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COMISSÃO PORTUGUESA DE HISTÓRIA MILITAR

VI COLÓQUIO ,

«PORTUGAL NA HISTORIA MILITAR»

ACTAS

LISBOA • PALACIO DA INDEPENDtNCIA

6 A 8 DE NOVEMBRO

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TEMA DO COLÓQUIO

«PORTUGAL

NA IDSTÓRIA MILITAR»

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COMISSAO PORTUGUESA DE IIISTORIA MILITAR

Portaria n." 247/89 d e 4 d e Abril (extracto)

A Comissao Internacional de Historia Militar, com sede em Paris, criada em 1938 com o patrocinio da Comissao Internacional de Cienca, IXisioricas, Lein por objectivo encorajar e coordenar as pesquisas dos historiadores militares num espirito de entendimento internacional, de modo que melhor se possam conhecer e comparar os resultados dos seus esfor~os.

No sector da historia militar comparada, esta Coniissao goza d e grande prestigio e representatividade, quer p o r estar integrada na Comissao Internacional de Ciencias Historicas, quer por nela estarem actualmente filiadas numerosas nayoes, algumas de grande projecyao cultural e historica. quer ainda pela assinalavel actividade que tem desenvolvido para incentivo de trabalho de historia mili- tar e na organizaqao de reunioes internacionais de reconhecido exito.

O passado historico-militar nacional reveste-se d e indiscutivel iiiiportancia, com ampla projeccao universal.

Desta forma, promovendo-se no ambito da Comissao Interna- cional o estudo comparado da historia militar em espirito de enten- dimento dos paises Miados. a s u m r o maior intcrease a presenca de Portugal na rcferida Coniissiio.

Asrini :

Nos tei-rnos da alirira g ) c10 artigc~ 202." (Ia Con*tituiqiio : Ma~iila o Govcriio, pelos 33ini~ii.o+ t l a Defesa Nacional e da

Educacao e pela Secretaria (ir Estado da (:~il tura, o .seguinte :

1."- 1;I criada ; i (:ori i i . ; .*i?o Sorlucrir-a de Histciria Militar (CPHM). que fiinc.ionar5 na tlrpiidi.ncia do Ministro tla Drftn~a Narioiial.

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2." -A Comissão tem por fim promover, estimular e coor· denar a investigação histórico-militar, com vista, desig­nada'mente, à representação e participação de Portugal na Comissão Internacional de História Militar ( CIHM), e à promoção e divutlgação dos resultados dos seus tra­balhos.

O Ministro da Defesa Nacional, Joaquim, Fernando Nogu.eira O Ministro da Educação, Roberto Artur da Luz Carneiro O Secretário de Estado da Cultura, Pedro Miguel Santana Lopea

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COMISSÃO PORTUGUESA DE HISTúRIA MIUTAR

PRESIDtNCIA

- Gen. Manuel Freire Themudo Barata (Exército)

1' ice-Presidentes

- Brig. Pil. Av. Jorge Osório Mourão (Força Aérea)

- Cmdt. Fernando Alberto Gomes Pedrosa (Armada)

- Cor. Carlos da Costa Goones Bessa (Academia Portuguesa da História)

CONSELHO CONSULTIVO

- Brig. Eduardo Q. Martins BARRENTO

- Prof. Doutor Francisco J. Rogado Contente DOMINGUES

- Cor. Pil. Av. Amadeu José FERREIRA

- Prof. Doutor Luís Adão da FONSECA

- Dr. Luís Marques da GAMA

- Prof. Doutor Humberto Baquero MORENO

- Ten.-Cor. António Lopes Pires NUNES

- Cmdt. José Rodrigues PEREIRA

- Cmdt. António Luciano Estácio dos REIS

- Cor. Nuno Sebastião B. S. Valdez T. dos SANTOS

- Prof. Doutor Nuno Severiano TEIXEIRA

- Prof. Doutor António Pedro VICENTE

SECRETÁRIO-GERAL

- Prof. Doutor Nuno Severiano Teixeira

-Ten. José Júlio Garcia Coelho (Assessor)

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PRÉMIO DEFESA NACIONAL

- Despacho do Ministro da Defesa Nacional: 5/MDN/91

«O estudo e divulgação dos feitos e dos grandes vultos da nossa História são fruto dos trabalhos de pesquisa que, indo ao encontro do subconsciente histórico, de sobrevivência, tem contri­buído de forma importante para o enriquecimento do nosso patri­mónio cultural.

A investigação sobre a história dos acontecimentos militares portugueses, na perspectiva da segurança nacional, possibilita uma melhor definição da consciência colectiva, preservando e consoli­dando o ideal de que a comunhão do povo é afirmada no seu pas­sado co'mum, onde se cruzam a identidade nacional e a realidade lusíada.

A recente criação da Comissão Portuguesa de História Militar e o início das suas actividades vieram promover a análise e o con­fronto dos diversos pontos de vista nacionais e a sua exposição a nível internacional, afirmando e realçando a dimensão universal do contributo de Portugal para o progresso da Humanidade, animada por um espírito de entendimento entre os povos.

Nesse sentido, é instituído u:m prémio designado por «Prémio Defesa Nacional», destinado a galardoar um trabalho de história militar portuguesa elaborado por cidadãos nacionais, cujo Regula­mento se junta em anexo».

Nos termos do Regulamento para atribuição do Prémio, «é constituído um júri sob a presidência do presidente da CPHM, tendo como vogais cinco elementos da CPHM e a entrega do prémio é feita em cerimónia integrada numa das manifestações culturais a realizar no âmbito das actividades da Comissão Portuguesa de História Militar».

*

O Prémio Defesa Nacional para trabalhos realizados em 1994, foi atribuído a :

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- Henrique Nuno Severiano Teixeira ccEntre a Neutralidade e a Beligerância. A entrada de Portugal na Grande Guerra. Objectivo.5 Políticos e Estra­tégias Nacionais»

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NOTA ,

PREVIA

A Comissão Portuguesa de História Militar, embora dis­pondo de um orçamento modesto, tem procurado fazer um grande esforço no campo das publicações. Em cada ano, uma fatia subs­tancial das suas dispanibilidades é afecta a edições, com um critério muito objectivo· de prioridades.

O primeiro lugar, é ocupado pelas actas dos colóquios anuais. Logo a seguir, vêm os trabalhos anualmente distinguidos com o ·«Prémio Defesa Nacional» , sempre que a obra ou obras premiadas ainda são inéditas. O terceiro lugar, diz respeito, às comunicações apresentadas por historiadores portugueses em congressos e outros encontros inter.nacionais. O penúltimo grupo, é constituído por con­ferências realizadas em Portugal sob a égide da C01missão ou em artividades para as quats foi pedida a sua coUiboração. Por fim, é nosso desejo publicar tra"balhos inéditos de investigadores nacionais ou estrangeiros sobre temas. de reconhecido interesse para a histórÜJ militar portuguesa.

Nesta última área, ainda pouco fizémos. Alguma coisa mais t~onseguimos já na área anteriormente mencionada, bem como quanto à publicação de conferências realizadas no estrangeiro. No patamar seguinte - o dos trabalhos que obtiveram o ccPrémio Defesa Nacional», até 1994 -, tudo foi publicado. Está em vias de o ser, por uma editora portuguesa, o trabalho premiado em 1995, prevendo-se que, posteriort.1-trente, à mesma obra seja editada em França, numa co-edição em que participará a nossa Comissão.

Felizmente, o nosso principal objectivo no âmbito editorial - as actas - tem sido atingido. Se é certo que ainda não con­seguimos ultrapassar todas as dificuldades que, com demasiada fre­quência, têm provocado meses de atraso na sua distribuição, também é verdade que já saíram diJr.co vol!Umes e que o sexto aqui está.

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No nosso Plano de Acção para 1995, estava previsto que w ]ornadas de História Militar campreenderiam duas partes: o habi­tual Colóquio e, a substituir os Dias de História Militar a realizar em diversas Universidades, um <<Seminário de História Militar» que, durante dois dias, reuniria em Coimbra alguns jovens mestrandos e finalistas de História dessas mesmas Universidades. Seria uma fo1"ma que nos pareceu muito oportuna e útil de pôr em contacto quantos se iniciam nesta área de investigação, dando assim um conhecimento geral da diversidade de assuntos que estavam sendo trabalhados. Todavia, a intensa actividade académica em que estavam absorvidos alguns dos ekmentos da Universidade de Coimbra mais ligados à História Militar, aconselhou a adi.ar este projecto. Daí, as presentes actas dizerem apenas respeito às comunic~ões apresentadas durante o VI Colóquio de História Militar.

O tema que esteve em análise neste VI Colóquw ero - «.Por­t1igal na História Militar». Esclarecia-se, no texto compkmentar distribuído com a inscrü;ão, que se procurava fazer uma primeira abordagem da prese~a de militares isolados, ou de forças militares portuguesas, fora do território nacional e de militares ou forças mili­tares estrangeiras, no nosso país, rwm caso e noutro, tanto em acti­vidade operacional ccmw em acções de alguma forma relacionadas com a guerro. Sabíamos, à partida, que o tema era muito vasto. E revelou-se, ao tratá-lo, mais vasto ainda. Com efeito, e camo se verá, o que aqui fica é somente um aperitivo para abrir o apetite, pois quase tudo deste imenso campo está anda à espera de quem nek se aventure [NJra a explorar. E o assunto é não só ·importante como actual [NJra que melhor se firme a nova história militar portu­guesa, na qual todos nós estamos empenhados.

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Lisboa, 10 de Dezembro de 1996.

O Presidente da CPHM

Marwel Freire Themudo Barata

General

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PROGRAMA

DO

COLÓQUIO

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6 DE NOVEMBRO

10.00 h. - SESSÃO INAUGURAL

Presidida p~r S. Ex.a o Ministro da Defesa Nacional

Oradores:

Gen. Themudo Barata

Prof. Doutor Veríssimo Serrão

Prof. Patrick ·Lefevre

Ministro da Defesa Nacional

Nesta sessão será entregue o Prémio Defesa Nacional, 1994.

11.15 h. -1 SESSÃO

Moderador : Prof. Doutor João Marinho dos Santos

- Cor. Carlos Bessa João Fernandes de Leão- criador de cúlades na Venezuela

- Prof. Doutor António Pedro Vicente Dois estudos militares portugueses esquecidos na primeira

reforma do Séc. XIX

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lj.30 h. - II SESSÃO

Moderador: Almirante Rogério de Oliveira

- Dr.ª lsilda Braga Costa Monteiro O Registo da memória na organização militar

- Prof. Doutor Fernando Castelo Branco Chaves Militares estrangeiros ao serviço de Portugal. Será de aceitar a visão de Oliveira Martins?

16.00 h. - III SESSÃO

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Moderador: Almirante António Sousa Leitão

-Dr. João Gouveia Monteiro A Campanha Anglo-Portuguesa em Castela -1387

- Dr. Abel dos Santos Cruz O Saque em Marrocos: 1415-1471

- Prof. Doutor António Dias Farinha Comunicação a publicar oportunamente

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7 DE NOVEMBRO 1

09.30 h. - IV SESSÃO

Moderador : Prof. Doutor António Borges Coelho

- Gen. Silvino Cruz Curado O Gen. Bohm no Brasil

- Dr.ª Patrícia Drummond Ferreira À importândih do fabrko do .material de artilharia em Macau na primeira metade do séc. XVII

11.15 h. -V SESSÃO

Moderador: Prof. Doutor Luís Adão da Fonseca

- Cmdt. Fernando Gomes Pedrosa Portugueses em Armadas Estrangeiras no Mediterrâneo

- Prof. Doutor António Ventura Militares Portugueses no exército de D. Carlos (1834· 1839) - o outro úzdo da 1 Guerra Carlista

14.30 h. - VI SESSÃO

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Moderador: Prof. Doutor Manuel Braga da Cruz

-Cor. Luís M. Alves Fraga Os combates da lnfantari.a Portuguesa em França-1917--1918

-Dr.ª Isabel Pestana Marques À correspondência de Guerra e a vivência nas trincheiras da Flandres

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16.00 h. - VII SESSÃO

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Moderador: Prof. Doutor Justino Mendes de Almeida

- Cap. José Manuel Alves Quintas Uma década de parriici"pação portuguesa na OTAN, 1951--1961

- Prof. Doutor Severiano Tei:xeir~ e Dr.ª Isabel Alexandra Ferreira Nunes Portugal e as Operações de Paz nas Nações Unida3

- Prof. Doutor António José Telo Dos Pirinéus a Angola: a Política de Defesa Nacional ao longo dos Anos 50

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8 DE NOVEMBRO 1

09.30 h. - DISCUSSÃO E COMENTÁRIOS FINAIS

Moderador: General António de Jesus Bispo

- Proí. Doutor Zeng Shi-Xiu Co.numi,cação a publicar oportunamente

11.00 h. - SESSÃO DE ENCERRAMENTO

Presidida por Sua Excelência o Almirante CEMGF A

Oradores:

Gen. Themudo Barata Proí. Doutor Humberto Baquero Moreno Almirante CEMGF A

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SESSÃO

INAUGURAL

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A NOVA HISTÓRIA MILITAR

Gen. MANUEL THEMUDO BARATA

Desrle o início, a sessão inaugural destes Colóquios, tem contado com a honrosa presülência de Sua Excelência o Ministro da Defesa Nacional.

No corrente ano, apesar de recentemente empossado, o novo titular da pasta logo se disponibilizou para aqui vir. E tal só não sucede, porque compromissos internacionais o fazem, hoje, estar ausente do país. Contudo, como sinal de consiileração que muito nos desvanece, designou para o representar a Sua Excelência o Almi­rante Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas.

Ao saudá-lo, pois, Senhor Almirante, não somente lhe peço que transmita a Sua Exoelência o Ministro o nosso agradecimento pelo apoio que assim nos manifesta, como, pessoalmente, desejo teste­munhar a Vossa Excelência o mais vivo reconhecimento da Comissão a que presülo - e o meu próprio - por tantas provas de apreço e de interesse, de que esta, aliás, é mais um exemplo.

Cumprimento respeitosamente o Senhor Embaixador da Bélgica que ao ter conhecimento da presença neste Colóquio, como convi­dado de honra, de um compatriota seu, de pronto aceitou o nosso convite. Muito obrigado por este vosso gesto de amizade e gentileza.

Dirijo uma especial saudação às Altas Autoridades Militares, aos Senhores Reitores, Pmsiilentes das Academias e Instituições Cul­turais, bem como a tantas ilustres figuras dos nossos meios universi­tário, cultural e militar que se dignaram comparecer a esta sessão. Uma palavra de particular gratidão é devida ao Senhor Professor Veríssimo Serrão que, mais uma vez, e com a sua sempre total dispo­nibilidade, tomou a seu cargo a lição inaugural.

Por fim, além do meu cumprimento amigo, quero exprimir o TMU júbilo por termos entre nós o Professor Patrick Lefévre,

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3ecretário-geral da Comissão Internacional de Hi3tória Militar e da Comissão Belga. O nosso convidado de honra tem de3envolvido no seio da nossa organização internacional um trabalho do maior mérito e efidência, o que bem se traduz na sua recente ree"leição para um próximo quinquénio. Trata-se de um reputado especialista em mu­seologia. Para resumir quem e"le é, bastaria lembrar a excepcional exposição que organizou, e que neste momento está patente em Bruxefus, no Museu Militar, de que é Director.

* * *

Como se sabe, a nossa Comissão é jovem, muito jovem. Melhor dito, é ainda criança, pois conta apenas 6 anos de idade. Lembro-o para acrescentar que este é também o número de ordem do presente colóquio. Quer dizer, um colóquio em cada ano - e colóquio já por todos esperado, e com lugar cativo, na primeira quinzena de Novembro.

Não trago este facto para falar de nós nem do esforço feito para pôr de pé e consolidar tal iniciativa. Sirvo-me de"le, isso sim, para uma breve reflexão sobre a história militar no nosso mundo em acelerada mudança, sobro a sua actualidade e suas perspectivas, tanto internacionalmente como a nível interno.

Há pouco tempo, um autor japonês publicou um livro que teve grande eco em Portugal e onde, logo no título, se debruça sobre o ccO Fim da História». Considera esta, em nossos dias, comandada por duas forças que a impe"lem paro novas direcções. Dá como pro­vado, igualmente, que «nas últimas gerações ... tem havido um movi­mento de afastamento da história diplomática e militar» (1). Em defesa da sua tese, estabelece uma ligação de causa a efeito entre a evolução do homem, no sentido da democracia e do progresso, e o tal apagamento, afirmando expressamente que este tem a ver com a ((consciência mais recente e igualitária)) e), das sociedades contem­porâneas. Isto explicará, ainda, segundo o mesmo autor, o surto de interesse por novas formas, como a história social, a história das mulheres, a história das minorias ou a história do quotidiano.

Embora esta última parte do seu raciocínio seja correcta - e até evidente - penso oportuno um comentário no que toca a situaç<io actual da história militar.

( 1 ) Francis Fukuyama, «O Fim da História e o "último Homem», tradução ;portuguesa, Gradiva, Lisboa, 1992, pág. 148.

( 2 ) Idem, idem, idem.

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O quadro que retrata pode ser considerado verdadeiro, se por «Últimas gerações» entendermos, apenas, as gerações passadas, e não a presente. De facto, assim foi em todo o mundo até ao período de rescaldo da II Guerra Mundial. E, em Portugal, assim foi também até data um pouca !mais recente. Mas, assim deixou de ser, tanto no estrangeiro como entre nós, a partir destes pontos de viragem.

Com efeito, daí em diante, o panorama mudou radicalmente. A história militar não pára de crescer - agora, é certo, uma história militar entendida em termos modernos. Antes de mais, uma história em que o estudo da guerra deixou de ser unilateral, o que conduzia a uma visão distorcida da realidade ; pior, ainda, a uma exaltação por vezes perniciosa de feitos, de méritos e de heróis. Depois, uma história militar que deixou de ser só técnica e passou a ser global: quero dizer, a implicar o concurso das outras formas de história, em pé de igualdade com o estudo dos as[Jectos especificamente mili­tares da guerra.

Neste novo cenário, a história militar encontrou o terreno pro­pício que lhe faltava e, em curtos anos, surgiu como uma árvore pujante. A nível internacional, ob11igou ao encontro entre os histo­riadores militares dos diferentes países, que antes se olhavam e faziam história como rivais, mas agora, em conjunto, têm de analisar sem paixão os factos e documentos das duas partes que uma guerra sempre comporta. A nível interno de cada país, congregou, em torno da história militar, os historiadores das várias áreas deste ramo do saber com os especialistas militares que se dedicam ao estudo da guerra. Por outros palavras, empenhou a universidade no estudo da história militar.

Comprovam este seu renasoor, primeiro, niío só a criação da Comissão Internacional de História Militar como, sobretudo, a fase de crescimento que atrovessa. Depois, o número e a qualidade das obras que se publicam em dezenas de países espalhados pelos cinco continentes sobre temática histórico-militar e que enchem sucessivos volumes anuais publicados por este organismo internacional - e onde o nosso país sempre aparece em boa posição. Por fim, mais que o reaparecimento da história militar no currículo dos cursos universitários das mais prestigiadas escolas de todo o mundo, é signi­ficativo o cerscente interesse com que esta matéria é acolhida pelas novas gerações.

Atendo-me ao que se verifica em Portugal, trarei exemplos tão concretos como claros. De há uns anos, a abertura das nossas univer­sidades a teses de mestrado e de doutoramento, cuja qualidade, mais ainda do que a quantidade, cresce com rapidez. Mais recentemente,

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a inclusão da história militar como disciplina de mestrado na Facul­dade de Letras da Universidade de Lisboa. Por último, o exemplo mais próximo, são est,es mesmos colóquios - cada vez mais ligados à univers-idade e com um número cresoont,e de inscrições de jovens já diplomados ou prest,es a consegui-lo.

*

Há um ano, o tema que aqui nos reuniu, foi Tordesilhas e a sua importância para que surgisse esse imenso Brasil. Tivemos connosco dois ilustres historiadores do país irmão. E houve, assim, oportunidade para estreitar ainda mais os já apertados laços que nos uniam ao ambient,e histórico-militar brasileiro. Deste encontro nasoou, aliás, a realiza,ção no Rio de ]aTWiro dum Simpósio sobre o mesmo t,ema, organizado pelo Instituto de Geografia e História Militar do Brasil e para o qual foram convidados três membros da nossa Comissão. A unidade que hoje exist,e no sentir, no pensar e no trabalhar das nossas duas Comissões, tenho-a como um dos frutos mais promissores para o desenvolvimento e projecção da história militar de ambos os nossos países.

Pelo que traduz de apreço por Portugal e pela riqueza do seu passado, registo como última nota acerca da actividade desenvol­vida no ano académico findo, a eleição de dois merrib-rcM da nossa Comissão para tarefas no seio da Comissão Internacional de Históri.a Militar: um, eleito para o bureau directivo, ao nível de vice-presi­dent,e da mesma, durante o próx~mo quinquénio; e, outro, como vogal do Comité de Bibliografia. E qualquer deles com o especial encargo de desenvolver a presença da Comissoo lnt,ernacional em toda a América Latina.

* * *

Procurei ser breve e queria t,erminar. Mas falta-me ainda, dizer o que é o VI Colóquio de História Militar e o porquê do t,ema escolhido.

A partir de agora, e sempre que razões especiais não imponham o contrário, é nossa int-enção escolher temas para cada Colóquio que permitam a int-ervenção de historiadores das diferent,es épocas histó­ricas. Isto é, assuntos que atravessem transversalment,e o tempo,

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que vão do medi.eval ao con,temporâneo, permitindo comunicações de especi.alistas de qualquer dessas áreas históricas.

Pela sua actualidade, neste VI Colóquio, optámos pelo estudo da presença de forças e militares portugueses fora do território nacional e, inversamente, de forças e militares estrangeiros em Por­tugal, tanto em operações como em actividades militares de outro tipo. É sem dúvida, tema demasiado vasto para tão pouco tempo. Mas, interessou-nos, sobretudo, chamar a atenção, e a futura cur.io­sidade de outros, para aprofundar o assunto.

Seguindo o que dispõe o respectivo regulamento, o Prémio Defesa Nacional deve ser entregue na mais relevante manifestação C':ultural realizada no âmbito das nossas actividades. Por isso, mais uma vez, hoje, aqui assim sucede relativamente ao ccPrémio Defesa Nacional-1994 ».

É sempre difkil e ingrato ser júri. E eu sei-o bem -por expe­riênci.a própria de a ele presidir desde a primeira hora. Sem des­douro para todos os outros trabalhos que consideramos bons - e bons, sem favor, e aqui o digo em público - tivemos que escolher o que julgámos melhor : um trabalho onde há originalidade e rigor ci-entífico, onde a documentação é não apenas vasta como em grande parte inédita, onde a guerra é olhada na visão global das suas mais importantes facetas, onde, enfim, se abrem perspectivas novas para quem se queiro vir a debro,çar sobre aquele importante facto da nossa história militar contemporânea. É trabalho, ainda por cima, escrito em bom português. Felicito calorosaJmente o seu autor e só lhe lembro que, após a brilhante tese de doul!oramento, muito mais espera de si a história e, em particular, a historiografia militar portuguesa.

* * •

Mesmo antes de se iniciar, tenho a certeza de que este VI Coló­quio tem o seu êxito antecipadamente assegurado. Garante-o a qua­lidade das comunicações apresentadas e a experiência, e envergadura intelectual, dos moderadores que aceitaram tão importante tarefa. E, claro, garante-o a presença, atenta e interventora, da qualificada assistência às sessões que prolonga e dá vida ao debate iniciado com a exposição inicial de cada conferente.

A todos agradeço a sua colaboração. E o crédito - mas, tam­bém, a responsabilidade - que assim nos dão.

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É que o tempo não pára, 1998 está quase à porta. E nesse ano, já à vista, este pequeno co-lóquio irá transformar-se no XXIV grande Congresso Internacional de História Militar, que se realizará em Lisboa e cuja organização está a nosso cargo.

A alguns parecerá que, à distância de quase 3 anos, é aináa cedo para falarmos disso. Nós, por~m, vemos a situaçã.o doutro modo: já não dispomos de 3 anos para pôr de pé tão grande tarefa - para mais inserida num ano cmnemorativo, em que a atenção do mundo culto se volta para Portugal.

Confiamos - melhor, estamos certos - de que até lá conti­nuará a crescer entre nós a História Militar. E que, nesse ano de 1998, estaremos à altura de omb-rear, no número e na qualidade, com tantos e tá.o ilustres historiadores militares que virão a Portugal..

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A ORGANIZAÇÃO MILITAR NOS FINS

DA MONARQUIA

Prof. Douror JOAQUIM VERÍSSIMO SERRÃO

Mais uma vez a Comissão Portuguesa de História Militar orga­niza um Colóquio no âmbito da sua especialidade. Louvores são devidos aos seus dirigentes, na pessoa do Exmo Senhor General Manuel Themudo Barata, que com tanta dedicação e ·competência vem animando estes eventos de História Militar. Aproveito o ensejo para também saudar as ilustres autoridades presentes, assim como os participantes no VI Colóquio em que tenho a honra de colaborar.

No ano de 1884, a organização do Exército estabelecera quatro divisões no Continente, sediadas em Lisboa, Porto, Coimbra e Évora. Para facilitar a tarefa do general-chefe de cada região, criou-se o cargo de segundo-·comandante, a quem cabiam missões específicas de superintender na disciplina e instrução das tropas e de verificar o cumprimento das ordens superiores: <<para mais facilmente se poder emendar qualquer prática abusiva». Mas a experiência mos­trou não ser vantajosa a medida, pelo que em 1895 se determinou subdividir ca·da uma ·das quatro divisões em outras de ordem ime­diatamente inferior. Ao mesmo tempo criaram-se comandos de bri­gadas, para que cada corpo militar sentisse mais de perto a acção permanente de um imediato superior: ccpara que em cada divisão nenhuma autoridade possa legalmente intervir em assumptos que intimamente se liguem com a disciplina e regimen das tropas>>.

O Continente era dividido em quatro divisões militares terri­toriais, compreendendo cada uma os seguintes distritos de recruta­mento e reserva :

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BRIGADAS CORPOS QUARTEL-GENERAL

l.ª Caçadores 1 e 5, Infantaria 5 e 11 Lisboa 2.ª Caçadores 2 e 6, Infantaria 16 Lisboa 3.ª Infantaria 1, 2 e 7 Lisboa 4.ª Infantaria 9, 14 e 24 Viseu 5.ª Infantaria 12, 21 e 23 Guarda 6.ª Infantaria 6, 18 e 20 Porto 7 .ª Caçadores 7, Infantaria 3 e 8 Braga 8.ª Caçadores 3, Infantaria 13 e 19 Vila Real 9.ª Caçadores 8, Infantaria 4 e 22 Abrantes

10.ª Caçadores 4, Infantaria 15 e 17 Faro l.ª Cavalaria 2, 4 e 9 Lisboa 2.ª Ca·1alaria 1, 3 e 5 Estremoz

Por esta reforma extinguiam-se os lugares de segundo-coman­dante de divisão, assumindo o comando no seu impedimento o general de brigada mais antigo na mesma divisão. O comandante do corpo de Estado-Maior e os inspectores-gerais de cavalaria e de infantaria passavam a chamar-se comandantes-gerais. Os corpos de infantaria e de cavalaria do Continente formavam brigadas cujo comando pertencia a generais de brigada ou a coronéis ·da respec­tiva arma. O corpo de Estado-Maior seria dirigido por um major de qualquer das armas do Exército, desde que habilitado com o refeddo curso. Mas admitia-se que fosse nomeado para o cargo um capitão de reconhecida competência.

