodesculpaparanãovoltarláporalgumtempo.DonaleConorsempredemoravamumpoucoparasehabituarà fazenda.Elesgostavamdealgumas
coisaslá.Sehaviaalgummotivoparairemaopomarcomosprimos,aceitavamaideia,emboranãoosdeixassemchegarpertodasurtigas.Ehaviaumabombamanualqueforneciaáguaparaacasaequetinhadesermovidaporumaalavancaqueelesempurravamparabaixoeparacima,eosdoisgostavamdebrincarcomaquilo.Porém,sealgumaatividadeexigissedelescalçarbota,vestirroupasvelhaseficarpertodeanimaisdafazenda,ouentrarnoestábulodaordenha,ounoceleiro,ondehaviaestercodevaca,osmeninosreagiamcomdesconfiança.Permaneciamatentoseàespera,vendoseosdeixavamficarondeestavam,juntocomosadultos,ouvindoaconversa.Quando foi à cozinha,Nora viu queCatherine havia compradoumanovamáquinade lavar roupas;
tinhasidotrazidadeDublinnodiaanterior,eCatherineestavacomomanualnasuafrente,abertosobreamesadacozinha.“Hátambémumasecadora”,disseela,“queaindanãotiramosdaembalagem.Penseiemprimeirome
concentrarnamáquinadelavarroupas.Eudeviaterpedidoajudaaohomemqueveiofazerainstalaçãohidráulica.Acheiquequandoele terminasse, amáquina iria funcionardireto.Umaamigaminha,DillyHalpin, tem uma igual e, quando telefonei para ela, me disse que quase precisou fazer um cursouniversitáriocompletoparaconseguirentenderasinstruções.”CatherineabriuespaçoparaNoranamesa,enquantoDonal,Conoredoisprimosdelesolhavam.“Vaiatésersorteminhaseamáquinativeralgumdefeitoeeuprecisardevolver.Averdadeéquenão
consigonemligá-la.”Eapontouparaumasériedediagramas.“Estávendo?Temumaporçãodemaneirasdiferentesdelavar,paralençóisetoalhasdemesa,para
camisaseblusas,eparatecidosmaisdelicados.Asinstruçõesvêmemalemãoefrancês,alémdeinglês,mastalvezsejaumproblemadetraduçãoe,emoutroidioma,fiquemaisclaro.”NoraseperguntouseCatherineesuafamíliajáhaviamtomadoochá.Jápassavadasseisdatardee
Catherine concordou que as crianças podiam ir ver desenhos animados na televisão e qualquer outroprogramainfantilquepassassedepois.Masnãohouvenenhumareferênciaacháoucomida.NorasabiaqueseusfilhoslogoficariamcomfomeeseperguntavaseCatherineachavaqueelesjátinhamcomidoantesdaviagem.Oestranho,Noranotou,équeCatherinenãolhedavaoportunidadedetocarnoassuntocomida;falavacomelacomoseNora,naverdade,nãoestivesseali.Quandosedeucontadisso,Noraviuquenãoconseguiaprestaratençãoemmaisnada.Catherinenão
estavafalandoconsigomesma,tinhaperfeitaconsciênciadapresençadairmã,porémhaviacriadoumaatmosfera emqueNoranãopodia ternadaadizer.SeCatherine tivesse feito issodepropósito,Noraachou, não teria dado certo, o efeito poderia ser anulado com facilidade. No entanto, aquilo parecia
naturalemCatherine.EraalgodequeNorasederacontaoutrasvezes,masagora,comairmã,asensaçãofoimaisintensa.Eraalgosólido,comoaparedesólidadeumaabóbada,construídamaispararesistiràpressão do que para sustentar. Nora sentia-se presa junto com a irmã num espaço sem ar, enquantoCatherine tagarelava sobre amáquina de lavar roupas e a secadora; depois ela foi até o telefone nocorredoreligouparaDillyHalpin,queaceitouiratéláversepodiaajudarCatherineapôramáquinanovaparafuncionar.“Não fale para aDilly que contei a você”, pediuCatherine, “mas fui aDublin com ela na semana
passada e nos hospedamos na casa da irmã e do cunhado da Dilly, que é advogado. Ah, que casaesplêndida,Nora, fica emMalahide, e eles têm um barco. Era tudomoderno, nunca vi nada igual.Afamíliadeleémuito importantenaáreadenegócios imobiliários,elesfazemumaporçãodecontratos,maseleestámuitobemdevidatrabalhandoporcontaprópria.EaoutrairmãdaDilly,queémuitogentil,casoucomosr.Murphy, juizdaSupremaCorte.Sãopessoasmuitorespeitadasnopartidorepublicanoirlandês.UmaoutrairmãécasadacomumDelahunt,eelesestãopodresdericos,pelomenosfoioqueaDillymecontou.”Noranuncatinhaouvidoairmãdizer“podredericos”nemconversarsobrefamíliasdaquelamaneira.“Aquestãoéque,ànoite,elesnoslevaramparajantarnoIntercontinentalHotel.FerguseCon,quesão
osdoiscunhadosdaDilly,easduasirmãsdela,sónósseis.Nuncavicomidacomoaquela,eovinhoentão…Nemvou lhedizerquanto foiaconta,masconseguiver,olheianotadecabeçaparabaixo,equase tive um ataque do coração.Não contei nempara oMark.Ele não gastaria tanto dinheiro, vocêsabe.Pelomenosnãonumjantar.Eorestauranteestavacheio.Tinhatodotipodegente.ADillyfoimevernodiaseguinteeentãocompramosamáquinadelavarroupaseasecadora.Euquiscompraramesmaqueela.”ConorapareceueesperouCatherineterminar.“Aquehorasagentevai tomarochá?”,perguntouele. “Todomundo já tomou.Quandoagentevai
tomar?”Catherineolhouparaelecomosenão tivesseouvidonada.Conornãocedeue,comonãoobtivesse
respostadatia,olhouparaNora.“Vocêsnãoestãovendotelevisão?”,perguntouCatherine.“Nósnãotomamosnossochá”,repetiuele.“Nãotomaram?”,perguntouCatherineeolhouparaNora,perplexa.Norateveasensaçãodeestarsendoacusadadealgumacoisa.“Agentesaiudecasaassimqueosmeninoschegaramdaescola.Penseiquetomaríamosocháaqui.”“Ah,desculpe.ADillyestáparachegar,eoMark também,masnãoseiexatamenteaquehorasele
estaráemcasa.”Catherinepareciadistraída.Noraestavaprestesadizerqueumsanduícheouumatorradacomfeijão
jáseriasuficienteparaeles,maspreferiunãodizernada.Olhouparalonge,comosenãofosseproblemaseu.Estavaquasezangada.Conorcontinuouali,observandoamãeeatia.“Medesculpe”,disseCatherine.“Eudeviaterpensadonisso.”De repente, ela se tornou afetuosa e dinâmica, mostrando-se tão prestativa em atender todas as
necessidadesdelesqueocorreuaNoraquealgonamaneiracomoelasesentiaacabarasendotransmitidoàirmã,emboraelanãotivessefaladonada.Catherinefoiatéumageladeiragrandenadespensa.“Tenhounshambúrgueres”,disse,“epossofritarumasbatatas.Seráqueelesgostam?Evocêgostaria
deumbife,Nora?Ouentãopossofazercosteletas,quetal?Eporqueosmeninosnãolanchamnasaladetelevisão?”“Oqueformaisfácil”,disseNora.
QuandoDillyHalpinchegou,Noraficoucuidandodacozinha,enquantoasduasmulheresestudavamomanual de instruções damáquina de lavar roupas. Nora as ignorou, quando começaram amexer nosdiversosbotõeseficaraminteiramenteconcentradasnatarefa.NorapercebeuqueseriaconvenienteparaCatherineservirochánasalaondeestavamascrianças.Decidiunãosugeririssoeesperouparafazersua própria comida só depois de servirDonal e Conor e ter certeza de que eles tinham tudo de queprecisavam.QuandoamáquinaenfimfuncionoueDillyHalpinconvenceuCatherinedequeasecadoraeramuito
maisfácil,queseriasóumaquestãodeligaredesligar,Dillyficousentadaàmesadacozinha,enquantoCatherinenãoparavadesemovimentardeláparacá.QuandoNoraseofereceuparafazercháparaelas,aceitaram.Depoisqueascosteletasficaramprontas,Noraaslevouparaamesa,juntocompãopretoemanteiga.Elaserviuocháquandoeleficoupronto.Nãosabiaseerasuapresençaquetornavaaconversadifícil,quaseartificial.NoratinhaaimpressãodequeCatherineeDillyestavamrepresentandopapéis,comfalasestudadasespecialmenteparaela,emvezdefalaremdefatoumaparaaoutra.Discutiamsobreumleilãoaquehaviamcomparecido,oleilãodosobjetosedomobiliáriodeumamansão,naperiferiadeThomastown,“Sabe,deiumlanceparaumpardeatiçadoresdelareira”,disseDilly.“EramdoséculoXVIII,masnão
conseguiarrematar.UmnegociantedeDublindeulancescontraosmeus.Lanceiolharesterríveissobreele,masnãoadiantou.Vocêéquesedeubem,Catherine.Quetapetebonito.Ondevaipôr?”“VoufazerumasurpresaparaoMark”,respondeuCatherine,“epôrnoquarto.Masvouprecisarde
ajuda,poisumapartedo tapetevai terdeficarembaixodacama.Esperoqueeleperceba,ésóoquetenhoadizer.”“Eo leilãodemorou tantoqueprecisei ir aobanheiro”, disseDilly, “entãodecidi ir por dentrodo
casarãoeesbarreicomumcartazquedizia‘Entradaproibida.Propriedadeparticular’.Masfuiemfrenteassimmesmo,enãoéqueeuestavasubindoaescadaembuscadeumbanheiro,quandofuisurpreendidaporumavelhaprotestantecomamaiorcaradetiasolteirona?Expliqueiqueeuprecisavairaobanheiroenãoestavaconseguindoacharum,eelamedissequeeupodiairaondequisesseentreThomastowneInistioge, mas que eu tinha de descer a escada imediatamente. E começou a vir na minha direção, amatrona.Sentitantaraivaque,quandoestavaindoemboraeviumcurralcheiodeovelhas,saídocarroeabriaporteira.”“Fezmuitobem”,disseCatherine.“Fiz mesmo, e espero que ainda estejam procurando aquelas ovelhas até agora. Que mulher mais
grossa!Achamqueaindasãodonosdopaís!”“Vocênãoimaginacomoascoisassãoporaqui”,CatherinedisseaNora.“Aquelamulhertevesortedeeunãotercompradoosatiçadoresdelareiraenãoestarcomelesnamão
naquelahora.Nemseioqueeuteriafeito.”Dillyfoificandocadavezmaisindignada,CatherinelhedeuapoioeNora,então,começouarir.“Équepenseinosatiçadoresdelareira”,explicou.Levantou-se damesa ainda rindo.Notou que o rosto deCatherine tinha ficado vermelho e que ela
parecia cerrar os dentes com força. Nora foi ver se os filhos e seus primos continuavam diante datelevisãoedepoisfoiaobanheiro,eláficouatétercertezadequenãoiriarirdenovo.Quandosesentiucapazdesecontrolardefato,voltoueviuqueDillyHalpintinhaidoembora.Catherineficouatarefadanacozinhae,mesmoquandoMarkchegou,Norasedeucontadequeairmãmalfalavacomela.AquilofezNoratomaradecisãodesemostrarsimpáticaeanimadaaomáximocomMark.Aoagirassim,notou
comoCatherineseirritou.“Nora,paravocênãotemimportância”,disseela.“Masnóstemosqueviveraquie,muitoemboraeu
encontreosprotestantesdasmansõesnaAssociaçãodasCompatriotasIrlandesasounoclubedegolfe,eemboraelesconheçamoMarkdaAssociaçãodosFazendeirosIrlandesesetenhamconhecidoopaieamãedele,seviremvocêsubindoaruaprincipalemKilkennynemvãoolharparavocê.Naverdade,nemseiporquefomosàqueleleilão.”“Queleilão?”,perguntouMark.“Dilly,aamigadeCatherine,agrediuumaprotestantecomdoisatiçadoresdelareira”,disseNora.“Nãofoinadadisso!”“Elame pareceumuito simpática, Catherine”, disseNora. “Mas, para ser franca, achei que ela só
estavabrincando.Sabe,comahistóriadosatiçadoresedasovelhas,tivedificuldadedeficarséria.”“Queovelhas?”,perguntouMark.
***Foram para a cama cedo.Nora ficou feliz por estar longe deles e daquela conversa sobre leilões,
mansões e novasmáquinas de lavar roupas.Para ela, ficou claro quenãohavia nadaquepudesse terfaladocomCatherineeDilly,nadaqueinteressasseaelaeàsduasamigas.Quandoseperguntouemquê,afinal,tinhainteresse,Noraviu-seobrigadaaconcluirquenãotinhainteressepornada.Oqueimportavapara ela, agora, não podia ser compartilhado com ninguém. Jim eMargaret estavam com ela quandoMaurice morreu, e isso significava que os três podiam conversar com naturalidade, quando Jim eMargaret iam à sua casa, porque, embora não falassem dos dias passados no hospital, o que tinhamvividonaquelaépocapermaneciasubjacenteatudoquediziam.Estavajuntocomeles,assimcomooarna sala era tãopresentequeninguém jamais comentavaoassunto.Agora,paraeles, conversar eraummododeadministrarascoisas.PorémparaCatherine,DillyeMark,aconversaeraalgonormal.Noraseperguntavasealgumdiaseriacapazdeterdenovoumaconversanormalequaisassuntoselairiadiscutircomnaturalidadeeinteresse.Nomomento,otemasobreoqualpodiadiscutireraelamesma.Etodos,Norasentia,jáestavamfartos
deouvirsobreela.AchavamqueestavanahoradeNoraparardeficarremoendoopassadoepensaremoutrascoisas.Noentanto,nãohaviaoutrascoisas.Sóoque tinhaacontecidoexistia.Eracomoseelavivesse embaixo d’água e tivesse desistido de fazer força para subir rumo ao ar da superfície. Seriademaisparaela.Parecia impossívelsesentir livrenomundodosoutros;eraalgoqueelanemmesmodesejava.ComoNorapoderiaexplicaraquiloaalguémquetentasseentendercomoelaeraouaalguémqueperguntasseseestavaconseguindosuperaroquehaviaacontecido?Noraacordavademanhãcommedododiaquetinhapelafrente.Imaginavaseosmeninostambémnão
sesentiamassim.SeráquequandoFionaeAineacordavamelastambémtemiamodiaquetinhampelafrente? E Jim eMargaret? Talvez, pensou Nora, eles tivessem encontrado outras coisas com que sepreocupar.Elatambémpodiaacharoutrascoisasparapensar—dinheiro,porexemplo,ouosfilhos,ouotrabalhonaempresadosGibney.Encontrarcoisasparapensarnãoeraproblemaparaela;oproblemaeraqueestavasozinhaagoraenãotinhaamenorideiadecomoviver.Teriadeaprender,maseraumerrotentarfazeraquilonacasadeoutrapessoa.Eraumerroficaralideitadanumacamaestranha,quandosuaprópria cama, em casa, também era estranha. A estranheza do lar, porém, não requeria uma reaçãovigorosadesuaparte.Iriademorarmuitotempo,pensouNora,atéelaconseguirpassarumanoiteforadecasadenovo.Notérreo,viuqueCatherineeumamulherdosarredoresquevinhaajudá-lanosafazeresdomésticos
tinhamresolvidofazerumafaxinacompletanacozinhaenadespensaantesqueasecadorafosseinstaladaaoladodamáquinadelavarroupas,nadespensa.Todosospratoseaspanelastinhamsidoretiradosdasprateleiras, para que o pó fosse removido de lá, eCatherine limpava as gavetas e separava todos osobjetos,algunsparadescartar,outrosquedepoisvoltariamaolugar.Conoreumdeseusprimosestavamajudando,enquantoDonalmantinha-seàparte,sentado.AssimqueDonalviuNora,encolheuosombros,comoqueparadizerquetudoaquilonãotinhaavercomele.“Prepareumcháparavocê,Nora”,disseCatherine.“Eseconseguiracharopãoeatorradeira…Meu
Deus,vaiserumalíviodepoisqueissoestiverterminado.Pelomenosestoutendomuitaajuda.”“Voudarumavoltaláfora”,disseNora.Catherinevirou-seepareceuadmirada.“O tempo está chuvoso. Não sei se é um bom dia para caminhar, emais tarde vamos a Kilkenny,
precisocomprardetergenteparaessamáquina.Sabe,estouquasearrependidade tê-lacomprado.MasDillydissequeelareduzàmetadeotrabalhodagente.”“Vouprocurarumguarda-chuva”,disseNora.“Os guarda-chuvas ficamna prateleira ao lado da porta da frente”, explicouCatherine. “Por favor,
cuidadocomaportadafrente,seforusá-la,estábem?Elaficameioduracomessetempoúmido.”Era aquilo que ninguém dizia a Nora. Ela não podia ter sentimentos comuns, desejos comuns.
Catherinepercebia, pensouNora, elamesmanão tinha amenor ideia de como tratar a questão, o quepioravaascoisas.EnquantoNorasaíadacasa,caminhandoemdireçãoàrua,sentiuumaraivaquenãoconseguiucontrolar.Masiaterquecontrolar,elasabia.Nãofaziasentidopensarquenãoiamaisvoltarali, sentiruma raivada irmãque,atéagora,Norasóhaviadirigidocontraomédico responsávelpelaenfermariaondeMauriceficaraemseusúltimosdiasdevida;umaraivaquea levouaescrevercartaspara ele em pensamento, cartas que ela imaginava assinar e pôr no correio, cartas desaforadas oufriamente presas aos fatos, cartas que o ameaçavam, pois aonde quer que ele fosseNora contaria àspessoasoqueeletinhafeitoquandoseumaridoestavamorrendo,queeleserecusaraaaliviaradorquefaziaMauricegemer.Elahaviaprocuradoomédicováriasvezes,perguntaraàsenfermeirasmilvezesseelas não podiam fazer alguma coisa. Todas a acompanhavam de volta até a cama, assentiam com acabeça,admitindoquealgoprecisavaserfeito.Omédico,porém—sódepensarneleNoraandavamaisdepressaesetornavamaisindiferenteàsnuvensqueseacumulavamnoalto—,nãovoltavacomelaparajuntoda camadeMaurice e lhediziaque seumarido estavamuitodoente, queo coraçãodele estavafraco, por isso ele não queria prescrever nada que aliviasse a dor e que pudesse afetar também ocoração.Assim,Nora,JimeMargaretficaramsentadosjuntoàcamadeMaurice,comumacortinapuxadaem
tornodeles, para queos outros pacientes e suas visitas nãoos vissem.Mas eles ouviam.EquandoopadreQuaid,daResidênciaParoquial,eairmãThomas,doconventoSãoJoãodeDeus,foramvisitá-lo,osdois tambémouviram.NoraeMargaretseguravamasmãosdeMaurice, falavamcomele, tentavamatenuar,consolar,prometiamquetudoiaficarbem,massabiamqueelenuncamaisdeixariadesentirdoratémorrer.Amorte, porém, não vinha. EMaurice sentia tanta dor que segurar suamão quando ele a estendia
chegavaaserperigoso,poiseleapertavacommuitaforça.Estavamaisvivo,então,doquejamaistinhaestado,pensavaNora,porcausadesuasnecessidades,deseupânico,deseumedoeporcausadadorquepareciaqueimardentrodele,atéfazê-loparecerumanimalurrandoeserouvidonãosónocorredor,masaténarecepçãodohospital.Trabalharnumhospitaltãopequenocomoaquele,umhospitalquelogoestariafechado,pensavaNora,
obviamentenãoeraoqueomédicohaviaplanejadoquandofezmedicina.Pareciaseroúnicomédicoali,
apostosdiaenoite,oquesignificavaqueraramenteeraencontrado.Trabalharnumhospitalruralsemenfermariascirúrgicasouquartosprivados,semnenhumespecialistaemcardiologiaesemprofessoresdemedicina guiando estudantes pelas enfermarias devia ser humilhante. Ele nada sabia sobre dor oumorte,eNoraselembravadomédicolhefalandocomoseelaestivessedesperdiçandootempodeumhomemmuitoocupado.Norafoisentindoumódioprofundoecrescentedomédico,eosentimentoeracomoumaestranhaespéciedeprazerenquantoelacaminhavaeachuvacomeçavaacair.Quando a chuva se tornoumais pesada, Catherine foi pegá-la de carro. Donal estava no banco da
frente e saiuparadeixarNora sentar ali.Enquantoomenino segurava aporta aberta, sorriupara ela,comoseosdoisestivessemunidosnumaconspiração.EraaprimeiravezqueNoraviaofilhosorrir,emmeses,eenquantovoltavamparaacasaemsilêncio,aquiloeraaúnicacoisaemqueelapensava.Catherine levou-a de volta para casa como se Nora fosse uma criança que não obedecera à
recomendaçãodepessoasmaisajuizadas.“Seusapatoestádestruído”,observouCatherine.“Elevaisecar.”Noratrocouderoupaedepoisachouumromancequeelahaviatrazido.Desceuaescadanapontados
pésefoiparaasaladeestar,emvezdeirparaacozinha.Asalaestavacheiadequadros,porcelanas,vasos e lustres queMark tinha herdado.Amobília, ela sabia, também pertencia à família dele haviagerações, e não fazia muito tempo o estofado tinha sido reformado por alguém em Dublin. Comoraramenteusavamasala,Norasupôsquea ideiade ficarali agora,comsuas roupascomuns, sentadanumapoltrona,lendoumlivro,irritariaCatherine,queaindatrabalhavanacozinha.Noraachouumbancoeapoiouneleospéscalçadosdemeia.Gostariadeestarmaisavançadanaleituradolivro,paralogoseentretercomele.Daliapouco,baixouolivro,recostouacabeçaefechouosolhos.VisualizouorostodeDonal segurando a porta do carro aberta para ela entrar e se perguntou o queCatherine teria dito aomenino quando eles saíram para procurá-la. O que quer que tivesse dito, ou, mais provavelmente, osilêncio impaciente dela ou seu tom de voz exasperado, havia divertido Donal, e esse pensamentodivertiuNoratambém.ElasabiaqueCatherineiriatelefonarparaUna,muitoembora,comohaviaherdadoestranhosresíduos
da frugalidadedamãe,Catherine nãogostasse de gastar dinheiro com interurbanos, sobretudoquandohaviaaprobabilidadededuraremmuito tempo,comoeraocaso.CatherineprecisavacontaraalguémqueNoratinhasidomal-educadacomsuaamigaDillyHalpin,quechegaraatéarirnacaradeDilly,eque havia ido caminhar debaixo de chuva feito uma louca, tendo que ser resgatada de carro.Depois,quando voltou para casa, tinha apoiado os pés em cima de um banquinho cujo estofado havia sidoreformado fazia pouco tempo. Una, ela imaginou, escutaria as queixas mostrando-se solidária aCatherine.Àumadatarde,acozinhaestavaemordemoutravez.Catherineadoravasuacozinha,Norapercebeu,
epareciafelizaoladodofogãooupondoamesa,oufalandocomqualquerumqueaparecesse,inclusivedoishomensquetrabalhavamparaMark.TinhaoexemplardoIrishIndependentdaquelamanhãabertonamesadacozinhae,aintervalos,liaalgumamatériadojornal,emboranuncasedemorassenaleitura.Nora ficou sentada na frente dela e procurou se interessar pelo que os filhos de Catherine falavam,quandoelesapareciam.PorintermédiodeConor,soubequeDonaltinhaachadoumtabuleirodexadrezeestavaensinandoumdosprimosajogar.Catherinesemovimentavaentreadespensaeacozinha,enquantocomeçavaaprepararojantar.Nora
seperguntousedeviaoferecerajuda,mas,emvezdisso,começoualerojornaldistraidamente.Desdeque Maurice fora internado, Nora havia parado de ler jornais, mas agora achou que talvez devessecomeçar a ler The Irish Times. Embora fosse um jornal protestante, tinha artigos mais longos, ela
analisou,emaisbemescritosdoqueosartigosdeoutros jornais.HaviaalgomaissérioemTheIrishTimes.IaesconderojornaldeJimeMargaret,quandofossemàsuacasa,poissabiaqueelespreferiamoIrishPress;detodojeito,iamacharqueelaestavajogandodinheirofora.QuandoMarkchegou,aatmosferamudou.Assimqueele tirouogorro,deua impressãodequeera
aquiloqueelevinhaesperandoencontraramanhãinteira,nãosócomida,mascompanhia.MarktinhaumjeitonaturalqueNoraapreciou.Elaseperguntouseaquilovinhadofatodeeletersidocriadonaquelacasa,semprecientedequeiriaherdarafazenda,masdepoisNoraachouquedeviasermaisdoqueisso.Marktinhaboasmaneirasqueseriamnotadasemqualquerlugar.Emcircunstânciassemelhantes,Mauricesempresemostravapreocupadocomalgumacoisa,comalgumjornal,comalgononoticiário,oucomumlivro,muitasvezessequeixavadobarulhoqueascriançasfaziam,emborataisqueixasfossemexpressascombomhumoreninguémaslevasseasério,muitomenosascrianças.Aospoucos,Noraobservou,CatherinefoimudandonapresençadeMark.Elasemostravainteressada
portudoqueeledizia,faziaperguntasinteligentesaomarido.Jánãosemovimentavatantonempareciaquererfazerduascoisasaomesmotempo.Quandoascriançassesentaramàmesa,Noratambémficoufeliz de estar ali, feliz de estar afastada de seus pensamentos. Ela se deu conta de que aquela erapraticamente a primeira vez que se via livre de todo o peso do que havia acontecido. E se via livredaquelepesoapenasporestarouvindoMarkeCatherineconversaremdescontraidamente;eracomoseelativesseconseguidosoltaroarquemantinhapresonospulmõeseficarquieta,sempensarnemsentirnada.Elanãosabiaqueaquilopodiaocorrereseperguntouquantotempoiriadurar.Àtarde,CatherinequisirdecarroatéKilkenny,masNorasemostrouinflexíveledissequenãoiria.“Prefiroumlivro,umaboapoltronaeumquartosemninguémdentrodele”,disse.“Para mim parece bem sensato”, disse Mark. “Encontrar uma vaga para estacionar o carro em
Kilkenny,numsábado,éumatarefaingrata.”“Nósestamosprecisandodealgumascoisas”,disseCatherine,“enãovamosdemorarmuito.Talvezas
criançasacabemindocedoparaacamahoje,eaípoderemosficaràvontade.”NoraviuqueDonal,queestavaouvindo,sealarmoucomaquilo.AssimcomoNora,elenãoqueriaira
lugarnenhum.Porém,maisque isso,nãoqueriase juntaraorestodascriançase ircedoparaacama.Quandosobpressão,Donalmantinhaosolhosabaixados,depoiserguiaacabeçaparadirigirumolhardemedoparacadapessoaeemseguidabaixavaosolhosoutravez.“Donalvaificaraquicomigo”,disseNora.PorémDonalnãoergueuosolhosparaela.AideiadeiraKilkennycomatiaeosprimos,edepois
encarar a necessidade de dormirmais cedo, havia despertado nele uma impressão da qual demorariaparaserecuperar.Logoficouacertadoqueumdosprimosiaficaremcasaparajogarxadrezcomele,eosdemais,inclusiveConor,iriamaKilkenny.“Sabe,nemcavalosselvagensmearrastariamparaKilkenny”,MarkdisseaNora.“Vouláduasvezes
poranoparafalarcomumcontador,maspreferiapagarparaqueelesemudasseparacá,assimeununcamaisprecisariairaKilkenny.NãomeimportodeiraThomastownouCallan,masháalgumacoisaemKilkenny.Lojasdemais.Compradoresdemais.Pessoasdemaisqueagentemalconhece.Noentanto,essaaínãosecansadeirlá.”AcenoucomacabeçanadireçãodeCatherine,quepassavabatom.“EquandonãoéKilkenny,éDublin.TambémnãomeincomodomuitodeiraDublin,sobretudonuma
quinta-feira,emboraeutenhaouvidodizerqueelanãoestámaistãoseguracomoantigamente.”“Tentarconvencervocêacomprarroupasmedeixaarrasada”,disseCatherine.Marklogopôsogorrodenovonacabeçaecalçouabotanovestíbulo.Otrabalhorural,pensouNora,
deveserumalívioconstante.Sorriuconsigomesmaaopensarnisso.Catherinetinhaesvaziadosuabolsa
emcimadamesadacozinha,parecendoprocuraralgumacoisa.Quandoencontrouoquequeriaeabolsaficoucheiadenovo,elapermaneceuparada,olhandoemvolta.DerepenteNoraentendeuqueesperavamqueelalavassealouçaenquantoelesestivessemfora;entãoeladecidiuquenãochegarianempertodapiadeCatherineemmomentonenhumdaquelavisita.“Achoquevouacenderalareiradasaladeestar”,disseNora.“Estoucomumpoucodefrio.”Emboraacasa tivesseumsistemadecalefaçãocentral,Nora sabiaqueele raramenteerausado.A
cozinhaficavaaquecidaporcausadofogãoedoforno.“DesdeoNatalnãoacendemosa lareiradaquelasala”,disseCatherine,“emesmoassimfoisópor
algumashoras.Nãoseiemqueestadoseencontraachaminé.”Norafezquesimcomacabeça,esperandoqueCatherinedissesseque,apesardetudo,elapodiatentar
acenderalareira.Comoairmãnãofalounada,Noradecidiuprocuraroutrolivronavelhaestantenoaltodaescada,umlivrocomuminíciomaisinteressantedoqueaquelequeestiveralendoantesdojantar,epassar a tardena cama.Talvezatédormisse.Gostavada ideiade relaxardaquele jeitonumsábadoàtarde,enquantoairmãpercorriaKilkennydealtoabaixo,levandoascriançasdeumalojaaoutra.Quandoelesvoltaram,jáestavaescuro,Noratinhadormidoumpoucoeagoraestavanasaladeestar,
depoisdeterencontradoumaquecedorelétricodeduasresistênciasetê-loligado.“Ah,comoestáabafadoaquidentro”,comentouCatherine.“Achoquevocêquerdizerqueestáquente”, retrucouNora.“Orestodacasaestáumgelo.Nãosei
comovocêaguenta.”“O aquecimento central consome gasolina demais”, disse Catherine. “É um sistema velho. A gente
deviamesmosubstituir.”Noraestavagostandodoromanceeagoradesejavaqueairmãadeixasseempazatéahoradedormir.
Entendeu,então,queCatherinegostariadeterasensaçãodeque,dealgumjeito,haviaajudadoacuidardeNora.Aquela visita era uma forma de fazer isso. E, como queria cuidar dela, pensouNora, entãoCatherine podia se encarregar sozinha de cozinhar, de fazer a faxina e lavar a louça, e deixá-la ler.PensounaconversaentreCatherineeUnaao telefone,pensouqueCatherinepoderiaacrescentarapiacheiadelouçasujaeoaquecedorelétricoardendonapotênciamáximaàsualistadaquiloqueNoratinhaaprontadonofimdesemana.Naquelanoite,quandoascrianças foramparaacamaeacasa ficouemsilêncio,Markperguntoua
Nora se ela tinhaplanose ela respondeuque iavoltar a trabalharnaempresadosGibney.Aindanãohaviacontadoaninguém,disse,nemaJimeMargaret,nemaFionaeAine,nemaosmeninos.“Voucontarquandoestivermaispertodahoradeeucomeçar.”PelamaneiracomoCatherineolhouparaela,NorapercebeuqueUnajáhaviacontadoaCatherineo
queelatinhaouvidofalarnoclubedegolfe.“Émuitasortedelespoderemcontratarvocê”,disseCatherine.“Nãohaviaoutraopção”,retrucouNora.“Nãotenhonenhumaqualificação,anãoseradatilografiaea
estenografia,masjáesqueciasduascoisas.Imaginoqueaspessoassintampenademim,masninguémanãoserosGibneysentepenademimobastanteparameoferecerumemprego.”“Vocênãoconseguiriasesustentarcomapensãodeviúvaeodinheiroqueeconomizou?”,perguntou
Catherine.“Nãoeconomizamosnada.NãotemosnadaanãoseracasaemCush,queeujávendi.Guardeiparte
dodinheiroparaumaemergência e tenhovividocomo resto.Apensãodeviúvaéde seis librasporsemana.”
“Éoquê?”,perguntouMark.“Devia haver outra pensão, uma pensão de contribuição por causa dos anos em que trabalhei na
empresa dosGibney, antes deme casar,mas isso é só para casos demuita carência de recursos, e ohomemdoserviçodeBem-estarSocialachaqueeutenhodinheiroguardado.Masnãotenhoe,quandoeleseconvencer,eutambémvoupoderganharisso.”“EoqueosGibneyestãooferecendo?”,perguntouCatherine.Norasorriu.“LembraaquelanoiteemqueBillyConsidineperguntouaoMarkquantosacresdeterraelepossuía?”“Lembromuitobem”,disseMark,rindo.“Elenãoarrancounadademimnaquelanoite,eimaginoque
você também não vai nos contar nada hoje. Ele estava tentando provar que os fazendeiros viviam nafarturaenamoleza,enquantoosprofessoreseramosúnicosquedavamdurodeverdade.”“Vocênãotemmesmonenhumdinheiro?”,perguntouCatherine.“Não,masvoutrabalhar,eJimeMargaretestãopagandoaescoladaAine,eaFionavaiseformar
daquiadoisanos.Entãovouconseguirtocaraminhavidaeadosmeninos.”“Você está pensando no Donal?”, perguntou Catherine. “Ele não falou nenhuma palavra desde que
chegouaqui,atiaJosieestápreocupadacomafaladele.”“Elecomeçouagaguejar”,comentouNora.“Etemplenaconsciênciadagagueira.Euotenhodeixado
empazquantoaisso.Esperoquesejaapenasumasituaçãotemporária.”“Seráquevocênãodeviaprocurarumfonoaudiólogo?”,perguntouCatherine.“Sabequequandoelefalacoma tiaMargaretelenãogaguejanada?Falacomelasempararesem
nenhum problema. Está acostumado com ela, então é isso que me faz pensar que ele vai acabarmelhorando.”“MargaretsempreadorouoDonal”,disseCatherine.“LembraoprimeiroverãoemCush,quandoela
ialádecarrotodanoiteparavê-lo?Mesmoquandoeleestavadormindo,MargaretsentavaaoladodacaminhadoDonalsemfazernada,sóficavaolhandoparaele.”Norasesentiutristeaorecordaraqueletempo.QuandopercebeuoolhardeMark,viuqueaobservava
comcompaixão.Noradesejounãoterdeixadoqueelesfizessemnenhumaperguntasobresuavida.“TemcertezadequevaiconseguirsesairbemnaempresadosGibney?”,perguntouCatherine.“Sabe,
seráquenãoécedodemais?”“Nãotenhoopção.EaquelavelhamatronadaFrancieKavanaghéquemcomandaoescritório.”“FrancieKavanagh?Antigamente,nósachamávamosdeSagradoCoração”,disseCatherine.“Nemsei
maisporquê.”“E você devia ver como está a Peggy Gibney. Está mais pomposa do que sua amiga Dilly. Tão
pomposaquemalconseguesemexer.”“MasaDillyépomposa?”,perguntouMark.“É,sim,Mark”,disseNora,eolhouparaCatherine.“Quandosaiu,elacomentouquevocêestácomótimaaparência”,disseCatherine.“Deveseronovo
cortedecabelo.”“Euestavaesperandovocêfalardele.”“HáumamulhermaravilhosaláemKilkenny”,disseCatherine.“Todasnósconfiamosnelacegamente.
Napróximavez,eugostariamuitoquevocêaconhecesse,nemqueseja sópara falardasopçõesquevocêtem.”“Ecobracincolibrasporhora”,disseMark.“Não,nãoéisso,Mark”,disseCatherine.“Sério,vocêdeviafalarcomela.”“Achoquedeviamesmo”,respondeuNora,sorrindo.
5.Quando chegaram em casa, estava quase escuro e a casa estava fria. Rapidamente, ela acendeu a
lareira na sala e tratou de não dar nenhuma ordemparaDonal eConor. Sentia que os dois já tinhampassadoporpressãodesobranofimdesemana;agoraestavamemcasaepodiamfazeroquequisessem.ComeramtorradascomfeijãoeConorficouvendotelevisãoenquantoDonalandoupelacasa,inquieto.Acaminhodecasa,NoraparouemKiltealyparaqueosmeninostrocassemdelugare,aoverumaloja
aberta,comprouoSundayPress.QuandoverificavaaprogramaçãodatelevisãoparaConor,elaviuqueiapassarumfilmedepoisdonoticiáriodasnovedanoite:Àmeia luz, comIngridBergmaneCharlesBoyer.QuandoDonalentrounasala,elaapontouofilmeparaele.“Éumdosmelhoresfilmesqueeujávi”,disse.Foiantesdecasar,elalembrou,haviaumasaladecinematemporárianaAbbeySquare,eNorafoiver
o filme com Greta Wickham. Maurice raramente ia ao cinema com Nora nos anos em que os doisnamoraram, e depois que casaram ele perdeu todo o interesse por cinema.Ocupava-se demais comoPartidoRepublicanoIrlandês,escrevendoartigosecorrigindotrabalhosdecasadosalunos.Egostavadeficarsozinhonofinaldatarde,sabendoquedepoiselesestariamjuntos.UmacoisaquenuncadiminuíaemMauriceeraopuroprazerdaideiadeestaremcasados,dequenãoprecisavamseseparareircadaumparasuacasa,comofaziamantesdesecasar.“Sobreoqueéofilme?”,perguntouConoraoouvi-lafalardele.“Ésobreumamulherdentrodeumacasa”,respondeuNora.“Sóisso?”“Talvezalgumacoisaac-c-conteçacomel-l-lanac-c-casa”,disseDonal.ConorolhouparaNora.“Temladrões?”“Vocêsprecisamassistiraofilmeparavercomoeleébom.Seeuexplicarmuito,perdeagraça,eaí
nãoadiantamaisnada.”“Agentepodever?”“Vaipassarmuitotarde.”“Vocêvaiver?”“Vou,achoquesim.”“Entãoagentepodiaverocomeçoedepoisagentedecide.”“Vocêsnãovãoacordarcedodemanhã.”“ÉoDonalquenãogostadeacordarcedo.”
“D-d-detestoacordarcedo”,disseDonal.Quandoonoticiáriodasnovehorasestavaterminando,Noranotouqueosmeninosnãosemexiam.Ela
nãoconseguiaselembrardeumdiatervistoumfilmecomeles,esentiu-sequaselisonjeadaporteremconfiadoemsuaopiniãosobreÀmeialuz.Quando o filme começou, porém,Nora percebeu queConor estava decepcionado, e provavelmente
Donaltambém.“Ésócomessaspessoas?”,perguntouConor.Noprimeirointervaloparaoscomerciais,Noraresolveucontarahistóriadofilmedamelhormaneira
possíveledeixá-losresolversequeriamverorestantedofilmeounão.“Ohomemestátentandotomaracasadela,estátentandointernaramulhernumhospícioparaqueele
possaacharasjoiasdatiadela.Éissoqueeleficafazendonosótão,estáprocurandoasjoias.”“Por que ele nãomata amulher de uma vez?”, perguntou Conor. “Dá uma facada ou um tiro? Ou
amarraamulher?”“Aíelepoderiaserpreso.Elequermorarnacasasemela.Masnãoquerirparaacadeia.”Osdoismeninos aceitaram issoemsilêncio,quandoo filme recomeçou.Depoisde algunsminutos,
numacenaemqueIngridBergmanficouassustadaeperplexa,enquantoolampiãodegáspiscava,comelasozinhanacasa,ConorseaproximoudeNoraesentou-seaseuspés.HaviaalgonofilmedequeNoranãotinhaselembrado.Antes,lhepareceraumfilmedesuspenseou
uma espécie de filme de terror. Mas agora havia outra coisa. Ingrid Bergman parecia estranhamentesozinha e vulnerável no filme; toda vez que a câmera focalizava seu rosto,mostrava algum profundotumulto interior, ou alguma incerteza, bem como susto e terror. Ela vivia apavorada e estranhamentedistante das coisas. Seus olhares eram sempre nervosos, os sorrisos tinham um toque de inquietação.Haviaumasensaçãodevidainteriorfragilizada.AgoraDonaleConorestavamparalisadospelofilmee,quandoveioumnovointervalocomercial,DonaltambémfoiparapertodapoltronadeNora.Quandoohomem tentava convencer amulherdeque ela estava esquecendoas coisas edeixavaos
objetosforadolugar,osmeninosobservavamcomtodaaatenção.Aintrigadohomemcontraela,suasmentirasea insolênciadacriadaao falarcomela, tudoseencaixavanuma finalidade,uma finalidadedissimulada e incômoda. Nora se perguntava se alguma vez já vira Ingrid Bergman representar umacomédia.Paraela,estavaclaroque,sehouvesseumabatidanaportadacasanaquelemomento,nenhumdostrêsseriacapazdeatender.Equandonofilmealuzdolampiãodegáspiscououtravezeamulherseassustouaindamais,ostrês
olharamcomumapreocupaçãoconcentrada.Norasedeucontadequeatéentãoosmeninossó tinhamvisto filmesdeaventuraouepisódiosdeTolkaRow, queConor achava especialmente engraçadosporcausadosotaquedeDublin.Osdoisnuncatinhamvistoumfilmecomoaquele,eahistóriaatingiualgocruedesprotegidoneles,comoseestivessemnumacasacomumamulherque,apesardetodososseusesforços, tambémse encontrasse aflita epreocupada,mantendoemsilêncio tudoque lhepassavapelacabeça.Quantomais o filme avançava,mais impossível parecia a ideia de que IngridBergman tinhavindodeumafamíliagrandee feliz,mas talvezNoraestivesse imaginando isso,pensou,exagerandoainterpretaçãodasimagens.TalvezIngridBergmanfosseapenasumagrandeatriz.Qualquerquefossearazão,elaevocavaalgoocultoeestranho,assimcomoaausênciadeMauriceeseucorponasepulturadeviampareceralgoocultoeestranhoparaosmeninos.Noraseperguntavaseteriasidomelhornãoterfaladodofilmeeosmeninosnãopassaremanoitededomingovendoaquilo.Quandoterminou,osdoisforamparaacama.Noraficousozinha,comasimagensdofilmenacabeça,
sentindo,nacasaondehaviamoradocomMauricepormaisdevinteanos,osecosdoquetinhavistonatevê.Cadacômodo,cadabarulho,cadarecantoestavamcheiosnãosódoquesehaviaperdido,masdosprópriosanosedias.Agora,nosilêncio,elasentiaissoesabiadisso;paraosmeninos,veionumtumulto.No filme,decertomodo,eraalgoóbvio,masdeum jeitooudeoutroserviraparaperturbá-losaindamais.Noraseperguntouquantosfilmesantigosreapareceriamagoraparaelacomsignificadosnovosemaissombrios.Continuoualisentada,imaginandoIngridBergmancomoalguémdesprotegidaeinocente;depoisapagouasluzesesubiuparaoquarto,naesperançadedormirdiretoatédemanhã.O domingo seguinte seria seu último dia de liberdade antes de começar no escritório dos Gibney.
QuandoFionafoiparacasanosábado,Noracontouaela;quandocontouaosmeninos,elespareciamjásaber.Noratinhacertezadequenãohaviacontadoaninguémnafrentedeles,deraanotíciaparaJimeMargaretnumanoite,quandoosmeninosjá tinhamidodormirfazia tempo.Nodomingo,Ainefoiparacasaàtarde,depoisdaescola,levadaporumafamíliavizinhacujafilhatambémestudavaemBunclody.Noralevariaasduasjovensdevolta,decarro,nocomeçodanoite.Margaret sempre lia os jornaisminuciosamente e olhava os anúncios de emprego.Nora costumava
brincarcomMaurice,dizendoquesehouvesseumavagadeassistentedoassistentedebibliotecárioemWestMayo,Margaretiaficarsabendoeselembrariadoprazoparaaapresentaçãodoscandidatosedasqualificaçõesnecessárias.Assim,quandofoianunciadoquehaviabolsasparaestudantesuniversitáriosdefamíliascomrendainferioracertaquantia,MargaretmencionouissoparaNora,dizendoestarcertadequeAinetinhacondiçõesdeseraceita.Oúnicoproblema,disseMargaret,eraAineterabandonadoocurso de latim, pois ia precisar de latim para ser admitida no University College de Dublin, ondeMauricehaviaestudadocomumabolsa.NoranãosabiaqueAinehaviaabandonadoocursodelatim.Afilhadeviatercontadoàtia,masnãoparaela.Nodomingo,AinecontouaNoraqueMargarettinhaescritoparaelaseoferecendoparapagaraulas
particularesdelatimnasfériasesugerindoqueelaapenastirasseanotamínimaparapassar,poisassimteria tempodeseconcentrarnasoutrasmatérias.Noranãosabiase reclamavaporMargaretnãoa terconsultado primeiro ou, enfim, se reclamava de toda aquela ideia. Margaret parecia ter assumido aeducaçãodeAine.Porém,Noraconcluiuqueeramelhornãopensardemaisnoassunto.DisseaAinequeconcordavacomMargaretdequeeladeviateraulasparticularesdelatim.Poralgumashorasnaquelatarde,Noraviuosmeninostransformadospelapresençadasirmãs.Conor
seguiaasduasjovensdeumcômodoaoutroe,quandofoiexpulsodoquartodasduas,eledesceuparaotérreoparasaberquantotempofaltavaparaFionapegarotremparaDublineparaAinevoltaràescola.Então,Conorsentounoaltodaescadaealificou,atéqueelascederamedeixaramomeninoentrarnoquarto.Donalhaviacompradofilmeparasuacâmera;feztodosposaremparafotografias.Emboraoflashsó
funcionasse de vez em quando,Donal não desanimou. Ficou com amáquina pendurada no pescoço epareciamaisalertaeenvolvidoquedecostume.Àmedidaqueatardepassava,Norapercebeuqueelanãoeranecessária.Sorriusozinhaanteaideia
deque,casoescapulissedecasasemservistaefossedarumacaminhada,ninguémteriapercebido.SóquandoUnachegoueasjovensdesceram,começaramaprestaratençãonela.“Queótimoquevocêfezocabeloantesdecomeçaratrabalhar”,disseAine.“Euiadizerqueacheilindo”,comentouFiona.“masfiqueitãosurpresa…”“Meninas, quando vocês chegarem à nossa idade”, interrompeu Una, “vão entender tudo sobre
cabelo.”
“Vocêvaitrabalharemhoráriointegral?”,perguntouAine.Norafezquesimcomacabeça.“Eoqueosmeninosvãofazerenquantovocêestivertrabalhando?”“Vouchegaremcasaàsseishoras.”“Maselesvoltamparacasaàstrêsemeia,quatrohoras.”“Elespodemficarfazendoosdeveresdecasa.”“Vamoslimparacasa”,disseConor.“Nãoprecisamlimparnossoquarto”,retrucouAine.“Vamos limpar, sim, vamos virar tudo de pernas para o ar e achar todas as cartas dos seus
namorados.”“Mãe,elesvãoentrarnonossoquarto”,disseAine.“Conoréadiscriçãoempessoa”,respondeuNora.“Oquequerdizeradiscriçãoempessoa?”,perguntouConor.“Querdizerquevocêéumgrandeabelhudo”,respondeuFiona.“Falandosério”,disseAine.“Nãoseriamelhorseosdoisfossemparaacasadealguémeesperassem
vocêlá?”“Nãov-v-vouparalugarnenhum”,disseDonal.“ODonaltomacontadoConor,sehouveralgumproblema”,disseNora.“Evouestaremcasaparao
almoço,nomeiododia.”“Quemvaifazeracomida?”“Voudeixarprontananoiteanterior,eDonalpõeasbatatasparacozinharassimquechegar.”Nora se sentiu submetida a um interrogatório e pensou em mudar de assunto. Os cinco pareciam
estranhamentedesconfiadosdela,comoseir trabalharnaempresadosGibneyfossealgoqueestivessefazendoparaseesquivardesuasverdadeirasobrigações.NenhumdosfilhossabiaqueNoratinhapoucodinheiro,eeladesconheciaoqueMargarethaviacontadoaUna.Comoocarroaindaestavanaportaeacasa parecia não ter sido tocada pela pobreza, ninguém fazia a menor ideia de como a situação eraprecária,apesardeNoratervendidoacasadeCush.Seemalgummomentonãocomeçasseatrabalhar,tambémprecisariavenderocarroeseriaobrigadaapensaremsemudarparaumacasamenor.“PorquenãosemudaparaDublinearranjaumempregolá?”,perguntouAine.“Quetipodeemprego?”“Nãosei.Numescritório.”“NãoqueroirparaDublin”,disseConor.“DetestoaspessoasdeDublin.”“Oquehádeerradocomelas?”,perguntouUna.“Sãoquenemasra.ButlerdeTolkaRow”,disseConor,“ouasra.Feeney,ouJackNolan,ouPeggy
Nolan.Todosfalamdaquelejeito.”“Podemosdeixarvocêaqui,assimvocênãoperdenenhumepisódionatelevisão”,disseFiona.“Aquelamulher, aSagradoCoração, aindaé adiretoradoescritóriodosGibney?”,perguntouUna.
“Comoelasechamamesmo?”“FrancieKavanagh”,respondeuNora.“LembradaBredaDobbs?”,perguntouUna.“Poisé,afilhadelatrabalhounesseescritório.Ah,meu
Deus,talvezeunãodevacontaressahistória.Conor,sevocêcontaressahistóriaparaalguém,arrancosuasorelhasadentadas.”“SeussegredosestãoseguroscomoConor”,disseFiona.“Nãovoucontarnada”,disseConor.“AfilhadeBredadetestavaaSagradoCoração,eelatrabalhouanosláantesdecasar.Enoúltimodia
elasevingou.”Unaparou.“Oqueelafez?”,perguntouFiona.“Nãoseiseeudeviatercomeçadoessahistória”,disseUna.“Váemfrente”,disseFiona.“Todos sabiam que uma das manias da Sagrado Coração é não fazer intervalo para almoçar. Ela
trabalhaodiainteiro,direto,semcomer.Imaginoqueissoadeixemuitomal-humoradalápelasquatrohoras. Naquela época, ela tinha o hábito de pendurar o casaco no corredor, onde todos os casacostambém ficavam pendurados. A filha da Breda detestava tanto a mulher que passou uma semanarecolhendo cocô de cachorro, daí em algummomento damanhã encheu os dois bolsos do casaco daSagradoCoraçãocomoquehaviajuntadoe,àsquatrohoras,perguntouàCoração,ouseilácomoelasechama,sepodiasairquinzeminutosmaiscedo,jáqueeraseuúltimodia,eaCoraçãorespondeuquenãopodiadejeitonenhumequeelaprecisavavoltaràsuamesadetrabalhoimediatamente.ComonaquelediaaSagradoCoraçãoficounoescritórioaté tarde,ninguémviuoqueaconteceu.Talvezelasó tenhapercebidoquandojáestavaacaminhodecasaepôsasmãosnosbolsos.”“Osbolsoseramgrandes?”,perguntouConor.“Porisso,agoraelapenduraocasacoemsuaprópriasala”,prosseguiuUna.“Oengraçadoéqueno
diaseguinteelafoitrabalharcomomesmocasaco,comosenadativesseacontecido.Éumcasacovelhoemarromque,peloquesei,elaaindausa.”“Quenojo”,disseFiona.“AchoquefazerissonãotrouxemuitasorteparaafilhadeDobbs”,disseNora.“Ah, ela se casoucomumdosGethingdeOulart, ele éumsujeitomuitobom,e eles têmumchalé
novo.Eleédonodeumnegócio.Jogueigolfecomelaalgumasvezesedigoquenãoexistejovemmaissimpática.Elanãoaguentavamais,foisóisso.”“Seriapiorsefossecomcocôdevaca”,disseConor.“Oudeb-b-boi”,disseDonal.Nocarro,acaminhodeBunclody,nobancodopassageiro,AineperguntouaNoraseelasabiaque
Unaandavasaindocomumhomemdoclubedegolfe.AamigadeAine,nobancodetrás,confirmouquesuamãe,quefrequentavaoclube,tambémtinhaouvidofalardoassunto.“AUna?”,exclamouNora.“Issomesmo,porissoelaandatãobem-humorada.Quandoelafoiaonossoquarto,perguntamospara
ela,maselaapenasficouvermelhaedissequeaspessoasviviaminventandofofocasnoclubedegolfe.”Noracalculouque,comoelatinhaquarentaeseisanos,Unatinhaquarenta,oufariaquarentaembreve.
Anos antes, ela e Catherine haviam chegado à conclusão de que Una não iria mais se casar, e quecontinuariatrabalhandonoescritóriodafábricademalteRoche’sevivendonacasaondehaviamoradocomamãeatéamortedela.“Entãovocêsnãosabemqueméosortudo?”,perguntouNora.“Não,masdissemosparaelaque,senãocontasselogoparanós, iríamosespalharparatodomundo
queonamoradodelaeraoLarryKearney.Elaficoufuriosa,masmesmoassimnãocontounada.”LarryKearney,Nora sabia, eraumbeberrãoda cidadequemuitasvezes ficava sentadonochãona
frentedosbaresondenãoodeixavamentrar.Anosantes,quandoCatherineeUnaforamaumhoteldegolfenocondadodeCavancomRoseLaceyeLilyDevereux,elastomavamseuchá,numfimdetarde,comumcasaldeDublinmuito esnobequenão tinhaparadode falarde seuclubedegolfe chiqueem
Dublin.FicaramcontandovantagematéqueLilyDevereuxfaloucomvozimpostada,paraomaridodeDublin, que ele era igualzinho a um homem de Enniscorthy, um dos melhores jogadores de golfe docondadodeWexford,chamadoLarryKearney,equeelaachavaqueosdoispodiamseraparentadosdealgumaforma.Catherine tevedesaircorrendodorestaurante,quaseuivandode tantorir, logoseguidaporUna.“Doquevocêestárindo?”,AineperguntouaNora,quandopassaramporClohamon.“LarryKearneyentrouparaoclubedegolfe?”,perguntouNora.“Não,nãosejatola.”Mais tarde, Donal e Conor foram com ela até o trem que Fiona ia pegar para Dublin. Quando os
meninosesperavamotremnapontedemetal,NorapercebeuqueFionapareciatriste.“Vocêestábem?”,perguntou.“Odeioterquevoltar”,respondeuFiona.“Háalgoerrado?”“Asfreiras,odormitório,ocursoparaprofessores.Naverdade,tudo.”“Masvocêtemamigaslá?”“Sim,etodasnósdetestamosaquilo.”“Noverão,vocêvaiparaLondreseaívaifaltarsóumano;depoisvocêvoltaparacasa.”“Casa?”“Paraondemaisvocêiria?”“PossoficaremDublinefazerfaculdadeànoite.”“Fiona,asituaçãoaquiestámuitodifícilparamim.Averdadeéqueeunãoseisevou terdinheiro
suficiente.”“Vocênãorecebeapensão?EodinheirodacasadeCush?Evocênãovaitrabalharnaempresados
Gibney?”“Gibneyvaimepagardozelibrasporsemana.”“Sóisso?”“Elefoimuitosecoquandofaloudesseassunto,oThomas,ofilho.Maisoumenos,dissequeeupodia
aceitarapropostaouirembora.Opaieamãedeleforamsógentilezacomigo.Maséelequeéohomemdodinheiro.Éassimqueosnegóciosfuncionam,nãoqueeuentendaalgumacoisadenegócios.”“Talvezeupossaprocurarumempregoporaqui”,disseFionaemvozbaixa.“Vamosesperareveroqueacontece”,sugeriuNora.Fionafezquesimcomacabeça,eentãoConoranunciouqueotremestavachegando.“LamentosobreacasadeCush”,disseNora.“Ah,jáesquecioassunto”,disseFiona.“Fiqueichateadanodia,quandosoube,masagoranãoestou
maisligando.”Elapegousuapequenamala.Quandovoltavamdecarroparacasa,DonaldissequetinhadadoumaolhadanoSundayPresseviu
queiapassaroutrofilmenatelevisãonaquelanoite.“Qualéotítulo?”,perguntouNora.Donal ficou calado,Nora sabia, porque, qualquer que fosse o nome do filme, ele não ia conseguir
pronunciar.”“Prendaarespiraçãoepronunciedevagar”,disseNora.“Ho-o-orizontePerdido”,respondeu.
“Nãoseibemsobreoqueéofilme,masdetodojeitopodemoscomeçaraver.”“Aqueledanoitepassadafoidemetermedomesmo”,disseConor.“Masvocêgostou?”,perguntouNora.“Conteiofilmeparaaminhaturmanaescolaeasra.Dunnedissequeeunãodeviaficaracordadoaté
tãotarde.”“Porquevocêcontouofilmeparaeles?”“Todostinhamquecontarumahistória.Nasexta-feirafoiaminhavez.”“Issof-f-foinaauladeinglêsoudeirlandês?”,perguntouDonal.“Deinglês,seuburro.”“Nãochameseuirmãodeburro”,disseNora.“MascomoéqueagentefalaÀmeialuzemirlandês?”,perguntouConor.Assim que leu a sinopse do filme no jornal, Nora reconheceu a história. Lembrou-se do nome
ShangriláetevecertezadequeMauriceeelariramjuntosdeumacasaemDublincomaquelenomenaporta. Os dois se perguntaram se os donos tinham se aventurado a sair para o mundo exterior edescobertoqualeraaidadeverdadeiradeles.Aorecordarofilme,elepareceuumafantasiainofensivacomparado comÀmeia luz, e quandoosmeninosperguntaram sepodiamver o filme, ela concordou,dizendoquepoderiamirparaacamaseoachassemmuitochato.Porém, assim que o filme começou, havia algo de penetrante e estranho nele. Primeiro, a música;
depois, o próprio acidente de avião, assustador, quase difícil de ver de tão realista. Quando veio oprimeirointervalocomercial,osmeninospediramparaelacontarahistória.“ÉcomoTírnanÓg”,disseela.“EmShangrilá,aspessoasnãoficamvelhas.Algumaspodemtercem
ouduzentosanosemesmoassimparecemjovens.”“Sãotãovelhasquantoasra.Franklin?”,perguntouConor.“São,emaisvelhasainda.ElaiaparecerumamocinhaseentrasseemShangrilá.Masésóumfilme.”Noentanto,lentamente,àmedidaqueahistóriaavançava,Norapercebeuquetudooqueosmeninos
vissem,fosseoquefosse,acabarialembrandoaosdoisascircunstânciasemqueestavam,maisdoquequalquercoisaquetivessesidoditanacasaodiainteiro.Noranãosabiaseeracorretoounão,paraela,ficarassimcomelesnumsilêncioquebradopelamúsicadramáticaepelasvozessuavesquevinhamdatelevisão.Nãoconseguiaselembrardonomedoatorquefaziaopapelprincipal;achavaquenãootinhavisto em nenhum outro filme. Era um tipo bonito, confiável, forte, romântico, cheio de franqueza ecuriosidade.DuranteacenaemqueoLamacomeçouafraquejareficouclaroqueele iamorrer,Conorfoipara
perto de Nora, até que ela lhe deu uma almofada e o menino sentou-se no chão, a seu lado. Donalcontinuou longe.Parecia aindamais envolvido comaquele filmedoque comÀmeia luz.Na hora dointervalocomercial, ficouolhandoparaosanúnciosenemdesviouosolhosquandoConorcomeçouafazerperguntasqueNoratentavaresponder.Ela sabia o que ia acontecer no filme; agora tinha se lembrado: os três personagens indo embora,
caminhando pelas montanhas elevadas, na esperança de ser resgatados e levados de volta para aInglaterra.EntãoorostodamulhermurchouassimqueelesseafastaramdaterrasagradadeShangrilá.Emseguidaveioamortedamulher,eo irmãodoheróipulouparaaprópriamorte, tomadodehorror,seguidopeloresgatedoheróieseuregressoàInglaterra.FoiaúltimapartedofilmequedeixouDonalinquietonapoltrona.Oheróiqueriavoltar,queriadeixar
omundoetudoquelheerafamiliarparasairandandoatéencontraroutravezaquelelugarforadomundo,
onde ninguém conseguiria achá-lo, onde ele não sentiria saudade de casa e viveria numparaíso ondejamaisenvelheceria.Amensagemdaquiloera tãoóbviaqueNoranemprecisouseperguntaroqueosmeninosestariampensando:estavampensandoqueeraaquiloqueseupaitinhafeito.Eeratambémoqueelapensava,ofilmehaviasidoentendidodomesmojeitopelostrês,pensouNora,portanto,agoraqueofilmetinhaacabadonãohavianecessidadenenhumadefalarsobreoassunto.Desligaramatelevisãoeelafoiprepararacomidadodiaseguinte,enquantoosmeninosforamparaacama.Namanhãseguinte,enquantoelacaminhavapelasruasdacidadeparairaotrabalhopelaprimeiravez,
sentiuqueestavasendoobservadacomatenção.Tinhaacordadocedoeperderaalgumtempoescolhendoa roupa que iria vestir. Precisava ter certeza de não usar nadamuito chique,mas também não podiaaparecercomumaroupavelhaoudesleixada.Nãoestavafazendofriosuficienteparaelavestirumdeseusdoiscasacosde lã,por issoescolheuumacapadechuvavermelhaquehaviacompradoantesdeMaurice adoecer e quenunca tinhausado.Eravistosademais e talvezparecessemelhornumamulhermaisjovem,maseraoúnicoagasalhoquetinhaquenãoerapesadodemaisparaumamanhãcomoaquela.Agora,quandopegouaCourtStreet,Noraentendeuque tinhasidoumerro.Passavapormulheresa
caminho do trabalho no hospital St. John e por homens a caminho do trabalho na fábrica de malteRoche’s.Todosolhavamparaela,comseucabelotingidoesuacapavermelha.Torciaparanãoencontrarninguémmais íntimo,ninguémquefossedetê-la, falarefazerperguntas.Noraesgueirou-sepelomorroFriaryepelapraçaFriaryafimdeevitarencontroscomquemquerfosse.AtravessouapraçaSlaneye,comalívio,alcançouaponte.Estavaquase lá.Aochegaraoprédiodoescritório,Noradeviapediràrecepcionistaqueavisasseasrta.Kavanagh.Nãofaziasentido,pensou, tentarsersimpáticaeafetuosacomFrancieKavanagh.Asduasnuncahaviamgostadoumadaoutraenãoeraagoraqueiamgostar.TudoqueNorapodiaesperareraqueanotíciadequeelahaviarecebidoapropostadeempregodopróprioWilliamGibney,napresençadesuamulher,Peggy,edequeMauricetinhasidoprofessordosfilhosdeGibney,pudessefazerFrancieKavanaghmostrarumpoucodebonsmodos.Quandoarecepcionistaperguntouseunome,Noraseviufalandoemtomaltivo,oquelevouamulhera
olhá-la com desconfiança. Aquele tom, ali, pensou Nora, não adiantava nada. Concentrou-se em semostrarcalmaedelicada,mastambémeficienteeemplenocontroledesimesma.Nãotinhaideiadequetrabalhoiriafazer.ThomasGibneydissequeeraalgoquecaberiaàsrta.Kavanaghresolver,mas,fosseoquefosse,serianovoparaNora,eelalevariatempoparaaprender.Noraficouesperandonarecepção,enquanto alguns funcionários do escritório passaram por ela no corredor estreito. A maioria erammulheres,emuitasdelasmaisjovensdoqueNora.Algumaspareciamestudantes.Porfim,asrta.KavanaghfoiavisadapelarecepcionistadapresençadeNora.“Ah,vocêescolheulogoapiormanhãdoano”,gritouelaatravésdajanelinhasemiaberta,entreasala
darecepcionistaeocorredor.“Nãoseioquevamosfazer.Quemfoiquedisseparavocêvirhoje?”“Osr.ThomasGibneydissequeeraparaeucomeçarestamanhã”,respondeuNora.“Ah, o sr. Thomas Gibney. Ela me paga!”, disse a srta. Kavanagh e vasculhou nas gavetas de um
fichário.Depoisdealgumtempo,asrta.Kavanaghdesapareceue,comonãovoltou,Noratentouatrairaatenção
darecepcionista,masarecepcionistanemergueuosolhos.Norapensousedevialevantaravozeexigirquealguémaatendesse,masachouquenãoeraocaso.Quandoestavaparada,esperando,aportaseabriucomoempurrãodadoporumajovemqueparecia
diferentedetodososquehaviamentradoantes.Seucabelotinhaumcortelindoesuasroupaspareciamcaras.Atéosóculoseramdiferentes.“Éasra.Webster?”,perguntouela.“Ah,jáseiquemévocê”,disseNora.“Vocênãoseparececomninguémquechegouparatrabalhar.
VocêéaElizabeth.”“Deusmelivre,esperomesmonãoparecercomnenhumadasoutras!”“VocêéumaGibney,eulogopercebi”,disseNora.“Bem,eufariaqualquercoisaparanãoparecerumaGibney,masaquiestou.Ninguémmaisqueriame
aceitar,porissovolteiparaEnniscorthy,moroemcasaetrabalhonoescritório.Asduascoisasqueeudiziaquenuncamaisiriafazer.”“Conhecisuaavópaterna”,disseNora,“evocêseparecemuitocomela.”“Eumelembrobemdaminhaavó”,disseElizabeth.“Elafoiparaacamaláemcasaenuncamaisse
levantou.Peloqueconsta,podeserqueelaestejanaquelacamaatéhoje.”Norahesitouummomento, imaginandosedeviapediraElizabethqueaajudasseaencontrarasrta.
Kavanagh.“Vocêquerfalarcomalguém?”,perguntouElizabeth.“Sim,comasrta.Kavanagh.”“Nãoconsegueencontrá-la?Elacostumaficarparaláeparacáotempotodo.”“Elaapareceuedepoissumiu.”“Poisé,elaagoraviveindoaodepartamentodecontabilidadeeberraumbocado.Omelhorafazeré
vircomigoedepoisagentepegaasrta.Kavanaghdesurpresa.”NoraseguiuElizabethatravésdeumaportaquedavaparaumescritórioamploemovimentadoe,em
seguida, por uma sala menor com uma janela com vista para as montanhas ao longe e para o pátioembaixo, onde muitos carros e caminhões estavam estacionados. Havia duas escrivaninhas na sala ealgunsarquivos.“Aúnicacoisaqueeuconseguirealizardesdequevoltei”,disseElizabeth,“foiatransferênciadeElsa
Doyledesteescritórioparaoescritóriovizinho,juntocomseuaventaleseuestrabismo.Elacomeçouaescutarminhasconversasaotelefoneeaquererdiscuti-lascomigo.”“ElsaDoyle?”,perguntouNora.“AfilhadeDavyDoyle?”“Elamesma”, respondeuElizabeth.“Tãobarulhentaquantoopai,massemasagacidadedele.Falei
paraopessoalládecasaqueeuiavoltarparaDublineganharavidanaruaseelanãofossetransferidadomeuescritório.Veja, aqui erao escritóriodela antesde eu chegar.Vocêgostariade ficar namesadela?”“Quemesa?”Elizabethapontouparaaescrivaninhapertodaporta.“Por que não solicita logo essamesa antes que alguém impeça? Vou dizer quemeu paimandou e
ninguémvaimecontestar.”Nora sentou-se diante da escrivaninha, enquanto Elizabeth saiu e voltou em seguida, trazendo uma
bandejacomcháebiscoitos.“Eu tenho meus próprios biscoitos. Tenho um esconderijo para eles. E tome cuidado, Francie
Kavanaghandaàsuaprocura.Estáempédeguerra.Perguntouseeuvivocê.Eunãodissequesimnemquenão.”“Nãoémelhoreuirfalarcomela?”“Tomeumcháprimeiro.”Daliapouco,alguémveiodizerqueasrta.Kavanaghestavaemsuasalaàesperadasra.Webstere
quetinhainstruçõesdeacompanharasra.Websteratéláimediatamente.Asaladasrta.Kavanaghficavanaextremidadedoescritóriogeral;pelajanela,elatinhaumavisãocompletadetudoqueacontecia.
