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COMIDA DE RUA: UMA LEITURA GEOGRÁFICA A comida de rua é fenômeno com dimensão no tempo e no espaço. No Brasil, está relacionada ao império, abolição dos escravos, urbanização e tem ainda mais notoriedade nas últimas décadas. Contudo, não se restringe a comida comercializada na rua, mas territorializada na rua. É facilmente identificada nos espaços públicos: praças, parques, avenidas, terminais de ônibus, e calçadões nas mais variadas formas, tais como carrinhos, barracas, quiosque, food bike e food truck. A perspectiva teórica fundante dessa pesquisa é a teoria dos Circuitos da Economia Urbana proposta por Milton Santos na qual destaca-se o circuito inferior formado de atividades de pequena dimensão e um notório enraizamento local/regional. A comida de rua se insere nessa abordagem teórica por apresentar: capital reduzido, mão de obra volumosa, tecnologia incipiente e elevada capacidade criativa. O objetivo norteador desse ensaio é debater a comida de rua numa perspectiva geográfica. Dentro das possíveis leituras destacamos: O circuito criativo e comida de rua, o uso do território pela comida de rua e o saber-fazer como possibilidade de trabalho e renda. Acredita-se que o capitalismo acelerou o ritmo da vida e facilitou o romper das barreiras espaciais conferindo maior fluidez no espaço. No frenesi do ir e vir, do tempo escasso, dos tempos rápidos e hegemônicos surge os Fast Food. Contudo, a cidade não é um sistema maciço e uno, ela é uma engrenagem de subsistemas e para cada movimento do grande capital há um movimento secundário dos homens lentos, que produzem o território e territorialidades pelas práticas que acolhe. É nesse contexto que se insere a comida de rua como parte do cotidiano das cidades, da composição da economia urbana e da vida dos sujeitos. No tabuleiro da baiana de acarajé, na motobarracade espetinho itabunense, no carrinho de milho sergipano, e muitos outros, tem mais do que comida. Há um saber que transcende gerações, há uma rede de solidariedade orgânica, há rebatimentos das crises econômicas, há também inúmeros sujeitos em busca de sobrevivência. Assim, torna-se necessário um esforço intelectual para compreender essa atividade que ainda é pouco estudada no âmbito da geografia, utilizando-se do cabedal teórico construído por essa ciência por meio das categorias e conceitos que a sustentam. Acredita-se que a comida de rua tenha um potencial na geração de externalidades positivas para o lugar na qual se instala e ainda pode contribuir para compreensão das realidades produtivas do espaço urbano. Palavras chave - Comida de rua, circuito inferior e territorialidade. STREET FOOD: A GEOGRAPHIC READING Street food is a phenomenon with a dimension in time and space. In Brazil, it is related to the empire, abolition of slaves, urbanization and has even more notoriety in the last decades. However, it is not restricted to food marketed on the street, but territorialized on the street. It is easily identified in public spaces: squares, parks, avenues, bus terminals, and boardwalks in the most varied forms, such as trolleys, tents, kiosks, food bikes and food trucks. The underlying theoretical perspective of this research is the Urban Economy Circuits theory proposed by Milton Santos, in which the lower circuit is characterized by small-scale activities and a notorious local / regional rooting. Street food is embedded in this theoretical approach by presenting: reduced capital, bulky labor, incipient technology, and high creative capacity. The guiding objective of this essay is to discuss street food from a geographical perspective. Among the possible readings we highlight: The creative circuit and street food, the use of the territory by the street food and the know-how as a possibility of work and income. Capitalism is believed to have accelerated the pace of life and has facilitated the breaking of

COMIDA DE RUA: UMA LEITURA GEOGRÁFICA

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COMIDA DE RUA: UMA LEITURA GEOGRÁFICA