O Decreto de 28 de Maio de 1890 facilitava a admissão de indivíduos da classe civil na 1carreira militar. Para o efeito, o Minis­tério da Guerra estabeleceu um regulamento para exercícios de tiro ao alvo, prevendo a construção de zonas próprias para esse fim. Um novo regulamento veio a ser assinado em 18 de Agosto de 1893, determinando que houvesse caneiras ·de tiro de guarnição ou regi­mental, abertas também aos civis e militares na reserva. Os exer­cícios efectuavam-se aos domingos e dias santos, durante todo o ano, nas cidades de Lisboa e Porto, e nos meses de Maio a Outubro nas restantes localidades. O ingresso na carreira era gratuito para todos os indivíduos, qualquer que fosse a sua fortuna ou posição social, mas 1devendo submeter-se às regras de ensino dos seus instrutores. Eram excluídos dos exercícios de tiro ao alvo os menores de 15 anos e os que tivessem defeitos orgânicos que os incapacitassem.

Apareceram então carreiras de tiro em várias cidades e vilas. Destinada à guarnição de Elvas, construiu-se 'ª primeira em terrenos da freguesia de Santo Ildefonso, ocupando uma parte das herdades da Torre da Ovelheira e de Outeiro .da Pa,deira, que foram para o

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efeito objecto de expropriação. Seguiu-se a de Chaves, mediante a ocupação dos terrenos situados na esplanada do Castelo de S. Noutel, da mesma vila. No ano de 1907 procedeu-se ao exame das condições de segurança em que funcionava a carreira de Pedrouços, para a prá­tica de tiro ao alvo com a arma Mauser-Vergeiro. Mas, receando-se os perigos ·da sua utilização, o Governo de João Franco nomeou uma comissão ·de inquérito para apresentar um relatório sobre o assunto.

A Câmara Municipal de Pinhel decidiu em 1908 estabelecer uma carreira de tiro nacional, satisfazendo assim o desejo de vários habitantes que tinham ·concorrido ·com terrenos e donativos. O mi­nistro Ferreira do Amaral entendeu, em nome ·da coroa , louvar os doadores «por estes valiosos e patrióticos serviços». Por esse tempo buscava-se em Torres Novas construir uma carreira de tiro destinada à Escola Prática de Cavalaria. Foi n ecessário , para o efeito, pro­ceder a várias expropriações na freguesia do Salvador. Pouco depois, alargava-se a carreira de Tavira, que já se compunha de vários edifícios pertencentes ao Ministério da Guerra, para o que se expro­priaram terrenos e caminhos na freguesia de São Marcos, da m esma cidade.

Da maior importância foi o regulamento disciplinar do Exér­cito, aprovado por Decreto de 5 de Julho de 1894, sendo o gene­ral Luís Pimentel Pinto ministro da Guerra. A experiência de 20 anos mostrara a desactualização do anterior regimento , com data de 15 de Dezembro de 187 5. O artigo 1.º do novo docu mento dizia textualmente: «Todo o militar deve r egular o seu p rocedimento pelos ·dictames da religião, da virtude e da honra, amar a patria, ser fiel ao rei, guardar e fazer guardar a <Constituição política da monarchia, respeitar e fazer cump rir as leis do reino». Eram seu s deveres específicos, entre outros, os seguintes :

1.0 Obedecer ás ordens dos superiores relativas ao serviço, cumprindo-as exactamente, quando lhe não sejam ad­mitidas observações respeitosas, que só poderão ser feitas verbalmente em nunca em acto de formatura;

2.º Respeitar sempre os superiores, tanta no serviço como fóra d'elle;

3.º Respeitar as sentinelas, guardas e outros postos de ser­viço, sujeitando-se ás suas prescripções;

4.º Cumprir as ordens e os regulamentos milítwes em todos os seus preceitos, dedicando ao serviço toda a sua inteli­gência e ap-r)iáão;

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5.º Apresentar-se com pontualidade a qualquer hora no logar a que for chamado pelas obrigações do serviço, niio se ausentando d'elle sem a devida auctorização;

6.º Submeter-se promptamente ao castigo ~mposto pelo supe­rior e cumprilo como lhe for determinado;

10.º Não se apoderar ilegitimamente de objectos pertencentes a outrém ou à fazenda publica ;

11.º Não contrahir dividas que não possa pagar regularmente e sem pmjuízo da propria dignidade;

12.º Não praticar no serviço ou fóra d'elle acções contrarias à moral publica, aa brio e ao decoro militar;

14.º Não emprestar dinheiro a supe-r1ior nem pedil-o a infe· rwr;

15.º Não se valer da sua auctoridade ou do seu posto de ser­viço para adquirir lucros illicitos;

16.º Não frequentar casas de jogo nem tomar parte em jogos de azar ou quaesquer outros prohibidos;

18.º Não se embriagar e conservar-se prompto para o serviço, evitando toda a negligencia ou acto imprudente que possa prejudicar-lhe o vigor e a aptidão physica ou intellectual;

20.º Conviver beim com os camaradas, evitando rixas e con­tendas perturbadoras da ordem e contrarias à harmonia que deve haver na corporação militar.

O Decreto de 13 ·de Setembro de 1897 procedia à classificação das praças de guerra no Continente e Ilhas Adjacentes e estabelecia um novo quadro de pessoal. Eram fortüicações de l .ª classe o campo entrincheirado de Lisboa, a praça de Elvas e suas dependências e o Castelo de São João Baptista, na ilha Terceira. O primeiro abrangia as fortificações de Monsanto, os redutos do Alto do Duque, Caxias e Monte Cintra, as baterias do Bom Sucesso e da Laje, a praça de São Julião da Barra, o reduto do Duque de Bragança e todas as mais obras incluídas no sistema defensivo da capital. Quanto à praça de Elvas, tinha como d ependências os Fortes da Graça e de Santa Luzia. Eram fortificações de 2.ª classe os Castelos de Viana e de São João da Foz do Douro e as praças de Valença e de Cascais.

Os governos militares de l .ª classe eram exercidos por generais de brigada, cabendo ao do Castelo de São João Baptista o 'Comando

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central dos Açores. Os comandantes da praça de São Julião da Barra e do Forte da Graça podiam ser coronéis de qualquer arma ou do corpo do Estado-Maior. O documento estabelecia o quadro do Estado·Maior das fortificações de l.ª classe, a saber, no conjunto: 3 governadores, 2 comandantes, 3 tenentes-governadores, 3 majores­-de-praça, 6 ajudantes-de-praça, 3 comandantes de material, 3 aju­dantes-de-campo, 7 almoxarifes, 3 cirurgiões e 2 capelães, num total de 3 5 pessoas.

Deve-se ao ministro Luís Augusto Palmeirim a nobilitação do curso de Estado-Maior, de acordo com o espírito do Decreto de 9 de Novembro de 1899. Também se reconhecia não haver van­tagem para o serviço em os oficiais habilitados com o referido curso usarem uniforme diferente do da respectiva arma. A duplicação de fardas era «prejudicial à economia dos mesmos officiaes». Orde­nou-se assim que os militares com o curso de Estado-Maior deviam ostentar o distintivo na gola, ccusando em todos os actos de serviço os respectivos cordões e agulhetas». Nas alterações aos uniformes do Exército, mandadas exe·cutar pelo ministro Elvas Cordeiro, deter­minava-se quanto ao Estado-Maior: «O dólman de cotim de algodão cinzento tem os mesmos distintivos da patente do primeiro dólman, tendo porém os galões nos passadores das platinas».

Uma palavra ainda sobre a construção de fortes e quartéis. A Carta de Lei de 11 de Setembro de 1890, no seu artigo l.º, con­siderava de utilidade pública as expropriações de ten-enos e edifícios necessários para quartéis, hospitais, campos de instrução e outros estabelecimentos militares. A medida dizia respeito não apenas à construção, mas também à ampliação daqueles edifícios. Foi com base nesta disposição que, no ano seguinte, sobraçando o general João Crisóstomo de Abreu e Sousa a pasta da Guerra, se expro­priaram duas propriedades na freguesia ·do Beato, para o quartel que a Manutenção Militar estava a construir na cerca do extinto Convento dos Grilos, em Lisboa. Assim teve início uma série de obras de edificação ou adaptação para aquartelamentos.

As antigas cavalariças reais de Belém foram destinadas a depó­sito de forragens do Exército, o que obrigou a algumas expropriações no Largo da Alfândega Velha, da mesma freguesia. O edifício, a cerca e a igreja do extinto Convento de Nossa Senhora da Conceição, de Chaves, foi posto à disposição do Ministério da Guerra, para receber o Regimento de Cavalaria n.º 6. O mesmo se passou com o edifício e cerca do antigo Convento de Santa Clara, em Évora, que foi apropriado ·a quartel militar. Como a Câmara eborense tivesse desistido de fazer uma praça pública nessa zona, para o que também pedira um talhão da mesma cerca, veio o Ministério da Guerra a

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obter a parte ainda devoluta para alargamento da parada do novo quartel militar de Évora.

Na cidade da Figueira da Foz, para ampliação do quartel com duas baterias de artilharia de campanha, expropriou-se um terreno lavradio na ·paróquia de São Julião. A Câmara de Aveiro contraíra um empréstimo com o Crédito Predial Português, a fim de construir o quartel militar da cidade. Mas não dispondo de :Etmdos para saldar o compromisso, foi este assumido pelo Governo. Em Braga foi aceite a oferta de duas parcelas de t·erreno •particular no sítio de Monte de Castro, na freguesia de São Lázaro, para neles se construir um quartel de cavalaria. Considerando o pedido da Câmara Muni­cipal e da Associação Comercial de Santarém, o Govern.o de Hintze concedeu o extinto Convento de S. Domingos das Donas para instalar um aquartelamento e escolas de ensino primário, ficando as obras de adaptação a cargo do Município. Outros casos podiam referir-se sobre expropriações ou ofertas de terreno para a construção de quartéis.

Uma medida de valorização de quartéis e outros estabeleci­mentos militares que convém registar diz respeito à sua iluminação pública. Um despacho do ministro da Guerra, general Luís Pimentel Pinto, mandou constituir uma comissão para proceder aos estudos convenientes ao mencionado fim. Deviam propor-se as medidas mais adequadas e económicas para a segurança e bom funcionamento dos edifícios daquele Ministério. Incluía-se a zona das fortificações e o acesso das ruas e estradas aos aquartelamentos : <<Em todas as praças de guerra e mais pontos fortificados de caracter permanente a zona de fortificações pertence, em regra, ao domínio do Estaido. A sua propriedade é inalienável e imprescriptivel. n O foro militar não prescindia assim de salvaguardar perante o Estado os seus direitos patrimoniais.

A lealdade das Forças Armadas era a mais forte garantia do regime, pelo que não admira que houvesse um forte vínculo moral entre as duas instituições. O monarca era comandante honorário do Batalhão de Caçadores 5 e orgulhava-se de fazer parte da Comissão Consultiva da Defesa do Reino para que o progenitor o nomeara quando era príncipe. Para honrar a arma de engenharia, entendeu-se dar aos Fortes de Caxias, da Ameixoeira e de Monsanto os nomes, respectivamente, de D. Luís, D. Carlos I e Marquês de Sá da Ban­deira, lembrando os relevantes serviços que o falecido estadista tinha prestado à defesa da capital. Estendia-se a expressão de apreço à bateria da Praia, no campo entrincheirado de Lisboa, a quem con­c:edeu o nome de Rainha D. Amélia. Estes e outros testemunhos provam a vinculação da coroa à instituição militar~

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QUELQUES PROPOS «BELGES» SUR LES PORTUGAIS ET ccL'ÉTRANGER» DANS L'HISTOIRE MILITAIRE

DU PORTUGAL

Prof. Doutor PATRICK LEFEVRE ( *)

Je suis três honoré d'avoir été invité par le Général Barata; votre dynamique président, à intrnduire ce colloque consacré par la Commission Portugaise d'Histoire Militaire aux militaires portugais à l'étranger et aux militaires étrangers au Portugal depuis le XIIe siecle.

Belge et historien de la période contemporaine, ma mauvaise connaissance '4e votre pays et des XVe et XVle siecles me permet, en ahordant son histoire sans a priori, de vous faire part de quelques propos peuvent éclairer votre débat d'aujourd'hui.

Venant d'un pays, la Belgique, dont l'indépendance n'a été proclamée qu'en 1830, je me suis tout d'ahord demandé pourquoi vous aviez choisi le Xlle siecle comme point de départ de ce colloque. La réponse fut rapiidement évidente : le Portugal est, depuis la fin de la reconquista et la victoire en 1095 du roi Henri sur Alphonse VI de Castille, un pays indépendant délimité par des frontieres inchan­gées depuis 900 ans !

Comparé à la Belgique, passage ohligé de nombreuses guerres, le Portugal apparait comme un ilot de paix, efficacement protégé depuis le Xlle siecle ·par l'Atlantique, ses diplomates et ses mili­taires !

Exception faite de sa participation au XIVe siecle à la guerre de Cent Ans et à son intervention en 1916-1918 au cours de la Premiere Guerre Mondiale dans les Flandres, le Portugal ne par­ticipe pas volontairement aux guerres européennes.

(*) Secretaire Généra'1 CIHM.

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Votre pays n'est pas davantage une terre de guerres civiles. La révolution de 1974-1975 se regle sans violences, et, exception fait des années 1820 à 1850, point ici de déchirures internes compa­rables à celles de l'Espagne.

La paix plutôt que la guerre n'est-elle pas en définitive la caractéristique du •peuple portugais?

Reste à savoir ce qu'il faut entendre par Portugal: à partir de quel moment, jusqu'à quel moment et dans quel contexte peut-on dire que les Portugais se ba ttent à l 'étranger?

Du début du XVe à la fin du XX:e siecles, le Portugal s'étend en Afrique, en Asie et en Amérique. Une fois l'Empire acquis, que défendent les soldats portugais? Leur mere-patrie ou des conquêtes extraportugaises par définition temporaires?

Qu'est-ce, par exemple, que le Brésil de 1505 à 1808? Un morceau de territoire portugais ou un pays étranger ou vivent et combattent des Portugais? Et le Portugal entre 1580 et 1640? Une Nation qui a perdu son indépendance et est occupée par l'ennemi ou une région qui appartient de maniere plus ou moins consentante au royaumed'Espagne? La guerre en Angola, en Guinée­·Bissau et au Mozambique: une guerre civile à l'intérieur des fron­tieres portugaises ou une guerre extérieure avec un engagement à l'étranger de troupes po:rtugaises?

Depuis 20 ans, les temps sont autres. L'ONU, l' OTAN et l'UEO sout désormais le cadre ·d'activités des :militaires portugais combattant à l'étranger et des militaires étrangers combattant avec les Portugais. Des associations internationales, ou votre pays, le Portugal, et mon pays, la Belgique, sont heureusement étroite­ment liés !

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SESSÕES

DE

TRABALHO

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JOÂO FERNANDES DE LEÃO, CRIADOR DE CIDADES NA VENEZUELA

Cor. CARLOS BESSA

(Hermano Nectário Maria, Edición Facsimil - Homenagem do Congresso da República à Cidade Quadricentenária de Guanare, Caracas/Venezuela/1991)

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João Fernandes ,de Leão nasceu pelo ano de 1543 em Vila Nova de Portimão. Considera-se seguro este último dado acerca da naturalidade, pois, embora não se disponha do registo de nasci­mento, o próprio o confirma em declarações oficiais proferidas no ano de 1580. Nelas fala de uma infância feliz na terra natal e na frequência da sua escola infantil, tendo por companheiro e amigo Vicente Belo, 'que como ele emigrou para a Venezuela.

Um seu biógrafo, Nectário Maria, acrescenta pertencer ·a família de elevado nível social e invejável fortuna, embora a documentação não seja abundante nem muito esclarecedora sobre ·a matéria.

Em 1549, tinha portanto seis anos, seus pais seguiram com os nove filhos para Cádis, levando os bens que possuíam. Aí se fez homem João Fernall!des e , em 1564, embarcou no navio Santo António na mira de fazer fortuna na América do Sul. Ia munido da licença da Casa de Contratação de Sevilha e levava consigo seis escravos negros de que era dono e senhor.

Ao chegar fixou-se em Borhurata e lá veio a casar com a filha do seu Tenente-Governador, D. António de Barrios, e a ser nomeado escrivão do Governo e do Cabido da Cidade (1).

No final de 1566 o Governador da Venezuela, D. Pedro Ponce de León, incumbiu o Capitão D. Diego de Lozada ,de vencer a resis­tência dos índios de Los Teques chefiados pelo- poderoso cacique Guaicaipuro que dominava muitas tribos, designadamente a dos caracas, e de pacificar a região do centro da Venezuela. Expedições anteriores tinham fracassado perante a resistência encabeçada por Guaicaipuro ( 2 ).

Na carta enviada à Sacra Católica Real Majestade, como escre­veu, datada de 15 de Dezembro de 15 6 7, Pedro Ponce de León esclarecia que à sua chegada achava os vizinhos nela existentes muito fatigados ansy de corsários (franceses e escoceses) coimo de los lndios de las Províncias de Caracas, fortalecidos por inúmeras vitó­rias obtidas e muitas mortes causadas. Definia como objectivo desses índios hostis destruir o povo e o porto de Borburata e matar os vizinhos que ali viviam, pois, se assim acontecesse, ficaria a gover­nação privada do único porto a possibilitar a provisão dos vizinhos dos escassos cinco povos existentes terra adentro. Atribuía, pois, grande importância à empresa de restabelecer os dois povos ·des-

( 1 ) Maria da Graça Mateus Ventura, Os Portugueses no processo de colo­nização da América Espanhola. O caso de Guana.re (Venezuela), in Cadernos Históricos, V volume, Comissão Municipal dos Descobrimentos, Lagos, 1992, pp. 65 a 68; Hermano Neotário Maria, Juan Fernandez de Leon. Fundador de Guanare, Congreso de la República, Caracas, 1991, pp. 13 a 15.

( 2 ) Hermano Nectário Maria, ob. cit., p. 15; Miguel Angel Mudarra, História General de Venezuela, Editorial Biosfera, Caracas, 1983, pp. 40 a 45.

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truídos e de criar outros dois, tanto mais que corria fama de haver ouro nessas terras e).

Lozada seguiu com cerca de 150 bons soldados e a ele se juntou voluntariamente João Fernandes. A empresa tornava-se mais difícil por as tropas de Guaicaipuro se furtarem ao contacto directo com os conquistadores. Devido a isso e ao apego à terra dos resistentes nativos, a luta tornou-se muito dura e longa e).

A 25 de Julho de 1567 - o rigor desta data tem sido posto em dúvida, mas os elementos hoje disponíveis permitem admiti-la, como, a bem dizer, comprovada - Diego de Lozada fundava a cidade de Santiago de León de Caracas (" ) .

Algum tempo depois constituiu-se um forte destacamento com a missão de prender Guaicaipuro. Por surpresa conseguiu-se incen­diar a morada onde se encontrava dormindo o famoso chefe nativo, que saiu à luta batendo-se com bravura juntamente com 25 com­panheiros leais e destemidos, e nela acabou por cair morto. Tão importante baixa originou a desagregação e fez cessar a resistência, sendo vinte seis chefes de tribos condenados à morte sem piedade (").

João Fernandes de Leão interveio também na criação da Cid·ade de Nossa Senhora de Caraballeda, nas costas do Caribe, cobrindo-se de glória e recebendo por isso de D. Diego de Lozada importante «enco•mi.endan em Corocorumo e «llaTWs» de Salamanca (1).

( 8 ) Carta de Don pero ponce de Leon gobernador de Venezuela XV de deciembre de 1567. A la católica Real magestad del rey nuestro Sefí.or en su rreal consejo de las yndias, Archivo General de lndias (Sevilla). Sección V. Audiencia de Santo Domingo, in Crónica de Caracas n.º 84 Enero-Deciembre, 1990, Caracas, pp. 96 a 99.

(•) Hermano Nectário Maria, ob. cit., p. 15; Miguel Angel Mudarra, ob. cit., ~:>. 41.

(~) Hermano Nectário Maria, Dia de la Fundación de Santiago de Le6n de Caracas in Crónica de Caracas, ob. cit., p,p. 85 a 92; Demétrio Ramos Pérez, Estudios de História Venezuelana, Academia Nacional de la História, Caraoas, 1988, rpp. 283 a 351.

( 6 ) Miguel Angel Mudarra, ob. cit., p. 41. ( 7 ) J. L. Salcedo Bastardo, História Fundamental de Venezuela, Ediciones

de la Biblioteca de Caracas, 1993, pp. 69 a 73. Hermano Nectário Maria, ob. cit., p. 16. «Encomienda» foi o regime estabelecido pela Coroa Espanhola com a intenção de colonizar os aborígenes· do Novo Mundo. Era concedida aos conquis­tadores e povoadores da cidade como prémio da sua ousadia e lealdade, e con­sistia no direito, por mercê real, de obter e cobrar 1tributos aos índios que se lhes «enoome:ndavam» 'f>ara o resto da vida e com carácter hereditário. As cencomiendas» deviam cumprir obrigações legais, como cuidar dos IDdios, doutriná-los na fé cri:stã e ensiná-los a ler e escrever e treiná-los na agriculrtura e artes manuais. A Igreja vigiava o cumprimento destas obrigações, mas não conseguiu, evitar abusos e tratos da maior desumanidade, como reduzi-los a verdadeiros escravos ou animais nas minas, nas plantações e no transporte de cargas, dando-lhes péssimo alojamento e alimentação. Ver Pedro Quintero Garcia, Guanaguanare, Congresso da República, Caracas . 1991, pp. 36 e 37 e Hermínia Mendes Sereno, Guanare, Crónicas de una Ciudad Cuatricentenária, Biblioteca de Temas y Autores Portugueseiios, Colección História n.º 1, Guanare, 1993, pp. 192 a 196.

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A ele se ficou a dever a obtenção de víveres de que as tropas sentiam grande falta e necessitavam. Com um efectivo de vinte homens percorreu a comarca e, usando de habilidade e bom trato JUnto dos indígenas, conseguiu os pretendidos víveres em enorme quantidade. Foi calorosamente aclamado ao chegar ao acampamento para onde os levou transportados por índios tomados amigos ( ª).

Além disso, na busca de minas de ouro na região montanhosa a ocidente de Caracas descobriu as ricas jazidas auríferas denomi­nadas Minas do Senhor São João e de Platilla y Tiznados. Consta em informações de serviço a seu respeito ser um dos primeiros que foram e ajudaram a descobrir todas as minas de ouro. que se des­cobr.fram e exploraram e estão por explorar nesta província e).

O seu valor militar ressalta de outros dois factos ocorridos em Caraballeda.

Certa madrugada a povoação foi invadida por 300 caribes nave­gando a coberto da noite em 14 pirogas grandes. Desembarcados, saquearam-na, capturando algumas pessoas entre as quais havia duas mulheres importantes. Ao saber disso lançou-se apenas seguido por mais quatro companheiros com tamanho ímpeto sobre os caribes que estes se puseram em fuga e, fazendo-se ao mar, abandonaram os cativos ('1°).

Em 1572 os corsários franceses efectuaram um ataque à cidade de que João Fernandes era o alcaide. De um navio de guerra desem­barcaram 14 homens para a assaltarem. Reuniu a pouca gente dis­ponível e, lançando-se sobre eles, prendeu-os todos, fazendo o navio alçar as velas e retirar. Os presos enviados para São Domingos foram condenados às galés por tempo indeterminado e·).

Além da bravura, no desempenho das suas muitas e variadas funções demonstrou também possuir grande habilidade e tacto, espírito de justiça e respeito pelos direitos alheios.

Declarações por ele expressas dão uma ideia do valor dos ser­viços prestados na província até 1579: «Desde que entrei nesta Govenuu;ão, há pouco mais ou menos quin:De anos, t;enho servido Sua Majestade cormo seu vassalo muito kal, quer em cargos proemi­nentes que neÚJ tive [ .. . ] , quer na conquista, pacificação e povoa­mento desta dita província com minhas armas e cavalos e susten­tarulo muitos so:fdculos, tudo à minha custa e empenhamento, pas­&ando na c];i,r,a pacificação :muit<>s e iJmensos trabalhos, cansaços, fomes

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( 1 ) Hermano Nectário Maria, ob. cit., p. 16. (') Id., ibidem, p. 17. ( 10 ) Id., ibidem, pp. 17 e 18. (11) Id., ibidem, p. 18.

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e necessidades e defendendo a minha república de írulios c<N"ibes e de corsários e dos meus ditos serviços e dos demais conquistadores que estamos nesta provínci:a resultou ficarem povoadas esta cidade de Santiago de Léon e a de Nossa Senhora de Caraballeda e hwve­rem-se dilatados e enobrecido os reinos e senhorios <fu Sua Majestade e suas reais rendas, acrescentadas com as minas de ouro que, com muito grande risco de nossas pessoas, pondo cada dia a vida em jogo, descobrimos, de onde se tem sacado 1miito grande quantidade de ouro e ainda hoje se saca [ ... J muitas vezes eleito pa.ra os ditos cargos [ ... J que houve nesta província desde que nela entrei [ ... ] ; com os ditos cargos e sem eles sou um dos pilares da minha repú­blica e sustento-a ... » (12

).

* * *

Está amplamente comprovada a presença de numerosos Portu­gueses na colonização da América hispânica. Aventureiros ousados e cristãos novos temerosos da Inquisição, actuavam ou fixava-m-se em territórios sob domínio da Coroa de Espanha, em virtude de os trabalhos representarem compromisso longínquo e localmente mal conhecido e as fronteiras serem de difícil definição no terreno. Assim, acontecia na Venezuela do século XVI ( 13

).

O meio tropical foi sempre propício a rivalidades e invejas na luta pela vida, pela riqueza e pelo poder, suficientemente atractivos para alguns Europeus se encaminharem com destino a ambientes desconhecidos e climas insalubres e desgastantes. Por isso precon­ceitos pouco justüicáveis e pretextos carecidos de fundamento se levantaram com relativa frequência. O prestígio alcançado e os lugares ocupados pelos Portugueses na Venezuela do último quartel do século XVI originaram as invejas de alguns Espanhóis que, sen­tindo agravo por isso, os acusarem de se servirem do cargo para traficar com corsários e navios ingleses e portugueses chegados aos portos da província sem as necessárias licenças e serviços ( 14

) •

João Fernandes de Leão Pacheco, pelos altos serviços prestados, fora escolhido para diversos cargos de destaque, como vimos.

Com data de 21 de Abril de 1578, instigad·a por Espanhóis, veio a ser expedida uma Ordem Real que mandava prender todos os portugueses residentes na Venezuela sem licença expressa pelo

('") Id., ibidem, pp. 18 a 20 e 67 a 75. ( 13 ) Maria da Graça Mateus Ventura, ob. cit., pp. 59 a 65. ( 16) Id., ibidem, !P· 67; e Hermano Nectário Maria, ob. cit., pp. 25 e 26.

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Rei de Espanha, e entre os nomes denunciados constava o de João Fernandes de Leão (1.'lo).

O Governador D. Pedro Ponce de Léon já lhe reconhecera antes a naturalidade espanhola em 6 de Novembro de 1576 nos termos da lei em vigor. Ela era concedida com cctodos os direitos e privi­légios aos estrangeiros casados e com dez anos de permanência nas colónias». João Fernandes chegara a Borburata havia doze anos, casara com uma Espanhola e era pai de dois filhos nas"cidos na Venezuela e, para mais, vivera em Cádis durante quinze anos, pois ali se fixara em 1549, como dissemos C1

).