“O sr.William ou o sr. Thomas disse a você o que vai fazer aqui?”, perguntou a srta. Kavanagh,erguendoosolhosporummomentoedepoisfolheandopapéissobreamesa.“Não,nãodisseram.”“Bem,elestambémnãomedisseram,eosdoisforamparaDublin,portantovamosterquenosvirar
sozinhas.”Noranãoreagiu.“Essa ElizabethGibney é a jovemmais preguiçosa da Irlanda”, disse a srta.Kavanagh, “e amais
desagradáveltambém.Filhadopatrãoounão,paramimnãofazamenordiferença.Tratotodomundodomesmojeito.EelapôsapobreElsaDoyleparaforadoseuescritório.Elsaémuitoprestativa.”Derepente,elaergueuosolhos.“Olhe,temumacoisaqueeusemprefaçocomaspessoasquecomeçamatrabalharaqui.”Pegouumapasta.“Éumasomacomprida”,disse,entregandoaNoraumafolhadepapelgrosso,comseisalgarismosem
cadalinha,atéofimdapáginadafrenteeatéametadedoverso.“Veja se consegue somar issoparamim, comoumaboamulher”, disse, olhandoparaNorabemde
frente,elheentregandoumacaneta.Noracomeçouasomar.Eraumadascoisasquetinhafeitomuitobemquandotrabalhouali,umadas
coisasqueovelhosr.Gibney,quenãoconseguiasomarsemcometererros,semprelhepediaparafazer.Noraignorouasrta.Kavanagh,quecontinuouolhandofixamenteparaelaenquantosomavaosnúmeros.Quandoterminouasomadaprimeiracoluna,anotouoresultado.“Nãoescrevaosnúmerosnafolha!Querousá-ladenovo.Useistoaqui!”Asrta.Kavanaghentregou-lheumpedaçodepapel,oquefezNoraperderaconcentração.Resolveu
começar de novo, para ter certeza de que tinha feito tudo certo. Quando terminou as duas primeirascolunaseestavaameiocaminhodaterceira,asrta.Kavanaghainterrompeudenovo.“Osr.Williamouosr.ThomasdissequevocêdeviadividiroescritóriocomElizabeth?”Noraergueuosolhosparaasrta.Kavanaghesustentouseuolharporummomento.“Então?”,perguntouasrta.Kavanagh.Norabaixouosolhosecomeçouasomaraterceiracolunadealgarismosdesdeoinício.Tentounão
pensarqueasrta.Kavanaghestavasentadaàsua frentee,emvezdisso,voltou todasuaconcentraçãoparaasomadosnúmeros.Agoraeraquaseumabatalhaentreasduase,casoasrta.Kavanaghfalassemaisumavez,elaestavadispostaapedir,damaneiramaiseducadapossível,quenãoainterrompesse.Mas, ao pensar nisso, perdeu-se na conta e não tinha mais certeza de quanto havia transportado daterceiracolunaparaaquarta.Parouumsegundoe,aoparar,perdeucompletamenteaconcentração.“Vamoslogo”,disseasrta.Kavanagh.“Nãotenhoodiainteiro.”Nora resolveu recomeçar desde o início outra vez. Somou os números da primeira coluna o mais
depressaquepôde,masoresultadonãofoiomesmoquehaviaanotadodepoisdaprimeiratentativa.Iatentardenovoeagorafariaasomadevagarecomtodoocuidado.Seumanoantesessacena tivesseocorrido,teriasidoumpesadelo.AideiadesomarnúmerossobavigilânciadeFrancieKavanaghseriaalgoinimaginável.Nãopertenciaanenhumfuturoqueela tivesse imaginadoparasi.Maisumavez,ospensamentosinterferiramemsuaconcentraçãoeelatevedeparar.Noraolhouparaoescritório.“Nãoháninguémláforaquesejadoseuinteresse”,disseasrta.Kavanagh.“Baixeacabeçaeolhe
paraosnúmeros.”Nãohaviamaisnadaquepudessefazer.Porumsegundo,pensouseemtodososanosqueficoulonge
dotrabalho,osanosquepassaracozinhando,limpandoacasa,cuidandodosfilhosedepoisdeMaurice,quandoeleadoeceu,haviamafetadosuacapacidadedeconcentraropensamentonumacoisasó.Sefosse
ocaso,Norateriadeseesforçarmais,limitar-seasomarosnúmerosenãopensaremmaisnada.Nãoeraimpossível.Nãoimportavaoquelheviesseàcabeça,elateriadeapagardopensamento.Voltouaoinício mais uma vez e avançou com confiança e eficiência, não deixando que nada interferisse naobtençãodoresultadocorreto,nalinhadebaixoenotransportedonúmerocertoparaoaltodacolunaseguinte, e depois apresentouonúmero final para a srta.Kavanagh, em silêncio, comapenasum levetoquedearrogânciaedesprezo.Asrta.Kavanagholhouonúmerofinal,depoisabriuaprimeiragavetadaescrivaninhaepegouuma
máquinadecalcular.Saiuparaoescritórioeberrou:“Alguém,aqui,rápido.Você!Srta.Lambert.Venhacáagoramesmo!”Umajovementrounasalasemolhardiretamentenemparaasrta.KavanaghnemparaNora.“Muitobem,queroquevocêconfiraestesnúmeroscomamáquinadecalcular.Ah,enãodeixeasra.
Websterveroresultadoantesdemim.Levediretoparamim.Estareinacontabilidade.Edepressacomisso!Asra.Websterjámetomouodiatodo.”Amocinhapegouafolhadepapeldasrta.Kavanaghesaiudasala.Quandochegouahoradoalmoço,Noratinhapassadoamanhãinteiraàesperadasrta.Kavanaghou
ouvindosuasprovocações.Quandosaiudoescritórioeatravessouaponte,eracomosetivessevoltadovinteecincoanosnotempo;osentimentodepuraliberdadefoiomesmo.QuandosaíadaempresadosGibneynahoradoalmoçoenofimdatarde,Norasempretentavafingirquenuncamaisiavoltar,queseutempoali tinhaterminado.Agora,aopassarembaixodeCastleHill,acaminhodecasa,nãofoidifícilexperimentaromesmosentimento;eraquasenecessário.Norairiasentirissooutravez,àscincoemeia,quandoodiadetrabalhoestivesseencerrado.
6.Depois de muita negociação, ficou acertado que Nora ia passar as manhãs na sala de Elizabeth,
trabalhandocompedidosefaturas,edepoisdoalmoçoiaficarnoescritóriogeral,tratandodossalários,bônusedespesasdetodososrepresentantesdevendasdaempresa.Asrta.Kavanaghexplicou-lhequeaqueleeraotrabalhomaisdifícil,poiscadavendedorrecebiaumvalordiferente,eelapodiarecorreraosregistrosdosarquivosparaobtertodososdetalhes.Osvalorestinhamsidonegociadosmuitosanosantescomoscaixeiros-viajantesmaisantigos,explicouasrta.Kavanagh,edepois,maisrecentemente,com os mais jovens, pelo sr. Thomas Gibney. Nenhum deles sabia quanto os outros ganhavam nemprecisavasaber,disseasrta.Kavanagh,mastodosviviamcheiosdedesconfiançaerancor.“Sefosseeu”,acrescentou,“sódariaaelesosbônusenenhumsalário,depoisveríamososresultados,
eaí,sim,elesmostrariamumpoucomaisdeeducação.Sealgumdelesprocurarvocêquandosouberemqueévocêquemestácuidandodospagamentos,nemsepreocupeemlevantarosolhosparaeles.Façaumapequenapreceedepoismandefalarcomigo.Eseelesarmaremciladaseprocuraremvocêquandoeunãoestiveraqui,digaquerecebeuinstruçõesdasrta.Kavanaghdenãofalarcomelesemcircunstâncianenhuma.”Por um momento, Nora foi distraída pelo casaco marrom pendurado num gancho na sala da srta.
Kavanagh.ElaimaginousenãoseriaomesmodahistóriaqueUnahaviacontado.“Sra.Webster”,perguntouasrta.Kavanagh,“devoconcluirqueasenhorameentendeudireito?”“Entendiperfeitamente”,respondeuNoracomfrieza.Entre os doze caixeiros-viajantes, alguns utilizavam os carros da empresa, outros não. Alguns
recebiamsubsídiosporquilometragemmaioresdoqueoutros,ealgunstambémtinhamumacordodeque,se vendessem certa quantia emdeterminado ano, seu subsídio de quilometragemou seu bônus, ou emcertoscasosasduascoisas,aumentariam.Haviaumagavetadearquivocheiadefaturasdoscaixeiros-viajantes,algumascontendoacordosminuciosossobreosvaloresdospagamentos.Havia tambémumagavetacomqueixasousolicitaçõesdoscaixeiros-viajantes,eessas,quandoNoraasexaminou,lhederamumaindicaçãomuitoclaradosacordosfeitosentreaempresaeoscaixeiros-viajantes.QuandoNorafaloucomElizabethsobreacomplexidadedaquestãodopagamentodaqueleshomens,
elariu.“Meupai,ovelhoWilliam,dizqueéoúnicojeitodemanteroscaixeiros-viajantesalertas.”Aospoucos,Norasedeucontadequeasrta.Kavanagh,apesardeafirmarocontrário,nãoentendiao
sistema.UmajovemchamadaMarianBrickleyhaviacuidadodoassuntopormuitosanos,masdeixaraoemprego para se casar.Desde então, era um caos.Tudoo que a srta.Kavanagh fazia era ameaçar de
expulsãodeseuescritórioqualquerumquereclamasse.Acadanovafuncionáriaincumbidadatarefadepôr ordem na bagunça, a bagunça piorava, até que alguns caixeiros-viajantes foram falar com o sr.WilliamGibney,queencarregouofilho,Thomas,atratardoassunto.ThomasresolveuqueNoraseriaamelhorpessoaparalidarcomaquestãodospagamentosdoscaixeiros-viajantesetambémcomaprópriasrta.Kavanagh,quenutriaumaforteantipatiapessoalpeloscaixeiros-viajantesepareciaacharqueumdiadetrabalhosemalgumaconfrontaçãoruidosacompelomenosumdeleseraumdiadesperdiçado.Nora encontrou umapilha de pastas no armário que ficava na extremidade do comprido escritório.
Semconsultarninguém, levouaspastasparasuamesa,escreveuonomedecadavendedornacapadecadapastaecomeçouacompilaranotaçõesnoacordoquecadaumdelestinhafeitocomaempresadosGibney.Quandoencontravaalgumcaixeiro-viajante,semqueasrta.Kavanaghestivessevendo,Noralhepediaumrelatóriodetalhadodoacordoqueeletinhafeitocomaempresa,bemcomoumafolhadepapelcomumaestimativadequantodinheiroovendedor achavaque lhe eradevidoeporquê.Faziamuitotempo que a maioria dos caixeiros-viajantes estava esperando para receber seus bônus e subsídios.ComoNora eranovano emprego, eles começaramaobservá-la comatenção, alguns inquietos, outrosmaisdeterminadosedispostosaaguardá-lanaporta,quandoelachegavademanhãouquandosaía.UmdelesdisseaNoraqueeladeviaanotarnumafolhadepapelovalordevidoacadaum,apenaso
valor,depoisescrever“Pagamentourgente”eentregaràsrta.Kavanagh.Quandoolhounaspastas,Noraencontrouváriasfolhasdepapeldaqueletipo,porissoacreditouqueeramesmoverdade.Mastambémlhedisseramqueospagamentosseriamfeitossóumavezpormês,numdiaquenuncaforafixado,equeapessoaquedecidiaadatadopagamentoeraasrta.Kavanagh.Seoscaixeiros-viajantesiamfalarcomasrta.KavanaghquandoNoraestavalá,elasemprecomeçava
domesmojeito,enquantoiaatéaportadesuasalaparaatendê-los.“Asra.Webstereeuestamosatéaquidetrabalho,comopodemver.”Emseguida,recuava,berrando:
“Vocêsvãoterquevoltaroutrahora,comobonshomens!”,efechavaaportanacaradeles.Naorganizaçãodaspastas,Noradesenvolveuumaestenografiaprópriaparaos caixeiros-viajantes.
MCqueriadizermuitocareca;POerapeleeosso;RSerarisonho;PCerapicareta.DRqueriadizerdentesruins;CPeracaspa.Empoucotempo,tinhanomesparatodoseles,nomesqueelasócompartilhavacomDonaleConor,queguardavamnamemóriatodososnomes,assimqueNoraosinventava.Elaosfezjurarsegredo.A srta. Kavanagh brigava com todo mundo, menos com o sr. William Gibney e seus dois filhos.
Quandoelesapareciam,asrta.Kavanaghficavamansa,masdepoisdesorriresecurvarparaeles,assimqueiamembora,elaconvocavaàsuasalaumdosguarda-livrosmaismodestosouumadasdatilógrafasmaishumildesecomeçavaaberrar,ouentãoficavaandandopeloescritório,paravaatrásdeumajovemegritava:“Oqueéquevocêestáfazendo?Oquevocêestáfazendoagora,nesteminuto,parajustificarasuapresençanesteprédio?”.Asrta.KavanagheElizabethGibneyignoravam-semutuamente.“Elaéforadocomum”,ElizabethdisseaNora,“porquemordemaisdoquelate.Achoquedisserama
vocêqueamulherquetrabalhouaquiantessaiuparasecasar,nãofoi?”Norafezquesimcomacabeça.“Umdia,apobremulherficoutãoalucinadaquetirou tudoquehaviadentrodeumarquivoe jogou
para o alto, usando palavras nada edificantes para se referir à srta. Francie-Calcinha. Em seguida,exprimiu sua opinião sobre meu pai, meus irmãos e sobre mim também, e depois saiu correndo aosberrospelarua.Afamília,quemoraemBallindaggin,foichamadaparalevá-laparacasa.Thomaseeutivemosqueficaraquiatétardenaquelanoite,tentandoarrumarospapéisnoarquivo,antesquemeupai,ovelhoWilliam,descobrissetudo.ElenãosuportariaouvirnenhumpiocontraaFrancie-Calcinha.Ele
nãosabequeeunãotenhonadaavercomessavelhadesaforada.ConseguifazerumtratocomoWilliamfilho e com o Thomas, porque os ameacei. Jurei que iria me vingar por meios que ninguém jamaisimaginouseelesnãomedessemumasalasóminhaedissessemaFrancie-Calcinhaqueeuestavaforadajurisdiçãodela.”NoraapreciavaasmanhãscomElizabeth,mesmoquandonotouquantotempododia,naverdade,ela
gastavafazendoplanosparaofimdesemanaseguinteouconversandosobreofimdesemanaanterior.Nora percebeu que podia trabalhar com facilidade na companhia dela. Elizabeth só falava comNoraquandoaspessoasparaquemelatelefonavanãopodiamatender.Elizabethpossuíaumalinhaparticular,eseuoutrotelefoneeraumaextensãodalinhadoescritório.Muitasvezesconversavasobreosmesmosfatosdesuavidapessoalcomváriasamigasemsequência.NoraficousabendoquehaviaumhomememDublinchamadoRoger,queerasério,confiávelebemsituadonavida.ElequeriaverElizabethtodofimdesemana.Elizabethpassoualgumassemanasevitandoostelefonemasdele,deixandoseutelefonepessoaltocar
atécansar,quandoachavaqueeraRoger.Entãoligavaparaumaamiga,contavaarespeitodotelefonemadeRogerepediaconselhossobreamelhormaneiradeevitarRogeremDublin,nosábadoànoite,masdepois, numa conversa com Roger, procurava garantir que ele estivesse a postos para lhe fazercompanhiaemalgumafestaoubaile,casoelafosseaDublin.“Eugostodele.Nãoseibemoqueelemelembra”,eladisseaNora.“Talvezumcarrobom,aoquala
genteestáacostumadaequenuncaquebranomeiodocaminho.Ouumcasacode invernoqueagentenuncausa,masficacontentepor ternoarmário.Eeleédoidopormim,oqueajuda.Maseuadorariaviverumgranderomance!Sabe,comalguémumpoucomaisarrojado.Euadoraria,digamos,umjogadorderúgbiinternacional.MikeGibson,sabe,ouWillieJohnMcBride.Rogermelevouaumafestaderúgbietodoselesestavamlá.NãoouvinenhumapalavradeRogeranoiteinteira.SeeletivessemeditoqueDeusTodo-PoderosoeraumamulherequeelaestavamorandoemBellefieldcomomarido,euteriafeitoque sim com a cabeça. Eu queria queThomas ouWilliam jogasse rúgbi eme apresentasse, demodoadequado,aosseuscompanheirosde time.Euadoraria iraumapartidaemLansdowneRoad,sabendoqueiriaencontrarosjogadoresnoJury’sounoGresham,depoisquetodostivessemtomadoseubanhoejáestivessembemvestidos…eelesiriamsaberquemeuera.”Todasexta-feiraàsquatrohoras,ElizabethGibneysaíadoescritórioeiadecarroaDublin.Dividia
umquartonumapartamentodaHerbertStreetesaíacomamigasnanoitedesextaedesábadoe,domingoànoite,voltavadecarroparaEnniscorthy.Nas tardesdesábado, faziacomprasnaGraftonStreet.Emalgunsfinsdesemana,seencontravacomRoger;emoutros,escondiadelequeiaaDublinedepois,nasegunda-feira,contavaaNoracomo,pormuitopouco,nãotinhaesbarradocomele,relatavasuasfugasporum triz emváriosbailesde jogadoresde tênis ede rúgbi.Durantea semana,Elizabeth tentava serecuperardofimdesemana,e lamentavanãopodersairnacidade,pois todomundosabiaqueelaerauma Gibney. Portanto, se saía durante a semana, era para ir aWexford ou Rosslare e, em geral, nacompanhiadosirmãosedosamigosdeles.Elafalavadetaispasseioscomosefossemumaobrigação.Suavidarealduranteasemanaeraaquepassavaaotelefone,falandocomasamigasdeDublin.NoraseadmiravadequeElizabethnemsabiaonomedasmulheresquetrabalhavamnoescritóriogeral,anãoserodeElsaDoyle,queelahaviaremovidodesuasala.Seumadelasentrassequandoestavaaotelefone,Elizabethpediaqueointerlocutoresperasseummomentoeemseguida,comumolhargelado,encaravaaintrusafixamente,atéobrigá-laasair,paraquepudessecontinuarconversandosobreseufimdesemana.Numa segunda-feira,Elizabeth só apareceupara trabalhar àsonzehoras.Noradescobriuquepodia
terminarsuastarefasdamanhãemmenosdeduashoras,semadistraçãocausadapelafilhadopatrão,equepodiaresolverrapidamenteaquestãodosbônusdoscaixeiros-viajantesedesemaranharosdetalhes,
senãotivessequelidartambémcomasrta.Kavanagh.Noragostavadetranquilidade,gostavadeterasalasóparasi.QuandoElizabethchegou,pareciamuitoexcitada.“Alguémligou?”“Não”,respondeuNora.“Emnenhumdosdoistelefones?”“Ninguémligou.”Elaverificouseaslinhasestavamfuncionando.“Temcerteza?”“Tenho.”“OqueéumsecretáriodaCâmaraMunicipal?”,perguntouElizabeth.“Quandopergunteiaminhamãe,
eladissequeeraumapessoaquetomavacontadeummunicípio.Éissomesmo?”“É”,respondeuNora.“Éumbomemprego.Muitosacabamvirandosuperintendentesdocondado.”“Conheciumnanoitepassada.”“SecretáriodaCâmaraMunicipaldeonde?”“Esseéoproblema.Nãolembro.Onomedeleera,oué,Ray,étudoquesei.Ealguémmeapresentou
comonoivadele,entãotalvezeletenhaumanoivaqueficouemcasavendotelevisãoontemànoite,ouquemsabeeutenhocaradenoivadealguém.”“Elefoigentil?”“Àsquatrodamanhã,elemepediuemcasamento,ouchegoubempertodisso.Foiumacoisagentil.”“Eoquevocêrespondeu?”Elizabethverificouostelefonesoutravez.“Euoconhecicomasuairmã,Nora,eonoivodelanoclubedegolfedeRosslare.Elesesticaramem
outro lugareeufui junto.Thomasficoucomigoporumtempo.Fuicomeleeanamorada,masdepoisfiqueiconversandocomasua irmã,quefoimuitosimpática,e,comoThomaseanamoradasemgraçadeleestavamindoembora,elafezseunoivomeoferecerumacaronaatéemcasadepoisdetomarmosunsdrinquesnoTalbot,masclaroquenofinalnãopegueiacarona.QuemmelevouparacasafoiosecretáriodaCâmaraMunicipal.TalvezsejasecretáriodaCâmaraMunicipaldeWexford.”“Seforisso,éumempregomuitobom”,disseNora.“Agentepodeverificarcomfacilidade.”“Seelenãotelefonar,vocêpodeligarparaasuairmãeobtertodososdetalhessobreele?”Norahesitou.ElaviaUnacomregularidade,masa irmãnãohaviacontadoque tinhaumnamorado,
muitomenosumnoivo.Noranãoqueriatelefonarnaquelemomento,apedidodeElizabeth,porquepodiaparecerqueestavaxeretandoavidadairmã.“Tenho certeza de que ele vai telefonar. Imagino que um secretário da Câmara Municipal esteja
atarefadonumasegunda-feirademanhã”,lembrouNora.“Ouelepodeterligadoparaanoivaverdadeira”,disseElizabeth.“EaUnaestavabem?”“Ah,sim,elessãoumcasaladorável.Alguémfalou issoemRosslare,nanoitepassada,eémesmo
verdade.”
7.Quandoo verão chegou,Fiona foi paraLondres, ondehavia conseguidoumempregonumhotel em
Earl’sCourt,eescreveuparacontarqueestavaaproveitandoavida.Aslojasderoupas,dizianacarta,eramasmelhoresdomundoeasfeirasdesábadoeramumsonho.Londreseramuitomelhordoqueelahavia imaginado.AinetambémescreveudeKerryGaeltachtparadizerquetinhaconhecidoumhomemqueselembravadopaidelaedotioJim,quandoelesestudaramirlandêsunsquarentaanosantes.Haviaaté umamulher, ela disse, que tinha dado emcimado tio Jimnaquela época,muitos anos antes,mas,comoamulherdisse,eleeralentodemaiseelaacabousecasandocomoutrohomem.Osmeninosiamaoclubedetênisnamaiorpartedosdias.Conorestavasempreesperandopelamãe,
quandoelachegava;NoraviaConorespiandoatravésdajanela,quandoelaestavachegando.Sabiaqueeleerapequenodemaisparaficarsozinhoemcasaetentavacombinardeeleirparaacasadeamigos,issoatéqueAinevoltassedeGaeltachtemagostoepudessetomarcontadele,oupelomenosestarláseelefosseparacasaduranteodia.Nossábadosedomingos,quandootempoestavabom,NoraiadecarrocomosmeninosatéCurracloe
ouBentley,ecertavezseaventuroumaisaosul,atéapraiadeRosslare.Eradifícilimaginarqueapenasumano antes eles estavamna casa deCush, como se nada fossemudar.Nora receouquena praia deCurracloeosmeninosfossemolharparaonorteepensarnapraiamaisestreitaepedregosaqueficavaaopédopenhasco,queeleshaviamfrequentadoavidatoda.Porém,emvezdisso,apreocupaçãodelesfoi,acimadetudo,comolugarondeNoraiaestenderatoalhadepraia,eelesprocuraramentreasdunasolocalmais adequadoeprotegido.Conorquis ficarpertodela;Noranão soube se sedeitavae lia seulivroouojornal,ousedeviatentarsaberoqueConorqueriaconversarouoqueelequeriafazer.DonallevouumlivrosobrefotografiaquetiaMargaretlhederaeestavasatisfeito,porqueficoucombinadoqueelenãoprecisariaentrarnomarequeelesvoltariamàcidadeàsseisdatarde,quandoelegostavadeiraoclubedetênis.Eraestranho,pensouNora,queelanuncativesseparadoparapensarseeleseramfelizesounãoou
quenuncativessetentadoimaginaroqueestavampensando.Noratinhacuidadodeles,atéumahoraemquesetornoudifícil.Mauricequisqueelaficassecomele,quandoestavanohospitalemDublin,depoisdoprimeiroataquedocoração;Noranãopodialhenegarisso.Nãopodiadeixá-losozinhonohospital.Lembrava-se dos olhos dele procurando por ela todos os dias, quandoNora chegava, a sensação depânicodando lugaraoalívio,edepoisapreocupaçãodeNora todasasnoites,quando iaembora.Elasabiacomoeledeviasesentirsolitário.Mauricedeviasaberqueseuestadoeragrave.MasNoranãotinhacerteza;elepareciaacreditarqueestavasendotransferidoparacasaporqueestavaserecuperando.
Maurice,porém,devetersedadocontadequeNoranãopassariatodoaqueletempocomeleemDublin,seelenãoestivessemorrendo.NoranotouqueConoraobservava.“Vocêvainadar?”,perguntouConor.“Daquiapouco.Porquevocênãovaiverseaáguaestáquente?”“Eseelanãoestiverquente?”“Nósvamosentrarnaáguadequalquerjeito.Maspelomenosvamossaberantes.”Norapensouqueaquelemomentoseriaalgodequenofuturoelaselembrariacomoumtesouro.Dalia
umoudoisanos,Donalnão iriamaisàpraiacomeles.Talvezsó tivesse idoagoraporacharqueelaqueria muito que ele fosse. Donal adivinhava os pensamentos da mãe, ou captava o sentido de umasituação, de um jeito queConor ainda não era capaz de fazer e que talvez jamais conseguisse.Donalsaberia,ouquasesaberia,quenaqueleinstanteelaestavapensandoemMaurice.Conor,poroutrolado,ficavainconscientedetudo,excetodoqueocorrianasuafrenteoudoqueviriaaseguir.EstarcomDonalàsvezesdeixavaNoracommedo,masestarcomConorpodiadeixá-lacommaismedoainda,porsuainocência,porsuadocelealdade,porsuafrancanecessidadedequeelacuidassedele.QuandoFiona voltou deLondres,Nora convidou Jim,Margaret eUna para um chá.Una disse que
passaria lábemcedo,quandosaíssedo trabalho,masquenãopoderia ficarparaochá.Nãodeuumaexplicação.TãologoUnachegou,FionadesceucomtodasasroupasnovasqueelatinhacompradoemLondres.
Norahavianotadoumamalagrandequandofoibuscarafilhanaestaçãoferroviária,masFionanãofaloudesuascompras.TinhacompradoumbrincobemdiscretoparaNora,umablusaparaAineelivrosparaosmeninos. Agora, porém, comUna em casa, ficou claro que havia comprado uma porção de saias,blusas e vestidos coloridos,muitosdeles decotados ede tecidos leves.Una incentivouFiona avestiralgumas roupasnovascompradasemLondresemostrarparaelanasala.Comentou todososdetalhes,dissequeFionaestavadesenvolvendoumestilobemmoderno, sobretudoquandousavaosbrincosdeargolaeumlençonacabeça.Ainesejuntouàconversa,sugeriuváriascombinaçõeseacessórios,eàsvezesselevantouparaarrumarocabelodairmã.Haviaumvestidocordeferrugem,dealgodãoleve,queUnaeAineadmiraram;sugeriramqueFionaousassejuntocomosbrincoseumlençodamesmacoremvoltadacabeça,semmeiaecomumasandálialeve.“Sevocêforassimàmissa,acidadeinteiravaiolharparavocê,issoeugaranto”,disseUna.“Ficariaótimoparausaraosdomingos”,disseAine.“Vocênãovaiàmissanestacidadevestidadessejeito”,cortouNora.AstrêsvirarameolharamparaNora,comoseelafosseumaintrusanasala.“Nãovaidarcerto,anãoserqueodiaestejaquente”,acrescentouUna.“Querdizer,otecidoémuito
leve.Masovisualestálindo.”Norainterrompeuoutravez.“PodeserlindoláemLondresounumaloja,masaquinãoé.”As três se voltaram para ela e depois olharam uma para a outra. Era óbvio que elas vinham
conversando sobre Nora ultimamente, ou tinham escrito uma para a outra a respeito dela. Durante otempoemqueMauriceestevedoenteeosmeninos ficaramcomJosie,Una tinhamoradonaquelacasacomAinee,àsvezes,elasencontravamFiona.Oestranhoeraque,desdeadoençadeMaurice,aquelaeraaprimeiravezqueNorasereuniacomastrêsaomesmotempo.Eracomoestarcompessoasqueseconheciamdeummodoqueelanãoconhecia,pessoasquetinhamumalinguagemcomumequetambém,o
quetalvezfosseaindamaisimportante,conseguiamentenderosilêncioumadaoutra.Naquele segundo, Nora descobriu, surpresa, que Fiona e Aine sabiam mais do que ela sobre o
romance deUna, que sua irmã havia contado às duas quem era seu noivo e quais eram seus planos.ApesardosvinteanosdedistânciaentreUnaeasgarotas,otempoquepassaramjuntasashaviaunido.Conversavam sobre roupas e sobre suas vidas com naturalidade, como irmãs. Tinham excluídoNora,comofaziamagora;outalvez,pensouNora,elaashaviaexcluído.Sentia-semuitosanosmaisvelha.Ovínculoentre as três era algodeclarado,umvínculo surgidodemodo tãonaturalqueNora sentiuquenenhuma delas se dava conta de sua existência.Devia ter se formado tanto por causa da ausência deMauricequantoporcausadaausênciadaprópriaNora,edeviaserumjeitodemascararadorqueasgarotassentiam.Noraatravessouasalasemolharparaelasefoiparaacozinha.Quando Jim e Margaret chegaram e os meninos apareceram, ficou mais fácil. Margaret não tinha
nenhuminteresseporroupaselimitou-seaficarcontenteporFionatervoltadoparacasaemsegurança.QuandoUnafoiemboraeMargaretfoiatéaoutrasalaparaconversarcomDonal,AineeJim,ficaramcomentandosobrevárioslugaresdapenínsuladeDingle,sobreasfamíliasqueAinetinhaconhecidoemBallyferriter e Dún Chaoin, cujos membros da geração anterior Jim talvez tivesse conhecido. Norapercebeu uma ligeira luz nos olhos dele, quando era mencionado o nome de certo lugar ou de certapessoa. Jim tinha sessenta e poucos anos; era quinze anosmais velhodoqueMaurice.Trabalhavanomesmoempregode sempre.Tinha sidomensageironaGuerrada Independência e foipresonaGuerraCivil.Aquelesanosdeagitação,seguidosdeverõespassadosnapenínsuladeDingle,Noraimaginava,deviamserparaelecoisasdeumpassadoremoto.Jimeraohomemmaisconservadorqueelaconhecia.Sempreforaassim,desdequandoNoraoconheceu.ComoMargaret trabalhava na Assembleia do Condado, ganhava mais do que Jim, embora tivesse
necessidadesmenores.PagarosestudosdeAineedaralgunstrocadosaFionaeaosmeninosadeixavacontente, pois lhe dava a chance de participar umpouco da vida deles e do que planejavam fazer nofuturo. Quando se sentaram para comer, Nora se admirou de ver como Fiona descrevia os eventosculturaisdeLondresparaatiaeparaotio,emvezdefalardasfeirasdesábadoedaslojasderoupasbaratas. Fiona tinha ido ver uma peça de Shakespeare na qual alguns atores estavam na plateia e selevantavamderepentenosmomentosmaisinesperados.“Comovocêsabiaqueeleserammesmoatores?”,perguntouDonal.“Eraexatamenteissoqueeuiaperguntar”,disseMargaret.“Elesestavamcomroupas típicasesabiamsuasfalas”, respondeuFiona.“Eraumtremendochoque
quandoselevantavam.”“Bem,esperoqueessamodanãoseespalhe”,disseMargaret.“Senãoagentenuncavaisaberonde
está.OhomemaonossoladopodeserBullMcCabe.”“Não,achoqueelesfazemissosóemLondresmesmo,éumanovidade”,disseFiona.HouveumadiscussãosobreasaulasparticularesdelatimdeAine,eMargaretinsistiuqueeladevia
termais aulas noNatal e na Páscoa, para ter certeza de que ia passar.Depois o assuntomudou paracâmerasfotográficaseamelhormaneiradeDonalcomprarfilmesemandarrevelarosnegativos.“Você podia ficar no lugar de Pat Crane e SeanCarty como fotógrafo de primeira comunhão e de
crisma”,sugeriuJim.“PonhaumanúncionoEchooferecendooserviçopelametadedopreço.”“Oupodetirarfotoscoloridas”,disseFiona.“Eun-n-nãogostodefotocolorida”,disseDonal,muitosério.“Não,elesógostadepretoebranco”,confirmouMargaret.NinguémperguntounadaaNorasobreseutrabalhonaempresadosGibneynemfezamenorreferência
aisso.NinguémtampoucofaloudotrabalhodeJimoudeMargaret.Todaaatençãoestavavoltadapara
osquatrofilhosdeNoraeseufuturo.Cadapalavraqueelesdiziameraouvidacomatençãopelatiaepelotio,quelogocomentavamedesenvolviamoassunto.AqueixadeConorsobresuaraquetedetêniseseu comentário de que um amigo tinha uma raquetemelhor foram tratados com seriedade e simpatia.DiscutiramseeraseguroFionaesuasamigaspegaremcaronaparaDublin,depoisconversaramsobreospreçosdaspassagensdevoltadetremnosfinsdesemanacomparadosaosdosdiasdesemana,edepoisopreçodaviagemdeônibus.Quandoanoitechegou,Noratinhaasensaçãodeestarconhecendomaisdetalhesdavidadosfilhosdo
quesouberapormeses.JimeMargaretcuidaramparaquenãohouvessenenhummomentodesilêncioeparaque tudoque fossediscutidoparecessenaturalede interesse imediatoparaalgumdeseus filhos.Porém,ofatodeDonaleConorficaremsozinhosnacasaquandoNoraaindaestavanotrabalho,nosdiasem que não iam ao clube de tênis, nunca foimencionado, tampouco o fato de a srta.Kavanagh estarcomeçandoatratarNoracomomesmoníveldedesprezoclamorosocomquetratavaosmembrosmaisdesdenhadosdaequipefemininadoescritório.Foiumanoitecomum,aprimeiradesdemuito tempo,eNorasesentiaquasegrataquandofoiparaacama.
***Notrabalho,nasegunda-feiraseguinte,Elizabethestavamuitoocupadaseesquivandodostelefonemas
deRoger,paradepoisaguardá-loscomumaansiedadefrenética.Duasou trêsvezes, faloucomRaye,quandopôsotelefonenogancho,discutiucomNoraapossibilidadedealguémcontaraRogersobreRayou de ela encontrar Ray num baile de um clube de rúgbi ou num bar de um clube de golfe, quandoestivessecomRoger.“Oproblemaéqueeugostodosdois”,disseElizabeth.“Rogerémuitoconfiável,emembrodetodos
osclubesabaixodosol,etodomundofalabemdele.MaseuiaacabarmorrendodetédiosenãofosseoRay.Nãosei sevocêconsegue imaginarcomoéumanoitenacompanhiadovelhoWilliam,do jovemWilliamedeThomas,quandoostrêsficamfalandodeestratégiasdenegócios.Econtinuamnessalenga-lengamesmoquandoestamoscomendo.Nãoadmiraqueminhamãenuncasaiadecasa;éporcausadavergonhadesesentirtãoentediada.Nãoseisobreoqueostrêsestãofalandonesteinstante,maselestêmplanosemandamento.Conversamporhorasseguidas, fazemlistas,anotamnúmeros.Agenteatépensaqueestãogovernandoopaís.”ÀmedidaqueavidaromânticadeElizabethsetornavamaisricaemaiscomplexa,elapassavamais
tempoaotelefone,conversandocomasamigassobreas implicaçõesdaquilo tudo.Empoucotempo,olotede faturaspelasquaiselaeraa responsável seacumulounumapilha.Numamanhãdesexta-feira,Noraaviuentupindoenvelopescomfaturasqueelanãoanotavano livrodecontabilidade.ApesardeElizabeth não falar com a srta.Kavanagh nem trabalhar diretamente para ela, toda semana o livro decontabilidadecomalistadasfaturasemitidastinhadeserlevadoàsaladasrta.Kavanaghparaqueelaoconferissecomseumeticulosorigor.Mesmogastandotantotempoaotelefone,Elizabethnãocostumavacometer errosno trabalho.Noentanto,muitasvezes surgiamdúvidas,mas comoa srta.KavanaghnãotinhapermissãoparafalarcomElizabeth,muitasvezeselafalavacomNoranumtomderaivacontroladaaduraspenase lhepediaque transmitisseàsrta.Gibneyoqueelaestavadizendo.ÀsvezesmandavaumadasmocinhasdoescritórioatéasaladeElizabethcominstruçõesdeficarplantadanafrentedasrta.Gibneyatéeladesligaro telefone,paraentãoobteralgunsdetalhesdequeasrta.Kavanaghprecisavasobreasfaturas.Quando a srta. Kavanagh descobriu que as faturas tinham sido emitidas sem registro no livro de
contabilidade,elaprocurouThomasGibneye,Norasoube,sugeriuquetantoNoraquantoElizabethéque
nãohaviamregistradoas faturas.Quando,uma tarde,Thomasfoiaoescritóriodasrta.Kavanagh,eleschamaramNoraefecharamaporta.“Estaéumasituaçãomuitoperigosa”,disseThomas.“Nãotemosnenhumregistrodasfaturase,seelas
nãoestãopagas,nãotemoscomosaber.Issonuncaaconteceu.”Asrta.Kavanaghestavadepéaoladodele,comumaexpressãodegrandetristezanorosto.Noranão
falounada,olhandodeumparaooutro.“Sra.Webster,seiquemeusistemadetrabalholhefoiexplicadomuitasvezes”,disseThomas.“Nãoé
muitocomplicado.”Aindaassim,Norapermaneceucalada.“Nenhuma fatura pode ser emitida a menos que seus detalhes estejam registrados no livro de
contabilidade”, prosseguiu Thomas. “O que aconteceu é imperdoável e vai representar um prejuízopotencialparaaempresa.”“Terminou,sr.Gibney?”,perguntouNora.“Oqueasenhoraquerdizer?”,perguntouThomas.“Querosaber seo senhoracaboude falar.E,quando tiver terminado, talvezpossaperguntarà srta.
Kavanaghseissotemalgumacoisa,qualquercoisaavercomigo,eelavailhedizer…”Comoa srta.Kavanagh fezmençãode interrompê-la,Nora saiuda salae fechouaporta.Logo,viu
Thomassairdasaladasrta.Kavanaghesedirigiràsalaocupadaporsuairmã.Elepareciadeterminado.Nora ficou de cabeça baixa, enquanto ouvia os gritos. Sabia que todos no grande escritório estavamouvindo.Asrta.Kavanaghfechouaportadesuasalaenãosaiudeláduranteorestodatarde.Nasemanaseguinte,asrta.KavanaghcomeçouaatormentarElizabethGibney,depoisdeterobtidoa
aprovaçãodeThomasparafazê-lo,peloqueNoradeduziu.ComaprópriaNora,elaseportavafriamentee parecia em dúvida de como proceder. Demanhã, esperava Elizabeth chegar e então anunciava quequeriavernolivrodecontabilidadetodasasentradasdodiaanterior;asfaturasàesperadeseremitidasdeviamserguardadasnumacaixaforadasaladela,paraqueasrta.Kavanaghpudesseconferi-las.Na terceiramanhã, depois de ter ido quatro vezes à sala de Elizabeth e sempre encontrando-a ao
telefone, a srta. Kavanagh pegou uma cadeira e sentou-se na frente dela, escutando com ar deimpaciência.ComoElizabethcontinuassecombinandoseu fimde semana,a srta.Kavanaghestendeuobraçoepegouolivrodecontabilidadequeestavanamesadela.VirouolivroparaElizabethecomeçouaconferirasanotações.“Desculpe”,disseElizabethaotelefone.“Vouterquedesligar,masligodepois.Temumapessoaaqui
naminhafrentecomamaiorcaradebruxa,sóquemuitomaismal-educada.”Pôsotelefonenogancho.“Muitobem,srta.Kavanagh”,disseElizabeth.“Sealgumdiavocêentrardenovonaminhasalaetocar
em alguma coisa daminhamesa, vou achar uma gaiola bem grande e bem bonita e vou prendê-la ládentro,queémesmoomelhorlugarparavocêficar.”“Srta.Gibney,nãoestouaquiparaouvirdesaforosseus.”“Talvezsejaparaissomesmoquevocêestáaqui.”“Voufalarcomseupaisobrevocê.”“Poisbem,srta.Francie.Vouligarparaeleagoramesmo.”Elizabethpegouotelefone,discouonúmerodeumramalepediuquechamassemopai.“ÉovelhoWilliam?Oi,pai.Estouaquicomataldasrta.Kavanagheelaquerfalarcomvocê.E,por
favor,pai,quandoestivercomela,digaparamantersuasgarrasafastadasdasminhascoisaseseuspéssujoslongedaminhasala.EponhaoThomasdevoltanocanil,estábem?Sim,voumandá-lasubiragoramesmo.”
NoranãoconseguiureprimiravontadedeparabenizarElizabethporterenfrentadoasrta.Kavanagh,emborasoubessequeerafácilparaela,assimcomoeraimpossívelparaqualqueroutrapessoa.Asduasestavamrindoquandoasrta.Kavanaghvoltouparapegaro livrodecontabilidade.Porumsegundo,asrta.KavanaghcruzouosolhoscomNora.Eraumolharferidoeameaçador.Numanoitedesábado,emoutubro,comJimeMargaretlhefazendoumavisita,Noraligouatevêpara
eles verem o noticiário das nove horas. Assim que o programa começou, surgiram imagens de umprotestonaruaedeumataquedepoliciaiscomescudosecassetetes,enquantoolocutordiziaqueaquilohaviaacontecidoàtarde,emDerry.NorachamouDonal,queestavanaoutrasala,paraver.Logodepois,Conor,queestavadepijama,sejuntouaeles.Osmeninosficaramolhando,enquantoacâmerapareciaoscilareaspessoasnatelevisãogritavamefugiamcorrendodealgumacoisa.“Éumfilme?”,perguntouConor.“Não,éojornal.ÉemDerry.”OlocutorexplicouqueumapasseataemDerryacabouvirandoumtumultoquandoapolíciaagrediuas
pessoas com cassetetes. Então, apareceram mais imagens, uma em que vários policiais erguiam ocassetetecontrahomensqueestavamcomasmãosnacabeçaparaseproteger.Umdosatingidospelosgolpesdecassetete,disseo locutor,eraGerryFitt,membrodoParlamento.Acâmeramostroudoisoutrêsmanifestantescaídosnochãoedepoisalgunscorrendodospoliciais,quecorriam,céleres,emseuencalço.Emseguida,acâmerafocalizouumamulhergritando.Quandoonoticiário terminou,Conorvoltoupara seuquarto.Donalperguntouqual eraomotivoda
passeata.“Éporcausadosdireitoscivis”,disseJim.“Umamanifestaçãodecatólicosemdefesadosdireitoscivis”,acrescentouMargaret.“D-d-derryficanaIrl-l-landadoNorte”,disseDonal.“Temumacordiferentenomapa.”“Sim,maséomesmopaís”,disseMargaret.NorapercebeucomoJim tinha ficadoalerta.QuandoDonal saiu,elabaixouovolumeda televisão,
imaginandoque ele queria fazer algumcomentário. Se algo assimacontecesse quandoMaurice estavavivo, elee Jim teriamconversadodemoradamente sobre todososaspectosdaquestão.ComoJimnãofalounada,Noraperguntouoqueeleachava.“Eu não queria estar no meio daquela pancadaria”, disse ele. “Vai ser muito difícil resolver essa
situação.”Nodiaseguinte,depoisdamissa,Noraconversoucomalgumaspessoasque tambémtinhamvistoa
agressão da polícia pela televisão; ela comprou alguns jornais de domingo para ler sobre osacontecimentos.Maistarde,foidarumacaminhada,masnãoencontrounenhumconhecido,portantonãopôdeconversarcomninguémsobreDerry.Notrabalho,nasegunda-feira,Noraachouquetodomundofossediscutiraquelanotícia,masparecia
umdiadetrabalhocomum.ElizabethtinhapassadoofimdesemanaemDublinenemviraonoticiáriosobreos tumultos.QuandoNora lhe contou, ela assentiu coma cabeçademodovago.Eladeu algunstelefonemas,enquantoNoratrabalhava.Àtarde,enquantoNoratrabalhavanaspastascomumadasjovensguarda-livros,asrta.Kavanaghse
aproximoueficouobservando.“Oquevocêsduasestãofazendoaí,peloamordeDeus?”,perguntou.Noraresolveuignorar.“Sra.Webster,olheparamimquandofalocomvocê!”,berrouasrta.Kavanagh.
Noralevantou-sedesuamesa.“Possofalarcomvocêemparticular,nasuasala,srta.Kavanagh?”“Estouocupada,sra.Webster.”“Precisofalarcomvocênasuasala.”Noraaacompanhou,quando,relutante,asrta.Kavanaghseviroueentrouemsuasala.“Srta.Kavanagh,euvouparacasaagora”,disseNora.“Masnãosãonemcincoemeia.”“Srta. Kavanagh, quando eu estiver trabalhando, tenha a bondade de controlar seus nervos e não
levantaravoz.”“Sou contratada para que este escritório funcione direito e não preciso dos seus conselhos nemde
ninguémdoseutipo.”“Soucontratadaparafazeromeutrabalho,srta.Kavanagh,eseusberrosnãoajudamnada.”“Então vá para casa, sra. Webster. Em casa vai ter todo sossego que deseja! Saia daqui já! Se
encontrarosr.Thomas,podedizeraelequefuieuqueamandeiparacasa.”Nora atravessou a cidade. Se encontrasse algum conhecido, tentaria cumprimentá-lo como sempre
fazia.Quando estava chegandoperto de casa,Nora se encheude energia e se perguntou se nãodeviavoltar e enfrentar a srta.Kavanaghmais uma vez.Quando subiu a escadinha da porta da frente, seuspensamentossobreoqueiadizeràsrta.Kavanagh,eatéaThomasGibney,foraminterrompidospelosomdeumchoro.Quandoabriuaportacomachave,ochoroparoueveioosilêncio.“Quemestáaí?”,gritouela.“Temalguémemcasa?”Donal veio da outra sala com ar de culpado. Foi seguido por Conor, que evidentemente estava
chorando.“Oqueaconteceu?Qualéoproblema?”Nenhumdosdoisrespondeu.“Conor,vocêestábem?”“Agentenãoa-achouquevocêfo-fossevoltarparacasatãocedo”,disseDonal.“Donal,porqueoConorestáchorando?”“Eunãoestouchorandomais.”“Masvocêestavachorando.Euouvidaporta.”“Elet-t-tentouabriraminhac-c-câmera”,explicouDonal.Devagar,foificandoclaroquetodososdiaselestravavamalgumtipodedisputanointervaloentrea
voltadaescolaeachegadadamãe.Nenhumdosdoispareciaacharaquiloestranho.OtomdeDonaleradesafiador e o deConor, quase envergonhado. Eles não queriam queNora se envolvesse no assunto.Depoisdeouvirosdois,NoraesperouConorsairdasala.“Eleémaisnovoquevocê,nãohámaisninguémparacuidardele.”Donalnãorespondeu.“QueroqueprometaquenãovaimaisfazeroConorchorar.Guardebemasuacâmera,queelenãovai
podermexernela.Prometequevaifazerisso?”Elefezquesimcomacabeçaedepoisficousentado,olhandoparaovazio.Naquela noite, Nora não conseguiu dormir. Ficou pensando se havia alguma coisa que osmeninos
pudessemfazerdepoisdaescolaoualguémquepudesseficaremcasacomelesporduashoras,atéelavoltardotrabalho.Noanoseguinte,eraoqueelaesperava,Fionairialecionarnacidadeeestariaemcasanofimdatarde.Atélá,NoraiaterquefalarcomDonalconstantementeeprestarmuitaatençãoemConor.ElalembroucomoDonalsentiaciúmesdeConorquandoeleerabebêeaspessoaslhededicavammuitaatenção.Lembroutambémque,quandoConorganhavaumpresentenovo,aindaqueDonaljáfosse
crescidodemaisparaopresente,elemanipulavaasituaçãoparacontrolarobrinquedoedecidirquandoConorpodiabrincar equandonãopodia.Conor sempredeixaraDonal fazer isso, comose fossealgonatural.Masagoranãoeranatural,comotambémnãoeranaturalosdoisficaremsozinhosemcasa.Noraimaginouacasa,comoeladeviaestarestranhamentecheiadeumaausência.Agorapodiadizer
que asmudanças na vida deles haviam se tornado algonormal para osmeninos.Eles não eramcomoNora,queencaravacada situação, cadamomento,buscandosinaisdoqueestava faltandooudecomopoderiatersido.Atéondepodiaver,amortedopaihaviapenetradonumapartedosmeninosqueelesmesmosdesconheciam.Nãopercebiamcomoestavaminquietos,etalvezmaisninguémsenãoamãedelesfossecapazdeverisso;enãoeraalgoqueiadeixá-losagora,pensouela,nemaindapormuitosanos.Noranãoficariasurpresaseencontrasseosdoisbrigandoquandochegassedotrabalhomaiscedo.Teriadefazeropossívelparadiminuiradesconfiançaqueosmeninossentiamumdooutroedetodosàsuavolta.Norafoidormirumahoraantesdeodianasceredepoisacordousobressaltada,sedandocontadeque
não ouvira o despertador tocar.Eramvinte para as nove.Levantou-se depressa e viu que osmeninoscontinuavam dormindo. Se fosse rápida, pensou, conseguiria preparar o café da manhã deles. Maschegariatardeaotrabalho,mesmoindodecarro,oquenuncatinhafeito.Ficoufelizporninguémternotadoqueelahaviaseatrasado.Elizabethchegoumeiahoradepoisde
Nora,cheiadecasosparacontarsobreanoiteanterior,queelahaviapassadonobarPikeGrilldoTalbotHoteledepoisnoKelly’sHotel,emRosslare.“Suairmãmecontouumahistóriamaravilhosa.Nãoseiporqueacheitãoengraçada.Nosábado,ela
estava em PaddyMckenna’s, na Slaney Street, comprando alimentos, quando a nova cabeleireira quecuidado cabelodela noWheeler’s,TaraouLara, sei lá comoela se chama, entrou edisseque tinhaouvido falarqueelaestavausandoumaneldenoivado lindo,epediuparaver.QuandoUnasevirou,comosefossemostraroanel,TaraouLaracomeçouadargritinhosestridentes,dizendoqueoaneleraumamaravilha,incrível,sóquequandoprestoumaisatençãoviuquenaqueledia,naverdade,Unanãoestavacomoanel.Elaotinhadeixadonojoalheiro,porqueeleestavaapertadodemais.ETaraouLaratinhafeitoomaiorescândalo,coma loja inteiraouvindo.Mas,pelovisto,amulhernãoficounemumpoucosemgraça.Continuouconversandocomosenadativesseacontecido.”Noraquisdizerquenãosabiaqueairmãestavanoiva,masresolveuseconter.“EonoivodaUnatambémestavaláontemànoite?”,perguntou.“Ah,Seamuséótimo.OvelhoWilliamdizqueeleéoúnicohomemdobancocomquemconsegue
conversar.Sabe,ouvidizerqueemtodasascidadesondeeleestevearranjouumanamoradafirmeeque,quandofoitransferido,deixouamulherparatrássemamenorcerimônia.Masestaéaprimeiravezqueeleficanoivo.Osdoissãomesmofeitosumparaooutro,nãosão?QuemderaeupudessedizeromesmosobremimeoRogerousobremimeoRay.EugostariadetermetadedoRayemetadedoRoger.Mas,comasortequetenho,acabariaficandocomametademaischatadoRogerecomametadedoRayquesóficafelizquandoelejáestáacaminhodeoutrolugar.”NoragostariadesaberemquebancoSeamustrabalhavaeseoconheciadevista.Quandovoltouaotrabalhoàtarde,encontrouummotoristadecaminhãocujonomeelanãosabia.Era
umhomemgrandederostovermelhoecabeloruivo.Elanotouaauradepuraliberdadeeautoconfiançaqueeleexalavaequetantofaltavaaosfuncionáriosdoescritórioeaoscaixeiros-viajantes.“MeuDeus,foiumnegócioterríveloqueaconteceunosábado”,disseele.“Foiotipodecoisaque
teriadeixadoloucodavidaoseumarido,osr.Webster,queDeusotenha.”“Éverdade”,disseNora.“O sr. Webster”, prosseguiu o homem, “nos fazia riscar a palavra London, Londres, no nome
Londonderryemtodososatlas.Achoqueaindatenhoumláemcasa.”“Tenhocertezadequeeutambémtenhoum.”“Umaagressãodepoliciaiscomcassetete,francamente.Econtraumamanifestaçãopacífica.”“Vioataquedospoliciaisnatelevisão”,disseela.“Aúltimavezqueviumaagressãodepoliciaiscomcassetete”,contouomotorista,“foinanoiteem
queBillHaleyeSeusCometastocaramnoRoyal,emDublin.EstávamosesperandodoladodeforaparaveroBillHaley,eoshomensdeazulacharamqueaquiloeraumaagitação,epartiramparacimadagentecom os cassetetes levantados.Mas a agressão do sábado foimuito grave. Eles estavam fazendo umapasseataemdefesadosdireitoscivis.Estavamemsuaspróprias ruas.Vou lhedizerumacoisa, issoéumavergonha.”Omotorista de caminhão se encontrava em tal estado sobre os tumultos queNora só conseguiu se
livrar dele coma chegadada srta.Kavanagh.Ela vinha acompanhada de três caixeiros-viajantes, quetinham ido à sala dela no dia anterior, insistindo que não haviam recebido as bonificações.Nora foichamadaparaircomelesatéasaladela.“Poisbem,estescavalheiros formaramumadelegaçãoe foramprocurarosr.WilliamGibneyfilho,
queosencaminhouamim.Elesqueremvertodososacordosfeitos.Nãoseiquemelespensamqueestãorepresentando,mas,comoeudisseaosr.Gibney,essasinformaçõesnãoestãodisponíveis.Éumassuntoprivadoentreaempresaecadacaixeiro-viajante.”“Bem”, disse o caixeiro-viajante que Nora conhecia como PDP, abreviação para “passo de pato”,
“nessecaso,pensamosempedirparaverosdetalhesdosnossosprópriosacordos,sódenóstrês,parapodermoscomparar.”Osoutrosdoisassentiramcomacabeça.“Não,vejambem”,disseasrta.Kavanagh,“nãotemosessetipodeinformaçãoemnenhumformato.
Temos,sra.Webster?”Maistarde,Noraseperguntoucomoteriarespondidosenãoestivessetãocansada.“Bem, na verdade, temos”, ela disse. “Tenho uma pasta para cada caixeiro-viajante e, na primeira
páginadecadauma,tenhoanotadostodososdetalhesdeseusacordos,eissosignificaquepossocalcularosbônusmuitorapidamenteesemerros.”“Entãopodemosveraspastasunsdosoutros?”,perguntouumdoshomens.“Sevoltaremamanhã”,disseasrta.Kavanagh.“Vamosveraspastasagoraevoltaremosamanhãtambém.”Noraselembroudequehaviaanotadoapenasasiniciaisnafrentedaspastaseesperavaque,quando
os caixeiros-viajantes vissem suas pastas, não precisasse lhes explicar o que significavam asabreviações.“Eumesmovoupegaraspastas,seasenhoranosdisseremquearquivoelasestão”,dissePassode
Pato.“Vocêsnãovãotocaremnada,aqui”,disseasrta.Kavanagh.“A senhora nos disse que não tinha a informação. Agora a gente vê que a informação existe. Não
vamossairdaquiantesdevernossaspastas.”“Bem, vocês podem ver por umminuto só”, disse a srta. Kavanagh. “Não temos o dia todo para
desperdiçar.”Fez um sinal com a cabeça paraNora, que saiu e procurou no armário até achar a pasta dos três
caixeiros-viajantes.Elesabriramespaçonamesadasrta.Kavanagh,semconsultá-la,eabriramastrêspastas.Numafolhagrampeadanaprimeirapágina,Norahaviaregistrado,numacaligrafiaclaraegrande,oqueeradevidoacadahomem.Umdelescomeçouaanotar.
“Esperemsóatéosoutrossaberemdisso”,disseele.Quandoaquilo terminou,a srta.Kavanaghnãosemexeu.Nora levouaspastasdevoltaaoarmário.
Estavasesentindodesesperadamentecansada,poderiamuitobempegarnosonoemcimadesuamesa.Quandoconsultouseurelógiodepulso,viuqueeramapenasduasemeia.Nãosabiacomoiriaaguentarorestodatarde.“Oquevocêestáfazendoagora?”Avozdasrta.Kavanaghatrásdelasooubaixaecalma.Noranotouquenãohavianenhumserviçoemsuamesa.“Oqueestáfazendoagora?”,repetiuasrta.Kavanagh,comavozmaisbaixaainda.“Bem,euvouverificarquesolicitaçõesdebônuschegaramhoje.”“Não perguntei a você o que vai fazer. Essa é uma pergunta que qualquer preguiçoso é capaz de
responder.Pergunteioqueestáfazendoagora.”“Srta.Kavanagh,oqueachaqueestoufazendo?Estouconversandocomvocê.”Asrta.Kavanaghatravessouo longoescritório, foi atéuma jovemque tinhaacabadodecomeçar a
trabalharalielevou-aatésuaprópriasala.“Sra.Webster,poderiatrazerparacátodasaspastassobreoscaixeiros-viajantes?”,gritou.Norafoiaoarmário,pegouaspastaselevou-asatéasala.“Namesa!Coloque-asnamesa!”,gritouasrta.Kavanagh.“Pegueesta tesoura”,eladisseànovata.“Queroquevocêcorteempedacinhos todasestaspastase
jogue tudo no lixo. Tenho instruções específicas do sr. William Gibney pai, e estas pastas não sãonecessáriasnemdesejáveis.Elesabeoqueédevidoacadacaixeiro-viajante.Sequiséssemosqueasra.Websterorganizasseessaspastas,teríamoslhepedido.”Virou-separaNora.“E o que você ficou conversando com aquele motorista de caminhão fora do prédio? Que outra
travessuraestavaplanejando?”“Oassuntodanossaconversanãoédasuaconta,srta.Kavanagh”,respondeuNora.“Olhe só para ela, chega tarde ao trabalho, estaciona o carro de qualquer jeito, passa a manhã
fofocando com a srta. Gibney, a garota mais preguiçosa da Irlanda, e depois com um motorista decaminhão!Elanãovaidurarmuitotempoaqui,sabe?Entendeubemisso,sra.Webster?”“Nãotenhonenhuminteresseemficarouvindoisso,srta.Kavanagh”,disseNora.“Edeixe-mesugerir
que guarde para si mesma suas opiniões sobre a srta. Gibney e… quem sabe sobre a maioria dosassuntos?”A srta.Kavanaghpegouumadaspastas e tentou rasgá-la aomeio.Comoopapel semostroumuito
resistente,elatomouatesouradamãodajovemecomeçouapicarapasta.“Vocêagoranãoestánasuacasa,emBallyconnigar,sra.Webster,nemnosofádopubEtchingham’s.
Você não émais umamadamemetida a besta.Você está aqui, trabalhando paramim.E eu dirijo esteescritóriodamaneiracomoosr.WilliamGibneypaimandou,eumadasregrastácitaséqueninguémquetrabalhaaquiserelacionacommotoristasdecaminhão,amenosquefaçapartedesuastarefascotidianas.Vocêachaquepodefazeroquebementende,comumafilhaparaumladoeoutrafilhaparaooutro,ecomasuairmãnoclubedegolfe,umasituaçãomuitodesagradável,paradizeraverdade.Eseumarido,defato,ah,eleeraumgrandehomem…”“Nãofaledomeumarido!”Norapegouatesoura.Maistarde,nãoconseguiuentenderporquetinhafeitoisso.Saiudasaladasrta.
Kavanaghcoma tesouranamão,pegou seucasacoe saiucomosenadadeespecial tivesseocorrido.Quandoentrounocarro,viuashoras.Aindanãoeramtrêshoras.Osmeninosnemestariamemcasa.
8.Quandoligouocarro,resolveuiraBallyconnigar.OdiaestavabonitoeapraiaemKeatings’devia
estarvazia.Iacaminhar,eandartalvezlhedesseumaideiadoquefazer.Adespeitodoqueacontecesse,nãovoltariamaisaoescritóriodosGibney.PensouquepodiavenderacasaemEnniscorthyealugarumamenor,ou semudarparaDublin.Poderia sermais fácil arranjarumempregomelhoremDublin.Aineestaria lá no ano seguinte, talvez Fiona conseguisse arrumar um emprego de professora lá, e elaconseguiria uma escola para os meninos. Quando pensava nisso, lhe veio a imagem de deixar Jim,MargaretesuairmãUna,ecomissoselembroudoqueasrta.KavanaghtinhaditosobreUnanoclubedegolfe, “uma situação muito desagradável, para dizer a verdade”. Nora riu. Nessas palavras, comotambém no fato de a srta. Kavanagh saber que ela e Maurice frequentavam o pubEtchingham’s, emBlackwater, algumas noites no verão, indicavam claramente que Francie Kavanagh vinha observandoNoracommuitaatenção.Nora se lembrou do dia, anos antes, em que Greta lhe contou que Francie queria ir com elas a
Ballyconnigarequenãohavianadaqueelaspudessemfazerarespeito.ElaeGretaestavamdecididasanãoservistasnacompanhiadeFrancieKavanagh.Atésuasroupaseoaspectodesuabicicletasugeriamumacasavelhanocampo,semáguacorrente,umadessascasasemqueoprimeiroandarerachamadode“sótão”.Avoz,osotaque,asexpressõesqueusavafaziamambastervontadedeficar longedela.MasFranciequisjuntar-seaelasnaqueledia.Asduasrecorreramatodasassuasenergiasparapedalarsuasbicicletasmuitoleveseseadiantarem
bastante,atéperderemFranciedevista;depoisforamaMorriscastle.NoraimaginouFranciechegandoaBallyconnigarnaexpectativadeencontrarasduas.Nacerta,alimentavaosonhodesetransformar,desetornar igualaumagarotadacidade.Gretaeelamesma,pensouNora,erammuito inocentesnaépoca,mastinhamambições.AregradeGretadequeelassóiriamfalarcomhomensquenãocometessemerrosdesintaxee ignorar todomundoquefosseruimdegramáticacomeçoucomoumabrincadeira,masaospoucos se tornou uma coisa séria para elas. As duas se casaram com homens instruídos, as duasaprenderamadirigire,quando tiveramfilhos,asduas iamparapertodomarnoverãoe ficavamláomaiortempopossível.Aotentarsejuntaraelasnaqueledia,FrancieKavanaghtalveztambémquisesseumapartedaquiloqueelasdesejavam,pormenosqueassimparecessenaépoca.Easduasaindatinhamrido no dia seguinte, quando souberam dos apuros de Francie e da chuva. Claro que não pediramdesculpas.Eagoraelaeraadiretoradoescritórioeviviaparaláeparacáfeitoumalouca.QuandoNoravirouemFinchogue,pensouseexistiriaumempregonormaldisponível,umempregoondesuachefenãofosseumadoidacheiadeódiocontraela.Masagora,emtodasasentrevistasouemtodasasconversas
comumpossívelempregador,Nora ia terqueexplicarporque,numabela tardedeoutubro,elahaviasaídodoescritóriodeGibneycomumatesouranamão.NoraparouemBlackwaterecomprouummaçodecigarrosCarroll’seumacaixadefósforos.Fazia
anosquenãofumavaejurouquenãoiafumartodososcigarros,sódoisoutrês,depoisjogariaomaçofora.Quandotragou,sentiu-setonta,eissoafezlembrardecomoestavacansada.Jogouocigarropelajanela, depois recostou a cabeça no banco e adormeceu.Quando acordou, viu umamulher parada naponteolhandoparaseucarro.Quandoamulherseaproximou,Noraligouomotor.Sentiu-setentadaairaCushparadarumaolhadanacasaeseJackLaceyhaviafeitoalgumareforma.
Mas tinhacertezadequeseucarroserianotado.Porummomento,brincoucoma ideiadevoltarparacasa e escrever uma carta de demissão bem ríspida para Gibney. Começou a compor a carta empensamento.Masentãosuaenergiaparaissofoiemboraeeladecidiuirseguindoemdireçãoaomar,atéKeatings’.Nora não esperava encontrar neblina sobre a água. Ficou sentada no carro, na frente da casa de
Keatings’, e olhou para baixo, na direção de Rosslare, contemplando a luz pesada e leitosa que seestendiasobreapraia,queavançavarumoaCurracloeeRavenPoint.Quandosaiudocarro,sentiuoarúmido e carregado, como se fosse ouvir uma trovoada.Calçou uma sandália que tinha no carro.Nãohaviamaisnenhumautomóvelno estacionamento.Caminhoucomcuidadono trechopedregosoentreocapimeorio,atravessouapequenapontedemadeiraeseguiuparaosul.Aolongodetodosaquelesanos,pensouNora,elanuncatinhaidoaliemoutubro,numaépocaemque
ooutonojáestivessepertodofim;agoraimaginoucomoolugarficariaestranhoemdezembroejaneiro,quefriocortantedeviafazer,comoeleseriaventosoesemprevarridoportempestades.Quasenãohaviacornenhuma.OmundonafrentedeNoratinhadesbotado.Seelachegassemaisperto
damargem,poderiaver aspedrinhas fazendoumbarulhochocalhantequandoasondasquebravamemcimadelas.Noraviucomoacordecadapedraeraperfeita,oqueafezesquecerFrancieKavanagheosGibneyeparardesepreocuparcomoqueiriafazer.Enquantocaminhava,malconseguiaenxergaroquehaviaàfrente.Podiaserfácilimaginarqueaquele
eraumlugarquepertenciamaisaMauricedoqueaela.Ummundorepletodeausências.Tudoquehaviaera apenas o som sussurrante da água e pios dispersos de pássaros voando rente à superfície domarcalmo. Ela conseguia vislumbrar o sol brilhando por trás da cortina de névoa. Era improvável queMauriceestivesseemalgumlugarquenãonocemitérioondeelaoenterrara.Noentanto,persistiaaideiadequeseele,ouseuespírito,estivesseemalgumlugarnomundo,haveriadeserali.Noraachavaquasenaturalque,seoespíritodeMauriceestivessenaqueletrechodepraia,eleteria
suasprópriaspreocupações.Osdetalhesdavidadela—seutrabalhonaempresadosGibneyouoquepoderiaacontecernofuturocomFionaeAine,comDonaleConor—pareceriamquestõesvagasparaMaurice,assimcomoaimagemqueelaviaàdistância,naqueleinstante,pareciamcoisasqueiampassar,como a vida deMaurice havia passado. O que tinha acontecido nos dias anteriores à morte dele, oentupimento em seu sistema circulatório que o fez gritar com tanta força que sua voz foi ouvida nohospitalinteiro,aquiloaindaestariacomMauriceagora,maisdoquequalqueroutracoisa.EamortedelevoltouaNora.Elareviuempensamentoaspessoasqueestavamlá—JimeMargaret,
a irmãThomas, que fizera preces especiais, e o velho padreQuaid.Nos dois últimos dias, a própriaNoratinhaficadojuntoàcamadeMaurice.Masele jáestavalongedetodos, tãolongequeeleseramcomo sombras, pessoas já perdidas para ele. Talvez Maurice pudesse apenas imaginá-los comopresenças vagas, as pessoas a quem amava,mas o amor, então, dificilmente tinha importância, assim
comoanévoaali,agora,significavaqueafronteiraentreascoisasnãotinhanenhumaimportância.QuandoNorachegouaBallyvalooealuminosabrancuracinzentafoiempurradadapraiapelovento
brandoquesopravanadireçãodeCurracloe,Noraviuumafreiraandandosozinha,devoltaàruelaquelevava à casa de retiro das Irmãs de São João de Deus. Com seu hábito preto completo, a freiracaminhavadevagar e comdificuldade.Nora achouquedevia ser umadas irmãsdo retiro, quemuitasvezesiamparaláemfériasouparaseretirar.Quando se aproximou mais, viu que era a irmã Thomas. Nora ficou surpresa por ela estar em
Ballyvaloo; nunca soubera que ela saía de seu convento nemda cidade.Caminhou na direção dela e,quandoaalcançou,a irmãThomasacumprimentoudemãosestendidas, segurandoasmãosdeNoraeapertando-as.De repente, Nora sentiu frio e começou a tremer. Escutava o vento soprando ao longe, quase
assobiando,mas,quandoolhouparaomareparaaextensãodepraia, tudopareciacalmo.Nãohavianenhumsinaldequeanévoaestavasubindo.“Vocênãodeviaestaraquisozinha”,dissea irmãThomas.“EufuiaBlackwaterhojedemanhãver
umaamiga.Eagorahápoucoelaviuvocêdormindoprofundamentenocarroe,depois,dirigindoparaapraia,eelametelefonounoconvento,porqueficoupreocupadaequeriasaberoquedeviafazer.Entãodesciatéaqui,achandoquepodiaencontrarvocê.”“Quemfoiquemeviulá?”“Acheiqueeudeviaviratéabeiradomarversevocêestavaporaqui”,disseairmãThomascomvoz
serena.“Nãocostumosairdacasaderetiro.Hoje,istoaquimaispareceoparaísodoqueaterra.”“Eutambémviessamulher.Alguémquenãoconseguecuidardaprópriavida.”“Éumamaneiradeveracoisa.Trata-sedealguémquesepreocupacomvocê.”AirmãThomassoltouasmãosdeNora.“Nãomesurpreendidevervocêaqui”,disse.“Tinhadeacontecer,nósnosencontrarmosdessejeito.É
assimqueoSenhorfazascoisas.”“NãovenhamedizercomoéqueoSenhorfazascoisas!Nãomefaledissodenovo!”“QuandoMauriceestavamorrendo,pediaDeusquetornassetudomaisfácilparaeleeparavocê.Eu
nãotinhanenhumanecessidadepessoalefaziamuitotempoquenãopedianadaaEle.MaspediissoeElemenegou.DeveterhavidoumarazãoparaElemedizernão,earazãoestáocultaparanós.MasseiqueEleestáprotegendovocêetalvezporissonosencontramosaquihoje,paraqueeupossalhedizerisso.”“Elenãoestámeprotegendo!Ninguémestámeprotegendo!”“Hoje,quandoacordeiefizminhasorações,eusabiaqueiaencontrarvocê.”Noraficoucalada.“Entãoagoravolte,antesqueaneblinabaixeefiquetãopesadaquevocênemconsigamaisvoltarde
carropara casa”,disse a irmãThomas. “Vápara casaqueosmeninos logovãochegardaescola.Osmeninosestarãoemcasa,esperandoporvocê.”“Nãopossomais trabalharnoescritóriodosGibney.Asrta.Kavanaghgritacomigo.Hojeeladisse
coisasquetornamimpossíveleucontinuarlá.”“Vaificartudobem.Acidadeépequenaeelavaiprotegervocê.Agoravolte.Eparedesofrer,Nora.
