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“O sofrimento é a única fonte da consciência.” (Fiodor Dostoiévski, Notas do subterrâneo) ão há momento em que o homem seja tão escravo da sua consciên- cia quanto à noite. É na sua solidão que a consciência se torna mais livre. É do silêncio trazido pelo crepúsculo que vem a liberdade de reflexão. De dia, as pessoas e as coisas prevalecem e preenchem nossa atenção; o dia é a fuga da depressão; à noite, o relaxamento das responsabi- lidades faz com que venham à superfície todas as nossas inquietações com o mundo que nos com- prime, e que parece nos dizer o tempo todo que nunca vamos conseguir nos livrar dessa agonia de viver. E é a este estado mais puro de reflexão que se re- fere Dostoiévski. Para o escritor russo a noite é a hora mais “real” do dia, quando nos revelamos a nós mesmos e, muitas vezes, nos assustamos com o produto dessa revelação. Ela revela “a essência mais secreta do sujeito sensível. O sofrimento é noturno”. As palavras secas de um autor sombrio como Dostoiévski nos fazem entender melhor a dife- rença entre a compreensão do mundo de um artista e de uma pessoa comum, acostumada a tentar levar a vida da melhor forma possível. Mais suscetível ao sofrimento exposto pela solidão, o artista simplesmente enxerga detalhes que as pes- soas comuns nem têm tempo para ver. Enxergar o sofrimento é enxergar demais e isso é considerado um “defeito” de artistas, escritores e neuróticos em geral. “A felicidade em pessoas inteligentes é das coisas mais raras que conheço.” (Ernest Hemingway) É natural que grandes escritores como Dos- toiévski, Albert Camus, Ernest Hemingway, Edgar Allan Poe e Fernando Pessoa tenham se inclinado a uma criação literária que abordasse o lado mais obscuro do ser humano – afinal, era esta a maneira através da qual eles experimentavam a essência do mundo. Exatamente por isso, criaram obras imor- tais que têm o mesmo impacto em qualquer época e sociedade, pois tratam de uma condição univer- sal de existência. Para estes escritores e para muitos outros artistas, a condição natural do homem é a inadequação. Arthur Schopenhauer, “o filósofo do pessimismo”, percebeu que as injustiças do DANIELA MARTINEZ, INGRID PRIES, LEONARDO MARONA, L. DAVID FRANCCHETTI E PATRÍCIA PASCOAL Com a noite na alma Boas Noites 71 Uma reflexão sobre a noite na vida dos artistas Ernest Hemingway empunha, carrancudo, a espingarda que o mataria anos mais tarde

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“O sofrimento é a única fonte da consciência.”(Fiodor Dostoiévski, Notas do subterrâneo)

ão há momento em que o homemseja tão escravo da sua consciên-cia quanto à noite. É na suasolidão que a consciência se tornamais livre. É do silêncio trazido

pelo crepúsculo que vem a liberdade de reflexão.De dia, as pessoas e as coisas prevalecem epreenchem nossa atenção; o dia é a fuga dadepressão; à noite, o relaxamento das responsabi-lidades faz com que venham à superfície todas asnossas inquietações com o mundo que nos com-prime, e que parece nos dizer o tempo todo quenunca vamos conseguir nos livrar dessa agonia deviver.

E é a este estado mais puro de reflexão que se re-fere Dostoiévski. Para o escritor russo a noite é ahora mais “real” do dia, quando nos revelamos anós mesmos e, muitas vezes, nos assustamos com oproduto dessa revelação. Ela revela “a essênciamais secreta do sujeito sensível. O sofrimento énoturno”.

As palavras secas de um autor sombrio comoDostoiévski nos fazem entender melhor a dife-rença entre a compreensão do mundo de uma rtista e de uma pessoa comum, acostumada atentar levar a vida da melhor forma possível. Maissuscetível ao sofrimento exposto pela solidão, oa rtista simplesmente enxerga detalhes que as pes-soas comuns nem têm tempo para ver. Enxergar osofrimento é enxergar demais e isso é consideradoum “defeito” de artistas, escritores e neuróticos emg e r a l .