A Real Audiência de São Domingos enviou à Venezuela um delegado a .dar a execução à Ordem de Filipe II. João Fernandes de Leão Pacheco, então alcaide de Caraballeda, além dos méritos referidos, possuía uma excelente prepa:r:ação intelectual. Recebeu a notificação a 13 de Janeiro de 1579 e, quatro dias depois, perante o Tribunal do Governa·dor D. Juan Pimentel, apresentou a sua defesa, tida como notável C1

).

A informação das pessoas que nutriam ódio e inimizade pelos Portugueses fora falsa, por a cédula dever limitar-se aos que não possuíam licença para se fixarem na província, o que não era o seu caso. Deixava de ter força e valor em virtude de se basear em dados falsos e não provados, e nenhuma das demais acusações lhe dizer respeito. Havia três maneiras de o estrangeiro se tornar natural: por criança, por casamento e por Mr a maior parte dos bens fora do seu natural. Era o que acontecia consigo, e o disposto por direito comum não podia ser alterado por uma cédula. Era sabido, além disso, que os Portugueses eleitos alcaides, regedores e outros ofícios da república e conselhos eram muito fiéis e leais servidores de Sua Majestade Católica, conquistadores e pessoas honradas. Pedia pois a Filipe II que o declarasse natural daqueles reinos (1ª).

Sobre a matéria foram ouvidas 15 testemunhas, entre as quais os dois alcaides, o contador real e as mais altas personalidades de Caracas. Todos se pronunciaram em louvor de João Fernandes de Leão, que, a 13 de Fevereiro de 1579, pediu ao Governador Juan Pimentel o reconhecimento da validade das suas razões, o qual pegou no documento, beijou-o, colocou-o sobre a sua cabeça e, assinando-o, reconheceu a naturalidade e todos os respectivos benefícios ao impetrante.

(15) ld., ibidem, pp. 25 e 26. (1&) Id., ibidem, p. 28. (17) Id., ibidem, pp. 26 e 27. ( 18) Id., ibidem, pp. 27 e 67 a 76; Maria da Graça Mateus Ventura, ob. cit.,

pp. 70 e 71.

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Pela sua firme, competente e hábil defesa, o português João Fernandes, não só permaneceu no desempenho das funções de alcaide de Caraballeda, como aumentou enormemente o seu prestígio e con· tinuou a desempenhar relevante papel na colonização da Venezuela e, além disso, fez com que, desde então, os Portugueses deixassem todos de ser inquietados quanto aos direitos que possuíam (1 9

).

* * *

Dez anos depois, já unidas as Coroas portuguesa e espanhola, o novo Governador D. Diego Osório encontrou a Venezuela em lamentável estado de desorganização. Traçou como objectivos a sua pacificação e desenvolvimento. Quanto ao último, importava conquistar, povoar e colonizar os vastíssimos territórios a perder de vista dos ccllanos», as planícies a sul e sudeste de El Tocuyo, total· mente desprovidas de povoamento espanhol C'º).

A escolha para levar a cabo o empreendimento recaiu em João Fernandes de Leão. É interessante conhecer alguns passos do título de Capitão das províncias de Guanaguanare y Cerrillos, passado por D. Diego Osório em favor dele a 17 de Maio de 1591, e cujo original se encontra no Arquivo Geral da Nação em Caracas ( 21

).

Nele se declararam as razões da iniciativa. Constava haver na região muitas minas de ouro e elevado número de naturais insub­missos que atacavam os de El Tocuyo e Barquisimeto obedientes ao Rei de Espanha, matando-os, comendo-os e praticando muitos outros graves e atrozes delitos e incêndios. Impunha-se evitar tais danos, trazer esses naturais à Santa Fé Católica, aproveitar os reinos e senhorios do soberano de Espanha e aumentar os seus reais quintos, e ainda povoar nas ditas províncias uma ou duas cidades.

Usando o discurso directo, o Governador ,dizia ter confiança e muita satisfação de João Fernandes de Leão, vizinho e «encomen­dero» da cidade de Santiago de Léon e um .dos principais conquis­tadores e povoa,dores das províncias de Caracas e de Cumanagoto

('19) Hermano Nectário Maria, ob. cit., rpp. 28 e 29. (2º) Id., ibidem, pp. 31 a 33; Cipriano Herédia Angulo, Discurso de Ordem

na Sessão Solene do Congresso da República em Comemoração do Quadric&i­tenário da Fundação dia Cidade de Guanare, Oongresso ida República, Caracas, 1991, p. 7; Pedro Quintero Garcia, ob. cit .. rp. 18; Alfredo Gomez Alvarez, La Pequena História de la Ciudad Cuadricenitenária, Congresso da República, Ca­racas, 1991. ;p. 11; Pedro José Urriola. Discurso de Ordem da Municipalidade de Guanare Comemorativo do Quadricentenárw da Ciidade, ~n Anales del Quadri­ce.ntenário de Guanare, ob. cit., pip . 48 a 66.

( 21 ) Archivo General de la Nación. Sección «Encomiendal:>"» Tomo XLVI, folio 163 vuelto y siguientes.

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que, no cargo de Juiz da Comissão Geral da Governação e noutros proeminentes, sempre procurara fazer e guardar o serviço de Deus Nosso Senhor e de Sua Majestade Católica, e assim o faria no que por ele fosse mandado e encarregado. Por isso o nomeava Capitão das ditas Províncias de Guanaguanare, Cerrillos e suas comarcas para, onde lhe parecesse, povoar uma ou duas cidades. Poderia juntar a gente necessária e mandar em toda ela, tocar caixa e alçar bandeira e nomear alferes, sargento e os demais oficiais ( 22

).

Da tarefa se ocupou João Fernandes de Maio a Outubro, reu­nindo voluntários em El Tocuyo, Barquisimeto e Carora e concen­trando cerca de 60 pessoas, entre as quais alguns Portugueses, em El Tocuyo - a mesma cidade de onde se saíra anos atrás para fundar Caracas. Como bom Capitão preocupou-se muito com os aspectos logísticos ao organizar o destacamento, provendo-o conve· nientemente de ferramentas, víveres e animais de sela e carga. Homem inteligente, animoso e hábil, conseguira reunir bens de fortuna relativamente avultados, que veio a investir quase na totali­dade na organização, apetrecho e sustento dos soldados e outros povoadores pobres, pois o erário real não concedeu a mínima ajuda à operação Cª).

No mês de Outubro o Capitão Fernandes de Leão baixou de El Tocuyo pela serrania de La Raya e outros lugares até chegar ao rio Timire, onde, segundo a tradição, num acidente morreu uma Portuguesa muito bondosa e caritativa que seguia na expedição. Pelo pesar sentido, o rio veio a chamar-se da Portuguesa e assim continua a ser conhecido ainda hoje, passados mais de 4 séculos. Veio o mesmo nome a estender-se à comarca, e depois à província e ao Estado, quando este foi criado muito mais tarde ( 24

).

No dia 3 de Novembro de 1591, rodeado de todos os que com ele seguiam, João Fernandes de Leão formalizou a fundação da primeira cidade «llanera», a do «espírito Santo do Vale de São João de Guanaguanare, hoje com o nome abreviado de Guanare ( Guana­guanare em língua indígena significa «local onde vivem muitas gaivotas»). Colocou o Capitão um rolo de madeira no centro do que deveria ser a praça e, montado no seu cavalo, perguntou por três vezes, em voz alta ouvida por todos, se havia alguma pessoa que contradissesse essa criação. De cada vez que assim falou desferiu um golpe com a espada sobre o madeiro em sinal de posse. Ninguém

(22) Herm.aino Nectário Maria, ob. cit., pp. 31 a 33 e 161 a 165. (U) ld., ibidem. 'P· 43. (24) Cit>riano Heredia Angulo, Discurso de Ordem no Congresso da Repú·

blica, in Anales del Cuatr.icentendrio de Guanare, ob. cit., pp. 29 a 44.

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o contradisse e deste modo a cidade se fundou em paz na planura de Mesas de Caracas ( z~ ) .

Acto contínuo nomeou dois alcaides ordinários, ambos Portu­gueses, Domingos de Medeiros e Brás Rodrigues Cusco. Povoou ·a cidade com índios coromotos repartidos por 26 ccencomiendas», atri­buídas aos fundadores entre os quais se contavam mais 4 Portugueses, sendo um deles Pedro Gomez de Acosta, -0 escrivão da carta da fundação da ddade, uma das poucas que na Venezuela a possuem. Passado algum tempo a cidade transferiu-se para o sopé das mon­tanhas onde começavam os ccllanos», por ser terra mais fértil e próxima dos portos ( 26

).

* * *

Os conquistadores, ao invadirem o silêncio e a solidão dos pampas, levaram consigo a crnz e a espada, o touro e o cavalo, a língua e o direito ·de Castela. Foram-lhes difíceis os começos nas

( 2õ) Hermano Nectário Maria, ob. cit., pp. 33 a 37; Maria da Graça Mateus Ventura, ob. cit., pp. 71 a 73; Cipriano Heredia Angulo, ob. cit., pp. 7 e 8 e Discurso ck Ordem in Anales del Cuatricentenário de Guanare, ob. cit., pp. 29 a 35; Hermínia Mendez Sereno, ob. cit., 'PP· 167 a 186; Alexis Marquez Rodriguez, 400 ãnos entre la desilusión y la esperanza, in Anales del Cuatricentenário {.le Guanare, ob. cit. , p . 79.

( 26 ) Hemnano Nectário Maria. ob. cit., pp. 36 a 42; Alfredo Gomez Alvarez, ob. cit., p. 11; Hernúnia Mendez Sereno, ob. oit., pp. 245 a 261. Os Cabidos coloniais tiveram import•antes funções de âmbito económico, administrativo e governativo, como a limpeza de ruas, abastecimentos, pesos e medidas, educação primária e outras. A nomeação imediata do Cabido na fundação de Guanare revestiu-se de enorme importância porque logo se criou ali um regime jurídico e uma instituição •pública. Naquele tempo não se adaptava a divisão de poderes: os alcaides e regedores exerciam indistintamente o poder do Estado. O Cabido era integrado pelos regedores que escolhiam anualmente os alcaides ordinários. Por eleição nomeavam dentro do Cabido os demais cargos do governo municipal, tais como os deputados, procuradores, curadores de defuntos, além de outros. Em Guanare havia, além disso, como cargos militares o Alferes Real, o Juiz-Mor, o Aguazil-Mor, o Sargento-Mor e o Mestre de Campo. O Alferes era o homem de confiança do Rei para julgar as questões entre os nobres. O Juís-Mor devia acrescentar o domínio territorial do Reino, demandar quem perdesse ou dimi­nuísse os bens reais, e julgar os delinquentes de maior destaque. O Aguazil-Mor vigiava o cumprimento e funcionamento dos tribunais. O Sargento-Mor era oficial, ministro superintendente, através do qual o Mestre de Campo dava ao Governo ordem de marcha, de alojamento e de combate. O Mestre de Campo, ou Ca,pitão-Mor, não era 'posto e escalão hierárquico, mas cargo temporário exercido em comissão.

Em 1591 em Guanare os Portugueses já indicados, Domingos Medeiros e Brás Rodrigues Cusco, foram escolhidos para o exercício das funções de Alcaides ordinários. Pedro Gomes de Acosta, para as de escrivão e Manuel Fer­nandes, rpara as de procurador geral. O Alferes era o biscainho António Carvajal, cunhado de Simão Pacheco, filho do Capitão de Guanare, filho este que, por sua vez, era um dos Tegedores, sendo os outros três Pedro Polanco, Bernardino Crespo e Jorge Martinez Barreto. O Aguazil-Mor foi António de Céspeda.

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terras novas e luxuriantes h~nhadas por rios caudalosos, mas logra­ram . vence.r ~s . dificuldades ..

E reveste-se de simbolismo tocante haver sido no território da Portuguesa, em forma de coração, que na Venezuela tenha nascido o culto mariano na longínqua viragem do século XVI para o XVII. No obscuro local de Coromoto, confluência dos rios Guanaguanare e Tucupido, ao entardecer sereno de um sábado o chefe rebelde teve a visão de uma formosa · senhora, caminhando sobre as águas do rio da Portuguesa e dizendo-lhe que se apresentasse aos brancos e passasse a ·ser cristão. Ao chefe Coromoto voltou a aparecer no dia seguinte a mesma visão na sua cabana. Tentou agarrá-la, mas apenas ficou com a imagem que a Senhora segurava na sua mão direita e representava a Virgem Maria. Converteu-se o chefe rebelde, e o local passou a chamar-se Nossa Senhora de CoTomoto, adoptada mais tarde como Padroeira de toda a Venezuela, tal como a cidade de Guanare, fundada pelo português João Fernandes ·de Leão, ganhou foros de centro espiritual para os Venezuelanos ( 2 1

).

Será também em Guanare que Bolívar, em cujas veias corria o sangue po'Ttuguês de João Fernandes ·de Leão, por uma neta deste haver casado com um avoengo do Libertador ·de nome igual ao dele, virá_a dar ordem em 1825 ao Vice-Presidente, General Santander. para ali se fundar o Colégio de São Luís de Gonzaga, nome mais tarde alterado para o do seu fundador, o primeiro Reitor José Vicente de Unda. A importância da decisão está em haver sido igualmente na capital da Portuguesa que se criou o primeiro esta­belecimento de ensino secundário de toda a Venezuela e, por longos anos, Guanare se tornar o maior centro irradiador de cultura ·dos povos do Sudoeste da grande nação venezuelana, e ganhar jús ao título de ccAtenas dos Llanos» ('2ª).

João Fernandes de Leão não veio a gozar, nem a ver sequer, os primeiros frutos do seu êxito e dos enormes sacrifícios e valor com que o obtivera, porque dois anos depois da fundação de Guanare e, quando preparava uma expedição para atrair os índios guamon­teses, a morte surpreendeu-o para mágoa e desgosto de parentes e

( 27 ) Felix Angulo Ariza, Discurso Histór'ico na Inauguração do Monu· menta Nacional a Nossa Senhora de Coromoto em Guanare, in Anales del Cuadri­centenário de Guanare, ob. cit., pp. 3 a 9; Alfredo Gomez Alvarez, ob. cit., pp. 53 a 56.

( 28 ) Cipriano Heredia Angulo, ob. cit., pp. 12 a 14; Alfredo Gomez Alvarez, ob. cit., pp. 25 e 26; Alexis Márquez Rodriguez, in Anales del Cuadr.icentooário de Guanare, ob. cit., pp. 81 e 82.

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de todos os povoadores. Seus restos me>rtais ficaram para sempre recolhidos na igreja que mandou erguer naquelas recônditas para­gens (29

).

* * *

As relações entre Portugal e a Venezuela são hoje em dia muito cordiais e de particular valor na política externa, quer no âmbito económico e cultural, ou de carácter bilateral, ou no mais vasto da Comunidade Ibero-Americana. Em política externa contam sem dúvida prioritariamente os mútuos interesses permanentes ou con­junturais dos negociadores, mas a existência de laços humanos e de serviços como os de João Fernandes de Leão ,podem favorecer enten­dimentos frutuosos.

Todavia, poucos portugueses conhecem este e muitos outros insignes compatriotas seus que se impuseram em terra alheia. Creio que, mesmo numa assistência tão cultivada como a que tem a ama­bilidade 1de me escutar, haveria quem não estivesse ao corrente de alguns aspectos assaz significativos acabados de referir. Essa foi a razão porque se pretendeu lembrar neste Colóquio, ilustres varões portugueses que no e ao estrangeiro prestaram relevantes serviços.

Possuidores de tantas virtudes e merecimentos, grave defeito tem marcado a longa história dos Portugueses : o 1de dissiparem muitas vezes, e num ápice, as riquezas por eles alcançadas ao longo de muito tempo -com incomensurável esforço e engenho. Nos tempos que correm será por demais arriscado esbanjar a escassez do que nos resta, e necessitamos de retemperar e fortalecer a alma nacional pelo exemplo de antepassados que tiveram de enfrentar e venceram vicissitudes e perigos maiores do que os nossos no presente.

O português João Fernandes de Leão é um deles. O seu valor pessoal constituiu a base da geminação, no presente, da cidade portu­guesa de Portimão com a venezuelana de Guanare, a primeira erguida na região « llanera » do Estado da Portuguesa, destacado centro cul­tural e santuário mariano da Virgem de Coromoto, Patrona da grande e amiga nação sul-americana.

( 29 ) Cipriano Hereclia Angulo, ob. cit., p. 9; Alfredo G6mez Alvarez. ob. cit., p. 41.

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ALORNA E GOMES FREIRE - PROPOSTAS PARA UMA REORGANIZAÇÃO MILITAR

NO INÍCIO DO SÉCULO XIX

Prof. ANTÓNIO PEDRO VICENTE

Pouco após a eclosão da Revolução Francesa os governantes portugueses constataram que as promessas dos seus ideólogos e de alguns dos seus executores, no sentido de a confinarem às suas fron­teiras, se iriam gorar. Terão, então, pensado que nos 30 anos de paz, Yividos após 1762, algo se poderia ter feito a prevenir a sua eventual quebra. Nos primeiros tempos após a brusca mutação que iria con­turbar a europa e o mundo, houve motivo para acreditar que tudo ficaria como estava. Muitos dos caudilhos revolucionários propug­navam a paz nas relações exteriores afirmando até Mirabeau que ela era a primeira condição da reforma do estado e da sua consoli­dação. A própria constituição de 1791 reconhecia como princípio: cc a nação francesa renuncia a empreender qualquer guerra tendo por fim a conquista e jamais empregará a força contra a liberdade de algum povo». Em Inglaterra Jorge III, confiante, anunciou no Parla­mento a redução dos efectivos do exército e prometeu a neutralidade a Talleyrand, ao mesmo tempo que agradecia a circunstância da França transformar o seu regime absoluto em constitucional. A sus­pensão de funções de Luís XVI, a sua posterior condenação e o ataque à Bélgica vêm demonstrar a uma europa incrédula que, em breve, tudo iria mudar.

Schaumbourg Lippe, era já uma legenda. A sua reforma num momento em que Portugal se sentira ameaçado pelas querelas do Pacto de Família, demonstrara que era possível dotar <> país de uma estrutura militar a qual, na situação tensa então criada, poderia ter-se enraizado se os governantes não a descurassem. Bem pelo contrário. Com a saída do seu executor quedou no esquecimento e até a obra escrita que a perpetuaria foi desprezada. Rapidamente

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se voltou aos tempos de D. João V. Alguns ministros de D. Maria como Martinho de Mello, Ayres de Sá, Luís Pinto de Sousa Cou­tjnho deram ainda algum indício de que pressentiam essa decadência mas as suas intenções pareciam esbater-se na mais completa inércia da sociedade lusitana.

Por morte do Conde de Azambuja, em 1782, o qual vinha rxercendo o governo das armas da corte e província da Estremadura, i;ucedeu-lhe o Duque de Lafões, espírito ilustrado e homem viajado mas, ao tempo, de idade muito avançada. Servira na Alemanha e nas guerras da unificação dera boas provas. Mais erudito que exe­cutor militar, não deixou de proceder a algumas, muito ténues re­formas que pouco ou nada modificaram a situação. As manobras militares sob o comando do tenente general Valeré em 1790, na Tapada da Ajuda ou as que, no mesmo ano, tiveram lugar no Campo da Porcalhota, sob o comando do Marechal de Campo Conde de Oyenhausen teriam, somente, servido de ornam.ento e mascarar uma organização ineficiente. O governo de algo se apercebia e é nesse contexto que o alvará de 31 de Maio de 1792 convocou uma junta militar tendo em vista reorganizar o exército. Os negócios europeus complicavam-se e algo despertava para prevenir alguma catástrofe. A junta presidida pelo Duque de Lafões e de que deviam fazer parte os generais do Conselho de Guerra, o Ministro de Guerra e todos os inspectores gerais do exército, pouco ou nada adiantaria.

Aliás todos ou quase todos os cargos superiores do sector militar estavam entregues a mercenários estrangeiros, pagos a bom preço com patentes aumentadas desde que transpunham as fronteiras e, na sua maioria, desconhecedores do ambiente, hábitos e características dos soldados que comandavam e, pior ainda, geradores de emulações e invejas entre oficiais portugueses de algum gabarito profissional o1'l quais, embora fracos em número, eram fortes nos protestos ao constatar a sua exclusão e trato inferiorizante.

A participação dos soldados lusitanos nas campanhas do Ros­silhão e Catalunha, aliados aos espanhóis, contra a França ( 1793--179 5 ) , se serviu para dar a <!onhecer os novos exércitos saídos da revolução, não deixou de patentear aos responsáveis da política nacional até que ponto urgia reformar todo o sistema militar para prevenir um futuro. Os militares portugueses intervenientes nessa expedição, naturalmente, e como vinha sendo hábito, lutaram sob o comando de um oficial estrangeiro - John Forbes Skelater.

É conhecida a situação política em que Portugal se encontrava ao infoiar-se o ano de 1796. A Espanha havia celebrado a paz com a França não cuidando da ajuda que lhe havíamos prestado, deixan-

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do-nos em situação ainda mais litigiosa com o recente inimigo. Perante a iminência do primeiro ataque de Espanha, agora coligado a França, os comandos militares sobressaltam-se. Um plano das posições que as forças de observação portuguesa deveriam ocupar, em caso de ataque, é mandado executar. É iniciada a elaboração de uma oarta topográfica da fronteira até aí inexistente, desde o Guadiana a Penamacor. Mas nada se concluía. Ao primeiro anúncio de que a paz parecia consolidar-se logo todos os trabalhos termi­navam, na esperança dum desanuviamento impossível.

Os governantes portugueses vão limitar-se, doravante, quase exclusivamente, a contratar especialistas militares estrangeiros, mer­cenários desempregados mas adestrados na escola prussiana e que, na consolidação das potências europeias, granjeavam o seu sustento. Luís Pinto de Sousa Coutinho, a partir de Julho deste ano, não faz mais do que oficiar para o seu embaixador em Londres :

«Remeto a V. S.ª incluso o Extracto do último Ofício que expediu de Madrid Diogo de Carvalho, e creio que o momento do rompimento se aproxima. Em tais circunstâncias não podemos dis­pensar-nos de cuidar desde logo em alguns Oficiais Generais experi­mentados, e de que muito carecemos : Portanto Sua Majestado encarrega a V. S.ª de lançar as suas vistas sobre alguns Marechais de Campo Alemães de boa reputação, que queiram passar ao nosso Serviço em qualidade de Tenentes Generais com o soldo de 9$000 cruzados ; e se caso parecer pouco, não nos desaviremos [ ? ] no ajuste: Parecendo próprio que V. S.ª comunicasse estas ideias a esse Ministério, e que solicitassse para o dito efeito os bons Ofícios da Corte de Londres.

Também carecemos de um Oficial hábil que sirva de General de Artilharia; de outro capaz da direcção do Corpo de Engenheiros, e finalmente de outro que tenha as qualida·des próprias de um bom Quartel Mestre General. Sua majestade incumbe muito particular· mente a V. S.ª desta importante comissão, e deseja que nos instrua sem perda de tempo, do que achar, e das condições que se exigirem por parte dos referidos Oficiais. Deus Guarde a V. S.ª Palácio de Queluz 27 de Julho de 1976 - Luís Pinto de Sousa»(').

{'1 ) ANTT, Ministério dos Negócios Estran,geiros, lv. 106, fls. 42·42v. o:Para D. João de Almeida de Melo e Castro, Enviado Extraordinário, e Ministro Ple-­nipotenciário de S. majestade à Corte de Londres.» -1796, Julho. 27. Palácio de Queluz.

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É certo que esses oficiais que a partir de agora irão ocupar os postos chave na organização militar lusitana, ostentavam valiosas folhas de serviços, conheciam como poucos as subtilezas da arte da guerra, eram experimentados e, muitos deles, briosos e denodados, procuravam dar o seu melhor a justificar os elevados ganhos exigidos e as patentes concedidas. Não possuíam, no entanto, nem poderiam possuir qualquer conhecimento do país e das suas 'gentes e, natural­mente, careciam de tempo para se adaptarem à nova situação. Simultaneamente com estes óbices outras barreiras se anteporiam à eficácia destas soluções. Efectivamente existiam outros factores e um dos mais salientes residirá na situação de subordinação a que ficavam sujeitos alguns oficiais portugueses com amplas provas dadas no desempenho de difíceis tarefas. Neste campo são paradigmá­ticas as figuras de dois oficiais, ao tempo na pujança das suas car­reiras, nas quais ambos patenteavam os mais justos louros e demons­travam a valia com que, até aí, haviam desempenhado as suas missões. Tratava-se do 3.º Marquês de Alorna, D. Pedro de Almeida Portugal e de Gomes Freire de Andrade. Ambos haviam nascido na década de 50 e encontravam-se na plenitude das suas qualidades profissionais nesse final do século em que Portugal atravessava um dos piores momentos num clima de tensão bélrea, face à expansão francesa. O primeiro destes oficiais havia adquirido a sua formação em Portugal. Sendo por demais conhecida a sua biografia não se deixa de salientar que, em 1793, com 39 anos, era coronel de cava­laria e ajudante da divisão auxiliar que combateu contra a França republicana na Campanha do Rossilhão. Gomes Freire, três anos mais jovem, nascera em Viena, ,filho de um diplomata português, fora educado de acordo com a sua condição social e preparado para a carreira das armas. Após uma brilhante actuação em parte desen­volvida no estrangeiro, regressa a Portugal em 1793 e é incorporado igualmente na divisão auxiliar que irá combater no Rossilhão. Os progressos da Revolução francesa e o permanente estado de tensão em que vivia Portugal, nomeadamente a partir da citada campanha, determinaram a vida agitada destes dois oficiais os quais, seguindo destinos profissionais paralelos e abraçando similares ideologias, encontraram ambos a morte na defesa dos seus propósitos e ideais.

Alorna, cedo se torna personalidade incómoda nos centros de decisão. Em 1797 o seu envio para o comando das tropas do Alen­tejo parece ter ficado a dever-se ao facto de certos grupos afectos à Corte desejarem afastá-lo devido às «suas opiniões liberais e à sua

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hostilidade contra a Inglaterra a que ele atribuía não sem razão uma grande parte dos males que sofria a sua pátria)) e).

Essa sua posição em que sobressai uma forte animosidade face à Inglaterra irá acompanhá-lo durante a sua existência e, até, reforçar-se. Assim se deve entender o conteúdo da carta que, em Fevereiro de 1810, escreve ao Príncipe de Neuchatel e Wagram, enquanto tenente general inspector do comando ger.al das tropas portuguesas de todas as armas da Legião Portuguesa. Alorna encon­trava-se então em Madrid e, daí, afirma a sua to~al colaboração com Napoleão para expulsar os ingleses do seu país. Esta carta acompanha um Coup d'Oeil topographique sur la maniere d'entrer au Portugal. Nessa missiva as suas derradeiras palavras são para afirmar que se crê «um ver.dadeiro português que escolhe uma operação violenta mas necessária para salvação de um país que lhe é tão querido» ( 3 ).