Otempoparaissojápassou.Estámeouvindo?”“Enquantoeucaminhavaporaqui,tiveasensação…”“Todos temosessasensaçãoemdiascomohoje”, interrompeua irmãThomas.“Emesmoemoutros
dias.Porissovimosparacá.Aquelesquepartiramtêmaquiumabrigoemseucaminhoparaooutrolado.Ébomficarentreelesnumdiacomohoje.”
“Entreeles?Oquequerdizer?”“Àsvezes,andamosnomeiodeles,daquelesquenosdeixaram.Elesestãorepletosdealgumacoisa
quenenhumdenósaindaconhece.Écomoummistério.”ElaseguroudenovoasmãosdeNora,depoissevirouecaminhoudevagar,comosesentissedor,em
direçãoàsdunaseàruazinhaquelevavaàcasaderetiro.Noraesperouparaverseafreiraiasevirareolharparaela,mascomoairmãThomasnãofezisso,Noraficouparadauminstante,olhandoparaomaraindacobertopelaneblina.Emseguidacomeçouarefazerseucaminhopelapraia,rumoaolugarondehaviadeixadoocarro.Agrande tesouradasrta.Kavanaghestavanobancodopassageiro,ao ladodomaçodecigarros.Norapôsoscigarrosnoporta-luvas,mastirouatesouradocarroeadeixousobreocascalho,paraquealguémaencontrasse.
9.NoranãocontouaninguémoquehaviaacontecidonoescritóriodosGibneynemqueestavapensando
emvenderacasaesemudarparaDublincomosmeninos.Sorriuaoimaginarosdoisfilhosencontrandoumaplacade“Vende-se”nacasaouumanúnciono jornal.Noramandouumbilheteà srta.Kavanagh,dizendo que estava doente; não ia se dar ao trabalho demandar outro bilhete aWilliamouPeggy ouElizabeth, dizendo que não ia voltar. Eles teriam de descobrir sozinhos. Para eles, não haveriaimportâncianenhuma,emboranãofossemquerer,pensouNora,queaspessoasnacidadesoubessemqueelahaviasidomaltratadanoescritório.SabiaqueConorhaviacontadoaFionaqueamãenãotinhaidotrabalhar,masFionanãotinhaperguntadonadaaNora.Numasexta-feiraaoanoitecer,nofimdeoutubro,quandoFionaeAineestavamemcasa,Unachegou
para mostrar seu anel de noivado. Catherine, quando Nora telefonou a ela uns dias antes, da cabinetelefônicadeBackRoad,dissequeUnaeSeamushaviampassadoalgunsdiasemsuacasa.ElaeMarkgostaramdeSeamus.CatherineacrescentouqueUnatinhaditoqueestavanervosaporterdefalarcomNorasobreonoivado.Una,disseCatherine,nãosabiacomoNoraiareagir,jáquenãofaziamuitotempoqueMauricehaviamorrido.NoratambémrecebeuavisitadesuatiaJosie,quedissequeUnaiasecasarcomSeamusnoAno-NovoequeaúnicapreocupaçãodelaeracomoNoraiaencararanotícia.“Suasirmãstêmmedodevocê”,disseJosie.“Sempretiveram.Nãoseiporquê.”Noracomeçouaficarsemmuitapaciênciacomairmã,enadamaissentiasenãoumairritaçãosecapor
elaeseunoivoeumprazerdistantecomanotíciaquereceberadeElizabethsobreUnaeSeamusmetidosemfarrasemWexfordeRosslare,comoduaspessoascommetadedaidadequetinham.“Ah,jásoubedetudosobreesseanel”,disseNoraquandoUnaapareceuparamostrá-lo.“Achoque
TaraReaganadorouoanel,ouaomenosfoioqueeladisse.”“ImaginoquefoiaElizabethGibneyquemlhecontou.”“Acidadeinteiramecontou”,disseNora.“TaraReaganétãoboba.”“Elasabereconhecerumanelbom,quandovêum”,disseNora.UnaolhouparaFionaeparaAinecomosequisessedizerqueelasemprehaviaesperadoqueaquiloia
serdifícil.“Detodomodo,éumaótimanotícia.CatherinemecontoueatiaJosietambémmecontou.Todomundo
mecontou.Parabéns!”Unaficouvermelha.“Algumas vezes que estivemos juntas pensei em contar, mas depois achei melhor esperar, e fui
deixando.”“Ah,nadadepressa.Comoeudisse,acidadeinteiraestáfalandodisso,bastavaeupôropénarua
paraficarsabendo.”Una,Norapercebeu,queria irembora,mas tinhavindoparaobteraaprovaçãodeNoraepara isso
contavacomapresençaatenuantedeFionaedeAine.Elaqueria,pensouNora,telefonarparaCatherineeJosieecontarquefinalmentehaviadadoanotíciaàirmãequeagoratudoiacorrermaisfacilmente.Nora sentiu o peso de todas falando a seu respeito, pensando que ela poderia, de algummodo, fazerobjeçõesàintençãodairmãdesecasarouentãofalaralgomaldosoaUnaporcausadisso.Noragostariadesentirvontadededizeralgogeneroso,masnãoconseguiaimaginaroquepoderiaser.Tambémqueriaqueas três fossemembora,asduas láparacimadenovoouparaaoutrasala,eUnaparaasuacasa.QuantomaiselasficassemesperandoalgodeNora,maispertoelasesentiriadeumaespéciederaivaquesabiaprovirdesuaconversacomasrta.Kavanaghedenãoterdormidobemdesdequedeixaraoescritório.MastambémprovinhadeUna,FionaeAine.“Ouvidizerqueeletrabalhanobanco”,disseNora.“Éogerente?”“Bem,não”,respondeuUna.“Ouvidizerquealgunsdosmelhoresfuncionáriossetornamgerentesbemjovens.”“Émuitaresponsabilidade”,disseUna.“Etambéméporissoqueelenãosecasouatéagora?”Unapegousuabolsaefezmençãodeselevantar.“Talveznãotivesseachadoamulhercerta”,disseFiona.“AtéanossaUnaaparecer.”“Sei”,disseNora.Elasedeucontadequetinhaidolongedemais.Novamente,pensouemalgoparadizerqueamenizasse
depressaasituação,masnãoconseguiupensaremnada.Aineatravessouasalaesaiu.“Maséumaexcelentenotícia”,disseNora,“eeugostariamuitodeconhecê-lo.”Unatentousorrir.FionaolhoufixamenteparaNora.“Bem,achomelhoreuirembora”,disseUna.SaiudasalaseguidaporFiona.Nasegunda-feiraànoite,asra.WhelanbateuàportaeConoralevouparaasala.“Olhe, trago um recado da própriaPeggyGibney para a senhora.Ela disse que adoraria receber a
senhoraamanhãàtarde.Sepuderiràstrêshoras,estariabem,mas,senãopuder,váàsquatro.”“Ah,nãoestoumesentindobemparasairdecasa,sra.Whelan.”“EElizabethestácomsaudade.Tambémmepediramparadizerisso.”“Claro.Masnãoestoumesentindobemparasairdecasa.”“Entãooqueeudigoàsra.Gibney?”“Digaquenãoestouboaparasair,masquegosteimuitodasuavisitaequevocêeeutomamosuma
xícaradechá.”“Ah,nãoposso,sra.Webster.”Nora fezquestãodeservirochá.Maisumavez lheocorreuquenãodevia serconvenienteparaos
GibneyqueosoutrossoubessemqueaviúvadeMauriceWebstertinhasidoofendidaepostaparaforadoescritório.Noranãosabiaonomedajovemquehaviatestemunhadoacenafinalcomasrta.Kavanagh,masimaginavaqueeladeviatercontadoparatodomundonoescritório.EmpoucotempochegariaaosouvidosdaspoucaspessoasnacidadecujaopiniãoimportavaparaosGibney.Quando levou a bandeja para a sala, fez umgrande esforço para semostrar animada e emperfeita
saúde. Esperava que a sra. Whelan contasse aos Gibney que não acreditava que a sra. Webster, naverdade,estivessedoente.Doisdiasdepois,airmãThomaslhefezumavisita.Estavamaisfracadoquehaviaparecidonapraia
deBallyvaloo.“Eu queria falar com você antes que osmeninos chegassem da escola”, disse quando se sentou na
poltronadasala.“Agoradescobritudo.Vocêvaificarsurpresaquandoeucontarquempassalánonossoconvento.Nadanosescapa.Outalvezalgumascoisasescapem,massãosemprecoisasemquenãotemosinteresse.Poisé,eusoubedetudo,atédatesoura.ElaéumadasfilhasdeDeus,aFrancesKavanagh,emuitosanta.Seaspessoassoubessem!EntãofuifalarcomPeggyGibneyeelamesmapodecontaravocêoqueeudisse.Eelareuniutodos,afamíliadelaesuaamiga,asrta.Kavanagh.Pormaisestranhoquepareça,todostêmmedodela.Nãoseiporquê,poiselaémuitogentil.Peggypodelhecontarahistóriatoda.Eufaleiaelaquepodia.Nuncacontouaninguém,masachoquequercontaravocê.Váfalarcomelaamanhã.”“Nãoquerovoltarlá.”“Elatemoutrapropostaparalhefazer,evocênãodeverecusar.Eeutambémtenhoumacoisaparalhe
pedir.Podesermaisgentilcomsuairmã?”“Comosabesobreisso?”“Elafoiànossapequenacapela,aondevocêiadepoisqueMauricemorreu,quandoqueriaevitaras
pessoas.Faleicomsuairmã,sempretiveumpoucodepenadela,damaneiracomoficousozinhadepoisquesuamãemorreu.”“Eoqueelafaloudemim?”“Nada,oumuitopouco.Maso suficiente.Agorapreciso ir, porqueestou atarefada.Evocêprecisa
fazerduascoisas.FalarcomPeggyecuidardeUna.E talvezdizerumaouduasprecespor todosnóstambém.”Elafoicaminhandodevagarparaocorredor.“Nãoseioquedizer”,disseNora.“Nãogostoqueaspessoasfiquemsabendodaminhavida.”“Sua mãe também era assim. Eu a conheci quando ela cantava. Uma cantora maravilhosa, mas o
orgulhoouofatodenãogostarqueaspessoassoubessemdavidadelafoioquea tornouumapessoadifícil.Eissonãolhefeznenhumbem.Masvocêémaisprática.Etodosdevemossergratosporisso.”“QuerqueeuváfalarcomPeggyGibneyamanhã?”“Quero,Nora,àstrêshoras,ouàsquatro,oupertodessehorário.”“Entãoeuvou.”“EvaiconvidarUnaeseunoivoparaviremàsuacasaparaeleconhecerosmeninos.Umcasamentoé
umacoisamuitoalegre,eelesvãogostardesaberdisso.”Noraabriuaportadafrenteparaafreirae,enquantoeladesciacomdificuldadeaescadinhadaporta,
falou: “Só espero que no paraíso as coisas sejammais simples.Reze para que as coisas sejammaissimplesnoparaíso”.Quandoasra.Whelanatendeuaporta,sussurrouquetinhaditoàsra.PeggyGibneyqueNoraestava
doentedemaisparairvisitá-la.“Devodizerqueasenhoraestámelhor?”,perguntouaopegarocasacodeNora.“Sequiser.”PeggyGibneyestavasentadaexatamentenamesmapoltronadaúltimavez.Nãohavianenhumlivroou
jornalporperto.Noraseperguntouseelaficavasentadaaliodiainteiro,todososdias,naquelecômodo
sombrio, com as árvores verdejantes balançando do lado de lá da janela, concentrada em seuspensamentos,tomandoocháqueasra.Whelanlheserviadevezemquando.“Aquiestamosnósoutravez,Nora”,disse,comoummédicofalandoaumpacienteque tinhavindo
removerumcurativooumedirapressão.Noraolhou-acomfrieza.“Houveumaguerranestacasa”,dissePeggy.“Elizabethestáficandocomalínguamuitoafiada,masé
claroqueculpooThomas.Éumaformaderesponsabilizarmeumaridosemterdedizê-lo.Comtodasasmudançasque estão emandamento,WilliamGibneypai já temproblemasdemais para resolver e nãoprecisaserresponsabilizadotambém.EoThomasaguentaotranco,claro.”“Peggy,nãofaçoamenorideiadoquevocêestádizendo.”Peggypôsodedonoslábios,levantou-se,andoucomfirmezaparaaportaeabriu-aderepente.“Maggie, precisamos de privacidade”, disse. “Se quisermos chá, mais tarde eu chamo você na
cozinha.”Sentou-sedenovonapoltrona.“Nora,vocêvaiterdemedizeroquedeseja.Eeuprovidencioparavocê.”“Nada”,respondeuNora.“A irmã Thomasme disse que eu fizesse você descer do seu pedestal, se você estivesse em cima
dele.”“Nãoqueronada,obrigada.”“Todosdizem,querdizer,todosmenosElizabeth,queFrancieKavanaghéumadiretoradeescritório
inestimável. Que ela conhece a empresa de trás para a frente e por isso não precisa que nada sejaanotado.Equeelapodesercáustica,ouassimmefoidito,porque,senãofosse,nadaandariadireito.Meu marido e Thomas acham que ela é a maravilha das maravilhas. Na minha opinião, ela é umaselvagembrutal,mas,comoninguémmeescuta,nemElizabethsabequeeuconcordocomela.Poisbem,eudissequeninguémmeescuta,masdevezemquandoeuimponhoaleinestacasa.Aprimeiracoisaquefaçoéfecharacozinha.Elespodemcomerondequiserem,masaquinãovãoconseguirnada.Edepoiseuespero.Entãodigoaelesoquedesejo,econsigo.Portanto,tudoquevocêtemafazerémedizeroquevocêdeseja.”“Querotrabalharsódemanhã, trabalhosobasordensdeElizabetheThomas,masasrta.Kavanagh
nãoterápermissãonemdeolharparamim.Creioquepossodarcontadomesmovolumedetrabalho,mastalvezprecisedealgumaajuda.Aceitoumpequenocortenosalário,masnãomuito.”“Feito”, disse Peggy Gibney. “Esteja aqui na segunda-feira de manhã, para que você e Elizabeth
cheguemjuntasaotrabalho.”“OqueairmãThomastemavercomisso?”“Éumalongahistória,Nora,fazmuitotempo.”“FoinaépocaemquevocênamoravaoWilliam?”“Vocêeraaúnicaquesabia,porqueWilliamdissequevocêouviudepassagemadiscussãoqueele
tevecomopai.Esemprefomosgratosavocêpornãotercontadoaninguém.EuestavaprestesairparaaInglaterra.EraoqueopaideWilliamqueria.Vocêsabedisso.EntãoprocureiasfreirasdoconventodeSãoJoãoparaperguntaraelasparaondeeupoderiair.EairmãThomaschegounaqueleinstante.Ah,elaera muito diferente das outras freiras. Tinha trabalhado na Inglaterra, você sabe, tinha visto tudo, asgarotas irlandesas chegando. Ela trabalhou para Michael Collins,* sabe. As freiras eram ótimasmensageiraseelafoiumadasmensageirasdele.Elanuncacontouissoavocê?Ah,senãocontoucreioquefoiporquevocêestavanoPartidoRepublicanoIrlandês.”“Mauriceestava,eoJimtambém.OJimaindaestá.”
“DevetersidoporissoqueelanãomencionouMichaelCollins.Sejacomofor,elaveioatéaquie,nestamesmasala,ameaçouopaideWilliam.Dissequeiafalarcomobispo,queelahaviaconhecidoanosantes,equeelesiriamencerrartodososnegócioscomasempresasdosGibney.Dissequeiapediraobispo,comoumfavorpessoal,queviesseaestacasatambém,amenosqueaquestãofosseresolvidade um modo que a deixasse satisfeita. William e eu iríamos nos casar, ela disse, e era o que nósdesejávamos,claro,aindaqueGibneynãomeachasseboaobastante.Eissofoiofimdetodososnossosproblemas.Então eudisse à irmãThomasque se umdia ela precisasse de alguma coisa, viesse falarcomigo.Elaesperoutodosessesanos.Entãovocêvêporquenãopossorecusar.Senãofosseporela,WilliamfilhoestarianumorfanatoouteriasidoadotadonaInglaterra,enãoseiondeeumesmoestaria.”“MichaelCollins,essaéboa”,disseNora.“Elamecontouissomuitasvezes.Pelovisto,asfreirascomiamnamãodele.”“Parecequeagoratodosnóséqueestamoscomendonamãodela.”“Venha na segunda-feira de manhã e tome café comigo e com Elizabeth. Muitas vezes, de manhã,
tomamosocaféjuntas.Elaandamuitoanimadaultimamente,aElizabeth.Nãoseioquehádeerradocomela.Outalvezsejaumbomsinal.”ParaNora,ficouclaroqueelanãodeviacontaraninguémoquetinhaacontecido.QuandofoiverUna
nosábado,disseapenasquehaviapassadoa trabalharemregimedemeioexpedientenaempresadosGibneyporqueestavaachandopenosoficarláodiainteiro.PelareaçãodeUna,NorateveaimpressãodequeairmãjátinhaouvidofalardabrigacomFrancieKavanagh.FicoucombinadoqueUnaeSeamusiamlevá-laparatomaralgunsdrinquesnoclubedegolfequalquer
noitedasemanaseguinte.Quando contou aos meninos que ia trabalhar só meio expediente, eles reagiram com o mesmo ar
desconfiado comque recebiama notícia de qualquermudança.E quandoNora disse que ia deixá-lossozinhosnumanoiteparairaoclubedegolfecomUna,eseriaaprimeiravezqueelesficariamsozinhosemcasaànoite,mostraram-semaisdesconfiadosaindaeperguntaramseelaiasetornarsóciadoclubede golfe.Quando souberamqueNora iria apenas ao bar do clube, quiseram saber a que horas ela iavoltarparacasa.DemoraramalgumtempoparasehabituaraofatodeNoranãovoltarparaotrabalhoàtardeedeela
estar em casa quando eles chegavam da escola. Embora brigassem às vezes e Donal, nitidamente,provocasseConor,aquilotinhasetornadoavidadeleseumamudançadesistemaosdeixavainseguros,comosetivessemdecomeçartudodenovo.UnaperguntouseNorapodiapegá-ladecarroelevá-laaoclubedegolfe,pois,comoSeamustinha
umafolgaàtarde,eleiajogarumarodadadegolfeedepoiscomerunssanduíchesnasededoclubeantesde encontrá-las. Embora Nora achasse que Seamus é quem deveria ir à cidade buscá-las de carro eimaginassequetalvezaquilofosseumadesculpaparaelacancelar tudo,acabouresolvendoconcordar,comreceiodeencontrarairmãThomas,quecertamenteialheperguntarsobreosGibneyesobreUna.OcorreuaNoraque,emqualqueroutroséculo,airmãThomasteriasidoqueimadacomofeiticeira.Àtarde,antesdeiraoclubedegolfe,elafoiaosalãoparalavarepentearocabelo.Usariaumvestido
de lã comumcardigãpor cima, e também levariao casacode inverno, caso tivessequecaminhardo
estacionamentoatéasededoclube.“Seamusestáencantadoporvocêirconosco”,disseUnaquandoairmãfoibuscá-la.“OsGibneyestão
entreosmelhoresclientesdobancoeeletemosr.WilliamGibneypaiemaltaconta.Dizqueeleéumverdadeirocérebroparaosnegócios.OsfilhosvãopromovermudançasimportanteseSeamustambémestámuitobemimpressionadocomeles.Parecequeaempresaestácomumexcedentedemãodeobra.Sabiadisso?Seamusdizquecortesnafolhasalarialtornarãoaempresamaiseficiente.”Seamusestavanasede,àesperadelas.Foipedirdrinques.“Tiveumdiaruimnogolfe”,dissequandovoltou.“Isoleiabolano terceiroburaco,quandoomais
sensatoteriasidodesistirdojogoalimesmo.”Eraaltoedecaravermelha.Osotaque,pensouNora,eradaInglaterraCentral.FalavacomNoracomo
seaconhecessedesdesempre.Aquilodeviaserútil,elapensou,paraalguémquetrabalhavanumbancoesemudavadeumacidadeaoutra.Logodoishomens se juntaramaogrupo,umdelesproprietáriodeuma farmácianacidade.Nora já
estiveranasuafarmácia,masnuncahaviafaladocomele.“Eupodiatertidomaissortenoquintoburaco”,disseele.“Entende,seeutivesseposicionadoabola
melhor.Achoquebateuumventonahora.”“Ah,é,noteiissotambém”disseooutrohomem.“Oarnãoestavatãoparadocomoparecia.”“Acho que só entrei no ritmo depois do quinto buraco”, disse o farmacêutico. “E depois, quando
conseguiumbirdienooitavoburaco,aísimmedeibem.”OlhavaparaNoraeUnacomoseelastambémtivessemparticipadodojogo.“Sabem”, eleprosseguiu, “sempredigoque esta é amelhor épocado anoparaumaboapartidade
golfe.Seotempoestáseco,bementendido.”“Etemandadobemseco,nãotem?”,observouUna.“Eudeviaterdadoodiaporencerradonoterceiroburaco,comtemporal,garoaoucéulimpo”,disse
Seamus.“Nem o próprio Christy O’Connor teria conseguido tirar a bola daquela encrenca”, disse o
farmacêutico.“Masdevehaverumjeitodefazerisso”,rebateuSeamus.“QuandoeumoravaemCastlebar,eutinha
umtacodeferroqueteriaservidoali.Eraleve,entende,comumimpulsotremendo.”“Evocênãopodearranjarumsubstituto?”,perguntouUna.“Perdi o taco num jogo de pôquer”, respondeu Seamus. “E o cara que ganhou acabou vencendo o
campeonatodoclubedaqueleanoedoanoseguinte.”Ofarmacêuticofoiaobarpedirumarodadadedrinques.“PrefiroaquiaRosslare,você também?”,perguntouSeamusaooutrohomem.“Gostodecamposde
golfebemprojetados,denoveburacos.AlgumaspessoasadoramRosslareepodematéterrazãonofimdesemana,quandoumamultidãovaiparalá.Porémnadasecomparaaumdiadesemanatranquiloaqui.”“Tinhamuitagentejogando?”,perguntouUna.“Muitopouca.Haviaumassenhoras,eramquatro.Nãoseiquemsão.Éoquedásernovonacidade.
Vocêtambémjoga?”,eleperguntouaNora.“Não”,elarespondeu.“Ah, é um jogo excelente.Alémdo exercício, tambéméum jeitode conhecer umacidade.Agente
conheceumacidadepeloseuclubedegolfe.”Quandoofarmacêuticovoltoucomosdrinques,Unapediulicençaefoiaobanheiro.Norafoijunto.“Seriaótimosevocêpudesseficarumpoucomais”,disseUna.“Não se preocupe comigo”, disseNora. “QuandoMaurice estava vivo, eu tinha que ficar ouvindo
todos eles conversando sobreoPartidoRepublicano Irlandês, e a coisa sópiorava a cada eleição.Etambéméagradávelrelaxar,jáquenãoprecisoprestaratenção.”OqueelagostariadedizereraqueaquiloeraotipodeconversaqueMauricedesprezaraavidatoda,
quase tanto quanto ela desprezava agora. Por um segundo, pareceu que Una ia se ofender com ocomentáriodeNoradequenãoprecisavaprestaratenção,masUnasorriuquandoolhouparaoespelho.“Seioquevocêquerdizer.”Maistarde,umhomemeumamulher,apresentadacomonoivadele,sejuntaramaogrupo.Aospoucos,
Nora se deu conta de que se tratava do Ray de Elizabeth. Ray levou um poucomais de tempo paraentenderquemeraNora.“Ela falamuitodevocê”,disseRay.“Dizqueéa funcionáriamaiságilqueela jáviu.Talvezseja
melhorelanãosaberquesaíestanoite.Entende,talvezsejamelhorvocênãocontaraela.”“Elizabetheeutemosmuitosoutrosassuntosparaconversar”,disseNora.“Bem,elanuncaficasemassunto.Issoeutenhodereconhecer.”“Ela é muito eficiente no trabalho”, disse Nora, num tom que ela esperava que ia pôr um fim na
conversa.“Puxoubastanteaopai.”“Éumagarotamaravilhosa”,disseRayetomouumgoledesuacanecadecerveja.“Sabe,quandoconteiqueviriaparacáestanoite,Elizabethdissequetalvezpassasseaquimaistarde,
setivessetempo”,revelouNora.“Elatemumavidasocialmuitomovimentada,comovocêsabe.”Não era verdade. Nora não tinha dito nada a Elizabeth, mas quis ver o que ia acontecer. Ficou
satisfeitaaonotarRaymuitopreocupado,olhandoemvoltacomosequisesseconferirondeficavamassaídas.Demanhã,NoraficousurpresaporElizabethterchegadoaotrabalhoantesdela.“Umpassarinhoqueestavanoclubedegolfenanoitepassada”,disseElizabeth,“mecontouquevocê
teveumalongaconversacomRay.”Nora tinhacertezadequenenhumGibneyestiveranoclube.Elanãoconseguia imaginarquem teria
contadoaElizabeth.“Elemesmometelefonou”,explicouElizabeth.“Hojebemcedo.Ontemelemedissequequeriasairà
noiteeeumearrumeitoda.Masaíeledissequenãoiapodermais.MasdepoisoSeamustelefonouparaeleedissequeestavaapavoradoporconhecervocêepediuoapoiodele.”“Apavoradopormeconhecer?Não,elenãoestavamesmo!”“FoioqueoRaymedisse.EtambémquesuairmãrecomendouaoSeamusquenãoficassefalando
sobregolfecomvocê,queeledeviainventaralgumassuntomaissérioparadiscutir,poisvocêeramuitointeligente. Então o Seamus ficou tão nervoso que só conseguiu falar sobre golfe, e agora você estápensandoqueelesófalamerda.”“Falamerda?”NorajamaisouviraElizabethusaressaexpressão.“Tenhocertezadequeeleémuito
boapessoa”,retrucouela.“Masficofelizdesaberqueficouapavorado.Eletemumjeitobemcuriosodedemonstrarisso.”ElizabethnãodesconfiavaqueRay,naverdade,estiveranoclubedegolfecomanoiva,mas,quando
Noracomeçouaexecutarotrabalhodamanhã,nãoviumotivoparacontarissoaElizabeth.ÀmedidaqueoNatalseaproximava,NoraficoualiviadaaosaberqueUnaiapassaranoitedeNatal
comCatherineeosdiasseguintescomSeamus.A ideiadeque iriaprecisarentreterUnaeSeamusna
companhiadeJimeMargareteramaisdoqueelapoderiaenfrentar.NãosabiaseJim,emseustemposderebelde,haviatentadoexplodiroclubedegolfe,mastinhacertezadequeeleestiveradeolhoemalgunsdeseusmembrosmaisproeminentes.EorelatodeSeamusdosdesdobramentosdeumadesuaspartidasdegolfenãoseriarecebidocomnenhumentusiasmoporJim.HouvemuitaalegriaquandoFionaeAinechegaramemcasaparapassarasfériasdefimdeano;as
duas tinhamsidoconvidadasparafestasepara iremcomasamigasaumbarnacidade.QuandoNoraprotestou,alegandoqueAineeranovademaisparaaqueletipodebare,alémdisso,precisavaestudarlatim, Aine reagiu com energia, perguntando se ela e Fiona, depois do difícil ano letivo que haviamenfrentado,iamter,agora,queficarconfinadasnasalacomNora,Donal,Conoreatelevisão.Norasecalou.Ainenuncahavia falado comela dessemodo, eNora se admirou.Umanoite, quandoouviu asgarotaschegandoemcasaàsquatrodamanhã,ficoutentadaadesceredescobriraondeelastinhamido,masresolveuvoltaradormireperguntaraelasnodiaseguinte,quandovoltassedotrabalho.No domingo antes do Natal, Nora convidou Jim e Margaret para um chá. Assim que chegaram,
Margaret foiparaasaletaparaconversarcomDonal,comocostumavafazer,deixandoNoracomJim,quequasenãoreagiaaosesforçosdeNoraparaentabularumaconversa.Noentanto,eleseanimouaoverFionaeAine.NoranãolembravacomosurgiuaconversasobreaIrlandadoNorte.SabiaqueAinefaziapartedo
grupodedebatesdaescolaeumaveztinhavistoafilhadiscursar,masnãosabiaqueeramdebatessobrepolítica.“Umagarotaládaescola”,disseAine,“temumaprimaemNewry,eeladizqueéumavergonha.Não
sei como deixamos isso acontecer. Acho que uma sociedade que deixa isso acontecer tem muito aresponder.”“Engraçado”, disse Jim, “quando fiquei preso no Curragh, não gostávamos dos caras de Limerick,
principalmente porque eles queriam organizar uma liga de futebol, mas depois vimos que eles nãorepresentavam nenhum perigo. Mas nunca nos habituamos com os nortistas. Foram os nortistas queresistiram.”“Masissoépreconceito”,disseAine.“UmpaíscomoaIrlandaépequenodemaisparaserdividido.”QuandoMargaretentrounasala,perguntousobreoqueestavamconversando.“IrlandadoNorte,vejavocê”,disseNora.“Comosejánãotivéssemosobastantenatelevisão.”“Ah,meuDeus”,disseMargaret.“Fomoslánumaviagemdeônibus.Nãoseiemquepartedonorte
estávamos,masaspessoasjogarampedrasnoônibus.Fiqueimuitofelizquandoatravessamosafronteiradevolta,asalvo.Umamultidãodeprotestantes,imagino.”NavésperadeNatal,UnadeixouospresentesnacasadeNoraantesdeseguirparaKilkenny.Trouxe
paraFionaeAineamesmamaquiagemcaraqueelaprópriausava,easduas jovenspassarama tardeexperimentandoamaquiagemeescolhendoroupasparaFionausarnumencontroqueelaiaternocomeçodanoiteesobreoqualNoratalveznemficassesabendo,envolvidaqueestavanospreparativosparaodiaseguinte.QuandoJimeMargaretchegaramcomospresentesparaascrianças,DonaleConortiveramdeiratéo
carrodeMargaretparaajudá-losacarregarospacotes.TodosdemoraramalgumtempoparaperceberqueparaDonalsóhaviaumacaixadebalasechocolatessortidos.NoranotouMargaretestranhamentenervosaaodarexplicaçõessobreopresenteprincipal.“Vaiserumabelasurpresaparatodomundo”,disse.“Masoqueé,tiaMargaret?”,perguntouFiona.
“Eujásei”,disseConor.“Conteparanós”,pediuAine.“Éumacâmaraescura”,disseela.Soube-seentãoque,mesesantes,Margarethaviatransformadoopequenoarmáriodocorredordesua
casa,entreacozinhaeobanheiro,numacâmaraescuraparaa revelaçãode fotografias.QuandoNorasoube que isso significara a instalação de água corrente, de uma pia e do equipamento fotográfico,entendeuqueMargareteJimtinhamfeitoumadespesaconsiderável.Eraissoquesepassavanasaleta,quandoMargaret ficava conversando a sós comDonal todavezque ia lá.Omeninohavia cativado asimpatia dela, a ponto de levá-la a montar um lugar especial onde ele pudesse revelar os filmesfotográficos, sem consultar Nora, que certamente não deixaria Margaret fazer isso. Fiona e Aine seespantaramtantoquantoNora.Maistarde,quandoosmeninostinhamidoparaacamaeFionasaídoparaseuencontro,AineperguntouaNoraseeladefatonãosabiasobreacâmaraescura.“Elepodeacabarsedesinteressandodefotografia”,ponderouAine.“EaíoqueaMargaretvaifazer
comacâmaraescura?”“ElesvivemconversandoasóseDonaldeveterditoaelaqueeraissoqueelequeria”,disseNora.“Masninguémtemumacâmaraescuranaprópriacasa”,disseAine.“PoisagoraoDonaltemuma”,disseNora,“evaiserumaboadesculpaparaelesairdecasa.Talvez
sejaissooqueelemaisprecisa.”
*Líderrevolucionárioirlandês,dirigentedoIRA(ExércitoRevolucionárioIrlandês),assassinadoem1922.(N.T.)
10.Depoisdemuitadiscussão,Norahaviaconseguido receberumasegundapensão, e asduaspensões
tinhamsesomadoaoorçamentodoanoanterior.Noinício,elanãohaviasedadocontadequeodinheiroextraera retroativoaseismesese ficousurpresaquandorecebeupelocorreiochequescomoque lhepareceuquantiasvolumosasdedinheiro.QuandocontouaJimeMargaret,JimdissequeCharlieHaugheytinhasidoumministrodaJustiça laborioso,umministrodaAgriculturahorrível,mas, semantivesseacabeçanolugar,acabariaentrandoparaahistóriacomoumgrandeministrodaEconomia.Noralembrou-sedeterestadocomMaurice,anosantes,nacasadodr.Ryan,emDelgany.Eraafesta
denoivadodafilhadele.Odr.RyaneraoministrodaEconomianaépoca.Noraficarasurpresacomaopulência da casa e com o fato de terem sido contratados garçons e auxiliares de garçom. Todos osconvidados, exceto os que tinham vindo deWexford, vestiam trajes de gala.O dr. Ryan exalava umaespéciedenobrezaeelasesurpreendeuporMauriceeShayDoyle,quetinhavindodeEnniscorthyjuntocomeles,pareceremamedrontadosenervososdiantedoministro.Quandoestavamnaentrada,juntodoministro,comtodasuaimponência,osdoissemostraramdiferentes,menoresdoqueeram.Noratambémtinha se surpreendido com a facilidade com que o ministro descartou Haughey, dizendo que ele nãopassavadeumpirralhomuitoafoitoesemraízesnoPartidoRepublicanoIrlandês.“Eleseuniuanósporqueestávamosnopoder”,Noralembrou-sedaspalavrasdodr.Ryan.“Ésóisso
queelequer:poder.”Lembrava-setambémdosilêncionocarronaprimeirameiahoradaviagemdevoltaparacasae,dias
maistarde,daseriedadecomqueMauricetransmitiraaJimaspalavrasdoministro.Depoiselapercebeuque,quandoaconversasevoltavaparapolítica,inclusivecomCatherineeMark,oucomsuatiaJosie,Mauricenuncarepetiaoquetinhaouvidododr.Ryannemsequersereferiaàquilo.Tratava-sedeumainformaçãosecreta,nãodeviasercompartilhada.SóumavezNoratinhavistoMauricetãointimidado.Foinumareuniãodeumgrupocatólicolaicona
cidade,comodr.SherwooddoSt.PeterCollegenapresidênciadamesa,quandoumteólogofalousobremudançasnaIgreja.OteólogofrisouqueopoderdaIgrejadeviaterprecedência,virantesdosdemaispoderes,inclusiveantesdalei,dapolítica,dosdireitoshumanos.ParaosmembrosdaIgreja,disseele,aIgreja tinha que vir primeiro, não apenas nas questões religiosasmas em todas as questões. Isso nãosignificava,explicou,queelaeraoúnicopoderequealeicivilnãotinhaimportância,masaIgrejaeraopoderprimordial.NoracutucouMaurice,quandochegouahoradasperguntasedoscomentários,porquesabiaqueelenãoconcordavacomoqueteólogotinhadito,comoelamesmatambémnão,seguramente.Massepôrdepéempúblicoedirigirumaperguntaaumteólogonãoeraalgoqueelefossecapazde
fazer.NorajamaisesqueceuaexpressãonorostodeMaurice;elenãoestavasóperplexoouimpotente,mastambémintimidado,comohaviaficadocomodr.Ryannosaguãodacasadele,emDelgany.EnquantoJimfalavacalorosamentesobreasesperançasdeHaughey,Norasabiaque,nofundo,elenão
oaprovava,comonãoaprovavaamaioriados jovensministros.ElaprópriagostavadeHaugheyedoquesabiasobreele;admiravasuaambiçãoeseuinteresseemmudarascoisas.Gostavaaindamaisdeleagora,quetinhalidoseurecentediscursonoParlamento,emqueHaugheyapresentouoorçamentogeraldogovernoemencionouasviúvas.Maisumavez,Haugheyaumentouapensãoeaindadeterminouqueoaumento fosse retroativo. Se ela soubesse antes daqueles aumentos, pensou Nora, talvez não tivessevendido a casa deCush.Quando recebeu o último pagamento retroativo,Nora decidiu depositá-lo namesmacontabancáriaemquehaviadeixadopartedodinheirorecebidopelavendadacasadeCush,semsaberoqueiriafazercomele.QuandoJimeMargaretforamvisitá-la,NorafaloudenovosobreHaughey.Jimnãoseimpressionou.“Eleestáquerendoganharpopularidade, é sóoque fazagora.Viuma fotografiadelemontadonum
cavalo,comoumlorde.”“Ah,aquilofoimesmomuitoridículo”,concordouMargaret.“Dele,nadavirádebom”,disseJim.“Bem,éoúnicopolíticoqueconheçoquesepreocupoucomasviúvas”,lembrouNora.“JimouviufalardeleemCourtown”,disseMargaret.“Bebendo champanhe”, contou Jim, “e pedindo mais, com todo tipo de esnobes, empreiteiros,
advogados e sujeitos loucospara se dar bem.E todomundoolhandopara ele.Pareceuuma tremendaencenação,issosim.”“Nãovejonenhumproblemaemelesedivertir”,rebateuNora.SeMauriceestivesseaquiagora,defenderiaHaughey,pensouNora.AocontráriodeJim,eleachava
erradoquehomensdesetentaanosocupassempostosdepoderedefendiamudanças.Jimbateunobraçodapoltronacomodedoindicadordamãodireitaeassovioubaixoaosoltarum
suspiro.Nãoestavahabituadoaverumamulherdiscordardele,eNorasorriuaopensarque,casoelequisessecontinuarvindoàcasadela,eramelhorqueaprendesseatoleraraquilo.Certanoite,emmarço,elafoiatenderaportaereconheceuomotoristadecaminhãodaempresados
GibneycomquemelahaviaconversadosobreosprotestosemDerry.Quandooconvidouparaentrar,porummomento pensou que algo tivesse acontecido com um de seus filhos e recapitulou onde cada umestava.DonalestavanacasadeMargaret, revelandofotografias,Conorestavaemcasa, ládentro.Eraimprovável que o homem conhecesse Fiona ou Aine, ou mesmo Una, Margaret ou Jim. Ele parecianervoso.“Creioquenãoseiseunome”,disseNora.“SouMickSinnott.Conhecibemseupai.FomosvizinhosnaRossRoad.Eochefe,osr.Webster,Deus
protejasuaalma,foimeuprofessor.”“Osenhorconheceumeupai?”“Faz muito tempo, na verdade. Já não tem muita gente que o conheceu. Eu e ele vivíamos nos
visitando,umindoàcasadooutro.Eraassim.”Derepente,omotoristaficouàvontade,masNoranãoconseguiaimaginarporqueeletinhaidoàsua
casa.“Eoqueeupossofazerpelosenhor?”Elatentounãoparecermuitoautoritária.“Vouexplicar.Osoutrosmedisseramqueeramelhoreunãovir,masquandofuiparacasaconteipara
a minha mulher e discutimos o assunto. Olhe, todo o pessoal da empresa dos Gibney, com poucasexceções,estásefiliandoaoSindicatoIrlandêsdosTrabalhadoresemTransportes,evamosfazer issoemsegredo,amanhãànoite,nacidadedeWexford.Seelesdescobrirem,vãoquerernosdeter,vãonosdividir,vãofazerpropostasmelhoresparaalgumaspessoasquenãosãocapazesdedizernão.Osoutrospensaramemdeixarvocêdefora,porvocêsermuitoamigadafamília,sótrabalharmeioexpedienteesernovanaempresa.Masresolviavisarvocê.Vivocêminhavidatoda.Melembrodoseucasamentoetudo. De qualquer modo, para encurtar a conversa, vamos nos filiar ao sindicato, e conheço você obastanteparatercertezadequenãovaicontarnadaparaafilhadopatrão,quandofortrabalharamanhã.Esequiservirconosco,temcaronaparavocê;senãoquiser,ninguémvaificarsabendoquefaleicomvocê.”“Aquehoras?”“Agentetemdeestarláàsoitodanoite.”“Alguémvemmepegar?”“Vem,sim,elesvãoadorar.”“Todosostrabalhadoresdoescritóriovãosefiliar?”,perguntouNora.“Todosparaquemagenteperguntou”,elerespondeu.Elaficoucaladaporummomento.“Querumtempoparapensar?”,perguntouele.“Não,euestavapensandoquantotempovamosterficarlá.”“Parasersincero,nenhumdenósfezissoanteseaúnicacoisaqueeuseiéqueelesqueremtodosnós
lá.NãoqueremsaberdeninguémdizendoquevaisefiliaredepoisprocurandoosGibneyparadizerque,naverdade,elesnãopretendiamfazerisso.”“Estácerto”,disseNora.“Vouarranjaralguémparatomarcontadosmeninos.”“Eunãoestavasugerindoquevocêpodiaserumadaspessoasqueiadizerumacoisaefazeroutra”,
explicouele.“Euseiquenão.”“Seu pai teria orgulho de nós agora. Ele não dava moleza para os patrões desta cidade. Não era
nenhumcabeça-duranemnada,eraumsujeitodecente.”“Eueraafilhamaisvelha,porissomelembrobemdele”,disseNora,sorrindo.“Elefariaoitentaeste
ano,seestivessevivo.Édifícilimaginar,nãoé?”“Émesmo.”“Entãoamanhãestareiaquiesperandoàsseteemeia.”“Temgentequevaificarsurpresaquandoeucontar.Tentamosfazerissoháalgunsanos,sóunspoucos
denós,eovelhoameaçounosdemitir.Dissequeiafechartudoefomosobrigadosarecuar,porquenãotínhamos nenhum apoio. Mas com aquele filho dele, o especialista em eficiência, e a ideia de queninguém mais tem segurança no emprego, acho que dessa vez conseguimos apoio. E tem um caraimportanteemWexfordchamadoHowlin,braçodireitodeBrendanCorish.Seiqueessenãoémaisoseupartido,maspodemestarvindomudançasporaí,éoqueandamdizendo.Detodomodo,essecaraládeWexford vai fazer osGibney pensarmelhor namaneira como estão tratando a gente, especialmente ofilhotedeles.”Noraabriuaportaparaele.“Agentesevêamanhã,dona”,disseomotorista,descendoaescadinhadavaranda.Depoisqueelefoiembora,porummomentoNorasentiu-seleve,quasefeliz.Algonotomdevozde
MickSinnott— sua confiança, sua eloquência e sua educação— fezNora se lembrar de anos antes,quandoelaerajovemefrequentavaosbailes.Masnãoerasóisso;eraaideiadeelahavertomadouma
decisão sozinha, de não ter pedido conselho a ninguém. Desde que vendera a casa de Cush, era aprimeira vez que uma oportunidade qualquer surgia tão fácil, eNora ficou feliz de ter aproveitado achance.Talveznãofossealgosensato;talvezfizessemaissentidoelasemostraragradecidaaosGibney.Masagoraelaestavagostandodenãosesentirgrataaninguém.CombinoucomDonaleConor,maisumavez,queelesnãoiamprecisardebabáequeDonaldeveria
voltardacasadatiaMargaretàssetehoras.Noranão sabiaoquevestir e achouengraçadoqueninguém,nemsuas irmãs, certamente,nemsuas
filhasnemsuatia,poderialhedarconselhossobrecomosevestirparaumareuniãodoSindicatoIrlandêsdosTrabalhadoresemTransportes.Umpoucodesleixada,pensouela.Roupasqueninguémnotasse.Quandodesceuaescadacomumasaiaeblusacomunseumpulôverquente,gostoudaideiadequeos
Gibneynem imaginavamoque estava acontecendo.Ela não sabia bem se fazer parte de um sindicatofossefazeralgumadiferençaparaosfuncionáriosdaempresadosGibney,eseafamília,comotempo,acabariaseacostumando.Masofatodeaquiloestarsendofeitopelascostasdelesosdeixariairritados,talvezatéescandalizados.PeggyGibney,pensouNora,nuncamaisfalariacomelaquandosoubessequeNorahaviaparticipado,eissolhedeuumaestranhasatisfação.NoratinhapensadoqueopróprioMickSinnottiriapegá-lae,quandobateramàportaeelafoiatender,
ficousurpresaaoverPassodePato.Eàespera,nobancotraseirodocarro,estavaajovemguarda-livrosqueasrta.Kavanaghmandaratesouraraspastas.DuranteocaminhoparaWexford,NoraseespantoucomoquantoelespareciamdetestarosGibney,
sobretudoThomaseElizabeth.“Elesegueagenteemtodolugar”,reclamouPassodePato.“Umdiaeutivedeatenderpedidosem
Blackwater,Kilmuckridge,RiverchapeledepoisaindaemGorey.Então,comoeraumbelodiadeverão,leveiRitaeascriançascomigo.OplanoeradeixartodosemMorriscastleedepoisapanhá-losnofimdodiaparadarmosummergulho.QuandoeuestavapassandoporTheBallagh,percebiquehaviaumcarrologoatrásdemim.Sabequemera?OpróprioThomasGibney,quemeseguiuportodoocaminho.Elenuncatocounoassuntoquandomeviu,maspassouodiainteirofazendoisso.”“EaElizabeth então”,disse a jovemguarda-livros. “Elanuncanemolhapara agente, quantomais
falar.”“Gostomuitodetrabalharcomela”,declarouNora.“Não ligo nem um pouco para a srta. Kavanagh”, disse a guarda-livros. “Quer dizer, a gente leva
tempoparasehabituarcomela.Elasabedecadadetalhedoqueacontecenoescritórioenuncaesquecenada.Sabe,elaiasercontadora,masaíopaimorreueelatevedevoltarparacasa.”“Não”,disseNora.“ElasempretrabalhounaempresadosGibney.Jáestavaláquandofuitrabalharlá
pelaprimeiravez,muitotempoatrás.”“Certo,maselaarranjouumempregoemDublinquando jáestavacomosGibneyfaziaumtempoe
passouumanolá.Masdepoistevequevoltar.Eamãedelaaindaestávivaeelaprecisacuidardela.”“Eunãosabiadisso”,disseNora.“Meupai”,prosseguiuaguarda-livros,“trabalhaparaosArmstrongeeledizqueémelhortrabalhar
paraosprotestantes.Nãosei.OsArmstrongdisseramqueseopessoaldelesseuniraumsindicato,elesfechamasportasevãoemboradacidade.NãoachoqueosGibneyfaçamisso.”Nora lamentou não ter perguntado aMickSinnott onde ia ser a reunião emWexford. Podia ter ido
sozinha, em seu carro. Percebeu que os dois queriam falar mais sobre os Gibney, mas se sentiamconstrangidosporNoradividirasalacomElizabethesedarbemcomafamília.OcorreuaNoraqueforaumerro ir ládaquele jeito.Tinhaparecido tãocertonomomentoemquedecidiu fazeraquilo…NoragostoudeMickSinnottterresolvidochamá-la;seriaimpossíveldizernão.Masagoraseperguntavase
não era um erro e se não pareceria uma coisa errada para a maioria das pessoas. Se ela sentia anecessidadede se filiar aumsindicato, poderia fazer issomais tarde.Teria sido fácil concluir queomelhoreraesperarumpouco,afinaleranovanaempresae trabalhavasómeioexpediente.QuandoseaproximavamdeWexford,Norasentiuquesefiliaraosindicatonãofarianenhumbemaeles;lhesdariacoragemouostornariabelicosos,masnofim,provavelmente,nãolhesserviriadenada,anãoserparacriarproblemas.Noragostariadepodervoltarparacasa,masnãohaviacomopediraPassodePatonemaninguémquealevasseparaEnniscorthyantesdeareuniãocomeçar.Osalãonocaisestavacheioatéametade,quandochegaram.Assimqueentrou,Norasentiuqueas
pessoasolhavamparaela.TrabalharnamesmasaladeElizabethadeixaraisolada,eNoranemsabiaonomedeváriaspessoasquetrabalhavamnoescritório.Mauriceteriadedicadoduassemanasdereflexãoatésedecidirairlá.EleteriadiscutidooassuntocomelaedepoiscomJim.Nadanuncaforadecididodemodorápidoefácil,desdeacompradacasaatéadataemqueiriamparaCushtodososanos.EnãoerasóMaurice.Amaioriadaspessoas,Noraacreditava,precisavadeumtempoparapensarantesdetomarumadecisão.Provavelmentetodomundonaquelasalahaviarefletidoporsemanassequeriaounãosefiliaraosindicato.Noratomaraadecisãonumsegundo,eagoraviaseuatocomopuratolice.Porummomento,seperguntoucomoexplicariaaquiloaMauriceepensouemcomoeleficariaperplexocomoqueelahaviafeito.Então,numlampejo,quandolembrouquenãohavianinguémaquemdarexplicações,Norasesentiualiviada.Depoisdealgumtempo,Norafoimaisparaafrenteesentou-secomoutrasfuncionáriasdoescritório,
paraqueninguémachassequeelaestavaalicomoespiã.ComsotaquedeWexford,umhomemexplicavaqueelesviviamnumtempodeideiasrenovadoras,comtreinamentogerencialeachegadaaosescritórioseàsempresasdoschamadosespecialistasemeficiência,gentequenãosabiaquasenadadenegócioseabsolutamente nada de relações trabalhistas. Para os patrões, disse ele, os métodos antigos estavammudando,masparaomovimentosindicalasprioridadescontinuavamasmesmas,comotodomundoquefaziapartedoSindicatoIrlandêsdosTrabalhadoresemTransportessabia.Masosindicatonãoviviasóda sua história, prosseguiu o homem. Para sua reputação, dependia do trabalho que seus membrosexecutavamdiaapósdiaemtemposdepazindustrialouemtemposdecrise.“Em toda crise, chega uma hora em que só uma coisa pode vencer”, disse. “Na luta contra os
empregadores,chegaumahoraemqueaforçabrutaeaignorânciapodemvencer.”Nora olhou para ele e escutou. Imaginou comoMaurice se interessaria por aquela reunião e pelo
discurso.MasentãopensouemElizabethGibney,apessoacomquemagoraelapassavaamaiorpartedodia. Imaginou que imitação bem-feita Elizabeth faria daquele homem e como acharia engraçada aexpressão“forçabrutaeignorância”.Todos em volta escutavam com atenção; houve aplausos quando o homem terminou, e as pessoas
concordaramaentraremfilapara,umaauma,assinarseusnomesesetornaremmembrosdoSindicatoIrlandêsdosTrabalhadoresemTransportes.Namanhãseguinte,tudoestavatranquilonoescritório.PelojeitodeElizabeth,ficouclaroqueelanão
sabiaoquehaviaacontecidonanoiteanterior,emWexford.FicoudebomhumoramanhãinteiraefalousobreplanosdepassarumfimdesemanaemParis,comRoger,nooutono,everumapartidaderúgbi.“Seeuficar lácomRoger,eleficaforadeperigo.Roger temressacasterríveis,opobrezinho.Ese
formosdoisdiasantesdapartida,possofazerumaporçãodecomprasemtodasaslojaschiques.”Namanhãseguinte,Elizabethchegoutardeedeóculosescuros.“Imaginoque já saibadanovidade”,disse.“Ninguémdormiu láemcasananoitepassada.Ovelho
William ficou enlouquecido. Começou acusando o Partido Republicano Irlandês, até que o jovemWilliamdissequeosindicatoerafiliadoaoPartidoTrabalhista,entãoelepassouaacusarThomasdetrazer ideiasmodernas deDublin. Thomas, claro, permaneceu calmo, o que é sempre um erro com ovelhoWilliam.PorissoelegostatantodaFrancie-Calcinha,quevivehistérica.Thomasdisseaelequeia cortarmetade dopessoal do escritório nos próximos anos e, devagar, passou a descrever todos osmétodosque iaempregar,atéqueovelhoWilliamdisseque jáestava fartodeouviraquelaconversa.AmeaçouvenderaempresaesemudarparaDublin,irmoraremDartry.Dissequesóosprédiosetodosos ativos iam dar uma bela soma. Ele tem um primo emDartry e acha o lugar um refúgio de paz etranquilidade.Eacoisapodiaterficadonisso,seojovemWilliam,meuqueridoirmão,nãotivesseditoquenósíamosterqueconsultaralguémparasabercomolidarcomosbolcheviques.Issomefezrirtantoqueaminhamãeameaçou fechara cozinha, sehouvessemais confusão.EovelhoWilliam ficoupiorquandoouviuisso.Eleexplicouquepoderíamosganharodobrodedinheiroseelevendesseaempresa,sobretudoapartedomoinho,einvestisseolucro;equeaúnicarazãodelenãofazerissoeraalealdadeàspessoasquetrabalhavamnaempresaealealdadeàcidade.Dissequesesentiarealmenteapunhaladopelas costas e depois deu o nome dos líderes. Pelo visto, há uma criatura repugnante chamadaMickSinnott,ummotoristadecaminhãodaRossRoad.Umpalhaço.OvelhoWilliamficoupálidoaessaalturaedissequenãoseimportavadamamãefecharacozinha.DepoisThomasdissequeelemesmoiademitiraqueleMickSinnottdemanhãetransformá-lonumexemplo;equeiadartelefonemasparagarantirqueninguémcontratasseosujeito.‘Voufazerpicadinhodele’,ameaçou.Aessaaltura,ojovemWilliamdissequeaquilotambémnãoeraofimdomundo,muitasempresaslidavamcomsindicatos.MasaúnicacoisaqueovelhoWilliamconseguiafalareraquetodoseleseramunssafados,todos.Dissequenãoiatratarcomnenhumsindicatoequeoassuntoestavaencerrado.EntãoThomasquispegaraschavesdocaminhãodeMick Sinnott paramudá-lo de lugar antes que o homem chegasse para trabalhar demanhã,mas ojovemWilliamdisseparaelenãobancaroidiota.Maistarde,ànoite,mamãedisseumapalavraquenãosabíamosqueelaconhecia.Usou-aparadefinirtodasaspessoasdacidade.”NorapensoueminterromperElizabethparacontarqueelatambémtinhaidoàreuniãoemWexforde
assinadoseunomejuntocomosoutros.NãosabiacomoElizabethiriareagirquandoficassesabendo,eachou que talvez Elizabeth tivesse uma ideiamais superficial do assunto. Porém,mais tarde naquelamanhã,quandoaouviuconversarcomRogerao telefone,sedeucontadecomoElizabethsesentiadefato.“Fizeramissopelascostasdele”,disseElizabeth.“Foramànoitequenemratazanase,não,elenão
dormiunada,ficousubindoedescendoaescada,entravanomeuquarto,noquartodeThomas,noquartodo jovemWilliam, e imaginando comopodia estar acontecendo uma coisa daquelas, comoninguémotinhaprevenidodenada,nemanenhumdenós.Nãohouvelealdade,disseele,esenãofossepelosmeusirmãos,elefechariaaempresaepronto,depoisdeterdobradoseutamanho,desdequandoaherdoudopai.Ficoufalandootempotodoqueéumótimomomentoparavender.Demanhã,mamãemedissequeaquela história havia partido o coração do papai. Ele não quer ver aquele lugar nuncamais. Algunsfuncionários, ele já conhece há quarenta anos e há outros que estão na empresa hámais tempo ainda.Todosoapunhalarampelascostas.Mamãetemumaamigaqueéfreira,ummorcegovelhochamadoirmãThomas,eprecisei lhe telefonarepedirqueelafosseláemcasa,paravocêvercomoascoisasestãopéssimas.”Quandoestava indoparacasa, àumada tarde,Nora topoucomThomasGibney,queparoueolhou
paraela.Suaexpressãosugeriaumaraivafria.NorasabiaqueempoucotempoElizabetheorestantedosGibneyiriamdescobrirqueelaestavaentreaquelesqueoshaviamtraído.
11.Acidadetinhaficadomaisfácil.NaCourtStreet,ounaJohnStreet,ounaBackRoad,ninguémmais
detinhaNoraparalhedarascondolências,ninguémficavaolhandofixoparaosolhosdelaàesperadesuareação.Agora,seelaencontravaalguémeapessoaparava,eraparaconversarsobreoutrascoisas.Às vezes, quando a pessoa já estava pronta para ir embora, perguntava como ela estava passando oucomoestavamosmeninos, e aquilo era ummodode recordar o quehavia acontecido.Porém,mesmoassim,elaaindaficavatensaquandoviaalguémvindoemsuadireção,dispostoarecordarsuaperda.Àsvezeseraintrusivoedoloroso.Opioreraamissadedomingo.Emqualquer lugarquesesentassenacatedral,aspessoasolhavam
paraNoracomumacompaixãoespecial,ousemexiamnobancoparaabrirespaçoparaelasentar,ouaesperavamdoladodeforaparaconversar.Quandoaquilosetornouexcessivo,quandotodososolharespareciamdestinadosadeixá-laaflita,NorapassouairàcapelinhaemSt.Johnouàmissadasoitodamanhã, quando a catedral ficava commetade dos bancos vazios. Ela escolhia um lugar e, no fim, iaemborasemsersurpreendidapornenhumaemboscada.Um dia, ela estava voltando da lojaBarry’s, naCourt Street, depois de comprar um novo jogo de
pilhasparaorádiotransístorqueelaagoragostavadeteraoladodacama.EstavapensandoemFiona,queouviaarádioCarolineearádioLuxembourgnosfinsdesemana,quandoviuJimMooney,umex-colegadeMaurice,vindoemsuadireção.Elemoravasozinho,oucomumirmão,nazonarural,comohaviamoradopormuitosanos,desdequevoltaradoseminário semseordenarpadre.Maurice jamaisgostou dele; Nora achava que tinha alguma coisa a ver com sua recusa de se filiar ao sindicato dosprofessores,masnãosabiabem.AocontráriodamaioriadaspessoasquetrabalhavamcomMaurice,JimMooneynãoescreveuparaNoraquandoelemorreu.“Puxa,euestavajustamentepensandoemvocê”,disseele.“Comovai?”,eladisse.Tentouparecerformal.“Euestavaprestesatelefonarparavocê.”Noranãodissenada.Nãoqueriaqueeletelefonasse.“Pergunteinasaladeprofessoresoqueeudeviafazer,masninguémtevecerteza.”Noraseperguntouseotomdevozdele,aomesmotempocortantee insinuante, teriadesagradadoa
Mauricetantoquantodesagradavaaelaagora.“É um tremendo morceguinho, aquele Donal”, disse ele. “Fica sentado no fundo da sala de cara
amarrada.Umdia,quandofuiver,elenemtinhaabertoolivro.Estavalendooutrolivro,seilá.Enumaoutravezelemerespondeudeummodomuitoimpertinente.Nãoseioquevamosfazercomele.”
Noraestavaprestesadizeralgumacoisa,masentãomudoudeideia.“Emalgumas famílias”, prosseguiu ele, “osmeninos é que são inteligentes.Mas na sua asmeninas
tambémsão,comoojovemConor,que,medisseram,émuitoesperto.Eeusoubetambémqueasmeninassãomuitoaplicadas.Adedicaçãoajudademais.”Amaneiracomopronunciouapalavra“dedicação”,comosenumsermão,quasefezNorasorrir.Ficou
imaginandooquepoderiaterlevadoMooneyadeixarMaynoothenãoseordenarpadre.“Penseiemdizerissoavocê,casoaencontrasse.NãosouoúnicoquereclamadeDonal”,disse.Ela tentou pensar em algo para dizer que calasse a boca de Mooney. Porém a única coisa que
conseguiufazerfoificarolhandoparaele;estavafuriosa,porqueeladeviaestarparecendomuitodócilaosolhosdele.“QuematériaoDonalfazcomosenhor?”“CiênciaeLatim.”Noraassentiucomacabeça.“Masamatérianãoimporta.Eletemumjeitoruim.Falta-lhealgumacoisatambémnodepartamento
dasboasmaneiras,assimcomonodepartamentodainteligência.”“Bem, muito obrigada por me comunicar”, disse Nora, pronunciando cada palavra com cuidado.
Começouasedesviardeleparairemfrente.“Bomdiaparaasenhora”,disseMooney.Ninguém nunca havia reclamado deDonal.Mesmo quandoNora se preocupou com sua gagueira e
achouqueofilhopodiaestarcomproblemasnaescola,nãohouveanotaçõesnegativasemseuboletimdeNatal.Elenuncatinhasidoumdosprimeirosalunosehouveanosemquesuasnotasforambaixas,masosresultados que obteve na prova do Certificado do Primário e da Bolsa de Estudos do Conselho doCondadoforambons.Elepassavaquasetodasasnoitesnasala,nafrentedeseuslivrosescolares.Noraachavaqueestivesseestudando,masmuitasvezesimaginavaquetalvezDonalficassevendoseuslivrosde fotografia. Ela não sabia o que fazer agora, não tinha certeza se devia contar a Donal que haviaencontradoJimMooneyouseeramelhornãodizernada.Poucosdiasdepois,NoraviuDonalvindodooutroladodarua,voltandodaescolaparacasa.Elenão
percebeuamãeepareciaacabrunhadocomalgumacoisa;estavaconcentradonosprópriospensamentos,afisionomiatensa.QuandoFionafoiparacasanofimdesemana,NoraquaselhecontouoencontrocomJimMooney,mas
comoFionaiasairnosábadoànoiteepassouamanhãdesábadonacamaouvindorádioeatardedesábado comamigasno centro,Nora achoumelhor não incomodar a filha.Alémdisso, nãoqueria queFionadissessealgosobreDonalqueaumentasseaindamaissuapreocupação.Nofimdatardedesábado,quasecomodesculpaparasairdecasa,Norafoifazerocabeloedeixou
Bernieiracrescentando,bemdevagar,umatinturacordecobre.Quandoseolhounoespelho,ficouemdúvida,maisaindadoquehaviaficadonoprimeirotingimento.Maspelomenos,pensou,tinhapassadootempopreocupadacomoutracoisaquenãoDonal.Ànoite, quandoumadas amigasdeFionapassou lá,Fiona aindanãoestavapronta. Iamdançarno
White’s Barn. Conor foi escutar a conversa e Donal também espiou para ver quem era, mas depoisescapuliu rápido da sala. Quando Fiona apareceu com seu melhor vestido, com brincos de argola emaquiagem, Donal voltou à sala e sentou-se no sofá com ar carrancudo, enquanto as duas jovensadmiravamasroupasumadaoutraefalavamcomNoraporumminutoantesdeiremembora.Depoisquesaíram,NorasevirouparaDonal.
“EncontreiJimMooneyduranteasemana”,disse.“Eleéumgr-gr-grandepalerma”,disseDonal.“Elefalouquevocênãoestáprestandomuitaatençãonaaula.”“Detestoele.Éumcr-cr-cretino.”“Éprofessordaescola.”Donalcomeçouagaguejardemaiseentãotentousecontrolar,masficouagitado.“Seacasadelep-p-pegassefo-fogo,iaserm-m-muitolegal.Ouent-t-tãoseeleseaf-f-fogasse.”“Talvezfossemelhorvocêprestaratençãonaaula”,sugeriuNora.Na quinta-feira, quandoMargaret foi fazer uma visita, parou na saleta para conversar comDonal.
Depois,quandoMargaretencontrouNoranaoutrasala,comentoucomoDonaleraengraçado,ecomoerainteligente.NoraresistiuaoimpulsodedizerquenãoachavaDonalengraçadoequeJimMooneynãooachava inteligente. Margaret contou sobre as horas que Donal passava na câmara escura e sobre astécnicasqueusavapararevelarosfilmes.NoranãolhecontouqueDonaljamaishaviamostradoaelanenhumafotografiaquetivessereveladonacâmaraescuraqueMargarethaviaconstruídoparaele.NoralogosecansavadobomhumorinocentedeMargaret;eleafaziatervontadedepegarumlivroou
veroIrishTimesdodia.Emnoitescomoaquela,eraumalívioquandoJimchegavaeNorapodiairparaacozinhafazercháparaelesedepoisirverseosmeninosjátinhamidoparaacamaesealuzdoquartoestavaapagada.Quandoelesselevantavamparairembora,Norasesentiacontenteporterdenovoasalasóparasi.
Na saída, porém,quando sedespediadeles, vinha a consciência agudadeque, depoisque fechasse aporta, iria ficar sozinhaemcasa, anão serpelosmeninos,queestavamdormindo, equeelanão teriamaisnadapelafrenteanãoseranoite.Elizabethnuncamais faloudosindicatoenãodeumaisnenhumainformaçãosobrecomoopaieos
irmãos,etambémamãe,estavamencarandoanovasituação.Norafoiaumareuniãodosindicato;elafoirepletadediscussõesacaloradassobrequemfariapartedocomitêouocupariadiversospostos.Elanãofoimaisàsreuniões.NoentantogostavadeverMickSinnott,quenãoforademitido,circulandoporalicomumaconfiança
cadavezmaior,comooprincipalrepresentantedosindicato.Noraachouque,depoisquesefiliaraaosindicato,todosnoescritóriopassaramafalarcomelaouasorrirquandoaencontravam.Osindicatofezpouca diferença para as pessoas no escritório. Sem nenhum protesto, o número de funcionários foidiminuindoaospoucos.Seuma jovem iaemborapara secasar,nãoera substituídae seu trabalhoeradividido entre os outros. Thomas se mostrava cada vez mais rigoroso com o horário de trabalho.Observavaàsescondidas,mandavabilhetesparaqualquerumquechegasseatrasadoouquefossevistoconversandoouquecometesseerrosnoserviço.Elizabethreadquiriuseubomhumoranteriore,comoantes,contavaaNoraseusplanosparaosfinsde
semanae seus romances,masThomasnuncamais faloucomNora.Em troca,elapassavaporThomascomoseelenãoexistisse.Noentanto,algumasvezesemqueThomasentravanasalaqueeladividiacomElizabeth,Noragostavadecumprimentá-locomcordialidade,chamando-opeloprimeironome,comosenadativesseacontecido,masThomasnãorespondia.ElizabethadquiriuohábitodeperguntaraThomasqualeraoassuntoassimqueeleentravanasala.Seelaestivesseaotelefonefalandoaltocomumadesuas amigas, ou contando aNora uma longahistória,muitas vezes as duas viama sombradeThomasparadado ladode fora, através dovidro foscodaparte de cimadaporta.Nora se perguntava se eletambémtinhaumafichadasduas,comtudoanotado,comofaziacomtodososempregados.