“A felicidade em pessoas inteligentes é dascoisas mais raras que conheço.”

(Ernest Hemingway)

É natural que grandes escritores como Dos-toiévski, Albert Camus, Ernest Hemingway, EdgarAllan Poe e Fernando Pessoa tenham se inclinadoa uma criação literária que abordasse o lado maisobscuro do ser humano – afinal, era esta a maneiraatravés da qual eles experimentavam a essência domundo. Exatamente por isso, criaram obras imor-tais que têm o mesmo impacto em qualquer épocae sociedade, pois tratam de uma condição univer-sal de existência. Para estes escritores e para muitosoutros artistas, a condição natural do homem é ainadequação. Arthur Schopenhauer, “o filósofo dopessimismo”, perc ebeu que as injustiças do

DANIELA MARTINEZ, INGRID PRIES, LEONARDO MARONA, L. DAVID FRANCCHETTI E PATRÍCIA PASCOAL

Com a n o i t ena a l m a

Boas Noites 71

Uma reflexão sobre a noite na vida dos artistas

Ernest Hemingway empunha, carrancudo, a espingardaque o mataria anos mais tarde

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mundo e as inúmeras tristezas e frustrações quese agigantam sobre a nossa vida frágil e efêmera,não passam de uma grande piada de mau gosto.Para Schopenhauer, cujas idéias cert a m e n t einfluenciaram em muitos aspectos a pro d u ç ã oliterária do século XIX e XX, o mundo é indife-rente ao nosso destino. Não é de propósito queele nos frustra.

É como se vivêssemos sob a alternância de umpêndulo: de um lado, o tédio, que se aproxima dovazio de vontade, ou da vontade de vazio, que é aprópria morte; do outro lado, o desejo, que é aexperimentação da falta, ou seja, é a aflição de seq u e rer algo e não se ter. Pesado, doloroso, masnem por isto menos poético. Como afirm aDostoiévski em suas Notas do subterr â n e o, “a cons-ciência dessa tragédia, que é a vida sobre a Te rr a ,mesmo que produza a sensação do mais pro f u n d oabandono e impotência de ação naquele que estáconsciente, não se troca por nenhuma satisfação”.Foi essa consciência da indiferença do mundo emrelação aos seus habitantes que justificou a com-pleta entrega desses grandes inventores de lingua-gens aos seus objetos de trabalho, através dosquais eles conseguiram criar um universo ima-ginário que comportasse as suas impressões domundo, por vezes mais verossímeis que o própriomundo real.

“Apenas em um ponto acesso outro mundoque não seja o da representação. Esse pontoestá dentro de mim.”

(Arthur Schopenhauer,O mundo como vontade e representação)

A noite é um terreno fértil para todos esses senti-mentos, dúvidas e frustrações. É o momento maispuro de convivência consigo mesmo. Para cons-ciências e almas atormentadas, ela significa medo,solidão, abandono e morte. O escritor americanoErnest Hemingway, que se matou com um tiro deespingarda na boca, na segunda noite de julho de1961, escreveu o seguinte trecho sobre esta parte“perigosa” do dia:

“...São nessas horas, onde somente os gatos e insonesestão acordados, que a neblina vem. Trazendo os mur-múrios e lamentações daqueles que já se foram, maspor continuarem ligados aos prazeres da carne se man-têm atrelados ao plano físico. Vindo, noite após noite,se alimentar das emoções mais profundas, da agonia eêxtase de cada um.”

Essa capacidade de concentrar-se, de inclinar-sesobre suas próprias angústias, constitui o impulsooriginal para o exercício criativo (seja de queg ê n e ro for), como uma forma de enfrentar adepressão causada pela constante observação daforça esmagadora do mundo sobre os homens.Afinal, é conhecendo a si próprio que o artista ques-tiona o mundo pelo qual ele não se permite reger.No lugar disso, acontece então o inverso: o artistase alça acima do mundo real e essa acaba sendo aúnica forma que ele encontra para exercer domíniosobre o seu mundo particular e, assim, conseguirs o b reviver num ambiente que se revela como“humanamente desumano”.