A determinação que Alorna habitualmente demonstrou contra a existência de estrangeiros no comando do exército português irmana-se com as posições de rebeldia que, desde sempre, havia tomado Gomes Freire. Nas campanhas do Rossilhão e Catalunha este último oficial teve, efectivamente, fortes dissidências e questiún­culas frequentes com superiores hierárquicos e colegas. É sabido que esta divisão auxiliar estava repleta, no seu estado-maior, de oficiais estrangeiros: Montmorency, 1príncipe do Luxemburgo, duque de Northumberland, general e par de Inglaterra, os condes de Chalons e Liautan e muitos outros que, além do comandante supremo, John J.'orbes, foram, pela sua conduta, muitas vezes criticadas por Gomes Freire. Este, jamais temendo perigos ou recusando a luta via, em muitos .dos· seus companheiros, a causa e detonador de vários insu­cessos. A inveja e emulação de muitos camaradas foram rastilho propício à criação de g11aves situações. Um episódio bem conhecido deu-se aí com o coronel do regimento de Olivença, Jacob Mestral. Gomes Freire foi preso, após várias tentativas para um apazigua­mento, no Castelo de Figueras. Aí continuava a invectivar o seu colega ridicularizando-o em .desenhos que ornamentavam o cárcere que lhe fora destinado. Mais tarde, ao ser repreendido por Forbes por se ter ausentado do seu posto, em vez de acatar a determinação

(12) Roger Kahn, «Les portugais de Ia grande Armée». in Arqiâvos do Centro Cultural Português, Paris, vol. I , Paris 1969. pp. 353-386.

(3) Archive Historique du Ministere de la Guerre. Vincennes (A. H. M. G. V.). Memoires et reconnaissanoes, Cartas 1356. Portugal. Cart.a de M. ?e Alorna para o Príncioe de Wagram a qual acom';>anha a Mémo1re, Madrid, 17 de Fevereiro de 18'10.

5.')

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superior, desafiou para um duelo o ajudante do general que a trans­mitira. Ainda no decorrer dessa campanha, outra convulsão marcou a vivência de Gomes Freire. Efectivamente, um relatório sobre a retirada do nosso exército, no combate de 20 de Novembro de 1794, levou-o a protestar procurando repor a verdade dos fáctos (Gazeta de Lisboa, n.º 51, Suplemento). Com esse fim escreveu a Forbes acusando um seu colega, o francês Claviere, de o haver ludibriado ao não ter em conta a sua insuficiência de conhecimento da língua portuguesa e, por essa razão, o ter levado a assinar· tal documento. Nessa carta, Gomes Freire invectivava brutalmente Claviere «ao lado de quem todo o homem de honra se envergonha de aparecer» (Jornal do Comércio, 22 / 7 / 1868 ). Na mesma missiva colocava, igualmente, em causa a actividade de Forbes, o qual contestou, pedindo ao Auditor do exército uma devassa sobre o seu próprio comportamento. O governo de Lisboa, alertado por um -0fício de Gomes Freire, dando conhecimento deste procedimento, ao mesmo tempo que pediu um conselho de guerra, determinava ao comandante em chefe a suspensão de tal devassa que o desautorizava e, simul­taneamente, mandava apresentar Freire em Lisboa. Estes aconteci­mentos não tiveram ·mais repercussão por, entretanto, terem termi­nado as hostilidades. Datado de 1795, existe um folheto, atribuído a Gomes Freire, sobre a retirada do exército, no l.º de Maio ·de 1794, no qual o autor prova as suas qualidades profissionais diante do inimigo (Mémoire raisonnée sur le retraite de l'armée combinée espagno'le et portugaise du Roussillon, effectuée sous 'les ordres du Comte de l'Union, 'le ri de mai 1794, avec un exposé des primieres opérations de la oampagne par G . .. F... officier au servi.ce de Por­tugal,) ( • ) .

Entretanto o ano de 1797 fora ultrapassado não sem grandes sobressaltos. Dois anos após, em 1799, novamente as autoridades pensam numa reorganização do exército. Desta feita é convocado o Marquês de Alorna, ao tempo Marechal de Campo, a quem se recomendou que, por escrito, exprimisse as suas ideias sobre a orga­nização que mais conviria adoptar e sobre os meios para acorrer às despesas que daí resultassem. As Reflexões sobre o sistema econó­mi-co do Exército, trabalho que então apresentou, parecem ter ficado esquecidas ao tempo e jamais aproveitadas (5). São publicadas já neste século e nelas se constata que «o único general um pouco distinto que tinha Portugal» - na opinião inscrita nas Memórias

(•) António Pedro Vicente, cGomes Freire de Andrade• in História de Portugal, dirigida por João Medina, vol. VIII, Lisboa, 1993, pp. 92-96. .

(~) Escritas em 1799 e mais tarde (1903) publicadas por Fernamlo Maia. 56

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do general Marmont ( 6 } -, elaborou um bom estudo ao raciona­lizar a sua vasta experiência e sabedoria. Também, por esse tempo, fez uma interessante memórÚl, igualmente, inaproveitada em Por­tugal. Trata-se do «Reconhecime nto militar de Abrantes e da sua influência na defesa da fronteira» datado de 22.IX.1800 cuja tra­dução se encontra nos Arquivos Militares Franceses de Vincennes ( 7

).

Nas ccReflexÕes» pretende o autor «criar meios para poder acudir às despesas de um ano de preparo e dois de guerra, sem nenhuma alteração das consignações ordinárias do tempo de paz». Estabelece a composição do exército em pé de paz de acordo com a população, configuração do reino e a forma que necessita para ser susceptível do aumento necessário em caso de guerra. Procede, igualmente, à avaliação da despesa em paz e em guerra, indicando os sectores em que se podem fazer economias durante a paz para, com essas verbas, se ocorrer às desp esas ocasionadas p ela mobili­zação e pelo estado de campanha. Considera, como de primeira necessidade, o estabelecimento de um exército «de modo que todos trabalhassem debaixo de princípios certos e com fins determinados». Acrescentava Alorna que, daí, resultaria imediatamente economia de tempo e de trabalho. Tece, igualmente, considerações sobre os qua­dros em tempo de paz, formulando como de toda a conveniência evitar ou diminuir o mais possível as perturbações causadas pela transição ao estado de guerra. Adianta a necessidade de a passagem da situação de paz à guerra se faça sem o recurso a novas fórmulas e «que a quantidade a qualidade do reforço esteja determinada de antemão por forma que uma simples ordem superior baste para se saber ao certo a repartição geral e particular que se deve executar». Julga ainda, necessário que o exército, em tempo de paz, seja trei­nado segundo princípios uniformes e «que o reforço não entre de repente, mas por partes, para que os exercitados tenham tempo de exercitar os bisonhos sem aceleração». Considera este autor que as forças totais deviam constar de três divisões formando, cada uma delas, um exército pronto de 33 000 homens e um parque de 32 bocas de fogo, além das pertencentes aos batalhões. Assim, acrescenta este especialista, «poder-se-á fazer a guerra em três pontos diferentes ou juntar as forças, em um ponto só, porque como os exércitos estão organizados, com qualquer ordem se movem facilmente».

Na segunda parte das suas «Reflexões» ocupa-se o Marquês de Alorna das questões económicas ligadas ao exército considerando

(6) António Pedro Vicente. Manuscr.Uos do Arquivo Histórico de Vin­cennes, vol. 1 (1799-1802), P·aris 1971, p. 165.

(T) A. H. M. G. V. Mémoires et Reconnaissances, Cartas, 1354, Portugal.

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que ecos principais objectivos de despesa permanente do exército são: pagar, curar, manter, vestir, armar e ensinar as tropas; além disso, devem avaliar : despesas miúdas, concerto de edifícios, baga· gens, etc., e é preciso, para entrar em contas gerais, marcar algum termo a cada um destes artigos». Elabora, igualmente contas minu­ciosas das despesas imprescindíveis, das poupanças a fazer e das modificações a introduzir no sistema económico do exército.

Logo ao dobrar do século, em 1800, nas vésperas da desgraçada e triste campanha que a história consagrou como ccA guerra das laranjas», novamente o Duque de Lafões vai pretender pôr em prá­tica uma reorganização ou, melhor, um plano geral de guerra defen­siva que deveria ser tida em conta na perspectiva da cita.da cam­panha. Reunidos os altos comandos do exército, aprovou-se um plano baseado em elementos que só com um tempo dilatado e com várias ponderações se poderia pôr em prática. Acima de tudo, as incertezas constantes do governo, as suas sempre renovadas e sempre malogradas esperanças de evitar a guerra impediram, mais uma vez, que se provesse a realização mais adequada dum plano defensivo.

As circunstâncias do ataque sofrido por Portugal, a pesada derrota que nos foi imposta pelo exército espanhol em poucos dias, a partir de 20 de Maio de 1801, são bem conhecidas. Salienta-se que, mais uma vez, os redutos mais valiosos para a defesa do país estavam entregues a oficiais estrangeiros. Nessa campanha que melhor se classificaria como a primeira invasão napoleónica em território português. Alorna e Gomes Freire estavam destacados no sector do exército destinado à defesa ao Norte do rio Douro. O Mar· quês de Alorna, com o encargo do comando das tropas da Beira, tudo fez para prover aos recursos necessários a uma boa defesa. O seu procedimento nesse tempo é explicitado numa Memória ]usti· ficativa (8). ccO Marquês de Alorna então, apesar dos poucos meios que se lhes tinham fornecido para defender-se, e que o ministro e o general o contentaram de promessas por muito tempo, todavia apoderou-se de todos os recursos possíveis, e à força de crédito aprovisionou a praça de Almeida, fez, por assim dizer, das rochas de Monsanto uma praça forte ; fez na Guarda um forte de pedra, com as casamatas talhadas na rocha à prova de bomba ; fortificou a posição de Talhadas com três redutos fechados e entrincheira· mentos; também arranjou Vila Velha, pondo o castelo, que era um monte de pedras, em estado de ddesa, fazendo flexas e trincheiras nos lugares convenientes; defendeu os arredores de Celorico, Sor·

(.S) Cit. Fernando Maia, ob. ciit., pp. XIX-XX.

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telha, etc. ; e depois de todos estes trabalhos, estabeleceu armazéns em Cardigos, Celorico, Guarda e Fundão. Pela sua economia e boa ordem alcançou donativos para estabelecer um hospital no Fundão; abriu comunicações pela retaguarda dos seus postos, para poder ser socorrido de Abrantes e Coimbra, ao todo 25 léguas de estrada suficientemente cómoda; finalmente formou um corpo de 1600 pai­sanos, que animou do maior entusiasmo por meio de uma procla­mação leal e nobre, como se pode ver no Co·rreio de Londres, onde apareceu traduzida nessa época. Se o inimigo então se atrevesse a atacá-lo, é provável que triunfasse o valor português; mas nessa época o tenente general Dol'dás foi mandado colher os louros que o marquês tinha plantado, e bem que este oficial tinha no marquês toda a confiança, cessou então neste o poder de seguir o seu próprio arbítrio. O inimigo, achando as dificuldades que lhes apresentava a fronteira da Beira, retrou-se para a parte de Badajoz, e o marquês, sem meios suficientes nem ordem para o atacar, viu desconsolado passarem diante dos seus olhos, batalhões sem cartuchame, parques sem escolta, e ficarem os seus próprios caçadores, que estavam muito bem disicplinados, privados, e ele também, da glória de combater e diminuir o número dos inimigos, que nunca podiam chegar com toda a sua força às fortes posições que o marquês tinha prepaiiado ».

Terminada a campanha, o duque de Lafões foi exonerado do comando em chefe do exército, sucedendo-lhe o conde Goltz ( 9 ).

Este novo dirigente militar escolheu para seu secretário a D. José Maria de Sousa Botelho, ccMorgada de Mateus», o qual tendo ser­vido primeiramente como militar, passara para a carreira diplomá­tica, tendo-lhe, até então, sido confia-das várias missões no estran­geiro. Para o convite a D. José Maria pelo comandante em chefe do exército português, foi tido em conta o facto de aquele diplomata ter já elaborado várias memórias relativas à organização militar.

No final de 1801 foi nomeado um novo conselho militar com­posto de nove vogais - a maioria estrangeiros ao serviço de Por­tugal - com a ordem de examinar e deliberar sobre todas as maté­rias respeitantes à constituição e disciplina do exército. As reu­niões desse conselho tiveram início em Janeiro de 1802 tendo Forhes Skellater apresentado algumas propostas. Goltz abandonava entre­tanto o país, depois de ter censurado a inobservância dos regula­mentos militares, os vícios introduzidos na disciplina do exército, as negligências e os esquecimentos no cumprimento dos deveres

( 9 ) O Conde Alexander Van der Goltz, havia servido com.o general no exército dinamarquês. Foi investido no comando em chefe do Exército Por­tuguês por carta régia de 23 de Julho de 1801.

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militares. Ainda no desempenho das suas funções propôs o resta­belecimento dos regulamentos de Lippe que há muito estavam esquecidos ou, pelo menos, não executados.

Mello e Castro, então secretário dos negócios da guerra, ordenou a impressão de três folhetos cantendo regulamentação provisona para que fossem apreciados por um maior número de oficiais as citadas propostas de reorganização do exércit-0 ( 1º ). Passaram, entretanto, mais três anos de constante tensão sem nenhuma provi­dência ter sido tomada para uma reorganização do exército, agora mais do que nuinoa, necessária e urgente. Só em Maio de 1806 algumas achegas foram acrescentadas às sucessivas e sempre incom­pletas refo:mnas que, desde o final do século XVIII, se tentaram imprimir na organização militar portuguesa.

Durante todo este trajecto temporal nada se determinou de verdadeiramente renovador. Portugal prestes a ser novamente inva­dido não se preparara limitando-se, nos momentos em que se pres­s~ntia como eminente o deflagrar do conflito, a pedir auxílio a Inglaterra a qual, assoberbada com a sua própria defesa, ia acon­selhando a preparação para a guerra e, quando muito, mediava os contratos de novos mercenários para o preenchimento dos mais elevados comandos militares portugueses.

Os dois oficiais - Alorna e Gomes Freire - que tantas provas da sua capacidade já haviam demonstrado, estiveram quase sempre arredados das decisões, embora ténues, que tent•aram as necessárias reformas. Não eram convidados nem consultados para algo que se relacionasse com o foro militar, Admite-se um sentimento de des­peito por parte de quem havia provado competência profissional e bom desempenho das missões confiadas ( 11

) • Aliás é no ano de 1806 que Gomes Freire de Andrade dá luz em Lisboa o seu Ensaio sobre o methodo de organizar em Portugal a exército relativo à população, agricultura e defesa do país. Este oficial que, como se afirmou, desenvolve a sua actividade profissional n'alguns aspectos, em impressionante paralelismo com Alorna, actuando nas mesmas campanhas, interessando-se na materialização de idênticos objectivos,

(1º) Avisos de 11 e 14 de Julho de 1803 com os seguintes títulos: Organti· zação provisionai. do exército; Instrução provisional para o comando das di­visões do exército, enquanto se não publicam os novos regulamentos; Regula­mento provisional para as ordenanças do reino e Algarve. Fez-se uma tiragem de 2.000 exemplares para cada um destes exemplares.

(ll) Parece dever-se ao Marquês de Alorna o manuscrito intitulado: Observações sobre a memoria do general Dumouriez acerca da defesa de Por­tugal, com um projecto de reorganização do exército e um plano de defesa do país. Este estudo teria sido escrito precisamente como protesto 'por não ter sido chamado à colaboração na sua reorganização. Cf. FeTIDiaildo Maia, ob. cit., p. XXV.

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sofrendo o mesmo tipo de exclusões em relação a decisões em que o seu conselho seria precioso, tornou-se o autor de um dos mais valiosos estudos, até então publicados, tendo em vista a reforma do exército.

Gomes Freire, após as campanhas de Rossilhão, com o posto de Marechal de Campo, foi nomeado Quartel Mestre General do Marquês de la Rosiere, comandante das forças do Norte do Douro quando da constituição do exército que deveria defender o país perante as investiidas espanholas e francesas de 1801. Na organi­zação do Estado Maior desse exército parece que ainda foram adap­tadas algumas das ideias constantes de um estudo de sua autoria - ccApontamentos relativos à organização do Estado-Maior do Quartel Mestre General do Exército, e dos trabalhos relativos à sua repartição», escritos em 1806 e publicados pelo barão de Wiederhold. Depois, como se sabe, não é incluído entre os vogais do conselho militar que teve lugar em Dezembro de 1801 ('12

).

Aliás em 1803, o antigo combatente havia estado envolvido em novo conflito. Desta feita, a cena ocorreu no âmbito de uma desin­teligência havida no dia do Corpo de Deus desse ano, com alguns elementos franceses da guarda policial. Anote-se que, para não fugir à tradição, o importante comando das forças policiais estava então entregue a um francês, o conde de Novion. Por esse tempo estavam bem delineadas, no ambiente político e junto dos gover­nantes portugueses, as pressões exercidas pelos sectores de influência inglesa e francesa. Aos partidos de uma e doutra nação e à acção dos seus respectivos seguidores, atribui, geralmente, a historiografia portuguesa, a origem dos incidentes ocorridos em Julho desse ano. O conflito entre regimentos nacionais e o corpo de polícia acendeu-se quando Gomes Freire deu ordem de prisão a Grosson, um ajudante francês da guarda real da Polícia. Desse facto nasceram novos tumul­tos, por ocasião de um patrulhamento, ordenado por Novion, aos fes­tejos organizados pelos soldados de Gomes Freire, no dia de Festa da Senhora da Piedade. Mortos e feridos e, para aumentar a con­vulsão, a ordem de prisão a N ovion, por parte de Gomes Freire, complicaram a situação que veio a terminar com a prisão deste oficial. Transferiu-se, entretanto, o regimento com o seu nome para Cascais e iniciou-se uma devassa. A interferência do duque de Sussex junto do príncipe regente, no sentido de louvar a atitude de Gomes Freire, ao combater as ccforças Jacobinas n, deu força ao partido inglês em que enfileirava o ministro Rodrigo de Sousa

(U) Revista Militar, vol. 8.0 , n.º 7, Lisboa 1856, p;p. 280-287.

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Coutinho. A questão permanece nebulosa e merece estudo mais profundo para interpretação cabal dos acontecimentos e das suas consequências na vida política da época. Tanto Gomes Freire como Alorna, que igualmente participou nesta querela, acabaram por ser ilibados de culpas. Tudo· leva a crer que os acontecimentos de 1803 devem ser avaliados tendo em conta a desagradável situação pro­vocada pela excessiva importância que os «partidistas» de potências estrangeiras adquiriram, por esse tempo, em Portugal (13

).

Os motivos que levaram Gomes Freire a escrever e publicar o seu Ensaio, devem associar-se ao aparecimento do trabalho sobre o mesmo assunto, devido ao Marquês de Alorna, ao despeito por haver deixado de fazer parte do conselho militar de 1801 e, por fim, aos defeitos, que os seus vastos conhecimentos lhe permitiam observar na organização elaborada pelo referido conselho. O objecto principal da sua obra, como o próprio título o indica, é a organi­zação do exército. Como, porém, o exército era então o mais pode­roso dos meios de que o país devia dispor para a sua defesa, não deixa de considerar esta, mas consagra-lhe apenas um pequeno capítulo. Naturalmente embora muitas das suas proposições não tenham cabimento na actualidade, o estudo de Gomes Freire contém muitas verdades em que ainda recentemente se poderia inspirar uma organização militar ( u ). No respectivo discurso preliminar afirma: Os princípios que devem reger a organização dum exército e servir-lhe de base consistem em combinar a sua existência com o exercício dos outros ramos de administração pública, de sorte que todos os cidadãos aptos pela sua idade e constituição física para combater, possam armar-se e estar prontos no momento necessário para defender o estado, que nas circunstâncias ordinárias terá em armas só o número de homens precisos para manter o sossego do e~tado, podendo os restantes, «conforme as suas diversas classes, ocupar-se nos diferentes empregos da República, e particularmente em aumentar por via da agricultura o seu estado florescente» (15

).

Em apoio desta afirmação em que se encerram os princípios mais tarde diferentemente designados - serviço militar obrigatório, recrutamento regional, licenciamento do exército, instrução periódica

(11) António Pedro Vicente, art. cit. in ob. cit. (H) Alfredo Pereira Taveira, «A defesa de Portugal», Summario Histo­

rico (1640-1815), Lisboa, 1906. Aqui se analisa no seu estudo com bastante pormenor o «Ensaio» de Gomes Freire (págs. 161 e segs.). Seguimos na análise desta importante fonte algumas das observações deste autor.

(1~) Di.scurso preliminar, p. IX.

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das reservas, etc. - cita Gomes Freire a constituição militar dos romanos, dos gregos e, mais modernamente, dos suíços. Aí também estabelece a necessidade de adequar a força do exército, a proporção das diversas armas e a sua táctica, à topografia do país, extensã-0 e qualidade das fronteiras e índole do povo. N' outro trecho do seu Ensaio afirma Gomes Freire : cc Um país montanhoso, cortado de rios e pântanos, o qual por este motivo oferece poucas planícies extensas, e a cujo interior não se pode chegar senão rodeando vários obstáculos e atravessando desfiladeiros, carece para sua defesa de um exército muito menos numeroso, que aquele cujas fronteiras abertas e multiplicadas planícies pedem, para se guardar, várias praças de primeira e segunda ordem, e consequentemente corpos avultados, tanto para as guarnecer, como para segurar a sua mútua comunicação com o exército e o interior do país ... » (1.i). Nessa linha de pensamento conclui que Portugal, por ser um país mon· tanhoso, deve constituir o seu exército de maior número .de corpos de tropa ligeira, do que de linha. ccConsequent•emente as suas evo­luções devem ser em grande parte próprias à Arma dos primeiros, e será desnecessário cansar a tropa em ensinar-lhes todas aquelas que são tendentes a desenvolver e meter em batalha cinquenta mil homens postos em várias colunas, e a fazer marchar no mesmo alinhamento as suas diferentes divisões, pois que não só a defesa do país escusa a reunião de semelhante número de corpos, mas também estas evoluções são pouco análogas à configuração do mesmo» (1 1

).

Dada a grande influência da natureza do país na organização da sua defesa, oferece-nos este autor uma notícia da situação das montanhas, dos rios e das costas marítimas do reino, para concluir que de acordo com a sua direcção as montanhas que a natureza deu a Portugal, o dividem da Espanha, de norte a sul, em várias cccordas» paralelas, e que aí se estabelece a linha de defesa geral cc parecendo que as colocou nesta direcção para serem outros tantos baluartes», que deviam dificultar ao inimigo a entrada em Portugal. Gomes Freire considera a divisão, entre as províncias, provocada pelos rios e pelas montanhas, destinada a constituir cada uma das mesmas províncias relativamente aos pontos de ataque e de defesa, ccem um teatro de guerra separado e independente do das outras» (1ª). Será pois lógica a sua afirmação sobre a necessidade da existência em ca.da província de um corpo de tropas diferente e independente

(te) Capítulo II, p. 9. P') Capítulo VIII, i;>. 147. ( 1<1) CapítuJo 111 p. 11.

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dos outros. Considera ainda que estes corpos devem ser calculados tanto em razão da sua popuJ.ação, como da sua linha de defesa, e dispostos em quartéis permanentemente escolhidos de modo que possa empregar-se a maior parte das tropas na agricultura, sem por isso deixarem de imediatamente pegar em armas quando fosse pre­ciso, não só para defenderem. a sua província, mas também concor­rerem para a linha da defesa geral.

Calcula que 1a força armada de Portugal deveria ser de 100 000 homens, divididos em primeira, e segunda dasse, conforme os corpos ficavam em serviço efectivo ou prontos a 11Ulrchar, isto é da reserva. Além dessas duas classes de corpos, as ordenanças, então existentes, deviam ser organizadas de modo que pudessem imediatamente efec­tuar uma "leva em massa.

Elabora, seguidamente, observações necessárias para se deter­minar o método de fazer as "levas que devem constituir a força do exército (o recrutamento), e a proporção das diferentes armas segundo os princípios que estabeleceu, bem como o número e qua­dros dos seus corpos. É bastante original o' método que propõe para a distribuição do exército ao longo das fronteiras e das costas marí­timas de Portugal. Devem organizar-se os corpos do exército, segundo Gomes Freire, de modo, que cada vila ou cidade constitua, conforme «a força da sua população, um ou mais batalhões ou regimentos per­tencentes à 2. ª classe : que as al.deias e os lugares mais pequenos formem por si companhias, as quais constituem batalhões, e que, se a população das ditas aldeias ou lugares for tão pouca que faça necessário o formar-se entre várias uma só companhia, esta fique distribuída de modo que a reunião de todos os respectivos contin­gentes se possa efectuar em menos de uma hora. O mesmo se obser­vará no que diz respeito às distâncias de uma companhia a outra, pelo que se devem determinar tanto as companhias dispersas, como batalhões, regimentos e briga·das, pontos individuais de reunião, cuja distância já mais chegue a ser maior de légua e meia nos quartéis de infantaria, e de duas e meia nos de cavalaria, escolhen­do-se, entretanto, um ponto geral para toda a divisão, o qual 1se pro­curará que fique, quanto possível, a igual distância de todos os quartéis» ('19

). Para Gomes Freire a artilharia deve ficar repartida por baterias ao longo da costa e das fronteiras. Este é o método, que aconselha para a distribuição do exército ao longo da linha de defesa, tendo em vista não somente que os corpos das diferentes armas fiquem postados no terreno adequado ao seu uso, mas também

(1•) Capitulo V, pp. 86·87.

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que a localização dos seus quarteis lhes facilite, durante a paz, puderam empregar-se na agricultura, de maneira a que o exército, com poucas marchas, possa reunir-1se sem que os ditos corpos se afastem demasiado dos seus respectivos quartéis.

No que respeita às chefias considera este experiente soldado que todo o exército seria comandado por um marechal general, que ficaria em Lisboa com o seu competente estado maior, os coman­dos ·de engenharia, artilharia, etc. Cada uma das seis divisões em que repartia o exército, constituíam, elas mesmas, os exércitos das seis províncias, comandadas cada um por um general em chefe. Estes seis corpos subdividiam-se, segundo a sua força, e a extensão da sua linha de defesa, em várias divisões repartidas em brigadas, ficando cad·a uma das divisões sob as ordens de um tenente general e dois marechais de campo, e cada uma das brigadas sob o comando de um brigadeiro {2°). No seu pensamento, sem dúvida inovador para o tempo, Gomes Freire, considera que o método seguido para abas­tecer o exército dos víveres e apetrechos necessários causava a ruína na agricultura, pois afastava por muito tempo da lavoura os braços, os carros e o gado, dado que se obrigavam a fazerem contínuos transportes e uma grande ausência das suas terras. Propõe outro sistema com o fim de remediar esses inconvenientes : uma distri­buição por armazéns e depósitos nas diferentes províncias, e ane­xando aos corpos e serviços os carros e bestas necessários para o transporte das suas equipagens.

Expõe, ainda, no seu valioso <<Ensaio», o método que deveria ser seguido na instrução das tropas, combinada com o licenciamento do exército, de modo que não só os oficiais e soldados se tornassem aptos principalmente para a guerra de postos, que é a mais adequada defesa do país, mas, também, para que se possa restituir gradual­mente a maior parte dos homens, à lavoura e, assim aliviar o estado da enorme despesa, com o sustento do seu exército. O distinto oficial, tão pouco escutado no seu país, sugere que os corpos da primeira classe estejam somente completos nos meses, em que os campos carecem de menor número de braços para a sua cultura, que em geral são os três meses de Abril, Maio e Outubro ; e que no resto do ano só fiquem com as bandeiras o número de indivíduos indis­pensáveis para a conservação dos cascos dos corpos, licenciando-se todos os mais, segundo o método que estabelece. No que diz respeito à instrução dos corpos de segunda classe, isto é, das reservas, pro­punha que esses corpos se ocupassem durante onze meses na agri-

(~0) Capítulo V. p. 36 (mapas).