12.Quando Nora viu Nancy Brophy caminhando na direção de sua casa, afastou-se da janela. Não
conseguia imaginar por que Nancy vinha visitá-la. Pensou em deixar Nancy bater na porta, ficar láesperandoeescutando,depoisbaterdenovo,atédesceraescadinhadavarandaeirembora,virando-separaumaúltimaolhadanajanela,embuscadealgumsinaldevida.Norapodiasentiropuroalívioquedominariatodoseuespíritosetivessecoragemdefazerisso.Naprimeirabatida,Norafoiatéaporta,abriueconvidouNancyparaentrar.“Olha,esperonãoestarincomodando”,disseNancy,“eunemvouentrar,sóqueriapedirumfavor.”“Sehouveralgoqueeupossafazer…”,respondeuNora.“Ah,temsim”,disseNancy,animada.“Masnãofiquecomessacaraassustada.”Nora não soube o que dizer.Nancy estava bem-humorada demais, quase tola, sorrindo para ela na
entradadacasa.“Você sabe que todo ano eu faço aquele teste de conhecimento com a Phyllis Langdon nos salões
paroquiais.EleépatrocinadopeloGuinness.Elafazasperguntaseeumarcoospontos.Elatemumavozmaravilhosa, não precisa demicrofone nemnada e nós trabalhamos bem juntas, porque eu jamaismeenganonacontagemdospontos.”NoranãoconseguiaimaginarporqueNancyestavalhecontandotudoaquilo,comosefossemnotícias
urgentesefascinantes.“Poisbem,aquestãoéqueeunãopossoiramanhãànoite.PrecisopegaroúltimotremparaDublin
hoje,porqueBridie,minhairmã,estánohospitalBonSecoursparafazerumacirurgia.EntãopenseiemarranjarumasubstitutaantesdecontaraPhyllis,eaBettyFarrelldissequeouviudizerlánaempresadosGibneyquevocêéumaverdadeiramagacomosnúmeros,porissoeuvimaqui.”Noraolhouparaelacomarsério.“Vamos,nãomedigaquenãopode!”,disseNancy.“Vaisersóumanoite?”,perguntouNora.“Sóumanoite”,respondeuNancy.“Vaiserbomparavocêdarumasaídaeencontrarmaisgente,se
misturarumpouco.”“Nãotenhosaídomuito.”“Seidisso,Nora.”NahoraemqueNancyestavaindoembora,játinhamcombinadoque,amenosquehouvessealguma
mudança,PhyllisLangdonpegariaNoraàsseteemeiadanoitenodiaseguinte.SóquandoNancyestavanaescadinhadavaranda,Noraperguntouonde seriao testedeconhecimentos eNancy respondeuque
seriaemBlackwater.“Eunãosabiaqueeratãolongedaqui”,disseNora.“Sónesteano.Éumaexperiência”,disseNancy.EnquantoestavajuntoàportavendoNancydesaparecer,Noraficoutentadaairatrásdelaedizerque
haviaesquecidoquetinhaoutracoisaparafazer,algomaisurgentedoqueficaranotandoospontosdeumtestedeconhecimentos.Tentoupensarnoquepoderiaser,masemseguidaconcluiuqueeratardedemais.Enquantofechavaaporta,lamentounãoterperguntadodesdeoinícioemquecidadeiaseroteste.Teriadito,então,quenãopoderiairaBlackwater.ErapertodemaisdeCushedeBallyconnigar.ElapensouemBlackwaternoverão,quandoaspessoasdeDublinoudeWexfordficavamalojadasem
casasdosarredoreseeranormalasmulheresiremcomosmaridosaopubEtchingham’snasexta-feiraousábadoànoitebeberemBabychamouconhaquecomsodaedeixaremosfilhospequenosaoscuidadosdeumababáoudeumfilhomaiscrescido.Muitasvezes,seerajulhoeseestivesseumanoitebonita,elaeMauricecaminhavamostrêsquilômetrosdeBallyconnigaratéláedepoispegavamcaronacomalguémnavolta.Ou,quandochegavaagostoeasnoiteserammaisescuraseoorvalhopesadobaixavabemcedosobreagramadaalamedaquelevavadaquadradehandebolirlandêsatéopenhasco,NoraiadirigindoovelhoMorrisMinoreosdoisficavammaisrelaxados,sabendoquepodiamiremboraquandoquisessem.Maurice gostava da companhia das pessoas, sobretudo se houvesse gente de Enniscorthy ou deBlackwater, então aospoucosNora tambémpassou agostar da companhiadeles e se alegravadeverMauricecomtamanhobomhumor.Elaexplicouaosmeninosqueiasair.Elesprecisavamprometerquenãoiambrigar,disseNora,eque
iriamparaacamanohoráriodesempre.“Seráqueagentenãop-p-podeficaracordadoumpouquinhomais?”,perguntouDonal.“Deixoparavocêsdecidirem”,respondeuNora.“Masnãopodesertardedemais.”“Eutambémpossodecidir?”,perguntouConor.“Osdoispodemdecidir.”Àsseteemeia,Noraestavaolhandopelajanela,quandoPhyllisLangdonestacionouumFordCortina
vermelhojuntoàcalçada.Nora tinhapostoumvestidodeverãoe levavaumcardigãnobraço,paraocasodeesfriar.Osmeninosestavamnasalamaior,comFiona,quetambémiasair.“Jáestouindo!”,gritouNora.“Nãosaiamagoranemfaçambagunça.Quandoeuvoltar,vocêsjávão
estardormindo.”Nora tinha encontrado Phyllis Langdon diversas vezes ao longo dos anos. O marido dela era
veterinário e os dois eram de Dublin. Nora notou a eficiência com que Phyllis manobrou o carro eadmirou os lindos anéis nos dedos dela, enquanto ela mudava a marcha e o carro partia rumo aBlackwater.“Ésurpreendente”,dissePhyllis,“vercomoelessabemtantacoisasobreesportesemuitopoucosobre
outrosassuntos.Empolítica,vejasó,atéquenãosãotãofracos,emgeografiatalvez,eatéhistória.Masquestões sobre livros e música os deixam desnorteados. A gente até se pergunta se algum dia elesfrequentarammesmoumaescola.”“Masquemelaboraasperguntas?”,perguntouNora.“Ah,eucuidodetudo.Juntoinformaçõessobreesportes.Começamoscomperguntasfáceis.Etodos
têmlivroscomtestesdeconhecimentos,maseupegoapenasumaspoucasperguntasdoslivros,paraqueelessintamquevaleapenasepreparar.Nasemanapassada,emMonageer,haviaumaequipequenãosabianada.Eelesnemficaramembaraçados.Seagentetivesseperguntadoquantoeradoismaisdois,
iamfazercaradequemtivessequeexplicarateoriadeEinstein.”“Imaginoqueelesvãolásóparasedistrair.”“Aignorânciaéumafelicidade”,dissePhyllis.“Tenhocertezadequealgunsdevemserbeminteressantes”,disseNora.“Interessantesatépodemser,massãoburrosdedoer.”ViraramàdireitaemFinchogueenãovoltarama falaratéchegaremaooutro ladodopovoadoThe
Ballagh. Nora sentiu a profunda seriedade com que Phyllis encarava a tarefa que tinha pela frente eresolveunãofazercomentários jocosossobreo insucessodoscompetidoresaoresponderasperguntasquePhyllishaviapreparado.AgoraelaentendiaporqueNancyBrophyquisumapessoaboadenúmerosparamarcarospontos.“Apropósito”, dissePhyllis, “trouxe um caderno e umas canetas boas para você.Começamos com
duasrodadasdeperguntasdedoispontos,queatéumacriançaécapazderesponder.Serveparaaquecer,edepoistemosduasrodadasdeperguntasdetrêspontos,depoisquatropontos,depoiscincorodadasdeperguntas de seis pontos, que separam o joio do trigo. Nas primeiras rodadas de seis pontos, só ocompetidorindividualpoderesponder,masnasúltimasdeseispontosaequipetodapoderesponder.”“Devedarumbocadodetrabalhoprepararasperguntas”,disseNora.“Gostodevariedadeedeumaboaequipe,comoadeOylegate;éprecisosemanasparasepreparar,
pesquisandoosassuntosquetalvezelesnãoconheçammuitobem.”“Entãoémuitoeducativo.”“Paraalguns,sim,masnãoparaoutros”,respondeuPhylliscomarsevero.PhyllisnãotinhamencionadoMauricenemderasinaldequesabiaqueaquelaeraumadasprimeiras
vezesemqueNorasaíaànoitedepoisdamortedomarido.Norasupôs,noentanto,quePhyllissabiadetudo,queNancyBrophyjá lhecontara,eresolveu,porumaquestãode tato,nãodizernada.Emtroca,issolevouNoraapensarquenãodeviacomentarqueconheciaBlackwater,quetinhaidoládebicicletana adolescência, que havia conhecidoMaurice ali, anos antes de se casarem, e que passara todos osverõesnosarredores.Nora iaguardar tudoconsigo, levaro testedeconhecimentos tãoasérioquantoPhyllis,tomandotodocuidadoparaanotarcomprecisãoospontosdecadaequipe.Quandoelaschegaram,Phyllissedissesurpresaqueocombinadofosseencontrarosorganizadoresno
pubEtchingham’s,dissequenãocostumavafrequentarpubsequeelasiriamparaosalãoatrásdaigrejaassimquepudessem.Phyllisrecusouabebidageladaqueofereceramàsduas.“Vamosprecisarmanteracabeçabem lúcida”,disse,“por issosóqueremosuma jarradeágua,um
poucodegeloedoiscopos.Evamosquereramesmacoisanamesadosalãoparoquial.”As equipes deviam ser de Blackwater mesmo e também de Kilmuckridge. Nora estava atarefada
traçando linhasverticaisnaspáginasdocaderno,por issonãoviuTomDarcy,deCush,depénobar.Aindacomroupadetrabalho,eleseaproximoudamesadelas.“Nora,comovaivocê?”,perguntou.“Tom,eunemvivocê”,disseNora.“Veioparaotestedeconhecimentos?”“Talvezagentefiqueparasedivertir”,disseele.“Maspodeserquenãotambém.Claroquesabemos
todasasrespostas,Nora.”NoraquaseapresentouTomaPhyllis,mas,porcausadaintransigênciadePhyllis,Norasentiuqueela
nãogostariadeserapresentadaaumhomemaindacomtrajesdetrabalhoe,alémdomais,comojeitodescontraídoecalorosodeTomDarcy.“Comovaiasra.Darcy?”,perguntouNora.
“Com saúde para dar e vender.Ela vai adorar quando eu disser que encontrei você.Mas será queconheçoessamulheraseulado?Eugostariadecontaràpatroa,láemcasa,quemfoiqueeuencontreinarua.”“PhyllisLangdon,esteéTomDarcy”,apresentouNora.Phyllisfezumgestodeanuênciacomacabeça,masnãoestendeuamão.“Ah,PhyllisLangdon”,exclamouele,“amulherdasperguntas.OterrordeMonageer.”Nora sentiu Phyllis se encolher junto dela para fugir de Tom Darcy, que, por seu lado, não tinha
nenhuma intençãodevoltar aobar, antesde extrairomáximode informaçãopossívelpara levarparacasa.“OuvidizerqueopessoaldeMonageernãosabenada”,disseele.EstavaclaroqueTomsedirigiaaPhyllis,maselanãolhedeunenhumaresposta.“Ouvidizerqueaturmaláétãoignorantequantooqueagenteencontranochãodeumchiqueiro,e
nãoestoufalandodapalha,não”,prosseguiu.“EcomovãotodosláemCush?”,perguntouNora.“Comendoopãoqueodiaboamassou,ospoucosque sobraram”, respondeuTom.“Agora,vou lhe
dizer uma coisa.A gente está com uma tremenda saudade de vocês.Outro diamesmo a gente estavafalandodisso.Vocêseramosmelhoresveranistas,sempreforam.”“Agora,queiradesculpar”,interrompeuPhyllis,“masvamosterqueirparaosalãodaquiapoucoe
combinarcomoscompetidoresondeelesvãosentar.”“Claro,aquelebandoládeKilmuckridgenãosabenemcontarosdedosdamão”,disseTom.“Pergunte
paraelescomosesoletraGAA.*Issovaiensinaraquelagenteasecomportar.”“Comportar?”,Phyllisenfatizou.“Queremumdrinque,vocêsduas?”“Nãoqueremos”,respondeuPhyllis.NoraobservouTomiratéobareindicá-lasaobarman.“QueremumBabycham,umsherryouumconhaque?”,gritouele.NorabalançouacabeçaedepoissevirouparaPhyllis,queestavaatarefadaconferindoasperguntas.
Havia uma mancha vermelha em cada bochecha dela, e as duas pareciam ter se formado durante oencontrocomTomDarcy.ObarmanseaproximoucomumBabychameumconhaquecomsoda.“Nósnãodissemosquesóqueríamoságua?”,perguntouPhyllis.“Alémdomais,nãotemostempo.”“Aqui,ofreguêsmanda,madame”,disseobarman.“Epodemlevarasbebidasparaosalãoparoquial,
contantoquedevolvamoscopos.”“Issovaideixarvocêsmaisalegres!”,gritouTomDarcydelonge.“Vocêconheceessehomemhámuitotempo?”,PhyllisperguntouaNora.“Desde que me entendo por gente”, ela respondeu com calma, enquanto sorvia o Babycham.
“Infelizmentenãopossobeberconhaque,ficobemruim.”Ela sorriu ao pensar no conhaque. Quando se casou comMaurice, nunca havia bebido álcool. De
início,experimentousherry,masnãogostou.Certanoite,naquelemesmopub,alguémlheofereceuumconhaqueedepois,comoelaeMauriceestavamentreconhecidos,Noratomoumaistrêsouquatro.Nofimdanoite,elanãoconseguiapararderir.Depéjuntoaobalcão,estavaFrankieDoyle,deEnniscorthy,com a esposa, sentada num banco alto ao lado dele. Quando olhou para os dois, Nora percebeu queFrankieesuamulherachavamqueelaestavarindodeles.Frankieerabaixoobastanteparaserjóqueiepodia, pensou Nora, se ofender. Além do mais, ele e a esposa estavam sozinhos, não tinham sidoconvidadosasejuntaraogrupomaiordosquetambémtinhamvindodeEnniscorthy.Emtodocaso,toda
vezqueelaolhavaparaláosdoisaestavamobservandoe,todavezqueelaviaoolhardeles,desatavaarirdenovo.Nadaconseguiaconterseuriso.Daquelanoiteemdiante,nenhumdosdoisvoltouafalarcomNora.Edepoisdissoelaentendeuquenãopodiamaisbeberconhaque.“Vocêparecequeestánumoutromundo,sóseu”,comentouPhyllis.“Eestavamesmo”,respondeuNora,sorrindoemseguida.“Agora temosde ir, e achoque seriaumerro sermosvistas levandobebidaspela rua, aindaqueo
patrocinadorsejaaGuinness.Estafoiaúltimavezqueaceiteiumencontronumpub.”Etomoudeumgoleoconhaquecomsoda.O salão paroquial, quando elas chegaram, começava a encher. Nora conhecia algumas pessoas de
nome, outras de vista; também havia pessoas que ela não conhecia nem de longe, mas pelo jeito deficaremparadasnaporta,oupertodosalão,nosfundos,ouolhandoemvolta,algonelassoavafamiliar;eraumjeitoaomesmotempotímidoeespontâneo,amistosoereservado,quedavaaNoraasensaçãodeconhecermuitobemessaspessoas.Quandoas equipes se identificaram,Phyllis semostroumais rigorosa.Levantava-se constantemente
parasecertificardequeoespaçoentreamesadelaseosbancosondeoscompetidoresiamsentarestavalivre,edepoisfezquestãodequeninguémficasseparadoàtoapertodoscompetidores,duranteoteste,parasoprarasrespostasparaeles.Haviatrêshomenseumamulheremcadaequipe.Aoexplicarasregras,Phyllistirouumcronômetro
dabolsa,queajustouparamarcardezsegundos.Noraobservouoscompetidores.Umdoshomens,queelaconheciadeBlackwater,eraumprofessoraposentado,eamulheraseuladotinhasidomembrodocomitê da Associação Irlandesa de Mulheres do Campo. O próximo da fileira parecia um aluno decolégioeoúltimo,Norasupôs,umfazendeiro.QuandoPhyllisfalou,umaatmosferasolenedesceusobreos competidores. Foi — Nora teve a impressão — como se o padre tivesse subido ao altar ou oprofessorentradonasaladeaula.As primeiras perguntas eram tão fáceis que pareciam quase um insulto. Phyllis, no entanto, as
formulavacomosefossemdesafiadoraseexigissemumtremendoesforçodememória.Suavozeraigualàdeumalocutoradecomerciaispararádioe,quandopronunciavadeterminadaspalavras,ofaziacomum acento inglês. Nora viu que ia ser fácil marcar a pontuação das equipes, mas também notou quePhylliscontrolavacomorabodoolhosuasanotaçõesdasegundaedaterceirarodadas,quandoospontoscomeçaramavariar.Quandoelachegouàsperguntasdequatropontos,umhomemtrouxemaisumconhaquecomsodapara
PhylliseoutroBabychamparaNora.Elanãotinhaamenorideiadequemhavialevadoasbebidas,poisTomDarcynãoforacomelasatéosalãoparoquial.Quando as perguntas de seis pontos começaram, a equipe de Blackwater estava com uma ligeira
vantagem.Numa rodada de perguntas sobre esportes, houve aplausos da plateia no salão, pois algunspertenciam àAssociaçãoAtléticaGaélica. Isso fez Phyllis pedir silêncio na rodada seguinte, que erasobremúsicaclássica.“QuantassinfoniasBrahmscompôs?”,perguntouPhyllis.NoraobservouohomemdeKilmuckridge.Seutempopassava,comoseeletentasseselembrardealgo
que havia sabido um dia. Quando Phyllis avisou que ia ligar o cronômetro, ele respondeu: “Vinte ecinco”.Phyllisolhoucomdesprezoparaosalão,provocandoumsilênciogeral.Noraolhouparabaixo,parao
cadernodapontuação.“Comotodossabem”,dissePhyllis,“Brahmsescreveuquatrosinfonias.Vinteecinco,francamente!”Houveummurmúriogeraldiantedanovapergunta.
“QuantassinfoniasSchumanncompôs?”EraavezdoprofessoraposentadodeBlackwater.“Achoquenove”,disseelecomcalma.“Errado”,dissePhyllis.“Elecompôsquatro.”PhyllisdesfiloudiantedelesosnomesHaydn,Mozart,Schubert,Mahler,SibeliuseBruckner,parao
silêncioperplexodiantedecadacompositormencionado,etodososcompetidoresnãoforamcapazesdeacertar onúmerode sinfoniasde cadaum.Quando ela enumerou títulosdeóperas e perguntouqual onome do compositor, tanto o professor aposentado como o jovemda equipe deBlackwater souberamresponder. Isso deu a Blackwater quinze pontos de vantagem, quando Phyllis passou para as últimasrodadas,emqueoscompetidorespodiamconsultar-seunsaosoutros.UmdelessolicitouumapausaparairaobanheiroePhyllisconcordou.MaisumconhaquecomsodaeumBabychamchegaramàmesa.QuandoNora olhou na direção da porta, viu alguns homens reunidos ali.Olhavam para ela e para
Phylliscomdesconfiançaerancor.Umdeles,umjovemdecabeloruivoerostoqueimadodesol,olhouparaseusparceirosaoverqueNoraoobservava.Aoseaproximardela,pareciaofendido.“Elatemumvozeirãosemtamanho,essaaí”,disse,apontandocomacabeçaparaPhyllis.“Esperoque
elanãopenseemsairdecarroporKilmuckridgeestanoite,porquetemumarapaziadaaíbemenfezadacomelaecomessavoz.Seelaachaqueémuitoimportante,vaiversó.”Noradesviouorostoenãorespondeu.“Olhequenãoestoubrincando”,elecontinuouparaoutrohomem,“elavaimorrerdesustosealguém
meterumadessassinfoniasnorabodela.Aíeuqueriaverelafazerperguntas.”PhyllissussurrouparaNoraqueelasdeviamcontinuarcomotestedeconhecimentosomaisdepressa
possível.“Atenção, todo mundo”, gritou ela, “preparem-se para as últimas e emocionantes rodadas. A sra.
Webstervainosdizercomoestáapontuaçãoatéagora.”Ohomemcontinuouporperto,atéPhyllisvoltartodaasuaatençãoparaele.“Osenhorestánaminhafrente”,disse.“Nãohámotivoparaosenhorficartãoperto.Poderiavoltare
sentarnoseulugar?”Ohomemhesitoueemseguidalançou-lheumolhardepurodesprezoantesdevoltarparajuntodeseus
amigos,naporta.Um dos competidores de Kilmuckridge tinha, obviamente, se preparado para aquela rodada de
perguntas,queerasobreprimeiros-ministrosepresidentesdeváriospaíses.Elesoubedizeronomedosprimeiros-ministrosdaNoruegaedaSuécia.Quandoaequipetevededizeronomedoprimeiro-ministrodaUniãoSoviética,eelesconcordaram,primeiro,queeraBrejnevedepoismudaramparaPodgórni,eosproblemascomeçaram.“Qualdosdois?”,perguntouPhyllis.Elesseconsultaramporalgumtempo,atéquePhyllisligouocronômetro.“ÉPodgórni”,disseumdeles.“Infelizmentevocêserraramnasduasrespostas.OpremiêdaUniãoSoviéticaéKossíguin.”“Asenhoraperguntouonomedoprimeiro-ministro”,retrucouumdeles.“EéKossíguin.”“Masasenhoraacaboudedizerqueesseéopremiê.”“É a mesma coisa que primeiro-ministro. Lamento, mas minha decisão é definitiva. Vocês podem
discutiroquantoquiserem.Agora,apróximapergunta.”Comoosmurmúriosviessemdetodososlados,Phyllislevantouavoz.“Nãovouaceitarmaisnenhumainterrupção”,disse.
Concentradanopapeldapontuação,Noratevemedodeerguerosolhos.Nofinaldarodada,comoaequipe de Blackwater não tinha conseguido responder a algumas perguntas, as equipes estavam comapenastrêspontosdediferença.EraclaroparaNora,eelasupunhaquetambémparamuitaspessoasnosalãoparoquial,que,searespostasobreaUniãoSoviéticativessesidoaceita,Kilmuckridgeestarianafrente. Na última rodada, que tratava de batalhas famosas, as duas equipes conseguiram respondercorretamenteatodasasperguntas.Quandootestedeconhecimentoschegouaofim,Noratinhatotalizadoapontuaçãodasequipesnafolhadepapel.Blackwatervenceraportrêspontos.Phyllisficoudepé,pediusilêncio outra vez e declarou o resultado com voz imperiosa. Antesmesmo que tivesse tempo de sesentar,umhomemselevantounamultidãoeavançounadireçãodela.Usavabonéeumpaletóxadrez.“Deondevocêé?”,perguntouaPhyllisemtomagressivo.“Eoquevocêtemavercomisso?”,retrucouela.“VocênemédeEnniscorthy”,disseele.“Vocênãopassadeumaforasteira.Enãotemnenhumdireito
defalargrossoaqui.”“Talvezestejanahoradevocêirparacasa”,dissePhyllis.“Vocêroubouagente!”,gritououtrohomem.“Essaéqueéaverdade.”FoientãoqueTomDarcyemergiudamultidão.“Eu e um amigo, que veio de um lugar bem perto de Kilmuckridge, gostaríamos de convidar as
senhorasparaumabebidanoEtchingham’s,paraagradecermosporseudedicadotrabalho.”“Émelhorirmoscomele”,NoradisseaPhyllis,eficoualiviadaquandoelaconcordou.“VocêéamulherdeMauriceWebster?”,perguntouohomemqueestavacomTomDarcy,quandoelas
chegaramaobar.Porumsegundo,NoraficouemdúvidaseohomemsabiaqueMauricehaviamorrido.“EuconheciMauricemuitobem”,acrescentouohomem.Noraolhouparao ladoeviuPhyllis,comumcopocheiodeconhaqueesodanamão,conversando
animadamentecomTomDarcy.“Faziamuitosanosquevocêoconhecia?”,perguntouNora.“Foiquandoeleveiocomoirmãoemaisalgunsamigos.Nósíamospescarjuntos.Oirmãodeleainda
estánomundodosvivos?”“Está,sim.”“Ehaviaum,maisfrágil,quemorreu?”“Issomesmo.”“EaMargaret,airmã,jácasou?”“Não,elanãocasou.”“Eraumaboamulher,todomundogostavadela.”EletomouumgoledesuabebidaeolhouparaNora.“FiqueimuitotristequandosoubedoMaurice.MeuDeus,todosnósaquificamosmuitotristes.”“Obrigadapordizerisso.”“Agentenuncasabeparaqueladoavidavai.Umapartedelanãofaznenhumsentido.”Ficaramparadosdiantedobalcão,emsilêncio.“Gostariadetomarumabebidamelhordoqueessa?”,perguntouohomemafinal.NoraolhouparaoBabychamehesitou.“Ouvifalarqueéhorrível”,disseohomem.“Vodcacomsodalimonadaseriamelhorparavocê.Éo
queminhamulhereminhafilhabebemhojeemdia,quandosaem.”Pediuumavodcacomsodalimonadaparaelaeserviu-lheabebida,quandoatrouxeram.Noraviuque
o grupo de homens que estava na porta do salão paroquial pedia bebidas ali no bar; o local estava
enchendodepoisdo testedeconhecimentos,ehaviaumaanimaçãonaatmosfera.Algo foradocomumtinhaacontecido, algoqueagitara anoite,dandoàspessoasumassuntopara conversar.Animados,oshomensnobarmaispareciamvindosdeumapartidadehurling**oudefutebol.PhylliscontinuavaconversandocomTomDarcy,queteriaumaporçãodecoisasparacontaràesposa
quandochegasseemcasa.Logováriosoutroshomensseuniramaeles,falandocomPhylliscomoseaconhecessem. Phyllis participava da discussão, assentia com a cabeça em resposta e olhava de umhomemparaoutro.Comoseumaridoeraveterinário,pensouNora,eladeviaestarhabituadaàcompanhiade homens da roça e sabia quando empregar seu tom de voz imperioso. Ou talvez fosse efeito doconhaque.NenhumdoshomensquisdeixarNoraouPhyllispagarumarodadadedrinques,etodavezqueeles
pediamumanovarodadaincluíamumconhaquecomsodaparaPhylliseumavodcacomsodalimonadaparaNora.QuandoNora percebeu Phyllis apontando para a porta, viu TimHegarty e sua esposa, Philomena,
entrando. Tim era um professor com quem Maurice havia estudado. Ela sabia que Tim e a mulherrodavampelaregiãoruralembuscadecompanhia,masnãoconseguiaimaginaroqueestariamfazendoemBlackwater.Vinhamacompanhadosdedoisdeseusfilhos.PelaexpressãonorostodePhyllis,Noraconcluiuqueelanãogostavadeles.Timerafamosoporsuaboaaparênciaeporsuaboavozdecantor.Aesposacantavacomele,quando
nãoestavaembriagadademais,ecertavez,numconcertonoConventodaMisericórdiaaqueNorahaviacomparecido,afamíliainteiradeles,pai,mãeeseisousetefilhos,interpretouafamíliaTrappdaNoviçaRebelde,cantando“TheSoundofMusic”.TodosdiziamqueelespoderiamsermúsicosprofissionaisseTimePhilomenaparassemdebeber.Houveumpedidodesilênciovindodobar.ElaviuTimHegartydepé,sozinho,deolhosfechados.O
cabelo estava besuntado e ele usava gravata-borboleta fina e paletó de riscas brancas e vermelhas.Pareciaumastrodecinemaamericano.Aindasemabrirosolhos, inclinouacabeçaparatrásecantoucomvozsuave,masbastantealta,demodoquefoiouvidoportodos:De início, Nora achou que talvez alguém tivesse cantado essa música no casamento dela; tentou
lembrarquempoderiatersido.Emseguidaachouquenão,tinhasidodepois,numaocasiãoemqueelanãoeraocentrodasatenções.FoidepoisqueFionanasceu,eafelicidadedeNoratalvezviessedofatodeFiona estarmuito bem, de aprender a andar rápido ou de estar começando a falar com facilidade.Então,quandoTimcantoua segundaparte, ficouclaroparaNoraexatamentequando tinhaacontecido.ElaeMauricehaviamdeixadoFionaparapassarodiacomamãedeNora,etalvezanoitetambém,nacasadela,paraqueosdoispudessemircomTillyO’NeillaocasamentodeAidan,umprimodeMaurice.ArecepçãofoinoTalbotHotel,emWexford,eopadrinhoeraPierceBrophy,filhodeNancy,aquelequemaistardefoiparaaInglaterraeganhoumuitodinheiro.Pierceselevantouecantouaquelamúsica,que,lembrouNora,tinhafeitograndesucessonaqueleano,etodosficaramadmiradosqueelesoubessealetrainteira.Pierce cantoudevagar, comoTimcantava agora, e apesardenão ser o tipodemúsicadequeMauricegostava,Noraadorou,adorouojeitolentoetristedelaeomodoengenhosocomoaspalavrastinhamsidoescolhidaspararimar.Maisdoquetudo,adorouterMauriceaseulado,adorouteremsaídojuntos para ir a um casamento, de roupas novas, e adorou que todos na festa soubessem que ela eracasadacomele.Quandoamúsicaterminou,amultidãonobaraplaudiuTim.SóPhyllisnãosemostrouimpressionadae
olhouparaNora levantandoos olhos para o teto.Noranotouque ela tinhanamãoumcopo cheiode
conhaquecomsodaequealguémhaviadeixadomaisumcopodevodcacomsoda limonadapara elaprópria.NoraouviuPhilomenaHegartyafinandooviolãonocantodobar.Nomeiodetodoaquelebarulhoeconfusão,Norasentiuumavontadeagudadeestaremqualqueroutro
lugar que não ali. Embora muitas vezes, quando estava em casa, temesse o cair da noite, ao menosnaquelasocasiõesestavasozinhaepodiacontrolaroquefazia.Osilêncioeasolidãoeramumalívioestranho; ela então se perguntava se as coisas estariammelhorando em casa sem ela perceber.Desdemenina,Nora nunca estivera sozinha nomeio de umamultidão como aquela.Maurice sempre decidiaquandoiremboraouquantotempoficar,maselestinhamummododeconsultarumaooutro.EraalgoemqueNoranuncapensava;defato,muitasvezeselaseirritavacomamudançadehumordeMaurice,numminutoansiosoparairparacasaelogodepoismuitoanimado,facilmenteenvolvidopelaspessoasqueocercavam,enquantoelaficavaesperando,comtodapaciência,anoiteterminar.Então, ficar sozinha era assim, pensouNora. Não era a solidão que ela vinha enfrentando nem os
momentosemquesentiaamortedeMauricecomoumchoqueemseuorganismo,comoseestivessenumcarroque sofreuumacidente; era, sim,aquelemovimentoàderivanummardepessoascomaâncoralevantada, tudo parecendo estranhamente sempropósito e desconcertante. Então soou outro pedido desilêncio no bar, o violão começou, tateante, outramelodia e TimHegarty se pôs a cantar “LoveMeTender”.Pelamaneiracomoseentregavaàmelancoliaeànostalgiadacanção,Norateveaimpressãodeque estava zombando dela, olhando para seu rosto e rindo, mas logo a música falou mais alto, elesuavizavaereforçavaavozconformeamelodiaexigia,etambémpermitiaqueoviolãofizessesuaparte,deixando intervalos para que seu som fosse ouvido plenamente. Quando a música terminou, Noraaplaudiujuntocomosdemaiseouviucomtodos,surpreendida,quandoosHegarty,parecendoignorarosaplausos, passaram direto para uma canção muito mais acelerada. Tim Hegarty imitou o sotaqueamericanodeElvisPresley:Averyoldfriendcamebytoday'CausehewastellingeveryoneintownAboutthelovethathejustfoundAndMarie’sthenameofhislatestflame.
Houveurrosdealegriaeassoviosdamultidão,quandoPhilomenavibrouascordasdoviolãocommaisenergia e Tim cantou. Nora inclinou a cabeça para trás e fechou os olhos, desfrutando a volúpia damelodia,deseusompremente,erecordouoverãoemqueaquelacançãofoilançada,outalvezoverãoseguinte,quandoamúsicachegouaCushealguémtrouxeumtoca-discos,colocousobreumamesanafrente do ônibus deTreacys, que, cimentado ao chão, tinha sido adaptado para servir de quiosque noparque.Usaramumaextensãocompridadeumacasapróximaquetinhaluzelétrica.Nora lembrouquevoltavadacasadosKavanaghpelarua,emsuacaminhadanoturnacomMaurice,
quandoencontroutodasascriançasparadasnumarodaeosadolescentesdançandoaosomdamúsicadeElvis.Viualgunsdosmeninoslá,tímidos,eFionatalvezdançando,PatriciaTreacy,EddieBreenealgunsdosMurphy,CarrollseMangan.Aquilotinhaacontecidohaviamenosdedezanos,talvezfizesseunsseisou seteanos, e sealguém lhe tivesseditonaépocaqueelaestariaali agoraouvindoaquelamúsicaetodasascoisasqueaconteceriamdeláparacá,Noranãoteriaacreditado.TomDarcyseaproximouquandoamúsicaterminou.SeguravaPhyllispelamãoeorostodelaestava
ruborizado.“Eledizquevocêcanta”,comentouPhyllis.“Claroqueelacanta.Foino tempoemqueagenteseconheceu,elaestavanacasadosGallaghere
haviamuitasfestaslá.”“Depoisdissonuncamaiscantei”,disseNora.“Ora,vamoslá”,insistiuPhyllis.“Quemúsicavocêsabe?”“Minha mãe era cantora”, contou Nora, como se estivesse falando com pessoas que tivessem
conhecidosuamãe.“Noraéumaótimacantora”,disseTomDarcy.“Oueranaquelaépoca.”“Quemúsicavocêconhece?”,perguntouPhyllisdenovo.Norarefletiuummomento.“AcantigadeninardeBrahms,achoqueessaeusei.”“Emalemão?”“Eutambémsabiaalemãonaquelaépoca,masseicantareminglês.”Phylliscolocouseucoponobalcãodobar.“Agoraagentetemdefazerissodireito.Vouescreveraúltimaestrofeemalemãoenósduaspodemos
cantar juntas.Vou cantar a primeira em alemão, você canta a primeira em inglês e cantamos a últimaestrofeemalemãoedepoiseminglês,juntas.”Phyllis,elapercebeu,estavaentusiasmada.“Nãoseriamelhordeumjeitomaissimples?”,perguntouNora.“Fazanosqueeunãocanto.Aúltima
vezquecanteifoilogodepoisdomeucasamento.”“Vamos, me deem uma folha de papel para eu escrever os versos em alemão. São muito fáceis
mesmo.”No outro lado do pub, um homem estava cantando “Boolavogue”*** com voz vacilante. Phyllis
escreviafuriosamente,comletrasbemgrandes,mandandoNoraolharcadapalavra,enquantocantarolavabaixinhoamelodiaetomavapequenosgolesdeconhaque.Quandoohomemacaboudecantartodososversosde“Boolavogue”,Norapercebeuumaagitaçãono
bar. A cantoria havia proporcionado cor e animação, mas agora as pessoas queriam voltar a bebersossegadasebaterpapo.Haviatambém,elasabia,certadesconfiançadoexibicionismo,asensaçãodeque alguém que se expunha cantando em público talvez devesse ser objeto de zombaria ou,educadamente,serridicularizadomaistarde.Phyllis,porém,estavadeterminada.Elajátinhaaletraanotadaemalemãoeestavaprontaparairatéo
centrodobar,ondeelaeNorapoderiamservistasportodos.Norasabiaquehaviagentenobarqueiriareconhecê-laenãoiaentenderporqueelaestavacantandonumpubquandoMauricetinhamorridonãofazianemumano.Tom bateu palmas, pedindo silêncio, e, enquanto Phyllis e Nora o olhavam, esperando ser
apresentadas,Tomencolheuosombrosevoltoudepressaaoseulugar,deixando-assozinhas,comtodomundoolhandoparaelas.QuandoPhyllis,emvozbemalta,anunciouqueelaeasra.Websteriamcantarumdueto,houverisos.
IssofezPhyllisjogarosombrosparatrásemostrar-seaindamaiscombativadoqueduranteotestedeconhecimentos.NoraficoufelizporPhylliscomeçarsozinha,poiselanãotinhaamenorideiadecomoprojetaravoz.QuandoPhylliscomeçounumalemãoclaudicante,ficouclaroparaNoraqueavozdelatinha sido exercitada ou demais oumuito pouco. Percebeu os rostos implacáveis em volta. Qualquerexibiçãoosdeixava incomodados,mesmoumcarronovo,umanovacolheitadeiraouaprimeiracalçaqueumamulherusava.Porémcantarmal,eaindamaiscomvozesganiçadanumalínguaestrangeira,eraalgoquenuncamaisseriaesquecido.Iriasetornarmotivodecomentáriosporváriosanos.SePhyllisjánão tivesse deixado sua marca em Blackwater durante as perguntas do teste de conhecimentos, semdúvidadeixariaagora.
Nora se concentrou omais que pôde. Estava ciente de que havia pessoas no pub que conheciam amelodia, ou pelo menos que já a tinham ouvido, portanto achou que devia dar à música um aspectocomum,quandocontinuouamelodianolugardePhyllisecantouaestrofeeminglês.Achouquedeviabaixaravoz,nãodeixarquesaíssenenhumsomdesoprano,aindaquecantassealtoobastanteparaqueaouvissem.Quando a plateia viu que Phyllis ia ceder a vez para ela, como se aquilo fosse uma espécie de
apresentaçãoensaiada,Noranotoualgunshomensmaisvelhosficaremconfusoseembaraçados.Nãoeraatrásdaquiloqueestavamquandosaíramnaquelanoite.Masumgrupoaumcanto,ondehaviaalgumasmulheres,pareceuacharhilariante.“Lullabyandgoodnight”,começouela,surpresaconsigomesmaaovercomoavozsaiualta.Deuuma
olhadaparaogruponocanto;estavamsecutucandoerindodela.Aoprosseguir,Noratentousuavizaravozparaqueamelodiaficassemaisparecidacomumacantigadeninar,umamúsicaquesepodecantarauma criança.Nora sabia que, se não conseguisse conquistar a simpatia daquele grupo no fimdaqueleverso,elesnãoiriammaissecontrolarquandoelaePhylliscantassemjuntasemalemão.Aochegaraoúltimoverso,Noramanteveosolhosvoltadosparaeles,sóparaeles,masdoisoutrêsaindariam.Naestrofeseguinte,deixouPhyllistomarafrenteeaacompanhou,deiníciocantandocomelaedepois
tentando,discretamente,ficarabaixodela,masdesistiu,quandoatacaramjuntasumanotadesastrosa,asduas vozes desafinadas. Como Phyllis olhou para ela quase com medo, Nora deixou Phyllis cantarsozinhaoúltimoverso, semseatreversequeraolharparaocantodobar.Manteveosolhosvoltadosparaochão,rezandoparaaquiloterminarlogo.Elaconheciamuitobemaúltimaestrofeeminglês;quandoviuPhyllisdiminuiroandamento,deixando
avozbaixar,Norasesentiumaisconfiante,seaproximoue tentou,nosúltimosdoisversos, fundirsuavozcomadePhyllis,aindasemantendoabaixo,masdeixandoavozsesoltaresoarmaisalta,comoPhyllis fazia. Nora não se atreveu a olhar para o canto, mas viu que os que estavam na sua frenteescutavamcomatenção,enquantoamúsicaterminava.Osaplausosbrotarammaisporcausadeumasensaçãodealívioquedeprazer,eNora juroununca
maisfazeraquilonavida.Olhoufixoparaogruponocanto,ondeumdelesimitavaumavozdesopranodesvairadamentedesafinada,paraaalegriadosdemais.Quandoobarsepreparavaparabaixarasportaseosúltimospedidosforamfeitos,Phyllisfezquestão
depagar umabebidaparaTomDarcy e alguns amigos, e tambémparaNora.Tom tentou impedir quePhyllispagasse,chegouatomarodinheirodesuamão,masnofimavontadedePhyllisprevaleceu.Noraobservou-asorverdeumtragoseucopodeconhaquecomsodaqueestavanobalcão,enquantoaguardavaqueoutrofosseservido.NoraseperguntouseseriaseguroPhyllisvoltarparacasadirigindo.Pelojeitodela,Nora percebeu que, se houvesse uma chance, ela estava pronta para cantarmais umamúsica, eachouqueseriadegrandeutilidade,nospróximosminutos,elafazertudoqueestavaaseualcanceparaimpedirisso.No carro, depois que, afinal, elas se despediram de todos, Nora se deu conta de que Phyllis se
encontrava tão embriagada que, em comparação, ela mesma parecia praticamente sóbria. Phyllis seconcentroubastanteparamanobrarocarroedarmarchaaréepareciadirigircomcompetência,atéNoraperceberqueelanãohaviaacendidoosfaróis.Umavezavisada,Phyllispareceuincapazdeselembraronde ficava o botão dos faróis. Acabou se lembrando, e Nora achou que, se conseguisse prender aatençãodePhyllis numa conversa durante o trajeto até a cidade,Phyllis teriamais facilidade para seconcentrartambémnaestradaàfrente,semdeixaracabeçasedispersarnemelaprópriaadormecer.
QuandochegaramaoentroncamentoemCastleEllis,PhyllistinhaditováriasvezescomogostavadeTomDarcyecomoeleeraumcavalheiro,comotinhagostadodopubEtchingham’secomo,depoisdoteste de conhecimentos em Monageer, ela e Nancy não haviam sido recebidas com nenhumahospitalidade. Achava que, quando a temporada dos testes de conhecimento terminasse, Dick, seumarido,podiairaEtchingham’snumsábadoànoite,equeseriaótimoseNoratambémfossecomeles.QuandoPhyllisdisseissopelaterceiravez,NorapercebeuqueelaiacruzaraestradaprincipaldeGoreyparaWexford sem olhar se vinha alguém do outro lado. Pensou o que poderia dizer para Phyllis seconcentrarmaisnaestrada,sehaveriaalgumassuntocapazdeobrigá-laareduziravelocidadeedirigircomcuidado.QuandoestavamemsegurançanaestradaestreitaqueiadeCastleEllisparaFinchogue,passandopor
TheBallagh,NorarecomeçouacantaracantigadeninardeBrahms.Deixouavozaindamaisgrave,demodoque,quandoPhyllisentrou,asduasvozesestavamemharmonia,maselafazendoaprimeiravoz.Elascantaramosdoisversoseminglês.“Vocêéquaseumcontralto”,dissePhyllis.“Não,eusousoprano”,rebateuNora.“Não,não,agoravocêémezzo,masestánafronteiradocontralto.Suavozémuitomaisgravedoque
aminha.”“Semprefuisoprano.Minhamãeerasoprano.”“Podeacontecer.Avozdagenteàsvezesficamaisgrave.”“Fazanosqueeunãocanto.”“Bem, estava acontecendo enquanto você ficou em silêncio, e com um pouco de exercício sua voz
podiaficarmuitoboa,bemincomum.”“Nãosei.”“Às vezes eles fazem testes para cantores no coral deWexford. É um coral maravilhoso. A gente
costumacantarumamissa.”“Nãoseisevoutertempo.”“Vou falar com eles sobre você, e aí vamos ver. Quem sabe você não entra para a Sociedade do
Gramofone?Agentesereúnetodaterça-feiraemMurphyFlood’s.Cadaumadenósescolheosdiscos.”Noranãoquisdizeraelaquenãotinhanenhumdiscoemcasaequeoantigotoca-discossóerausado
pelos filhos para tocar músicas pop. Phyllis recomeçou a cantar a cantiga de ninar, dessa vez maislentamenteedeixandoespaçoparaNoraentrarabaixodesuavoz,depoissustentandoaúltimanotadecadaverso,omáximoqueNoraconseguia.As duas cantaram até chegarem a Enniscorthy, e, mesmo enquanto atravessavam a cidade, Phyllis
continuoumurmurando amelodia.De certomodo, cantar havia revigorado seu ânimo, a acalmara e amantiveraconcentradanaestrada,demodoque,enquantopercorriaasruasestreitas,Phyllisdirigiaesecomportavacomoaimitaçãoperfeitadeumamulhersóbrialevandoumaamigaparacasa.Quandosaiudocarronaportade casa,Nora agradeceuaPhyllis edissequeela tambémesperavaqueasduas seencontrassemdenovoembreve.
*AssociaçãoAtléticaGaélica.(N.T.)**Esporteirlandêssemelhanteaohóquei.(N.T.)***Cançãoirlandesacompostaem1898,paracelebraraRebeliãoIrlandesade1778.(N.T.)
13.NaprimeiramanhãnotrailerqueelahaviaalugadoparaelespassaremduassemanasemCurracloe,
NoratevedeacordarDonaleConoreavisá-losdequetinhammeiahoraparasairdesuascamas,paraqueelapudessedobrá-lasearmaramesaentreosbancos.Naoutrapontadopequenotrailer,ondeela,FionaeAinedormiam,Noraarrumouascoisasparaocafédamanhãedepoisfoiàpadariacomprarpão,leiteeojornalmatutino.Quandovoltou,osmeninoscontinuavamcochilando.Pormaisqueelafalasse,elesnãolevantavam,atéquedissequeiapuxarocobertorepôramesaemcimadeles,deitados.Mesmoassimosdoissemoveramcomrelutância.Empoucosminutos,porém,Conor jáestavaalegre,emboraDonalnão tivessefaladoenquanto todos tomavamocafédamanhã;eleachouo jornale ficou lendoaúltimanotíciasobreaviagemàLuaeosastronautascomumaatençãoferoz,comendosemsequerolharparaacomida.Emseguida,deitou-senasalmofadaseficouolhandoparaoteto.Depoisdealgumtempo,pegousua
câmeraeapontou-aparaosobjetos.Faziaofococomcuidadoeestreitavaaspálpebras,enquadrandoaimagemcomatenção,muitasvezesescolhendoumobjetoínfimo,minúsculo.Pareciaestarpensando,masNoraseperguntoutambémseelenãoestariaapenastentandoincomodá-la.Ela sabia que duas coisas preocupavam Donal. Primeiro, ele se perguntava quando todos iriam à
praia,paraqueelepudesseficarsozinhonotrailer;prestavaatençãoparaverseelesiamlevarumacestadepiquenique,oquesignificariaquepassariamodiafora.QuandoNorapropôsqueDonalfossejunto,ele encolheuosombros edisseque talvez fossemais tarde.Nora sabiaqueDonal ia passar amanhãconcentrado em suas revistas de fotografia, que chegavam todo mês, assinadas por tia Margaret oucompradasporelemesmocomos trocadosqueeconomizava;asrevistasanimavamDonalpelomenosporalgumashoras,depoisdissoelevoltavaaestudarograndemanualdefotografiaqueUnalhedera.Além disso, ficava olhando as horas, porque a cobertura da viagem à Lua passava todo dia na
televisãoemumhoráriodiferente.Assimquechegaramlá,DonalfoiàsaladetelevisãodoStrandHotel.Imediatamente,começouatirarfotosdotelevisor,usandoaslentesgrande-angularesquehaviaganhodeNora noNatal, e fotos de exposição prolongada, que ela não entendiamuito bem. Sabia comoDonalestava profundamente envolvido naquilo e como logo se irritava com qualquer pergunta sobre seusobjetivos.Nora tinha visto o filho explicar aquilo commuita ansiedade e entusiasmo, quandoUna e Seamus
passaram em sua casa naquela primeira noite, e como sua gagueira ficou ainda pior. ENora notou aperplexidadedosdois.Era difícil para Donal aceitar que a maioria das pessoas levasse câmeras nas férias para tirar
fotografiasnapraia.Emcasa,debaixodacama,haviaumacaixacheiadefotosempretoebranco,deférias do passado, de campos atrás dos penhascos, emCush, e tambémda praia, todas guardadas empequenas bolsas com divisões internas, as fotos de um lado, os negativos de outro. Quando Seamusperguntou a Donal por que ele não podia simplesmente tirar instantâneos deles se divertindo, Donalquase recuou de susto diante da palavra “instantâneo”, e no início gaguejou terrivelmente tentandoexplicarmaisumavezqueelesóestavainteressadonotelevisordohotelenasimagensdoespaçoquepoderiamaparecer na tela.Depois faloumuitodepressa ao explicar comoenquadrava cada fotografiapara capturar a superfície da tela do televisor e, dentro dela, as imagens do espaço, e que iriadesenvolver um método especial para revelar aquelas fotografias na câmara escura da casa de tiaMargaret,quandovoltassem.“Mesmoassim,nãoseriamelhor”,perguntouSeamus,“tirarfotografiasdepessoas?”Donalencolheuosombros,nummistodetédioefrancodesprezo.“Donal!”,exclamouNora.“Eu”,começouDonal,massuagagueiranãoodeixouavançarmuitomais.Todosficaramemsilêncio,
enquantoeletentava.EntãoDonalergueuacabeçaesemostroucorajosoedecidido.“Nãotiromaisfotosdepessoas”,disse,calmo.Namanhãseguinte,umanévoapairavaacimadetudo.Elesencontraramumlugarnasdunasdeareia
ondepuderamestenderduastoalhasesedeitarsobosolpálido.NorafezDonalir junto,paraqueeleajudasseacarregaracestadepiqueniqueetambémparaquesoubesseondeelesestavam,seprecisasseencontrá-los.“Aáguaestálinda”,comentouela.“Pelomenosontemestava.”“Nãodáparaenxergarn-n-nada”,disseDonal.“Éassimod-d-diatodo?Querof-f-fotografarisso.”“Anévoavaidesaparecerdaquiaumaouduashoras.”Ele voltou ao trailer para pegar sua câmera. Brincaram com Donal, quando voltou, Fiona e Aine
dizendoqueDonalsópodiafotografá-lasdepoisqueelasestivessembembronzeadas.Semdizernada,Donalseafastouemdireçãoaomar.“Elenãovaiconseguirnadacomessaluz”,comentouAine.“Estánacaraquenãodáparavernada.”“Éissomesmoqueelequer”,disseFiona.“Nãoviuasfotografiasqueelerevelou?Asgrandes?São
quaseapagadas.”“Ondeelasestão?”,perguntouNora.“Eleguardanumaespéciedepasta.”“Elenãomemostrou.”“Elenãomostrouaninguém”,disseFiona.“Équeoutrodiaelascaíramnochãoecomeceiaajudar
Donalapegá-las.Elequasemeatacou.Achoqueaindaestáaprendendoarevelarasfotografias,masdizqueédepropósito.”NoraobservouDonalcaminhandopelapraiaemdireçãoaomar.Sorriuquandooviutiraropulôvere
amarrá-lo na cintura, enquanto segurava a câmera, como um objeto precioso.Quando avançou para aágua,elanãoconseguiumaisverDonalcomclareza.Omarestavamaisbravodoqueelaselembravadejátervisto.Noraseperguntouse,porsermais
resguardadapelaspedras,napraiadeCushasondasquebravammaismansas.Alémdisso, a faixadepraiaemCusheramaiscurta,ehaviapedrasnabeiradomar.Jáalihaviadunasdeareia,apraiaeracomprida, sempedras,omareraaberto,nãohaviapenhascosdeargilaecalcário.Noraolhouparaonorte,nadireçãodeKeatings’,masnãoconseguiuvernadaeficoufelizcomisso,etambémporquenãoera possível avistar Cush, por melhor que estivesse a visibilidade. O provável, pensou, é que numamanhã como aquela não houvesse ninguém em Cush, as pessoas não se aventurariam a descer pelo
penhascoantesqueaneblinativessesedissipado.Asmoçastinhamvestidoseustrajesdebanhoe,lentamente,Norafezomesmo.“Vocênãotrouxeumlivro?”,perguntouaConor.“Estoucheiodeler.”“Nãovápensandoquevocêvaificarodiatodosentadoaí,olhandoparaacaradagente”,disseFiona.“Eescutandoanossaconversa”,acrescentouAine.“Todasashistóriasdosseusnamorados?”,perguntouConor.“Mãe,vocêdeviaterouvidooqueelas
falaramontemdenoite,sófalaramdeAdamstowneWhite’sBarn.”“DetestoAdamstown”,disseAine.“AFionagosta”,disseConor.“Caleaboca,Conor”,disseFiona.“Conor, seumdiadesseschover,agentepode iraWexfordearranjaruns livrosparavocê”,disse
Nora.“Eletemaraquetedetênis”,lembrouFiona.“DeixemoConorempaz”,retrucouNora.Fionadesceuatéabeiradapraia,paraexperimentaraágua.“As ondas estãomuito altas”, disse, quando voltou. “E estão quebrando tão perto que a gente não
conseguenãosemolhar.”QuandoconseguiramconvencerConor a ficarde sunga,osquatrodesceramaté abeiradomar.De
repente,aolonge,soouumabuzinadenevoeiro.“DeveseremRosslare”,comentouNora.“Nuncaouvitocartãoalto.”Asondasquebravamcomforçasuficienteparaderrubá-los.DeixandoConoraoscuidadosdasirmãs,
Nora tentou furar uma onda e sair do outro lado, mas a onda a embrulhou de tal modo que por ummomento ela se viu totalmente sem forças na água. Conseguiu escapar antes que a próxima ondaquebrasseeemseguidanadoudenovoparaafrente,ondeaságuasestavamquasecalmas,encontrandoum banco de areia. Ficou de pé ali e acenou para os outros, mas eles estavam ocupados demaisesperandoqueaondaseguintequebrasse,Conorcorrendoparaabeiradapraia,gritandoparaasirmãs,rindo.Teriammaisdozedias,pensouNora.Seotempocontinuasseassim,asfilhastalvezatéesquecessem
queelahaviaprometidolevá-lasdecarroàcidadeedeixá-lasemcasaaoprimeirosinaldetédiooudemautempo.PoucoantesdecompraremacasaemCush,antesdeDonaleConornascerem,eleshaviamalugadoochalédeKerr,depoisdorio,emKeatings’.Choveutodososdias.ChoveutantoqueelaacabouficandosemroupasecaparaFionaeAine.Nochalénãohavialuzelétricanemcalefação,sóduasbocasdefogãoagásparacozinhar.Duranteumdia, talvezmais,ninguémpôdesair.Norahaviaensinadoàsfilhasalgunsjogosdebaralho,etodostinhamjogadopalavrascruzadasdetabuleiro,masquandoelassecansaramdosjogosnãohaviamaisnadaparafazer.Nãopodiamvoltarparacasa,porqueeramasúnicasfériasqueiamter.Comoagoraaqueletempopareciadistanteeestranho,todoselesconfinadosnumchalédedoisquartos,comaumidadegotejandoeroupasespalhadasportodolado,parasecar.Conortinhaseanimadocomaágua.Noraobservou-opegarimpulsonumaondaeserlevadoparaa
beira da praia. Por um segundo, pareceuque ele ia chorar quando se levantou e ficouparado ali, emchoque,mas entãoNora viu Conor sorrir e avisar as irmãs que uma onda aindamaior estava vindo.Conor avançou e ficou no meio das duas, segurando suas mãos, quando a onda quebrou. Nora osobservavadobancodeareia,percebendoqueabuzinadenevoeirodeRosslaretocavacommaisforça.Ela sentiao friodaneblinanoar e a forçado soldiminuir.Secomeçassea chover e se a chuvanãopassasse,elesiriamvoltarparacasaeNorateriadeesquecerodinheirodoalugueldotrailer.
Nos dias seguintes, porém, o tempo nãomudoumuito.Às vezes, demanhã, o sol ardia através daneblinamaisrapidamente;outrasvezes,odiasefirmavanumaespéciedearcinzentoesemventos.Otempoestavasempreamenoobastanteparaficaremnapraia,eelesiamsempreaomesmolugar,àsdunasqueencontraramnoprimeirodia.Porvezes,Donaliacomeleseandavapelapraiacomsuacâmera.Mastodososesforçosdamãeedosirmãosparaconvencê-loaentrarnaáguafracassaram.Todos os dias, ele ia à sala de televisão do StrandHotel. Sempre havia algumas pessoas, contou,
vendo as notícias dos astronautas que se aproximavam da Lua.Às vezes, levavam os filhos também,criançasquequeriamfalaregritar,entãonãodavaparaouviroscomentáriosdeKevinO’Kelly.Donalgostaria que houvesse outro lugar para ele assistir televisão sem interrupções; um homem de Dublinficavaotempotodolhedandoconselhossobrecomofocalizaracâmeraecomotirarfotosmelhores.“Nadaéperfeito”,Noradisseaele.“Omundoéfeitodepessoasassim.Agradeçaaele,sorriaeo
ignore.”Fionajáhaviafeitoentrevistaseconseguiraumempregonumaescolanacidade,sobacondiçãode
quefosseaprovadanasprovasfinais.QuandotelefonouparaaEscoladeFormaçãodeProfessoresnumacabinetelefônicadopovoado,Fionarecebeuainformaçãodequetinhasidoaprovadaequeagoraeraprofessora formada.Combinou com uma amiga para ir buscá-la e pediu dinheiro emprestado aNora,prometendo devolvê-lo quando recebesse o primeiro pagamento. Embora dissesse que ia voltar paraficarcomelesnotraileratéofimdasférias,Noranãoachavaqueelavoltasse.Agoraestavasozinhacomostrês.Comseucartãodabibliotecaeoscartõesdeseusdoisirmãos,Aine
tinhapegoumapilhadelivrossobrehistóriaepolítica,otipodelivroqueinteressariaaMaurice.Certodia,comprouumacadeiradobrávelbaratanalojadopovoadoecomeçoualevaracadeiraeoslivrosparaapraia.AineianadarcomNoraeConoresemostravagentil,porém,depoisqueairmãfoiembora,passou a ficar estranhamente distante.Quando não estava lendo,mantinha-se calada amaior parte dotempo,eNoraachavaqueAinenãoqueriaqueinterrompessemseuspensamentos.Quandopassarampelaquadra de tênis,Nora perguntou aAine se ela não gostaria de entrar para ver um jogo, pois lá haviarapazesemoçasdaidadedela,masAinenãosemostrouinteressada.Uma noite, Donal recebeu permissão especial para ficar até tarde no hotel, pois possivelmente a
caminhadanaLuateriainício,eelequeriatercertezadequenãoiaperdê-la.Jáhaviausadoquatrorolosdefilmesfotográficos,osquaisguardavanumabolsaespecial,eNorasabiaqueelepassariaorestodoverãorevelandoosfilmesnacâmaraescura.FicoucombinadoqueNorairiapegá-loàsduasdamanhã.Emboraoestacionamentodotrailerficassepertodohotel,Noranãoqueriaqueelevoltassesozinhotãotarde.Noralevoualgumtempoesperandonaportadohotel,tocandoacampainhaaintervalosparachamaro
porteiro da noite, que veio atender com o gerente. Quando abriram a porta, olharam-na com ardesconfiado;ogerenteperguntouoqueelaqueria,Noraexplicoudelicadamentequetinhavindobuscarofilho,queestavanasaladetelevisãovendoopousonaLua.Oporteiroficoucomelanosaguão,enquantoseucolegafoibuscarDonal.OgerenteeoporteiropareciamhostiseNorasupôsquefosseporquehaviaperturbadoosonodeles.Nodiaseguinte,quandoostrêsestavaminstaladosnolugardecostumenapraia,Norafoiparaomare
deixouAinelendoeConorespiandoaspáginasdeumarevistaemquadrinhosqueelehaviacompradocomodinheiroquetioJimlhedera.Asondascontinuavamaltas.QuandoConorestavacomela,Noraprecisava tomar contadele enão relaxavanadando sozinha emáguasmais fundas.Agora, pôdenadarparaalémdasondas,ondeaáguaeramaiscalmaeelapodiaboiar,olharparaocéueexercitaronadodecostas,queaprenderaanosantes,semnuncatê-loaprimorado.Noranãoestavaprestandoatençãoemnada,masquandovirouocorpoparapassarparaonadode
costas,viuAinenabeiradaáguaacenandoparaela.OndeestavaConor?,pensouNora.ParaondeConortinha ido?NoracomeçouanadaremdireçãoaAine,queestavanitidamenteaflita.Comohaviaoutraspessoasnapraia,NoranãoconseguiaentenderporqueAinenãochamavaosoutrosparaajudar.Norachegounadando,tossindo.“ÉoDonal”,disseAine.“Nãoseioqueéqueeletem.”“Elesofreualgumacidente?”“Não,masaconteceualgumacoisanohotel.”AineexplicouquetinhamditoaDonal,nohotel,quecomoelenãoerahóspedenãopodiausarasala
detelevisão.“Masésóesseoproblema?”“Émelhorvocêvercomoeleestá.”“Penseiquealguémtinhaseafogado.”“Eleestámeiohistérico,ouestava,quandoodeixei.”Donalestavasentadonumatoalhadepraia,longedeConor,queolhouparaamãeressabiadoquando
elachegou.Donalestavasebalançandoparaafrenteeparatrás,asmãosjuntasemvoltadosjoelhos,acâmeranumatirapenduradanopescoço.“Oqueaconteceu?”“Og-g-gerentequeestavalánan-n-noitepassadaestavaesp-p-perandopormimhoje.Dissequeas-s-
salaerasóparaoshóspedesenãoparag-g-gentedostrailers.Atéan-n-noitepassadaelep-p-pensavaqueeueraho-ho-hóspede.”“Vocêjánãotemfotografiassuficientes?”,perguntouNora.“Vou-p-p-perderop-p-pouso”,disseDonal,começandoasoluçar.“Todasasfotografiasquet-t-tirei
sãosóoc-c-caminhoparalá.”“Donal,vocênãopodetertudo”,disseela.“Nãoquerotertudo”,retrucouDonal.Norapegouumatoalhaecomeçouaseenxugar.SeMauriceestivessevivo,pensou,Donalnãoteriase
tornadotãoobcecadopelasuacâmerafotográfica.Semdúvida,Donalnãoteriaumacâmaraescuraàsuadisposição.Noratentoulembrarcomoeleeraantesdetudoaquiloacontecer.EntãolembroucomoDonaleraligadoaMaurice,comoiapassardoprimárioparaosecundárioecomeçariaafrequentarasaulasdeMaurice,sentarnofundodasalaeesperarpelopai,oudesenharnoquadro-negro,setivessepermissão.ElesabiadecorohoráriodasaulasdeMaurice,quediaseleterminavamaiscedoeemquediasdavaaula para os alunos que iam fazer a prova de conclusão do secundário, e por isso não podia serperturbado.Norasuspirouquandotirouotrajedebanhomolhadoetrocouderoupa.Suasirmãslhediriampara
nãofazerisso,eprovavelmenteJosietambém,esuamãelhediriapalavrasduras,seestivesseviva.Mas,adespeitodetodaselas,Noratinhacertezadequeeraocorreto.Fiona,pensou,estavaemcasa.Portanto,Nora podia levar Donal de carro à cidade e deixá-lo aos cuidados de Fiona. Ele quase não ia dartrabalho,porqueasúnicas coisasqueo interessavamagora erama televisãoe a câmara escura.NorasabiaqueFionaficariaaborrecida,queelaqueriaacasasóparaela,econvidarasamigas.MasNorasentiuquenãotinhaescolha.Primeiro,iriaaopovoadotelefonarparaMargaret,notrabalho;sabiaqueelaadorariaprepararochádeDonalnofimdatardeever,natelevisão,opousonaLuacomele.MasDonal nãopoderia dormir na casadeMargaret; nãohavia lugar para ele.Tinhadedormir naprópriacama.NorafariaDonalprometerquenão ia fazerbagunçanemamolarosoutros.PensouemtelefonarparaTomO’Connor,seuvizinho,epedirqueavisasseFionadequeelesestavamindo,masresolveuqueomelhoreraapenaslevarDonalparacasaedeixá-lolá.Torciaparaquenãofosseumasurpresagrande
demais para Fiona, mas ela que reclamasse o quanto quisesse, pensouNora. Seria só até terminar atransmissãodopousonaLuapelatelevisão.Nocarro,NoraolhoucomarseveroparaDonal,queapontavasuacâmeraparaopara-brisa.“Donal, guarde a câmera no estojo. Estou tentando dirigir, e a última coisa de que preciso é você
apontandoessacâmeraparaascoisas.”“Possos-s-sentarláatrás.”“Fiqueondeestáenãomeperturbe”,disseela.Assimqueenfiouachavenaportadecasa,Norasentiuocheiroazedodeálcool.Olhounasaleta,mas
nãohaviasinaldebagunça.Nasaladeestar,tevedeacenderaluz,poisascortinasestavamfechadas.Eraevidentequetinhahavidoumafesta.Nãoimportavaoqueelafizesseagora,seriasóumaencenação.AchouqueFionaestavaláemcima,nacertadormindo.Norapoderiaacordá-la,indignada,eobrigá-laaselevantarparaqueconversassemeelaesclarecessequemtinhaestadonacasananoiteanterioreatéquehorashaviaficadolá.Oupodiacomeçaralimparasujeiranaqueleinstante,paradeixarFionaaindamaisenvergonhadaquando,afinal,aparecesse.Aoexaminarasalacommaisatenção,seguiuadireçãodosolhosdoapavoradoDonal.Haviaumcinzeirocheioatéaborda,ao ladodeumagarrafavaziadevodca.Noraabriuascortinasea janelae,enquantofazia isso,ouviubarulhonoquarto láemcima,oquartoemqueFionaeAinedormiam.Rapidamente,Noradecidiuiremboraefingirquenãotinhavistoaquilo.“Fionavaiarrumar tudoisso”,disse,“portantoémelhorvocêpegarumacadeirae ligara televisão
antesqueoshomensacabemindoparaoutroplaneta.Voudeixardinheiroparaacomida,masvocêpodeirparaacasadatiaMargaretparatomaroseucháhoje,esuatiaUnatambémvaidarumpuloaqui.”“EaF-F-Fiona?”,perguntouele.“Conteaelaoqueaconteceunohoteleexpliqueporqueprecisadatelevisão.Edigaquevolteipara
Curracloeeque,sealguémquiserfalarcomigo,sabeondemeencontrar.”“Mascomovamosentraremc-c-contato?”“Nãosei.Peçaaosseushomensdoespaçoqueelesajudemamandarumamensagem.”Ouviramoutrobarulhonoquarto.Fionatinhasaídodacama.“OquevoudizerparaF-F-Fionasobreisto?”Eleapontouparaabagunçanasala.“Digaqueestacasajáteve…Não,apenasdigaaelaparaprovidenciarcomidasuficienteparavocê,e
nãosemetanavidadela.”Donal olhou para Nora, perplexo. Então assentiu com a cabeça e sorriu. Quando ouviram a porta
abrindonoandardecima,Noracolocouodedosobreoslábioselheentregouumachavedecasa.“Temcertezadequequerficaraqui?”,sussurrou.“Tenho”,respondeuDonal.NorachegoubempertoerevirouocabelodeDonalcomcarinho,enquantoeleseencolhia,sorrindo.“Semudardeideia…”“N-n-nãovoumudar”,elesussurrou,eNoraseesgueirouparaforaemsilêncioefechouaportasem
fazerbarulho.Nosdiasseguintes,notrailer,ostrêsficaramsossegados.Conorcomeçouairàquadradetênisefez
amizadecomdoismeninosdacidadedeWexford,queestavamdefériasnumadascasasdetetodepalhapertodeCulleton’sGap.Ànoite,NoraiabuscarConorapé.Demanhã,oardentrodotrailereraquenteesufocante.Quandoacordava,Noraiatomarbanhonobanheirodaáreadetrailersedepoiscaminhava
atéapraia.Emcertasmanhãs,aneblinaeratãoespessaque,apesardeouvirorumordasondascomoumrugidoabafado,Norasóconseguiaveraáguaquandochegavabempertodomar.Nosúltimosdiasdasférias,NoracomeçouasesentirculpadaporDonalestarsozinhoelongedeles.
Foi até o povoado e ficou parada junto ao quiosque do telefone, pensando se ligava paraMargaret.Colocoumoedas na fenda e tinha discadometade do número do telefone deMargaret, quando se deucontadequenãoqueriaouvirMargaretquestionandoseelahaviaagidocomsensatezaodeixarDonalsozinho. Pôs o fone de volta no gancho, apertou a tecla B para recuperar asmoedas e usou-as paratelefonar paraUna, em seu trabalho.Apressada, perguntou se ela podia levarDonal para o trailer noúltimofimdesemanadas férias.Quandosentiua friezadeUna,NorafingiuquesuasmoedasestavamacabandoesótevetempodeouvirUnadizerquelevariaDonalaCurracloenosábado.QuandoUnachegoucomDonal,Noraviuqueeleiaterquecomeçarafazerabarbaetentoulembrar
seemalgumlugardacasaaindahaviaaparelhoeescovadebarbaecremedebarbear.Masentãopensouque, se aindanãohavia jogado tudoaquilo fora, eramelhor jogar logo, junto com todas as roupasdeMauricequeaindaestavamnoarmário.Assimquechegassememcasa,pensouNora,comprariaprodutosdebarbearnovinhosparaDonal.NoranãoficousurpresaquandoAineanunciouqueiavoltarparaacidadecomUna.Oresultadode
suasprovas seriadivulgadoembrevee, seo resultado fossebom,eladevia seprepararpara irparaDublin, onde cursaria a universidade. Nos últimos dias, ela quase não havia falado e estava maisenvolvidadoquenuncacomoslivros,iaparaapraiaemhoráriosdiferentesdeNoraenadavasozinha,quando as coisas estavam mais tranquilas, às seis ou sete horas da tarde. Muitas vezes armava suacadeiradepraianumasombra,aoladodotrailer,enãoprestavaatençãoemninguém.NorasorriuquandoUnacontouqueFionaandavamuitoserenaeajuizada,equeNoratinhamuitasorte
depoder confiar nela e deixá-la sozinha emcasa.Exprimiu surpresaporNora ter deixadoDonal aoscuidadosda irmãedissequeagagueiradelepareciapiordoquenunca;elanãosabiacomoDonal ialidarcomaquilo.Noúltimodia,Noraarrumoualgumascoisasnocarrodemanhãedeixouosmeninosdormindo.Ao
caminharparaapraia,sentiuoventoqueahaviaacordadoduranteanoite.Aneblinatinhaidoemboradetodo. Nuvens corriam pelo céu, barrando o sol, e depois o sol apareceria de novo com seu calorenfraquecido.Noranadouparaofundo,enfrentandoaságuasfriasdamanhã,edescobriuqueobancodeareia,queficaraalitodososdiasemqueasondasestiveramaltas,tinhadesaparecido,dissolvidopelaforça da maré. Nora encontrou uma profundidade que lhe agradou e começou a nadar com braçadaslargas,quelhederamvelocidadeedepoisacansaram.Quandosentiuosbraçosdoloridosdemais,Noraviroude costas e flutuou,deolhos fechados, tentandoesvaziar amente.Nadarváriasvezespordia adeixaramaisforte.Elaiavoltarmaistarde,antesdedevolveraschavesdotrailer.Conortambémvirianadarpelaúltimavez,pensouNora,edeixariamDonalfazeroquebementendesse,ficarnotrailer,sequisesse,apontandoacâmeraparaaparede.FionanuncafaloudafestaquehaviadadoemcasaeNoratambémnãotocounoassunto.Elajátivera
problemasdesobracomaprópriamãe,pensou,paraagoracriarproblemasdesnecessáriostambémparaasfilhas.QuandosaíramosresultadosdoexamedeconclusãodocursosecundáriodeAine,asnotasnãopodiamsermelhores,eissosignificavaqueAineiriaparaoUniversityCollegedeDublin.Noragostavaquandoaspessoasqueencontravanarualhedavamparabéns.Sentiaatentaçãodedizerqueosucessodas filhas tinha muito pouco a ver com ela, mas achou que as pessoas poderiam entender mal suaspalavras.