A inteligência aguçada do artista, embora não dequalquer um, lhe permite enxergar as injustiças domundo como obras do próprio homem e de maisninguém. Por isso, ele consegue escapar da auto-comiseração e acaba alcançando um certo estadosubliminar de consciência, justamente o que seráseu trunfo de criação e aquilo de que ele jamaisabrirá mão, como afirmou Dostoiévski um poucoacima. Ainda assim, o mesmo autor, se não se sui-cidou com um tiro na boca, como Hemingway, sematou em vida. Tinha uma saúde frágil, jamais foi

Julho/Dezembro 200372

Noite estrelada, uma das obras mais conhecidas de VanGogh, mostra um minúsculo povoado em contraste com aimensidão de um céu turbulento. A silhueta do cipresteseria um sinal de morte

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feliz em nenhuma relação amorosa, era umalcoólatra e jogador inveterado, como fica explícitoem mais um trecho de Notas do subterrâneo:

“Estava envergonhado (ainda agora talvez o esteja);chegara ao ponto de sentir um prazer secreto, anormal,desprezível, em voltar para casa, para o meu canto,numa dessas noites desagradáveis de Petersburgo, coma aguda consciência de ter novamente cometido naque-le dia uma torpeza da qual não podia recuar, e interior-mente, secretamente, roer-me, roer-me, dilacerar-me econsumir-me todo até que o sofrimento se transfor-masse numa espécie de fraqueza vergonhosa, maldita,e, afinal, positivamente, num real prazer.”

A contemplação contínua dos erros do mundo –ainda mais quando são observações solitárias – e aconstatação de que não há espaço para todas asvontades sustentam, sobre os artistas de sensibili-

dade aguda, uma tremenda culpa pelas imper-feições dos homens e, ao mesmo tempo, umatremenda raiva pela sua própria passividade emrelação a esta culpa. O dom de enxergar além dofenômeno traz consigo a dor de não se saber comomudá-lo. Artistas atormentados como Dostoiévskisofrem como se fossem obrigados a assistir a um

Boas Noites 73

Em entrevista à E c l é t i c a, a pro-fessora Rosângela Ainbinder, doD e p a rtamento de ComunicaçãoSocial da PUC-Rio, fala sobred e p ressão e arte nos dias de hoje

Eclética: Como é a depressão domundo moderno?Rosângela Ainbinder: Em pri-meiro lugar, nós vivemos em ummundo em que a depressão ga-nhou uma amplitude, a talponto de várias pessoas morre-rem. A depressão é uma doençada alma, mas não é uma doençacomum, é uma doença da cons-ciência. No fundo, existe aquelepensamento “o mundo não estácerto. Eu tento fazer as coisascertas, o mundo está o tempotodo me colocando idéias sobreverdade, e sobre justiça, sobre obem e, no entanto, o que eu vejoé uma outra coisa”. A pessoadeprimida tem a certeza quetudo está fora de lugar, apesarde aparentemente, tudo estarseguindo a ordem que deveriaseguir.E: Mas como o indivíduo modernose expõe a essa depressão?R. A.: Na verdade, a pessoa se

deprime porque olha a faceorganizada do mundo e pareceque a desorganização não estáno mundo, e sim, nela. Mas, sóela vê daquele jeito e só ela estátendo o sentimento de que ascoisas não estão funcionando,ou não são o que deveriam ser. Ohomem moderno e depressivo éextremamente sensível, ele estáp e rcebendo aquilo que geral-mente nós não percebemos aoestarmos correndo sempre con-tra o tempo para sermos efi-cientes e competentes.E: E os artistas? Como eles trans-crevem sua depressão? Eles en-contram um alívio na arte?R. A.: Eles não se vêem capazesde transformar nada. O artistafaz a denúncia, mas se senteimpotente para mudar algumacoisa. Na mitologia, o heróitrágico não vence, ele é derrota-do, mas através da derrota elevai mudar a visão de muitagente. Jesus é a história do heróitrágico, pois nada na vida deleexplicaria a revolução que elecausou depois da morte. Arelação do artista com este ele-mento está no fato de verem que