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cultura, reunindo-se em companhias todos os domingos e dias santos do mês de Maio em diante, a fim d,e estarem ·aptos no de Outubro a juntarem-se nos primeiros quinze dias, ei:n batalhões e, nos últimos, em brigadas. Para esse efeito haveria nas sedes das companhias, batalhões e regimentos da segunda classe, um depósito para arre­cadar as armas, fardamentos e apetrechos.

Gomes Freire, analisa, nas 400 páginas do seu Ensaio, pro­víncia por província (Minho, Trás-os-Montes, Beiras, Alentejo e Algarve) e toda a orla marítima tendo em vista os pontos vulne· ráveis aí situados para prevenir um ataque inimigo. O seu estudo apresenta uma série de mapas que sintetizam numericamente as suas afirmações. Num derradeiro capítulo, o autor e~licita o método a seguir para evitar contradições com o estabelecido na Constituição Militar Portuguesa, no caso de se organizar o exército segundo o sistema exposto no seu «Ensaio>>.

Todas as ideias que Gomes Freire deixou expostas constituem um plano geral de organização de um exército de 100 000 comha· tentes. Apresenta-nos ainda, em cálculos detalhados, o quantitativo anual necessário para a manutenção de tal corpo militar ( 2J.).

O seu notável e inovador estudo, não foi tomado em conside­ração, como já se afirmou. Foi, no entanto, elaborado em época d·e profunda tensão em que todos previam a ruptura duma neutralidade precária. O então Marechal de Campo com amplas provas dadas em vários palcos de guerra, com sobejo conhecimento de política euro­peia, sabia melhor que ninguém que o seu país iria necessitar de um exército apto e capacitado. O título do seu ccEnsaio» é uma exem· piar síntese de um texto claro e conciso exposto por quem., cons· ciente de que a organização de um exército é um mal necessário se interroga : ccCom efeito sendo o fim da instituição de um exér· cito defender as vidas e as propriedades dos cidadãos, há cousa mais oposta 'ª isto do que ser ele mesmo quem pela sua organização defeituosa procura a destruição de umas pela falta de braços a que dá lugar ( ... ) . E que devendo um exército afastar do Estado o mal da guerra ela venha quase sempre, por pouco dilatado que ele seja, a motivar outro às vezes maior do que o mesmo, ao qual deve remediar?» ( 22

) •

No «Discurso Preliminar» do seu esquecido ccEnsaio», estabe­leee o que chama um ccPrograma tendente à felicidade pública» que ccvenha a ser o motivo de que os outros se esforcem igualmente

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cn) Capítulo XI, pp225 e isegs. (~) Capitulo I, pp. li2.

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a indagar qual é ·a tese em que se deve estabelecer uma constituição Militar, a qual seja em tudo própria a preencher as referidas condi­ções; e que finalmente se chegue ao conhecimento dos verdadeiros princípios em que esta se funda e a constituir um exército de cida­dãos que armados para defender a Pátria, sejam tão temíveis na guerra aos seus inimigos, como na paz úteis ao Estado pela sua indústria» ( 2s).

É conhecido e já se aludiu à atitude do Marquês de Alorna e de Gomes Freire face a Napoleão. Ambos o serviram com denodo, durante anos, como membros dirigentes da legião que se colocou ao serviço do Imperador. Sobre eles recaíram e exerceram-se os maiores ódios prodigalizados pelos seus concidadãos. A ambos as maiores honrarias foram, no entanto, concedidas pelo governante francês.

Alorna veio a falecer ao serviço da Legião Portuguesa nos pri­meios dias de Janeiro do ano de 1812 em Koenigsbur na Alemanha. Gomes Freire padeceu o suplício da forca em 181 7 em Portugal.

Depois de enforcado, o corpo de Gomes Freire, mal consumido pelas chamas, f.oi deitado ao mar que, por duas vezes, o devolveu à praia, onde os seus restos foram enterrados.

Em 1851, o general barão da Batalha, quando governador da Torre e Forte de S. Julião da Barra, onde se consumou a prisão e morte do que é, talvez, o mais discutido dos soldados portugueses, mandou erigir no alto do Alqueirão, local onde lhe havia sido levan­tado o patíbulo, um monumento comemorando a sua morte. Em 1822 a sentença contra os conspiradores de 1817, havia sido revo­gada. Criminoso ipara uns, mártir da pátria para outros, a sua condenação acendeu uma polémica que perdura. Não há dúvida, no entanto, que nas muitas páginas que se escreveram e escreverão sobre Gomes Freire, aparecerá sempre o retrato de um homem valente, polémico, avançad-0 para o seu tempo, incómodo ao seu meio soeial mas que, nessas páginas e no monumento de S. Julião da Barra, vê inscritas as palavras que traduzem a vida de um bravo e inconformista.

(21) Drsawso Preliminar, p. XII.

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O EXÉRCITO E O REGISTO DA MEMÓRIA. AS MONOGRAFIAS DAS UNIDADES

Is1LDA BRAGA DA CosT A MONTEIRO ( *)

Na segunda metade do século XIX, afastado das luzes da ribalta que, mercê da guerra peninsular e da complexa implantação do liberalismo, haviam catapultado muitos dos seus oficiais para o desempenho de cargos exdusivamente políticos, o exército volta-se, temporariamente, para si próprio, num «laborioso processo de rede· finição da sua identidade e do seu pa-pel político e social na estru­tura do Estado e no meio da soe~ englobante» (1). Um pro­cesso tanto mais complexo quanto as reorganizações se sucediam ditadas pelos propósitos e despropósitos dos homens que passavam, por vezes fulgurantemente, pelo ministério da guerra, inoperantes, quando não mesmo agravantes dos tradicionais problemas da ins· tituição.

Consciente do papel da memória enquanto suporte essencial da. . identid'ade, e, por essa via, do espírito de- corpo que, mais do que em qualquer outra instituição, deve marcar de forma indelével as solidariedades horizontais e, sobretudo, verticais entre os seus elementos (2), dele fazendo depender, entre uma multiplicidade de factores, a sua maior ou menor eficiência, o exército procura a partir da segunda metade de oitocentos, o reavivar da memória colectiva. Numa busca de si próprio, das glórias que fizeram a sua história e a história nacional, da qual se não ·pode dissociar, o exér-

(*) Mestre em História Moderna e Contemporânea e docente do Departa· mento de Ciências Históricas da Universidade Portucalense.

(1) CARRILHO, Maria - Forças Armadas e Mudança Politica em Portugal no século XIX. Para uma explicação sociológica do papel dos militares. Lisboa, Imprensa Nacional·Casa da Moeda, 1985, p . 165.

( 2 ) CORVISIER, André (dir. de)-Dictionnair:e d'Art et d'Histoire Mili­taires. Pari1s1 P.U.F., 1988, p. 277.

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cito vai, por várias formas, colocar o passado ao serviço do presente, numa exortação, onde se revelam as grandezas e se abafam as fra­quezas. Desde a organização, mesmo que incipiente, de arquivos e de bibliotecas, à utilização da estatuária e arquitectura, passando pela ritualização das comemorações, pelo simbolismo dos emblemas, pela constituição de associações de vária índole e pelo registo escrito da memória histórica, dá-se espaço a todos os cclugares» da memória colectiva enunciados por Pierre Nora (3), numa evidente valorização do passado e da leitura pedagógica que ele possibilitava. Não passando incólume aos · ventos românticos que então grassavam, bus­cam-se as raízes, as origens que legitimam direitos e posiciona­mentos, mesmo que por . vias tortuosas e artificiais, tornando a im­portância de cada unidade militar ou arma directamente propor­cional à sua antiguidade. É a transposição para a realidade militar, da consciência surgida já no meio civil, forçada pela situação grave de um império em risco e uma soberania ameaçada, de que cca História podia ter um pa-pel importante na coesão nacwnal e Tui mobilização das consciências» ("').

Assim, reconhecida que estava, pelas chefias militares e pelos próprios ministros da guerra, na segunda metade do século XIX, e sobretudo no decorrer das últimas duas décadas, a necessidade de proceder a um registo sistemático da memória· de cada unidade, arma ou exército no seu conjunto, lançam-se as bases que virão a alterar, significativamente, o panorama historiográfico de âmbito exclusivamente militar, caracteristicamente pobre, como, de forma insistente, observaram, em 1888, o então capitão de infantaria Martins de Carvalho, nos seus Subsidios -para a História dos Regi­mentos de lnfanteria e Caçadores do Exército Portuguez (5), escritos sem qualquer tipo de apoio institucional, e alguns anos depois, em 1892, o capitão de cavalaria Cristóvão Aires (6).

Fazendo uma incursão pelo registo escrito da memória histó­rica do exército, entre finais de oitocentos e os anos 30 do nosso século, o presente estudo incidirá sobre as monografias das unidades

(li) NORA, Pierre-Mémoire Collective in LE GOFF, Jacques; CHAR­TIER, Roger; REVEL, Jacques dir. de, cLa Nouvelle Hstoire». Paris, Retz­-C.E.P.L., 1978, pp. 398-401.

( 4 ) CALDEIRA, Arlindo Manuel-O Poder e a Memória Nacional. Heróis e Vilãos ma Mitologia Salazarista. «Penélope», 15, Lisboa, 1995, .p. 123.

(~) CARVALHO, Francisco Augusto Martins de (cap. de inf.)-Subsídios para a História dos Regimentos de Infanteria e Caçadores do Exército Portuguez. Coimbra, lmp. da Universidade, 1888, pp. 6-9.

(~) AIRES, Cristóvão (cap. de cav.)-História da Cavallaria Portugueza, \Tol. II, Lisboa, lmp. Nacional, 1892, pp. 47-49.

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militares, elaboradas por militares, e directa ou indirectamente apadrinhadas pelo exército. Publicadas por iniciativa oficial, quer do próprio ministério na dependência do qual se encontrava a insti­tuição militar, quer dos comandos regimentais, estas monografias merecem, a par das mais ·ambiciosas e abrangentes histórias do exército, um lugar de relevo na historiografia militar, feita por militares, para militares.

Evidenciando assinaláveis diferenças, não só em termos de perspectiva histórica, como no aspecto formal, como, ainda, no enquadramento ideológico que subjaz à sua elaboração, e após atu­rada pesquisa, que nos permitiu coligir uma extensa bibliografia de mais de 200 monografias, verificamos que estas se agrupam, maioritariamente, em torno de dois momentos distintos. O primeiro situa-se nos anos de 1892-1893, como resultado de uma exigência emanada superiormente e obrigatória para todas as unidades de infantaria e caçadores, enquanto o segundo, já no nosso século, verifica-se, compreensivelmente, no período subsequente à Grande Guerra e marca, de forma privilegiada, a participação ·das unidades portuguesas nesse conflito mundial. Embora não possamos avançar com dados estatísticos, que de uma forma mais palpável eviden­ciariam os resultados do estudo realizado, quer por desconhecermos até que ponto a nossa longa listagem de monografias se encontra distanciada do universo global, ou seja, do que, na realidade, sobre essa temática foi publicado, quer, ainda, por não nos ter sido possível localizar e compulsar todas elas, faremos uma análise qualitativa a partir daquelas a que tivemos acesso, e cujo número consideramos significativo. Subordinadas a linhas de orientação mais ou menos rígidas, a modelos formais e de conteúdo previamente delineados, explícita ou implicitamente, pela instituição militar, a variação não seria, por certo, acentuada, legitimando-se o estabelecimento de caracterizações genéricas para os períodos considerados.

! -Finais do século XIX (1892-1893 ).

A inércia, a desmotivação, a míngua de meios, à qual se jun­taria, por certo, a falta de disponibilidade dos oficiais, sobretudo até à Regeneração, mais envolvidos nos destinos políticos do país, tinha feito, .até esta data, das monografias das unidades militares obra do acaso, do interesse pontual de alguns militares, quer por se terem propiciado as condições, quer por uma consciencialização precoce do papel da memória histórica regimental como formadora e unificadora de soldados e oficiais. O ano de 1892 marca o ponto

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de inflexão a partir do qual, e como resultado da implantação ·das escolas regimentais, o exército se assume como agente dinamizador e, em consequência, controlador do registo da memória histórica, tornando-o por determinação superior, obrigatório para todas as unidades de infantaria e caçadores. A situação política, militar e diplomática, assim o exigia. O Ultimato de 1890 havia reforçado a necessidade de um exército coeso e organizado que pudesse defen­der o país da ameaça que a Inglaterra representava. É, pois, num quadro de revalorização nacional da instituição militar e dos seus problemas que o poder canaliza as suas atenções para as unidades militares - células base de toda a sua organização -, que o 31 de Janeiro de 1891 tinha salientado como potenciais focos de indisci­plina e de divulgação da ideologia republicana.

Com evidentes objectivos pragmáticos, e não para fazer a his­tória pela história, a circular n.º 2041 da Inspecção Geral da Infan­taria, dirigida a cada comandante das unidades militares, datada de 9 de Julho de 1892, quando ocupava o cargo de ministro da guerra, o general Pinheiro Furtado, determina que, «tomando por base o livro Subsídios para a História dos Regimentos d'lnfanteria e Caçadores, distribuído por ordem do ministro da guerra aos di­versos regimentos da arma, e servindo-se tambem de outros subsidios de que disponha, mande elaborar um resumo dos factos mais nota­veis, praticados em tempo de guerra pelo regimento do seu comando e de quaesquer outros que em tempo de paz lhe tenham dado honra ou gloria», especificando, ainda, que <<convenientemente resguardado por meio de quadro, será fixado na aula e n'outro local qualquer mais apropriado». Obrigando ao envio de um exemplar para a referida Inspecção, as despesas inerentes à elaboração desse trabalho deveriam correr por conta dos fundos da escola regimental à qual se destinavam ( 7 ).

Esta determinação, corporizava uma ideia que, neste final do século XIX, parecia ganhar contornos mais precisos, entre os mili­tares com responsabilidades ministeriais, como é o caso do ministro da guerra, conde de S. Januário, do qual o capitão Martins de Car­valho, refere, em 1888, a intenção de ordenar a elaboração da histó­ria de cada regimento ( 8 ). Contudo, tal não veio, efectivamente, a concretizar-se de imediato. Os parcos recursos económicos de que o exército dispunha, assegurando de uma forma difícil e insuficiente

( 7 ) Arquivo Histórico Militar (A.H.M.), 3.ª Divisão, 43." Secção, Caixa n.° 68, Doe. n.º 48.

( 8) CARVALHO, Francisco Augusto Martins de (cap. de inf.)- o. e., p. 5.

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o funcionamento da instituição, nos seus aspectos mais elementares e fundamentais, como era o caso da alimentação dos soldados ( 9 )

e do pagamento dos soldos, não permitiriam canalizar verbas, mesmo que reduzidas ao trabalho tipográfico, para a elaboração das histó­rias regimentais, a menos que tal fosse sentido como de primordial importância pelo poder político e, por inerência, pelas chefias mili­tares. E tal só virá a acontecer com o Ultimato e o 31 de Janeiro de 1891 que, indelevelmente, marcaram o início da década de 90. Significativamente, Cristóvão Aires, sensibilizado para o papel uni­fica·dor e disciplinador que a memória colectiva poderia d·esem­penhar na vivência de cada unidade militar, escrevia, em 1892, no prefácio d0< volume II da sua História da Cavallaria Portugueza: «É preciso que cada regimento como cada família illustre, tenha a sua chronica escnpta, desde o moimento que tem pergaminhos honrrosos, os quaes cada membro d'essa corporação deve conhecer e fazer guardar immutculados nos actos que depende da sua vontade e do seu natural desejo de não empanar Mm obliterar as tradições recebidas» ('1º). Para além do interesse militar que estas publicações teriam, Cristóvão Aires acentua a sua importância para a população civil servindo «para vulgarizar no públi'Co noções e conhecimentos com que não terão senão a lucrar os sentimentos patrioticos e os b . . (crl) rios nacionaes» .

Um ano depois, no terceiro volume da mesma história da Cavalaria, as suas palavras introdutórias são bem diferentes. Assina­lando a boa recepção que a obra teve entl'e militares e civis, comenta cce como resultado de momento, se outro não existira, bas­tar•me-ía o estimulo que vejo creado depois da publica.ção do meu trabalho, terulo sido já officialmente determinada a elaboração das historias parceaes dos diversos regimentos de artilhe ria, inf anteria e caçadores» ( 12

).

Efectivamente, no curto espaço de menos de dois anos, entre 1892 e 1893, publicaram-se, segundo apurámos pelo nosso levanta­mento, cerca de 5 O monografias sobre as unidades de infantaria e caçadores. Intituladas quase invariavelmente de História do Regi­mento ou Resumo da História do Regmento, as monografias das unidades de infantaria e de caçadores aprresentam, no aspecto formal,

( 9 ) MONTEIRO, Isilda Braga da Costa - O Rancho e os arranchados na segunda metade do século XIX. Subsídios para a História da Alimentaçã.o Militar in cActas do V Colóquio Militar Do Lnfante e Tordesilhas», Lisboa, 1994, p. 400.

10

(~ 0 ) AIRES, Cristóvão (cap. de cav.)-o. c., vol. II, p. 19. (11) Idem, Ibidem, p. 21. (

12) Idem, Ibidem, vol. III, p. XXVI.

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tipologias distintas consoante cumpram estritamente o estipulado na referida circular, ou dela se afastem, enveredando pela publi­cação de brochuras, na generalidade dos casos, com poucas páginas. Não perdendo de vista ·O carácter resumido que a inspecção da arma de infantaria exigia, essa parece ser, na realidade, a opção dos mili­tares incumbidos individualmente, ou em comissão, de darem res­posta à determinação superior, o que não invalida que a partir das brochuras se viessem a fazer os referidos quadros destinados a serem afixados numa parede. Na realidade, o quadro parietal, a que a circular se referia, obrigava à utilização de um papel mais resistente e a uma composição gráfica mais elaborada que passava pelo desenho de uma barra emoldurante do texto prop·riamente dito, mas mos­trava-se, comparativamente às brochuras, consideravelmente pobre em conteúdo limitando-se à indicação da sucessão cronologicamente ordenada das datas e dos factos mais relevantes da história da uni­dade, sem sequer se dar lugar ao nome do militar ou militares res­ponsáveis pela sua elaboração (13

). Destinando-se às escolas regi­mentais e a soldados de parcos conhecimentos, privilegiava-se a apreensão fácil dos grandes momentos que marcaram o passado do regimento, deixando de lado qualquer outra informação subsidiária ou exortação militarista e/ ou nacionalista.

Tarefa, por certo, pouco aliciante, dela foram incumbidos oficiais subalternos, alguns deles compreensivelmente ligados às escolas regimentais ·da unidade e·)' que, na maior parte dos casos, parecem ter realizado com o maior empenhamento, excedendo larga­mente os limites do que lhes era pedido ao revestir o seu trabalho de grande formalismo e indo, mesmo, nalguns casos, além do mero

(13 ) A única excepção entre os quadros que co111Sultamos é o Resumo Históriico do Regimento de Infantaria n.º 11, impresso em Tomar, em 1893, na tipografia La Merveille, de A. S. Magalhães e cujo autor aparece referido como sendo o tenente Rodolfo Leopoldo Nunes (A.H.M., 3.ª Div., 43.ª Secç., Cx. n.º 55, Doe. n.º 12). O mesmo não acontece com o Resumo Historico do Regimento d'lnfanteria n.º 15, sem referência ao local da impressão (A.H.M., 3.ª Div., 43.ª Secç., Cx. n.• 68, Doe. n.º 47), nem oom o Resumo Historico do Regimento de Caçadores n.º 8, imprimido em Usboa, .na Tipografia da Com­panhia Nacional Editora (A.H.M., 3.ª Div., 43.ª Secç., Cx. n.º 112, Doe. n.º 50), e a História do Regimento de Caçadores n.º 3 publicada em Bragança, na tipo­grafia com o mesmo nome (A.H.M., 3.ª Div .. 43.ª Secç., Cx. n.º 101, Doe. n.º 16). Estes três últimos quadros não têm referência à data, contudo, a semelhança formal com o primeiro, .leva-nos a considerar terem sido elaborados como resposta à mesma exigência da Inspecção da arma de Infantaria, de 1892.

(H) .E. o caso dos oficiais do regimento de infantaria 19 que compõem a comissão, nomeada por 011dem regimental de 11 de Julho de 1892 para dax seguimernto à determinação da Inspecção Geral (TEIXEIRA, António José Augusto (cap.); CARVALHO, Augusto César Ribeiro de (ten. aj.); FONSECA, Filipe Augusto Vieira dia (ten.); PEREIRA, Ernesto Augusto da Silva (alf.)­Breve Resumo da Historia do Regimento d'lnfanteria 19. Lamego, Minerva da Loja Vennelha, 1892).

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discurso narrativo, assente na sequência fria das datas das batalhas. Aduzindo-lhe palavras exortatórias aos militares do presente, em preâmbulo ou no fim, à laia de conclusão, reafirmava-se a heroici­dade dos militares do passado, fazendo daqueles os herdeiros directos destes, numa identificação absoluta e potencialmente geradora de iguais heroísmos.

Na Noticia Historica do Regimento de Infantaria 16, publicada anónima, mas que o Dicioná~io Bibliográfico Militar Português atribui ao próprio Martins de Carvalho ( 15

) diz-se, de forma elo­quente: ccSoldados de hoje, olhae! Parâ traz de nós fica a Historia, a historia brilhantissima do nossa regimento confunde-se gloriosa· mente com a vü:la epica da patria. Para dúmte, a Histor.ia, havemos de nós fazel-a, dando â vida pelo .dever, pela gloria!. O sangue que em nossas veias corre, é o mesmo sangue glorioso que girava nas veias dos nossos heroicos ,avós, que lhes alimentava nos oorebros as grandes ideias e no coração os sentimentos santissimos pela Patria ! Quando a Patria nos chamar, as almas dos velhos , heroes do nosso regimento viverão dentro de nós, e nós possuidos d'esses espiritos gloriosos, havemos de luctar e vencer» f 1º). Uma retórica elabo­rada, característica, como sublinha Corvisier, do discurso militar escrito (1 1

), e que, girando em torno das virtudes básicas do soldado qualquer que seja o posto - honra, fidelidade, dever para com a pátria, para com Deus e espírito de sacrifício-, marcam a especifi­dade da sua missão e reforçam a coesão. À memória iam-se buscar os modelos de comportamento, as razões para esforços e heroísmos, os princípios normativos da vivência regimental.

O tenente Henrique Baptista da Silva, na história do Regi· mento n.º 18, nas primeiras das suas 95 páginas, refere a falta de valores e ideais na sociedade de então, ressalvando a postura do exército como uma das organizações «que mais tem conservado o aprumo n'este esboroamento geral. Se uma longa paz lhe tem feito perder os seus antigos habitos guerreiros: dedicação, obedi.encia, e abnegação, ainda não são virtudes que lhe passassem completa­mente á historia». Uma perspectiva que pouco teria a ver com a realidade vivida pelo exército desta altura, e da qual os próprios militares nos dão conta na imprensa para onde canalizam as suas

('15) CARVALHO, Francisco A. Martins de (gen.)-Dicionário Bibliográ. fico Militar Português, vol. II, Lisboa, Academia Real das Ciências, 1979, pp. 466-467.

(11&) Noticia Historioa do Regimento de I.nfantaria 16. Lisboa, Tip. do «Recreio», 1892, pp. 15-16.

('1 7 ) CORVISIER, André (dir. de)- o. e., p. 510.

7,r;

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opm10es, mas que de forma alguma poderiam ter lugar no registo escrito da memória do regimento, obrigatoriamente triunfalista e exemplar. Como, de fornna eloquente, refere o tenente Baptista da Silva, a história do regimento deve ser o «compendio de todas as virtudes militares e civicas. Ha alli abundantes exemplos de coragem até ao heroismo e abnegação até o martyr'io. N'eUes podemos reju­venescer o nosso depauperado espirita militar, n'elles podemos pro­curar al.entos para a tlhwza que nos 1invade o dia a dia, n'elles po<lemos modelar o nosso caracter, temperar a nossa energia e encontrar impulsos vivificadores para a nossa alma» (1*).

Ao serviço de uma história triunfalista e factual, estas mono­grafias de finais ·do século XIX, consolidam, pela força da escrita, uma memória oficial, que se faz recuar, aos terços seiscentistas, perpetuando uma filiação gloriosa que se prende com a sua acção em prol da restauração da independência nacional, para depois trilhar o percurso não menos glorioso das vitórias da guerra penin­sular e das genericamente denominadas campanhas da liberdade. Um percurso de paragens obrigatórias para os regimentos que, apesar das sucessivas reorganizações não perderam a sua identidade, se­guindo uma linha evolutiva linear e sem quebras. Mas, na instabili­dade característica do século passado nem todos se podiam orgulhar do mesmo. O capitão Luís Maria dos Reis, autor da história do Regimento de Caçadores 12, nas palavras prévias que dirige ao leitor lastima, numa desculpa balbuciante, que a esta unidade, de criação recente, <mão lhe coube a gloria de defender a sua patria nas af a· madas batal,has do Bussaco, Albuera, etc., em que campearam, a par dos veteranos da velha Albion, regimentos portuguezes, que por feitos de alevantado heroísmo, mostraram ao mundo serem dignos descendentes das hostes de Ourique e Aljubarrota» (1º).

Significativamente, nesta memória oficial, que, relembremos, se destinava às escolas regimentais, vocacionadas para a formação dos soldados, não se ·destacam os nomes dos que, individualmente, pelas suas atitudes valorosas, poderão ter contribuído para a história triunfal da unidade. Esta não é uma história do individual, do herói singular, é, antes, a história de um corpo, veiculadora de uma imagem artificial de coesão, onde cada homem é um herói, cujo nome se perde naturalmente suplantado pelo do regimento ao qual

( 18 ) SILVA, Henrique Baptista da (ten.)-Historia do Regimento n.• 18 d'/nfanteria do Príncipe Real. Escorço Biographico. Porto, Imprensa Comercial, 1893, p. VI.

(19) REIS, Luís Maria dos (cap.)- Organização e História do Regimento de Caçadores n.º 12 elaborada por ordem da Inspecção geral de Infanteria. Funchal, tip. do Direito, 1893, p. n.n ..

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pertence. Mesmo a listagem ·dos oficiais superiores que ao longo dos anos se foram sucedendo no comando da unidade, surge-nos desprovida de qualquer outra indicação que não seja o nome, o posto e as datas balizadoras do período durante o qual cumpriram essas funções, não lhes conferindo qualquer protagonismo.

A elaboração das monografias das unidades militares apresen­tadas neste período de 1892-93, não foram, apesar do enquadra­mento institucional que lhes está subjacente, tarefa fácil, como disso vários militares nos dão conta. A pobreza das bibliotecas e arquivos regimentais, a par da urgência requerida para a publicação das monografias são referidas como graves obstáculos, quer pelos capi­tães Estácio Garcia de Ultra e Ernesto Maria de Oliveira Queiroz, na sua Noticia Historica do Regimento de Caçadores n.º 10 (2º), quer pelo capitão António José Augusto Teixeira e demais oficiais da comissão especialmente constituída para esse efeito, do Regimento de Infantaria n.º 19 ( 2'1). Obrigados superiormente à consulta dos já referidos Subsidias [><Jra a História dos Regimentos de lnfanteria e Caçadores, de Martins de Carvalho, que o exército havia distri­buído pelas unidades, os oficiais nomeados para a elaboração das monografias dos respectivos regimentos referem outras obras que de forma basilar utilizaram no seu trabalho e que incluem os Exoerptos Historicos e Coleccção de documentos relativos à guerra denominada da Renínsula do capitão Claudio de Chaby, publicada ,em 1836, a Legiiio portugueza ao serviço do imperio francez~ do oficial de cavalaria Bento da França, datada de 1889, e as de Luz Soriano -Historia da Guerra Civil e Historia do Cerco do Porto. Esporadica­mente, refere-se também A guerra da Península de Robinson, a His­tória Militar e Política de Portugal de Latino Coelho, a História rle Portugal de Pinheiro Chagas e a Historia Universal de Cesar Cantu. Uma bibliografia em cuja consulta procuram suplantar a falta de conhecimentos, quando não a falta de interesse pela própria história. Sincero, o alferes João Lopes, autor do resumo histórico do Regi­mento n.º 12, diz, a sse· propósito: ccSe me tivessem pedido para eu escrever o referülo resumo, recusar-me-hia a tal serviço espinho­sissimo, em virtude da pobreza de cabeáaes sci.entificos e da pouca aptidão que possuo [><Jra emprehendimentos de tal natureza. Porque,

(2º) ULTRA, Estacio Gal'cia de (cap.); QUEIROZ, Ernesto Mari'a de Oliveira (cap.)- Noticia historica do Regimento de Caçadores n.º 10, elaborada por ordem da Inspecção Geral de Infanteria. Angra do Heroísmo, Imprensa MU!Ilicipal, 1893, p. 5.