A comida de rua é fenômeno com dimensão no tempo e no espaço. No Brasil, está relacionada ao império, abolição dos escravos, urbanização e tem ainda mais notoriedade nas últimas décadas. Contudo, não se restringe a comida comercializada na rua, mas territorializada na rua. É facilmente identificada nos espaços públicos: praças, parques, avenidas, terminais de ônibus, e calçadões nas mais variadas formas, tais como carrinhos, barracas, quiosque, food bike e food truck. A perspectiva teórica fundante dessa pesquisa é a teoria dos Circuitos da Economia Urbana proposta por Milton Santos na qual destaca-se o circuito inferior formado de atividades de pequena dimensão e um notório enraizamento local/regional. A comida de rua se insere nessa abordagem teórica por apresentar: capital reduzido, mão de obra volumosa, tecnologia incipiente e elevada capacidade criativa. O objetivo norteador desse ensaio é debater a comida de rua numa perspectiva geográfica. Dentro das possíveis leituras destacamos: O circuito criativo e comida de rua, o uso do território pela comida de rua e o saber-fazer como possibilidade de trabalho e renda. Acredita-se que o capitalismo acelerou o ritmo da vida e facilitou o romper das barreiras espaciais conferindo maior fluidez no espaço. No frenesi do ir e vir, do tempo escasso, dos tempos rápidos e hegemônicos surge os Fast Food. Contudo, a cidade não é um sistema maciço e uno, ela é uma engrenagem de subsistemas e para cada movimento do grande capital há um movimento secundário dos homens lentos, que produzem o território e territorialidades pelas práticas que acolhe. É nesse contexto que se insere a comida de rua como parte do cotidiano das cidades, da composição da economia urbana e da vida dos sujeitos. No tabuleiro da baiana de acarajé, na “motobarraca” de espetinho itabunense, no carrinho de milho sergipano, e muitos outros, tem mais do que comida. Há um saber que transcende gerações, há uma rede de solidariedade orgânica, há rebatimentos das crises econômicas, há também inúmeros sujeitos em busca de sobrevivência. Assim, torna-se necessário um esforço intelectual para compreender essa atividade que ainda é pouco estudada no âmbito da geografia, utilizando-se do cabedal teórico construído por essa ciência por meio das categorias e conceitos que a sustentam. Acredita-se que a comida de rua tenha um potencial na geração de externalidades positivas para o lugar na qual se instala e ainda pode contribuir para compreensão das realidades produtivas do espaço urbano.

Palavras chave - Comida de rua, circuito inferior e territorialidade.

STREET FOOD: A GEOGRAPHIC READING

Street food is a phenomenon with a dimension in time and space. In Brazil, it is related to the empire,

abolition of slaves, urbanization and has even more notoriety in the last decades. However, it is not

restricted to food marketed on the street, but territorialized on the street. It is easily identified in public

spaces: squares, parks, avenues, bus terminals, and boardwalks in the most varied forms, such as

trolleys, tents, kiosks, food bikes and food trucks. The underlying theoretical perspective of this

research is the Urban Economy Circuits theory proposed by Milton Santos, in which the lower circuit is

characterized by small-scale activities and a notorious local / regional rooting. Street food is

embedded in this theoretical approach by presenting: reduced capital, bulky labor, incipient

technology, and high creative capacity. The guiding objective of this essay is to discuss street food

from a geographical perspective. Among the possible readings we highlight: The creative circuit and

street food, the use of the territory by the street food and the know-how as a possibility of work and

income. Capitalism is believed to have accelerated the pace of life and has facilitated the breaking of

space barriers by making space more fluid. In the frenzy of coming and going, of the scarce time, of

the fast and hegemonic times comes the Fast Food. However, the city is not a massive system and

one, it is a gear of subsystems and for every movement of the great capital there is a secondary

movement of the slow men, who produce the territory and territorialities by the practices that it

receives. It is in this context that street food is inserted as part of the daily life of cities, the composition

of the urban economy and the life of the subjects. In the Bahian acarajé tray, in the iterative

"motobarraca" of Itabuna, in the Sergipe corn cart, and many others, it has more than food. There is a

knowledge that transcends generations, there is a network of organic solidarity, there are fights of

economic crises, there are also many individuals in search of survival. Thus, an intellectual effort is

necessary to understand this activity that is still little studied in the scope of geography, using the

theoretical framework constructed by this science through the categories and concepts that support it.

It is believed that street food has the potential to generate positive externalities for the place in which it

is installed and can still contribute to an understanding of the productive realities of urban space.