não podem salvar o mundo, nosentido de interferir nele, e simsalvá-lo indiretamente, fazendocom que cada indivíduo salve asi mesmo.E: Qual seria a solução paracurar esta depressão, já que vocêa citou como uma doença?R. A.: Eu diria que a depressão éuma doença da sensibilidade eda consciência. As pessoas de-p ressivas vêem o que nós, es-cravos do sistema, não con-seguimos ver, porque não nosdamos tempo para ver e enten-d e r. Aquele que consegue pararno tempo para fazer esse exer-cício de filosofia, necessaria-mente, vai se deprimir. Quandofalo de doença, me re f i ro aótica do mundo de uma necessi-dade do depressivo ser curado.Só que ela não precisa de cura,pois ela é uma doença na or-dem no mundo. A arte faz aseguinte pergunta: quem disseque a melancolia precisa sercurada? Eu digo que não deve-mos ver a depressão como umadoença, e sim como um estadode consciência, um outro esta-do de ser.

A depressão moderna e a arte

Campos de trigo com corv o s é considerado um pre s s á g i odo suicídio de Van Gogh.

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show de horror da primeira fila, com os olhosa rregalados, enquanto o resto da platéia jogapipoca para o alto e se diverte. E, curiosamente, écomo se essa situação lhes proporcionasse um pra-

zer macabro e paradoxal, que vem do privilégio dapercepção que as pessoas comuns não possuem.Então, o artista genial se deixa absorver pela suaderrota anunciada e cai numa negação própriaabsoluta e numa solidão profunda, como se podeobservar num trecho do conto “O Espelho”, deMachado de Assis:

“As horas batiam de século a século, no velho relógioda sala, cuja pêndula, tic-tac, tic-tac, feria-me a almainterior, como um pirapote contínuo da eternidade.Quando, muitos anos depois, li uma poesia americana,creio que de Longfellow, e topei com este famoso estri-bilho: Never, for ever! – For ever, never! Confesso-lhesque tive um calafrio: re c o rdei-me daqueles diasmedonhos. Era justamente assim que fazia o relógio datia Marcolina: - Never, for ever! – For ever, never! Nãoeram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, umcochicho do nada. E então de noite! Não que a noitefosse mais silenciosa. O silêncio era o mesmo que dedia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda maisestreita ou mais larga. Tic-tac, tic-tac. Ninguém nas

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Depressão é uma palavra fre-qüentemente usada para descre-ver nossos sentimentos. Todos sesentem “para baixo” ou de altoastral às vezes e tais sentimentossão normais. A depressão, en-quanto evento psiquiátrico éalgo bastante diferente: é umadoença como outra qualquerque exige tratamento. Muitaspessoas pensam estar ajudandoum amigo deprimido ao incenti-varem ou mesmo cobrarem ten-tativas de reagir, distrair-se, dese divertir para superar os senti-mentos negativos. Os amigosque agem dessa forma fazemmais mal do que bem, são in-compreensivos e talvez até egoís-tas. O amigo que realmente querajudar procura ouvir quem sesente deprimido e no máximoaconselhar ou procurar umprofissional quando percebe queo amigo deprimido não está sótriste.

Uma boa comparação quepodemos fazer para esclarecer asd i f e renças conceituais entre adepressão psiquiátrica e a de-pressão normal seria compararcom a diferença que há entreclima e tempo. O clima de umaregião ordena como ela pro s-segue ao longo do ano por anosa fio. O tempo é a pequena vari-ação que ocorre para o clima daregião em questão. O clima tro-pical exclui incidência de neve.O clima polar exclui dias propí-cios ao banho de sol. Nos climastropical e polar haverá dias maisquentes, mais frios, mais calmosou com tempestades, mas tudod e n t ro de uma determ i n a d afaixa de variação. O clima é oestado de humor e o tempo, asvariações que existem dentrodessa faixa. O paciente deprimi-do terá dias melhores ou piores,assim como o não deprimido.Ambos terão suas tormentas e

dias ensolarados, mas as tor-mentas de um não se comparamàs tormentas do outro, nem osdias de sol de um se comparamcom os dias de sol do outro.