(.21) TEIXEIRA, António José Augusto (cap.); CARVALHO, Auglllsto César Ribeiro de (ten. aj.); FONSECA, Filipe Augusto Vieira da (ten.); PEREIRA, Ernesto Augusto da Silva (af.)- o. e., p. n.DI ..

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com franqueza o confesso, a Historia não tem constituido -para mim uma especialidade e paixão, por isso, vi-me forçado a cumprir as ordens que recebi» ( 22

).

Restringida em exclusivo à infantaria e aos caçadores, o exér­cito, pela acção da Inspecção Geral da arma, direcciona, neste início da década de 90 do século XIX, as suas atenções para as un~dades militares e para a valoTização do registo da memória de cada uma delas, como já o havia feito, a título individual, Martins de Carvalho e como, desde 1860, de uma forma mais ou menos consecutiva e sistemática, já incentivara à elaboração de trabalhos mais abran­gentes sobre a instituição na globalidade. Sublinhe-se, contudo, que as armas .de cavalaria e artilharia não foram alvo de iguais procedi­mentos por parte das respectivas direcções, ou seja, tanto quanto a nossa pesquisa na legislação militar nos permitiu verificar, não foi dada nenhuma ordem aos comandos regimentais no sentido de providenciar homens e meios para a elaboração das histórias das respectivas unidades. Assim, entre os muitos títulos de monografias das unidades militares que foram publicadas entre 1892 e 1894, a artilharia e a cavalaria primam por uma ausência total. No caso desta última, tal facto será facilmente justificável.

Na realidade, entre as referidas datas de 1892 e 1894, o então capitão ·de cavalaria, Cristóvão Aires, publica os volumes II, III e IV da História da Cavallaria Portugueza, n<>S quais se debruça, de forma individualizada, sobre o passado glorioso das várias unidades a ela pertencentes. Não sendo um estudo exaustivo, como o próprio autor o afirma, terá, no entanto, tornado supérflua e desnecessária a atri­buição a cada regimento da obrigação de registar a sua memória. Sobretudo, quando era o estado e o próprio exército que subsi­diavam a referida obra de Cristóvão Aires. Louvado pelo próprio ministro da guerra, Serpa Pimentel, por portaria de 15 de Setembro de 1890, aquando da saída ao público do primeiro volume, louvor esse onde se acentua o facto de ser a História da Cavallari.a Portu­gueza o resultado de um trabalho ccde que offioi.almente foi incum­bido» (23

), o referido oficial faz, contudo, questão de acentuar, no volume III, datado de 1893, que este ccnão custará ao estado .mais do que as restrictas despezas typographicas » ( 24

) •

( 22 ) LOPES, João (alf.)-Regimento d>e Infantaria 12. Resumo Historico sobre ·as campanhas e serviços em que este regimento tomou parte desde a sua organização em 1807 até à actualidade. Gual'da, Tip. do Comércio da Guarda, 1893, :p. n.n ..

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(U) Ordem do Exército, n.º 36, 15 de Setembro de 1890. (

2•) AIRES, Cristóvão (cap.)-o.c., vol. III, p. XXV.

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Relativamente à artilharia, esta arma também não se mostrou alheia à valorização da memória enquanto elemento gerador de coesão e disciplina, embora de uma forma mais abrangente, optando pelo apoio institucional à elaboração de uma hstória da artilharia, onde as monografias das unidades inevitavelmente surgiriam. Por portaria de 29 de Novembro .de 1893, é escolhida uma comissão para esse efeito, composta pelo coronel João Carlos Rodrigues, pelo capitão Maximiliano Eugénio de Azevedo e pelo, então, primeiro tenente José Justino Teixeira Botelho, «considerando que nw,ito

importa tornar conhecUlas do exército as transformações por que têem passado as diversas armas e os factos mais importantes em que tomaram parte os corpos d' ellas ; attendendo a que já estão publi­cados trabalhos .mais ou menos desenvolvidos com relação ao regi­mento de inf anteria e que está em via de publicação a história c/;e cavaUarw» ('2'" ). Contudo, o objectivo que presidiu à criação da comissão parece não ter sido atingido, uma vez que, pelos referidos militares, não foi publica.da, nos anos imediatos, qualquer história da artilharia (26

). Essa lacuna só será preenchida quando, em 1895, o general João Manuel Cordeiro publicou os Apontameritos para a História da Artilheria Portuguesa (21

), e quando, a partir de 1897, a Revista do Exército e da Armada, trouxe a público, uma série de artigos intitula.dos Subsidios para a História da Artilheria ( '28

), da autoria de um dos elementos nomeados para a referida comissão, José Justino Teixeira Botelho.

2 - Século XX (décadas de 20 a 30).

Os anos subsequentes à Primeira Guerra Mundial, e que esten­deremos até à .década de 30, representam o outro momento alto da publicação das monografias de unidades militares. Menos nume-

( 25 ) Orãem do Exército, n.º 32, 1 de Dezembro de 1893. O texto da por­taria contraria em absoluto a1s1 palavras de Cristóvão Aires, que em 1892, refere que já havia sido determinada SlJiperiormente a elaboração das monografias das unidades de artilharia (AIRES, Cristóvão - o. e., vol. III, p . XXVI).

(26) Dois destes militares, o tenente coronel Maximiliano de Azevedo e o capitão José Justino Teixeira Botelho, publicarão, ianos mais tarde, e~ 190~, na Revista do Exército e da Arm·ada. a monografia do Regimento de Ãrt1lhariia da Corte (AZEVEDO, Maximiliano de (ten.--cor.); BOTELHO, Teixeira (cap.)­R.egimento de Artilharia da Côrte. Noticia historioa. «Revista do Exército e da Armada», XXI, Jul.-Dez. 1903, P!P· 301-317; XXII, Jan.-Jun. 1904, pp. 11-30).

( 27 ) CORDEIRO, João Manuel-Apontamentos para a Historia da A1'U­lheria Portuguesa. Lisboa, Tip. do Comando Geral de Aritilharia, 1895.

( 2 ª ) BOTELHO, José Justino Teixeira- Subsídios para a História da Artilhenia. «Revista do Exército e da Armad.a», VIII, 1897; IX, 1897; XJjII, Jul.-Dez. 1899; XIX, Jul.-Dez. 1902.

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rosas do que as surgidas em 1892-1893, pela não existência de qualquer tipo de obrigatoriedade na sua publicação, como então aconteceu, o que pressupõe um certo desinteresse por parte da insti­tuição no seu todo, estas monografias das unidades participantes no primeiro conflito mundial reflectem, na generalidade dos casos, uma experiência vivida pelos seus autores, quer eles sejam militares no activo, quer antigos combatentes. Perpassado pela emoção, o discurso nacionalista destes homens, numa época em que o exército e pátria se identificam, clarifica as lácticas, refere as dificuldades e os heroísmos dos que viveram nas trincheiras, naturalmente aba­fando as indisciplinas, os medos e as deserções, e num epílogo ao mesmo tempo dramático e redentor referem, um a um, os nomes dos militares mortos em combate e os respectivos postos. Significa­tivamente, Mário Dias Trigo, •capitão inválido da guerra, dedica a sua monografia do 2.º Grupo de Metralhadoras, datada de 1936, ccAos mortos da Grande Guerra, que cimentaram com o seu sangue generosa a sua e a nossa glória», pedindo aos leitores ccum minuto de recolhimento em homenagem aos que souberam bater-se e morrer pela pátria» (29

) • Mais do que em qualquer outra ·guerra até aí travada pelo exército português, a I'e'Íerência constante aos militares mortos em combate e a ritualização da sua homenagem vão ser uma constante cujo expoente máximo se manifestará, sem dúvida, no culto ao Soldado Desconhecido.

Na realidade, a Grande Guerra, de consequências tão impo­pulares entre a população civil e propiciadora da generalização do antimilitarismo, foi, a par da Guerra Peninsular e das campanhas de ocupação em África, dos finais do século XIX ao início do XX, o tema contemporâneo à volta dos quais se tentou levantar a « mís­tica militar portuguesa» ( ªº). A chama unificadora e vivificadora do ideal militar há tanto tempo arredia do exército português foi, durante a década de 20, conscientemente alimentada, por uma me­mória oficial, veiculadora uma vez mais de valores e exemplos a interiorizar pelos militares. A necessidade de proceder ao seu registo foi de imediato conscencializada pelo poder político, embora não da forma sistemática dos finais do século XIX. Ainda no res­caldo dos acontecimentos, em 19 de Novembro de 19 2 O, o então ministro da guerra, Santos Ribeiro, assinava a portaria n.º 2536,

( 29 ) TRIGO, Mário Dias (cap.)-A acção do 2.• Grupo de Metralhadoras (3.• Grupo de Metralhadoras do Corpo Expediciondrio Português) na Grande Guerra em França (1917-1918). Lisboa, Imprensa Beleza, 1936, p. n.n ..

(M>) RAMOS, Rui-A Segunda Fundação (1890-1926) in MATTOSO, José dir. de, História de Portugal, vol VI, Lisboa, Círculo de Leitores, 1994, ip. 527.

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que estabelecia as condições do concurso público, aberto exclusiva· mente a militares, para a elaboração de monografias das unidades que combateram em França e em África, durante a Grande Guerra, porque convinha «registar duma forma duradoura e revestida da maior autenticidade» os serviços por elas prestados, obrigando-se o estado ao custeamento das publicações premiadas, e à sua ampla divulgação por todos os estabelecimentos militares (31

). Ao abrigo desta determinação, mais tarde, o general Júlio Rodrigues da Silva publicou, no ano de 1936, a sua Morwgrafia do 3.º Batalhão Expe· dicionário do R. 1. n.º 21 à Provínci.a de Moçambiq_ue (32

), e, sem referência aos autores, foram também publicadas as monografias do Regimento de Artilharia de Montanha e de Infantaria n.º 12 ( 33

).

Verificamos, assim, que a década de 30, em pleno processo de reforço ideológico do Estado Novo, foi a época de ouro na publi­cação de monografias das unidades participantes na Grande Guerra, por certo mais como resultado do reconhecimento da importância dos antigos combatentes como 'grupo de pressão do que pela exis­tência duma identificação entre a primeira república que levou os militares portugueses aos campos de batalha e o regime agora insti­tucionalizado. Os majores José Carneira e·) e Travassos Valdez (35

),

o antigo combatente Carlos Palmeira (36), e o capitão Horácio de

Assis Gonçalves (3'), entre outros, vão ver os seus trabalhos publi­cados nos primeiros anos desta década. Se uns insistem mais na C'omponente láctica (3ª), outros fazem-no relativamente à bravura dos militares portugueses. Horácio de Assis Gonçalves, um homem da ditadura militar ,de 1926 e futuro colaborador de Salazar, assume claramente uma postura ideológica nacionalista referindo o heroísmo

( 111 ) Ordem do Exército, n.• 14, t.• Série, p. 681. (H) SILVA, Júlio Rodrigues da-Monografia do 3.º Batalhão Expedicio­

nário do R. I. n.• 21 à Província de Moçambique em 1915. 1937. (H) Monografia do Regimento de Artilharia de Montanha durante a

guerra 1914-18. Lisboa, Imprensa Beleza, 1936; Monografia do Batalhão Expedi· cionário de Infantaria n.• 12, na Grande Guerra, 1917-1919. Lisboa, Imprensa Beleza, s. d ..

(H) CAMEIRA, José Martins (maj.)-Apontamentos para a História da Gmnde Guerra, Cooperação do 5.º Grupo de Metralhadoras Pesadas do C.E.P. no Sector Ferme du Bois (Flandres). Lisboa, IIIJiPrensa Beleza, s. d ..

{35) VALDEZ, Abel Joaquim Travassos (maj.)-Artilharia Portuguesa em França. O 4.º G.B.A. na Grande Guerra. Lisboa, •1936.

(H) PALMEIRA, Carlos-A acção de Infantaria n.• 19 na Grande Guerra. Chaves, tip. Mesquita, 1935.

(llT) Com uma vasta obra relativa à temática da t.• Guerra Mundial desta· camos, entre elas, as monografias das unidades: GONÇALVES, Horácio de Assis-O Vinte e Três. Efemérides biográfico-sintéticas deste Regimento até aos fins da Grande Guerra. Porto, Companhia Portuguesa Editora, 1926; Para a História do C.E.P .. Infantaria 12 nos redutos «Le Marais»-Batalha do Lys-1918. Porto, Companhia Portuguesa Editora, 1933.

(ª8) Veja-se, por exemplo, CAMEIRA, José Martins (maj.)-o.c ..

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da raça que a guerra uma vez mais pôs à prova, e negando o papel fundamental que alguns queriam atribuir ·à oficialidade, acentuando, «Heróis da guerra, da grande guerra, materüilmente sacrificados : - o alferes, o sargento e o soldado ... e quando rrnuito, aquêles que dentro de um batalhão, de uma bateria ou de uma mina viveram enterrados na lama das pr<imeiras linhas de batalha. E poucos mais ... poucos mais!» justificando a sua posição, ao escrever, «por Deus, ao menos por nacionalismo, não ocultemos uma virtude colec­tiva quando ela possa ainda fornecer uma centelha que sirva para esclarecer o passado, e iluminar o porvir!» (39

).

Menos centradas na Grande Guerra, mas referindo-a como parte integrante do trajecto histórico das unidades militares mostram-se outras monografias, publicadas entre 192 8 e 19 3 5. Tal é o caso do Regimento de Infantaria 7. Resumo dos factos mais notáveis da sua história, escrito por uma comissão de militares nomeada pelo comandante para esse efeito (4º), da Notícia Histórica do Regimento de Infantaria 11, do coronel de Estado Maior Azambuja Martins (41

),

e do resumo histórico do mesmo Regimento, de Artur de Vascon­celos ( 42

), também ele nomeado por ordem regimental. Esta última reveste-se de alguma originalidade no aspecto formal, que veremos vulgarizada em outras monografias de unidades militares publicadas na década de 30 e posteriormente.

Assim, procurando responder ao objectivo imposto superior­mente, pelo próprio comandante da unidade, «de criar e levantar o 'espíTlito de corpo' de modo a que tod-Os possamos sentir verda­deiro orgulho em servir a Pátria e honrar sempre a Bandeira do nosso regimento» ('43

), segundo os princípios pedagógicos e forma­dores de consciências que deveriam estar subjacentes à instrução aos novos soldados, esta monografia do Regimento n.º 11, de Setúbal, apresenta-se em formato de bolso. Escrita especialmente para a incorporação dos recrutas de 1935, personalizada pelos da-dos pes­soais de cada um deles, em página reservada para o efeito, destinada â fotografia, nome, posto e número do instruendo a quem era distri­buída, numa lembrança constante de que, como legítimos represen-

( 89 ) GONÇALVES, Horácio de Assis-Para a História do C.E.P .. Infan­tania 12 nos redutos «Le Marais», p. 39.

(•º) SOUSA. José Lobo Alves de (maj.); PASCOAL, José Pereira (cap.); FERREIRA, Joaquim da Costa ( oap.)-Regimento de Infantaria 7 - Resumo dos factos mais notdveis da sua história. Leiria, tip. Mendes Barata, s. d. (1928).

(H) MARTINS, Azambuja (cor.)-Notícia Histórica do Regimento de Infantaria n.• 11 aquartelado em Setúbal. Setúbal, 1932.

(42) VASCONCELOS, Artur de-Resumo Histórico do Regimento de Infantaria n.º 11 e Re1Zimento de Setúba,Z. Incorporação de Recrutas de 1935. Setúbal, tip. Escola Orfanato Setubalense, 1935.

( 4~) Ordem Regimental n.º 47, de 16 de Maio de 1935, art.º 7.•.

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tantes dos «heróis, modesto$ na aparência .mas imensos no HeroÍ$1no e na Glória, que foram os recrutas de infantaria 11 da Batalha do Bussaco, os soldados de Infantaria 11 de Albuera, Victoria e Ba­dajoz, na Guerra Peninsular, os soldados de Infantaria 11 de La Lys, em França, os soldados de M'cula e Nevada, em Af,-.ica ... vós contraís ao envergardes a farda honrosa de soldados do Regi­mento de Infanta.ria 11, um grande dever para com a sua Memória, para com o vosso Regimento, para com a vossa Pátria - o dever de seguirdes sempre, cheios de orgulho, o grande exemplo de bra­vura e honra do vosso regimento - o dever de continuardes sempre, em todas as contingências a sua obra grandiosa de heroísmo e de valentia, honrando e, se possível fôr, aumentando sempre o nome cheio de brilho e glória de Infantaria n.0 11. Isso espera a Pátria de VÓS» CH ).

Um discurso inflamado que, identificando os valores do exército com os da pátria que o soldado deveria servir até às últimas conse­quências, o ligava ao regime e à sua defesa, numa exortação nacio­nalista que, mais ou menos explícita, mais ou menos rebuscada, sempre está presente nestas monografias de unidades militares, e com a qual já nos havíamos famHiarizado em 1892-1893.

Iniciáticas de um processo de integração dos militares nas unidades e, em especial, dos novos recrutas, estas monografias pautam-se por um discurso triunfal e factual. A sua importância, conscencializada pelo poder e pelo próprio exército em 1892, tor­nou-as obrigatórias para todas as unidades de infantaria e caçadores num quadro de revalorização da instituição que o Ultimato e a ameaça da perda da soberania justificavam.

Contudo, esse interesse do exército no registo da memória regi­mental não se revestiu de um carácter sistemático e continuado. Limitado a um momento particularmente difícil da história nacional e da própria instituição militar recém-saída da fracassada revolta de 31 de Janeiro de 1891, passa a depender, no nosso século, quase em exclusivo, do incentivo, da motivação dos oficiais superiores com funções de comando dentro de cada regimento. Recaindo-se, então, e após o período breve dos anos 20 e 30, na pobreza característica da historiografia militar no tocante às monografias das unidades, relegadas para as curtas páginas da imprensa periódica de cariz militar, essa situação só será alterada, e em novos moldes, mercê da guerra em África, durante a década de 60.

(._.) VASCONCELOS, Artur de-o. e., p. n.n ..

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MILITARES ESTRANGEIROS AO SERVIÇO DE PORTUGAL NA RESTAURAÇÃO. SERA DE ACEITAR A VISÃO

DE OLIVEIRA MARTINS?

(Resumo da Comunicação)

Prof. FERNANDO CASTELO BRANCO

Como tivemos ensejo de acentuar no nosso estudo A Restau­r~ão e a Europa (1), Oliveira Martins, dominado pela ideia da decadência de Portugal, viu no auxílio militar recebido pelo nosSI() país durante a guerra da Restauração «a melhor prova da inoapa­cidade do novo Reino»: «O governo recrutavia soldados em Frniaça e por toda a parte onde a Espanha era inimiga ; e contratava coro­néis e capitães: os Fieschi, os Pignatel:li, os Na per, os Saint-Paul, etc. Esta invasão de forasteiros, sempre que em Portugal há alguma cousa a fazer, na guerra, no tl"ahalho, na ciência, recrudesce agoM, sendo a melhor prova da incapacidade do novo Reino» ( 2 ) •

·Procuramos salientar ser inaooiitável essa tese da decadência do Portugal Restaurado e a importância que teve na Europa, na América e na Ásia a vitÓTÍ'a po,rtuguesa então obtida sobre a Espanha. Será agol"a oportuno mostrar que não é admissível a ideia de o auxílio de tTopas estrangeiras na Restauração ser «a melhor prova da incapacidade do novo Reino» e de acordo com a visão do próprio Oliveira Martins de outros perfodo-s, ·de diferentes aspectos da nossa história.

{ 1 ) Separata das «Actas do III Colóquio Poritugal e a Europa» - séc. XVII a XX, 1992.

( 2 ) História de Portugal, edição crítica, com introdução por Isabel de Faria e Albuquerque, prefácio de Martim de Albuquerque, Lisboa, 198_8, vol. I~. p. 127. Por esta excelente edição crítica vemos que das quatro_ edi_çoes publi­cadas em vida de Oliveira Martins, em duas escreveu « . .. c1ênc1a, começa agora, e é a•.

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Atentemos prirmeiramente nas linhas consagradas à batalha de Aljubarrota : ccNão bastava porém uma aclamação, era necessário um baptismo à nova monarquia. Aljubarrota respondeu com as armas à eloquência das cortes; e, vitorioso no conselho e no campo, o trono de D. João 1 ficou inabalável. Seguindo o parecer dos ingleses, seus aliados e mestres na nova táctica militar com que vieram a esmagar em Azincourt a cavalaria francesa, o Mestre de Avis entrincheira o seu pequeno exército. Nortberry, Hartcelle e D'Arteherry, capitães, traçaram a carriagem» (3). Portanto no apoio inglês e até em se ter •adoptado uma táctica militar devida aos ingleses, não vê Oliw~ira Martins sinal de .incapacidade e, com toda a razão.

Séculos decorridos, o Marquês de Pombal Teorganiizou o exér­cito pe>rtuguês. Assim o refere Oliveira Martins: ccpara criar um exército e cons'l:ruir as fortalezas, o marquês mandou vir o conde de Lippe e os oficiais estrangeiros. Alemães, franceses, espanhóis, mas principalmente ingleses, tinham muitos comandos dos regi­mentos do exéTcirt:o: Y.alerai, Weinho1tz, Aguilar, Monroi, Mac­-Donal, Sharp, Preston, Maclean, Smith, And~sem> ("1

). Não vê em tal prova ·de decadência nem de incapacidade do país. Considera esse apoio estrangeiro como um aspecto do «falso Portugal de im­portação» (5) criado por Pombal, e diz: «O dinheiro do Brasil dava para todas as extravagâncias, sensatas e insensatas. Dera para D. João V satisfazer a sua loucura .de ostentação maJestática e fra­desca ; dava agora para o marquês ·de Pombal construir uma nação de estufa, com gente de fora» (6). A gente de fora, onde se incluíam os militares estrangeiros, para Oliveira Martins seriam extravagância, mas sensata ...

Como aceitar a visão que teve do apoio militar recebido na guerra da Restauração, como ver nesse apoio cc a melhor prova da incapacidade do novo Reino»? Parece-nos ser claro o motivo: a ideia da ·decadência de Portugal dominando a visão histórica de Oliveira Martins, é incompatível com um verdadeiro Portugal Res­taurado. Daí essa e outras •afirmações semelhantes sobre a Restau­ração existen~e na sua Históri.a de Portugal. E se o juízo sobre os

(~) Ibidem, vol. 1, p. 158. As variantes assinaladas não modificam o sentido do texto.

( 4 ) Ibidem, vol. II, p. 207. Em duai.s edições não se encontra o segundo parágrafo.

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( 5 ) Ibidem, vol. II, p. 207. Não se assinalam variantes. (ª) lbid'em, vol. II, p. 208. Não se assinalam variantes.

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militares estrangeiros ajudando Portugal na Restiauração é discor· dante do ,que o próprio Oliveira Martins afirmou para 1385 e para a época de Pombal, a decadência do 'período filipino e o artificia­lismo da Restauração ·afirmados pelo historiador são inaceitáveis, como o têm mostrado diversos historiadores, a partir do •trabalho fundamental apresentado em 1940 no «Congresso do Mundo Por­tuguês» por Jaime Cortesão : A Geognafia e a Ecorwmia da Res· tauração ( 7

) •

( Resumo da Comunicação)

( 7 ) Publicado nas a.ctas do Congresso e em opúsculo: Teoria Geral dos Descobrimentos. A Geografia e a Economia da R estauração, Lisboa, 1940.

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A CAMPANHA ANGLO-PORTUGUESA EM CASTELA, EM 1387

TÉCNICAS E TACTICAS DA GUERRA PENINSULAR NOS FINAIS DA IDADE MÉDIA

Dr. JoÃo GOUVEIA MONTEIRO ( * )°

Antecedentes da oampanha

Finais de Fevereiro de 1387: D. João I, à frente de um exército de cerca de nove mil homens, deixa o Porto (cidade onde há poucos dias se casara com D. Filipa de Lencastre) e dirige-se finalmente para as imediações de Bragança. Passa por Vila Real, por Mirandela e por Rebordões, até alcançar (por volta do dia 20 de Março) o mosteiro de Castro de A velãs, a menos de uma légua de Bragança. Por essa altura, já o duque de Lencastre, John of Gaunt (filho segundo de Eduardo III de Inglaterra), deixara Orense, no termo de uma campanha militar de quase sete meses por terras da Galiza, e se dirigira, também ele, para as proximidades daquela cidade transmontana. A junção dos dois exércitos aliados dá-se na pequena aldeia fronteiriça de Babe (ou Bavia), muito perto do dia 24 de Março. Aqui, acertam-se os últimos pormenores de uma invasão conjunta do reino de Castela, a iniciar de imediato e que se prolongaria até aos prim.eiros dias de Junho de 1387 (1).

Mas, afinal, qual era a razão de ser desta invasão? Quais os objectivos estratégicos que. o exército aliado tinha em mente, ao reunir-se na fronteira transmontana com Castela?

(*) Assistente da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Bol· &eiro da J.N.I.C.T.

(1) A reconstituição do itinerário do exército anglO";>Ortuguês que aqui se apresenta é feita com base nas informações das fontes narrativas e, sobre­tudo, no estudo muito criterioso de A. Botelho da Costa Veiga (1940: 29-36), a completar com H. Baquero Moreno (1988: 29-33) e P. E. Russell (1955: 449-494 ),

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Sem querer entrar em detalhes excessivos, convirá recordar que, desde os finais do reinado do nosso D. Fernando, Portugal procurara na Inglaterra uma parceria militar que lhe permitisse fazer frente ao poderio bélico castelhano. D. João I, subido ao trono em 1385, numa conjuntura político-militar extremamente pericli­tante, procurou reavivar essa ligação, do que viria a resultar, desig­nadamente, a presença de largas centenas de soldados ingleses (no­meadamente arqueiros) na batalha de Aljubarrota e a assinatura do célebre tratado de aliança de Windsor, em 9 de Maio de 1386. Para Portugal, a cumplicidade com a Inglaterra consÚtuía, poi3, a garantia de que não teria de enfrentar sozinho a ameaça político­-militar personificada pelas ambições expansio·nistas de D. Juan I de Castela, fundamentadas nos acordos assinados na fase terminal do infeliz reinado de D. Fernando e que, nos últimos meses de 1386, estavam ainda longe de se encontrar dissipadas.