Key words- Street food, inferior circuit and territoriality.

1- Introdução

A comida de rua é fenômeno com dimensão no tempo e no espaço. No Brasil,

está relacionada a chegada dos escravos, ao Império, abolição e urbanização.

Autores como Ferreira Filho (1999), Cascudo (2011) e Pertile (2013) corroboram que

essa modalidade de comércio está relacionada as mulheres negras que em

pequenas barracas, ocupavam as ruas do Rio de Janeiro e da Bahia. Segundo

Soares eram conhecidas como “ganhadeiras”, se organizam em cozinhas

improvisadas nas ruas com “pratos prontos e quentes, preparados a base de farinha

de mandioca, feijão, carne seca, alua, frutas, verduras, alimentos feitos com miúdos

de boi [...] se baseava em técnicas da culinária indígena e africana” (1996, p.8).

Os eventos históricos que se seguem tais como, o fim do império,

proclamação da república, o processo de industrialização no país e a consequente

urbanização dotaram o território de uma feição urbana. A rua passa a ser é o elo

entre a casa e o trabalho. Enquanto a casa está associada a segurança, a rua está

ligada a incerteza ou ao perigo. Como Da Matta salientou a “comida de rua é ruim ou

venenosa, enquanto a comida caseira é boa por definição. Até mesmo objetos e

pessoas, como crianças, podem ser diferentemente interpretados caso sejam da rua

ou de casa” (1986, p.21). É certo que a rua também pode ser associada a um lugar

de reivindicação, denúncia e contestação social.

O objetivo norteador desse ensaio é debater a comida de rua numa

perspectiva geográfica. Para a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e

Alimentação (FAO) as comidas de rua são “ready-to eat foods and beverages

prepared and/or sold by vendors and hawkers especially in street and other similar

public places, can be found in clusters around places of work, schools, hospitals, bus

terminals etc”1 (FAO, 1995). Esses alimentos e bebidas comercializados na rua

fazem parte de um subsistema urbano denominado pela FAO (2011) de Setor

Informal de Alimentos (IFS). Por essa razão, optamos por utilizar a concepção de

circuito inferior para compreender essa atividade. No entanto, é inquietante chamálo

de inferior quando o que sobressai é a criatividade. Adotaremos então o termo

circuito criativo.

Esse artigo está estruturado em três tópicos: O circuito criativo e comida de

rua, o uso do território pela comida de rua e o saber-fazer como possibilidadede

trabalho e renda. Apresentamos a seguir, resultados preliminares de uma pesquisa

de doutorado em seu estágio inicial.

2- Circuito criativo e comida de rua

A comida de rua, em grande medida, é uma atividade laboral dos pobres.

Infelizmente, não existe uma base de dados nacional que corrobore a afirmativa. Um

observador e/ou pesquisador atento pode identificar elementos que confirmem essa

declaração. A geógrafa Arroyo defende a existência de uma economia invisível dos

pequenos que se multiplica no tecido urbano, essa economia também abarca a

comida de rua:

a pequena produção de lanches e bolos que regularmente abastece o comércio realizado na porta de uma escola, universidade ou qualquer órgão público, ou o artesanato feito para ser vendido ao longo do ano em feiras organizadas ou em barracas improvisadas em alguma praça; esses e tantos outros casos de atividades de pequena dimensão se multiplicam aqui e acolá nas grandes cidades (2008, p.31).

1 Tradução: Alimentos e bebidas prontas para consumo preparados e / ou vendidos por vendedores ambulantes e

vendedores ambulantes, especialmente em ruas e outros locais públicos semelhantes, podem ser encontrados em

aglomerados em torno de locais de trabalho, escolas, hospitais, terminais de ônibus, etc.

É denominada “invisível” por, geralmente, não atrair interesse do poder

público e também reduzido interesse acadêmico. No entanto, é possível uma leitura

geográfica da comida de rua com base no circuito inferior da economia urbana

proposta por Milton Santos na década de 1970. Essa teoria não trata dessa temática

em específico, mas analisa as atividades de pequeno porte que se assemelha a

comida de rua.