Existem semelhanças, mas amanifestação final é muito di-f e rente. Uma pessoa no climat ropical, ao ver uma foto de umdia de sol no pólo sul, tem ai m p ressão de que estava quentee que até se poderia tirar aroupa para se bro n z e a r. Estetipo de engano é o mesmo queuma pessoa comete ao com-parar as suas fases de baixoastral com a depressão psi-quiátrica de um amigo. Nin-guém sabe o que um deprimidosente, só ele mesmo e talvezquem tenha passado por isso.Nem o psiquiatra sabe: elereconhece os sintomas e sabet r a t a r, mas isso não faz com queele conheça os sentimentos e osofrimento do seu paciente.

A depressão na visão dos psicólogos

A poesia “S.O.S.” expressa a solidão concreta de Augustode Campos.

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salas, na varanda, nos corredores, no terreiro, ninguémem parte nenhuma...”

A arte, de fato, nasce de uma solidão e dirige-se àoutra solidão. Surge do desassossego do autor e passaa ser desassossego do mundo, quando outras pessoasa b s o rvem a obra. Os grandes artistas conseguemtirar proveito das suas experiências mais marc a n t e s ,que, inevitavelmente, acabam sendo também asmais traumáticas, descrevendo-as, direta ou indire-tamente, em suas obras. Dessa forma, alcançam umgrau de minúcia nas descrições do cenário e dasd i f e rentes sensações de sufocamento que ele pro v o c anos personagens (seja num quadro de Van Gogh ounum poema de Edgar Alan Poe), que jamais seriapossível alcançar sem uma total entrega às suascondições existenciais mais inquietantes.

Se Van Gogh teve um estilo único de pintar, foi

Boas Noites 75

Os sintomas da depressão sãomuito variados, indo desde assensações de tristeza, passandopelos pensamentos negativos atéas alterações da sensação corpo-ral como dores e enjôos. Contu-do, para se fazer o diagnóstico, énecessário um grupo de sin-tomas centrais: • Perda de energia ou interesse; • Humor deprimido; • Dificuldade de concentração; • Alterações do apetite e do sono;• Lentificação das atividades físi-cas e mentais; • Sentimento de pesar ou fracasso.

Os sintomas corporais maiscomuns são sensação de descon-f o rto no batimento card í a c o ,constipação, dores de cabeça,dificuldades digestivas. Períodosde melhoria e piora são comuns,o que cria a falsa impressão deque se está melhorando sozinhoquando durante alguns dias opaciente sente-se bem. Geral-mente tudo se passa gradual-mente, não necessariamente comtodos os sintomas simultâneos.Aliás, é difícil ver todos os sin-tomas juntos: até que se faça o

diagnóstico praticamente todasas pessoas possuem explicaçõespara o que está acontecendo comelas, julgando sempre ser ump roblema passageiro .

Outros sintomas que podem virassociados aos sintomas centraissão• Pessimismo; • Dificuldade para tomar deci-sões; • Dificuldade para começar afazer suas tarefas; • Irritabilidade ou impaciência; • Inquietação; • Achar que não vale a penaviver; desejo de morrer.

Algumas estatísticas• No Brasil, os suicídios aumen-taram em 38,8% na última déca-da, crescimento superior aosóbitos causados por acidente detrânsito.• O suicídio é uma das três prin-cipais causas de morte de pes-soas dos 15 aos 44 anos.• Desde a década de 1970, tripli-cou o número de suicídios depessoas entre 15 e 24 anos.• Tentativas de suicídio são três

vezes mais recorrentes entre asmulheres.• Pelo menos 8% da populaçãomundial sofre de depressão, prin-cipal causa do suicídio.• Suicidam-se diariamente 2000pessoas no mundo.• A média nos EUA, país quemais realiza pesquisas sobre oassunto, é de 30.000 suicídios porano, cerca de 82 por dia.