Simultaneamente, do ponto de vista inglês, a aliança militai· com o pequeno reino de Portugal tinha, também, um interesse estra­tégico muito expressivo : é que, envolvida há décadas num compli­cado confronto com a França (a Guerra dos Cem ÀTWs) e constante­mente confrontada com o incómodo do auxílio militar (especial­mente naval) que a mO'Ilarquia castelhana prestava aos franceses, a Inglaterra tinha toda a vantagem em neutralizar a aliança franco­-castelhana, se possível derrubando do trono D. Juan I. Para esse efeito, o <<chemin de Portyngak» (como dizia o pitoresco cronista francês Jean Froissart) era uma solução a considerar com interesse : ·o pequeno reino lusitano, não só dispunha de uma força naval que poderia ser muito útil à defesa dos interesses ingleses, como também, pela sua posição geográfica, configurava uma magnífica <e.ponte» para uma invasão inglesa de Castela. Esta invasão, de resto, encon­trava-se «legitimada» pelo facto de o actual monarca castelhano ser o herdeiro directo de Henrique II, o bastardo conde de Trastâmara que, em 1369, usurpara violentamente o trono a seu meio-irmão, o .lendariamente cruel D. Pedro I. Ora, quando isso aconteceu, muitos ccpetristas» haviam-se refugiado em Inglaterra, encontrando junto da corte inglesa (e nomeadamente do duque de Lencastre) uma protecção bem pouco desinteressada. Dessa relação resUltara, inclusive, o casamento do duque com D. Constança, filha do malo­grado D. Pedro.

Assim, ao desembarcar na Corunha em Julho de 1386, à frente de uma armada de mais de 100 navios ( 12 dos quais portugueses) que transportava um exército de cerca de 7000 homens, John of Gaunt podia declarar que, em nome de sua mulher, vinha para reclamar o trono castelhano. Sabia, é claro, que para isso contaria

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com o empenhado auxílio de D. João 1 de Portugal, não só devido às alianças diplomáticas que os ligavam como também dado o evi­dente interesse da monarquia portuguesa em criar problemas sériol'l a D. Juan 1 de Castela, de forma a evitar que este pudesse pôr em prática qualquer projecto de desforra de Aljubarrota e, se possível, a obrigá-lo a reconhecer, finalmente, o «Mestre de Avis» como rei legítimo de Portugal.

Dentro deste enquadramento, e após uma campanha compli­cada na Galiza (onde a conquista de muitas praças não compensou a verdadeira razia sofrida pelo exército inglês, provocada tanto pelos combates como pelo calor, pela falta de alimentos, pelos vinhos e pelas diarreias) o duque de Lencastre avistou-se uma primeira vez com o seu aliado, na Ponte do Mouro (perto de Monção), em 1 de Novembro de 1386. Aqui, o pretendente inglês ao trono de Castela e o monarca português confirmaram a sua amizade e as suas pro­messas de auxílio recíproco; segundo relata Fernão Lopes (2), D. João I comprometeu-se nesta altura a reunir, até ao primeiro dia das oitavas do Natal seguinte, um exército composto por 2000 lanças, 1000 besteiros e 2000 peões, o qual, inteiramente pago pelo monarca português, seria utilizado durante pelo menos oito meses ao serviço do duque de Lencastre. Em contrapartida, John of Gaunt comprometia-se a (caso alcançasse o seu objectivo de conquista do trono de Castela) doar à Coroa portuguesa uma série de vilas e lugares castelhanos fronteiriços ( incluindo Ledesma, Ciudad Rodrigo, Plasencia, Cáceres, Mérida e Badajoz) localizados numa faixa com cerca de 80 km de largura e mais de 350 km de comprido, a qual se prolongava desde Matilla de Arzón (entre Zamora e Salamanca) até Fregena (situada menos de 100 km a NE de Serpa). Como forma de consolidar esta aliança, acordou-se ainda o casamento de D. João I com uma das filhas do duque de Lencastre (no caso D, Filipa - cuja mãe não era D. Constança de Castela, mas sim a primeira esposa do duque, de nome D. Branca -, evitando-se assim, provavelmente a contento de ambas as partes, envolver demasiado o monarca português nos assuntos intenws de Castela).

A invasão de Castela por um exército anglo-português ficou, assim, aprazada para o Natal de 1386. Em pleno Inverno, portanto, o que estava longe de ser uma época propícia a movimentações militares, dadas as dificuldades de alimentação e de mobilidade experimentadas neste período do ano por homens e por montadas. A pressa explica-se, entretanto, em função do prometido auxílio

{-Z) V. F. Lopes, Cr6nica del Rei dom João I da boa memória, Parte Segunda, cap. XCIII , pp. 203-205.

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de Carlos VI de França ao seu homólogo castelhano. Com efeito, já no Verão de 1386, aquando do desembarque inglês na Corunha, o rei de França enviara cerca de mil homens de armas franceses para Castela, sob o comando de Pierre de Villaines e de Olivier du Guesclin. E agora, previa-se um reforço da ordem das 2000 lanças, que deveria ser chefiado pelo duque de Bourbón (parente do próprio Carlos VI).

Apesar disso, a reunião do contingente aliado demorou bas­tante mais do que o acordado em Ponte do Mouro. Não tanto por culpa do duque, o qual até via, com apreensão, a sua força militar a decrescer progressivamente: com efeito, o seu exército não passava já, em finais de 1386 (e segundo estima Pero López de Ayala C) - o célebre cronista e chanceler castelhano - e repete Fernão Lopes) de uns 600 homens de armas e de outros tantos arqueiros. Mas, muito provavelmente, por <<culpa>l dos portugueses. Sabemos, pela Cro11Jica do Condestabre ( 4 ) e por Fernão Lopes ("), como Nuno Álvares Pereira e, depois, o próprio D. João I se tiveram de empenhar no recrutamento (sempre difícil e rmoroso) de tropas no Alentejo, nos últimos dois meses de 1386. Acabariam, até, por reunir um exército bem maior do que o proonetido em Ponte do Mouro : cerca de nove mil homens, dos quais três mil lanças, dois mil besteiros e quatro mil peões ; este facto não deixa de ser surpreen­dente, mas é provável que, conhecedor do esvaziamento do exército inglês e receoso de uma aventura militar mal suoedida, D. João I se tivesse procurado precaver. Além disso, corriam já rumores de negociações secretas com vista a um entend:ianento entre o duque e o monarca castelhano, provavelmente fomentadas por D. Juan I e admitidas por John of Gaunt após as dificuldades sentidas na Galiza. Coisas como esta devem ter criado uma certa tensão nas relações luso-inglesas durante as últimas semanas de 1386 e as primeiras de 1387, agravadas ainda por algumas complicações sur­~idas em torno do casamento de D. João I com D. Filipa de Lencastre. Este apenas se concretizaria em 2 de Fevereiro de 1387, no Porto e, segundo Fernão Lopes (6), com a significativa ausência dos pais da noiva.

Em todo o caso, as dificuldades surgidas, bem como o atraso português na reunião do seu vasto contingente militar, acabariam

( 8 ) V. P. L. A.vala, Crónica rfpJ Rey Don Juan Primero de Castilla e de León, ano IX.º, 1387, cap. 1, pp. 626-627.

( 4 ) V. Crónica do Co:ndestabre de Portugal, cap. LVII, fols. XLVI e XLVIL (") V. F. Looes, ob. cit .. ca-o. XCIV, 'PP· 206-207. ( 8 ) Idem, ibidem, cap. XCVI, p. 208.

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por não comprometer definitivamente o plano de invasão de Castela elaborado em Ponte do Mouro. Daí o já referido encontro das duas hostes aliadas em Babe, no início da Primavera de 1387. Nesta localidade, a 26 de Março, o duque de Lencastre e a sua mulher, D. Constança de Csatela, assinariam, aliás, uma significativa decla­ração, nos termos da qual renunciavam a todo e qualquer direito sobre a Coroa portuguesa que lhes pudesse advir ,de uma eventual conquista do trono de Castela. Este importante documento encon­tra-se ainda hoje conservado na colecção das Gavetas da Torre do Tombo (XVIII, m. 3, doe. 26; transcr. no vol. VIII, p. 321) e na da Leitura Nova (Livro 1 de Reis, fols. 103-104 ), tendo já sido publicado por Peter Russell, um grande historiador inglês dos assuntos da diplomacia ibérica medieval ( 7 ).

A 26 de Março a campanha podia , pois, começar, com um exército aliado de perto de 11 000 homens (isto é, já bastante «pesado» de alimentar) mas, ao que parece, ,deficientemente abas­tecido, em termos de equipamento próprio para acções de cerco e de artilharia. A fusão das duas componentes numa hoste única não deve também ter deixado de criar algumas dificuldades, já que a liderança política da campanha por parte do duque não encontl'ava correspondência na repartição dos efectivos reunidos. Froissart ( 8 )

comenta, de forma saborosa, que os dois exércitos juntos era coisa que (a não ser na hora da batalha) não podia dar bom resultado, devido à personalidade orgulhosa dos ingleses e ao temperamento «quente» dos portugueses! E Fernão Lopes (9), que explica como o exército aliado se o:r:denava à passagem da fronteira (a cavalo, com as tradicionais vanguarda, duas alas e rectaguarda, e a carriagem ou trem de apoio no meio) observa que Nun'Ãlvares (pouco dis­posto a correr riscos) não cedeu aos pedidos de D. João I para deixar o condestável inglês (Sir John Holland) comandar a van­gua:r:dra, acabando por a repartir com ele.

A defesa castelhana

Sentindo o perigo, D. Juan I (que, segundo Froissart ('1°), con­taria com cerca de quatro mil lanças de franceses e de bretões, mais outras tantas lanças castelhanas - além, naturalmente, de muitas tropas de «2.ª linha», úteis para a guarnição de castelos e de praças-

( 1 ) V. P. E. Russell, 1955: Apêndice X, pp. 571 ·573. ( 8 ) V. Chroniques, t . XIII. ca,p. XVII. parágr. 150, p. 196. (9) V. F. Lopes, ob. cit., cap. C, p. 215. (1°) V. Chroniques, t. XIV, ca<p. XXII, parágr. 207.

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-fortes) tratou de -0rganizar a resistência ao invasor. Provavelmente 1>or conselho dos seus auxiliares franceses ( experimentados nesta táctica - pouco habitual na Península - durante os combates da Guerra dos Cem Anos), -0 monarca castelhano optou por uma «guerra de usura», isto é, de desgaste do adversário. Assim (11

):

- reforçou o mais que pôde as guarnições situad·as na linha fortificada que cobria as aproximações ocidentais à área central do seu reino, nomeadamente Astorga, Léon, Bena­vente, Villalpando, Valencia de Don Juan e Zamora, entre outras;

- colocou forças mais pequenas em. pos1çoes mais recuadas, estacionadas em castelos dispersos pela chamada « T~rra de Campos» (como em Mayorga, em Valderas, em Villa­lobos, etc.) ;

- preservou uma força móvel, destinada a funcionar como um núcleo central de reserva •que, acompanhando o próprio monal"ca (como observa Ayala) (12

) deambulava por aquelas comarcas, entre Salamanca, Tordesilhas e Toro. Para além da sua evidente função preventiva, este núcleo móvel desti­nava-se também a fustigar o inimigo, através da execução de acções de guerrilha levadas a cabo por pequenos con­tingentes de flagelação ;

- confor.me relata Fernão Lopes (1ª), D. Juan 1 tratou também de arrasar alguns lugares chãos descercados e de colher as respectivas gentes e mantimentos em locais defensáveis. Com isso, deixava propositadamente livre ao invasor um terreno já previamente esvazia.do de todos os mantimentos ...

Estamos, portanto, perante uma táctica claramente defensiva, que visava aniquilar pelo cansaço, pela fome e pela saturação o exército aliado. Contra este, D. Juan 1 pretendia evitar qualquer combate em campo aberto (pelo menos até à chegada do duque de Bourbon e do prometido reforço de dois mil homens de armas fran­ceses). É que, como afirma Fernão Lopes (seguindo ias palavras de Ayala), ccel nom tinha vomtade de uentuirar este feito per ba­talha, mas soomente per tal guerra com que se defemder podesse

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( 11 ) V., a este respeito, P. Russell (1955: 458) e J. A. L. Santos (1986: 40). (12) V. P. L. Ayala, ob. cit., p. 627. (J.11) V. F. Lopes, ob. c~t., cap. CI, p. 216.

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seu regno» (u). Entretanto, a diplomacia castelhana não deixaria de tentar o duque de Lencastre com renovadas e sedutoras propostas de negociação, ao mesmo tempo que, sob o comando do Mestre de Alcântara, pequenos exércitos castelhanos assolariam as fronteiras portuguesas, no Alentejo e na Beira, contribuindo assim para a desestabilização psicológica do exército aliado.

Tratava-se, em resumo, de uma táctica muito dispendiosa ( Fer­não Lopes (1s-), por exemplo, comenta como D. Juan I distribuiu soldos aos fidalgos e escudeiros franceses e de outras partes que se prontificaram a vir servi-lo nesta guerra, defendendo as guarnições dos castelos), mas .altamente eficaz e que, como veremos, resultaria em cheio.

(1') Idem, ibidem. (15) Idem, ibidem.

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ITINERÁRIO DA INVASÃO ANGLO-PORTUGUESA DE CASTELA, EM 1387

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A invasão ( 1~)

Saído de Babe a 25 ou 26 de Março de 1387, o exército 'aliado cruzou a fronteira luso-castelhana a leste de Bragança, atravessando n rio de Maças e ocupando Alcaíiices, logo a 27 de Março. Três dias depois, passou à ribeira de Tábara (ou Távora), alcançando Benavente de Campos (localizada já 'ª 14 léguas da fronteira e a c. 70 km a sul de León) no dia 2 de Abril.

Em Benavente, o exército anglo-português estacionou perto de uma semana, aqui tendo desencadeado a sua primeira operação militar de vulto, que visava a tomada desta poderosa fortaleza, defendida por uma guarnição de 600 homens de armas castelhanos e por muitos franceses, gascões e soldados de outra proveniência. Contudo, porque a praça era forte e estava bem defendida e porque os aliados não iam devidamente apetrechados com artifícios de assédio às muralhas, o ataque fracassaria. Registaram-se, é certo, algumas escaramuças vitoriosas às barreiras e em redor da vila, veri­ficou-se ainda uma bem sucedida operação de ida «à forragem» ( i é, em busca de alimentos) a Castro Calvom ( 5 léguas a norte de .Benavente) por parte de Martim Vasques da Cunha, João Fer­nandes Pacheco e outros fidalgos portugueses (que acabaram por tomar o lugar, depois de lhe pôrem fogo às portas), mas o objectivo essencial, a tomada da poderosa Benavente, foi impossível de al­cançar. Assim, depois de curiosos e cav1aleirescos desafios para justar entre sitiantes e sitiados (de que resultariam combates que atraíam a atenção de um Illll'Illeroso e aficcionado público e que os cronistas se comprazem em descrever largamente) o duque de Lencastre e D. João 1 decidiram abandonar Benavente e, a 1 O de Abril, partiram na direcção de Villaquejida (ou Queixeda), um lugar situado 18 km a norte de Benavente de Campos e que alcançaram depois de passar por Matilla de Arzon.

A partir de Villaquejida, o exército aliado terá procedido a operações de reconhecimento e de abastecimento para leste, na direcção de San Millán de los Caballeros, o que suscitou uma res· posta pronta por parte da guarnição de Valencia de Don Juan, junto ao vau do rio Esla. Aliás, Fernão Lopes (11

) descreve aqui uma rija escaramuça na água, em Santilham, na qual intervieram diversos fidalgos portugueses e de que resultaria o roubo de algum gado e de outros mantimentos. No entanto, o interesse primeiro

(11) V. a nota 1. (1') V. F. Lopes, ob. cit.; oap. CV, pp. ~221.

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do exército anglo-português era conseguir forçar o adversário a sair dos seus abrigos e a enfrentá-lo em batalha campal, em qualquer ponto da ccTierra de C(]Jmpos». Por isso, ·os aliados rapidamente se afastaram de Villaquejida, marchando (a 11 ou 12 de Abril) na direcção de Roales. Nesta pequena e não bem cercada vila (como observa Ayala) C8

), apenas defendida por camponeses e que, por­tanto, não tiveram dificuldade em ocupar, o duque e D. João 1 terão instalado uma base de operações temporária, situada entre as poderosas praças de Villalpando e Mayorga.

Com efeito, Costa Veiga (1940: 34-35) admite um estaciona­mento do exército aliado em Roales entre 12 e 22 de Abril. Durante este período, e segundo se poderá deduzir do relato algo confuso de Froissart (1ª ), é possível que o contingente inglês tenha realizado uma aproximação de tipo exploratório na direcção de Villalobos. Em todo o caso, novamente reagrupado em Roales, o exército anglo-luso procedeu depois ao reconhecimento das defesas de Valderas (situada a meio-caminho entre Benavente e Mayorga), para lá se encami­nhando de seguida. Aliás, segundo Fernão Lopes Cº), terá corrido nesta altura entre o exército invasor a notícia de que Valderas estava a ser desamparada, facto que levou a que João Fernandes Pacheco, João Gomes da Silva, Antão Vasques e outros cavaleiros portugueses acabassem por ser surpreendidos, à porta da vila, por 400 homens de armas da forte guarnição de Valderas, daí resul­tando uma violenta escaramuça, com mortos e feridos de amba~ as partes.

Entre 24 de Abril e 8 de Maio, a hoste aliada estacionou, portanto, em frente de Valderas, um dos centros mais valiosos da zona ocidental da cc TÍ-erra de Campos>>, Valderas (apesar do que insinua Ayala) ( 21

) estava bem guardada, por uma força de caste­Jhanos, de franceses e de outros estrangeiros, incluindo alguns afama.­dos besteiros do rei. Curiosamente, e como relata Fernão Lopes (22

),

o muro do castelo (situado num rochedo sobranceiro ao rio Cea) era ainda de taipa e mostrava-se vulnerável em cert-os pontos. Por isso, e porque o exército aliado já transportava consigo alguns arti­fícios de cerco (nomeadamente escadas e um pequeno engenho) D. João 1 e o duque decidiram combater o lugar. Porém, antes ainda das trombetas darem o sinal para o início do ataque, os de

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('18) V. P. L. Ayala, ob. cit., pp. 626-627. (19 ) V. Froissart, Chroniques, t. XIII, cap. XII, parágr. 107, T>· 27. (2º) V. F. Lopes . ob. dt., cap. CV, p. 221. (2t) V. P. L. Ayala, ob. cit. (22) V. F. Lopes, ob. cit., cap. CVI, p. 221.

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dentro «tomarom tal medo daquelw grua que nam aujam em vsso de ueer» ( 23

) que, convencidos de que não haveria solução para o seu caso, propuseram um acordo (uma « prei-tesia») , isto é, deci­diram negociar a sua rendição.

Ao que parece, a população local não viu com bons olhos as condições admitidas pelo intimidado comandante da praça (Sancho de Vellasco ), o qual se terá disponibilizado a prestar homenagem ao duque (como pretendente ao trono de Castela) e a fornecer-lhe mantimentos. Por isso, antes de saírem da praça (pelo meio de duas linhas de soldados de Nun'Alvares e escoltados até meia-légua de distância) os populares de Valderas terão procedido à destruição dos mantimentos e das forragens que tinham consigo. Este acto de lealdade para com D. Juan I seria mais tarde devidamente recom­pensado por este monarca castelhano (v. Russell, 1955: 472).

De qualquer forma, Valderas foi ocupada e saqueada até ao tutano, e não sem incidentes. É que, como observa Fernão Lopes {24

),

os ingleses costumavam portar-se pessimamente fora da sua terra (os portugueses da época de D. Fernando que o digam) e geral­mente administravam mal os mantimentos que obtinham. Assim, e para evitar problemas, o saque foi organizado em dois turnos : os ingleses roubavam até ao meio-dia, seguindo-se-lhes os portu­gueses, que completariam o roubo até ao cair da noite. Ora, como é fácil de compreender, os soldados portugueses não gostaram nada da ideia e foi com muita dificuldade que assistiram ao saque operado pelos ingleses. Acabaram, portanto, por se misturar com eles antes da hora estabelecida, facto que levou D. João I a castigar violenta­mente, de espada na :mão, alguns dos seus homens, daí resultando vários feridos e mesmo dois mortos !

Embora bem sucedido. o ataque :a Valderas, ocorrido já mais de um mês após o início da campanha, começava a convidar os aliados a repensar a sua estratégia político-militar. Afinal, os pro­blemas com o abastecimento tornavam-se já preocupantes e os fac­tores de tensão entre portugueses e ingleses manifestavam-se à luz do dia a cada passo. De resto, é provável que D. Juan I tivesse, por esta altura, intensificado as suas propostas de negociação com John of Gaunt, fazendo circular emissários e mensageiros pelo arraial dos aliados e afectando, assim, o empenho bélico do exército invasor (v. Russell, 1955: 474-475).

(~) Idem, ibidem (p. 222). (1.4) l dem, ,ibidem, cap. CVII, pp. 223-224.

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Apesar disso, no dia 9 de Maio, depois de destnrir a fortifi­cação ·e a povoação de Valderas, a hoste anglo-portuguesa avançou 20 km para sul, estacionando no dia seguinte em Villalobos. Segundo Fernão Lopes (2s), este era um lugar bem cercado, apresen­tando, à volta das fortes muralhas, uma cava ou fosso com uma parte seca e outra cheia .de água. Não faltava gente de ar.mas para defender o lugar, mas também não beneficiavam do comando de nenhum capitão famoso. Os aliados trataram, então, de encher com erva a parte seca da cava, apesar da resistência dos atiradores sitiados e do mau tempo que se fazia sentir. Foi uma operação morosa (F. Lopes {26

), talvez com algum exagero, afirma que demorou 3 dias) e que obrigava, naturalmente, os soldados anglo-lusos a irem em busca de erva pelos campos arredor de Villalobos.

Ora, exactamente durante uma operação deste género (sempre arriscada, devido ao perigo das emboscadas), um grupo de 18 cava­leiros e escudeiros aliados, tendo-se atrasado e enganado no caminho de regresso, foi surpreendido (a cerca de uma légua do arraial) por 400 lanças castelhanas, acompanhadas de muitos peões. Na imi­nência de serem atacados e .dizimados, os «nossos» desviaram-se para um lugar amotado (pequeno e baixo, segundo Fernão Lopes ( 21

)

talvez um antigo local de sacrifício aos deuses). Aí, desmontaram e improvisaram um dispositivo de defesa muito interessante: colo­caram as montadas num círculo exterior, todas atadas umas às outras, e colocaram os homens de armas no meio, com as lanças nas mãos ~ as costas uns contra os outros. Depois, um escudeiro português (Diogo Peres do A velar, que vivia com Martim Vasques da Cunha) arriscou-se a passar por entre os castelhanos (todo estendido ao longo do cavalo lançado a galope, de forma a evitar as lanças ·que os castelhanos lhe arremessavam) e dirigiu-se para o arraial, onde deu conta do sucedido e pediu socorro. Enquanto este não chegava, os 17 homens de armas que haviam ficado resistiram ao ataque dos castelhanos, que subiam ao cabeço arremessando as suas lanças. Beneficiando .do facto de estarem situados num ponto mais elevado, e protegidos pela barreira formada pelos cavalos, os cavaleiros e escudeiros portugueses e ingleses ( com destaque para Martim V as­ques da Cunha - ou Gonçalo Vasques Coutinho, na versão da Crónica do Condestabre) (2ª) apanhavam as lanças que lhes eram

100

( 2S) Idem, ibidem, cap. CVIII, p. 244. (2º) Idem, ibidem. (27) Idem, ibidem. {

28) V. Crónica do Condestabre, cap. LVII, foi. XLVII.

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atiradas e devolviam-nas com redobrada eficácia, provocando a morte de muitos adversários. Conseguiram, assim, resistir por algum tempo, o suficiente até que chegasse o socorro de Nun'Álvares, que acabaria por provocar a debandada dos castelhanos.

Curiosamente, no dia seguinte correu no arraial o boato de que Villalobos estava em vias de se render, o que levou alguns moços, azeméis e homens de pé do exército aliado a correr à erva da cava que andavam a encher. Este episódio, sucedido à revelia das ordens de D. João 1 (e que, por isso, suscitou deste a aplicação de novos castigos exemplares, induindo o decepamento de seis moços consi­derados culpados) comprova que, por esta altura, já o exército anglo­·português sofria de facto muito com a escassez de alimentos que resultava da táctica de «guerra de usura» adoptada por D. Juan 1 e seus conselheiros franceses. Isto animava os sitiados a prolongar a resistência, arrastando assim, ainda mais, uma operação de cerco já de si nada fácil.

Em todo o caso, e após múltiplas escaramuças (nomeadamente junto às zonas do fosso cheias de água) Villalohos acabou por se render ao duque. Os termos desta rendição são também, só por si, muito significativos: John of Gaunt exigia que tivessem voz por ele e por sua mulher ( como legítimos reis de Castela ) e. . . que lhes vendessem algumas cântaras de vinho, fanegas de trigo e demais mantimentos !

Ocupada Villalobos e içadas as bandeiras do duque nas portas da vila, os aliados procuraram então forçar as tropas castelhanas e francesas a uma batalha campal. Para isso, colocaram o seu exér­cito entre Villalpando e Benavente (v. Russell, 1955: 477), numa atitude de evidente provocação que, contudo, não suscitou qualquer reacção dos adversários, muito disciplinados na táctica de contenção que havam decidido ade>ptar (pelo menos até à chegada dos reforços franceses do duque de Bourhon). Exemplificativo desta táctica é o episódio ocorrido com Nuno Álvares Pereira quando, por ordem do rei português, foi em guarda de um grupo de gente que D. João 1 mandara à erva na direcção de Villafáfila (um lugar apenas 18 km a sul de Villalpando e em cujas lagoas existia bastante sal) : detec­tado pela guarnição francesa de Villalpando (chefiada pelo capitão francês O li vier du Guesclin), a cavalgada de Nuno Álvares (já de regresso e próxima do arraial aliado) foi atacada de frente por um contingente francês, o qual recuperou o saque que os portugueses transportavam. Nuno Álvares reuniu então, rapidamente, uma po­derosa força e avançou sobre Villalpando, onde (para sua satis­fação) encontrou ainda os 1000 homens de armas franceses da guarnição no exterior da praça e em ordem de batalha. Parecia,

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pois, que tinha chegado Q momento para um confronto em campo aberto em larga escala ; porém, os franceses optaram por reentrar na cidade, obrigando o condestável português a um retorno inglório a Villalobos.

Naturalmente que o facto de D. Juan I persistir nesta opção de ir deixando correr o tempo, ao mesmo tempo que castigava os aliados com a fome, com acções de guerrilha e com pequenas in­cursões sobre a fronteira luso-castelhana e que controlava os movi­mentos do exército invasor com uma força de três a quatro mil lanças (a qual se ia deslocando pelas diversas comarcas, mas que não se dispunha nunca a um enfrentamento decisivo em campo aberto) provocava o desespero do exército anglo-português e acabou mesmo por obrigar o duque de Lencastre e D. João I a repensar toda a sua estratégia. Amarrado pelos compromissos assumid·os em Ponte do Mouro, o monarca português não poderia provavelmente ser muito incisivo na propositura de qualquer antecipação do fim .de uma campanha que prometera acompanhar durante pelo menos 8 meses, se necessário. Ainda assim, Froissart (2ª) afirma que o rei português aconselhou o duque a descansar na Galiza e a pedir reforços a Inglaterra, o que este rejeitou, por ter receio de ser atacado em sep·arado. De facto, o contingente inglês era já dema­siado reduzido para uma aventura desse género; o mesmo cro­nista ( ªº) recorda como o calor intenso levava os ingleses a beber desmesuradamente, para se refrescar e para esquecer as dores, aca­bando contudo os vinhos por rebentar com eles; ao mesmo tempo, os dias e as noites quentes, seguidos de frias madrugadas, punham-nos doentes ; com isto e com as diarreias, os ingleses (<que nunca se ambientaram à paisagem e ao clima peninsulares e que recordavam com saudades a guerra da França) morriam que nem tordos, tanto os barões como a geinte miúda. De resto, também Ayala ("1

) refere a falta de viandas e a peste que começava a grassar entre o arraial aliado. Fernão Lopes (32

), pelo seu lado, acrescenta ainda que D. João I depressa compreendeu o isolamento do duque e a sua incapacidade para, com aquela gente que trazia, conquistar Castela. Com efeito, a adesão às pretensões de John of Gaunt era quase nula, e os lugares tomados eram relativamente fracos e maus de manter, porque localizados muito dentro do reino. Na verdade, conquistar Castela vila a vila seria um processo que nunca teria fim !