Nasemanadeseuregressoaotrabalho,todosandavammuitoatarefadosnaempresadosGibney,poispartedosfuncionáriosestavacuidandodosnegócioscomosfazendeiros,medindoaumidadenotrigoecalculandoovalordecadacarregamento.Noraficoutrabalhandoalgumastardes,paragarantirquetudoque era de sua responsabilidade estivesse em dia e em ordem.À tardinha, quando ainda estava bemclaro, iadecarroaCurracloeparanadaredavacaronaparaquemquisesse ir junto.Conor ficavanaquadrade tênisenãoqueria iràpraia,eAineeDonalandavaminteressadosdemaisnosprotestosdeBelfastedeDerryenãoqueriamperderasnotícias.SóFionaiacomela.Norasouberadosaláriodafilha,umchequetododia10eoutrotododia24domês,cujototalalcançavaumvalormaiordoqueosaláriodeNoranaempresadosGibneyedesuapensão,somados.Noraprecisoutomarcuidadoparanãodeixar transparecerqueachava issoestranho; imaginavaqueela eFiona, a certa altura, iriamdiscutircomquequantiaafilhairiacontribuirparaasdespesasdacasa.Nosegundodia,quandovoltavamdecarroparacasa,Fionadisse:“Euqueriapediravocêmaisum
empréstimo.Pagoassimquerecebermeusalário”.“Vocêestásemdinheiro?”,perguntouNora.“EuqueriapassarumasemanaemLondresantesdofimdoverãoedeeucomeçara trabalhar.Uma
porçãodegarotasdaEscoladeFormaçãodeProfessoresfoidenovoparaLondresesteanoeeutenhoondeficar.”“Londres?Sónasférias?”“Sim.”NoraestavaquasedizendoquetambémgostariadeiraLondresequenuncatinhaestadolá,masse
conteve.“Edequantovocêprecisa?”“Penseiemcemlibras.Eupagoparavocêcomomeusalário.Asgarotasestãodizendoqueaslojasde
roupasestãobemmaisbaratasemelhoresesteano.Evouprecisarderoupasparatrabalhar,edepois…bem,eusaiobastantenosfinsdesemana.Precisoderoupas.”NoraseperguntousehavianaquiloalgumacríticaimplícitaàmaneiracomoatéentãoFionatinhasido
provida,masnãodissenadaeseconcentrounaconduçãodoveículo.Pensounumaporçãodecoisasparadizer, inclusiveque tinhade levantar todasasmanhãspara ir trabalhara fimde sustentarFionaequeprecisava controlar cada centavo que gastava. A ideia de receber o dinheiro de volta quando Fionativesse seu salário não lhe interessava. A questão era o dinheiro ser gasto daquela maneira fútil, odinheirosergasto,epronto.NorapretendiaconversarcomFionasobreodinheironofimdesemana,masnãosabiaoquedizer.No
sábadodemanhã,deitadanacama,concluiuqueseriamelhorrecusar,casoFionaretomasseoassunto,masnocorrerdodiasuadeterminaçãoesmoreceu.Tudoqueelaqueria,pensou,eranãoterquediscutiraquilooutravez,ouimaginarFionaenvolvidanumamaratonadecomprasemLondres.Decertomodo,aideia de ter de conversar sobre aquilo ou ouvir argumentos sobre o assunto despertava emNora umaraivaestranha.Àtarde,otempoestavafrio,comocéuameaçandochuva.Sentadanafrentedajanela,lendojornal,
elapercebeuDonalseaproximandodacasacomumacaixagrande.Norahaviasecondicionadoanãofazerperguntasdemaisanenhumdeseusfilhos.Quandoelaerajovem,sechegavaemcasacomqualquertipodeembrulho,suamãeprecisavasaberoquehaviaalidentroou,sechegavaumacartaparaela,amãeprecisavasaberdequemeraequaloconteúdo.Norasempreachouissoirritante,entãotentavanãoseintrometernosassuntosdosfilhos.Maistarde,quandodeuumaolhadanasala,viuAineeDonalajoelhadoscomumapilhadefotografias
nochão,aoladodacaixaqueNoratinhavistoDonaltrazer.
“SãoasfotosqueDonaltiroudosprotestosemDerryedosincêndiosemBelfast”,disseAine.Donalestavatãoconcentradoexaminandoseutrabalhoquenemergueuosolhos.“Mascomofoiqueeletirouasfotos?”,perguntouNora.“Pelatelevisão”,respondeuAine.As fotografiaserambemgrandes.Noraolhouporum instante,depois seajoelhouparavermaisde
perto. Era difícil distinguir o que estava acontecendo nelas,masNora viu vestígios de fogo e vultoscorrendo.Eramturvas,quaseborradas.“Foiaquiqueeufizasobreposição”,disseDonal,comoseestivessefalandoconsigomesmo.Nora
notouqueelenãotinhagaguejadoeficoutãogrataporissoquedecidiutomarmuitocuidadoparanãocriticarnada.“Vocêdeviapôrasdatasatrásdelas”,disseAine,“mesmoquesejamdeduasdatasdiferentes.”“VouarranjarumasetiquetasnalojaGodfrey’s”,disseele.Norasaiudasalanapontadospésefoiparaacozinha.ElaseperguntouseJimouMargarettinham
vistoasfotografiasesetinhamconsideradoopreçodopapelfotográficoetodootempoqueDonalhaviadespendidonacâmaraescuraqueeleshaviamconstruídoparaele.Ànoite,viramonoticiáriodasnovehoras.AtéConorassistiu,imóvel,epareceusombrioquandoo
jornalmostrouimagensdeDerryeBelfast.Noranãotinhavistonenhumnoticiárioaolongodasemana.Agora,aspessoasemBelfastcorriampelasruas,fugiamdeprédiosemchamas,eracomoalgumacoisaqueNoratinhavistoanosantesemcinejornais,imagensdaguerraoudopós-guerranocinemaAstor.Sóqueaquiloestavaacontecendonaquelemomento,ebempertodeles.“Vocêachaquevaiacontecertambémaqui?”,perguntouFiona.“Oquê?”,perguntouNora.“Aviolência,arevolta.”“Esperoquenão”,respondeuela.“Oqueessaspessoasqueabandonaramsuascasasvãofazer?”,perguntouFiona.“Elasvãoatravessarafronteira”,disseAine.Donalestavacomacâmeraempunho,apontadaparaatelevisão.Nodomingoseguinte,NoraconvidouJim,Margaret,UnaeSeamusparatomaremcháecomemorarem
aconclusãodocursodeformaçãodeprofessoresdeFionaeaaprovaçãodeAinenasprovasfinais.Afamília, ampliada, sentou-se para o chá às seis horas, e amesa foi estendida, como faziam noNatal.Seamus sentou-se ao lado deConor e entabulou uma conversa com ele sobre regras do futebol.Noraobservou que Seamus quase não falava com ninguém e concluiu que devia estar nervoso. As jovenstinham feito saladas, havia frios e molho chutney, além de pão integral fresco, que ela mesma haviaassado.UnafoiaprimeiraalevantaraquestãosobreoqueocorrianoNorte.“Éterrível”,disse.“Aquelapobregentequeimadadentrodaprópriacasa.”Todosassentiramcomacabeçaesefezsilêncio.“Acho que o nosso governo é tão responsável quanto o governo inglês”, disseAine. “Quero dizer,
deixamosissoacontecer.”“Bem,eunãoiriatãolonge”,retrucouJim.“Nãofizemosnadapormuitosanos”,disseAine.“Deveserdifícilsaberoquefazer”,disseMargaret.“Acho que demos aos protestantes todos os sinais de que eles podiam fazer o que quisessem”,
explicou Aine. “Quero dizer, existe todo tipo de discriminação, inclusive a manipulação das zonas
eleitorais.”“Oqueéisso?”,perguntouConor.“Éumexpedienteusadoparadividiraszonaseleitoraisdemodoqueovotodealgumaspessoastenha
menospesodoqueovotodeoutras”,explicouAine.Conorsemostrouperplexo.“Lembroqueodr.DevlineradeCookstown”,acrescentouUna,“eelemedissequeumcatóliconão
conseguiaarranjarumempregodignolá.Mesmoquefossemédico.PorissoeleveioparaoSul.”“Até hoje eles não conseguem emprego”, disseAine. “Acho que está na hora do nosso governo se
opor.”“Eoquepodemosfazer?”,perguntouUna.“ParaqueserveonossoExército?”,perguntouAine.“Quemimpediriaossoldadosdemarcharempara
Derry?Ficaapoucosquilômetrosdafronteira.”“Oraessa”,exclamouSeamus.“Nãocreioqueseriasensato”,disseJim.“Edequeserveasensatezquandoaspessoasestãovivendocommedodeperderavida?”,questionou
Aine.“Ah,achoquenósaquidoSuldevemossercautelosossobreoquefazer”,disseMargaret.“Enquantoaspessoasestãosendomortas?”,questionouAine.“Issonãoénadabom,éverdade”,reconheceuJim.“Nãoécurioso?”,observouAine.“OExércitoirlandêspodeiraoCongoeaChipre,masnãopodeir
aDerryajudarnossopovo.”Nora tentava atrair o olhar deAine para sinalizar que eramelhormudar de assunto,masAine não
olhavaparaela.TinhaosolhoscravadosnotioJim.“Nãoseicomotudoissovaiacabar”,disseUna.“Ah,daquiapoucoacaba”,disseSeamus.“Eunãotenhotantacerteza”,disseMargaret.“Émesmoumhorror.EueJimvimosnonoticiárioda
tevêontemànoite.Foidifícilacreditarqueestavaacontecendononossopaís.”Ainepareciaprestesadizeralgumacoisa,masdesistiu.Amesaficouemsilêncioporalgunsminutos.“FionavaiparaLondres”,disseConor,olhandoemvoltaàprocuradeumsinaldeaprovaçãoaseu
comentário.“Conor!”,exclamouFiona.Jim,Margaret,UnaeSeamusolharamparaFiona.Pelareaçãodela,ficouclaroqueConortinhaditoa
verdade.“Londres”,disseMargaretemvozbaixa.“Vocêvaimesmo,Fiona?”“Euestavapensandoemirdenovoesteano,sóporalgunsdias,antesdeeucomeçaradaraula”,disse
ela,“eessemalandrinhosem-vergonhadeveterouvidoalgumaconversaminha.”“Vai terummontedeprotestantes emLondres”,disseConor. “Elesvão tacar fogoemvocêe fazer
vocêcorrerpelarua.”“EmLondres,nãot-t-temp-p-protestantesdeverdade”,disseDonal.“Londresémuitobonita”,disseMargaret.“Eondevocêvaificar,Fiona?Sabe,eutenhoanotadoem
algumlugaronomedolocalondenoshospedamos.Éumhotelondeirlandesessãomuitobem-vindos,umhotelpequeno.Ouvocêvaificarnomesmolugardoanopassado?”“UmaporçãodegarotasdaEscoladeFormaçãodeProfessoresfoilánoverão.Elastrabalharamem
hotéisetêmumapartamento”,contouFiona.“Seriaótimoparapassarunspoucosdias”,disseUna.
Fionatinhavencidoabatalha,ouoquequerquefosse,queelasvinhamtravandosobredinheiro.Deumjeitooudeoutro,quandoadiscussãosevoltouparaLondres,paraos lugaresondeelapoderia sehospedar e para os cuidados que devia tomar, a ida de Fiona a Londres tornou-se definitiva, e Jim,Margaret,UnaeSeamusconcordaramqueFionamereciaaviagemdepoisde terestudadotantoeque,depoisquecomeçasseadaraula,elaficariacontentedeterfeitoaviagem.Nofimdanoite,JimdeuaFionaeAineumenvelopecomdinheiroe,paracadamenino,dezshillings.
Maistarde,quandoestavamtirandoamesa,NoradisseaFionaqueiasacarodinheirodobancoquandovoltassedotrabalhonodiaseguinteequealevariadecarroparaRosslare,seelafossepartirdelá.“Seriaótimo”,disseFiona,esorriu.“Vouveroshoráriosdasbalsas.”
14.Nora estava olhando pela janela da frente quando Phyllis manobrou e estacionou seu carro com
segurança num espaço reduzido. Nora não estava esperando Phyllis, mas achou que seria cordial esimpáticoabriraportaeficaraliàesperadela.“Não,eunãovouentrar”,dissePhyllis.“Detestogentequeaparecesemavisarenãotenhoamenor
intençãodefazerumavisitasurpresa.”“Vocêémuitobem-vinda”,disseNora.“EusóvimdizerqueháumcoralemWexfordondetalvezhajavagas.Nãoseioqueelespretendem
fazer,masseriaumaexperiênciamaravilhosa,euconheçoomaestrodocoral,eeleéótimo,pelomenosquando está de bom humor, então eu tenho uma vaga automaticamente. Pois bem, falei com a LaurieO’Keefeeeladissequeestádispostaaensaiaralgumasmúsicascomvocê.Paraumteste.”Nora assentiu com a cabeça. Não quis dizer que Fiona e Aine foram aprender piano com Laurie
O’Keefeequedepoisdaprimeiraaulaasduasvoltaramparacasajurandoquenuncamaisiamvoltar.“Elanãoé…?”“Exatamente”,dissePhyllis.“Elanãoéparaqualquerum,inclusiveseusfilhos.Masseelagostado
aluno,émuitoboa,enaverdadeelatemmuitaafeiçãoporvocê.”“Elanemmeconhece.”“Billy,omaridodela,conhece,oufoioqueeledisse,eosdoisgarantiramqueestãodispostosafazer
tudoporvocê.Masnãomepeçaparaentraremdetalhessobreoqueelesdisseram.Sóseiqueficaramentusiasmadosquandomencioneiseunome.”“Oquedevofazer?”“Telefone para ela, combine um horário e deixe que ela ouça sua voz. Depois talvez você possa
aprenderumaouduasmúsicasparafazerotesteparaavaganocoraldeWexford.”“Vaidemorarmuito?”“Bem,conhecendoaLaurie…”NorapensousetomavaumadecisãorápidaepediaquePhyllisdissesseaosO’Keefequeelaestava
ocupadíssima.Enquantohesitava,viuPhyllisobservando-a.“Nãodemoredemais”,dissePhyllis.“EunãogostariaqueLaurieseofendesse.Elaémuitotalentosa,
sabe,ouera.Eudiriaqueelaachaacidadeumpoucomaçante.”NoraselembroudeumanoitenonovoauditóriodoConventodaApresentação,quandoela,Mauricee
Jim foram a um concerto destinado a levantar fundos para a Sociedade SãoVicente de Paula. LaurieO’Keeferegeuumaorquestra.Quandoseuestiloderegersetornoumaisvigorosoeexpressivo,Maurice
eJimcomeçaramarirbaixinhoeNoracutucouMauricecomocotoveloparacensurá-lo.Nomeiodoconcerto,Jimtevedeiraobanheiroefoiemsilêncio,prendendooriso.NoralançouumolharfuriosoparaMaurice antes de ele seguir Jim. Nenhum dos dois voltou para suas poltronas. Mais tarde, elarecordou,Noraencontrouosdoisencabuladosnofundodoauditório.
***AntesdePhyllisirembora,NoraconcordouemfazercontatocomLaurieO’Keefe,masnosdiasque
se seguiram, enquanto o telefonema ia sendo adiado, Nora se perguntava por que se mostrava tãodisponívelavisitasinesperadasdepessoasquepareciamsabermelhordoqueelaprópriacomodeviavivereoquedeviafazer.ImaginouquePhyllistentavaajudá-la,mastambémseperguntousenãoseriaumaboaideiamanteraportafechadaparavisitantesinesperados,passarseutempocuidandodeDonaleConor,deixandoqueaslembrançasdeMauricevoltassemàvontadeduranteodiaepermitindoquetaisrecordaçõesseprolongassematésedissolveremsozinhas.QuandoNorapensavaemcantar,osomdavozdesuamãevoltavacomnitidez,orgulhosaeconfiante
nasnotasagudas.Mesmoquandoamãeestavavelha,Noraconseguiadistinguirsuavozdasdemaisvozesnocorodacatedral.Noragostavaquandoaspessoaslhediziamque,quandosuamãeerajovem,avozdelapreenchiatodososespaçosequeaspessoasiamàmissadasonzehorasapenasparaouvi-lacantar.Noraselembrouque,naquelelongoperíodoinsoneemqueMauriceestavamorrendoeelasabiaque
teriapelafrenteumavidasolitáriacomosfilhos,elaimaginavateramãeaseulado,ouàsuaesperaemalgumlugar,ouquesuamãeconheciaumaprecepoderosaquemudaria tudo.Elahaviacultivadoumaimagemdamãecomoumaforçacalmaeflutuantenaquelequartodehospital.Faziasentido,oupelomenosfezsentidonaquelesdiasnohospital,quesuamãe,apesardetodafrieza
entreelaeNora,quisesseestarali,pertodeMaurice.Suamãehaviapartidoapenasseteanosantes.Naânsiadesemanteromaisdistantepossíveldaqueletemponohospital,desdeentãoNorahaviatentadomanteramãelongedopensamento;apresençasonhadadamãenãohaviaperseguidoNoranavidasemMauricequeelaviviaagora.DiasdepoisdavisitadePhyllis,quandoestavanocentrodacidade,apóscaminhardaWeaferStreetà
BackRoad,NorasedeucontadequeestavapertodacasadosO’Keefe.Pensousenãoseriamelhordarmeia-volta, regressar para casa e ir lá em outra ocasião, mas tomou coragem, pensando que, seresolvesse aquilo de uma vez, logo estaria terminado. Laurie O’Keefe, Nora sabia, tinha morado naFrança e havia sido freira em alguma fase da vida. Era a segundamulher de Billy. A primeira tinhamorridoeosfilhosdessecasamentojáestavamadultosemoravamsozinhos.Haviaalgosobreaprimeiraesposa que Nora não conseguia se lembrar bem; ela fora uma pessoa modesta, tinha certeza disso,lembravavagamentede terouvidoquenodomingoelasempre iaàmissadassetedamanhã,paraqueninguémvissecomoestavamalvestidaepareciapobre,apesardeomaridoterumbomnegócio.NoraabriueempurrouoportãozinhodacasadosO’Keefe,notoucomoojardimestavabemcuidado,
comotodasasjanelasdavelhacasaestavamlimpasereluzentesecomoaresidênciapareciaincomum,quase suntuosa. Billy agora estava aposentado; fora proprietário de uma companhia de seguros, outrabalhavacomseguros,eNorasabia,comosabiademuitascoisassobreaspessoasdacidade,queeleia todasasnoites,àmesmahora, tomarumagarrafadeGuinnessnoHayes’s,naCourtStreet,comsuabengalaempunho.Quandosubiuaescadinhadaportadafrente,Nora lembroualgoqueMaurice tinhaditocertavez—BillydetestavamúsicaefizeraumaobraparaqueoquartoondeLaurietocavaedava
aulasdemúsicafosseàprovadesom.Alémdisso,eleusavatampõesdeouvidotodavezquehaviaumaameaçademúsicanacasa.EraotipodedetalhedequeMauricegostava.Billyabriuaportae imediatamentepediuqueNoraentrasse,aomesmotempoqueseguravaumcão
labrador pela coleira. O vestíbulo era espaçoso e escuro, com quadros antigos na parede. Havia umcheirodelustra-móveis.Billycomeçouachamarsuaesposanoporão,mascomoninguémrespondeu,eletrancouocachorronocômodoàesquerdaedesceuosdegrausrangentesdaescadadoporão,pedindocomacenosdemãoqueNoraaguardassenasala.“Elanuncameescuta”,disse,parecendoachargraçadisso.Daliapouco,BillyO’Keefeapareceudenovo.“Eladisseparavocêdescer.”EleconduziuNorapelaescadaestreitaemargeadade livros,atéchegaremaumcorredorpequeno,
comladrilhosnasparedes.Abriuumaportaquedavaparaumaáreaclaraque,semdúvida, tinhasidoacrescentadaaosfundosdacasavelha.LaurieO’Keefeestavadepéjuntoaopiano.“Billy,quetalfazerumcháparanós?Ouvocêpreferecafé?”,perguntou.“Ebiscoitos,Billy.Aqueles
gostososqueeucomprei.”Sorriuparaele,quandoomaridofechouaportaaosair.“Ésóumpianodemeiacauda”,disse,comoseNorativesseperguntadosobreopiano,“eéclaroque
tenhooutroali,umpianodeparedeantigo,paraosalunosmartelarem.”Na sala, não havia outra mobília senão cadeiras velhas. Havia um tapete no chão e partituras
espalhadasnele.Asparedesestavampintadasdebrancoenelasviam-segravurasdepinturasabstrataspenduradasemdiferentesníveisdealtura.“Vamostomarnossocháaqui.”LaurielevouNoraparaoutrasala,quetinhaduaspoltronas,umtoca-
discosestéreo,alto-falanteseumaestantedochãoaoteto,repletadediscos.“Ninguémtemamenorpenadeumamulhercasadacomumhomemsemouvidomusical”,desabafou
Laurie.“Ninguém!”Noranãosabiaoqueaquilosignificavanemsedeviaresponderalgumacoisa.“Sabe,háumacoisaquegostaríamosdedizeravocêjáfazalgumtempo”,prosseguiuLaurie.“Quase
lhemandeiumacarta,quandomandamosocartãodamissa,masdepoisdecidiquefalariapessoalmentecomvocê,quandonosencontrássemos.”Sentaram-senaspoltronas.Noraolhouparao jardim lá foraporum instante,depoisolhoudenovo
paraLaurie.“EstávamosvoltandodecarrodeDublin, tínhamosficadoforaalgumtempo.Ah,primos,sobrinhas,
tudo isso!Então,quandoestávamosentrandonacidade,vimoso trânsito todoparado.Nemseiquantotempo tivemosde esperar emBlackstoops.Achamosquedevia ter havidoumacidente.Nuncapassoupelanossacabeçaquefosseumenterro.Nãoseiporquê.Nofim,abriovidrodocarroepergunteiparaalguémoqueestavaacontecendo.Ah, ficamoschocadosquandonoscontaram.SabíamosqueMauriceestavadoente.Masficamosmuitochocados.BillydissequeMauricetinhasidoótimoparaosfilhosdele,naescola,quetinhasidoumprofessorexcelente.Entãopensamosquesepudéssemosfazeralgumacoisaporvocê…”“Vocêssãomuitogentis”,disseNora.“AgoraaPhyllisdisseque…”“Nãotenhocertezadequeaminhavozsejagrandecoisa”,interrompeuNora.“Nãoexistemelhormaneiradesecurardoquecantarnumcoral”,disseLaurie.“PorissoDeusfeza
música.Vocêsabequeeutivemeusproblemas.Deixaroconventocomcinquentaanosequasesemamigonenhumnomundo.Foiocoralquemedeuânimopararecomeçar.Eraaúnicacoisaqueeutinha,aminha
voz,eopiano,emboraeutenhaaprendidoprimeiroatocarcravo.Foimeuprimeiroamor.”Billyentroucomumabandeja.“Eeste”,disseLaurie,apontandoparaBilly,“creioqueserámeuúltimo.”“Estásereferindoamim,Laurie?”,perguntouele.“Estou,masagorapodenosdeixarsozinhas.Temoscoisasparaconversar.”BillysorriuparaNoraesaiunapontadospés.“Sabe,eucanteiparaNadiaBoulanger”,prosseguiuLaurie,“eumacoisaqueeladiziaeraquecantar
nãoeraalgoqueagentefaz,masalgoqueagentevive.Nãoésábioisso?”Nora fez que sim com a cabeça, sem dar nenhuma indicação de que não sabia quem era Nadia
Boulanger.Tentouguardaronome,parafalarcomPhyllisdepois.“Mas,defato,precisoavaliarsuavozantesdecomeçarmosatrabalhar.Sabelermúsica?”“Sei,sim”,respondeuNora.“Nãomuitobem,claro,masaprendinaescolahámuitosanos.”“Talvezsejamelhorcomeçarmoscomalgoquevocêjáconheça.”Foiàoutrasalaevoltoucomlivrosdepartitura.“Bebaseuchá,dêumaolhadanestaspartituraseescolhaumacançãoquevocêconheçabem.Vouà
outrasalatocarpiano.Nãoseioquevoutocar,masseráalgodememória;talvezosomsirvaparanosaquecer.Sóvoureceberumalunoàsquatrohoras,portantotemostempodesobra.”Noratomouumgoledochá,baixouaxícaraerepousouacabeçanoencostodacadeira.Laurieestava
tocandoumamúsicamuitorápidaeembaralhada,pensou;quemquerqueativessecompostotinhausadonotasdemais.Eraumapeçaparavirtuoses,eNorateveaimpressãodequeelaqueriaseexibir.Quasesentiupenadelaporprecisarfazerisso.Semdúvida,nãoestavatocandoaquilopararelaxar.SeMauriceestivessevivo,Noraadorarialhecontardepoisoquehaviaacontecidoali,eelediriaqueBillyO’Keefetinhabonsmotivosparausartampõesdeouvido.Imaginesercasadocomumaex-freiraquetocavapiano!NorapodiaatéouvirotomdevozsecodeMauriceeveraexpressãodepurodivertimentoemseurosto.Folheou os livros de partituras; a maioria eram canções alemãs que ela nunca tinha ouvido, e se
perguntousePhyllisteriadadoaLaurieaimpressãodequeNoraconheciamaisdoquedefatoconhecia.Quando pegou um livro de canções irlandesas, todas pareciam tolas demais, ou antiquadas econvencionais demais, canções que ninguémmais cantava. Embaixo da pilha, havia partituras avulsascomalgumasMelodiasdeMoore.*Noradeuumaolhadaem“BelieveMe,ifAllthoseEndearingYoungCharms”,masachou-amuitoafetada.Entãoencontrou“TheLastRoseofSummer”;começouaexaminarasnotasecantarolavaaquelamelodiafamiliar,quandoLaurievoltouàsala.“Então,achoualgumacoisa?”“Bem,acheiisto.”Entregou-lheapartiturade“TheLastRoseofSummer”.“Eutiveumavelhapreceptoradenoviças,elaeradaAlsácia,quemechamavadeaúltimarosado
verãomesmo quando eu não estava atrasada.Ah, ela era uma rabugenta. Está junto aDeus, suponho,mesmoassimeraumavelharabugenta.”Laurievoltouàoutrasalaesentou-seaopiano.Noraaseguiu.“Agora,istonãoébomparaasuavoz”,disseLaurie.“Devíamosfazerunsexercíciosdeaquecimento,
emvezdejácomeçarmoscomumacanção.Masháalgoemvocêagoraquetalveznãoestejamaisdaquiapouco.Percebiquandovocêentrou.Vocêtem…”“Oquê?”“Vocêestevepertodooutrolado,nãofoi?”“Oquevocêquerdizer?”“Nãofaleagora.Deixe-meouvirsuavoz.Primeirovamospassaramelodia.”Elatocoueparou.
“Voutocarnumtommaisbaixoeveroqueagenteconsegue.”Laurietocou,concentrando-senamúsica,desacelerandoamelodiaàmedidaqueavançava.“Achoque jáposso tentar.Naverdade, nãodevíamos fazer isto,mas suavoz talveznuncavenha a
estartãoboaquantohoje.Deixe-metocarmaisumpouco,depoisdouosinalevocêentra.”Ergueuasmãosacimadasteclas,masnãoencostounelas.OsilêncionasalaeratãointensoqueNora
supôsqueeladeviamesmoseràprovadesom.Norasentiu-seinquieta,quasealarmadapelaforçadosilêncio,pelanecessidadequeLauriepareciaterdeumafortedramaticidade.Laurietocouasteclascomdelicadeza,movendoospedaisdetalmodoqueumsomgravenovoveio
dopiano.TocoumuitosuavementeeentãofezumsinaleNora,olhandoparaaletradacanção,começou:
Elanãosabiaquesuavozpodiasertãograve;e,comoLaurietinhaummododiferentedeprolongarasnotas,Noraseviucantandomuitomaisdevagardoquepretendia.Nãotevenenhumadificuldadecomarespiração nem medo de atacar as notas agudas. Teve a sensação de que o piano a controlava, aempurravaparaa frente,eoandamentopediaqueeladesseacadanota todoseupeso.PorcausadosespaçosqueLauriedeixava,Norateveaimpressãodeestarcantandonosilêncio;estavatãoconscientedosilêncioquantodasnotas.AlgumasvezesNorahesitava,porqueLaurieacrescentavafloreadoseelanãotinhasegurançadoquefazer,atéqueLaurieerguiaamão,edepoisabaixavaligeiro,paraindicarque Nora devia concluir as frases de modo mais incisivo e deixar que o piano acrescentasse osornamentos.Quandoamúsicaterminou,Laurienãodissenadaporalgumtempo.“Porquevocênãoexercitousuavoz?”,perguntouafinal.“Minhamãesemprecantoumelhordoqueeu”,respondeuNora.“Seeuativessepegadoaindabemjovem…”“Nuncagosteidecantar,edepoismecasei.”“Elealgumavezouviuvocêcantar?”“Maurice?Umaouduasvezes,nasférias.Masficouanossemouvir.”“Eseusfilhos?”“Não.”“Vocêguardouissoparasi.Sonegou.”“Nuncapenseinisso.”“Possoprepararsuavozparaumteste,eocoraltalvezprecisedecontraltos,elessempreprecisam,é
tudoquepossofazerporvocê.Vocêdeixouparamuitotarde,masissonãoaaborrece,nãoé?”“Não.”“Todosnós temosmuitas vidas,mas existem limites.Nunca sabemosquais eles são.Se alguémme
dissesse que aos setenta anos eu estariamorandonumapequena cidade irlandesa comumcorretor deseguros!Eaqui estoueu.Seiquequandocomeçamos,há algunsminutos, vocênãoqueriamaisvoltaraqui,porémagoraquer.Seiqueagoravocêquer.Vaivoltar,nãovai?”“Vou,sim”,respondeuNora.
***Nassemanasqueseseguiram,NorafoiàcasadeLaurieO’Keefeàsterças-feirasàsduashoras,eàs
vezesficavaaterrorizadasódepensarnisso,quandoacordavanodiadaaula,terrorqueaumentavaainda
maisquandoelasaíapelaBackRoademdireçãoàWeaferStreet.EsperavaquePhylliseosO’Keefenãotivessemcontadoaninguémsobre suasaulasdecanto.Noranãocontouno trabalho,nemaElizabeth.Haveriagentenacidade,inclusiveJimeMargaret,quearecriminariaporestartendoaulasdecanto,emvezdeestarcuidandodeseuemprego,desuacasaedosfilhos.Naprimeirahoradeaula,Laurienãoadeixavacantar;faziaNorasedeitarnochãoerespirar,ouficar
depéesustentarumanotapelomaiortempopossível,oucantaraescalaparacimaeparabaixo.DepoisNoraseconcentravanaprimeirafrasede“TheLastRoseofSummer”,eLaurieaensinouanãoinspirarapós “summer”, como estava fazendo, mas cantar sem respirar até o fim da segunda frase e depoisrespirardemodonatural,comoseestivessefalandooucontandoumahistória.Eraumaformadepassarastardesdeterça-feira,pensavaNoraàsvezes,umjeitodefazeralgonovo,
sairdecasaeirparaummundoisoladoeàprovadesomedetudoqueestavaacontecendodefato.FoientãoqueLauriecolocouduaspequenaspinturasabstratasemcimadopianoepediuqueNoraolhasseparaelas,frisoubemqueelanãodeviafazernadaalémdeolhar,queamudançadeverdadevirianãonasuavoz,masemalgodiferente,doqualelanãopodiatercerteza.“Vocêdeveolharparaelas!”,ordenouLaurie.“Olheparaelascomoseprecisassememorizá-las.”“Quempintou?”Lauriesorriuenãorespondeu.“Sãosólinhas?”,perguntouNora.“Oquesignificam?”“Olheparaelas,apenasolhe.”Uma não tinha nada a não ser riscos; a outra tinha quadrados.A pintura com riscos eramarrom; a
outra,azul.Algunsriscosestavamemrelevo,comoquerealçados.“Nãopense,apenasolhe”,disseLaurie.Elanãoestavabemcertasobreascores,poisasduaseramtãocheiasdesombrasquantodecor.Nora
olhouparaassombras,examinouapontamaisdensadasduaspinturasedepoisdeixouoolhocorrerdadireitaparaaesquerda,seguindoemdireçãoaobrilhoouaalguminício.“Oqueeuqueroquevocêfaça”,disseLaurie,“écantar,olharparaascoresenãopensarnaspalavras
nememmimnememmaisnada.Façaosomnascerdaquiloquevocêvê.”Quando a aula acabava,Nora se sentia livre de Laurie, e só pensava nos seis dias que tinha pela
frente, em que não teria de ficar parada junto ao piano, obedecendo ordens. Combinou de encontrarPhyllisnosábado,nosaguãodoMurphyFlood’sHotel,eperguntousobreLaurie.“Ou ela conheceu todomundo, inclusiveDeGaulle eNapoleãoBonaparte”, disse Phyllis, “ou não
conheceuninguémeviveunumconvento.Nuncaconseguientenderqualdasduasopçõeséaverdadeira.Eou era umaordemcomvotode silêncio e adoraçãoperpétua, ou as freiras passavamo tempo todocantandoebatendopapo.”“Elamemandafazerumaporçãodeexercícios”,disseNora.“Ela fazas coisasdo jeitodela.Enuncadáponto semnó.Billy construiuaquelas salasparaela e
comprouopiano”,dissePhyllis.“Eelasabetocarbem.Umdiaeuaouvifalandofrancêsaotelefone,entãopelomenosessaparteéverdade.”“Porquevocêmemandoulá?”“Porque elamepediu.Dissequenodia do enterroprometeu fazer qualquer coisa quepudessepor
você.Elatemumcoraçãomuitobom.Achoquetodasasex-freirastêmumbomcoração,éumalívioetantoparaelassaíremdoconvento.Talvezissosejaumacoisaruimdedizer.”“Elameobrigouaficarolhandoparaduaspinturasqueelatem.”
“Enquantocantava?”“Foi.”“Elafazissocompoucagente.Elajáfalouquecantarnãoéumacoisaqueagentefaz,masqueagente
vive?”“Já.”“Umdiaelamedissequeeupodiacantar tudooqueeuquisessequenão iaadiantarnada.Eunão
tinha,disseela.”“Nãotinhaoquê?”“Umacoisaextremamenteessencial.Nãoseicomosechama.”Naaulaseguinte,LauriedisseparaNoraolhardenovoparaascoresdapinturaetentarimaginá-las
começandoaganharvida.“Não existe absolutamente nada e depois,muito devagar, lá está, um tom de cada vez. Emergindo,
emergindo.”LauriequasesussurrouasúltimaspalavrasedepoisfitouNoracomumolharincisivo,enquantoNora
olhavaparaassombraseparaosmatizesdecor.Lauriefoiatéopianoetocouaintrodução.Noratinhaaprendidoaesperarofimdecadafrasepara
respirar,tinhaaprendidoaseguirosomdopianoeaencontrarumritmoapartirdoritmoemqueLaurietocava.Agoraelacantavacomumavozmuitomaisgravedoquequandofalava,eissoaconduziaaumaconfiançamaior,quandodeixavaavozvibrarnasnotas,comumtimbreescuro.SabiaqueLauriesempreverificavaseelaestavamesmoolhandoparaascores,eNoraaprendeuaconfiarnaexecuçãodeLaurie,emseutato,emsuacapacidadedereação.Quandocantava,Nora se concentravacom forçanumpequenoquadradodecor.Algopalpitavanas
profundezasdoquadrado,algoqueelaconseguiavercomclarezaporumsegundoequedepois,quandopiscavaosolhos,sumia.Quandoopianocessavaeacançãochegavaaofim,Laurienãosemexia.Noratambémpermaneciaimóvel.Sódepoisdeummês,quando já tiveraquatrooucincoaulas,Norasedeucontadequeamúsicaa
estavalevandoparalongedeMaurice,paralongedesuavidacomeleedesuavidacomosfilhos.Eaquestão não era só queMaurice não tinha ouvidoparamúsica e que amúsica fosse algo que os doisnunca haviam compartilhado.A questão era a intensidade do tempo que ela passava ali; Nora ficavasozinhaconsigomesma,numlugarparaondeelejamaisateriaacompanhado,mesmonamorte.QuandoPhyllismencionoudenovoaSociedadedoGramofone,Noraassentiucomacabeça,tentando
parecerséria.Entretodasascoisasqueaconteciamnacidade,esseeraoeventosemanalqueMauriceeJim,eporextensãoMargaret,achavammaisridículo.UmdeseusluminareseraThomasP.Nolan,eerafrequentadoregularmenteporumhomemdeGlenbrien,M.M.Roycroft,proprietáriodeumacasavelhaque,Phyllisdizia,eraestiloreiJorge,alémdeumagrandefazenda.Moravalásozinho,peloquediziam,comdoismildiscoseváriassalasrepletasdelivros.ChamarThomasP.Nolande“TomPipiNolan”eM. M. Roycroft de “Maluco Roycroft” dava um prazer infinito a Maurice e a Jim. Os dois riam, eMargaret também,easmeninas,seestivessempresentes,olhavamparaNora,apreciandoofatodeelanuncaacharaquiloengraçado.NoraconheciaThomasP.Nolanegostavadeseujeitocortês,etinhavistoM.M.Roycroftalgumasvezesdirigindoumcarrovelhoeesquisito;imaginavacomoseriaavidadeleemGlenbrien,perguntando-seseeleiaaDublincomprardiscoselivrosousepediaquelheenviassem
pelocorreio.AgoraPhyllisqueriaqueelafosseàsreuniõesdasociedade,todaasquintas-feiras,noMurphyFlood’s
Hotel.Cadasemana,disseela,umdosmembrosescolhiaamúsicaqueiamouvir.“Assimvocêficaconhecendoogostodetodoselese,claro,omaugostotambém.Otaldr.Radfordé
quemtemopiorgosto,coisasgrandes,compridas,modernas,alemãs,quedeixamagentenocauteadaatéomeiodasemanaseguinte.OmelhordetodoséCanonKehoe,elesótocasopranos.Conhecemaissobresopranosdoquequalquerpadredomundoocidental.”“Eunãotenhonenhumdisco”,declarouNora.“Oupelomenosnenhumquejánãofaçabastantetempo
queeutenhaescutado.”“Maisummotivoparavocêirlá;elesadoramquandoapareceummembronovo.”Todos ali eram pessoas que Nora conhecia por alto, inclusive um professor e um homem que
trabalhavanumdosbancos.CanonKehoe,elaviu,estavaencarregadodotoca-discosedosalto-falantes.Noranunca estiveranaquela sala dohotel, pelomenosnunca como lugar tão cheiodegente como
agora, com sofás e espreguiçadeiras. Perguntou-se se eles tinham sido providenciados especialmenteparaaSociedadedoGramofone.Talvez,pensou,elesfossemumexemplodopoderdeCanonKehoe.Amúsicadasemana,eleinformouaosmembros,foraescolhidapelosr.M.M.Roycroft,deGlenbrien,oqualcurvouacabeçanumcumprimentoedepoisentregouumpedaçodepapelacadaumdospresentes.Elenãoiafazernenhumcomentário,declarouosr.Roycroftnumtomligeiramentesério,preferiadeixarque a música falasse por si mesma. Começou pondo para tocar uma sonata completa para piano deSchubert.NorapensouemMauriceeemJimeconcluiuqueconcordavacomelessobreaSociedadedoGramofone.Sabiacomoseriafácilsoltarumagargalhadanomeiodetodaaquelasolenidade.Ninguémdavaumpionemsemexia.Quando,emseguida,osr.Roycrofttocouumapeçaorquestral,NorapercebeuqueBettyRogers,quelecionarapormuitosanosnaescolaprotestante,começouaregeramúsicacomamão,edepoiscomasduasmãos.Norapensouqueomelhorseriapedirdesculpaseseretirar.Emvezdisso, fechouosolhos. Imagensde seu trabalhovinhamà suamente, coisasque tinhamacontecidoouprovidênciasqueelaprecisava tomar.Quandoo intervalochegou,Norasedeucontadequenão tinhaouvidomúsicanenhuma,naverdade.Phyllisdissenobar:“Asegundapartevaisermelhor,prometo;avelhaBettyRogerspassaotempo
jogando sorrisinhos para cima do sr.Roycroft. Ela teriamais sorte se voltasse a atenção paraCanonKehoe,eissonãoélágrandecoisa.Maspelomenoselegostadesopranos.”“Bettyésoprano?”“Não,elanãocantanada.”“Elasempreregeamúsica?”“QuandoachaqueMaitlandRoycroftestáolhando.”Asegundametadedorecitalfoidedicadaàmúsicadevioloncelo,etodasaspeçasforamlentas,tristes
elindas.Noranuncatinhaouvidonenhumadelas,emboraosnomesdoscompositoresfossemfamiliares.Algumasvezes,quandoabriaosolhos,via todomundoouvindocomatenção.Olhouemvoltaparaoshomens na sala, para o próprio sr. Roycroft, para CanonKehoe, para o dr. Radford, para Thomas P.Nolan,etodospareciamnãosótristescomoestranhamentevulneráveis.Quandoorecitalterminou,BettyRogersfoiaprimeiraafalar.“Casals,claro,foiomelhor,nãoacha,sr.Roycroft?”“ParaBach,talvez”,elerespondeu.“MeumaridoachaCasalsmuitodissonante,nãoé,querido?”,acrescentouasra.Radford.
“Talvezsejaagravação,masnassonatasdeBeethoveneleperdeabeleza,agenteconheceabeleza,eelebuscaoutracoisa.”“Oqueonossonovomembropensasobreisso?”,perguntouCanonKehoe.“Euacheilindas”,respondeuNora.“Todas.”Vagarosamente,conduzidosporCanonKehoe,elessaíramdosaguãodohotel.“Sabe,aquelasgravaçõesdeCasalsdaspeçasdeBeethovenforamfeitasaovivo”,disseodr.Radford
emvozbaixa,“eachoqueagravaçãonãoficouboa.”“Masagentetemasensaçãodoinstante”,disseosr.Roycroft.“Creioqueissocompensa.”“Concordo totalmentecomo senhor!”, exclamouThomasP.Nolan. “Agente tema sensaçãodeque
estápresenteenquantoamúsicaéexecutada,nãoé?”Olhouparatodosembuscadeaprovação.FoisóentãoqueNoraviuJimtomandoumdrinquecomumhomemdoPartidoRepublicanoIrlandês.
Osdoisescutavamaconversasobrevioloncelistassemdisfarçarseudivertimento.AfisionomiadeJimmudouquandoavistouNora.Nãoconseguiupensarnoquefazer.Obviamente,elahaviacomparecidoàsessão da Sociedade doGramofone, a organização queMaurice e Jim tinham escolhido a dedo pararidicularizarem.Noravirou-separaPhylliseperguntouseelahaviagostadodorecital.“Prefiromúsicacantada”,ela respondeu,“massousóeu,ecomonasemanaquevemseráavezde
CanonKehoe,vamostercantorasdesobra.”Nora ficou perto de Phyllis na esperança de evitar Jim, que agora dava toda a atenção a seu
companheiro.“Éumacoisademocrática”,dissePhyllis.“Cadaumtemasuavez.Sóqueagentesurpreendecoma
músicadequealgumaspessoasgostam.”Quando ela contou aLaurieO’Keefe sobre aSociedade doGramofone,Laurie sorriu e balançou a
cabeça.“Alguémmecontouqueháumamulherláqueregeasmúsicasbalançandoasmãos.”“Agentepodefecharosolhos”,disseNora.“Euseriacapazdetorceropescoçodela.Imaginesó,regerquandonemfezcursoderegente!”“Bem,amúsicaerabonita”,disseNora.NodiaemqueJimeMargaretforamvisitá-la,Noraestavapreparadacasoelesquisessemsaberoque
elatinhaidofazernaSociedadedoGramofone.NoraseperguntouseDonal,quecostumavacontaràtiatodasasnovidadesquepodiamserdointeressedela,jánãoteriafaladodaquilo.Conversaramsobreacidadeesobreosmeninos,eelesperguntaramsobreAineemDublin.QuandoFionachegou,passaramadiscutir as vantagens das escolasmaiores comparadas àsmenores e os benefícios da educação livre.Algumasvezes,quandoNoraviuJimolhandoparaela,desconfiouqueeleestivessepensandonanoiteemqueaviunosaguãodohotel.MasJimnãotocounoassunto.Na quinta-feira seguinte,Nora se encontrou comPhyllis no bar do hotel para tomarem um drinque
antesdareuniãodaSociedadedoGramofone.“ÉdifícilsaberoquedizerdoCanon”,dissePhyllis.“Elefaladassopranoscomoseasconhecesse.”Nasala,amaioriadosmembrosjáestavamreunidos.Canonentregouatodosumalistadasfaixasque
haviaescolhido.“PrimeirovamosouvirasduasMarias:MariaCaniglia,queachoamelhorcantoradeVerdi,edepois
MariaCallas,queéaindamelhor,seéqueépossívelsermelhordoqueamelhor.DepoisvamosouvirJoan,Elizabeth,RosaeRita.Vamosterumbanquete.”Certodia,quandoestavanalojadeeletrodomésticosCloake’s,naRafterStreet,comprandoumnovo
ferrodepassarroupa,Noranotouumtoca-discosestéreocomumcartazdizendoqueseupreçotinhasidoreduzido.“Háalgoerradocomoaparelho?”,perguntouaovendedor.“Não”, respondeuele.“Estáperfeito,masvãochegarmodelosnovos.Todososoutros iguaisaeste
foramvendidosenãorecebemosreclamações.Esteéomodelodedemonstração,por issoposso ligarparaasenhoraouvir.”Nora olhou na direção da rua e torceu para que nenhum conhecido estivesse passando, quando
respondeuquequeriaouvirosomdoaparelho.“Procurenaquelesdiscos”,disseovendedor,“algumacoisaqueasenhoragostariadeouvir,enquanto
eupreparooaparelho.Éprecisopôrosalto-falantesbemafastados,ouaumadistância igualdotoca-discos.”Elaexaminouosdiscos,pensandoseomelhorseriatestarosomcommúsicacantadaouorquestral.
AcabouescolhendoumdiscointituladoSuamúsicafavoritaeentregou-oaovendedor.“Algumafaixaemespecial?”,perguntouele.“Não,deixeirtocandoalgumas.”Noraficouparadanassombras,paranãoservistadarua.Eraummovimentodoconcertoparapiano
deGriege,emboraovolumenãoestivessealto,Norateveaimpressãodequeopianistaestavadentrodalojacomeles.Ouviutodasasnotascomnitidez,masnãofoiapenasisso;tambémsentiuumaenergianaexecuçãoquefezosomparecerprementeepresente.Tinhahavidomaisumaumentoemsuapensãodeviúva,tambémretroativo.Elaaindatinhanobancoo
dinheirodeoutrospagamentosretroativos.NoentantoJim,Margaret,Una,eatéFiona,todosiamacharquetercompradoaquilotinhasidojogardinheirofora.Norapensousenãopoderiainstalarosomemseuquarto,paraqueninguémovisse.Masentãonemvaleriaapenacomprar.Quandoaprimeirafaixaterminou,elaiadizeraovendedorqueprecisavadetempoparapensar.Então
começou a faixa seguinte, o “Hino da Lua”, da ópera Rusalka, de Dvoˇrák. Em algum momento dopassado,Noratinhaouvidoa“Humoresque”deDvoˇráknumaversãoparasolodeviolino.Essaeraparasoprano. Canon Kehoe reconheceria o nome da cantora, pensou Nora, mas para ela o nome nãosignificavanada.Avozcresceufirmecomamúsicaedepoispairouacimadela.OqueNorasentiuentão,maisquetudo,foiumatristezaportervividotodosaquelesanossemterouvidoisso.Mesmoassimnãoconseguiusedecidirsecompravaounãootoca-discosestéreo.Seriatrabalhoso,pensou,pôroaparelhonocarro,instalarumamesabaixanasalaetentarpôrotoca-discosparafuncionar.Noranãosabiaquempoderiaajudá-laquenãofosseacharqueelatinhafeitoumacoisamuitoextravagante.Quandoamúsicaacabou,elaassentiucomacabeçaparaovendedor,indicandoqueeraosuficiente.“Voupensarmelhor”,disse,sorrindoemseguida.Algumassemanasdepois,elachegoucedoaohotel,paraareuniãodasociedade,eseviusozinhana
salacomodr.Radfordesuaesposa.Anosantes,elehaviaemprestadoumlivroaMaurice,Noranãose
lembravaqual,Mauriceesqueceuondehaviadeixadoolivro,eeleacabouperdido.Procuraramemvãopelacasainteira.Depoisdepedirváriasvezesolivrodevolta,odr.Radfordapareceunacasadeles,numsábadodemanhã,dizendoqueprecisavaconsultarolivroparaalgoqueestavaescrevendo.MauriceaindaestavadepijamaeNora,deroupão.Odr.Radfordficouparadonaentrada,altoeimponente.Disseque não iria embora até que o livro fosse encontrado. Nora lembrava de seu tom cheio de pompa edesdémquandoelalheofereceuumaxícaradechá.Mauricevasculhouasestantesdasaletaeconvidouodr.Radfordparaprocurartambém.Emseguida,Mauricefoiprocurarnoarmáriograndedasala,ondeeleguardavatodososseuspapéis.Quandoficouclaroparaodr.Radfordqueolivronãoserialocalizado,Mauriceconduziu-olentamenteparaforadacasa,fechouaportaeficoupreocupadoodiatodo.“Osenhorandatrabalhandomuito?”,elaperguntouaodr.Radford.“Ah,asaladeesperaenchedemanhãepermanececheiaodiatodo”,respondeuodr.Radford.Norapensouseodr.Radfordnãoirialheperguntarse,afinal,olivrotinhasidoencontrado.Elenão
deviateresquecidooepisódiodosábadodemanhã,anosantes.Quandoorecitalterminou,asra.RadfordlevouNoraparaumcanto,afimdeterumaconversaasós
comela.“Notamoscomovocêapreciamúsica”,disseela.“Vocênãofazomenorruídoquandoumdiscoestá
tocando.Adoraríamosquevocêfosseumanoitedessasànossacasa,emRiverside.Sabe,muitasvezestocamosdiscosànoite.”“Bem,nãotenhocertezaseposso”,respondeuNora.“Veja,tenhoosmeninosláemcasaenãogostode
ficarforamuitasnoites.”“Nosavisequandoquiserir.”Norarecebeuumtelefonemadasra.Radfordnotrabalho,perguntandoseelanãopoderiairqualquer
noitedasemanaseguinte.Noraficoutãosurpresaqueacabouaceitandoirnasegunda-feira,àsoitohoras.Naquela quinta-feira, na Sociedade doGramofone, os Radford sentaram perto dela, e algumas vezes,entre um disco e outro, a sra. Radford a cutucava com o cotovelo e fazia algum comentário sobre amúsica.Nasaída,odr.RadfordfaloucomNora.“Podetercertezadequenasegunda-feiravamostocardiscosdequeasenhoragosta,etalveztambém
possamoslheapresentaralgumascoisasnovas.”QuandoNoracontouaPhyllisoquehaviaacontecido,Phyllisinsistiuqueeladevialhestelefonare
cancelar.“Sãodoischatosdegalocha.ElesósabefalardoTrinityCollegeedaIgrejadaIrlanda.Atéchegoa
duvidarqueeletenhamesmoalgumpaciente.”“Porquemechamaram?”“Elesgostamdeimpressionarosoutros.”“Elesqueremmeimpressionar?”“ElesnotaramquetodosnaSociedadedoGramofonegostamdevocê.”“Eunãosabiaquealguémtinhasequernotadominhapresença.”“Depoisdetudoquevocêpassou,todospensamquevocêé…”“Oquê?”“Bem,umapessoamuitodigna.Entreoutrascoisas.”A casa ficava entre Mill Park Road e o rio. Havia uma entradinha com uma tabuleta que dizia
“Consultório”eemseguidaoutraentradamaiorquelevavaaumsobradodedoisandarescomjardimnafrente.Aportafoiabertapelasra.Radford.“PodemechamardeAli”,disse.“Nãovamosficarcomformalidades.Trevorestánoprimeiroandar.
Umantigopacientedele,ládosarredoresdeBlackstoops,andamuitofracoe,seotelefonetocar,Trevorvaiterquesair.Masémelhoreunãodizerquemé,senãoTrevormemata.Sabe,aquinóstratamosasinformaçõesdemodomuitoreservado.”Trevorapareceudepulôververmelhoecamisabrancacomocolarinhodesabotoado.“Sabe,achomelhor,antesdequalquercoisa,ouvirmosumpoucodeSchubert”,disse.“Nãoachabom?
Etambém,quemsabe,umgim-tônica?”Elealevoudovestíbuloparaasalacomprida,àdireita.Emredor,portodaparte,ondeoutraspessoas
tinhamcristaleirascomporcelanasouestantesdelivros,osRadfordtinhamdiscos.Otoca-discosficavanumabancada,comumenormealto-falantedecadaladodalareira.“OvelhoRoycroftseorgulhamuitodesuacoleção”,disseodr.Radford,“e,semdúvida,elepossui
raridades,masficouembasbacadoquandoveioaquiemcasaeviuoscômodosdoandardecima,ondeguardamosamaiorpartedosdiscos.Eutrabalhoduroe,enquantooutraspessoasgostamdegolfeouvãofazersafáris,édissoqueeugosto.Música.”Noraassentiucomacabeçaesorriu.Eradifícilsaberoquedizeremresposta.Asra.Radfordtrouxe
gim-tônicaemcoposaltos,enquantoomaridopôsumdisconoaparelho.“Achoqueestaéacançãomaisassustadoraemaistristequeexiste.Semprefazcorrerumcalafriona
minhaespinha.Éo‘Erlkönig’.”Durante uma hora oumais, o dr. Radford tocou canções alemãs e francesas, algumas rápidas com
acompanhamentodopianosaltitante,outrasmaislentasemaismelancólicas.Paracadauma,faziaumaintrodução, falando como um locutor de rádio. Quando retirava cada disco do aparelho, sua esposapunha-o com todo o cuidado de novo na capa e o recolocava em seu devido lugar na estante.A sra.Radfordtambémenchiaoscoposdelesaintervalos.“GostoudeRichardStrauss?”,perguntouele.“Nãosei”,respondeuNora.“Bem,acheiquedevíamosouviralgumasdessascançõesiniciais,quesãomuitodelicadas,edepois
tomar coragem e terminar com as Quatro Últimas Canções. Claro, nem sempre elas foram chamadasdessaforma.Sabe,achoqueeleeraocompositormaiscapazdecriarumclímaxdeintensidadesuperiordoquequalqueroutro.”O queNora sentia quando amúsica tocava, umamúsica que nada significava para ela, com tantas
subidasedescidasrodopiantesemuitopoucamelodia,eracomoosRadforderamsolitários.Seusfilhostinhamcrescido e ido embora.OsRadford estavam sozinhos num lugar onde havia pouca gente comoeles.EmDublinouLondres,talvezfossemmaisfelizes.Porém,acimadetudo,enquantoodr.Radford,animadopelogim,aumentavaovolumedoaparelhoatéficaraltodemais,Noraseperguntavaoquehaviaacontecidocomelaparateridopararali,naquelacasa,comaquelesdois,numanoiteemquepodiaestarem sua casa. Aliás, por que havia se juntado à Sociedade do Gramofone? Se algum conhecidodescobrissequeelahaviapassadoumanoitecomTrevoreAliRadford,iapensarqueNoratinhaperdidoojuízo.QuandoascançõesterminarameNoraselevantouparairembora,odr.Radfordperguntouqualera
seucompositorpredileto.Norahesitou,sentindo-semaisdoqueligeiramenteembriagada.“AchoqueBeethoven”,respondeu.
“Algumperíodoemespecial?”“Algocalmo”,respondeu,olhandoparaeledemodoincisivo.“Ah,sei.Ostriosquetemosnaquelacaixa,comMcCulloughPigot’s”,disseasra.Radford.“Sim,aindanãotocamos.Guardamososdiscosnovosaquiemcima.”Quandoeleencontrouodisco,mostrouacapaaNora.Tinhaafotografiadedoisjovenseumamulher.
Elaeraloura,comumrostoforte,esorriadiscretamente.Noradeduziuqueamulhereraavioloncelistae, naquele instante pensou que daria tudo para ser a jovem da capa do disco, ser ela agora, com umviolonceloaseuladoealguémafotografando.Quandoodr.Radfordpôsodiscoparatocar,elapensoucomoteriasidofácilseroutrapessoa,pensounosfilhosàsuaesperaemcasa,nacamaenoabajurnacabeceira e emseu trabalhodemanhã, tudoaquilo eraumaespéciedeacidente.Decertomodo, tudoaquiloeramenossólidodoqueasnotaslímpidasdoviolonceloquevinhamdosalto-falantes.Nora se concentrouno somgrave e suplicante.Aenergiada execução era triste edepois se tornou
mais do que triste, como se houvesse ali algo que os trêsmúsicos reconhecessem e em cuja direçãoestivessemcaminhando.AmelodiacresceumaisbelaeNoratevecertezadequealguémhaviasofrido,tinhaseafastadodosofrimento,depoisvoltadoaosofrimentoedeixadoqueeleperdurasseehabitasseseuinterior.QuandoNoraergueuosolhos,viuqueosRadfordestavamcansados.Asra.Radfordcomeçouamexer
nofogoda lareira.Noraqueriaestar longedelesagora,caminharsozinhaparacasa,atravessaraMillParkRoad,subiraruazinhaquedavanaJohnStreetedepoisseguirpelaJohnStreetatésuacasa.Quandooprimeiromovimentoterminou,elaselevantou.“Issofoilindo”,disse.“Esãotãojovens,osmúsicos.”“Porquevocênãolevaodiscoparacasa?”,propôsodr.Radford.Elecolocouodisconacapaeentregouaela.Norasabiaquenãopodiadizerquenãotinhaumtoca-
discosdecente,mas tambémnãoqueriaserobjetodacaridadedeles.Seaceitasse levarodisco,seriamaisdifícilrecusarahospitalidadedeles,casofosseoferecidadenovo.“Masvocêsmesmosaindanãoescutaramodisco”,argumentouela.“Sim”, disse o dr. Radford, “mas temos muitos outros discos que ainda não escutamos, e seria
maravilhososevocêficassecomele.”Nasaída,encontraramocasacodeNorae,quandoabriuaporta,odr.Radforddisse:“Depoisque
tiverescutadoodiscoalgumasvezes,nosconteoqueachou”.Norasorriu,agradeceuaosdoise,maissóbriaporcausadoarfriodanoite,foicaminhandoparacasacomodiscoembaixodobraço.Aindaquenãopudesseouvirodisco,pensou,poderiaficarolhandoparaacapaetentandoselembrardasnotasquetinhaouvido.Talvezfosseosuficienteporenquanto.
*ThomasMoore(1779-1852),compositorepoetairlandês.(N.T.)
15.Noratinhamedodegastardinheiro.Quandorecebeuopagamentoretroativocomoaumentodapensão,
teveocuidadodedepositá-lonobanco.Paraela,eraimportantemanterodinheirolá,casoprecisasse,eviviadoqueganhavanaempresadosGibney,desuapensãoedodinheiroqueFionalhedava.NoraseinteressoupeloministrodaEconomia,CharlieHaughey,quehaviacriadoaquelasverbaspara
asviúvas.UnaeSeamusodesaprovavamcomfirmeza,eJimeMargaretcontinuavamadeixarclaroquedesconfiavamdele.“AchoqueeleéumexcelenteministrodaEconomiaemereceumatrégua”,disseNora.“Ouvimosumahistória”,disseMargaret,“sobreumabebedeiranocomeçodamadrugadanoGroome’s
Hotel.”“Massempreháhistóriassobrepolíticos,sobretudoosbons”,rebateuNora.“DiziamqueValeraea
esposanãosefalavamequeSeánLemasstinhadívidasdejogo.”“Sim,masessashistóriasnãoeramverdadeiras,Nora”,disseMargaret.“Estasdeagorasão.”
***QuandoHaugheyfoipresoporcontrabandodearmas,MickSinnottentrounasaladeNoraparadara
notícia,seguidoporElizabeth.Desdequesetornarapresidentedosindicato,MickSinnottandavamaispresente.“ThomasdizqueeleestáemBridewell”,contouElizabeth,“equefoialgemado.Estavaimportando
armas,vejamsó.”Emsuaagitação,Elizabethnãopercebeuque tinha faladonão sócomNoramas tambémcomMick
Sinnott,comquemnormalmentenãotrocavaumapalavra.“Armasparaquê?”,perguntouNora.“ParavenderparaoNorte”,respondeuMickSinnott.“Ah,eleianosdeixarnumatremendaencrenca”,disseElizabeth.Todosnoescritóriofalavamdaprisão.Elizabethchamouumadasmoçasdoescritórioepediuqueela
fosseatésuacasapegarorádio.“Talvezorestodelesagoracriejuízo”,observouMickSinnott.“Desculpe,sr.Sinnott”,disseElizabeth,asra.Webstereeuprecisamostrabalhar.”“Ah,nãoqueroatrapalharo trabalhodevocês”, respondeuMickSinnott,esaiudasala,deixandoa
portaaberta.
Elizabethfechouaporta.“Thomasdizquedevehaverumaeleição”,eladisseaNora,“eovelhoWilliamadorariaverofim
destegoverno.EocaradepaudoSinnott temodesplantedeentraraqui.Éumapenaquealguémnãoprendatambémessesujeito.”Quando JimeMargaret foramvisitá-la,Noranotouque Jimestavadebomhumor; semovimentava
compassosligeirosepareciamaisjovem.“Noinício,ficamoschocados”,disseMargaret.“Sabe,nãoébomparaumpaísterumministropresoe
processado.”“Dequalquerforma,asituaçãojáestásobcontrole”,disseJim.“Sabe,algumaspessoasnãoachavam
queJackLynch tivessea intençãodedemitiraquelesministros.Masqualquerumqueovisse jogandohurlingnãoteriaamenordúvidadisso.Eleéumcavalheiroatélevarumempurrão;depoisvirabicho.Éumhomemcomquemeunãogostariadebrigar.”“Poiseunãoconsigomelembrardenadaqueele já tenhafeitoporalguém”,retrucouNora.“Seeu
estivessenoNorteealguémfosseincendiaraminhacasa,eugostariadeteralgumasarmas.”“Bem,elespodemobtersuasprópriasarmas”,respondeuJim.“Oquenãoqueremosnanossapartedo
paíséministroscontrabandeandoarmas.”“Haugheysempredeuatençãoapessoasemdificuldade”,lembrouNora.“Elesemprefoinojento”,disseJim.“Subiurápidodemais,essefoioproblema.Precisavaterpassado
maistemposentadonasúltimasfilasdoParlamento.Eraambiciosodemais.”“Jimnuncaconfiounele”,acrescentouMargaret.“Bem,elecuidoudasviúvas,quandonãoprecisavaterfeitoisso”,lembrouNora.Certanoite, tiaJosiechegousemavisar.ConversoucomFiona, repassandoonomedosprofessores
comquemhaviatrabalhadoeoiníciodesuacarreira,quandoavidaeramuitomaisdifícileasturmasdealunosbemmaiores.QuandoFionasedesculpouesaiu,Noraentendeuqueelanãoiamaisvoltar.OsmeninosvieramefalaramcomJosie.“Eles parecem bem melhor”, comentou Josie depois que os dois se afastaram. “Você tem sido
maravilhosa,éoquetodosacham.”“Édifícilsaber”,respondeuNora.“AgagueiradoDonalàsvezesficapéssima.”“Maseleparecemaisfeliz”,disseJosie.“Eumelembrodevocê,CatherineeUna,depoisqueseupai
morreu, e vocês levaram muito mais tempo. Era uma casa muito triste naquela época, mas as suascriançasestãoserecuperandobem,issoéqueéimportante.”“Nãoachoqueelesestejamserecuperando.Eununcamerecuperei”,disseNora.“Qualquerquesejaa
nossa idade, aprendemos a guardar essas coisas conosco.Não sei se seriamelhor levarDonal a umfonoaudiólogoemDublin.”“DeixeDonalsevirarsozinhoporumtempo.Deixeporcontadele.”Norasuspirou.“Eugostariadesaberoquefazercomele.”“Oqueeuvimfalarcomvocê,naverdade”,disseJosie,“équetenhoumdinheiroinvestido.Nãoé
muito, entretanto. Recebi os dividendos na semana passada e pensei que eu gostaria de fazer algumacoisaagradávelcomodinheiro,emeocorreuquedaquiaalgunsmeses,nofimdoverão,quandotudoestivermais calmo, seriaótimo ir àEspanha comvocê.Vocêbemqueprecisadeuma folgade todos
eles.”“Espanha?Ah,nãosei.”“FaleicomUnaeelasedispôsacuidardosmeninos.Tudoquevocêtemafazerépedirsuasfériasna
empresadosGibney.”“Tenho trabalhado emperíodo integral, quando eles ficammuito atarefados lá,mas não sei se isso
significa que tenho direito a dias de folga, além das minhas férias. O que eu sei é que ficarei emCurracloeouemRosslarecomosmeninosporduassemanas,aconteçaoqueacontecer.”“Vaipensarnisso?”“Émuitagenerosidadesua.”“Umasboasfériasebastantesol.Evocêsemprefoiumaótimanadadora.”“Nuncaandeideavião.FuiaoPaísdeGalescomMauriceumavez,masfomosdebarco.Enemtenho
passaporte.”Demanhã, quando acordou, Nora achou que não devia ir. Teria que tomar providências demais e
acabaria se preocupando por estar muito longe dos meninos, que ainda ficavam perturbados comqualquer coisa. Uma semana depois, recebeu uma carta de Josie com as datas possíveis. Retardou arespostae,porfim,depoisdeconfirmarnaempresadosGibneyque,emvezdeganharhorasextras,elapoderia tiraralgunsdiasdefolga,NoraestavaprestesaresponderaJosiequeaceitavairaSitges,naEspanha, nas duas primeiras semanas de setembro.Depois, contudo, voltou atrás, pensando que seriabomficarduassemanasemcasa,semanecessidadedeirtrabalhartodososdias,etambémselembrouqueserianessaépocaqueosmeninosiamvoltarparaaescola.Passados quinze dias, Nora soube que Josie tinha entrado em contato com Una e com Margaret,
pedindoqueas irmãsfalassemcomela.QuandoMargaret tocounoassunto,Noranãodissenada,masquandoUnacomeçouadizerqueumasfériasiriamlhefazerbem,Norapensousenãodeviapedirquetodaselasadeixassemempaz.“Éotipodecoisaquesevênaspropagandasdatelevisão”,Noradisse,“queumasfériasnaEspanha
fazemmuitobem.Poiseununcativeumacomprovaçãodisso.”“Vocêvaiacordardemanhãsabendoquetemsolodiainteiro”,lembrouUna,“queomaréquentee
quealguémvaicozinharparavocê.”“Eovoo?”“Eudurmoduranteosvoos”,declarouUna,“etenhocertezadequevocêtambémvaidormir.”NoraescreveuaJosiedizendoquegostariadeir,porémrasgouacarta.Àsvezes,ànoite,achavaque
adorariair,masdemanhãtinhaasensaçãodequeseriaumesforçoenorme.SóquandosedeucontadequeseusilêncioeraalgorudeequeJosieficariaofendida,resolveuque,deumjeitooudeoutro, iriaescrever a Josie do trabalho e, no caminhode volta para casa, poria a carta no correio.Mas quandocomeçouaescreveracarta,nãosoubeoquedizer.Equandoescreveuparaaceitaroconvite,nãotevecertezadeestarfazendoacoisacerta.Porém,nodiaseguinte,foitiraropassaporte.NaspoucasvezesemqueMargaret,UnaeatéFionadiziamqueasfériasiamfazermuitobemaela,
Norase irritava.Noentanto,comoJosie jáhaviapago tudo,Nora tinhaconsciênciadequenãopodiamaiscancelar.QuandoasfériasemCurracloecomosmeninosterminaram,elafoisozinhaaDublin,numsábado,comprarroupaslevesparaaEspanha,mas,quandoUnaperguntou,elanãoadmitiutercompradooquequerquefosse.ParecendoperceberqueNoranãoqueriaqueninguémfalassedaviagem,Fionanão
tocavanoassuntocomamãe.QuandoJosiemandouumalistadecoisasqueelanãodeviaseesquecerdelevar,Noraquaserespondeuquepodiacuidarsozinhadeseuspreparativos.Noentanto,elanãoseincomodouemestarconfinadanumaviãoeachougraçaaoverJosierezando
quandoaaeronavedecoloueaterrissou,e tambémsemprequehavia turbulênciaduranteovoo.Oquemaisasurpreendeufoiocaloraodesembarcarem,emborafossenoite,eumestranhocheirofétido,comosealgoestivesseapodrecendo.Noônibusdoaeroporto,Josiecomeçouasuspirareareclamar,masNoraachouaquiloquasetranquilizanteeimaginoucomoseriademanhã.Naquelanoite,enquantoouviaJosieroncarnacamaaolado,Noraachouquenãoestavaconseguindo
dormirporcausadocaloredaagitação.Napraia,demanhã,dormiuporalgum tempo, só tendosidoacordadaporJosie,quequeriaconversar.ComoJosienãonadava,Norasedeucontadequepodiaselivrardelaentrandonomareficandonaáguamornaomaiortempopossível.Todavezquevoltavaparaaareia,Josieretomavaaconversadopontoondehaviaparado.Noquintodia,quandoestavamsaindodapraia,Norareviaempensamentoasquatronoites insones
quetiveraatéentãoemsuasférias.ComirritaçãoouviuJosiecontardeumpadrequenãotinhaidoàcasadealguémqueestavamorrendo,masque,nomesmodia,foravistonumapartidadefutebol.PensaremcadaumadaquelasnoiteseraumaformadeNoramanteraconcentraçãoedenãosedeitaralimesmo,nomeiodaruamovimentada,oudenãoseencostarnaparededeumaloja,oudenãoseencolhernacalçada,semseimportarqueaindafossediaeaslojasaindaestivessemabertas.Porumsegundo,enquantoJosieprosseguiacomsuahistória,Noradetectounavozdelaumtoquedomesmosomqueelafaziaaoroncar,umamisturaderespiraçãoarfantecomruídodebrônquios.NoraachavaqueaidadedeJosieéquetornavaoroncotãoforteealto.MesmoquandoNoraacendia
oabajurdamesadecabeceirae,delicadamente,mexiaemJosieouaacordavacomenergia,atialogovoltavaadormir.Noraficavadeitadanacamaaolado,esperava,eJosiesemprerecomeçavaaroncar,oronco subindo e descendo, às vezes se tornando uma sequência de ruídos ásperos, rascantes, eprosseguindoatéaluzdaalvoradaemergirdentreaslâminasdapersiana.Noraficavaestirada,exausta,irritada,edepoisdaquartanoitesedeucontadequeaindatinhapelafrentedezdiasedeznoitescomatia,atéqueosquinzediasdefériasemSitgesterminassem.Quandoelasenveredarampelaruasombreadadohotel,NoraviuCarol,aguiaturísticadelas,entrando
numaloja.ElaachavaqueCaroljátivessevoltadoparaDublineagoralheocorriaqueelahaviamesmofeitoissoejáestavadevolta.Se não estivesse tão cansada, Nora teria ido atrás de Carol na hora.Mas quando pensou nisso já
estava no quarto e Josie no jardim.Pensou se seria sensato falar comCarol sobre seu problema.Empoucos dias, se Josie continuasse roncando a noite inteira, Nora teria de simular uma doença, naesperançadeconseguiranteciparseuvoodevolta.ContaraverdadeaCarolevitariaqueelativessedefazerisso.DesconfiavaqueCarolarrumariaumjeitodedeixarclaroqueosonolevedeNoraeraculpadelamesmaequeacompanhiadeviagensnãopodiaserresponsabilizadapelofatodesuatiaroncaralto.Norasabiaqueumquartoindividualextra,mesmoquehouvessealgumdisponível,custariamuitomaisdoqueJosiehaviapago.Nosaguãodohotel,quandoJosieestavanobar,NoratopoucomCarol.“Vocêestábem?”,perguntouCarol.Noranãorespondeu.“Vivocênaruamaiscedo”,disseCarol.“Nãoestouconseguindodormir”,disseNora.