De acordo com Santos (2004) o espaço nos países subdesenvolvidos

encontra-se “divido”, analiticamente, em dois subsistemas, chamados de circuito

superior e circuito inferior da economia urbana. Um vinculado às grandes indústrias,

bancos e empresas de atuação continental e mundial, e o outro envolvendo pessoas

e empresas de atuação local e regional, respectivamente. É nesse último, que

propomos compreender nossa temática.

O circuito criativo possui características próprias como o uso de trabalho

intensivo (SANTOS, 2004). Em uma conversa informal com um vendedor de acarajé

em Itabuna no Sul da Bahia ficou evidente esta característica: durante o dia ele

realiza os preparos que antecedem a venda: compra de produtos, preparo do

vatapá, caruru, salada de tomate, camarão, massa de feijão que serve tanto para o

preparo do abará cozido como o do acarajé que será frito posteriormente. As 16h se

inicia a montagem da barraca e o atendimento que, geralmente, se estende até as

21h (Informação verbal, 2019). O trabalho é intensivo por começar pela manhã e se

prolongar até a noite. Essa ocupação não é regida por leis trabalhistas, o trabalho

encerra quando o último item é vendido.

Outra característica fundamental é a elevada capacidade criativa. Na comida

de rua a criatividade é imprescindível para permanecer na atividade. Na ausência de

capital para infraestrutura, alguns vendedores se instalam abrigados nos pontos de

ônibus e marquises. Outros, transformam um meio de transporte em um ponto

comercial (Fotografia 1).

Fotografia 1- Vendedor de espetinho no centro da cidade de Itabuna-BA

Fonte: trabalho de campo, 2019.

A “moto barraca” de espetinho oferece sabores variados como carne,

calabresa, frango e misto. É possível adquirir apenas o espetinho como também

acompanhamentos: feijão tropeiro, farofa, salada e purê de batata, ou seja, uma

refeição completa. Essa atividade permite a reprodução social dos sujeitos

envolvidos na produção/comercialização da comida de rua como também oferece

uma refeição a um preço acessível para o consumidor. É nesse movimento da

economia dos pobres que se produz o “o espaço banal, o espaço de todos, todo o

espaço, porque as redes [como os FastFood] constituem apenas uma parte do

espaço e o espaço de alguns “(SANTOS, 2005, p. 256). É na apropriação do espaço

que são constituídos territórios por meio de uma territorialidade peculiar.

3- O uso do território pela comida de rua

As atividades do circuito criativo estão intimamente ligadas ao conteúdo do

meio geográfico no qual se localizam (SANTOS, 2004). Geralmente, a ação desses

agentes está restrita a uma praça, quadra ou bairro. É perceptível um certo

adensamento nos centros das cidades. Também estão presentes em “ruas, becos,

terminais rodoviários e metroviários, praças e porões, vans, motocicletas,

permeando o tecido urbano” (ARROYO, 2008, p. 31).Estão intimamente ligados ao

território de sorte que é comum as pessoas se reportarem a uma praça não pelo

nome, mas pela comida de rua que ela oferece. Expressões como “a praça do

acarajé”, “ao lado do espetinho” denotam que esses agentes já fazem parte da

paisagem local pelo uso do território. Somente por meio do uso é que se

compreende o movimento, a ação dos homens é nesse sentido que o território

passa a ter uma esfera social.

É o uso do território, e não o território em si mesmo, que faz dele objeto da análise social. Trata-se de uma forma impura, um híbrido, uma noção que, por isso mesmo, carece de constante revisão histórica. O que ele tem de permanente é ser nosso quadro de vida. Seu entendimento é, pois, fundamental para afastar o risco de alienação, o risco da perda do sentido da existência individual e coletiva (SANTOS, 2005, p.255).

Para afastar o risco da alienação é necessário conceber a cidade em sua

totalidade. Não apenas a ação do capital por meio das grandes empresas, mas

sobretudo a ação dos “pequenos”, dos agentes descapitalizados que de fato

pertencem as cidades. Enquanto as grandes franquias de Fast Food estão

localizadas no urbano, como verticalidade2, a comida de rua está enraizada nela

como horizontalidade3.