A opinião do Centro deValorização da Vida

Segundo a coordenação dei n f o rmações do Centro deValorização da Vida (CVV), asligações em busca de apoio emo-cional aumentam significativa-mente durante a noite, quandoas pessoas ficam sozinhas comsuas preocupações. Durante odia as ocupações com o trabalhoe a companhia dos amigos efamiliares preenchem o tempo eo pensamento das pessoas. Anoite, o silêncio e a tranqüili-dade fazem os pensamentos ne-gativos virem à tona com maisforça tornando a existênciamais “pesada” e desesperadora.

Sintomas e números

Para muito escritores, como Dostoiévsky, a angústia danoite transforma-se em estímulo para a criação

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p o rque deixou transparecer sua maneira de pensarnos quadros que pintava, ou seja, seus quadro seram sua (in)consciência e seu sofrimento, e não osde mais ninguém. As imagens que trabalhava eramo que melhor caracterizava o seu estado de espíritomelancólico e autodestrutivo. As angústias são, por-tanto e invariavelmente, os motivos que levam uma rtista a construir uma obra original e visceral. Aangústia da noite é, ao mesmo tempo, estímulopara a criação e musa de muitas obras etern a s ,como é o caso deste poema de Fernando Pessoa:

“Neste momento insone e tristeEm que não sei quem hei de ser,Pesa-me o informe real que existeNa noite antes de amanhecer

Tudo isto me parece tudo.E é uma noite a ter um fimUm negro astral silêncio surdoE não poder viver assim.

Tudo isto me parece tudo.Mas noite, frio, negror sem fim,Mundo mudo, silêncio mudo –Ah, nada é isto,nada é assim!”

(Fernando Pessoa, 1930)

Como todo símbolo, a noite apresenta um duploaspecto, o das trevas, onde fermenta o vir a ser, eo da preparação do dia, de onde brotará a luz davida, o que entra em choque com a idéia dad e p ressão e solidão que a noite evoca. A criação,associada à noite, está ligada a esse vir a ser, quef e rmenta as idéias do art i s t a .

No poema do melancólico Fernando Pessoa, anoite abandona sua condição puramente física eilustrativa e passa a atuar no texto como antago-nista central. Ela deixa de re p resentar somente umestado físico de escuridão e adquire uma cono-tação metafórica, como se fosse síntese do estadode espírito sombrio do poeta – que é camufladopela clareza e as distrações de imagens do dia –,que se fortalece durante o dia para confrontar oescritor ao cair das luzes.

É na hora em que ele se deita, porém sem con-seguir dorm i r, que a noite se apresenta como uminimigo frio, taciturno e silencioso, que faz emer-gir de dentro da subjetividade do poeta tudo oque há de não solucionado, causando-lheimpotência e asfixia. Por isso, o artista acabaencarando a noite como um adversário numringue ao qual, sem forças, acaba sucumbindopelo acovardamento que a escuridão lhe pro v o-ca. Esta incapacidade de ação junto ao mundoe x t e rno também pode estar relacionada aoenfraquecimento dos sentidos (principalmente otato e a visão) que surgem. À noite é o sujeito porele mesmo e mais ninguém. Foram-se as dis-trações de um dia movimentado, foram-se as pes-soas com quem conversar, sobrou apenas aescuridão e, ao poeta, suas angústias, que se agi-gantam, justamente, porque não há mais nadaque a elas se equipare .

“Depois ouvi um leve gemido e notei que era ogemido do terror mortal. Não era um gemido de dorou de pesar... Oh, não! Era o som grave e sufocadoque se ergue do fundo da alma quando sobre c a r-regada de medo. Bem conhecia este som. Muitasnoites, ao soar a meia-noite, quando o mundo inteirod o rmia, ele irrompia do meu próprio peito, aguçan-do, com seu eco espantoso, os terro res que me atur-diam.”

(Edgar Allan Poe, “O Coração Denunciador”, dolivro Terror, mistério e morte, 1843).

Julho/Dezembro 200376

Em Melancolia de Dürer, o anjo observa e desola-se como poder sonbrio que a noite exerce nas almas humanas