“Éocalor?”“Não,eugostodocalor.”Carol assentiu comacabeçae esperouqueeladissessemais algumacoisa.Noraolhouemvolta e
depoissussurrou:“Minhatiaroncaànoite.Écomoestarnoquartocomumabuzinadenevoeirotocando.”“Vocêfaloucomela?”“Tentei.Achoqueelanãoimaginaobarulhoquefaz.Háquatronoitesqueeunãofechoosolhos.Vou
enlouquecer.”“Nãotemosquartosindividuais”,disseCarol.“Então,nãosepreocupe”,respondeuNora.“Nãosepreocupe.Vouficardeitadadeolhosabertostodas
asnoites,atévoltarmosparacasa.”“Lamentomesmo”,disseCarol.Enquantoumaolhavaparaaoutra,NoraouviuavozdatiaedepoisumrisorepentinoquandoJosiese
aproximou.Seuhumorpareciaexcelente.“Ah,aíestávocê,Carol”,disseela.“Bem,eusóqueriadizerqueoquartoéótimo,nãopoderiaser
melhor.Agoramesmoeuestavadizendoaumhomemnobarquenãoseicomovamosnosacostumarafazernossa camadenovo, enossa comida,quandovoltarmospara casa.Masdo calornãovou sentirsaudade.Ah,nãovousentirnemumpoucodesaudadedocalor.”Noraolhou-acomfriezaeviuqueCarol também tinhaosolhoscravadosnela.Porumsegundo,as
duastrocaramolhares.Josieestavacomumvestidoazul-marinhoqueadeixavaenorme,comocabelodesgrenhadoesuavaprofusamente.Josiesorriuforçadoparaasduas.“Venhatomarumgimconosco”,disseaCarol.“Oupreferevodca?”“Não,obrigada.Precisoir.”“Játenhoumabebidanobalcão,prontaparavocê,Nora”,disseJosie.“Ah,quecalor!”Andouatéobar,arrastandoospés.NorabalançouacabeçaparaCarol,depoisfoipegarsuachavee
subiu. Tomou um banho frio antes de descer para se encontrar com a tia no bar. De certo modo, aperspectiva do gim, sobretudo se acrescentasse a ele um pouco de água tônica, e da comida lhe deucoragempara ir em frente.Mas quando o jantar terminasse, pensouNora, ela ia implorar que a tia adeixasseficarsozinhanoquartoporalgumashoras,paratentardormirumpoucoantesdeosroncosdanoitecomeçarem.Depois queMercè serviu a sobremesa e tambémmais vinhobrancopara as duas, acenoupara que
Norafossecomela,indicandoaportadosaguão.Levou-aporumaescadarangenteeestreitaquedesciaparaoporão.Otetodocorredorporondepassavamerabaixoeatintadaparedeestavadescascada.Oarerafrio,comumtoquedeumidadeeumcheiroazedoque,paraNora,foirefrescante.Espremeram-separapassarporumapilhadecaixasdepapelãoempilhadasdochãoaotetoedepoisMercèabriuumaportaàdireitaeacendeualuz.Eraumquartosemelhanteaumacela,Norapercebeu,comumacamadesolteiroeumajanelinhacombarrasdeferronoaltodaparededofundo.Alâmpadanãotinhaumlustre.Acamaestava feitaeos lençóiseramabsolutamentebrancossoba luz fortequevinhado teto.Mercèatravessou o corredor e abriu a porta de um banheiro.Ali o ar era aindamais úmido e sentia-se umcheiro demofo. Havia uma banheira velha com bicos de plástico presos às torneiras e um chuveirosuspenso no canto. Havia uma privada e uma pia para lavar asmãos. O banheiro também tinha umajanelinha com barras de ferro.Mercè olhou paraNora e abriu os braços, como dizendo que não eramuito, mas que estava à disposição dela, se quisesse. Conseguiu dizer em inglês que não haveriaacréscimonopreço.Norafezquesimcomacabeça,entusiasmada.Mercètinhaumconjuntodechavesno bolso e experimentou algumas até encontrar a que fechava a porta do quarto. Tirou-a do chaveiro
entregou-aaNoraedepoisseguiucomelapelocorredorepelaescada,devoltaaosaguão.Noradeixou Josienobar, quandoo jantar acabou, levou suamala e seusobjetosde toaleteparao
porãoedepoisvoltouedisseàtiaquehaviamlheoferecidoumquartoindividual,queelaestavacansadaeiaparaacama.Josie,elanotou,estavaprestesasemostrarofendida,masNoranãolhedeutempoparaisso.Virou-seesumiu.Aideiadequepoderiadormir,edormirprofundamente,ainundavadeumalíviotãograndequeagoranadamaisimportava.Depoisquerefezocaminhoparaseurefúgionoporão,fechouaportadoquarto,trocouderoupaesaboreouoslençóislimposefrescosdacamaestreita.Apagoualuzetentouficaracordadaomaiortempopossível,afimdedesfrutaraexpectativadasolidãoedeumsonolongoeininterrupto.Quandoacordou,viuquejáerademanhã.Umaluztênueeinsistenteentravapelajanelinha,masnão
havianenhumbarulho.TeveaimpressãodequenãodormiatãoprofundamentedesdequesecasaracomMaurice e começara a dividir a cama com ele e, sem dúvida nenhuma, desde que engravidara pelaprimeiravez.Noentanto,elalembravabemdeumavezemqueAineerabebêechoravatodasasnoites.Pormais que fosse alimentada, levantada do berço e consolada nos braços, ela chorava. Sem avisar,NoralevouAineparaacasadamãe,juntocomsuprimentosparadoisdias,deixouFionacomMauricee,apesardosprotestosnervososdamãe,deixouAinenoandardebaixocomela, subiuparaoquartoedormiuprofundamentepordozeoucatorzehorasseguidas.Foiaúnicaveznavida,pensouNora,emqueacordara daquele jeito, com a noite de sono apagada no esquecimento e de um vazio totalmentesatisfatórioecompleto.Agorasesentiaalerta,animadacomaperspectivadodiaàsua frente.Foiaobanheiroe tomouum
banhofrio.Quandoviuashoras,descobriuqueeramapenascincodamanhã.Pôsotrajedebanho,umvestidoporcima,calçouumasandáliaeenfiouumatoalhaeumasroupasdebaixodentrodeumabolsa.Caminhousemfazerbarulho,furtivamente,esaiudohotelcientedequequalquerencontrobastariaparaquebraroencantodaquelanoite.Foi andando sob o sol do início da manhã, seguindo por uma rua pequena em direção à praia
localizadaatrásdaigreja,queeramaistranquiladoqueasoutras.Ficousurpresaaoveralgumaspessoasnarua,pessoasacaminhodotrabalho.Quandoavistouomar,Noraolhouparaocéupálidodamanhã,noalto.Atravessouaesplanadaepassouporprédiospintadosdebrancocompersianasazul-escuras.Aochegaraumcafénaesquina,odonoestavalevantandoasportasderolo,deaço.Cumprimentou-a
comnaturalidade,comoseaconhecesse.Noravoltariaalidepoisdenadareficariasentadaaumadasmesasqueodonotalvezpusessenoladodefora,esóvoltariaaohotelumpoucoantesdasdezhoras,quandoJosiedesceriaparaocafédamanhã.Haviamáquinasgrandesnapraia,nivelandoaareia,deixandotudolisoeperfeitoparaodia.Homens
escolhiamguarda-sóisearrumavamascadeirasdepraia.Aindahaviaumabrisafria,umrestodenoitevindos domar, e a água estavamais fria do que ela imaginara, as ondasmais altas do que nos diasanteriores.Noramergulhouporbaixodeumaonda,quandoelaveioemsuadireção,esentiuumarrepioaonadarparaooutrolado.Fechou os olhos e nadou sem fazermuito esforço,margeando a linha da arrebentação. Percebeu o
primeirocalordosolquandoseviroudecostaseboiou.Agorasesentiarelaxadaetambémcansada,masaenergiaquehaviasurgidonelamaiscedocontinuavapresente.Iaficarnaáguaomaiortempopossível,pensou; iaesgotarsuaenergia.Sabiaqueumamanhãcomoaquelanãoserepetiria tãofacilmenteparaela,aluzdoraiardodiatãocalmaebonita,omartãoacolhedor,alémdapromessadolongodiaàfrenteedanoitequeviriaemseguida,emqueestariasozinhadenovo,semserperturbada,livreparadormir.
***
Nosúltimosdiasdeférias,Josieestavamaiscaladaeashistóriasquecontouforammaisinteressantes.
Noraadoravasuacamanoporão,emborapreferisseusarochuveirodobanheirocontíguoaoquartodeJosie.Nadavaalgumasvezespordia,gostavadojeitocomoseutrajedebanhosecavadepressaaosol.ElaeJosienãose importavamdepagarpelascadeirasdepraiaepelosguarda-sóis.EJosienuncasecansavadefazercomentáriossobrequalquerumquepassasse.Certodia,encontraramumafeira,ondeNoracomprouroupasbaratasepresentesparatodosemcasa.Elaobservavacomatençãoosprédiosdas ruas entre apraia eohotel, imaginandoaspessoasque
moravamlá,comoseriaavidadelasetambémcomoseriaasuaprópriavidasemorasseali.Duranteosúltimosdias,Noraandoupensandoemsuacaminhadaparaotrabalhotodasasmanhãs,nacapavermelhaqueusava,emseuguarda-chuvasempreapostos.Tudoissolhepareciadistanteeestranho,tãodistantedaliquantopodiaser.Noúltimodia,comprouumfrascodeperfumecaroparaMercè,emsinaldegratidãoportê-lasalvado.Eratardequandochegouemcasa.OsmeninosestavamdormindoeNoratomoucuidadoparanãofazer
nenhumbarulhoquepudesseacordá-los.FionatinhaidoaumbaileeAineestavasozinhaemcasa.PelojeitodeAine,Noraachouquealgohaviaacontecido,masdepois,enquantodesfaziaasmalassemfazerbarulhonoandardecima, sentiuquenãoeranada,apenasanovidadedo lugarondehaviaestadoeaestranhezadevoltarparacasa.Mascomoopensamentodequehaviaalgoerradopersistiu,elavoltouláparabaixoeperguntouaAinesetinhahavidoalgumproblemaenquantoelaestevefora.“ÉsóqueoConorfoitransferidoparaaturmaB”,disseAine.“TurmaB?QuemotransferiuparaaturmaB?”“OIrmãoHerlihytransferiuConoremaisdoisparaaTurmaB.”“Quemsãoessesdois?”Os dois queAinemencionou, Nora sabia, estavam, junto comConor, entre osmelhores alunos da
turmaA.“Eledeualgumarazão?”“Não,transferiuepronto.”Nodiaseguintedemanhã,umdomingo,NoraconversoucomConorantesdeiràmissa.Eleparecia
maispreocupadodoqueelaimaginariaqueelefosseficarporalgoquetivessefeitooudeixadodefazer.“Elesótransferiuagente”,disse.“EnãoconhecemosninguémnaturmaB.”Na missa, Nora mal conseguiu se concentrar. Quando, na saída, uma mulher na frente da catedral
admirouobronzeadodesuapele,Noramalrespondeu,edepoissesentiuculpadaenquantovoltavaapéparacasa.Àmedidaqueodiaavançava,elafoisesentindomaisdecidida,enofinaldatarde,quandotocouacampainhanaportadomosteirodosIrmãosCristãos,NoraestavaresolvidaafazerConorvoltarparaaturmaA,queeraoseulugar.QuandoporfimumjovemIrmãoCristãoatendeuàporta,elapediuparafalarcomoIrmãoHerlihy.“Nãoseiseelepodeatenderasenhora”,disse.“Euespero”,respondeu.Elenãoaconvidouparaentrarnovestíbulo.“DigaqueéNoraWebster,viúvadeMauriceWebster,equeprecisofalarcomeleagora.”OjovemIrmãoCristãoobservou-acomcautela,emseguidaaconvidouparaentrarefechouaporta.
Enquantoesperava,notou,maisquetudo,osilênciodentrodomosteiro.Pareciaumlugardevastado.Não sabia quantos Irmãos moravam ali, mas calculou entre dez e quinze. Todos tinham suas celasindividuais,pensouNora,comoprisioneiros,porémhaviaalialgopiordoqueumaprisão,osladrilhosnusnasparedes,a janelacompridadevidromanchado, juntoàescada, tudolustroso,grave,hostil,umlocalondequalquersomequalquermovimentopodiasernotadoeouvido.OIrmãoHerlihypareciamuitoalegrequandochegoueconduziuNoraaumasaladeatendimento,à
direita.“Poisbem,sra.Webster,oquepossofazerpelasenhora?”,perguntou.“Meufilho,ConorWebster,acaboudecomeçaraquintasérie.Euestavaforae,quandovoltei,soube
queelefoitransferidoparaaturmaB.”“Ah,bem,nãoéexatamenteaturmaB.”“Nãoéamesmaturmaemqueeleestavaantes.”“Sim,estamosfazendoalgumasmodificações,sóparaexperimentarenivelarmaisascoisasentreas
duasturmas.”“Bem,prefiroqueosenhorotransfiradevoltaparaaturmaA.”“Infelizmenteissonãoépossível.”“Porquenão?”“Oslivrosdepresençaestãotodosprontoseosnomesjáforamenviadosparaasecretaria.”“Issonãoéproblema.Éfácilmudarisso.”“Sra.Webster,eudirijoaescola.”“IrmãoHerlihy,tenhocertezadequeosenhordirigeaescolamuitobem.Comosabe,meumaridofoi
professornaescolasecundáriapormuitosanos.”“Sim,elefazmuitafalta.”“EosenhornãotransfeririaConor,semeumaridoaindaestivesselecionando.”“Ah,bem,sra.Webster,muitosfatorespesaramnadecisão.”“Nenhumdelesmeinteressa,Irmão.SóestouinteressadanaeducaçãodeConor.”“Infelizmentenãopossofazernadanessaalturadosacontecimentos.”“IrmãoHerlihy,eunãovimatéaquipedirqueosenhortransfiraConordenovoparaaturmaA.”“Ah,é?”“Euvimaquidizeraosenhorquefaçaatransferência.”“Comoexpliquei,eudirijoaescola.”“Esperoqueosenhortenhaouvidooqueeudisse.”“Euouvi,sra.Webster,masnãopodeserfeito.”Eleselevantouparaacompanhá-laatéaportadasaladeatendimento.Novestíbulo,colocouamãono
ombrodeNoraedisse:“Comovaitodaafamília?”“Nãoédasuaconta,IrmãoHerlihy.”“Oraessa”,disseele,esorriu,esfregandoasmãosumanaoutra.“O senhor vai ter notícias minhas”, disse ela, quando o Irmão abriu a porta para ela sair. “E vai
descobrirque,quandoeumezango,souterrível.”Emcasa,achouumblocodepapeleumenvelopeeescreveuumacarta:Seatéapróximasexta-feiraConornãotivervoltadoparaaturmaA,estejacertodequetomareiprovidênciascontraosenhor.
Assinouseunome,voltouaomosteiro,tocouacampainhaoutravezeentregouacartaaojovemIrmão
Cristãoquehaviaatendidoaportamaiscedo.Nofimdaquelanoite,escreveuonomedetodososprofessoresdosIrmãosCristãosdocursoprimário
e do secundário que ela conhecia. De alguns, conseguiu lembrar o endereço; para os outros, pôs oendereçodaescola.Escreveuamesmacartaatodos:Comoosenhordeveestarciente,meufilhoConorWebster,queestánaquintasériedaescolaprimária,foitransferidodaturma
Apara a turmaB semnenhumaviso ou justificativa.Comoo senhor tambémdeve saber, isso não teria acontecido se o pai deleestivessevivoelecionandonaescola.Estacartaéparainformá-lodequeeunãovoutoleraroqueocorreu.SeConornãovoltarparaa turmaAaté a próxima sexta-feira, na segunda-feirademanhã vou fazer umpiquete naportada escola. Se o senhor fortrabalhardecarro,vouficarplantadanafrentedoseucarroeimpedirqueatravesseosportõesdaescola.Seforaotrabalhoapé,vouficarnasuafrente.VoucontinuaropiqueteatéqueConorvolteparaaturmaA.
AtenciosamenteNoraWebster
Nora não tinha envelopes em número suficiente, mas resolveu comprar alguns quando voltasse dotrabalhoparacasaeescreveroendereçonosenvelopesnamesadaagênciadocorreio.Como tinhaonomedecatorzeprofessores,escreveusuacartacatorzevezes.Demanhã,quandoacordou,sentiuumaenergianovaesedeucontadequenãoseimportavadevoltar
aotrabalhodepoisdasférias.Escolheunoarmárioroupasqueachouqueiriamdeixá-lamaisrespeitável.Enquantoatravessavaacidadeacaminhodoescritório,aideiadequeascartasestavamemsuabolsalhedeu prazer. No trabalho, encontrou vários bilhetes em sua mesa, com pedidos que tinham aparecidoenquantoestiverafora.Despachoutodosrapidamentee,àsdezemeia,tinhaemitidoumapilhadefaturasqueprecisavamserregistradasnumlivrodecontabilidade.“Achoque,seeudeixasse,vocêseriacapazdedarcontadomeutrabalhoedoseu”,disseElizabeth
Gibney.“Emalgumasmanhãs,minhamenteestámaisclara”,disseNora.“Jásentiuisso?”“Nãonumasegunda-feira,nunca”,respondeuElizabeth.Postou as cartas naquela tarde e aguardou,mas nada aconteceu.Nos dias que se seguiram, quando
caminhavaparaotrabalho,esperavaveralgumdosprofessoresparaosquaishaviaescrito,masnãoviunenhum.Maispróximodofimdasemana,Norafoiapéaocentrodacidade,quandoohorárioescolarjáhaviaterminado,mastambémnãoencontrounenhumprofessor.Nosábadodemanhã,foià lojadeJimSheehan,naRafterStreet,ecomprouumpedaçodemadeira
fino,chatoecomprido,alémdepregos,edepoisfoiàlojadeGodfrey,noMarketSquare,ecomprouumacanetagrossadetintapreta,umafolhagrandedecartolina,papelbrancoepercevejos.FicoupensandonoquedeveriaescrevernocartazeconcluiuqueomelhorserianãopôrnadasobreaturmaAeaturmaBnemdarmuitosdetalhes.Pensouse“EUQUEROJUSTIÇA”seriabom,masdepoisachouque“EXIJOJUSTIÇA”ficariamelhor.TambémresolveudizerparaDonaleConornãoiremàescolanasegunda-feiraeexplicaraosdois,damelhormaneirapossível,queelaestavasepreparandoparafazerumprotestonaportadaescola eque seriaumaboa ideia eles ficarememcasa estudando sozinhos enquanto aquilo acontecia.Nora,porém,nãotinhacertezadecomoelesiriamreagir,epensousenãodeveriatentaroutraestratégia.Iaesperaratédomingoànoite,decidiu,antesdecontaraFionaoquepretendiafazer.Nodomingoànoite,porvoltadassetehoras,umcarroestacionoudiantedaportadesuacasa.Dois
professoresdaescolasecundária,ValDempseyeJohnKerrigan,paraquemelahaviaescrito,saíramdocarro.Pelaprimeiravez,Norasentiumedo,comosetodaacoragemdasemanativessesedissolvidoe
nãorestassemaisnadasenãoseuorgulhoeasameaçasquehaviafeito.Noraabriuaportadafrenteparaosdoisprofessoresantesquetivessemtempodebater,eosfezentrarnasaleta.“Estamosmuitopreocupados”,disseValDempsey,“comacartaqueasenhoraenviou.Sabe,temoso
maiorrespeitoporMaurice.”Os dois ficaram parados e ela não os convidou para sentar.De algummodo, o tom de voz deVal
DempseyhaviarestauradoadeterminaçãodeNora.“Entendoqueasenhoraestejaaborrecida”,prosseguiu.“Nãoestounemumpoucoaborrecida”,cortouNora.“Oquelevaosenhorapensarisso?”“Bem,suacarta…”“Minhacarta simplesmentedisseque, seConornãovoltarparaa turmaA,vou fazerumpiquetena
portadaescola.Paraisso,játenhocartazesprontosláemcima.Gostariamdever?Enãopensemquenãovouficarparadanafrentedossenhoresamanhãdemanhã,porquevoumesmo.”“Issonãoseriaprudente”,disseJohnKerrigan.“Nãoestoupedindoconselhosaninguém.Semeumaridoestivessevivo,o IrmãoHerlihynão teria
escolhidoConor.”“Osoutrospais…”“Nãoestouinteressadanosoutrospais.”“Pensamosquevocêpoderiasuspenderopiquetedemanhã”,disseDempsey.“Entãoveríamosoque
podemosfazer.”“Ossenhorestiveramtrêsouquatrodiasenãofizeramnada.”“Houvemuitasconversassobreissoentreosprofessores.”“Conversa, tenho certeza, é uma coisa maravilhosa, mas amanhã demanhã vai haver mais do que
conversae,seossenhoresfalaremcomalgunscolegasestanoite,talvezpossammencionarquevourogarpragascontraqualquerprofessorquepassarpelomeupiquete.Creioquejádevemterouvidofalardopoderdaspragasdeumaviúva.”“Ah,francamente”,disseJohnKerrigan.“Vouamaldiçoartodosquepassarempormim.”Osdoisolharamumparaooutroedepoisfitaramochão.“AchoquevoufalarcomoIrmãoHerlihyhojeànoite”,disseValDempsey.Ficaramparadosemsilêncioporalgumtempo,depoisNoraabriuaportadasaletaeacompanhouos
doisatéasaída.“Avisaremosasenhora,setivermosalgumanovidade”,disseJohnKerrigan.Elanãosorriueolhouparaelesmuitoséria.Umahoradepois,ValDempseyeJohnKerriganvoltaram.Dessavezseriamaisdifícil inventaruma
desculpaparaavisitadeles,casoFionaouosmeninosperguntassem.TeriaquedizeraosfilhosqueoassuntoeramoslivrosecadernosqueMauriceusavaparadaraulasequeelaiadoaromaterialparaaescola. Fiona e Conor foram até o vestíbulo olhar, enquantoNora levava os dois professores para asaletaefechavaaporta.“DeixamosumIrmãoCristãoabatidolánomosteiro”,disseValDempsey.“Eledissequenão ia ser intimidadonemreceberordens”,acrescentouJohnKerrigan.“Explicamos
comoasenhoraérespeitadanacidade,bemcomotodasuafamília.Aindaassimelenãoquisceder.”“Entãotivemosdeexplicaraele”,disseValDempsey,“queeleeosoutrosIrmãosiriamficarsozinhos
na escola, porque nenhum professor passaria pelo piquete. Ele ficou louco quando soube do piquete.
Ninguémtinhacontadoaeleoqueestavaescritonasuacarta.”“Eledissealgumascoisasqueprefironãorepetir”,lembrouJohnKerrigan.“Deverassurpreendentes,
vindasdeumIrmãoCristão.”Nora sorriuaoouvir aquiloe aoverqueosdoisprofessorespareciamsinceros.Porém ficou séria
quandoValDempseyfalou.“Então,sentamosnafrentedeleecomunicamosquenãoiríamosemboraatéaquestãoficarresolvida.
MeuDeus,acaradeleficouroxa.Dissequeaescolaeradeleequeiafazeroquebementendesse.Entãoficamosláparados,olhandoparaele.”“Porfim,deixeiclaro”,disseJohnKerrigan,“queelepoderiaresolveroassuntodeummodomuito
simplesefácil.Eleperguntoucomo,eeurespondi,semrodeios,queelepodiapassaromeninodevoltaparaaoutraturma,queninguémiapensarnadademaudeleporcausadisso.”“Elerespondeuquenãoiaserameaçado,masque,sedeixássemosoassuntoporcontadele,iapensar
noquefazer.”“Entãodissemosquenão,queprecisávamosdeumasoluçãojá.Eleficouandandodeumladoparao
outronasala,depoisparouedissequenãovaifazernadaamanhã,quenãoserácoagidoamanhã,masqueemalgumdiadasemanavaitransferiromeninoparaaturmaA.Enósdissemosqueassimestavabomeresolvemossairdeláenquantoasituaçãoerafavorável.”“Paraasenhoraestábemassim?”,perguntouValDempsey.“Maisdoquebem:estáperfeito”,disseNora.“Esoumuitogrataavocêsdois.”Noraestavaquasepedindodesculpasporterameaçadorogarpragas,masachoumelhornão.Poderia
levá-losapensarqueelanãohaviafaladosérioemtudooquedissera.Elaosacompanhouatéasaídaedesejou-lhesumaboa-noite;emseguidaentrounasaletaeobservouocarropartir.Noranãosabiabemcomodeviasesentir.Ninguémiriaacreditarnela,pensou,secontassequeláemcima,emseuquarto,elatinha o material pronto para fazer os cartazes e que havia ameaçado rogar pragas contra todos osprofessoresdaescoladosIrmãosCristãos.QuandoConorchegouemcasanahoradojantar,naquarta-feira,encontrou-anacozinha.“VolteiparaaturmaA”,disse.“Queótimo”,respondeuela.“Houvemuitafestaquandoentrei.OIrmãoHerlihymechamounaoutraturmaedisseparaeupegar
minhamochila,queeuiamudardesala.AcheiqueeleiamepôrnaturmaC.”“MasnemexisteumaturmaC”,disseNora.“Bom, podiam inventar uma”, respondeuConor. “Então ele foi comigo até a sala da turmaA eme
perguntoudo ladodequemeu sentavano anopassado, e aí eu fiquei sentadodenovopertodoAndyMitchell.”Nodiaseguinte,quandoConorvoltoudaescola,procurouNora.“VocêtevealgumacoisaavercomaminhavoltaparaaturmaA?”“Porqueestáperguntando?”“PorqueeuvioFeargalDempseyaquinodomingoànoite,ehoje,depoisdeumintervalo,quandoo
IrmãoBarretttinhaficadodemauhumoramanhãinteira,FeargaldissequeagenteprecisavamandaramãedoWebsteratrásdele.”“Nãoseioqueelequisdizercomisso”,declarouNora.
***
QuandoFionasaiucomumgrupodeprofessoresnasexta-feiraànoite,mostraramaelaacartaque
Nora tinhaescrito.No sábadodemanhã,Noraestavana saletadecasa, lendoo jornal,quandoFionaentrou.“Eraasualetra,nãohádúvida”,disse.“Senãoeunãoteriaacreditado.”“Masagoraestátudoresolvido”,disseNora.“Podeestarresolvidoparavocê,masalgunsprofessoresachamqueeutivealgumacoisaavercom
isso.”“Esperoquevocêtenhaditoquenãofeznada.”“Talvezeumecandidateaoutroempregonofuturo,eessacartavaificarnomeuhistórico.”“Poiseuachoquetudoissovaiseresquecido.”“Também ouvi dizer que você rogou pragas contra todos os professores da escola dos Irmãos
Cristãos.”“Ameaceirogarpragascontraqualquerumquepassassepelomeupiquete.”“Euprecisoviveretrabalharaqui.”“Sim,eeutinhadegarantirqueConorvoltasseparaaturmaA.”“Achoqueeudeviatersidoconsultada.”“Vocêdiriaparaeunãomandaracarta.”“Claroquesim.”“Entãofoisorteminhanãoterconsultadovocê,nãoé?”Noraselembrouque,anosantes,umafreiramal-humoradachamadaIrmãAgnesdavaaulaparaFiona,
ecomoelaficavamaismal-humoradaacadadiaquepassava,Fionacomeçouatermedodeiràescola.Nora tinha disfarçado a letra e escrevera uma série de cartas anônimas a Irmã Agnes e sua madrereverenda,ameaçandoprocessá-lasna Justiça sea freiranãoseacalmasseeparassededar tapasnasmeninassemmotivo.Amadrereverendamostrouascartasaumdosprofessoresleigos,queamostrouaMaurice,dizendoqueelesachavamqueascartas tinhamsidoescritasporumamulherchamadaNancySheridan,cujomaridoeradonodeumsupermercadonaMarketSquareequetinhaumafilhanaturmadaIrmãAgnes.QuandoMauricecontouaNoraoquehaviaocorrido,em tomdeprofundadesaprovação,Noranãodissenada.MasaIrmãAgnesficoumaiscalmaemaisgentil,comoFionalogorelatou.ElaficoutentadaacontaraFionaahistóriadascartasqueescreveraaIrmãAgnes,masimaginouque
afilhanãoiaachargraça.TambémquisdizeraFionaqueelaestavaficandoigualzinhaaopaieaotioJim,masachoumelhornãofazerisso.Ocorreu-lhequeFionateriafaladomais,casonãodesejassepedirocarroemprestadonaquelanoiteparairaumbailenoWhite’sBarn,emWexford.OconfrontocomoIrmãoHerlihydeuforçaaNora.Demanhã,quandoacordava,pegava-sepensando
comumaespéciedeserenidadenodiaquetinhapelafrente.Nãoqueriapoderdormirdenovo.Começouasomartodoodinheiroquehaviaeconomizadoe,comoembreveseriaasuavezdeescolherosdiscosnaSociedadedoGramofone,achouquedeviadefatocomprarumtoca-discosestéreoeatéalgunsdiscostambém.ResolveupediraPhyllisquefossecomelaàCloake’s,paraajudá-laaescolherumtoca-discos.Phyllislevoualgunsdeseusdiscosparatestarosomcommúsicasquelhefossemfamiliares.Havia
doisaparelhosdesomestéreocompreçoreduzido.DepoisdeouvirumdiscodeMariaCallascantandoVerdi,eladescartouosdoistoca-discos.Noratinhaavisadoquenãopretendiacomprarnadamuitocaroe,enquantoPhyllisexaminavaosaparelhosemexposição,Noradiziaváriasvezesqueprecisavalevaremcontaopreço.Nãoiriafazernenhumaextravagância,disse,masaomesmotemponãoqueriacompraralgo que tivesse de substituir poucos anos mais tarde. No canto, viu um toca-discos com dois alto-falantesbempequenos,quesóeraumpoucomaiscarodoqueosdoisaparelhoscompreçoreduzido.“Tenhoumfracoporaqueleali.Achoqueé igualaoqueminha irmãcomprou,eelaconfiademais
nele.Nãoligueparaosalto-falantespequenos.”Quandoovendedortocouumdiscoparaelasnesseaparelho,Noranãotevecertezasesabiaavaliaro
som.Phyllis,poroutro lado, foicapazde falarcomsegurançasobreaprofundidadedosom,sobreosgraveseagudos.Apesardesermaiscarodoqueosoutrosdoiscujopreçoestavacomdesconto,dissePhyllis,elatinhacertezadequeeraumaparelhomuitomelhor.Phyllis foi comNora para casa e ajudou-a a instalar o aparelho na sala.Deixou o disco deMaria
Callaseoutroqueelahaviacomprado,demúsicadepiano.Todosagoraiamver,todasassuasvisitas,pensouNora,eiamachá-laumaextravagante.Precisariasefortalecerenãoseimportar,quaisquerquefossemoscomentáriosquefizessem.Elaquisteraquiloeagoratinha.Algumas semanas depois, num sábado, Nora foi de trem a Dublin com Fiona e os meninos.
EncontraramAinenalojaCountryShop,paraalmoçarem,edepoiselapediuàsfilhasquecuidassemdosirmãosdurantemaisoumenosumahora,poiselaprecisavafazercomprassozinha.DissequeencontrariaFionaeosmeninosnaestaçãodaAmiensStreet,parapegaremotremdevoltaparacasa.Phyllislhederaonomede três lojasdediscos.Dissequeumadelaserapequenaequeseria fácilpassarporelasemperceber;ficavaemfrenteaumpubchamadoDoheny&Nesbitt’s,naBaggotStreet.AoutrasechamavaMay’seficavanaStephen’sGreen,pertodoaltodaGraftonStreet;eaterceira,sobreaqualtinhaouvidoumcomentáriodosRadford,eraaMcCulloughPigott’s,naSufolkStreet,napartebaixadaGraftonStreet.Nora tinharesolvidocomprardezdiscos.Aempolgaçãoqueexperimentavaeranova,parecidacom
algumacoisaquehaviasentidodepoisquesecasou,quandocompravaumvestidoouumcasaco.Phyllisavisara que ela devia evitar compilações, amenosqueo disco contivesse canções e árias de uma sócantoracujonomeelajáconhecesse.Eramelhor,dissePhyllis,comprardiscoscomconcertosinteiros,oucomumasinfonia,oucomumtrioouquarteto.DepoisdosrecitaisnaSociedadedoGramofone,Norapassouaanotaronomedoscompositoresedaspeças individuaisdequegostava.Sóquenunca tinhatempodeprocurarporeles.QuandoencontroualojanaBaggotStreet,sedeucontadequequerialevarquasetudo.Teriadeser
rápidae fazerescolhas.Secomprasse trêsouquatrodiscosali edepois trêsnasoutrasduas lojas, jáseriaosuficiente.Aofundo,estavatocandoumamúsicadecoralqueelaachoulinda.Quaseperguntouaohomematrás
dobalcãooqueeraaquilo,masdepoisachoumelhornãoperguntar.Nofim,emborativessecertezadeestar fazendo as escolhas erradas, optou por duas sinfonias deBeethoven, asRapsódiasHúngaras deBrahms e um disco da cantora Maria Callas. NaMay’s, compraria mais discos cantados, talvez atétrechos escolhidos de óperas, a despeito do conselho de Phyllis, e depois, na McCullough Pigott’s,comprariamúsicadecâmara.QuandoestavasaindodaMcCulloughPigot’s,notouumapilhadediscosaindasempreços.Pareciam
saídosda caixado fabricante.Noaltodapilha,haviaumdiscoqueela tinhaescutadonacasadodr.Radford,levaraemprestadoparacasaedepoisdevolvera:oTriodoArquiduque;nacapa,afotografia
que ficaragravadaemsuamente, a jovemde sorriso forte e tímido,olhosazuis e cabelo louro.Noralevouodiscoatéobalcãoeperguntouopreço.“Ah,aindanãopusemosopreço”,disseavendedora.“Nãotenhomuitotempo”,informouNora,“masvoucomprar,senãoforcarodemais.”“Muitagenteveioprocuraressedisco”,contouavendedora.“Temosdecadastraropreçodenovo.”A empolgação de comprar discos, Nora percebeu, trouxe junto a capacidade de se abater e de
facilmentesefrustrar.“Ogerentejáfoiembora”,disseavendedora,“masvaivoltarnasegunda-feira.”“ÉquehojeeuvoupegarotremparaWexford,ondemoro”,explicouNora.Tentousemostraraomesmotempohumildeeinsistente.Estavaclaroqualerafaixadepreçododisco.
Nora olhou uma pilha de discos e achou um com omesmo selo, EMIHisMaster Voice, e levou-o àvendedora,indicandoopreço.“Achoquesubiu”,disseavendedora.“Desculpe,masprecisoverificar.”EramquasecincoemeiadatardeeNoralogoteriadecomeçarsuacaminhadaemdireçãoàestação
daAmiensStreet.Masestavadecididaacomprarodisco.“VenhoaDublinmuitasvezes”,disseàvendedora,queestavaprocurandonoscatálogos.“Seopreço
formaisaltodoqueodosoutrosdiscosdaEMI,pagareiadiferençanapróximavezqueeuvieraqui.”Quandoavendedoraergueuosolhos,aexpressãodeseurostopareciamaisbranda.“Voufazeroseguinte:deixoasenhoralevarporumalibrae,napróximavezquevier,mepergunteo
preço,quereembolsoasenhora,casoodiscocustemenos;seformaiscaro,oqueachoqueseráocaso,asenhoramepaga.”Norafisgoudabolsaumanotadeumalibra,agradeceuàmulheresaiudaloja,seguindorapidamente
paraaestaçãodetrem.Nodomingodemanhã,quandoosmeninosestavamnamissaeFionacontinuavanacama,Norapôso
discoparatocareexaminouafotografiadacapa,olhouoshomenscomseuaspectomorenoebonitoedepois a jovem entre os dois, que parecia mais feliz quanto mais ela a observava. Nora escutou oprimeiro movimento várias vezes, saboreando a incerteza que havia ali, como se alguém fizesse umesforçoparadizeralgoaindamaisprofundoemaisdifícil,hesitasseedepoisoptasseporumamelodiamaissimplesantesdeabandoná-ladenovoepassasseparamomentosestranhos,repentinosesolitários,que o violino ou o violoncelo tocavamcomuma tristeza queNora não entendia como aqueles jovenspodiamconhecer.Daí em diante, até o Ano-Novo, Nora tocava os discos sempre que tinha tempo ou quando ficava
sozinhanasala.NoNatal,osdoismeninos,asduasmoçaseUnalhederamdepresentetrêssinfoniasdeBeethoven que ela não tinha. Aine comprara os discos em Dublin. Margaret telefonou a Phyllis edescobriuqueNoratalvezpreferissealgomaisserenoecomprouassonatasparavioloncelodeBrahms,tocadas por JánosStarker.Aquilo significava queNora tinha opções de sobra para escolher para seurecitalnaSociedadedoGramofone.JimeMargaretforamàcasadelamuitasvezesnossábadosànoitee,quandoFionasaíaparadançar
noWhite’sBarneConoriadormir,elesassistiamaoprogramaTheLateLateShowna televisão juntocom Nora e Donal. Semana após semana, o programa apresentou debates sobre a Irlanda do Norte,entremeados com debates sobre a liberação feminina e mudanças na Igreja Católica. Jim adquiriuantipatiaporváriosdebatedoresdoprograma,masNoramuitasvezesconcordavacomosquedefendiammudanças,comoachavaqueMauricefaria.
Num sábado à noite de fevereiro, quando a discussão começou a se concentrar na falta de direitoscivis naRepública, umadeficiência tão grandequanto a quehavia na IrlandadoNorte, Jim ficou tãoenfurecidoquepareceuàbeiradepedirqueNoradesligasseatelevisão.Quandohouveumintervaloparaoscomerciais,Norafoiàcozinha, fezumcháevoltouàsalacom
umabandejanahoraemqueoprogramaestavarecomeçando.GayByrne,oapresentador,obviamentehaviaconversadocomaplateiaduranteointervalo,eacâmera
focalizavaumgrupodemulheresnaprimeirafila.Norareconheceualgumasdelas,feministasquemuitasvezes participavam do programa como debatedoras. Quando Nora colocou a bandeja na mesinha decentro, uma delas falava sobre as condições nas casas das favelas de Dublin e sobre a passeatapromovida naquele dia peloComitê deDublin emDefesa daMoradia, que terminara comas pessoassentadasnaO’ConnellBridge.“O que você diria às pessoas de Dublin”, perguntou Gay Byrne, “que ficaram presas no trânsito
durantehorasporcausadoseuprotesto?”Acâmeramoveu-separa amulher seguinte, queNora imediatamente reconheceu comoAine.Donal
gritouonomedela,masJimeMargaretlevaramalgunssegundosparaentenderqueeramesmoela.“Ah,meuDeus”,exclamouMargaret.“Aumenteovolume!”,gritouNora.Aine estava no meio de uma frase, explicando que, se as pessoas do Sul estavam de fato tão
preocupadascomadiscriminaçãocontraoscatólicosnoNorte,talvezfossebompôrordemnaprópriacasa.“Emvezdecontrabandeararmas”,prosseguiuela,“talvezfossemelhorconstruirsistemasdeesgotoe
deabastecimentodeáguaeficientesnasresidênciasdeDublin.”Concluiu dizendo que tinha orgulho de ter participado do protesto e convidava o povo doNorte a
descer e ver as condições miseráveis do povo trabalhador de Dublin. Quando estava prestes aacrescentarmaisalgumacoisa,GayByrneergueuamãoepassouomicrofoneaoutrapessoa.“Ah,meuDeus”,disseMargaretdenovo.“AnossaAine!”“E-elaestán-n-numadessasorg-g-ganizações?”,perguntouDonal.“Tenhocertezadequeelaestudamuitoduranteasemana”,disseNora.“E-e-e-ladeviat-t-tercontadoparaagente.P-p-odiaseperdernac-c-confusão”,disseDonal.Oestranho,agora,Noranotou,eraJim.Eleestavaquasesorrindo.“Emvezdecontrabandeararmas, construir sistemasdeesgotoeficientes”,disseele. “Éexatamente
issoqueeusinto.Nemeumesmoexpressariamelhoressaideia.”“Elafalamuitobem”,observouMargaret.“Edeviaestarnervosa.Ouvidizerqueémuitodifícilfalar
natelevisão.”“Eali,nomeiodetodasaquelasfeministas”,acrescentouNora.“Apostoqueamanhã,namissa,vaiter
muitofalatóriosobreela.”“Elavaiparticipardopróximodebate”,disseMargaret.“EunãosabiaqueAineseinteressavapelo
problemahabitacional.Talvezfaçapartedocursodela.”Nora olhou paraMargaret e serviu o chá. Claro que ela estavamuito surpresa e que desaprovava
aquilo,porémNoraadmiroudemaisarapidezcomqueMargaretdisfarçouseussentimentos.Assistiramao restantedoprograma,paraocasodeAine falardenovo, eumavezviramacâmera
focalizaroladodeladaplateiaeAinedemãoerguidapedindoparafalar,masomicrofonenãofoiatéela.“Ora,ora”,disseMargaretquandooprogramaterminou.“Essafoiboa,nãofoi?”“Elaés-s-socialista?”,perguntouDonal.
16.Semanaapóssemana,Laurieensaioucomela“TheLastRoseofSummer”esugeriuacrescentaruma
cançãoalemã.“Temqueserumacoisaquesurpreendaabancadoteste,talvezumamúsicadeSchubertquemostreo
que sua voz tem demelhor. Sabe, eu estava na França quando os alemães chegaram, ocuparam até oconvento, e tivemosdenosmudarparaumacasade fazenda,masnuncadeixeideadmirarSchubert eescutarsuamúsica.Poisentão,achoqueseideumacançãoquevairealçarasqualidadesdasuavoz.”Laurieremexeuseusdiscos.“Pronto,aquiestá.Voutocarsóestacançãoequeroquevocêescute.Primeirodeixeamúsicaentrar
emvocê,depoisvamosveraletraeminglês,esódepoisvamospassarversoporversoparaoalemão.”Lauriepuxouodiscodacapaepôsnotoca-discos.Norafechouosolhoseouviu.“Acompanheopianoprimeiro.Depoisvamosveravoz.”No início, o som do piano era direto e aberto. No entanto, assim que a voz feminina entrou, um
contraltoprofundoeencorpado,opianosesuavizouesemoveucomdiscrição,àsvezesmaldavaparanotarsuapresença,masestavasempreprontoparapreencherossilêncios,voltardenovono intervaloentreosversos,commaiscomplexidade.“Vamosouvirdenovo”,disseLaurie.“Agora,avoz.”OqueNoranotoufoiumaternuraprolongadanasnotas,ummododelicadodeabordaramelodia.O
tomnãoeranemdocenem incisivo;pairavaestranhamenteentreumeoutro.Umavozsincera,pensouNora,eumcantoperfeitoebelo.“EsseéohinoàmúsicacompostoporSchubert”,disseLaurie.“Aletrafoiescritaporumpoetaamigo
dele, que viveu até a velhice. Imagine amúsica que teríamos, se Schubert tivesse também chegado àvelhice!Masascoisassãoassim.A letraemalemãoé lindaeperdemuitona tradução.Osprimeirosversoseminglêssãoassim:Oh,arteadorável,emquantasetantashorascinzentas,Quandoarodaloucadavidameenlaçava,TuacendesteemmeucoraçãoocálidoamorEmetransportasteparaummundomelhor.
“Schuberttranspôsessesversosparaasuamúsicadeumaformabelíssima.Claro,foiumatodeamor.Eleeopoetaeramamantes,pelomenoséoquedizem.”
“Schuberteooutrohomem?”,perguntouNora.“Sim,nãoémaravilhoso?Etristetambém,porqueSchubertmorreutãojovemeooutroviveuanose
anos,atéenvelhecer.Mastemosessacançãoparanoslembrarmosdeles,umacançãoquenasceudoamoràmúsicaedoamoraoutrapessoa.”“Queméacantora?Temumavozlinda.”“ÉKathleenFerrier.EradeLancashireemorreujovemtambém.”LauriefezNoraleraletraemalemãoetentoucorrigirsuapronúncia.Explicou-lheque,emalemão,o
verbomuitasvezesvemnofimdafrase.Escutaramagravaçãomaisumaveze,paraaauladasemanaseguinte,LauriepediuqueNoraaprendesseosdoisprimeirosversosemalemão.Donalcomprouseusprópriosdiscoseos tocavasemparar.Noranãoqueria impedi-lodeusar seu
toca-discos,mashaviaocasiõesemquetudoqueeladesejavaeraouviralgosentadanapoltronadasala,e,quandochegava,Donaljáestavalá.TantoDonalcomoConortinhamumgrandeinteressepelavidasocialdeFiona,aondeelaiaequem
encontrava.OspreparativosdeFionaparaofimdesemana,asroupasquevestia,amaquiagemqueusavaeachegadadesuasamigasdavamasensaçãodeencheracasacomumacoisanova.QuandoAinefoiládepoisdesuaparticipaçãonoprogramaTheLateLateShow,fingiuquenãohaviaacontecidonadaenãopareceuinteressadaemdiscutiroassunto.FionaachouumjeitodeincluirAineemsuanovavidasocialeasduasforamjuntasaumbarnacidadenasexta-feiraànoite.PertodaPáscoa,numbaileemWexford,FionaconheceuumhomemchamadoPaulWhitney,queera
advogadoemGorey.NoraeMaurice,bemcomoJimeMargaret,haviamconhecidoospaisdele.PaulWhitney tinha trintaepoucosanos,e,quandoElizabethGibneysoube,contouaNoraque tinhaouvidofalarqueelepodiaviraserjuizdistrital.“Eleéumexcelenteprofissional”,disseela,“conseguiusefazersozinho,aspessoasfalammaravilhas
dele.UmamigodeThomascontratou-onumcasodeseguroeficoucontentíssimocomoresultado.”Fiona começou a convidar PaulWhitney para ir à sua casa.Nas sextas-feiras e sábados à noite, e
muitasvezestambémnosdomingos,eleficavanasalaconversandocomafamíliatoda,enquantoFionasearrumava para sair. Tinha opinião sobre tudo; sabiamuitas coisas não só sobre políticamas tambémsobreaIgreja,poistratavadequestõeslegaisparaváriasparóquiasetinhaótimasrelaçõescomobispo.“Ele tem saudade de Roma”, Paul Whitney contou a Nora certa noite. “Vivia apavorado com a
possibilidadedesernomeadobispoeserenviadoparaaIrlanda.Algunspadresdadiocesenãoprimampelaagilidademental,seasenhorameentende.Nãosãodosmaisbrilhantes.”Noranuncatinhaouvidoninguémfalardaquelemodosobrepadreseatésobrebispos.Eletambémconheciamúsicaetoca-discosestereofônicos.UmanoiteprometeuemprestaraNorasua
caixadediscoscomosquartetosdeBeethoven,edissequeelapoderiaficarcomosdiscosotempoquequisesse,poiseletinhavoltadoaouvirBach.“Ah,Bachfoiomaiorgêniodetodos”,dissePaul.“SeDeusalgumdiaexistiunaAlemanha,oqueeu
duvido,veionaformadeBach.”ComConor,conversavasobrehurlingefutebolecomDonal,sobretiposdecâmerasfotográficas.Era
francoesimpático;mesmoaossábadosiaàcasadelesdepaletóegravata.Todasemana,opaletóeradiferenteeagravatatambém.SobreoassuntoCharlieHaughey,eletinhainformaçõesdequeNoranuncaouvirafalar.“Seeleconseguissesemanterlongedasmulheres”,disse,“seriaexcelente,paraeleeparatodosnós.
Masanoteoqueestoudizendo:eletemoapoiodeboapartedopartidoeéopolíticodofuturo.”
Uma noite, no início do verão, quando Jim e Margaret também estavam presentes, Paul chegou ecomeçouaconversarcomosdoissobrepolítica.Norapercebeu,então,comoPaulsesentiaàvontadenacompanhiadepessoasmaisvelhasecomoJimfoiseentusiasmandocomele.NoraficouimaginandooqueeleeFionadeviamconversarquandoficavamsozinhos.Nora começou a esperar comansiedade as visitas dePaul.Algumasnoites, quandoDonal eConor
estavamnaoutrasalaeJimeMargaretnãotinhamvindo,Paulficavaalgumtemposentadonapoltronaem frentea ela, contandohistórias ediscutindoassuntosdomomentocomNoraeFiona.Fiona ficavacalada enquantoPaul falava comNora sobremúsica, religiãooupolítica, temas sobreosquaisNora,muitasvezes, tambémtinhamuitoadizer.PauleracomoMauricenamaneiracomose interessavaporpolítica,maselesabiamais,etambémseinteressavapormúsica,claro,oqueMauricenuncafizera,etambémporteatro,comoseviudepois.Liaromancesetinhaopiniõessobreosescritores.Nessasnoites,quandoPauleFionaafinal saíampara iraumbarouaumbaile,Noraseviasozinha, sentada,quasefeliz. Havia desfrutado da companhia dele e estava claro, ela via, que ele também desfrutara dacompanhiadela.Certodia,naMarketSquare,quandopassavapela lojaEssie’s,Noraviunavitrineumvestidoque
achouqueiaficarbemnela.Pareciafeitodeumalãfinaeeravermelhoeamarelo.Faziaanosquenãousavaumvestido assim.Quando entrouna loja, começou a experimentar outros vestidos feitos comamesma lã fina, em cores de que ela gostou ainda mais. Aceitou receber três deles em casa, paraexperimentar,achandoqueserianecessárioanalisarcomoosvestidosficariamsobaluzdesuacasaetambémverificarsepossuíasapatosquecombinavamcomeles.Opreçoeraomaisaltoqueelajáhaviapagoporumvestido,masNoraachouque,seesperassealiquidação,elespoderiamjátersidovendidos.Fionaatendeuaportaquandooentregadordalojachegoucomopacotedevestidos.Maistarde,ela
comentoucomNoraqueaEssie’stinhamandadotrêsvestidosqueelaachouquefossemparaela,poispoucotempoantestinhaidoàmesmalojaparacomprarumvestidonovo,masosqueviunãoeramdotamanhodelanemdomodeloqueelaprocurava.Norafoiàsaleta,ondeoembrulhoestavaaberto,voltouedisseaFionaque,naverdade,eramparaela.“Éparaalgumacoisaespecial?”,perguntouFiona.“Não,não”,disseNora.“Eusóestavapassandoevinavitrineumvestidodequegostei,entãoentreie
acabeiexperimentandooutros.”“Entendi”,disseFiona.Láemcima,depoisqueosoutrosforamparaacama,Noraexperimentouos trêsvestidose,usando
cadaumdeles,desceutrêsvezesaescada,seolhounoespelhodovestíbuloe,tendolevadoparabaixováriosparesdesapatoparaversecombinavamcomosvestidos,entrounasalacomosehouvesseoutraspessoasaliesentou-senapoltronaquenormalmenteusava.Gostoudeumdosvestidosquetinhaumcintoecoresmaisvivasdoqueosdemais.Foiatéaentrada,olhoudenovoparaopescoçonoespelhoeviuque a gola do vestido o cobriamelhor do que os outros dois.Decidiu comprar aquele e também umsapatonovo,algomaiselegante,comsalto,pensou.Nodiaseguinte,deixouosoutrosdoisvestidosna lojaepagoupelovestidocomcintoegola,mas
achavaquenãoousaria,setivessedeiraalgumlugar.Eraumbomvestidoparaternoguarda-roupa.Nasexta-feira, depois do chá, porém, quando estava em seu quarto, resolveu usar o vestido naquelemomento.Vestiu-o,sentou-sediantedoespelho,escovouocabelo,olhounabolsademaquiagem,achouumrímeldiscretoeumdelineadordeolhospreto.Quandoouviuumcarro,foiatéajanelaparaverquemera,viuqueeramapenasdoisvizinhos,desceuaescada,fezumaxícaradecháepôsumdiscoparatocar.Maistarde,nacozinha,esbarroucomFiona.“Vocêestáincrível”,disseFiona.“Vaisair?”
“Não”,respondeu.“Sóacheiquedeviausarovestido,jáqueocomprei.”Poucodepois,ouviuFionasaindo.Noraestavanasala,escutandoumconcertodepianodeMozart,
quandoFionavoltou.“Vouprecisardocarroestanoite”,disse.“VocêsvãoparaWexford?”“Nãoseibemparaondeestamosindo”,respondeuFiona.NoraesteveàbeiradeperguntarseocarrodePaulestavacomdefeito,mas,comonotomdeFiona
haviaumaespéciederispidez,Noranãodissenada.Maistarde,ouviuocarropartindoeachouestranhoFionanãotersedespedido.Duranteassemanasseguintes,Fionaandouemburrada,iacedoparaacamanasnoitesemquenãosaía.
QuandoAineveiopassarumfimdesemanacomafamília,NoralheperguntouseorelacionamentodeFionacomPaulWhitneyhaviaterminado.“Não,nemdelonge”,disseAine.“Achoquevaideventoempopa.”“Mashásemanasqueelenãovemaquiemcasa.”“Achoqueéassimqueelaquer.”“Oquevocêquerdizer?”“AchoqueFionasentiuquetodomundoaquiestavaficandoamigáveldemaiscomele.”“Quemé‘todomundoaqui’?”“ÉmelhorvocêperguntarparaFiona,maseladissequehouvealgumasnoitesemqueela se sentiu
deixadadeladoduranteaconversa.”“Todosnósconversamoscomeledeumjeitonormal.”“Nãopergunteparamim.Eunemestavaaqui.”“Háalgumacoisaquevocênãoestáquerendomecontar.”Aineolhouparaelademodoincisivo.“Numanoiteelaviuvocêtodaarrumada,comumvestidonovo.”“Edaí?”“DaíqueelatelefonouparaPauleelesseencontraramnoBennett’sHotel.”“Elaachaqueeumearrumeiepusumvestidonovoporqueeleestavavindoparacá?”“Nãopergunteparamim.Pergunteparaela.”“Maséoqueelaacha?”“Vocêvaiterqueperguntarparaela.”“Tenhocoisasmaisimportantesparafazer.”Com Laurie ao piano, Nora ensaiou muito suas duas canções. Às vezes, esse trabalho caminhava
devagareerafrustrante,masLauriegarantiaqueelasabiaosignificadodetodasaspalavrasalemãsequesuapronúnciaestavaperfeita.Àsvezes,NoraduvidavadeLaurie,dashistóriasqueelacontavaedomodofamiliarcomofalavade
pessoas que não tinha conhecido, inclusive algumas que haviam morrido fazia muito tempo. Lauriegostavadevivernumreinoinventadoporela,omaisdistantepossíveldacidadezinhaondedefatoseencontrava.Às vezes, quando estavam ensaiando,Laurie criava a ilusão de quemuita coisa dependiadaquilo,queelas seencontravamemParisouemLondres, eassim, sob seuescrutínio rigoroso,Noraaprendeu as duasmúsicas e conseguiu cantar umadelas em alemãodamelhormaneira que foi capaz,enquantoaconcentraçãodeLaurienãorelaxavanemumsegundo.Umdia,LauriedisseaelaquehaviaconvencidoFrankRedmond,omaestrodocoraldeWexford,a
ouvirsuamaisnovaaluna,NoraWebster,tendoemvistaapossibilidadedeaceitá-lanocoral,emboranãoestivessemprecisandodeumamezzosoprano.FicoucombinadoqueNora iriaaoconventoLoretonumsábadoàtarde,quandoopianodasalademúsicaficavalivre.Norafezocabelonavéspera,aplicouumatinturanovaepôsovestidoquehaviacompradonaEssie’s,
comumsapatonovoquecompraranaMahadyBreen’s.CombinoudeseencontrarcomPhyllis,depoisque tudo tivesse terminado, para um café noWhite’s. Quando chegou ao convento e encontrou FrankRedmondnaporta,ficousurpresaaoserlevadaimediatamenteaumasaladerecitais.Alémdopianista,haviaduasoutraspessoas,àsquaisfoiapresentada.MostrouaFrankRedmondeaopianistaapartituraque havia trazido; o pianista disse que podia tocar a primeira canção de cor e que só precisaria dapartituraparaadeSchubert.Eleensaiouumpouco,enquantoNorafoiaobanheiro.Gostaria de ter tido tempo de fazer os exercícios vocais que fazia antes deLaurie deixá-la cantar.
Teriadecomeçarfria.Nãohaviasequerumcopod’águanopalco,eNorasentiuabocaseca.Estavabemclaroqueaquelaspessoastinhamtrabalhoafazerequedesejavamterminarcomaquiloomaisdepressapossível.Ficoudepéaoladodopianoeencarouosalão.Primeiro,deixouasmãosaoladodocorpoedepois, como se sentiu exposta e desconfortável, pôs a mão direita sobre o piano, o que logo fez opianista avisar que ela não devia fazer aquilo. Laurie jamais deixaria Nora cantar antes de se sentirinteiramenteconfortável,masagoraNoranãotinhaescolha,sentiaaimpaciênciadopianista.Noinstanteemqueelecomeçou,Norapercebeuquehaviaalgoerrado.Emvezdetocaraaberturada
melodia, ele estava tocando algo mais complicado. Ela não sabia em que momento entrar. O pianocontinuou a tocar por baixo damelodia, como se o pianista estivesse acompanhando outra pessoa, edepoiscomeçouumasériedetrinadosantesdevoltaràmelodiaoriginal.Impossívelsaberoquefazer,portanto Nora simplesmente começou a cantar. Entrou na hora errada, ela notou nomomento em quecomeçou,masnãohaviaoquefazer.Quandochegouaoverso“noflowerofherkindred”,suarespiraçãofalhoueelatremuloudemaisnanotaaguda.Nosegundoverso,opianistamaltocava,oquefacilitouascoisas,masNoranãoestavadeixandoa
profundidade de sua voz vir à tona. Mesmo assim, fez o melhor que pôde e, com algumas frases,concentrando-se demais, encontrou um tom com que trabalhar. Relaxou e cantou como Laurie haviaensinado,controlandoarespiraçãocomperfeição,agora,aochegaraofimdacanção.As três pessoas na plateia permaneceram em silêncio quando ela terminou. Viu Frank Redmond
fazendoumsinalaopianista,eNorasevirouparaverseelejáestavacomapartiturade“AndieMusik”nolugar.Emvezdisso,elefechouopiano.Norapensouseissosignificavaque,comoaexecuçãodelenãotinhasidoboanaprimeiracanção,iamdeixá-lacantarSchubertsemacompanhamento.Elanãosabiaseseriacapazdeacharotomcerto.“Talvezsejamelhorirmosláparafora”,disseFrankRedmond,subindoaopalco,doisdegrausacada
passo.ComoNorasemostrassesurpresa,eletirouapartituradopianoeentregouaela.Norasupôsqueele
fosselevá-laaumasalamenor,commaisprivacidade,paracantarSchubertondeficassemenosnervosa.Elearetiroudopalcoealevouparaforadasala,atéocorredor.“Muitoobrigado”,disse.“Somosmuitogratosportersedadoatodoessetrabalho.”“NãocanteiSchubert”,disseela.“Sim”,respondeuele.“Então,háoutrasalacomumpiano?”,perguntou.“Essaéumadasminhasmúsicasfavoritas”,disseomaestro,“eeupreferianãoouvi-laagora.Defato,
seprecisarmosouvi-ladenovo,avisaremos.”“Eutiveuminícioruim.Oacompanhamentonaaberturanãoeraoqueeuconhecia.”
“Nãoera?”,perguntou.Derepente,Norapercebeuqueeleestavaquasezombandodela,equeelaestavasendodispensada.
Emborasoubessequeeramelhornãodizernada,nãoconseguiuseconter.“Achoqueeleusouumarranjodiferente”,afirmoucomautoridade,comoseentendessedearranjos.“Sim,ficoutudoparecendoamúsicaquefezavacavelhamorrer,*asenhoratemrazãoquantoaisso.”Eleestavasendofrancamenteofensivo.“Obrigada”,disseNora,quandoeleabriuaportaparaela.EstacionouocarronafrentedoWhite’sefezumascomprasantesdeirseencontrarcomPhyllis.“Então, desde Janet Baker ninguém jamais cantou tão bem como você. Não foi o que ele disse?”,
perguntouPhyllis.“Oquesignificaamúsicaquefezavacavelhamorrer?”,perguntouNora.“Nãosei”,respondeuPhyllis.“Sejaoquefor,tenhocertezadequenãoénadaquesoebem”,disseNora.“Entãovocênãotriunfou?”“Opianista tocou uma introdução própria de “TheLastRose of Summer” e eles nemme deixaram
cantarSchubert.”“Quemeraopianista?”“Umsujeitinhocomcaradecamundongo,deterno.”“ÉoLarFurlong.Elejáfezamesmacoisacomalguémqueeuconheço.”“Bem,esperonuncamaisveressesujeito.”“Éumsafadobemconhecido.”“Émesmo?”“É,sim.AgoravamostomarcaféepensaremcomovocêvaidaressanotíciaparaaLaurieO’Keefe.