De acordo com Silveira (2009, p.134) as atividades próprias do lugar

conferem uma “organização interna, que possibilita inúmeras interdependências

contíguas”, na comida de rua ela se realiza por meio da vida de relações dos

agentes. Para Seu Antônio vender seu churrasquinho ele necessita adquirir a carne

no açougue, os espetinhos de madeira na loja de produtos para festa, a farinha de

mandioca e o carvão na feira livre. Logo, a comida de rua antes de ser

comercializada já contribui para o uso do território por meio de uma rede de

2 Segundo Milton Santos (2005, p.256) as verticalidades seriam formadas por pontos distantes uns dos outros, ligados por todas as formas e processos sociais. São agentes externos que se instalam no território. 3 As horizontalidades serão os domínios da contiguidade, daqueles lugares vizinhos reunidos por uma

continuidade territorial (SANTOS, 2005, p.256).

sociabilidade. No momento em que ela é ingerida, restaura o comensal que retorna

para suas atividades. Assim, também contribui para o funcionamento da cidade

quando fornece energia para o trabalhador. É nesse sentido que compreendemos

que a comida de rua gera externalidades positivas pois os benefícios dessa ação

chegam a terceiros.

A comida de rua se entrelaça ao cotidiano e ao território. É comum encontrar

pessoas que estão no mesmo ponto de venda por anos, elas passam a compor o

quadro de vida daquele lugar. Estes sujeitos diferem dos grandes agentes, que

usam o território por meio das redes de fluxos financeiros e segundo Castells são

“uma entidade capitalista coletiva sem rosto” (2010, p.569), de tal modo que “os

trabalhadores perdem sua identidade coletiva” (CASTELLS, 2010 p.571) no

momento em que tudo é padronizado, seja o fardamento, a fala, e o comportamento.

Por outro lado, na comida de rua o contato é direto, olho no olho, aperto de mão e

sorriso espontâneo (Fotografia 2).

Fotografia 2- Comida de rua em Aracajú-Sergipe

Foto: Ana Emília de Q. Ferraz4, 2019.

O vendedor de milho e amendoim da fotografia 2 difere dos outros no seu

entorno. Usa jaleco verde e um chapéu de palha. O “chapelão rei do milho” exerce

uma territorialidade na Orla do por sol em Aracajú já que “o agir social é local,

territorial e significa territorialidade” (SAQUET, 2007, p.115), produto da

reciprocidade entre a sociedade e o território. Desse modo, a comida “de rua” é

sobretudo comida territorializada na rua.

4- O saber fazer como possibilidade de trabalho e renda

O saber fazer nos remete a ideia de técnica que segundo Kussler tem

diversas acepções entre elas habilidade e arte, ela “se expressa como uma astúcia

criativa, isto é, como habilidade para produzir algo, mas também pode ser

compreendida como meio de produzir algo” (2015, p.189). Essas habilidades são

desenvolvidas com a necessidade do fazer, agir, ser e existir.

A história do homem está intimamente ligada as técnicas que ele desenvolve

e incorpora no seu fazer diário. Em Santos a “técnica está longe de ser uma

explicação da história, mas ela constitui uma condição fundamental” (1994, p.2),

como mediadora entre o homem e seu entorno. No âmbito da alimentação a técnica

mais significativa foi o domínio do fogo. Para o historiador Harari ao “domesticar o

fogo, os humanos ganharam o controle de uma força obediente e potencialmente

ilimitada” (2014, p. 16). O fogo servia para afastar predadores, purificar o alimento

dos agentes patógenos, inserir novos hábitos na dieta alimentar como trigo, batata e

arroz que não poderia ser digerido em sua forma natural, transformando os coletores

em “uma raça de cozinheiros” (HARARI, 2014, p.17).