Vocêéagrandedescobertadela.”Quandochegouemcasa,JimeMargaretestavamlá,conversandocomFionanasala.“Estávamos falando sobre o Donal”, disse Margaret, “porque encontrei Felicity Barry, que é
fonoaudióloga.Elatrabalhanumaporçãodeescolas,inclusivenoSt.Peter’sCollege,emWexford,eelestêmmuitosequipamentos lá, inclusivecâmarasescuraspara revelar fotografiaseumclubedacâmera.Algunsgarotosobtêmótimosresultadosnoexamefinaldocursosecundário.”“Vocêestáfalandodocolégiointerno?”,perguntouNora.“Euteriatodooprazerdepagarasmensalidades,aindamaissehouverumafonoaudiólogalá.”“AgagueiradeDonalàsvezesmelhora”,declarouNora.“Edepoispiora”,acrescentouFiona.“Alguémfaloucomelesobreisso?”,perguntouNora.“Ah,sim”,disseMargaret,percebendoemseguidaairritaçãodeNora.“Bem,veja,eleiafalarcom
vocêsobreisso”,explicou.“Nãoseiseumcolégiointernoseriabomparaele.Emcertosaspectos,eleémadurodemaisparaa
idadedelee,emoutros,madurodemenos.”“ConvivercomoutrosmeninosdaidadedelepodiaserbomparaoDonal”,disseMargaret.Nada naquela conversa estava ocorrendo sem a participação direta de Donal, pensou Nora. Ele
conversavamuitocomMargaret,quandoiaàcasadelarevelarsuasfotografias;tambémconversavacomFiona.EleslhefaziamperguntasqueNorajamaisfazia,porém,decertaforma,tinhaasensaçãodeseramaispróximadeDonal,equeeleconfiavaneladeummodoqueninguémentendia.Donalobservavae
assimilava as coisas como nenhum de seus outros filhos fazia, e Nora tinha a impressão de que eleabsorviaossentimentosdelasimplesmenteestandoemcasa,nacompanhiadela.Donaltinhaquinzeanosedaliadoisanosiriaparaauniversidade,emDublin.Talvezprecisassesairdecasamaiscedo,afimdeexperimentaroutrascoisaseserliberadodeterquesepreocuparcomela,masNoranãopensavaassim.Donal gostava da liberdade que ela lhe dava, gostava de ser tratado como um adulto, em casa. OsinteressesdeDonaleramprofundoseparticulares,elasabia,eelenãoiriaseadaptarcomfacilidadeaumarotinaimposta,àfaltadeautonomiaeàsolidão.Nodiaseguinte,quandoconversoucomDonalsobreoassunto,Norasedeucontadequeeraalgoque
ele desejava.Ele queria uma fonoaudióloga, e a ideia de um clube da câmera tambémo atraía.Noratentou fazer Donal imaginar como seria dormir num dormitório ou obedecer a uma porção deregulamentos e regrinhas tolas. Porém, como Donal resistisse aos esforços de Nora fazê-lo pensarnegativamente sobre o colégio interno, ela soube ser cautelosa. Não queria que ele nem os outrosacreditassemqueeladependiadeleouqueriamaisdoisanoscomDonaleConorjuntosnoquartovizinhoaodela.SeNoranãotentasseimpediralgoqueDonalqueria, talvezfossemaisfácilparaeleresolvernão ir. Na segunda-feira, achou o número de telefone de Felicity Barry e ligou para ela da cabinetelefônica da Back Road, mas ninguém atendeu. Pensou se não deveria escrever e perguntar se elaaceitariaatenderDonaldeformaparticular.Haviamuitotempoquejádeviaterfeitoisso.Aospoucos,NoraviuaquestãodeDonaledocolégiointernoescapardeseucontrole.Gostariade
saber como aquilo tinha começado, quemhavia levantado a questão primeiro.Nora não se declaravacontra,maspercebiaqueMargaret,cientedesuaoposição,haviaparadodefalardoassunto,deixandoacargo de Jim contar que tinha encontrado o padre Doyle, o diretor do colégio, numa reunião daAssociaçãoAtléticaGaélicaeperguntarasehaveriaalgumavagaparaDonalnoSt.Peter’sCollege.OpadreDoylerespondeuqueficariaencantadodeterumfilhodeMauriceWebsteremseucolégio.MaistardeNoradescobriuqueDonaljáhaviasabido,antesdela,desseencontrocomopadreDoyle.Quando,maisumavez,forampassarasfériasemCurracloeeficaramnumtrailer,receberamavisita
deJimeMargaretnaúltimatarde.NoraviuDonalsedemorarnotrailer,escutandoaconversa.Erafimde julho e, seDonal iamesmopara o colégio interno no início de setembro, a questão precisava serresolvidalogo.Enquantoconversavamealuzdoentardecerdiminuía,Noraentendeuquetudojáestavaresolvido.ElanuncahaviaseopostoabertamenteaMargaret,massentiaquedeviafazerissoagora,tevevontadedepedirqueJimlevasseDonaleConorparatomarsorvetenoWinningPoste,quandotivessemseafastado,dizeraMargaretqueelanãodevia interferirnavidadeseusfilhos.Noentanto,MargaretpodiaalegarinocênciacomplenaconvicçãoetambémdizerqueelasóestavaseoferecendoparapagarosestudosdeDonal,comohaviapagoosdeAine,porqueeraparaobemdele.NoraseveriapostanaposiçãodenãoquererqueDonaltivesseumaeducaçãomelhoredenãosergratapelagenerosidadedeMargaret.Antes de Jim eMargaret irem embora, ficou combinado que Jim escreveria formalmente ao padre
Doyle.Elesfalavamdoassuntocomoseaindanãoestivessemcertosdequalseriaarespostadopadre,oqueNorasabianãoserverdade.OcolégioaceitariaDonal;opadreDoylejáhaviadeclaradoissoaJim.EDonalsairiadecasaeiriaparaocolégiointerno.Norapensousetinhahavidoalgoqueelapudesseterfeitoparaimpedirissoouseaindahaviaalgoquepudessefazeragora.Demanhã,quandojátinhamarrumadoasmalaseestavamprontosparairembora,NorachamouDonal
paradarumavoltaapécomela.Quandoseaproximaramdapraiapelocalçadãodemadeira,queestavaquase todocobertodeareia,NorapercebeucomoDonalestava incomodado,cientedequeeles iriamdiscutirumassuntosério.“Temcertezadequequerirparaocolégiointerno?”,elaperguntou,quandoestavamnapraia.
“Achoques-s-sim”,disseele.“Éumamudançagrande”,retrucouNora.Caminharampelabeiradapraia.“DetestoosIrmãosC-c-cristãos”,disseele.“Ah,é?”“Eug-g-gostariadenãoiran-n-nenhumaescola.”“Sófaltamdoisanos.VocêfaloucomaAinesobreoUniversityCollegedeDublin?”Donalfezquesimcomacabeça.“Lávocêterialiberdadeparaestudaroquequisesse.”“Queroestudarf-f-fotografia.”“Nãoseriaproblema.Devehavermuitoslugaresbonsparaisso.”Caminharammaisalgumtempocalados.Donalcomeçouacolherpedrinhasnabeiradomareajogá-
lasnaágua.“ExistealgumproblemaespecíficonosIrmãos?”,elaacabouperguntando.Donalencolheuosombros.“Étudoump-p-problema.”“Eocolégiointernoseriamelhor?”AgoraelapodiaouvirarespiraçãodeDonaleviuqueeleestavaaflito.“St.Peter’sseriamelhor?”“P-p-papainãod-d-deuaulalá.”DonalolhouparaelaenoolharhaviaumacruezaqueNoranuncatinhavistonele.“Issofoiruim?”“Todasassalaseramsalasemqueeledeuaula.Estounasalaondeeleiatododia.”Seutomeradiretoeduro;nãogaguejava.ElaabraçouDonalecomeçouachorar.“Etodosolhamp-p-paramimes-s-sentempenademim.Enãoc-c-conssigoest-t-tudar.Nãoconsigo
fazernada.Edetestotodoseles.”NoramanteveobraçoemvoltadeDonalatéeleparecerincomodado,elentamenteosdoisvoltaram
paraotrailer.Quandoela,FionaeConoracompanharamDonalaocolégioSt.Peter’snoiníciodesetembro,Nora
imediatamentepercebeucomoeleiriaficarsolitárioeisolado.Todososmeninosestudavamláporcincoanos;Donalficariaapenasosdoisúltimosanos.Osaguãoestavarepletodemeninosepais;asensaçãodeNorafoiqueosmeninosestavamvoltandoparacasa,oupelomenosparaumlocalfamiliar.Algunspadres que ela viu se movimentavam para todos os lados, muito atarefados. Só Donal pareciadesorientado,eNoraprecisouacharumpadreparaexplicarqueeleeranovo,umalunointernoqueiacomeçaraquartasérieenãosabiaondeficavaseudormitórionemondeguardarsuascoisas.“Se a senhora disser para ele ficar ali perto daquelamesa, cuido dele num instante”, respondeu o
padre.EdesapareceuantesqueNorapudesseperguntarseelapodiaesperarcomDonalousedeveriadeixá-lo sozinho, comamala e a bolsa, e voltar para casa.Tambémnão sabia qual era o sistemadevisitas,egostariadetervistoissoantes,poisassimpoderiagarantiraDonalqueoveriaembreve.Nofinal,comoviuoutrospaisindoembora,disseaDonalqueela,FionaeConorprecisavamsairtambém,eisso pareceu deixarDonalmenos incomodado, enquanto aguardava o padre. Ela sabia que não deviaabraçá-lonemdizernadaqueoentristecesse.“Voudescobrirquaissãooshoráriosdevisita”,disse,“evouescrevereavisá-lo.Evocêmeescreva
também,seprecisardealgumacoisa.”Donalfezquesimcomacabeçaedeuascostasparaela,FionaeConor,comosenãoosconhecesse.Umasemanadepoisde tersidorecusadapelomaestrodocoraldeWexford,NorafoivisitarLaurie
O’Keefe e fez um relatominucioso do que havia ocorrido.QuandoLaurie sugeriu que retomassemasaulasdecanto,Noradissequepreferiaesperarumpouco.Porém,naprimeiranoitedepoisdeterdeixadoDonalnocolégio interno,Nora resolveu irverLauriesóparaconversar,poisacasadelaeraoúnicolugarondesuamentepodiasercapturadaeenvolvidaporoutracoisaquenãoaideiadeDonalsozinhoesemamigos,suagagueirasemostrandoevidenteparaprofessoresecolegas,oqueodeixariaaindamaisisoladodoquejáeraemcasa,ondepelomenospodiasairelevarsuacâmeraparaacasadetiaMargaretepassarotemponacâmaraescura,revelandosuasfotografias.Laurielevou-aàsalademúsicanoporão.“Já cuidei deFrankRedmond”, disse. Seu tomera grave e dramático, como se fosse umprimeiro-
ministrodeclarandoguerra.“Creioquenãovoltaremosaternotíciasdele.”“Oquevocêfez?”,perguntouNora.“DeiumjeitodeBillymelevaraWexford”,explicouLaurie.“QuandoencontramosacasadeFrank
Redmond,pediqueBillyesperassenocarro.Osr.Redmondmoranumchalénosarredoresdacidade.Suapobreesposaabriuaportaedissequeeleestavano jardim.Entãoeudisseaelaqueseumaridoviessemeatender imediatamente,poiseunão tinhaodia todo.Quandoelechegou,pergunteidemododiretosehaviaofendidoumademinhasalunas.Ah,elepigarreou,tossiuemefezsegui-loatéasaladeestar. Estava cheia de fotografias da formatura de todos os filhos dele. Seis ou sete, todos com seucanudonamão.Pergunteidenovosedefatoelehaviaofendidoumademinhasalunas.Ah,elecomeçouadarumalongaexplicação,dissequeestavammuitoatarefadosnaqueledia,sobenormepressão.Entãopergunteipelaterceiravez:‘Vocêofendeuumademinhasalunas?’.Elerespondeuquelamentavamuitoseoquedisserahaviasidointerpretadodessaforma.Entãoeudissequeelepodiainterpretaroqueeuialhedizercomobementendesse.Láestavaele,eufalei,emseuchalétodobrancocomtelhadodetelhasvermelhas,comoseestivessenoMéxico.Atéasjanelastinhamoformatoerrado.Esemnenhumlivronacasaecomenfeiteshorrorososnalareira.Eleeraaignorânciapersonificada,eudisse,enãoestavaemcondição de julgar nada,muitomenos algo belo.NaFrança, eu falei, existe umapalavra para definiralguémcomoele.Ditoisto,fuiembora.Billydissequenuncameviutãofuriosa.”“Puxavida”,disseNora.“Pois bem, o inverno será rigoroso. Eu sinto. Sempre percebo quando o inverno vai ser rigoroso.
Portantodevemosfazerplanos.Eugostariaquevocêaprendesseumacançãofrancesa.Pensei,talvez,emalgumacoisadeFauré.EdepoistalvezeudevadaralgumaatençãoàsuaamigaPhyllis.Elatemumavozbonita,efoibemtreinada,talvezatébemdemais,maselaé…”“Elaémuitogentil”,interrompeuNora.“Bem,vocêviuesseladodela.TambémandeipensandoemumacançãodeMahler.Voutocá-lapara
você,seeuconseguirencontrar.Podeficarboaparasopranoemezzo.ÉdoDesKnabenWunderhornetenhoapartituraaqui,emalgumlugar.OintérpretedeveserGeraintEvans,eleéobarítono,ePhyllispodiacantarasfrasesdele,depoisvocêentravacomavozdamezzo.Éumaespéciedecançãomilitar,mas toda ela fala de perda. Sabe, acho queMahler percebeu o que estava vindo, a PrimeiraGuerra,depoisaSegundaGuerra.Àsvezesseouveistonamúsica,ocaos,amaldade,eporfimaperdaterrível.Sim,elesentiaaperda.”Quandoasprimeirasnotassurgiram,Norapercebeuquejá tinhaouvidoaquelamúsica.E,quandoa
vozentrou,sentiu-sedenovocomodr.Radfordesuaesposa;quasepodiasentirogostodegim-tônicaeocheirodemadeiraenceradacomfumaçadelareira.Dessavez,porém,acançãopareceudiferente.Amúsicaeramaissuave,amelodiamaistristonhaebonita.PorémeraumamelodiaqueNoraachouquenãoconseguiriaaprenderacantarcomfacilidade;pensousenãodeveriadizeraLauriequetalvezFrankRedmondtivesserazão,quandodeixouclaroquenãoqueriaversuascançõesprediletasdestruídasporalguémincapazdecantá-las.“VoutelefonarparaaPhyllis”,disseLaurie,quandoacançãoterminou,“mastalvezvocêpossaavisá-
la.E,sepuder,dêaentender,delicadamente,queelanãodevefalarforadehora.Éumdeseushábitos.”Norasorriu.“Tenhocertezadequeelavaificarmuitocontentecomseuconvite.”“Eoquevamosfazerétrabalharpararealizarumpequenoconcertoaqui,quandoaprimaverachegar.
Algunsalunosmeusvãoseapresentarparaumaplateiadeconvidados.Vamoschamarodr.Radfordesuaesposa,etalvezalgumaspessoasdeWexford,casoeuaindaestejafalandocomelasatélá.”“Ah,odr.Radford?”,perguntouNora.“Nãosepreocupe.Seiquevocêteveumanoitehorrívelcomosdois.Maselestinhamboaintenção.
Queriamimpressioná-la,porqueeuhaviafaladodevocêparaeles.Contaramque,depoisdaquilo,vocêsemostroumuito fria com eles na Sociedade doGramofone, que você devolveu um disco que haviaemprestadodelesedissequenãotinhaescutado.Masvamosconvidá-losparaonossopequenoconcertoeeuvoumantê-lossobcontrole.”Na sexta-feira da semana seguinte, quando ela estava saindo do trabalho,WilliamGibney Junior a
esperavacomumbilhete.“Você sabe que aqui na empresa temos uma nova política de não receber recados pessoais de
ninguém”,disseele.“Mascomoinsistiramqueeraurgente,anoteiorecado.”Entregou-lheumpedaçodepapelcomonomedopadreDoyleeumnúmerodetelefonedeWexford.
Namesmahora,elaentendeuquedeviaestarhavendoalgumproblemacomDonal.Pensouemvoltaraoescritórioparatelefonardelá,masnãoqueriaqueElizabethouvisseaconversa,porissoandouligeiroatéacabinetelefônicadaagênciadocorreio,ondepoderiateralgumaprivacidade.ConseguiufalarcomopadreDoyleimediatamente.“Nãoqueropreocupá-lamuito”,disseele.“MasopadreLarkin,professordeinglêsdeDonal,achou
queeudeviatelefonarparaasenhora.NaverdadeDonalnãoestáseadaptandonadabem,eseiqueeleestátentandoentraremcontatocomasenhora.AchoqueopadreLarkintelefonouparaasenhora,masdisseramqueestavaocupada.”“ODonal…?”“Eleestádecamaháalgunsdias,nãotemsealimentadodireitoeestásemcondiçõesdefrequentaras
aulas.Jávimosissoacontecerantes.Sabe,ésóquestãodeeleseadaptar.”“Devoirvê-lo?”“OpadreLarkinachaquesim.”“Quando?”“Bem,pensamosemamanhã,nohorárionormaldevisitas.Easenhorapodelevá-loàcidade.Talvez
issodeixeDonalmaiscalmo.”“Padre,muitoobrigadaaosenhoreaopadreLarkinpormeavisarem.”“Vamosvercomoeleestaráamanhã,sra.Webster,e,denossaparte,vamosrezarporele.Muitasvezes
ésóumaquestãodetempo.Todosnóspassamosporissoemalgummomento.
“Obrigadamaisumavez,padre.Estareiaíamanhãàsduashoras.”Desligouotelefone.NoraresolveunãocontarnadaaFionanemaConor,nemmesmoaMargaret.Nodiaseguinte,quando
foidecarroaWexford,encontrouDonalàsuaesperanosaguãodafrentedocolégio.Estavadeuniforme,comopaletópreto.Pareciamaisalto,maismagroemaispálido,etambémmaisadulto.“Achoquev-v-vocêprecisadep-p-permissãoparasair”,disseele.“Estátudocerto”,respondeuNora,tentandopareceromaisnaturalpossível.“Recebiautorizaçãodo
padreDoyleontem.”Foramdecarroaocentrodacidade,emsilêncio.Norasentiuqueeleestavaàbeiradaslágrimas.Ela
nãosabiaseomelhorparaDonalerachorarounãochorar.Talvezalguémsoubesse,pensouNora;elanãosabia.EnquantocaminhavampelaMainStreet,NorasóconseguiapensaremcomoteriasidomaisfácilparaDonalseelenãotivesseidoparaocolégiointernoSt.Peter’s.Nosábado,poderiaacordaràhoraquequisesseecomeroquequisessenocafédamanhã.Sedesejasse,poderiaignorarNora,FionaeConor.PoderialerojornaledepoisiràcasadeMargaretcomsuacâmeraeseusrolosdefilme.Poderiavoltarparacasanahoraquequisesse.Acasaeradele;todosestavamhabituadosaseussilêncios,aseuscomentáriosdesdenhosos,asuagagueira.Eagoraelesóteriatodaessaliberdadenasférias.EracomosetivesseidoparaoExército.Oqueelefaziaemtodososmomentosdodiaeradecididoporumconjuntoderegras.NorarefletiusetudoqueDonalhaviaperdido,todaaliberdadefácileespontâneaqueelenãoiria recuperar,nãoestariapassandopelacabeçadele, assimcomopassavapeladela.PorémenquantoNorasóestavaimaginandotudoisso,Donalsentiaissotudocomoalgoreal.EntraramnacafeteriaWhite’saindaemsilêncio,eDonaldissequenãoquerianada.Enquantotomava
um café,Nora não tinha amenor ideia do que fazer. Se tentasse falar com ele como se fosse umdiacomum, de certo modo seria uma afronta àquilo que ele estava sentindo. Se abrandasse a voz e semostrassecompreensiva,nofinal teriadedeixá-lodenovonocolégio,apesardetudo.Nãofalarnadaeramaissimples,pelomenosporenquanto.Quandoperguntouseelequeriaalgumacoisa,Donalfezquenãocomacabeça,masacompanhou-aaté
aquitandanaMainStreeteaceitoualgumaslaranjasemaçãs,edepoisqueNorapagou,Donaldissequeprecisavadesucodelaranjaconcentradoedeumapastadedentes.Aindaeramtrêsdatarde.Elaficoutentadaasugerirquevoltassemaocolégio,pegassemasroupaseoslivrosdelee,semexplicarnadaaninguém,simplesmentefossememboraparacasa,Noraeele,enuncamaisvoltassemafalardocolégiointernoSt.Peter’s.Quandoperguntouseeleestavacomfome,Donalfezquesimcomacabeça.“Nãoc-c-consigoc-c-comeraquelacomida”,disse.EnquantocaminhavamparaoTalbotHotel,Nora
concluiuquenãodevialheoferecerumcaminhofácildefuga,quevoltarcomDonalparacasaeparaaescolaqueelehaviadeixadoseriaumaderrota;isso,demaneiranenhuma,seriaencaradodeoutraforma.Mesmolheoferecerumprazo,maisumasemana,ouummês,ouatéoNatal, seria fraquejar.PediriamumabandejadesanduíchesnoTalbotHoteleDonalpoderiamantersilêncio,sequisesse,masagoraoobjetivodeNoraeradeixá-lonocolégioSt.Peter’santesdascincohoras.Talveznofuturo,seascoisasnãomelhorassem,elapensariaemvirbuscá-lo,masagoranãopodiadeixá-loteramenorideiadequeissoeraumapossibilidade.OmaisprováveleraqueDonalseacostumasseàsnovascircunstâncias,casosentissequenãohaviaumaalternativafácil.Elaestavaquasezangadacomelepornãofalar,pornãolhecontarcomoerasuanovarotinaoudoqueelemenosgostavanocolégio.Enquanto esperavam a comida, ela pensou em romper o silêncio, mas se conteve. Quando os
sanduíches chegaram, os dois comeram sem conversar. Donalmal assentiu com a cabeça quando elaperguntouseelequeriamais.Davaparaverqueeleestavasofrendo,quesuavidaemcasa tinhasidodestruída e que ele não podia ter aquela vida de volta, mas havia um elemento de rudeza, e até deagressividade,noqueeleestavafazendo.Talvezestivesseseesforçandoparanãochoraroupedirajuda,pedirqueelao levasseparacasa.TalvezDonalsoubessequenãohavianadaqueNorapudessedizersobrealistadequeixasqueelelhefaria,assimcomonãopoderiaexplicarporqueelesesentiadaquelemodo.Desúbito,Norapensounumacoisa.“Vouvirtodosábado”,disseela,“emesmoqueeuevocênãopossamosviraquiaocentrodacidade,
vocêpodeficarnocarrocomigooueupossoentrarnosaguão.Voutrazermantimentosparaasemana,oquevocêprecisar.Ehátambémasvisitasaosdomingos;seiqueMargaretviráecuidarádetudoparaquevocêfiquebem.Portanto,assimserãoossábadoseosdomingos.Eachoquetambémháalgunsdiasdesemanaemquevocêpodepassaratardeláemcasa.Sevocêforvivendoassim,umasemanadecadavez,asfériasdeNatalvãochegarlogo,semvocênotar,eentãovocêvaipoderirtodasastardesparaacâmaraescuranacasadeMargaret.”Donalolhouparaelacomarsérioefezquesimcomacabeça.Poralgunssegundos,pareceupensarno
queelahaviadito.Emseguida,fezquesimcomacabeçadenovoeentendeuqueelanãotinhavindolhedizerqueelepodiavoltarparacasacomela,sequisesse.TudoqueNoradissesugeriaqueeleiaficarnocolégioSt.Peter’s.Donalolhou-adeumjeitopenetrante,comoqueparasecertificardequeelanãoirialiberá-lo,quenãoestavaprestesadizerqueaquelasvisitasprometidaseramapenasumaopçãoequehaviaoutraspossibilidadesqueelespodiamestudar.Noraprocurousemostrar solidária,mas tambémdeixar claro que não tinhamais nada a acrescentar, que ele precisava voltar ao colégio e se virar omelhorquepudesse.Nora foi ao banheiro e, quando voltou, percebeu umamudança sutil emDonal. Seu humor parecia
menosapagado,menossombrio.“Sabedoqueeugostaria?”,disseNora.“Eugostariadereceberumacartasuaduranteasemana,ou
atéumafotografiaquevocêtivesserevelado.Esehouveralgumacoisaqueeupossafazerparamelhorarasituação,meavise.Esealgumacoisaficarmelhor,eutambémgostariadesaber.Assimeunãoficareitãopreocupada.Achaquepodefazerisso?”Elaterfaladodesimesma,desuasnecessidades,desuapreocupação,deixouDonalaindamaisalerta.
OcorreuaNoraquenosúltimosanoselehaviapensadomaisa fundosobreeladoqueela sobreele.Noraseperguntouseaquiloseriamesmoverdade.SabiaqueamaneiracomoelasesentiaafetavaDonal,e agora, pela primeira vez, amaneira como ele se sentia parecia algomais premente,mais digno deatençãodoquequalquersentimentodeNora.TudoqueelapodiafazereradeixarbemclaroparaDonalqueelafariatudoquehaviaprometido,efazê-loacreditarnisso.Quandoestavamsentandonocarro,Norarepetiu:“Todosossábados,semfalta.Eescrevaemedigaquecomidaquerqueagente traga.Ouqualquer
outracoisaqueprecisar.”Donalassentiucomacabeçaesevirou.Elanotouqueele iachorar,eachouque talvez fossemais
fácil paraDonal ela não falarmais nada, apenas ligar o carro e seguir para o St. Peter’s. SeDonalnecessitasse que ela parasse o carro no caminho, ela pararia. Só precisavam voltar às cinco horas,portanto,aindadispunhamdequinzeminutos.MasNoranãofaloumaisnadaatéestacionarocarrodiantedocolégio.
17.QuandoConor perguntou se podia ganhar uma câmera fotográfica noNatal,Nora entendeu que ele
andava olhando as revistas de fotografia deDonal. Conor pareceu entender quando ela disse que eledevia pôr as revistas de volta no lugar, exatamente como as havia encontrado.Agora queDonal nãoestavaemcasa,NoranotoualgumasmudançasemConor.Iaparacamaantesqueelamandasse,pegavacarvãonosfundos,paraa lareira,antesqueelapedisse.QuandoMargareteJimiamvisitá-los,Conorficavanasalaporalgumtempo,escutandoaconversa,emboranuncafosseàcasadelessozinho,comoDonalfazia.Emtroca,muitasvezesiaàcasadeUna,ondeelapreparavasanduíchesdebananaparaele.Emboraoboletimdaescolaoclassificasseacimadosdemais,Conornãoestavasatisfeito.Algumas
noites,pediaqueFionarepassassecomeleagramáticadoirlandês,edepoisFionacomentavacomNoraque bastava dizer algo uma vez queConor logomemorizava.Como ele escutava tudo e não esquecianada,Noraprecisavatomarcuidadocomoquefalavanafrentedele.Conorsepreocupavacomtudo.Seocarronãopegavade imediato, ficavaaflito,achandoque teriamdecomprarumcarronovo.Quandoiam buscar Aine na estação de trem, Conor ficava andando na plataforma de um lado para o outro,preocupadocomapossibilidadedeotremnãochegaroudeAinetê-loperdido.Elesabiaohoráriodasaulas de Aine e o que ela achava dos diversos professores, assim como obtinha de Fiona todasinformações que podia sobre os lugares aonde ela ia com PaulWhitney. Também sabia tudo sobre aempresadosGibneyesobreaspessoasquetrabalhavamlá,sobretudoMickSinnott,queseapresentouaConornumapartidadehurling,perguntouseeleeraojovemWebsterelhedissequesuamãeeraumagrandemulher. Conor eramais interessado na família do que ela, brincavaNora, e sabiamais sobrequalquerpessoadoqueelasprópriassobresimesmas.Emsuasvisitasaocolégio internoSt.Peter’s,NoranãodiziaaDonalqueelepareciabemmelhor.
Donalcontavamaiscoisassobresuasatividadesnocolégioesobreosdiversosprofessoresepadresdoque jamais havia contado sobre a escolados IrmãosCristãos e dosprofessoresde lá.Nora ficou tãoaliviadaporeleterseadaptadoaocolégioquenemseimportouquandodescobriuqueelecontavamaiscoisasparaMargaretdoqueparaela.Noraelaborouummétododefazerquesimcomacabeça,dandoaentenderquejásabiadaquilo,quandoMargaretmencionavaalgumdetalhedavidadeDonalqueelanaverdadeignorava.GostariadesaberseDonalfaziaaquilodepropósitoouseeraapenasumareaçãoàsperguntasmaisinsistentesdeMargaret,queovisitavacomregularidadeaosdomingoseindagavasobreosmínimosdetalhesdavidadeleedetodasassuasopiniões.Nora soubequenãopoderia controlar as coisasentreConoreDonal,quandoele foiparacasanas
fériasdeNatal.DonalnãopôdeimpedirConordequererganharumamáquinafotográficadepresente,
emborapudessesabotá-lo,recusando-seadividirqualquerconhecimentoouignorandooirmão.Conortinhamais necessidade de aprovaçãodos outros do queDonal emuitas vezes parecia alheio a todos,exceto a simesmo. SeDonal resolvesse não incentivá-lo, Conor se empenharia em fazê-lomudar deideia.Norasorriusozinha,numsábado,quandoelaeConorforamvisitarDonalnocolégiointerno.“Donal,estoupensandoempedirumacâmeradepresentedeNatal”,disseConor.“Quetipodec-c-câmera?”Donalestavanobancodopassageiroeolhouparatrás,nadireçãodoirmão.“Nãosei.”“Euvendoaminhaparavocê.Estavap-p-pensandoemarranjaroutra.”“Asuaestácomalgumproblema?”“N-n-não,estáboa”,respondeuDonal.“Maseuq-q-queriaumam-m-melhor.”Nora pensou se não devia interromper a conversa e dizer aDonal queConor queria umamáquina
nova,ouexplicar aConorqueoqueDonalqueriadizer eraque, comoeleestavadescobrindocoisasnovas no campo da fotografia, precisava de uma câmera diferente,mas que a câmera que ele estavausandoseriaperfeitaparauminiciante.“Quantocusta?”,perguntouConor.“Vendop-p-paravocêpord-d-duaslibras.”“Oquevocêacha,mamãe?”,perguntouConor.“Achoqueoqueelequerdizer,naverdade,équevaivenderamáquinaparavocêporumalibraedez,
masseeladeralgumproblemanoprimeiroanodeuso,vaidevolverodinheiro.”“Nãov-v-vaidarnenhumproblema”,garantiuDonal.“Vocêvaimemostrarcomoserevelaofilme,seeucompraracâmera?”,perguntouConor.“Mostrocomosefazparar-r-relevarosfilmes,nacâmaraescuradatiaMargaret.Aprendiumap-p-
porçãodecoisaslá.”“Quandovocêvaimemostrar?”,perguntouConor.“QuandoeuforpassaroN-N-Natalláemcasa”,respondeuDonal.Conor,Norasabia,iriarepassarempensamentocadapalavradaquelaconversa,durantedias.QuandoasfériasdeNatalchegaram,FionafoificarcomAineemDublin,emseuquartodepensãona
RaglanRoad.DonallevavaConoràcasadeMargarettodososdias.Portanto,àmedidaquepreparavaacasaparaoNatal,Noraficavasozinhaamaiorpartedotempo.Podiaouvirseusdiscossemsepreocuparcomninguém.TratavaagravaçãodoTriodoArquiduquecomoalgoespecial;nãoouviaodiscotodososdias.Masseaaborrecessemnotrabalho,pensavanaquelamúsicaeprometiaasimesmatocarodiscoassim que entrasse em casa. Escutava com atenção, nunca usava a gravação como música de fundoenquantotrabalhavanacozinha,comofaziacomoutrosdiscos.O que não havia contado a ninguém, por ser estranho demais, era o que aquela música passara a
representar.Erasuavidadesonho,avidaquepoderiatertidocasotivessenascidoemoutrolugar.Todososdias,Norasepermitiaviverporalgumtemponomundodapurafantasia,ondepoderiateraprendidoatocarviolonceloquandocriançaedepoistersidofotografadatalcomoaquelajovemcheiadeímpetoetalento e com pleno domínio de seu mundo, tendo ao lado homens que dependiam dela e de suasonoridademaisgrave,maissombria.Noraquaseseretraíadeconstrangimentoquandopensavaemsuasmanhãs trabalhando na empresa dos Gibney, entre cifras, carimbos e faturas, em suas caminhadas demanhãpelacidade,navoltaparacasatodososdias,etambémquandopensavaemcomoeramescassasascoisasqueelaalmejava,comoaquilotudoseencontravamuitodistantedeumestúdiodegravação,um
palco de concertos, um nome conhecido, como era distante da vigorosa competênciamusical daquelamulher.Noraseperguntavaseelaseriaaúnicaanãoternadaentreasatividadesmaçantesdeseusdiaseapuraexuberânciadaquelavidaimaginada.Combinaramqueelanãoteriaaulasdecantoatéoiníciodejaneiro.Assim,noperíodoqueantecedeu
oNatal,Noranãotevenadadenovocomquesepreocupare,desdeamortedeMaurice,oNatalcorreumais fácil doquequalqueroutradata festiva.Seu relacionamento comJimeMargaret era amistoso eespontâneo; ela apreciava as visitas deUna eSeamus equase aguardava comansiedadeos encontroscomCatherine,Markeafamíliadeles,nacasadeUna,noDiadeSantoEstêvão.Ocorreu-lhequeissoeraoqueMauricemaistemiaquandoestavamorrendo,queumdianinguémsentiriamaisfaltadele,quetodosconseguiriam tocaravidasemele.Mauriceseriadescartado.MasNoraseobrigavaaacreditarqueMauricegostariaqueelesfossemfelizes,ousentissemalgosemelhanteàfelicidade,equeparaelesnãoexistiaoutraformadeviver.Aindaassim,NoraseperguntousedeviamencionaronomedeMauriceàmesaduranteaceiadeNatal,masconcluiuqueissodeixariatodostristesoupareceriaforçadodemais.Numdomingoànoite,nofinaldejaneiro,comAinejádevoltaàuniversidadeeDonal,semnenhuma
dificuldade aparente, de volta ao colégio, Nora estava passando roupa em seu quarto, quando Conorgritouparaqueeladescesseefosseveronoticiáriodatevê.“Masoquefoi?”,perguntouela.“Vemver”,elerespondeu.“Atiraramnumaporçãodecatólicos”,elecontouquandoNoradesceu.“Quem?”“Osingleses.”LogodepoisFionadesceueostrêsficaramvendojuntos,sentados,asnotíciasvindasdeDerry.“EsperoqueAineestejabem”,disseFiona.“Oquevocêquerdizer?”,perguntouNora.“ElaestavacomplanosdeirparaDerryoualgoassim?”“Não,masvaificarabaladacomisso.”OExércitoinglêshaviaatiradonumamultidãoqueprotestavapacificamenteemDerryematadomais
de doze pessoas.Quando o noticiário da televisão terminou, ligaram o rádio; ouviram a gravação depessoas gritando, depois o somde tiros e depois houve entrevistas com testemunhas e compolíticos.Nora observou comoConor avaliava bem cada palavra e viu que Fiona também escutava commuitaatençãotudoqueeradito.Noraestranhouquenamanhãseguinte,acaminhodotrabalho,sóumhomemadeteveparacomentar
comoforahorríveloquetinhaacontecidoemDerry.ThomasGibneypareceuaindamaiszelosocomohorário,atentoaquemseatrasasse.QuandoElizabethentrounasala,malfaloudoassunto,esóquandoElizabeth saiu para tomar seu cafezinhodamanhã comamãe,Nora se sentiu livre para circular peloescritório principal, onde algumas pessoas se aglomeravam em redor das folhas de um jornal abertonumamesa.QuandoMickSinnottsejuntouaeles,disse:“Agoraacabou.Chegadeesperar.Todosnósdevemosatravessarafronteira.Pegaraterradevolta.”“Émelhortercuidado”,disseumadasmoças.“Vãoatiraremvocêtambém.”“Todosnósestaremosarmados”,elerebateu.“Enãovamosficarnumlugarfácildeencontrar.”“Vocênãoconsegueacertarumtironemnumcoelhopresonumagaiola”,retrucououtramoça.
NaSlaneyStreet,acaminhodecasa,Noraviuduasconhecidas.ElaspararamquandoviramNorase
aproximar.“Ah”,disseumadelas.“Amãedeumdos rapazesatingidos falounorádioedissequeelesó tinha
dezesseteanosequelevouumtironascostas.”“Tudoquepodemosfazerérezarporeles”,disseaoutramulher.“Foichocante”,afirmouNora.“Muitochocante.”“Depoisdetodososincêndiosqueelessofreram…”,comentouumamulher.“Aquelessoldadossãomaus”,disseaoutra.“Mausmesmo.Dáparaverneles.”Dias depois, houve umdia nacional de luto e tudo ficou fechado.Nora e Fiona ficaram em casa e
assistiram televisão comConor.A cobertura jornalística dos enterros foi demorada.Conor ficou comelas no início, para o caso de havermais tiros. Porém os caixões, a igreja e os comentários não lheinteressaram.Acabouseesquivandoparaaoutrasala,enquantoNoraeFionaassistiamemsilêncio.“Devíamosterumtelefone”,disseFiona.“TenteiligarparaaAinedacabinetelefônicadaBackRoad,
massóconseguifalarcomumapessoaquemoranoandardebaixo.”“Seriabommesmoterumtelefoneemcasa”,comentouNora.“ApostoqueAinefoiàpasseataemDublin”,disseFiona.“Esperoquetenhaidocompessoasqueelaconhece”,disseNora.“Oquevocêquerdizer?”“Nãoseioqueeuquerodizer.SódougraçasaDeuspormorarmosaquinoSul,aquilômetrosdisso
tudo.”“Somostodosirlandeses”,disseFiona.“Eusei.Tenhomuitapenadaquelapobregentedelá.”Maistarde,Conorvoltouparavernatelevisão,comFionaeNora,umamultidãoaglomeradaemvolta
daembaixadabritânicaemDublin.“Achoqueelesvãopôrfogonela”,disseFiona.“Temgenteládentro?”,perguntouConor.“Tenhocertezadequeelaestábemprotegida”,disseNora.Tãologoelaacaboudedizerisso,viuumapessoaarrombandoaportadaembaixadaedepoisoutros
avançandologoatrás.Conorficouagitado.“Issoestáacontecendoagora?”,perguntou.“Achoquesim”,respondeuFiona.“Maisgentevailevartiro?”“Ninguémestáarmado”,disseFiona.“Pelomenosachoquenão.”Oscomentáriosnatelevisãoeramconfusosesuperficiais.Àsvezes,acâmeratremiaeaimagemera
obstruídapormãosoucabeçasemprimeiroplano.“Ondeéisso?”,perguntouConor.“EmMerrionSquare”,respondeuNora.“SeupaieeupassamosnossaluademelnoMontClareHotel,
naesquina,logodolado.”“Foimesmo?”,exclamouFiona.“Eraolugaraondeaspessoasiamnaquelaépoca”,explicouNora.“Bom,vocêtemsortedenãoestarpassandosualuademelláagora”,disseConor.
Nanoiteseguinte,JimeMargaretforamvisitá-laeNorapercebeuqueJimestavaagitadocomofato
de a multidão da passeata de Dublin ter incendiado a embaixada britânica. Quando o noticiário datelevisãofoiaoar,viramemsilêncioasruínascarbonizadasdoprédio.“Os descontentes tiveram uma grande noitada”, comentou Jim. “Construir que é bom, eles não
constroemnada,mesmosealguémensinarcomosefaz.Masparaincendiarelessãoótimos.”“Foimesmochocante”,disseNora.“Oqueelesdeveriamfazer?”,perguntouFiona.“Entrarnaembaixadaeagradecer?”“Dublinfoiumlugarmuitoperigosonanoitepassada”,observouMargaret.“Poisfoiumanoiteexcelenteparaapolíciapolíticainglesa”,disseJim.“Puderamdarumaboaolhada
emumaporçãodegente,eugaranto.Nãovãoseafobar,masimaginoquefarãoalgumasprisões.”“Poiseuachoqueosmanifestantesfizerambememincendiaraembaixada”,disseFiona.“Suponho que seja uma forma de mostrar aos ingleses como os irlandeses estão se sentindo”,
acrescentouNora.“Umdosmortossótinhadezesseteanos.”“Nãoéhorrível?”,disseMargaret.“Ogovernovaisaberlidarcomisso;agoratemosdedeixaresseassuntoporcontadeles”,disseJim.“Ecomoéqueelesvãolidarcomesseassunto?”,indagouFiona.“Vamosusartodososnossosembaixadores,elesvãolevaraquestãoparaasNaçõesUnidas.Incendiar
a embaixada britânica não ajuda a nossa causa. Vai dar a impressão de que somos uma horda dedesordeirosebeberrões.”“Poiseuachoqueosmanifestantesdeixarambemclaraanossaposição”,rebateuFiona.“Seeufosseamãedeumdosrapazesmortos,arranjariaumaarma”,disseNora.“Teriaumaarmaem
casa.”Ficaram em silêncio quando JackLynch surgiu na televisão e foi entrevistado.O primeiro-ministro
irlandês disse que havia conversado por telefone com o primeiro-ministro do Reino Unido, EdwardHeath.Quandoaentrevistaacabou,Jimfoioprimeiroafalar.“Eleécauteloso”,disse.“Creioquerefletiubastantesobreoquefalou,eouviumuitosconselhos.”“Eudiriaqueeledeuumbompuxãodeorelhanesse taldeEdwardHeath”,disseMargaret.“Éum
sujeitodecaramuitoazeda,esseHeath.”“Bem, espero que ele não fraqueje”, disse Nora. “Se o Exército inglês atirasse no meu filho, eu
gostariaquetivéssemosalguémumpoucomaisduronopoder.”“Achoquevaihavermuitaconfusão”,disseFiona.“EachoqueLynchnãovaiconseguirmuitacoisa.”“QueiraDeusquenenhumdessesproblemaschegueatéaqui”,disseMargaret.Sónasexta-feiraFionaconseguiufalarcomamoçaquemoravanoandardebaixodoquartodepensão
deAine,eeladissequeachavaque faziaalgunsdiasqueAinenão iaparacasa.FionapediuqueeladeixasseumbilhetenaportadeAine,dizendoparaela telefonarparasuatiaUna.NãoquispreocuparMargareteJim,porissonãoacrescentouonomedelesaorecado.FionacontouissoaNoraefoiàcasadeUnaavisarqueAinetalveztelefonasse.Lá,ligouparaalgumaspessoasqueAineconheciaemDublin.Quandonãoconseguiafalarcomelas,deixavarecado,pedindoqueligassemparaUna.NoraesperouqueFionavoltassecomalgumanotíciadeAinee,comoelademoroumuito,pediuqueConorfossecomelaatéacasadeUna.“Porqueestamosindolá?”“Unanosconvidou.”
“Porqueelanosconvidou?”PelamaneiracomoConorfaziaperguntas,muitasvezeseradifícilcontarumameiaverdadeaele.Ao
chegarem,elepercebeudeimediatoquehaviaalgumproblemaequeaquelanãoeraumavisitacomum.Nora percebeu que a mente dele estava trabalhando, elaborando possibilidades. Não podia contar aConor que elas estavam preocupadas com Aine e que desde terça-feira, véspera do incêndio naembaixada, ela não aparecia em sua pensão.QuandoNora foi ao banheiro, Fiona a acompanhouparadizerquehavialigadodenovoparaotelefonedeAineequealguémdeoutroquartoatendeu,tinhaidoveroqueestavaacontecendoeencontrouobilhetenaportadeAine.FionadissequeprecisavaverPaulWhitneyparaqueeleaaconselhassesobreoquefazer.“Sealguémtiversidopresonapasseatadaembaixada,eledevesaber”,disseFiona.“Aineestavanapasseata?”“Nãosei.Talvezelatelefoneestanoite.”Quando, às dezhoras, sóumapessoahavia telefonadoparadizer quenão tinhavistoAine,Nora e
Conorvoltaramparacasa.Maistarde,quandoouviuFionachegando,Noradesceuaescadanapontadospés,paraConornãoescutá-la.“PauldissequeestavamesmopensandoemiraDublinamanhã,portantopoderemos iràpensãode
Aine.”“Temcertezadequeelafoiàpasseata?”“O que eu sei é que ela tem ido a passeatas e aquela foi tão grande que acho difícilAine não ter
participado.”NoranãoqueriapassarodianacasadeUnaàesperadeumtelefonema.“Vouparalánomeucarro.”“Nãohánecessidadenenhuma.”NorapercebeuqueFionaesteveapontodesugerirque,seelaqueriamesmoir,podiajuntar-seaeles.
Decidiuquenãoiapedirissoàfilha.“VamosnosencontrarnoShelbourneHotel àsduashoras”,propôsNoracom firmeza. “Voupedir a
UnaqueváveroDonalnoSt.Peter’s.EeuvouprocurarAineassimquechegaraDublin.Nacertanãoaconteceunada.Podeserqueelatenhaficadonacasadealguémequejátenhavoltadoparaacasadelaquandochegarmoslá.”“Tenho certezadequevocê está certa”, disseFiona. “Por isso é quenão sei se hánecessidadede
todosnósirmosparalá.”“Possofazerumascomprastambém”,disseNora.“EoConor?”“Eumeencarregodeledepoisqueeutiverumanoitedesono.”Demanhã,NoraencontrouConornacozinha.“OquevocêeaFionaficaramcochichandodenoite?”,perguntouele.“Ah,euacordeiquandoFionachegouevimtomarumaxícaradechácomela.”QuandoUnaapareceu,Conorficouaindamaisdesconfiado.NorafezsinalparaUnanãofalarnadana
frentedele.Noentanto,aondequerqueelasfossemnacasa,Conoriaatrás,àsvezesfingiaqueestavaprocurandoalgumacoisa,depoisachouumacadeira juntoà janeladasala,ondeasduasestavam.Porfim,NorasubiuparaseuquartoeesperouqueUnaaseguisse.
“UmaamigadeAine telefonou,pareceumuito simpática”, sussurrouUna, “edissequeno sábadoànoitetodoselescostumamsereunirnumpubdaLeesonStreetchamadoHourican’souHartingan’s.”UnaaceitouircomConoraocolégiointernoparavisitarDonalelevarascoisasqueelehaviapedido.QuandoNorasaiudoquarto,viuConorvagandopelopatamardaescada.Elasnãooouviramsubira
escada.“AAinedesapareceu?”,perguntouele.“Quemdisse?”“TalvezaAine tenhasidoumadaspessoasquepuseramfogonaembaixada”,disseele.“O tio Jim
falouqueapolíciapolíticaiaatrásdetodoseles.Talvezelaestejatentandofugir.”“Nãosejatolo!”,exclamouNora.“Entãoporquevocêstodasandamcochichando?”“AAinearrumouumnamoradonovoeeueFionavamosaDublinparaconhecê-lo,maselanãoquer
que nem você nem o Donal saibam, porque não quer que vocês fiquem zombando dela e fazendoperguntasenxeridasquandoelavierparacasa.Elavaicontarparavocêsnahoraqueacharmelhor.”“Qualéonomedele?”“Declan.”Conorpareceurefletirsobreessenomeporalgumtempoedepoisfezquesimcomacabeça.“Portanto,vocêpodeirparaacasadaUna”,disseNora.“EdepoisirveroDonalcomela.Maistarde
jáestaremosemcasa.”
***Nora foi de carro a Dublin certa de que Aine, onde quer que estivesse, não tinha sido presa. Se
houvesseacontecidoalgumacoisa,Noracomcertezajáteriasidoavisada.Sóqueelanãoqueriapassarodiatodoesperandoaconfirmaçãodisso;tambémnãoqueriaqueFionaePauldesempenhassemopapelque caberia a ela eMaurice. Aine era responsabilidade dela, mas Aine, pensouNora, era como elaprópria.Desdemuitojovemtinhasemostradocapazdecuidardesimesma.Quando Nora encontrou o prédio onde Aine alugava seu quarto, na Raglan Road, não sabia que
campainhadeviatocar,porissotocoutodas.Umajovemcomcarasonolentaederoupãoatendeuaporta.“Ah,sim,elaestánoapartamento4”,disse.“Elanãoatendeuacampainha?”“Vocêseimportaseeuentrarparairbaternaportadela?”“Vocêéamulherqueficatelefonandootempotodoparafalarcomela?”Apontouparaumtelefonepúbliconocorredor,aoladodaportaabertadeseuquarto.“Sim,eutenhotentadofalarcomela,éverdade.”“Poisé,ontemànoiteeufuidarumaolhada,eobilhetecontinuanaporta.Vocêpodeirláver,masse
tocaracampainhaeelanãoatender,éporquenãoestálá.Todasascampainhasfuncionammuitobem.”FionaePaulWhitneyestavamnosaguãodoShelbourneHotel,quandoNorachegou.“Telefoneiparaumamigomeuqueépolicial”,dissePaul.“Estánapolíciapolíticahábastantetempo
esabedascoisas.Eledizqueasituaçãoandamuitoturbulenta.Oproblemaéquenaquarta-feirahaviaumaporçãodemembrosregularesnaMerrionSquare,alémdosprovisórios.”“Membrosregulares?”,disseNora.
“DoIRA,oExércitoRepublicanoIrlandês”,explicouFiona.“Nossa”,exclamouNora.“TenhocertezadequeAinenãofazpartedenenhumIRA.”“Existemtantasorganizaçõesnovasagora,queédifícilmanterumregistrodetodas”,dissePaul.“NósvamosatéEarlsfortTerrace”,disseFiona,“porqueAinemuitasvezesestudalá.Depoisvamosa
Belfield.”“Seelanãoapareceratéofimdodia”,dissePaul,“nãofarámalnenhumregistrarmosumboletimde
ocorrênciadepessoadesaparecida.Apolíciaaencontrarábemdepressa.”“Vamosesperaratémaistarde”,disseNora.CombinaramdeseencontrardenovonoShelbourne,àsseishoras.NoradesceuaGraftonStreet,olhoudiscosnaMcCulloughPigott’s,depoispegouocarroevoltouao
prédiodaRaglanRoad.Tocouacampainhadoapartamento4e,comoninguématendeu,voltouaocarro,sentoueficouesperandoahoradeseencontrarcomFionaePaul.PaulgostavadoShelbourneHotelepareceuterprazerdepedircháesanduíchesparaostrês,nobar.“EudiriaqueestafoiumasemanaemqueaspessoasandaramcirculandomuitoemDublineficaram
emtodotipodelugar”,eledisse.“AchoqueéocasodeAine.”“Sim”,disseFiona,“maséestranhoqueelanãotenhavoltadoparaoprédiodaRaglanRoad.”“Quandoeueraestudante”,dissePaul,“euiatodososanosàscorridasdecavaloemCheltenham.Meu
Deus,sealguémmeprocurassenaquelasemana,nãoiameencontrardejeitonenhum.HouveumanoemquealgunsdenóstivemossortenasapostasedeláfomosdiretoaParis.”“Eosestudos?”,perguntouNora.“Erapossívelfazertudoemummês.Nocursodedireitocomcertezaerapossível”,respondeu.“Até
osestudantesdemedicinapoucofaziamantesdeabril.”“TenhocertezadequeAineestudamuito”,disseNora.“EquenãofoiaCheltenhamemuitomenosa
Paris.”“Naverdade,ascorridasemCheltenhamsãoemmarço”,dissePaul.“Portantoelanãoteriaidopara
lá.”NoraolhouparaFiona,quepareciatãocientequantoelaquefaltavaaPaulsensodehumor.Quando
ele se esticou na cadeira e apoiou o tornozelo direito no joelho esquerdo,Nora notou suameia. Eravermelha,felpudae,eraevidente,haviasidocuidadosamenteescolhida.OlharparaameiafezNoraseperguntarnãosóoqueelaestavafazendoalinohotelcomFionaePaul,masoqueestavafazendoemDublin.Recapituloutudoquealevaraatéali;quantomaisselembrava,maisencaravatudoaquilocomoumasériedemal-entendidosprovocadospelaapariçãodeAinenoTheLateLateShow,umanoantes,masprovocadosaindamaisintensamentepelostirosdisparadosemDerry,pelosenterrosepeloincêndiodaembaixadabritânica,etalveztambém,pensou,porumcontínuodesassossegosubjacenteemsuacasa,aoqualtodosjátinhamseacostumado,masquequalquercrise,mesmoumapassadanatelevisão,podiatrazeràtona.NoratinhavontadededizerqueagoraiavoltarparacasaequeestavacertadequeAineentrariaem
contatocomelesquandoachasseconveniente.Eque,aindaqueAineestivessedesaparecidamesmo,suapermanênciaemDublinnão iriaajudaremnada.Casonão recebessemnenhumanotíciadeAine logo,teriamdetomaralgumadecisão,eNorapreferiafazerissosozinha,oucomUna,doqueemcompanhiadePaul Whitney ou de qualquer pessoa capaz de dar telefonemas informais para membros da políciapolítica.Quandopensounisso,lheocorreuperguntaraFionaseelahaviatelefonadoaUna.“Defato,émelhortelefonar”,respondeuFiona.“Voucomvocê”,disseNora.Tiveramdeesperara recepcionista fazera ligaçãoparaUna.Quandoa linhadeusinaldeocupado,
elasficaramesperandojuntoàmesadarecepçãoeNorasupôsquearecepcionistairiadiscaronúmeronovamente.“NósvamospassaranoiteemDublin”,disseFiona.“Onde?”“Ah,Paultemamigosaqui,nósvamosficarcomeles.”“Achoqueémelhoreuvoltarparacasaagora”,disseNora.“NãovamospassarnaLeesonStreetparaverseAineestánumdaquelesbares?”“Nãohánecessidadede todosnósfazermos isso.Vocêpode telefonarparaUnaenosavisar,seela
estiverlá.”Fionavirouorosto.Noraiadizeraelaquetinhasidocasadacomumprofessorequeaformacomoos
professoresexprimiamseuaborrecimentonãoeranenhumanovidadeparaela.Emvezdisso,pediuquearecepcionistadiscasseonúmeromaisumavez.Quandoaligaçãofoitransferidaparaumadascabines,NoraindicouaFionaqueeladeviafalarcomUna.Porém,assimqueFionafechouaportadevidro,Norasearrependeu.Eraóbvioquehaviaalgumanovidade,eachouqueFionadeveriacomunicá-lanomesmoinstante.MasFionadeixouNoraesperandodoladodeforaeaignorou,quandoamãebateunovidrodaportacomosnósdosdedos.Denovo,sentiuoimpulsodeiremboradali,entrarnocarroevoltarparacasa.No dia seguinte, depois de ir àmissa e ter certeza de queConor estava bem, iria passar o diaouvindomúsica.SehouvessealgumanotíciadeAine,deumjeitooudeoutroacabariachegandoaela.Noentanto,quandoFionasaiudacabine,Noratinharesolvidosermaisforte,permaneceralieescutar.
Norasedeucontadequeestavaextremamentepreocupada.“MarianO’Flaherty telefonou paraUna e disse que, até onde ela sabia, hojeAine iria ao protesto
organizadopeloComitêdeDublinemDefesadaMoradia,naO’ConnellStreet,depoiselaeosamigosiriam a um pubchamadoBachelor Inn, emBachelor’sWalk, e depois a um daqueles bares daLeesonStreet.”“Marianestevecomela?”“Sim,elaachaqueAinepassouasemanatodaassistindopalestras.”“Entãoelanãoestádesaparecida?”,perguntouNora.“VocêvaiconoscoàquelepubnaBachelor’sWalk?”“Vouparacasa.”“NósdevíamosirverseAineestálámesmo”,disseFiona.“Nãohánenhumanecessidadedeirmostodosjuntos”,respondeuNora.FionaeNoravoltaramaobar.“Paul”, disse Nora, parando na frente dele, “estamos muito agradecidas a você por tudo que fez.
Agora, vou para casa cuidar doConor, portanto gostariamuito que você eFiona telefonassempara aminhairmãeaavisassem,quandovissemaAine.”Eleassentiucomacabeça.Porumsegundo,pareceuquasecommedodela.NoracumprimentouFiona
comacabeçaeosdeixou.Quando Nora chegou à casa de Una, soube que Fiona tinha telefonado para dizer que haviam
localizadoAine,comumcartaznamão,naO’ConnellStreetBridge,equeelaestavasãesalva.Nãoestiveranapensãoporqueestavanacasadeumaamigacujospaistinhamviajado.“Esperoquetudoissosejaporumaboacausa”,disseNora.“Elafoiumpoucoatrevida,pornosdeixartãopreocupados,nãoacha?”,disseUna.QuandoConorapareceu,estavasorrindo.ContouqueUnatinhafeitobatatasfritasparaelecomercom
ochá.“EcomoéoDeclan?”,perguntouele.“Apostoqueébaixinho.Eletambémésocialista?”“Émuitosimpático”,disseNora.“QueméDeclan?”,perguntouUna.“Vocênãolembra?Conteiavocêhojedemanhã.ÉonovonamoradodeAine.”“Ah,é.Tambémoacheimuitosimpático.”Conorobservouasduas.“Achoqueelanãotemnenhumnamoradonovo”,disse.Certamanhã,nofinaldefevereiro,acaminhodotrabalho,NoraviuocarrodePhyllisestacionadona
JohnStreet.Aoseaproximar,viuPhyllisnobancodomotorista,lendoumjornal.Porumsegundo,Norapensouemdarumabatidinhanajanela,masdepoisdecidiuqueeramelhorpassardireto.Noentanto,nasegundamanhã,quandoocarroestavaparadodenovonomesmolugar,PhyllisviuNoraseaproximandoebaixouovidrodocarro.“Conto a história toda para você lá na Sociedade doGramofone”, avisou Phyllis, “mas estou aqui
vigiandoMossyDelaney,queestápintandoaminhacasa,casoeledecidairpintaracasadeoutrapessoaedeixaraminhapelametade.Elesabequeestouaqui,porissovaiterdeircomigo,quandosedignarasairdacama.Ah,quantosproblemas!”No final da tarde de quinta-feira, durante a pausa para o chá na Sociedade doGramofone, Phyllis
contouaNoraque,noprimeirodia,quandoMossynãoapareceunoserviço,elarodouacidadedecarroenãooencontrou.Entãofoiàcasadele,naJohnStreet,efoirecebidacompetulânciapelaesposa.Emseguida,Phyllis fezuma rondacompletapelazona rural,perguntandoa todomundoqueencontravasetinhavistoavandeMossy,queeraverdeepareciaumaruínaambulante.Nofinal,contouela,acabouachandoMossynocasarãodeDeacon,pertodaestradaparaBunclody.PhyllisentrounacasasemseranunciadaeviuMossyemcimadeumaescada,pintandoumaparede.“Sacudiaescada,deiumberroedeixeiMossymortodemedo”,dissePhyllis.“Depoisasra.Deacon
melevouparafora,masnãosemanteseuterditoaMossyqueestavafalandomuitosério.Portanto,aúnicamaneira de eu garantir que o serviço será feito é ficar plantada na porta da casa dele todas asmanhãs.Nãovou repetir a você o que a esposa deleme falou ontem.Mas lhe garanto que ela é umapessoacomplenodomíniodovernáculo.”Nora ficou interessadaquandoPhyllismencionouqueMossyestavapintandopor cimadopapelde
parede,comumnovotipodetintaqueopapeldeparedeabsorvia.Naúltimavezemquepuserapapeldeparedenasala,Norajuroununcamaisfazerisso.ComFionaeAine,Norativeraderaspartodoopapelvelho.Pormaiscuidadoquetomassem,araspadeiraacabavatirandooemboço.Edepoiselapercebeuquehaviaescolhidoopapeldeparedeerrado:eramuitoespalhafatoso,comfloresdemais,numpadrãorepetitivo.Norahaviasecondicionadoaignorarisso,masàsvezesopapeldeparedechamavatantosuaatençãoqueelanãofaziaoutracoisasenãoficarolhandoparaele.Phyllisgarantiuque,quandoMossyafinalchegavaparatrabalhar,eleeraumperfeccionista;descreveu
como trabalhava comgrandespinceladas, quedavama impressãodeque a tinta iria se espalharparatodososlados.Mossyexplicou,dissePhyllis,queeraimportanteatintaseraplicadaemcamadasfinasecomrapidez,paranãoencharcardemaisopapel.Noranãotinhacertezadequeestavadispostaagastardinheirocomumpintor.Alémdomais,aideia
dealguém tumultuaracasa,nãoaparecernahoracombinadaedeixaro serviço incompletopormuitotemponãoeraalgoqueNorafossecapazdeenfrentar.Noentanto,começouaobservaropapeldeparede
da sala e pensou se elamesma não poderia aplicar uma pintura sobre ele, e também imaginou comoficariaa salapintadadebrancooucreme.Todoo resto iaparecervelho, concluiu.Opisode linóleoestavagasto,osladrilhosdalareira,lascados,asanefadacortinanoaltodasjanelaseradeumtipodemadeirafinaquepareciafrágil.Ascortinasnuncatinhamsidotrocadasnaquelesanostodos,eeracadavezmaisdifícilfechá-lasànoitesemqueficassemmeiotortas.AdúvidasobreoquefazercomassalasnãodeixavaNoradormir.Precisouselembrarqueagoraera
livre, que não existia nenhum Maurice para temer as despesas e se irritar com qualquer coisa queperturbasse sua rotina.Nora era livre.Podia tomarqualquer decisãoquequisesse a respeitoda casa.Sentiu-sequaseculpadaquandolheocorreuquepodiafazeroquebementendesse.Tudopodiaserfeito,oqueelaquisesse,contantoque tivessedinheiroparapagar.SeJimeMargaretdesaprovassem,ousesuasirmãsefilhasviessemcomrecomendações,elapoderiaignorartodoseles.Precisaria tomar cuidado com os meninos. Eles desconfiavam de tudo e a observavam com uma
atençãonervosaquandoelafalavadedinheiro.Conortinhaadquiridoohábitodeverificaropreçodascoisas e comentar as compras que ela fazia. Se reparasse que Nora andava olhando tapetes na DanBolger’s, iria ficarpreocupado; talvezfossemelhoro tapetechegarderepente,antesdeelesaberqueNoraohaviacomprado.Elafezumalistadecoisasquedeixariamassalasmaismodernas.Umtapetenovoeumalareiranova
nasalamaior;pintarasparedes.Elamesmapodiacuidardapintura,seobservassecomoMossyDelaneytrabalhavanacasadePhyllisedescobrissequetintaeleusava.Levariaamesadejantardasalamaiorparaasaletae,talvez,tambémpusesseumtapetenasaleta,talvezatépintasseasparedesdelátambém.Conorpoderiafazerosdeveresdaescolanamesa,ouFionapoderiausá-la.ENoralevariaosofáeasduaspoltronasdasaletaparaasalaejogariaforaasduascadeirasdalareira,queestavamvelhasenãoerammuitoconfortáveis.NalojaDanBolger’s,emMarketSquare,procuroutecidosparacortinaeviuumcatálogoemqueas
cortinasseestendiamsobreaparedetoda,emborasuajanelasóprecisassedemetadedaquelepanoparacobri-la.Norapensouseaquiloficariabomemsuasala.Seasparedesfossempintadasdebranco,elapoderiaescolherumacormaisvivaequenteparaascortinas.Asaladeestarretratadanocatálogoerailuminadapor luzdeabajuresànoite,emvezdeumaúnica luzno teto.Elapoderiapegara lumináriavertical da saleta, onde ela quase não era usada, e colocá-la na sala maior. Talvez comprasse maisabajuresemDublin—naArnott’sounaClery’s—ouemalgumalojadeWexford.Noracomeçouapesquisarpreços.Algunsdias,notrabalho,pegavasualistaparadarumaolhada.A
pinturateriaquevirnofim,depoisquetodaapoeirativesseassentado;asubstituiçãodalareirateriadeserfeitalogonoinício.QuandoNoraexplicouaPhyllisquenãopretendiausarosserviçosdeMossyDelaney,Phyllisdisse
queeraumadecisãosensata.“Me arrependo de não ter ficado aqui com ele para aprender como se faz.Assim, eumesma teria
começadoatrabalharnomomentoemqueelefosseembora.Teriamepoupadomuitoaborrecimento,ealémdomaisdeveserumótimoexercício.”Empoucosdias,PhyllisfoiàcasadeNora,depoisdeterrecebidoinstruçõesminuciosasdeMossy
Delaneysobrepincéisetintas.Phyllistinhaatédescobertoamelhorformadeaplicaronovotipodetintaecomoevitarqueescorresse.Fezumaimitaçãodaspinceladasnaparede.UmdiaDanBolgerviuNoraemsualojaeseaproximouparadizerquetinhaconhecidobemMaurice,
quando estavam tentando fundar aCooperativa deCrédito. Ele e Jim Farrel sempre comentavam, ele
contouaNora,que,senãofosseMaurice, teriamdemoradomaisumanoparaconseguirqueascoisasandassemdireito.“EunãosoudoPartidoRepublicanoIrlandês,comoasenhoradevesaber”,afirmou,“massempredigo
que, seMauriceWebster tivesse secandidatadoaoParlamento irlandês, eu seriaoprimeiroa lhedarmeuvoto,eissoéomaiorelogio,vindodeumconvictopartidáriodoFineGael*comoeu.”Norasorriu.“Portanto,sehouveralgoqueeupossafazerpelasenhoraemtermosdepapeldeparede,tecidopara
cortinaoutapete,estouàsordens.”Nora se deu conta de que, se pedisse,DanBogler lhe faria um desconto em tudo.De certomodo,
sentiuqueseriaumpontoaseufavorpoderdizeratodomundoquetinhaconseguidofazerareformaaumcustobaixo.Mostrousualista.“VoutelefonarparaaSmyth’sagoramesmo,porqueessatintaeunãotenho,maselestêm”,disseDan
Bolger.“Epossofazerumpreçobomparaasenhoranotecidodacortina,nalareiraenostapetes.EsóexisteumhomemcapazdeinstalarumalareirasemdeixarasuacasaparecendoaentradadoCrokeParknum típico domingo chuvoso irlandês, e o nome dele éMogue Cloney. A senhora não vai conseguirconversarmuitocomele,masnoserviçoeleémuitobom.”DepoisqueNoraescolheuotecidodacortinaeostapetes,DanBolgermandouumfuncionárioirtirar
asmedidas.QuandoNoradissequequeriaascortinascobrindotodaaextensãodaparede,eleexplicouquehaviaumnovosistemadesuspensãoquenãoiarequererumasanefagrande.“Osenhorpodeinstalarascortinas?”,perguntouNora.“Normalmentenão fazemos isso.Os tapetesde fatonós instalamos”, explicou. “Masdeixaremosas
cortinasprontinhasparaasenhorapendurar.”Noraficouemsilêncioenemsemexeu,comoseoqueeletinhaditolhecausassealgumaaflição.Nora
quasepôdeouvi-lopensandocomoiafazerparasairdacasadelasemprecisarseoferecerparapendurarascortinas.Porumsegundo,Noradesejousaberonomedofuncionário,oualgumacoisasobreele,parapoderamolecersuadeterminação.“Nãoseiquempoderiapendurarascortinas”,eladisseafinal.“Ah,bem…Nãovoudeixarasenhoranamão.”“Muitoobrigada”,disseela.“Émuitagentilezasua.”UmdiaMogueCloneychegouàsoitoemeiadamanhãcomumajudante.NoraexplicouaConorque
elaiatiraralareiravelhaeinstalarumanova.“Comoéquesetiraumalareira?”,perguntouConor.“Algumaspancadasdamarretanumatalhadeiravãosoltarocimento”,explicouMogueCloney.“Nãovãosairpedaçosdaparedejunto?”,perguntouConor.“Puxa,vocêpareceaqueleguardade trânsitovelhoquemefezpararoutrodiaporcausadospneus
carecas”,disseMogueCloney,eeleeseuajudanteriram.QuandoNorachegouemcasa,asalaestavacobertadepoeiraea lareiravelha largadanomeioda
sala. Assim que Conor chegou, foi com Fiona inspecionar tudo, como se os dois homens estivessemtrabalhandoparaele.“Ondeestáalareiranova?”,perguntou.“Estálánavan”,respondeuMogueCloney.
“Vocêstêmcertezadequeelavaicaberaqui?”“Temos”,respondeuMogue.Conorolhouasalaemvolta.PareceuestarverificandosetudoestavaemordemeseMogueCloney
nãotinhadanificadoalgumacoisa.QuandoConor eFionavoltarampara a escola depois do almoço,Nora achoumelhor sair também.
Masdepoisficouemdúvidasenãodeviapermaneceremcasaparasupervisionarotrabalho.“Seasenhoranosderumaboavassouraeumbomescovão”,disseMogue,“nemvainotarqueagente
esteveaqui.”Logo que a tinta foi entregue,Nora seguiu paraWexford, num sábado, com o objetivo de comprar
exatamenteosmesmospincéisqueMossyDelaneytinhausadonacasadePhyllis.QuandofoibuscarumaescadaemprestadanacasadeUna,suairmãlhedissequeelanãodeviatentarpintarsozinha.“Étrabalhoparaunspoucosdias”,disseNora.“Achoquevocêjáseocupacomumaporçãodecoisas”,ponderouUna.Umdia,assimqueFionaeConorvoltaramparaaescola,Noracomeçouatrabalhar.Seficassedepé
nodegraumaisaltodaescadaepusessealatadetintanabasedotopodaescada,conseguiriaalcançaroteto.Atintaerafinaeescorreuemseucabelo,porissoelatevedeacharumatoucadebanhoparacobrira cabeça. Nora estava decidida a fazer aquilo em três ou quatro dias e também já ter alcançadoprogressos visíveis na hora em que Fiona e Conor chegassem. Cada pincelada demandava esforço econcentração,elaprecisavaseequilibrarcomcuidadoeespalharatintaporigual.Otetoiaserapartemaisdifícil,pensou;asparedesdariammenostrabalho.Aatividadelheproporcionouumaestranhaalegriae,nodiaseguinte,elanãoviaahoradevoltardo
escritórioparacontinuarapintura.Foisónofimdesemanaqueasdoresnobraçoenopeitocomeçaram.NoraprecisoupediraFionaquefossevisitarDonalnosábado,poisachouquenãoconseguiriadirigir;àtarde, sentia dores tão fortes que ficou claro que teria de procurar ummédico. Como a dor pareciaaumentarecausarpontadas,Noraachouquepodiaestartendoumataquecardíaco.Ela se encolheu toda quando o dr. Cudigan tocou seu braço e quase chorou quando ele afundou o
polegarnoespaçomoleabaixodaclavícula.“Vocêjáhaviapintadoumteto?”,perguntouele.“Não.”“Nãoéumacoisaquesepossafazersempreparo”,disseele.“Vocêforçoumúsculosquenormalmente
nãousa.Voureceitarumanalgésicoforte,issovaidiminuirador,edepoisosmúsculosvãovoltarparaolugar,sevocênãoforçá-losmais.”“Nãovoupodermaispintar?”“Vocêpodiatersofridoumalesãomuitograve”,disseele.“Portanto,omelhorédeixarapinturapara
ospintores.”