Essa “raça de cozinheiros” produziram muitas técnicas como assar, fritar,

cozinhar, defumar, dentre outras. Produziram também cozinhas regionais calcadas

4 Fotografia cedida gentilmente pela professora Ana Emília que capturou essa imagem pensando em minha pesquisa.

nas diferenças entre as regiões do país e no interior da própria região, uma

imbricação entre o homem, meio e alimento:

As cozinhas regionais, portanto, “falam” do homem e de seu meio, na medida que apresentam não apenas ingredientes e sabores próprios de uma localidade, mas os apresentam a partir de uma lógica própria, de técnicas de produção, preparo e serviço que transmitem valores e tradições de um determinado contexto cultural (BAHL, GIMENES e NITSCHE, 2011, p.5).

Por reconhecer essa cozinha regional, seu importante papel na manutenção

das tradições, o saber fazer das “baianas” foi registrado pelo Instituto do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) como um Bem de Natureza Imaterial em

20045. O Dossiê do IPHAN intitulado “Ofício das baianas de acarajé” discute a

importância dessa atividade pois “permite que as mulheres aprendam uma profissão

que ainda sustenta grande parcela da população de Salvador, e que assumam seus

múltiplos papéis como chefe de família, mãe e devota religiosa” (IPHAN, 2004, p.15).

Por trás dos ornamentos da baiana, do sabor das iguarias, está mais uma cidadã na

luta diária da sobrevivência.

É marcante a presença da mulher no trabalho ligado a comida de rua, seja

por uma questão histórica como “Herdeiras dos ganhos, as baianas de tabuleiro,

baianas de rua “(IPHAN, 2004, p.16) e/ou por característica do tempo presente em

que a mulher assume a chefia da casa. De acordo com o Instituto de Pesquisas

Econômicas Aplicadas 28.614.895 milhões de mulheres ocupavam essa posição de

chefia em 2015 no Brasil (IPEA, 2015).

Em razão das crises econômicas e do avanço do “meio técnico cientifico

informacional” (SANTOS, 1994), avoluma-se o desemprego de forma galopante e

com a especialização das profissões trabalhadores do sexo masculino e feminino

não encontram um lugar no mercado formal. Seria então possível considerar que o

saber fazer contribui para a inserção em atividades como a comida de rua. O

“saber”, conhecimento transgeracional, assegura ao sujeito a posse de algo que lhe

5Processo n.01450.008675/2004-01–Processo de Registro de PatrimônioImaterial Ofício das Baianas de Acarajé em Salvador, BA.

pertence e não pode ser tomado, o “fazer” permite por em prática, confere

materialidade ao imaterial, consequentemente torna-se mercadoria mediante a

venda e resulta na sobrevivência de muitas famílias.

5- Considerações

Comer é um ato biológico, mas sobretudo social. O modo de produzir,

comercializar e comer na rua fazem dessas ações um objeto de análise geográfica.

A Comida e o sujeito territorializados na rua são parte do urbano e não podem ser

ignorados. Seja pelo valor histórico, permanência no presente ou pela funcionalidade

e importância da atividade para os que dela vivem ou usufruem direta ou

indiretamente.

Existe uma massa de pobres envolvidos nessas atividades “invisíveis” como

também existe uma massa, igualmente pobre, que consome. O trabalho intensivo, a

capacidade criativa e o saber fazer são subterfúgios dos inseridos no circuito criativo

da comida de rua. A modernização atual não apaga os pobres, antes, exige deles,

maior resiliência.

6- Referências ARROYO, Mónica. A economia invisível dos pequenos. Le Monde Diplomatique Brasil, ed15, out de 2008. p. 30-31. Disponível em https://diplomatique.org.br/a-economia-invisivel-dos-pequenos/. Acesso em: 5 de jan de 2010. BAHL, Miguel. GIMENES, Maria H. S. G. e NITSCHE, Letícia G. Territorialidade gastronômica: as cozinhas regionais como forma de mediação do homem com o meio e como atrativo turístico. OAL Disponível em http://observatoriogeograficoamericalatina.org.mx/egal13/Geografiasocioeconomica/Geografiacultural/15.pdf. Acesso em: 20 de Janeiro de 2019. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede (A era da informação: economia, sociedade e cultura; v.1). 6 ed. 13 reimpr. São Paulo: Paz e Terra, 2010. 698p. CASCUDO, Luís da Câmara. História da Alimentação no Brasil. São Paulo: Global, 2011.

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