***Naquelanoite,Noraolhouasala.Trêsquartosdotetoestavampintados,enãomuitobem.Pediuque
FionatelefonasseaPhylliseperguntasseseelapodiavirvê-laquandotivessetempo.Nodiaseguinte,quandoPhyllischegou,inspecionouasala.“Bem, só há uma solução”, disse. “ChamarMossyDelaney.Hoje é domingo e talvez seja possível
pelomenosencontrá-lo.Seeufossevocê,fariaopapeldapobremulherqueachouquepodiapintaro
teto sozinha.Ele fazmais objeções quando eumemostro superior e importante, portanto a humildadetalvezdêresultadocomele.Maséclaroqueodinheirotambémfunciona.Elesemprelargaumtrabalhonomeioparacomeçaroutro,portantoelepodelargaroutrotrabalhoparapegaroseu,sevocêpagá-lojánoprimeirodia.Masvocêprecisafazeracaracerta.”Naquela noite, quando Nora bateu na porta da casa de Mossy Delaney, a mulher dele atendeu a
perguntouoqueelaqueria.“Euqueriafalarcomosr.Delaney”,disseNoraemvozbaixa.QuandoMossy apareceu, ficou claro que ele estava dormindo.Nora tentou falar baixo, para que a
esposanãoouvisse.Explicouoquehaviaacontecido.“Poisé,eudeviaterprocuradoosenhordesdeoinício.Agoraestounumasituaçãomuitoruim.Éum
problemasério.Possopagaraosenhorantesdecomeçar.”“Ésóumasalinha?”,perguntouele.“Nãoéacasatoda?”Elafezquesimcomarhumilde.“Façoissoparaasenhorademanhã.Tematinta?”“Tenho.”“Chegoláàsoitoemeia.”Norafezquesimoutravez.“Precisaqueminhamulheracompanheasenhoraatéemcasa?Asenhoraparecemuitofraca.”“Não,podedeixar,euconsigochegaremcasasozinha”,respondeu.“Masestoumuitoagradecidaao
senhor.”
*Partidoirlandêsdelinhaunionista,ouseja,contraaautonomiaemrelaçãoàInglaterra.(N.T.)
18.Oscomprimidosqueodr.Cudiganreceitouafastaramador,oumascararamoqueestavaacontecendo
emseupeitoebraços.Aindahaviaumpesoeumasensaçãodetensão.Naterceiramanhã,elavoltouaacharqueestavatendoumataquecardíaco.MasadoragudaesmoreceuassimqueNoralevantou.Moveu-se comcuidadoe lentamente, aindamais agora, quenãoconseguiadormir.Não sabia seos
analgésicoséqueamantinhamacordadaànoite,comospensamentosemdisparada,paradepoiscairnumestado de vaziomental, com amente apenas semialerta, ou se a causa eramesmo a dor contínua quesentianosbraçosepeito.MossyDelaneyeumajudanteterminaramapinturanumdiaemeiodetrabalho.Quandoacabou,Nora
dissequeestavamuitoagradecidaporeletersidotãoprestativo.“Oproblema”,disseele,“équeagentetrabalhaparaumpessoalcheiodedinheiroquetrataagente
commuitaignorância.Odinheirofazessepessoalficarignorante.Nãovoudaronomedeninguém,masnestacidadetemmuitagenteignorantee,seasenhoraquiserconhecer,ésótrabalharparaeles.Temumamulher, eu até podia dar o nome dela. Só sei que vou receberminha recompensa noCéu por não terderramadoumalatadetintanacabeçadela.Olhequechegueibempertodefazerisso,ésério.Bemqueeu teriaadoradoouviragritaria.Massempregostodeajudarosoutros,ea senhoraéumamulherdefibraporterachadoquepodiapintarotetosozinha.MeuDeus,comoagentedeurisadaquandoviuoqueasenhorafez!Pintarparedeécomoqualqueroutracoisa.Temquesaberfazer,dona,temquedominarosmacetes.AsenhoranãoiaprocuraroLarryKearneyseprecisassedeumgerentedebanco?OuoBabbyRourke,seprecisassedeumbispo?”Fionaficousupervisionandoosfuncionáriosquevierampôrotapete,eelaeConortambémreceberam
ohomemdalojadeDanBolgerqueveioinstalarascortinas.Aindafaltavamalgumascoisas,comoumanovalumináriaparaalâmpadapenduradanoteto,nomeiodasala.Alémdisso,asparedesbrancas,semnenhum quadro, pareciam estranhas, nuas. Durante o dia, as cortinas pesadas faziam a sala parecerescura; depois do trabalho, Nora ficava na sala reformada, com cheiro de tinta fresca, cochilando eacordando.Sabiaqueprecisavaficaracordadadedia,parapoderdormirdireitoànoite,maseradifícil.Agora,anoitetoda,Noradesejavaqueamanhãchegasselogo,porém,depoisdemeiahoradetrabalho,sentiaumcansaçodesesperador.NaempresadosGibney,adquiriuohábitodeiraobanheiro,sentarnumadascabinessanitárias,apoiar
a cabeça na parede e dormir algunsminutos.Depois lavava o rosto com água fria antes de voltar aotrabalho.ComoElizabethhaviadeixadoosdoisnamoradosemtrocadeumnovo,eessenovoparecia,paraNora,serumcasomaissérioeconstante,alémdemuitodedicadoaElizabeth,asduastinhammuito
queconversar,eissoaajudavaasemanterdesperta.
***Noradescobriuque,se tomasseumaxícaradecafé instantâneodemanhãcomtrêscolheresdecafé
solúvel e omáximo de açúcar que seu estômago aguentasse, ficaria bem durante a primeira hora, outalvezmais.QuandoElizabethsaíadasala,NoraferviaachaleiradeáguaqueElizabethmantinhajuntoàsua mesa e tomava mais uma xícara grande de café. Aquilo quase lhe dava enjoo, mas se Nora seconcentrassenão sentiriademanhãanecessidadeprementededeitar acabeçanosbraços,namesa, edormir.Quandovoltouaodr.Cudigansetediasdepois,eledissequeseriaumerrotomarcomprimidospara
dormir junto com os analgésicos. Ele tomou seu pulso, auscultou seu peito e suas costas com oestetoscópioedisseque,comoelahaviaforçadodemaisosmúsculos,talvezdevessecontinuarcomosanalgésicos por mais ou menos uma semana ainda, e depois, caso continuasse com dificuldade paradormir,elesuspenderiaosanalgésicoselhereceitariacomprimidosparadormir.Norasentia-se tãoexaustaànoiteque tinhaocuidadodeolharseFionaouConornãoestavampor
perto,paraquenãoavissemsubindoaescadaeparandonomeiodela,ofeganteesemfôlego,segurando-secomforçanocorrimão,paranãocairpara trás.Semnem tirar a roupa,deitavanacamacoma luzacesa,eentãoseusonoeraigualaodetotalalheamentodequandoelahaviadormidonoporãodohotelemSitges.Porém,àsvezes,duravamenosdedezminutos.Emseguida,via-secompletamentedesperta,com os pensamentos em disparada. Quando punha o pijama, apagava a luz e deitava na cama, seesforçavaparapegarnosono.Contavacarneirinhos;deitavadeumlado,depoisdooutro.Nãodeixavanenhumpensamentoentraremsuamente.Masnadaadiantava.Teriaquevoltaraodr.Cudiganeinsistirqueprecisavadecomprimidosparadormir,ouentãoquejápodiapararcomosanalgésicos.Deitadaedespertanoescurodaquelejeito,elapodiaserqualquerpessoadopassado,pensouNora.
Podiasersuasavós,queelanemhaviaconhecido.AsduastinhammorridoantesdeNoranascereagoraeramapenaspó,umcrânioeumpunhadodeossosembaixodaterra,emalgumlugar.Suamenteiaevinhaemtornodasavósedopoucoquesabiasobreelas,atéquesedesviouefocalizousuamãe,cujorostolhesurgiuecujapresençalhepareceupróxima.Norapodiaveramãedeitadaali.Eraumadiferençasódealgunsanos.Estavadeitadanoescuro,deolhosabertos,respirando,depoisnãoouviumaisarespiraçãodela.Semiadormecida,amãeseaproximou.Devagar,aimagemdamãedeitadadepoisdamortesurgiuparaNoracomoseamãeestivessedeitadanaquelacama,naqueleinstante,semvernemouvirnada.Nãoimportavaoquefizesseparaevitá-lo,aqueleúltimomomentocomocorpodamãevoltavaàtona,comdetalhesmuitovivos.Noranãotinhaamadoamãequandoelaeraviva.GostariadesaberseUnaeCatherinepensaramnisso
quandoamãedelasmorreu,quandoastrêsdeixaramocorpoaocuidadodasfreiras,queatinhamtrazidoparaumquartodaquelacasa.Noraficousentadanacozinha,semfalarcomelas,sabendoque,napróximavez que visse a mãe, ela estaria dura, na posição formal dosmortos. O quarto estaria na penumbra.Haveria a luz trêmuladeumavela; suamãe estaria em repouso, nãomais presente, teria ido embora.Ficariaalideitadaduranteanoiteeboapartedodiaseguinte.Comumchoque,pensounoqueelafaria.Játinhavistoaquilo,quandoopaimorreu.TiaJosieetia
Mary, a irmã mais velha de sua mãe, ficaram sentadas uma de cada lado do corpo estendido e nãofalaramnadaatéoshomensdafuneráriachegaremcomocaixão.Asduasbebiamcháalgumasvezes,masemgeralrecusavam.Tambémquasenãocomiamnada.Àsvezesrezavam,àsvezesselimitavamaolharcom atenção o cunhado morto, algumas vezes cumprimentavam com a cabeça algum conhecido que
chegavaousaía.Vigiavameesperavam,tendoencontradoumlugarondeninguémasperturbava.Fizeramavigília.Norasabiaquenoquartodesuamãehaviaumapoltronadooutroladodacama,emfrenteàporta,uma
poltronavelhaqueantesficavanoandardebaixo.Suamãeausavaparadeixarasroupasemcimadela.Nosvelhostempos,amãeteriacuidadoparaquetodasassuasroupasficassemdentrodoarmáriooudacômoda. Mas, no final, estava fraca demais. Mover-se era difícil. A mãe fazia apenas o mínimonecessário.Nora lembravaque,naquelemomento,derepentesentiuumatristeza,algoquenuncahaviasentido.Numsegundo,entenderaoqueamortesignificava:suamãenuncamaisiafalar,nuncamaisiaentrarnumasala.AmulherquetinhadadoàluzNoranãorespiravamaisnemiriarespirardenovo.Decertomodo,Noranãohaviacontadocomaquilo,sempretiveraaimpressãodequehaveriatempoparaelaeamãeseencontraremeconversaremcomnaturalidadeeafeição,oualgopróximodaafeição.Masnuncaaconteceu,eagoranuncamaisiaacontecer.Sem levantar a cabeça, Nora esperou até alguém avisar que o quarto estava pronto. Passou pelas
outrassemfalarnada.QuandoCatherinefezumapergunta,elanãoescutounemrespondeu.OquequerqueCatherine precisasse saber, poderia descobrir de outromodo.Nora era a filhamais velha; agoraseriaaprimeiraaentrarnoquarto.Subiuaescadaeassentiucomacabeçaparaajovemfreirajuntoàporta.Ascortinastinhamsidofechadasehaviaumcheirodelinhorecém-engomado.Esperouuminstanteeentrounoquarto.FoinoqueixodesuamãequeNorareparouprimeiro;dealgummodo,aoacomodaremacabeçanotravesseiro,asfreirasfizeramoqueixoparecermaiscompridodoqueera.Elepareciaforadolugar.Norapensousenãodeviadizeralgumacoisaàfreira,sealgumacoisaaindapodiaserfeitaarespeitodaquilo.Depoisachouquenão.Tardedemais,pensou.Talveznãofizessediferença.Nora viu a poltrona do outro lado do quarto. As roupas que ficavam em cima dela tinham sido
colocadas em algum outro canto. Nora esperava que sua permanência ali não desse às irmãs ou aosvizinhosasensaçãodequefaziaaquiloporremorsooupornecessidadederepararseuerrocomamãe,mostrararrependimentopeloquetinhafeitoounãotinhafeitonopassado.Noranãosentiaremorso.Emvezdisso,quandoolhavaparaorostomortodamãe,sentia-sepróximaaela,umaligaçãoque,decertomodo,semprehaviasentido,masnuncaexpressadocomgestosoupalavras.Despido de sofrimento e de qualquer expressão familiar, o rosto se assemelhava ao da mãe em
fotografiasantigas,quandoela tinhaumabelezamagra,morena, tímida,vigilante.Aquilo,ouvestígiosdaquilo,haviaregressado.Amãeteriaapreciadoaideiadequesuajuventude,oupartedela,voltara.Suasduasirmãsentrarameolharamamãemorta.Catherineseajoelhou,curvouacabeçanumaprecee
sebenzeuaosepôrdepé.Noraobservou-aparadajuntoàcamaeumpoucoalheia,nopapeldefilhadevotaeenlutada.ElagostariaqueCatherinefosseláparabaixo.Quandoseusolhoscruzaramcomosdairmã por um instante, captou uma expressão em que não confiava e decidiu que, o que quer queacontecessenosanosfuturos,jamaisficariaasóscomCatherine;elairiapermaneceranoiteinteiraalinoquarto,senecessário.Nãoselevantariadapoltrona.QuandoMauricechegouparaficarcomela,Noradissequeiapassaranoitenoquarto.Mauricesegurousuamãoporummomentoedepoisdissequeiatrazerosfilhosdemanhã,equeagorairiaparacasaficarcomeles.NorasorriuparaMaurice,quandoelesaiu.AmãedeNoraadoravaMaurice.Issonãoeraalgoincomum,pensouNora,poistodosadoravamMaurice.Nas horas que se seguiram, vieram os vizinhos. Todos se ajoelhavam e rezavam. Uns poucos se
inclinavam para tocar as mãos da morta, enroladas nas contas do rosário, ou tocar sua testa.CumprimentavamNoracomacabeçaealgunssussurravamparaela,diziamquesuamãepareciaempaz,quetinhaidoparaumlugarmelhor,queiadeixarmuitasaudade.Quando Nora ficou sozinha no quarto, ouviu vozes no andar de baixo e imaginou que as pessoas
estavamtomandocháecomendosanduíches.Asvelashaviamqueimadoatéametade.Suamãe,agora,nadamaiseradoqueumavelhaque tinhamorrido.NãohaviaemseurostofeiçõesqueNorapudesseinterpretar,sóapeleembranquecidaeenrugadaeumqueixoqueaindachamavaaatençãodeumjeitoestranho.Semosolhosabertos,semavoz,suamãenãoeraninguém,nãohavianenhumavidanela.Porfimacasaficouemsilêncio.Unaseofereceuparaficaremseulugar,masNorarecusouesugeriu
queasirmãstentassemdormirumpouco.Elacuidariaparaqueasvelascontinuassemacesaseamãenãoficassesozinhaemsuaúltimanoitenomundo.Houvesilêncionacasa,àsvezesrompidopelapassagemdecarrosoupelotrepidardasjanelasdoquarto,sacudidaspeloventodanoite.Norapensouseeraocansaçooualuzdasvelasquelançavasombrasnaparede,masagoraelanão
ficariasurpresaseamãesemexesseoufalasse.Aconversaentreasduasteriasidofácil.Oestranho,quandocomeçouaolhardenovoamãe,eracomoelaestavaseguradetãopoucascoisas.
Osdetalhesdorostodesuamãetinhamseapagado,masaindahaviaaliumaexpressão,asensaçãodealguém.Depoisessaimpressãofoisetornandomaisprecisa,maisclara,quantomaiselaolhava.Noraviuoutraspessoasnorostodamãe—orostodeprimas,osHolden,osMurphy,osBailey,osKavanagh;orostodeCatherineeUna;orostodaprópriaNora;orostodosfilhosdeNora,sobretudodeFiona.Eracomoseamãe,naquelanoitelongaesolitária,setornassetodoseles.Todaavidanatural tinha idoemboraeoutracoisahavia tomadoseu lugar,algo formadopormuito
tempo.Permaneceualiporalgunsmomentos,depoisseapagouefoisubstituídoporoutracoisa.Orostoexalavaumaexpressãomaisvigorosadoquequalqueroutravistanosdiasenasnoitesemquehaviaalirespiraçãoevoz.Noranãotinhacerteza.Tentouretrataramãetalcomomaisselembravadela—umavelhadecasaco
cinzento de lã macia, um broche na lapela do casaco, um cachecol. Uma velha caminhando em suadireção;ouumajovemnumafotografia.Masnenhumadessasimagenseratãorealquantoorostodacamanaquelanoite.Norapensoucomo iria se lembrardissodepois,mesmosabendoquea lembrançanadaseriacomparadacomelaestarali,olhandodefato,naintensidadedoaquieagora.O queixo já não tinha importância, eramero detalhe, e agora os detalhes eram irrelevantes.O que
importavanãopodiaserdenominadoouvistocomfacilidade;seosoutrosentrassemnoquarto, talveznemvissemaquilo.Talvezfosseoqueelaeamãetinhamesperado.Noraseperguntousehaviamantidoaquiloàdistânciaafimdepermitirqueoencontrocomocorpodamãe,comaimagemdamãemorta,ganhassemais importância ou simplesmente fosse possível.O rosto damãe parecia aomesmo tempomais umamáscara e tambémmais individual do que jamais tinha sido.Nora era a única que poderiaperceber isso. Ninguém mais seria capaz de ver isso, estavam atarefados demais, próximos demais,envolvidos demais.A distância é que tornava possível. E foi a distância, agora, que permitiu aNoradormirumpoucoedepoisacordarassustadaemseuquarto,entendendoquehaviasonhado,queavigílianoturnajuntoaoleitodamãeerapartedeumsonho.Noraseencontravaemsuaprópriacasa,eestavanahoradelevantar,acordarosoutros,fazerocafédamanhãeirtrabalhar.Naqueledia,noescritório,quandofoipegarumapastanoarquivo,Noradesabou.Quandoacordou,
Elizabethestavaao telefone falandocomPeggyGibney,quedeuordensparaquea sra.Webster fosselevadaàcasadosGibney,seestivesseemcondiçõesdeandar.AssimqueNoraconseguiusemanterdepé, Elizabeth fez questão de acompanhá-la até a saída do escritório, atravessar o depósito ao lado ecruzararua,atéacasadafamíliaGibney.“Falandosério,estoubem”,disseNora.“Minhamãe é amaior especialista domundo em determinar se as pessoas estão bem”, respondeu
Elizabeth.PeggyGibneyestavasentadaemsuapoltronadesempre.QuandoElizabetheNoraentraram,elapediu
chá.“Nossa,achoquevocêestámuitopálida”,comentou.“Queméoseumédico?”“Odr.Cudigan.”“Ah,nósoconhecemosbem.Voutelefonarparaeleeperguntarseémelhoreleviraquiouvocêiraté
ele,ousevocêdeveirparaasuacasaeesperá-lolá.”Foiparaocorredor, seguidaporElizabeth.Nora tinhamedode fecharosolhos,medodepegarno
sonoali,nasaladosGibney.Achouque, sepudesse irparacasaagora,dormiriao restododia.Massabia que, se fizesse isso, não ia dormir novamente à noite, ou então teriamais sonhos. Seriamelhortomaroscomprimidosparadormirdodr.Cudigan,aindaqueeleachassequenãoiamfazerbemjuntocom os analgésicos. Nora tocou seu peito, braços e sentiu uma dor residual nos músculos. Estavademorandoparadesaparecer.“Odr.Cudigansaiu,foiatenderalguém”,informouPeggyGibneyquandovoltou.“Eleatendenoasilo
depobres,portantodeveestarlá.Nãoseiquematendeuotelefone.Penseiemligarparaodr.Radford.Eleéonossomédico.”Ainsinuaçãodequehaviaalgodeerradoemrelaçãoaodr.Cudiganedequeodr.Radforddealguma
formaerasuperioraeledespertouNora.“Ah,não”,eladisse.“Veja,euconheçoosRadfordsocialmente,porissoachomelhornão.”PeggyGibneyrecostou-senapoltrona.Aideiadequeumafuncionáriadoescritórioencontrasseseu
médicosocialmentepareceuofendê-la.“AchomelhorElizabethlevarvocêparacasa,decarro,edepoiseucombinocomodr.Cudigandeleir
vê-la assim que possível.Mas primeiro vamos tomar um chá. Você estava pálida como um fantasmaquando chegou. E Elizabeth vai avisar o Thomas que você passou mal. Talvez amanhã você estejamelhor.Thomassempregostadesaberoqueestáacontecendo.EeugostariadesaberoqueestáfazendoessacriaturadeDeus,aMaggieWhelan,demorartantocomochá.”Quandoveioochá,elasficaramemsilêncio.Dealgummodo,Norateveaimpressãodenãohaverse
mostradogrataobastanteportersidotrazidaàquelacasa,emvezdeserlevadadiretamenteparaasuaouaomédico.“Elizabeth,vocêpodecederumpoucodeseutempoetransportarasra.Websteratéooutroladoda
cidade?”,perguntouasra.Gibney.Amaneira comodisse “ooutro ladoda cidade” sugeriaum lugarmuitodistantede sua confortável
residência.“Minhamãenãoémaravilhosa?”,disseElizabethassimqueasduasentraramnocarro.“Podiamuito
bemseraprefeitadacidade.Elaéoverdadeiropoderportrásdotrono.”Nora assentiu com a cabeça. Estava cansada demais para imaginar algo para dizer. Pensava nos
comprimidosparadormir.Eraumacoisaperigosaparaseteremcasa.Decidiuque,setivessedetomá-los,guardariaofrascodentrodoguarda-roupae,assimquevoltasseadormirnormalmente,jogariatudofora.Quandochegouemcasa,viuquenãoselembravasehaviaconversadosobremaisalgumassuntocom
ElizabethGibneynocarro.Deviamterfaladosobrealgumacoisa,refletiu,eeladecertoteriaagradecidopelacarona.Outalveztivessedormidonocarro;aviagemhaviaseapagadodesualembrança;Noranemtinhaideiadequecaminhofizeramparachegaràsuacasa.Foiparaasala,sentounapoltronaedormiu,sóacordandocombatidasinsistentesnaporta.Quando
consultouo relógio, viuque eramsóonzedamanhã,portanto, nãopodia serConornemFiona.Então
lembrouqueosdois,naverdade,tinhamachavedacasa.Quandofoiatéaporta,ouviualguémchamandoporelaereconheceuavozdodr.Cudigan.“Ah,graçasaDeus”,disseele.“Eujáiachamarocorpodebombeiros.Recebiumrecadourgentede
PeggyGibney.Elatelefonouparaacidadeinteiraatrásdemim.LigouparaairmãThomasnoconventoSãoJoãodeDeuseentãomelocalizou.Háumvelhomuitodoentenoconvento.”Noralevou-oparaasaletaecontouquenãoconseguiadormir.“Acontece com todo mundo”, disse ele. “Todos nós precisamos dormir menos à medida que
envelhecemos.”“Maseunãoestoudormindonada.”“Háquantotempo?”“Jáconteiaosenhor.Fazoitodias,desdequecomeceicomaquelescomprimidos.”“Eupoderiareceitarcomprimidosparadormir,masnãogostodefazerisso.Játentouparardetomar
cháecafé?”UmaondaderaivatomoucontadeNora.“Euvouacabarenlouquecendo”,disseela.Ficouimaginandoseodr.Cudigantratavasuaspacientes
mulheresdeummododiferentedospacienteshomens.“PeggyGibneylevouapobreirmãThomasaacreditarquevocêestavaàsportasdamorte.Agoravou
terqueencontrá-laparadizerqueestásãesalva.”“Nãoconsigodormir”,disseela.“Voulhereceitarcomprimidosparadormir.Umcomprimidovainocautearvocêporseishoras.Não
tome por muito tempo, senão vai se acostumar, e também não dirija enquanto estiver tomando oscomprimidos,ouentãodirijabemdevagar,esópelacidade,masnãoconteaninguémqueeudisseisso.E vá me ver daqui a mais ou menos uma semana, e vamos ver como você está. Não tome nenhumcomprimidoantesdestanoite,etenteficaracordadaatélá,sepuder.”“Edevocontinuarcomosanalgésicos?”“Atéapróximaconsulta,nasemanaquevem.”Noraesteveapontodelembraraomédicoqueeletinhaditoqueelanãodeviatomarosdoisremédios
juntos.“Obrigadaportervindo”,agradeceuNora.“AirmãThomasmecontouqueelasfazemumaexposiçãodoSagradoSacramentotodososdiasàstrês
datarde,eelavaiàcapeladasfreiraserezaporvocêtodososdias.Elaéamaissantadasfreiras,euacho.Foielaquemmeencontrou,quandoPeggyGibneytelefonouparaela.”“PeggyGibney”,disseNora,suspirando.“Ouvidizerqueela ficao tempo todonaquelacasa,cercadadeatenções”,comentouodr.Cudigan.
“Mulherestêmumavidafácil.”“Foimuitabondadedelatelefonarparavocê”,disseNora.Odr.Cudiganlheentregouareceitaesaiu.QuandoFionaeConorchegaram,Noranãocontouquetinhavoltadomaiscedoparacasa.Tomouuma
xícaradecafénacozinha,oque lhedeuenergiabastanteparapoderconversarcomosenãohouvessenenhum problema.Quando Fiona se preparava para regressar à escola,Nora lhe entregou a receita eperguntouseelapodiacompraroscomprimidosnafarmáciaKelly’s,quandovoltasse.“Quandovocêpegouessareceita?”,perguntouFiona.“Odr.CudiganmandouareceitaparaaempresadosGibney”,elarespondeu.
“Vocêestábem?Vocêcomeçouafalaralgumacoisaederepenteparou.”“Estoubem.Sãosóoscomprimidos,queestãomedeixandoumpoucoamolecida.”“Eparaqueéestareceita?”“Sãocomprimidosparadormir.Andocomdificuldadeparadormir.”Quando os dois foram embora, ela voltou para sua poltrona. Sentiu o coração acelerado e alguma
dificuldade para respirar. Pensou que ouvir um pouco demúsica poderia tranquilizá-la. Levantou-se,atravessouasalaeprocurouentreosdiscos,masnenhumdeleseraaquiloqueeladesejava;erammuitodistantesebarulhentos,cheiosdesuasprópriaspaixões,masquandoviuoTriodoArquiduque,olhouparaacapamaisumavezeachouque,mesmoqueamúsicanãoproduzissenenhumefeito,elapoderiasonhar que era jovem como os músicos, e também livre. Se escutasse com atenção, pensou, eacompanhassecadanotadovioloncelocomoseelamesmaestivessetocando,amúsicapoderiadistraí-laemantê-ladesperta.As notas do violoncelo levaram Nora a ficar ereta na poltrona de forma quase involuntária. Os
músicossemoviamemdireçãoaumamelodiaapenasfazendoalusõesaelaedepoissedetinham.Noraadoravaosomgemidodovioloncelo.Àsvezes,quandosuamentedivagava,Noraaobrigavaavoltar,aescutar todas as notas, todas as sugestões da melodia. Sorria quando os músicos tocavam comdesenvolturaedestemor,antesdecederemàtristeza,àhesitação.Quandoomovimentolentocomeçou,elapercebeuqueestavafazendoforçapararespirardesegundo
emsegundo.Fechouosolhosecomeçoua tremer.Asalapareceumuitomais friaeelapensousenãoseriamelhoracenderalareira.Resolveunãosemexer,apenasficarparadaescutandoeacompanhandoasnotasgravesdovioloncelo.Quandoomovimentolentodeuumaguinadaefezatransiçãoparaummovimentomaisrápido,comose
estivesseindonaqueladireçãodesdeoinício,eamúsicasetornouquasealegre,Noraouviuumbarulhonoandardecima.Atravessouasaladevagareabriuaportasemfazeromenorruído.Escutou.Algosemovimentavaláemcima;alguémestavaempurrandoummóvel.Nãopodiahaverninguémlá,Noratinhacerteza.TinhavistoFionaeConorsaíremdecasaeelesnãopoderiamtervoltadosemelaperceber.Denovoumbarulho,emaisalto.PensousenãoseriamelhoriraovizinhoverseosO’Connorestavam
láeseTomsedispunhaavircomelaverquebarulhoeraaquelenoprimeiroandar.Norafoiverificarseaportada frenteestava trancada.Tambémdeuumaolhadanaportados fundos.Poralgumtempo,nãohouve mais barulho, mas depois o silêncio foi rompido, e o som de um móvel sendo empurradorecomeçou,maisalto.Norasubiuaescadadepressa,gritando:“Quemestáaí?Quemé?”Aporta de seu quarto estava fechada.Nora costumava deixar a porta aberta, quando não estava lá
dentro.Ouviucomatençãodenovo.Umbarulho.Derepente,elaseencolheudedoreergueuamãoparaolhar.Havia fincado as unhas com tanta força na palma damão que havia sangue ali.Agora, quandoouviuobarulho,elelhepareceuserumavoz.Abriuaportadoquarto.“Maurice!”,gritou.Eleestavasentadonacadeiradebalanço,juntoàjanela,defrenteparaNora.“Maurice”,elasussurrou.EleestavacomopaletóesportedeflocosazuiseverdesqueeleshaviamcompradonaFunge’s,em
Gorey,calçacinzenta,camisacinzentaegravatacinzenta.Sorriuporuminstante,quandoNorafechouaporta,empurrando-acomascostas.Eleestavacomoeraantesdeficardoente.“Maurice,vocêpodefalar?Conseguedizeralgumacoisa?”Eledeuseusorrisotímido,delábioscontraídos.
“Amúsicaétriste”,elemurmurou.“Sim,amúsicaétriste”,disseela.“Masnemsempre.”“IrmãThomas”,disseele.Suavozestavamaisfraca.“Sim,elarezapornóstodososdias.ElameencontrounapraiadeBallyvaloo.”Mauricefezquesimcomacabeça.“Eusentiquevocêestavalá,masnãopormuitotempo.Foiaúnicavez.”“Eusei.”AvozdeMauriceestavasuavecomoNoranuncatinhaouvido.“Suavoz”,disseela,edepoissorriu,“mudou.”EleolhouparaNoracomartriste,comosequisessedizerquenãohavianenhumarespostaapropriada
paralhedar.“Maurice,vocêpodeficaraquiporalgumtempo?”Entãoelesemexeuesuapresençasetornoumenoscompleta,seurostovoltadoparabaixoficoumais
veladoeatéascoresdopaletóparecerammenosvivasparaela.“Vocêestá…?”,começouNora.“Querodizer,háalgumacoisa…?”Eledeudeombroseesboçouumsorriso.“Não”,murmurou.“Não.”“Nósvamosficarbem?Nãoseisevamosficarbem.”Elenãorespondeu.“Fionavaificarbem?”“Sim,vai.”“EAine,elavaificarbem?”Mauriceassentiucomacabeça.“EDonal?”“Sim,Donal.”“EConor?”Elebaixouacabeçaepareceunãoouvir.“Maurice,Conorvaificarbem?”Seusolhospareceramseencherdelágrimas.“Maurice,precisoquevocêresponda.Conorvaificarbem?”“Nãopergunte”,elemurmuroucomumavozroucaevacilante.“Nãopergunte.”QuandoNora semoveu em sua direção, ele estendeu asmãos para a frente, indicandoque ela não
deviachegarmaisperto.“Vocêsoube…?”,começouela.“Sim,sim”,disseele.“Sóquandovocêficoudoenteéqueeusoube…”“Sim,sim.”“Ealgumavezvocêsearrependeu..?”“Semearrependi?”,perguntouele,avozmaisalta.“Denós?”“Não,não.”Elesorriudenovoedepoisaexpressãoemseurostofoideperplexidade.“Maurice,hámaisalgumacoisa?”“Hámaisalguém.Hámaisalguém”,disseele.“VocêestáfalandodoJim?”
“Não.”“Margaret?”“Não.”“Quem?”“Ooutro.”“Nãohánenhumoutro.”“Há,sim.”“Maurice,digaonome.Nãohámaisninguém.”Elecobriuorostocomasmãos.Elaoobservou;eleestavasofrendo.Depoisolhouparaela.Pareceu
prestesasorriroutravez,masnãosorriu.“Maurice,fiquemaisumpouco.”Elefezquenãocomacabeça.“Maurice,éamúsica?Seeutocarmúsica,vocêvirádenovo?”“Não,nãoéamúsica.”“Maurice,falesobreoConor.Háalgumacoisa…?”“Háoutrapessoa.”“Maurice,nãohámaisninguém.Digaumnome.”Eleseapagouumpoucomaiseelaouviuumsoluçograve.“Maurice,vocêvaiestarláquandoeuchegar?”“Ninguémsabe”,elerespondeu.“Ninguém.”EntãoNoraouviuosomdeumabuzinanarua.Estavadeitadanacama,comamesmaroupadeantes.
Quandosentou,oquartoestavavazio.Quandoatravessouocômodoetocounacadeiradebalanço,elabalançoudeleve,paraafrenteeparatrás,sobresuasmolasvelhas.Norapôsasmãosondeeleestiverasentado,masnãohavianenhumcalor,nenhumsinaldequealguémestiveralá.Noandardebaixo,pegouachavedecasaeachavedocarro.Pôsumcasacosobreobraçoesaiu,
fechandoaporta.Aoligarocarro,ficoupensandoaondeiria,masissonãotinhaamenorimportância.FoisóquandoseviusaindodaestradaqueiaparaDublinepegandoadireçãodeBunclody,équeNorasedeucontadequeestava indoparaacasade tiaJosie.Concentrou-secomforçanaestradaàfrente,obrigou-seaficardesperta.QuandoseafastoudorioesubiualadeiraparaacasadetiaJosie,pensounoqueiriadizer,comoiriaexplicarporqueestavaali.Haviaumportãoàesquerdacomespaçoparaumcarroouumtrator.Estacionounessavagaedesligouomotor.Descansouacabeçanoencostodobancoefechouosolhos.Pensousenãoseriamelhordarmeia-voltae regressaràcidade,porémnãose sentiucapazdeseconcentrarobastantenadireção.Descansarianocarroporalgumtempo,pensou,torcendoparaqueJosie,JohnouamulherdeJohnnãopassassemeavissemali.Dormiriaumpoucoedepoisiriaparaqualqueroutrolugar.Paraonde,nãosabia.Quandoacordou, Johnestavabatendona janeladocarro.Nora levouumsustoaovê-loebaixouo
vidro.“Porummomento,nãoentendiquemera”,eledisseedepoissorriu.Johntinhadeixadootratorligado.“Eu estava descansando um pouquinho”, disse ela, mesmo sabendo que aquilo não fazia nenhum
sentido.“Mamãeestánojardim”,disseJohn.“Vocêvaisubiratéacasa?”,perguntouNora.“Vou,sim”,elerespondeu.
“Entãoeuvoujunto.”QuandoNorasesentounacozinhadeJosie,Johnacendeuachaleiraefoiprocuraramãe.Nora,até
então inteiramente desperta, observando as cores da cozinha e ouvindo os barulhos do lado de fora,passoua terumasensaçãodesonolênciaedepoisumavontadefortededormir,dedeitaremqualquerlugarefecharosolhos.QuandoJohneJosieentraramnacozinha,Norapercebeuapreocupaçãonorostodeles.Johnficoude
péjuntoàportaporuminstanteedepoisseafastou.Josieestavacomasroupasdetrabalhoecomeçouatirarasluvasdejardinagem.“Aconteceualgumacoisa?”“Mauricevoltou.Eleestavanoquarto,nonossoquarto.”“Oquê?”“Elefaloucomigo,Josie.Dissecoisas.”Comoachaleiraferveu,Josiefoiatéofogãoeapagouofogo.“Nora,oquevocêtem?”“Nãoconsigodormir,equandoeudurmo…”“Estátomandoalgumremédio?”“Sim,forceimuitoobraçoeosmúsculosdopeito.Estoutomandoanalgésicos.”“Háquantotempovocênãodorme?”“Hámaisdeumasemana.Àsvezescaionumsonoprofundo,sóquenuncadura.”“Jáfaloucomosmédicos?”“Sim,eFionavaimetrazercomprimidosparadormirquandovoltardaescola.”Josieencheuobulecomáguaquente.“Mauriceestavanoquartoefalou”,disseNora.“Vocêcontouissoaalguém?”“Não,vimdiretoparacá.Nãotinhaoutrolugarparair.”“Johnmecontouquevocêestavadormindoasonosoltonocarro.”“Nãoseioquefazer”,prosseguiuNora.“Eledisse,Mauricedisse,quandoeupergunteiseConoria
ficarbem…eledisseparaeunãoperguntar.Oqueelequisdizercomisso?”“Vocêestavasonhando,Nora.Nãoapareceuninguém.”“Eleestavanoquarto”,insistiuNora.“Seioqueéumsonho,maseleestavanoquarto.Eeledisse…”“Elenãoestavanoquarto.”“Estava sim, estava, estava.”Nora começou a balançar para a frente e para trás, chorando. “Quem
deraeuestivessecomele…”“Oquevocêdisse?”“Quemderaeuestivessecomele,foiissoqueeudisse.”JosieeJohnalevaramparaoquarto,noandardecima,elhederamumacamisola.Josievoltouum
minutodepois,trazendoumcopod’água.“Pronto,estecomprimidovaifazervocêdormirprofundamentee,quandoacordar,vaisesentirgrogue
poralgumtempo,masvouestaraqui,ésómechamar.Nãotenteandarsozinha.Sãooscomprimidosdedormirmaisfortesqueexistem,portanto,vamosusarcomcuidado.Eeuprecisodachavedasuacasa.”Noraentregouachave.
“AgoravouàcidaderesolveralgumascoisaseoJohnvaicuidardevocê.”“EoConor…?”“NãosepreocupecomoConornemcomninguém.Suatarefaédormir.”Quandoacordou,sentiuumpesonosbraçosenaspernas.Tentoumexerosbraços,porémelesestavam
doloridoseopeitotambém.Noratentoulembrarondetinhapostoosanalgésicos.Achouqueestavamnagaveta damesinha de cabeceira,mas não tinha certeza. Quando estendeu amão para amesinha, nãoencontrou nada. Não era seu quarto. Estava escuro e um som fraco vinha de algum lugar, mas nãoconseguiaimaginaroqueera.EntãoselembroudeJosieedocomprimido,dasensaçãodoslençóis,dotravesseirograndeedocolchãomole.Imaginouquehaveriaumabajureestendeuamão,casohouvesseumamesinhadecabeceiraumpoucomaisafastadadacama,masparecianãohaver.Chamouemvozalta,Josieveioeacendeuumaluzpertodajanela.“Vimvercomovocêestavaumpoucoantes”,disseJosie,“evocêestavadormindobemfundo.”“Quediaéhoje?”“Sexta-feira.”“Quehoras?”“Novehoras.”“Precisoirembora.OConor…eoDonalamanhã.”“Vocênãovaialugarnenhum.Conorestábem.Expliqueiaelequevocêvaificarconosconofimde
semana,ligueiparaMargaret,eelevaipassarodianacasadela,mexendocomsuasfotografias.UnavaivisitarDonalamanhã,etalvezFionavácomela.UnaeSeamustambémvãocuidarparaqueConorfiquebem,etalvezConorvenhaaquinodomingo,sevocêjáestivermelhor.LigueiparaairmãThomas,vocêsabequemuitasvezeseufalocomelaquandoestoupreocupadacomvocê,eelavaifalarcomosGibneyedizerquevocêvoltaráaotrabalhoassimquemelhorar.Eestoucomoscomprimidosparadormirqueodr.CudiganreceitoueosoutrosqueFionaencontrou.Sãoanalgésicosmuitofortes.Nãosedevedarissonemaumcavalo.Mastalvezvocêprecisassedeles.Portanto,estátudoarranjado.Sóoquevocêprecisafazerédormir,sóisso,maisnada.Emtroca,quandoeuficardoente,vocêpodevirtomarcontademim,quandoosoutrosnãomeaguentaremmais.Éparaissoquecadaumdenósserve.”Josiepegouoroupãopenduradoatrásdaporta.“Agoravocêprecisalevantar.Vouprepararumbanhoparavocêepôrumamúsicaparatocar,paraque
vocênãopeguenosononobanheiro;émelhordeixaraportaaberta.Depoisvamosarranjaralgumacoisagostosaparavocêcomer,evocêpodevoltarparaacamaetentardormirnaturalmente.Senãoconseguir,deixoumcomprimidoparavocê.”“Porfavor,nãoponhamúsicanenhuma”,disseNora.“Tudobem,masnãovádormirnobanho.”“Nãovou.”Norasentou-senasala,enquantoJosiefaziaespaguetecommolhodetomate.Josieabriuumagarrafa
devinho.“CompreiestagarrafaemDublin”,disse.“Vamostomarumaouduastaçasestanoite.Dizemquenão
se deve tomar álcool junto com comprimido para dormir, mas muitas vezes vi que é justamente ocontrário.”“VocênãoacreditouemmimquandoeudissequeviMaurice.”“Não,nãoacreditei.”“Eraelemesmo,igualzinho.”
“Nós,todosnós,malconseguimosenxergaroqueexiste”,disseJosie.“Éacoisamaisdifícil,emboraninguémdiga.Quemderaagentepudesseenxergaroqueexiste!”“Vocênãoacreditaemnada…?”“Euvivoodiaadia,Nora.Sóisso.Edeixoorestoparalá.”“Conor,eledisse…”“Elenãodissenada,Nora.Conorestáótimoagora,maselepercebedelongequandoháumproblema
noar,portanto,nãoodeixepreocupado.”Derepente,Norasentiu-sepresanumaarmadilha.Pensouondeestariaachavedocarroeachavede
casaeque,sepudesseencontraraschaves,assimqueJosiesaísseiriaemboradalievoltariaparacasa.“Ah,enãoseesqueçadetomarosanalgésicosantesdeirparaacama”,disseJosie.“ApobreFiona
ficoumuitopreocupadacomvocêeestácontenteporvocêestaraqui.Essasduasmeninassãoumahonraparavocê.EaAine,agora,ficoutodapolitizada.Nisso,puxouoladopaterno,oladoWebster.Onossoladodafamílianãotemnadadisso.Fionamemostrouasalaeacheiqueficoulinda.Vaiserumlugarmaravilhosoparavocê.”“Mauriceperguntousenãohaviaoutrapessoa,masnãoconseguipensaremmaisninguém.Nãoseio
queelequisdizer.Vocêachamesmoquesonheitudoisso?”“Acho.”“Masfoireal.Querdizer,eleerareal.”“Claroqueera.Maselesefoi.Vocêtemqueaceitarqueelefoiemboraenãovaivoltar.”Ovinhoamoleceu-aoutraveze,quandoseacomodoudenovonacama,nãoconseguiaimaginarque
algumdia fosse voltar ao normal e não querermais dormir o tempo todo.Tomouo comprimido paradormiretambémoanalgésicoantesdeapagaraluzdoabajur.Quandoacordou,oquartoestavailuminadoeerapossívelouvirosomdeumrádio,barulhodepratos
e corvos esvoaçando em torno de uma das árvores velhas que havia ali. Olhou para a mesinha decabeceira,masnãohaviaumrelógio.Esticou-sedenovonacamaesuspirou.Norapassouodiaentreasaladeestareoquarto.Josieiaevinha;comofaziaumdiabonito,elaquis
cuidardasplantasnojardim.Àtarde,Johnesuamulhervieram,porémnãoficarammuitotempo.JosietinhatrazidoalgumasroupaslimpasdeNora,quepegaranacasadela,casoelaquisessevestir,masNoracontinuouderoupão,camisolaedescalça.Quandoaluzcomeçouaminguar,Josiefoisentarpertodela.“Sei que não é daminha conta”, disse, “mas ontem, quando fui procurar roupas para você, fiquei
chocadaaoveroarmáriocheioderoupasdeMaurice.Paletós,calças, ternos,gravatas,camisaseatésapatos.”“Nãotivecoragemdejogarfora.Nãoconsegui.”“Nora,fazmaisdetrêsanosqueelemorreu.Vocêprecisafazerissologo.”“Vaiserofim,então,nãovai?”“Seusfilhossabemqueasroupasdeleaindaestãolá?”“Meusfilhosnãoficambisbilhotandoomeuarmário,Josie.”“Suamãeiriarirseouvissevocêfalarisso.”“Minhamãe?”“Umfilhoingratoécomoumdentedeserpente,éoqueeladizia.”“Issoquandoelaestavadebomhumor.”Norariu.Noradeitounosofáedormiu.Quandoacordou,estavaescuro.DesceuaescadaeviuJosiepondoa
mesaparaquatro.“Quemvaivir?”,perguntou.“PediqueCatherineviesse.Elavaichegardaquiapouco.”“NãoqueroverCatherine.”“Bem,oquevocêquerounãoquernão interessa.Dêum jeitono cabelo evistauma roupa limpa,
porquetambémconvideisuaamigaPhyllis.Vocênãopodeficardormindootempotodo.”
***Quandoasquatroterminaramopratoprincipal,outrocarroparounaporta.Norafoiatéajanelaeviu
Una.“ÉUna.EladeviaestarcomoConor”,disse.“EladissequeiadeixaroConorcomFiona,paraqueelenãoficassepreocupado”,explicouJosie.Elaserviumaisvinho,quandoUnasejuntouaelesnamesa.Norapassouparaumadaspoltronasecomeçouacochilar,embaladapelosomdasvozesemvolta.
Quandoacordou,percebeuquefalavamsobreela.“Elaeraumdemônio”,disseCatherine.“Ésóoquetenhoadizersobreela.”“Eramesmo?”,perguntouPhyllis.“MasaíelaconheceuoMaurice.Desdeaprimeiravezquesaiucomele,elavirououtrapessoa.Quer
dizer,nãosetornoupropriamentemansaedócil.Masmudou.”“Eladeviaestarsesentindofeliz”,disseUna.“Mauricefoioamordavidadela”,declarouCatherine.“Ah,éapuraverdade”,interveioJosie.“Mesmoassimelaaindasabiaserumdemônio”,disseUna.“Lembraquandoelaficousemfalarcoma
mamãe?TodosnósmorávamosnamesmacasaeNoranãofalavacomelanemolhavaparaela.”“Ah, eu lembromuito bem”, disse Josie. “Eu e sua tiaMary, queDeus a tenha em Sua santa paz,
ficávamosdoidascomaquilo.”“Masporqueelanãofalavacomamãe?”,perguntouPhyllis.“Mauriceteveumirmãoquemorreudetuberculose”,contouCatherine.“Eraumrapazencantador,foi
umacoisamuitotriste,enãoseiparaquemfoiqueamamãefalouisso,maselafalouparaalguémque,quandoNoracomeçouasaircomMaurice,elatevemedodequeMauricetambémpegassetuberculose.Oupelomenos algumacoisa sobreMaurice e tuberculose.Depois essapessoa faloupara alguémqueacaboucontandoparaNora.AíelameteunacabeçaquemamãeandavafalandodeMauriceparaacidadetoda,falandodafamíliadele,detuberculose,eNorasimplesmenteparoudefalarcomela.”“NadanomundofaziaNoradescerdopedestal”,disseCatherine.“Depois”,prosseguiuUna,“opadreQuaiddescobriu.Eleeramuitoamigodamamãe,porqueelaera
docoralemuitasvezescantavanacatedral.Perguntouamamãesobreocasoeelaconfirmou.Entãoumdia,pertodoNatal,elepegouNoradesurpresaedissequeelaprecisavapararcomaqueleabsurdo,eficouacertadoqueelaiadesejarfelizNatalparaamãenodiadeNatal,eseriaofimdaquelahistória.”“Ficamosaliviadas”,disseUna.“Achoquecidade inteira ficoualiviada,oupelomenosaspessoas
quenosconheciam.”“Eoqueaconteceu?”,perguntouPhyllis.“Elaesperou”,respondeuCatherine,“mamãeseabaixarparatiraroperudofornoeaíseinclinoue
desejoufelizNatalparaela,maspareciaqueestavadesejandofelizNatalparaotraseirodela.”“Lembroqueeuquaseexplodideraiva”,disseUna.
Noracomeçouarir.“Olhem,elaestáacordada”,dissePhyllis.“Estávamosjustamentefalandodevocê”,disseCatherine.“Euouvitudo”,respondeuNora.Quando voltou ao trabalho, Nora começou a dormir a noite inteira. Aos poucos, as dores foram
embora.Elanãocontouamaisninguémoquehaviaacontecidonoquarto.Supôsque fosseumsonho,como disse Josie.Mas pareciamais forte do que um sonho.À noite, quando apagava a luz,Nora seconsolavapensandoqueMaurice tinhaestadonoquarto,edemodomuitovivo.Tentavanãosussurrarparaele,masnãoconseguiaimpedir,eelasentiaqueissoafaziadormircommaisfacilidadeevenceranoite.No trabalho,nãoviaahoradevoltarparacasae ficarsozinhanasalaquehaviadecorado.Pegava
livrosnabibliotecaeànoite,coma lareiraacesae todasas luzes também, liaoudeixavaamenteseesvaziar. Gostava quando Fiona saía e ela ficava sozinha em casa, com Conor na saleta fazendo osdeveresdaescola,atéqueele iaparaasala,sentavanosofáeficavavendosuasfotografiasoulendorevistas e manuais que Donal deixara com ele. Diferentemente de Fiona, que muitas vezes achava amúsicairritante,Conormalescutavaosdiscos.Noratinhaaimpressãodequeeleassociavaamúsicaabem-estareconforto,ouàausênciade tensão,noentantoàsvezes sentiaqueeleaobservavaequeaexpressão no rosto dele continuava preocupada e indecisa. Conor sempre seria daquele jeito, pensouNora;iasetornarumhomempreocupadocomascoisas,quevigiavaomundoembuscadesinaisdequealgoiadarerrado.EmDublin,certodia,NoraviuumaliquidaçãonalojadediscosMay’s,emStephenGreen;cadadisco
deumagrandecoleçãodaDeutscheGrammophontiveraopreçoreduzidoparamenosdeumalibra.Elacomprouomáximoquepodiacarregar.QuandoencontrouAineeFionanaNationalGallery,entraramnalojade suvenireseescolheramgravurasqueelapoderiapendurarnaparededasala.Quando foiparacasa,mandouemoldurarasgravuras.Depoisoutrapessoapendurariaasgravuras,quandoelasvoltassemdaoficinademolduras,pensou.JosiecombinoucomNoraqueCatherineeUnalevariamcaixas,esvaziariamoguarda-roupaondeela
mantinhaasroupasdeMaurice.NoraesperouumfimdesemanaemqueFionairiaaDublincomPaulesecertificoudequeAinenãoviriaparacasa.CombinoucomMargaretqueConoriatomarchánacasadela e ficar lá até a noite.No início da tarde,Nora foi de carro aWexford. Tinha escrito aDonal eavisado que chegaria cedo.Comprou galinha e batatas fritas para ele na lanchonetemais próxima docolégio,alémdealgumasgarrafasderefrigeranteMiranda,saborlimão,oseupredileto.Donalpreferia,Nora sabia, que ela fosse com Conor, ou Fiona, ou Aine, pois assim os outros podiam conversar ediscutir entre eles quando ele quisesse ficar calado. Sozinho comNora, sempre havia alguma tensão.DonalseressentiaquandoNoralhedavaconselhos.“Vocêc-c-conheceop-p-paradoxodafé?”,eleperguntou,quandoterminoudecomer.“Achoquenão.”“Op-p-padreMoorehousefezumsermãosobreisso.Sóparaumg-g-grupop-p-pequeno,quefazum
estudoespecialder-r-religião.”“Ecomoé?”,perguntouNora.“P-p-paraacreditar,apessoat-t-temdeacreditar”,disse.“Sevocêtemfé,consegueacreditarm-m-
mais,sóquevocênãoc-c-consegueacreditar,senãoc-c-começaraacreditar.Essap-p-primeirafééummistério.Écomoumd-d-dom.Depoisor-r-restoér-r-racional,oup-p-podeser.”“Masissonãopodeserprovado”,disseela.“Sósepodesentir.”“Sim,maseled-d-dizquenãoéumaquestãodep-p-provar.Nãoéc-c-comosomardoismaisdois,é
maisparecidocompôrluznaá-á-água.”“Issoparecemuitoprofundo.”“Não.Naverdade,ésimples.Explicaascoisas.”ElapercebeuqueDonalnãogaguejounaúltimafrase.“A gente precisa t-t-ter alguma coisa primeiro”, prosseguiu ele. “Acho q-q-que é isso que ele está
dizendo.”“Esenãotiver?”“Essaéaposiçãoateísta.”Noraolhouparabaixo,paraostelhadosdascasas,astorresdasigrejaseparaaluzcalmadoporto
maisaolonge.Donaltinhadezesseisanos,eelapensouemcomotudopareceriamaisincertoàmedidaqueosanospassassemporele,ecomoeraimportanteelanãodizernadaqueofizessesaberdisso,poisDonalaindanãoprecisavasaber.ComoNora havia chegado cedo,Donal deixou claro que entendia que ela tinha alguma coisa para
fazer e disse que, se ele tivesse uma hora livre agora, quandomuitos dos meninos estavam jogandohurlingoufutebol,ouandandoemvoltadocampoefumandodisfarçadamente,eleficariacomacâmaraescurasóparaele,ehaviaumtiponovodepapel fotográficosembrilhoqueelequeriaexperimentar.Noranãoentendeuseeleaestavadispensandoporquequeriaqueelafosseemboraouseestavatentandofacilitar as coisas para ela. Nora se acomodou no carro e, pelo espelho lateral, observou Donalcaminhandodevoltaparaocolégiocomarconfiante.Em casa, Nora ficou ouvindo Victoria de los Ángeles cantando Schubert e Fauré e depois uma
gravaçãodoconcertoparaviolinodeBeethoven,enquantoesperavaachegadadeCatherineeUna.Torciaparaquefossememboraassimquetivessemacabado; iamlevarasroupasdeMaurice,Nora
esperava, sem dizer a ela o que iam fazer com aquilo tudo. Depois que fossem embora, Nora teriaalgumashorassozinha,comalareiraacesaemúsica.TalvezprocurasseumlivroquehaviapertencidoaMauriceeodeixassepertodesi.EsperariaConorchegareiriaparaacamalogodepoisdele.PreparariaumcháparaCatherineeUna,paraqueelasnãosequeixassemmuitodelaaJosieeaseusmaridos,masdecidiunãolhesdarnadaparacomer,assimelasnãosesentiriamestimuladasapermaneceralidepoisqueacabassemoquetinhamvindofazer.Norasabiaqueasduasestavamjuntasagora,emalgumlugar,dizendoumaporçãodecoisassobreela,sobreJosieesobreosábadodelastersidoocupadodaquelamaneira.Quandoelaschegaram,Noranãoasconvidouparaentrarnasala.“Todasascoisasdeleestãonaqueleguarda-roupaaoladoda janela”,disse.“Sóhá issonoguarda-
roupa.”Asduasolharamparaairmã,esperandoqueNoraasacompanhasseatéoandardecima,masemvez
dissoNoravoltouparaasala,acrescentoumaislenhaeblocosdeserragemaofogodalareira,substituiuoconcertodeviolinoporumamúsicadepianomaiscalmaediminuiubastanteovolume.Oqueelasiamfazererafácil:apenastirartudodoarmário,pôrdentrodesacolasecaixas,levarparabaixoedepoisparaocarro.Noranãoabriaaqueleguarda-roupadesdeumpoucodepoisdamortedeMaurice,quandohaviacolocadoorestantedasroupasdeleládentro.Traçaspoderiammuitobemterabertoburacosnalã,
masossapatosestariamdomesmojeito,oscadarçosestariamdomesmojeitoqueelehaviadeixado,edentrodeumououtrobolsodospaletóspodiaatéhaverumpoucodegizdasaladeaula.Noraquasesearrependeudepermitirquetudoaquilofosseembora,oudenãoterfeitoaquiloelamesma,aospoucos,ao longo do tempo. Agora gostaria que elas fizessem tudo mais depressa. Pareciam estar semovimentandodemaisláemcima.
***Quandoelastinhamenchidoassacolaseascaixas,levadotudoparaohallesubidodenovoafimde
dar uma última olhada no guarda-roupa, alguém bateu na porta. Nora ficou surpresa ao ver LaurieO’Keefe.Laurienunca tinha idoàsuacasa.Porumsegundo,Noranãoconseguiupensarnoquedeviafazer.Decertomodo,omundodeLaurienãocasavacomomundoemqueCatherineeUnahabitavam;elasiamacharqueLaurieeramaluca.NoraiadizeraLauriequeaquelenãoeraumbommomento,masfoiimpedidapeloentusiasmoepelasimpatiadeLaurie.Laurietambémpareciasemfôlego.Noralevou-apara a sala, enquanto Catherine e Una desciam a escada, e Nora apresentou-as. Preparou um chá,imaginandoquantotempoLaurieesuasirmãsficariamali.“Nãogostodevisitarninguémsemavisar”,disseLaurie.“Evocês?”OlhouparaCatherine,paraUnaedepoisparaNora.“BemqueeugostariaqueNorativesseumtelefone”,disseCatherine.“Bem,issoexiste”,disseLaurie.“Mashápessoasquenãogostamdetelefones.”“Epessoasquenãotêmdinheiroparacomprarum”,acrescentouNora,enquantosentava.“Ouquepreferemcomprardiscos”,disseUna.“Éverdade”,admitiuNora.“Bem,tenhoboasnotícias”,disseLaurie,quandoocháfoiservido,“equeriaquevocêsoubesse.Sei
queéumdiadifícilparavocê,Nora,noentantopondereibemeacheiqueumaboanotícianãolhefariamalnenhumnumdiacomohoje.”“Comosoubeoqueiaacontecerhoje?”,perguntouNora.“Detesto mistérios, portanto vou lhe contar. Sua tia contou à irmã Thomas e ela me contou, e ela
tambémmeaconselhouaviraqui.”“Elaéumatremendaintrometida”,disseUna.“Éumaformadeencararaquestão,defato”,disseLaurie.“Oqueaconteceuéqueumamulhermorreu,
não sabemosquemelaé, edeixoudinheiroemseu testamentoparaum recitaldemúsica religiosaemWexford,KilkennyouCarlow.Quemquerqueelaseja,devetersidoumaalmaadorável,paraterumaideiacomoessa;alémdodinheiro,claro.Portanto,procuraramFrankRedmonde,apesardeeunãoestarfalandocomele,Redmondmeprocurouepediuqueeuorganizasseocoral,poisestáocupadodemaisparacuidardoassunto,emeocorreuquetudoissofoiumadádivadeDeus.”Paroueolhouparaastrêsmulheres,acreditandoqueelastivessementendido.NoraviuqueCatherine,
amaisreligiosadelas,observavaLauriecomtodaaatenção.“Éovigésimoquintoaniversáriodareaberturadoconventoedanovaconsagraçãodaigrejadepoisda
guerra,” informou Laurie em tom dramático. “Os nazistas a tomaram de nós e lá aconteceram coisasindescritíveis.”“LauriefoifreiranoSagradoCoração,naFrança,duranteaguerra”,disseNora.“Tínhamosumagrandemadrereverenda”,disseLaurie.“EradeumafamíliamuitoantigadaFrança.
Estávamosem1947eeladisseque íamosapresentarumconcertoparaagradecer aDeuspelo fimdaguerra e em comemoração à reabertura da nossa igreja e do nosso regresso ao antigo prédio.
Organizamosumcoralmaravilhoso,mesmonaquelaépoca,emborativéssemosperdidomuitoshomensnaguerra, além de mulheres. Ela queria apresentar o Réquiem Alemão, de Brahms, como uma ação degraças e também como uma expiação, e elamesma ia tocar o piano, escolheu amelhor soprano e omelhorbarítonoparaostrechosmaisimportantes,easfreiraseopovodaaldeiaformariamocoro.Ah,aspessoasdaaldeiaprotestaramealgumasfreirastambémquiseramprotestar,mas,claro,tínhamosfeitonossovotodeobediência.Foidifícil,mesmoparaasfreiras.AlínguaalemãtinhasidoumpesadeloparatodaaEuropaeeraaprimeiracoisaqueninguémqueriaouvir,muitomenoscantar.Alémdomais,nãoéuma composição católica,mas aquilo também fazia parte do sonho dela, estender amão para o outrolado.Nenhumhomemqueriair,entãoMèreMarie-Thérèseseaproximoudeumdeles,oqueelaconheciamelhor.Ohomemtinhaumavozlinda,mashaviaperdidoosdoisfilhosnaguerra,umdoscorposnuncaforaencontrado,suamulhertinhamorridoeocoraçãodeleestavamuitofechado.Amadrepediuqueelefossecomelaatéacapelarecém-consagrada,pararezaremjuntos.Pediuqueelerezasse,foisóissoqueelafez.Pediuqueelerezasse.”Laurieparou,comosejátivesseditoosuficiente.“Eoqueelefez?”,quissaberCatherine.“Implorouque amadreodeixasse cantar um réquiemcatólico, em francês, pelosmortos franceses,
mas ela recusou.Vamos cantar à glória deDeus, que é capaz de perdoar tudo, foi o que ela disse, evamoscantaremalemão,paramostrarquesomosfeitosàimagemdeDeusetambémpodemosperdoar.Tododiaelaiaàcasadohomemrezarcomele.Levavaduasnoviçascomela.”“Eeleaceitou?”,perguntouCatherine.“Não, nunca aceitou,masmuitos outros aceitaram. Ela visitava todos. Então, em outubro de 1947,
apresentamosoconcerto.Sempreacrediteiqueaquelediafoioiníciodapaz.Quandoeradifícilperdoar,cantamos em alemão e, quando nossas palavras se elevaram, eles se elevaram. Foi para lá que elesforam,paraoalto.”Umpedaçode lenha escorregoue afundouna chamada lareira e começoua arder commais força.
Ninguémfalounadaporumminuto.“EasenhoraestavanaFrançanaquelaépoca?”,perguntouCatherine.“Eagora,paramarcarosvinteecincoanos,voumontarumcoralevamosensaiaroRéquiemAlemão
emWexford,eFrankRedmondvaimontarumapequenaorquestraparaacompanhar,oupelomenosdoispianos, além de providenciar os dois cantores principais. E a sua irmã, a sra.Webster, é a primeirapessoaqueeuqueronomeucoral.”“Nora?”,perguntouCatherine.“Sim,éaminhamelhoraluna.”“Bem,voulhedizerumacoisa”,começouCatherine.“Seminhamãeestivesseviva,ficariasurpresa,
porque ela era uma excelente cantora e sabia que Nora também era, mas Nora nunca quis saber decantar.”“Todosnósmudamos,Catherine”,disseLaurie.Catherineolhouparaelacomardescrente.“Agoraprecisoir”,disseLaurie.“Vimaquisóparadizerisso.”Depoisqueelasefoi,CatherineeUnavoltaramcomNoraparaasala.“Elaestáfalandosério?”,perguntouCatherine.“Jáouvifalardela,éumapessoamuitoséria”,disseUna.“Émuitorespeitada.”“Temsidoumaamigamuitoboa”,disseNora.“Vocêvaimesmocantarnumcoral?”,perguntouCatherine.“Fareiomelhorqueeupuder”,disseNora.
UnaeCatherinelevaramascaixasparaocarro,enquantoNoraficounovestíbulo,segurandoaportaabertaparaelas.Quandotudohaviaterminado,Unasubiumaisumavezedesceucomumacaixinhademadeira,queestavatrancada.“Istoestavanofundodoguarda-roupa.”Sacudiuacaixa,masnãoseouviubarulhonenhum.Noraencolheuosombros.Elasabiaoqueera.“Nãotenhomaisachave.Umadevocêspodiameajudaraabrir.”“Vaiserprecisoarrombar,masacaixavaificardestruída”,alertouCatherine.“Tudobem”,disseNora.Catherinetentouusarumaferramentaqueachounacozinha,masnãofuncionou.“Euprecisoabri-la”,disseNora.“Certo,maseunãoconsigo.”“Una”,chamouNora.“Vocêpoderialevaracaixaàcasadovizinho,oTomO’Connor?Eletemtodas
asferramentasdomundo.”QuandoUnasaiu,Catherinefoiaobanheiro.Norapercebeuqueelatinhaficadoabaladapormanusear
as roupasdeMauriceequea irmãnãoqueria ficarsozinhacomela.CatherinesódesceuquandoUnavoltou.“Eletevedificuldadeparaabrir”,contouela.“Precisouquebraramadeira.”Noracolocouacaixanamesaaseuladoevoltouaovestíbulo,ondeestavamasirmãs.“Vocêvaificarbemsozinha?”,perguntouCatherine.“Conorvaichegardaquiapouco.”Noraesperouenquantoasduaspegavamseuscasacos.“Eununcateriaconseguidofazerisso”,disseela.“Sesoubéssemos,teríamosvindoantes”,disseUna.Noraficouparadanaportaobservandoasirmãsiremembora,vendoCatherinemanobrarocarrocom
cuidadoetodasasroupasdeMaurice,todasaspeçascompradassemamenorideiadoqueiaacontecercomele, sendo levadasparaalgumlugar,paraserem jogadasno lixooudoadas.Nora fechouaporta,voltouparaasalaeesvaziouoconteúdodacaixinhademadeira.TodasascartasqueMauriceescreveraparaelaantesdocasamentoestavamali.Norahaviaguardado
naquelacaixaetrancadoàchave.LembroucomootomdeMauriceeratímidoquandoescreviaparaela.Muitas eram cartas breves, apenas sugerindo um lugar na cidade onde poderiam se encontrar, e umhorário.Noranãodeuumaolhadanelas; já as conhecia.Muitasvezes, ele falavade si comose fosseoutra
pessoa,diziaque tinhaconhecidoumhomemquehavia lhecontadoquegostavamuitodedeterminadagarota,ouqueeletinhaumamigoque,enquantovoltavaparacasa,depoisdeterestadocomanamorada,só conseguia pensar em como gostaria de vê-la outra vez, em breve, ou como gostaria de ir aBallyconnigarcomelaefazercaminhadaspelospenhascos,emCush,etalveznadarcomela,seotempoestivessebom.Nora se ajoelhou e, lentamente, alimentou o fogo com as cartas. Pensou em quanta coisa havia
acontecidodepoisqueessascartastinhamsidoescritaseemcomoelaspertenciamaumtempoquehaviaterminadoenãovoltariamais.Ascoisaseramassim;eraassimqueascoisasfuncionavam.QuandoConorchegouemcasa,notouacaixademadeiraqueimadaatéametadenagrelhadalareira,
juntocompedaçosdelenha,carvãoeblocosdeserragem.Perguntouoqueera.“Sóumacoisaquejogueifora”,disseNora.
Conorolhouoobjetocomardesconfiado.“Voucantarnumcoral”,disseela.“Odacatedral?”“Não,emoutrocoral.OdeWexford.”“Penseiqueaquelehomemnãotinhagostadodevocê.”“Bem,elesmudaramdeideia.”“Eoquevocêvaicantar?”“ORéquiemAlemão,deBrahms.”“Éumacanção?”“Éumasériedecanções,sóqueparamuitasvozes.”Conorficoupensativo,parecendoponderarbemcadaaspecto,depoisassentiucomacabeça.Sorriu
paraela,satisfeito,depoissubiuparaseuquarto.Noraseacomodoupertoda lareiraepensouempôrumamúsica no toca-discos, algo especial. Esperava queConor ficasse umpouco com ela antes de irdormir.Nessemeio-tempo,acasapermaneceuemsilêncio,umsilênciorompidoapenaspelosbarulhossuavesdeConornoandardecimaepelosestalosdalenhaqueimandolentamentenalareira.
STEVEPYKE
COLMTÓIBÍNéautordeseteromances,entreosquaisAluzdofarol(2004),Omestre(2005),Mãese filhos (2008),Brooklyn (2011) eO testamento deMaria (2013), todos publicados pelaCompanhiadasLetras.ÉganhadordoCostaBookAwardsedoLosAngelesTimesBookPrize,entrediversosoutrosprêmios.ViveentreDublineNovaYork.
Copyright©2014byColmTóibínProibidaavendaemPortugal.GrafiaatualizadasegundooAcordoOrtográficodaLínguaPortuguesade1990,queentrouemvigornoBrasilem2009.Títulooriginal
VictorBurtonFotodecapaLaurenNaimola/DearGolden,Inc(acimaàesq.);©TheIngeMorathF/MagnumPhotos/Latinstock(acimaàdir.);Igener/©Istock(abaixoàesq.);JoseASReyes/©Bigstock(abaixoàdir.)PreparaçãoCiçaCaropresoRevisão
JanePessoaMárciaMouraISBN978-85-438-0356-2Ospersonagenseassituaçõesdestaobrasãoreaisapenasnouniversodaficção;nãosereferemapessoasefatosconcretos,enãoemitemopiniãosobreeles.TodososdireitosdestaediçãoreservadosàEDITORASCHWARCZS.A.RuaBandeiraPaulista,702,cj.3204532-002—SãoPaulo—SPTelefone:(11)3707-3500Fax:(11)3707-3501www.companhiadasletras.com.brwww.blogdacompanhia.com.br
SumárioCapaRosto1.2.3.4.5.6.7.8.9.10.11.12.13.14.15.16.17.18.SobreoautorCréditos