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(29) V. Froissart, Chraniques, t. XIV, oaip. XXII, parágr. 207, pp. %-98. (liº) Idem, ibidem. (~ 1 ) V. P. L. Ayala, ob. cit., oaps. II e III, pp. 627-628. (") V. F. Lopes, ob. cit., cap. CX, pp. 229-230.

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Nestes termos, e na versão de Lopes ( 33), o monarca português

sugeriu a seu sogro que fosse a Inglaterra buscar mais tropas, ou, em alternativa, que tratasse uma boa avença com D. Juan I ( desig­nadamente negociando o casamento do herdeiro castelhano com uma das filhas que tinha de D. Constança). O duque - que possivel­mente já há muito que admitia uma solução deste género - parece ter concordado com aquela segunda hip·ótese, a qual, para todos os efeitos, representava o início do fim da invasão anglo-portuguesa de Castela.

Nestas circunstâncias, por volta de dia 11 de Maio ( i. é, cerca de um mês e meio após a partida de Babe) o exército aliado decidiu retirar de Castela. Alguns capitães ingleses até já pediam salvo­·condutos a D. Juan I, de forma a poderem rumar até à Gasconha sem problemas (para além daqueles que as doenças lhes causavam e que faziam com que muitos deles fossem morrendo pelas vilas castelhanas por onde iam passando). A facilidade com que estes salvo-condutos eram autorizados pelo duque e por D. Juan I sugere claramente que, apesar do espanto do rei português, se consideravam já como muito fortes as probabilidades de um entendimento anglo­·caste1hano.

Entretanto, os aliados procuraram fazer uma retirada honrosa, pressionando, até ao limite das suas possibilidades, os seus adver­sários castelhanos e franceses. Neste sentido, não retornaram a Portugal pelo caminho mais curto, optando antes por seguir para Villalpando ( 45 km a NE de Zamora), onde terão estacionado entre 12 e 14 de Maio. A praça não foi formalmente atacada, mas houve lugar a algumas escaramuças nos campos envolventes. Numa delas, ocorreu mesmo a morte trágica de um famoso fidalgo por­tuguês, Rui Mendes .de Vasconcelos : ferido no braço por um virotão ervado ( i. é, por um projéctil de besta embebido num veneno ve­getal - provavelmente o acónito, como admitiu Sa·lvador Dias Arnaut num belo estudo sobre o assunto - 1947: 218-219), Rui Mendes viria a sucumbir ao fim de três dias, tendo a sua morte pro­vocado grande dó no arraial, nomeadamente da parte do monarca português (que encontrara nos Vasconcelos, os jovens da ccala dos namorados» de Aljubarrota, preciosos apoiantes de primeira hora no difíci•l processo de 1383-1385, por isso mesmo os elevando a posições cimeiras na Ordem Militar de Santiago).

(~) Idem, ibidem.

10.1

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Depois de Villalpando, o exército anglo-português encami­nhou-se para sul, atravessando o rio Douro num vau situado entre Toro e Zamora, possivelmente no dia 15 de Maio (v. Russell, 1955: 481 ) . Como habitualmente, esta travessia não deve ter sido fácil, pois a pesquisa dos vaus era normalmente complexa. Fernão Lo­Ies (34

) informa-nos da morte de um escudeiro (Álvaro Vasques, alcaide de Alcanede) nesta operação, enquanto que Froissart {35

)

afirma que a travessia só foi possível devido à captura de um escudeiro castelhano, forçado a servir de guia e, por isso mesmo, mais tarde decapitado pelos seus compatriotas. Cruzado o rio, e se:gundo Peter Russell (1955: 481), os aliados tomaram a velha estrada militar roonana e árabe que ligava o Norte e o Sul de Espanha (o Camiiío de fu Pliata) e, a 16 de Maio, acampavam em Corrales, um lugar situado junto ao Douro e localizado a e. 40 km de Sala­manca. Baquero Moreno ( 1988: 32 ), por exemplo, atesta documen­talmente a presença de D. João 1 no arraial de Corrales naquela data. Depois, provavelmente devido à proximidade da guarnição de Salamanca (onde se encontrava o infante D. João de Castro, filho de D. Pedro 1 e de D. Inês de Castro, há muito exilado em Castela) terão abandonado o Camiiío de la Plata, rodeando a cidade e atravessando o rio Tormes (eventualmente em Baiíos de Ledesma) até alcançarem as imediações de Golpejas (v. Russell, 1955: 482). Não puderam, entretanto, evitar um ataque de 300 ginetes ( i. é, cavalaria ligeira) da guarnição de Salamanca sobre a rectaguarda portuguesa, o qual seria repelido com sucesso por Nuno Álvares Pereira, depois de uma manobra habilidosa.

Na região de Salamanca, a hoste invasora permaneceu pelo menos oito dias, facto que terá ficado a dever-se à crónica falta de mantimentos, bem como à ausência de garantias definitivas dadas por D. Juan 1 ao duque de Lencastre no que respeita à aceitação de um acordo anglo-castelhano, que continuava a negociar-se. Assim, estão documentados arraiais aliados em Matilla de Campos (a 26 de Maio) e em Al.dehuela de Yeltes (ou Aldeoielas), a 29 de Maio ( v. B. Moreno, 1988 : 32). Vivendo-se uma situação de impasse, não parece terem-se então registado grandes peripécias bélicas. Mas é muito interessante observar a Í0111lla como ingleses, por um lado, e franceses das guarnições fronteiriças castelhanas, por outro, muitos deles velhos conhecidos dos combates da Guerra dos Cem Anos, aproveitaram a interrupção dos confrontos para se desafiarem mu-

(") V. F. Lopes, ob. cit., caip. CXI, p. 231. ( 85 ) V. Froissart, Chroniques, t. XIV, cap. XXII, parágr. 203, pp. 88-90.

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tuamente para justas de guerra, as quais, além de ser travadas com grande animação, eram sempre acompanhadas por lautas comezainas e confraternizações bem regadas, utilizando-se para esse efeito o pão, o vinho e os carneiros que os franceses generosamente traziam de dentro das p1·aças que estavam encarregados de defender ! Quem parece não ter achado muita graça foram os portugueses, provavel­mente excluídos dessas confraternizações ; é que, como comenta Fernão Lopes, a generalidade da hoste passava já uma fome canina, ao ponto de disputar os ninhos de corvos que encontrava pelo caminho. D. João 1, contudo, não parecia sofrer muito destas pri­vações pois, como sarcasticamente observa o cronista português, «nunca el-Rey erau,a tres iguarias, <ksfeito e assado e cozido» (3º) ...

Nos últimos dias de Maio de 1387, o exército aliado avançou finalmente para Ciudad Rodrigo, em frente da qual viria a esta­cionar. Só que entretanto, sabendo da existência ·de muitos doentes na hoste anglo-portuguesa, o infante D. João de Castro, o Mestre de Alcântara e outros capitães castelhanos e franceses colocados naquela região haviam juntado as suas gentes (cerca de quatro mil lanças) e avançado de noite até uma distância de uns 400 metros de Ciudad Rodrigo (Fernão Lopes (31

) fala em 2 tiros de besta). Aqui, colo­caram-se pé-terra e esperaram pela chegada do exército invasor. Foi uma péssima surpresa para uma hoste fatigaida, esfaimada e desmoralizada, a qual, para evitar um confronto directo naquelas condições, se viu obrigada a forçar a passagem de um pequeno rio a 3 km de distância (v. Russell, 1955: 484), através de uma ponte estreita que se encontrava guardaida por homens de armas, peõ·es e besteiros de D. Juan 1. Uma hesitação fatal dos castelhanos (que esperaram pela chegada de reforços para contrariar a manobra aliada) permitiria que esta se consumasse a tempo e com êxito, apesar das dificuldades.

Fôra, pode dizer-se, o último episódio digno de registo desta campanha militar. Com efeito, o exército aliado reentrou de ime­diato em Portugal, acampando, primeiro, em Vale-.de-la-Mula (na fronteira luso-castelhana) e alcançando, depois, Almeida, onde já se encontrava a 4 de Junho. Terminava assim sem glória (embora, como veremos, com algum proveito), menos de 1 O semanas depois do seu arranque, uma campanha que, partindo das imediações de

14

(H) V. F. Lopes, ob. cit., cap. CXII, p. 234. (U) Idem, ibidem.

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Bragança e direccionada para as vastas planícies leonesas, se pro­pusera conquistar para D. Constança um trono que seu marido (o duque de Lencastre, John of Gaunt) reclamava ser seu de pleno direito.

Termo e balanço da campanha

Regressado a Portugal, restava ao exército aliado licenciar os seus contingentes e garantir a saída mais airosa possível para a disputa que não tinha conseguido resolver pela força das armas.

Relativamente ao primeiro aspecto (a desmobilização das tro­pas) não houve qualquer dificuldade: os ingleses (incluindo o condestável John Holland) continuavam, em massa, a despedir-se do duque, exibindo, perante o espanto de D. João I, salvo-condutos de D. Juan para atravessar Castela, rumo à Gasconha. O monarca português, pelo seu lado, apesar de desconfiado dos potenciais resul­tados da visível reaproximação entre castelhanos e ingleses, licenciou também os seus homens ( excepto 3 O O lanças, observa Froissart) ( 18

)

e enviou Nun'Alvares para o Alentejo, a fim de vigiar a respectiva fronteira. Posto isso, John of Gaunt e o monarca de Portugal, seu genro, dirigiram-se para Trancoso. D. João I esteve nesta vila entre 8 e II de Junho, partindo de seguida a pé para Santa Maria da Oliveira (em Guimarães), de forma a cumprir o voto que formulara antes da sua entrada em Castela.

Ora, foi precisamente em Trancoso e até aos finais do mês de Junho que decorreram as negociações anglo-castelhanas que poriam fim ao conflito, ao prepararem, de forma pormenorizada, um ex­tenso acordo que viria a ser burilado e ratificado em Bayonne (uma localidade francesa então sob o domínio inglês e muito próxima de Castela) em 8 de Julho de I388. Entre muitas outras coisas, ingleses e castelhanos acordaram no casamento de D. Henrique (herdeiro da coroa de Castela) com D. Catarina de Lencastre, comprome­tendo-se D. Juan I a entregar em dote diversas vilas e lugares, além de pagar ao duque 600 mil francos à cabeça, mais 40 mil francos anuais em vida de John of Gaunt ou da duquesa sua mulher (a quem eram também cedidas algumas vilas). Em contrapartida, o duque e D. Constança desistiriam das suas pretensões ao trono de Castela, renunciando ao respectivo título. É notável a precisão com que

(H) V. Froissart, Chran!iques, t. XIV, cap. XXII, parágr. 212, p. 111.

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Ayala Cº) (e, na sua esteira, Fernão Lopes (4°)) enunciam as cláusulas do acordo de Trancoso-Bayonne, que, entretanto, os histo­riadores se encarregaram já de descobrir e de publicar ( v. Palmer & Powell, 1988 ).

Do ponto de vista do duque de Lencastre, pode dizer-se que esta avença não deixou de constituir uma boa solução. Feitas as contas, entre o seu desembarque na Corunha, em finais de Julho de 1386, e o Verão do ano seguinte, John of Gaunt conseguira converter em rainhas peninsulares duas das suas filhas: D. Filipa, em Portugal, e D. Catarina, em Castela. Este facto, permitia-lhe aspirar a exercer alguma influência, ao menos neutralizadora, sobre a política pró-francesa que a dinastia trastâmara vinha praticando em Castela. Por outro lado, não há dúvida de que o duque defendeu bem os seus interesses pessoais e materiais, garantindo para si uma imensa fortuna que lhe assegurou uma reforma tranquila. O fiasco militar (de resto com pouca ressonância em Inglaterra, dada a difícil conjuntura política interna, que levou mesmo à deposição do rei Ricardo II) ficava assim, de alguma forma, abafado pelo exilo conseguido à mesa das negociações (v. Russell, 1955: 494).

De facto, foi com extrema dificuldade que D. Juan 1 cumpriu a sua parte dos acordos, nomeadamente a que implicava o paga­mento de avultadas somas em numerário ao seu inimigo e futuro sogro de seu filho herdeiro. Ayala ( 41

) informa mesmo que o monarca castelhano foi obrigado a reunir cortes (em Briviesca) para obter autorização para decretar um tributo geral, o qual se acabaria por revelar insuficiente e não dispensaria D. Juan 1 de, a exemplo do que fizera noutra ocasião o seu pai, lançar um emprés­timo pelo l"eino (repartido por cidades, vilas e lugares), a descontar nas peitas e nas rendas que eram normalmente pagas ao rei. Tem, contudo, de compreender-se que estas aflições financeiras eram para o rei de Castela, ainda assim, um mal menor. O mais difícil fôra resistir com sucesso à invasão anglo-portuguesa e, assim que esta acabou, convencer o duque de Bourbon e as duas mil lanças francesas - que, por coincidência ou não, nos primeiros dias de Junho (segundo se depreende dos relatos de Ayala (42

) e de F. Lopes ( 48)}

chegaram finalmente a Castela a fim de auxiliar D. Juan 1 a pôr

( 19) V. P. L. Ayala, ab. cit., cap. VI, P'P· 630-631; e ano X.•, 1388, cap. II, pp. 634-639.

( 4º) V. F. Lopes, ob. cit., cap. CXV, p. 238; e cap. CXIX, pp. 245-247. ( 41 ) V. P. L. Ayala, ob. cit., ano X.•, 1388, cap. I, pp. 633-634; e ca',;)'. Ili,

pp. 639·640. ( 42 ) V. P. L. Ayala, ob. cit., ano IX.•, 1387, caps. IV e V, pp. 628-630. ( 41)V. F. Lopes, ob. cit., cap. CXIV, pp. 236·237.

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batalha ao exército aliado - de que Jª nao eram nem necessar1as nem convenientes, sendo por isso preferível que retornassem à pro­cedência! Evidentemente, isto não se conseguiu sem chorudas com­pensações financeiras que delapidaram ainda mais o já enfraquecido tesouro castelhano. Em todo o caso, D. Juan conseguira aguentar-se uo trono e, olhando sempre para oeste, conservava ainda esperanças numa futura e grande desforra de Aljubarrota.

D. João 1 bem se apercebia disto. Por essa razão, e sentindo-se claramente desprotegido pelo teor dos acordos negociados em Tran­coso (onde, por incrível que pareça, o duque de Lencastre quase não se preocupara em referir expressamente Portugal como seu aliado, ao mesmo tempo que consentira que D. Juan se continuasse a intitular como «rei de Portugal»), o monarca português não ficou de braços cruzados: nos termos do tratado de Windsor ( v. Fonseca, 1986 ), garantiu ao duque (com quem terá nesta altura mantido relações algo tensas - os desmentidos de F. Lopes ( ••) sobre a versão de Ayala ( 45

) não são a este respeito muito convincentes) o auxílio naval que permitiria a John of Gaunt e ao que restava do seu exército viajar do Porto até •Bayonne (o que, segundo Baquero Moreno - 1988 : 32 -, sucedeu em princípios de Setem­bro de 1387 ). Mas não se ficou por aqui. Politicamente pouco afectado pelo insucesso militar da campanha em Castela (apesar da fronteira oriental portuguesa ter permanecido como antes, a ver­dade é que o objectivo de D. João 1 fôra mais o de criar dificuldades ao seu homólogo, independentemente do sogro vir ou não a con­quistar o trono de Castela), o monarca português prosseguiu sozinho na sua estratégia de pressão.

Assim, e coonpreendendo que a melhor maneira de se defender ( i. é, de garantir a sua condição de rei de Portugal e de obrigar o adversário a reconhecer isso mesmo) era atacar, D. João 1 lan­çar-se-ia (entre 13 de Janeiro e 5 de Março de 1388) na tomada de Melgaço e, posteriormente (entre 15 de Setembro e 1 de Dezem­bro do mesmo ano), na de Campo Maior. Com efeito, ao verificar que D. Juan 1 prescindira dos homens de armas franceses que o duque de Bourbon trouxera até sua casa, o rei português deduziu que o seu adversário não estava então nas condições ideais para fazer a guerra. Tornou-se, pois, como já bem notou Loureiro ·dos Santos ( 1986 : 41), mais agressivo, procurando obter vantagens territoriais que lhe fossem úteis em futuros acordos.

(H) Idem, ibidem, cap. CXVIII, 'PP· 242·24b. (4~) V. P. L. Ayala, ob. ci.t., ano IX.º, 1387, cap. VII, pp. 632-633.

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Desta forma, em Fevereiro de 1389, D. João I aceitou uma proposta castelhana para uma trégua de seis meses. Mas, conforme relata Ayala {46

), já não aceitou integrar as tréguas por três anos que ingleses e franceses (e respectivos aliados) assinaram em Leulin­gham, em Junho do mesmo ano. Com efeito, Portugal pretendia continuar a pressionar' de tal forma rque, expiradas as tréguas dos seis meses, D. João I cercou de imediato Tuy, aproveitando assim as grandes dificuldades financeiras e de gente de armas (nomeada­mente de capitães de guerra) do seu arqui-rival. Em consequência disto, forçaria Castela a assinar, em Monção, a 29 de Novembro de 1389, tréguas com Portugal por um longo período de 6 anos (metade dos quais coincidindo necessariamente com o acoroo anglo­.francês de Leulingham). Ficava, assim, aplanado o caminho para a estabilização interna do reino e para 'ª consolidação de D. João I no trono português. Ao monarca castelhano restava imaginar planos fantásticos para conquistar Portugal, como aquele que apresentou nas cortes de Guadalajara de 1390 e que, evidentemente, os seus conselheiros nunca deixaram passar ( 47

). Mas mesmo que o tivessem encorajado, de nada teria servido, pois em Outubro desse mesmo ano D. Juan I seria surpreendido pela morte, ao cair de um cavalo em Alcalá de Henares.

Dentro deste enquadramento percebe-se, portanto, com clareza, o sent!Ído das motivações que, na Primavera de 1387, levaram o exército português a empenhar-se tão activamente na campanha castelhana do duque de Lencastre ...

Comentário - o cambate medieval

Pela variedade de situações e de peripécias que comporta, a campanha anglo-portuguesa de 1387 convida a que, num último olhar, chamemos a atenção para a forma e os meios de fazer a guerra no Ocidente europeu (e em particular na Península Ibérica), nos finais da Idade Média.

Assim, esta campanha comprova que, geralmente, as operações militares envolviam 1'1mita guerra de cerco e muito poucas (ou nenhumas) veiidadeiras batalhas campais. Na sua maior parte, as acções bélicas decorriam junto às muralhas de castelos e de cidades fortificadas, ou desenrolavam-se nas suas imediações, sob a forma

('•e) Idem, ibidem, a!D.O XI.º, 1389, cap. IV, pp. 647 i648. ('1) Idem, ibidem, ano XII.º, 1390, caps. I: e II, P'P· 650-659.

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de escaramuças e de emboscadas mais ou menos esporádicas (e, pre­ferencialmente, de noite e na proximidade dos rios - no momento da passagem de vaus e de pontes-, em zonas montanhosas e/ ou de difícil acesso, etc.).

Ao mesmo tempo, percebemos também que perdurava ainda, nos finais do século XIV, uma clara superioridade dos meios defen· sivos sobre os meios ofensivos: uma fortificação bem implantada, bem defendida e devidamente abastecida (em mantimentos e em munições) düicilmente era tomada antes de muitos meses de cerco, penoso para sitiados e para sitiadores.

Em terceiro lugar, verifica-se que muitas das vitórias alcan­çadas, por exemplo em cercos de lugares com alguma importância, muitas vezes acabavam por não se repercutir em vantagens estra­tégicas evidentes, precisamente devido ao desgaste que haviam pro­vocado nos atacantes e ao tempo (esse elemento tão importante nas operações militares e que os guerreiros medievais dominavam bem melhor do que hoje pensamos) que haviam implicado.

Por outro lado, a campanha de 1387 mostra à saciedade as potencialidades das tácticas defensivas, bem como as enormes difi­culdades sentidas pelos exércitos em campanhas que se prolongassem para além de poucas semanas. Especialmente quando a hoste era muito grande (e 1 O mil homens de armas, para os padrões penin­sulares do século XIV, já era um exército bastante razoável) as dificuldades de obtenção de água e de alimentos e a facilidade na propagação das doenças (especialmente durante os cercos) soma­vam-se à saturação, à indisciplina e (porque não dizê-lo?) às sau­dades de casa, criando entre os guerreiros um estado de espírito pouco menos do que desastroso e muito difícil de compensar.

Daí decorria, entre outras coisas, a necessidade sentida pela nobreza em complementar as acções militares (normalmente bas­tante arrastadas e frequentemente entregues - como nos cercos -em grande medida aos soldados de infantaria) com divertimentos paramilitares, que assumiam a forma de «jogos de gu~rra» e de que as justas e os feitos de armas constituem os exemplos mais conhecidos ( 48

). Tratava-se, pois, de práticas cavaleirescas suple­tivas, que quebravam a monotonia dos longos assédios sem solução e que permitiam a convivência e até a confraternização (como se viu na região de Salamanca) entre os profissionais que faziam a guerra.

( 48) A este reS'peHo, pode conisultar-se o nosso estudo Torneios, justas e feitos de armas: escolas de guerra e desporto de nobres no Ocidente Medieval, in «Actas do V Colóquio/Jornadas de História Militar 'Do Infante e Torde­silhas' e 'Dia da História Militar'», Lisboa, 1994, pp. 293-364.

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Este último aspecto obriga, finalmente, a chamar a atenção para o grau de internacionalização dos conflitos militares no Oci­dente europeu dos finais do século XIV. Com efeito, o que se passou na Península na Primavera de 1387 foi, em grande parte, uma «extensão do cenário» da Guerra dos Cem Anos para cá dos Pirinéus, uma espécie de amálgama entre o conflito dinástico luso­-castelhano e o enfrentamento anglo-francês iniciado em 1337. Ora, salvo melhor opinião, cremos ser justamente isto que potencia fortemente (não só no plano militar, como também político e diplo­mático) o interesse pelo estudo da campanha que, sucintamente, aqui procurámos recordar.

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AS ALMOGA VERIAS EM MARROCOS : 1415-14 71 ( *)

Dr. ABEL SANTOS CRUZ

A tomada de Ceuta foi precursora de um período histórico a que é comum denominar de Expansão Portuguesa.

Consumada a conquista, o « govemo» da cidade tornou-se, então, particularmente difícil C). A falta de uma organização mi­Jitar e administrativa, capaz de responder e contrariar as necessi­clades da plaga, obstou a um dos principais problemas: o abaste­cimento ( 2 ).

(*) As fontes utilizadas para a redacção do trabalho foram ais Crónicas, a saber: ZURARA, Gomes Eanes de - Crónica da tomada de Ceuta por e1 rei D. João!, publicada por Francisco Maria Esteves PEREIRA, Lisboa, Academia das Ciências, 1915 [a partir de agora, citada por C. T. C.]; Idem - Crónica d" Conde D. Pedro de Meneses, reprodução fac-similada com nota de apresentação por José Adriano de CARVALHO, Porto, Programa Nacional de Edições Come­morativas dos Descobrimentos Portugueses, 1908 [C. P. M.]; Idem -Crónica do conde D. Duarte de Meneses, edição por José Correia da SERRA, in cCollecção de livros ined.itos de Historia Portugueza», !tomo III, Lisboa, Aca­demia das Ciências, 1793 [C. D. M.]; PINA, Rui de-Chronica do Senhor rey D. Affonso V , in «Crónicas», introdução e revisão de M. Lopes de ALMEIDA, Porto, Lello & Irmão Editores, 1977, pp. 576-881 [C. A. V]; GóIS, Damião de­Chronica do principe Dom Joam, nova edição por A. J. Goncalves GUIMARÃES, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1905 rc. P. J.l: RFSPNDE. Garcia rlP. -Crónica de D. João II e Miscelânea, reimpressão fac-similada da nova edição conforme a de 1798 com prefácio de Joaquim Veríssimo SEKRAU, L1sooa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1991 [C. J. II] .

( 1 ) Como no-lo refere FARINHA, António Dias - Portugal e Marrocos no Século XV, vol. I, Lisboa, Dissertação de Doutoramento em História apre­sentada à Faculdade de Letras de Lisboa, 1990, pp. 126-127, «A permanência dos Portugueses no norte de Africa c0!11Stituía um ónus muito pesado pelo estado de guerra endémico que ocasionava mortes, ferimentos e caUveiros ... ».

( 2 ) Não era fácil ao reino abastecer com regularidade a moirama. Escrevia a propósito o infante D. Pedro : « .. . çepta ... he muy bom sumydoiro de gente de uossa terra e d'armas e de dinheiro, e segundo eu senty d'algus bons homens de Jngraterra de autorjdade ,e daquy deixão ja de falar na honrra e boa fama que he em a asy terem, e falam '1'l!a grande indiscri'ção que he em a manterem com tam grande perda e destruyçom da Mrra .. . ». Livro dos Conselhos de el·re.i D. Duarte (livro da Cartuxa), edição diplomática por João José Alves DIAS, Lisboa, Editorial Estampa, 1982, p. 37.

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Por algum tempo, andou D. Pedro de Meneses a preparar a «defensão» da urbe. O apresto era à partida tido como arriscado. 1t que havia poucos dias que a frota rumara a Portugal e já os marroquinos, sob o comando do marim Aabu, senhor da terra de Moxequeci C), estavam empenhados em dificultar os cristãos com contínuos assaltos e surtidas à moirama C). Seja como for, o fron-teiro « ... traçou um plano que aspirava ao resguardo terre6tre e marítimo ... » ( :i.) de Ceuta.

Havia, também, o aprovisionamento. No início, ele foi assegu­iado pelos víveres e ccalmazém» transportado na armada. A ordem partiu do rei D. João 1: « ... todo los mantimentos que eram na frota fossem postos em terra, kixarulo os . . . TWcessarios pera tres ou quatro dias pera sua tornada ... » ( 6 ). Mais ainda : auxilio finan­ceiro do poder central, casas senhoriais, mestrado de ordens, tributos dos mouros de pazes, saque, corso, eram contribuições indispensáveis para assegurar a a'limentação e soldo dos fronteiros do Habt ( 1 ).

* * *

Numa manhã de Outono de 1415, a praça de Ceuta, recém­-tomada, despertava sob um «discurso» expressivo de D. Pedro de Meneses : « ... afastar os mouros quanto podesse da cerca da cidade, e guerrealos por tal guisa, que deixassem sua vizinhança ... » ( 8

).

A exortação deve ser interpretada como resultado das emboscadas dirigidas sobre os defensores da lei de Cristo. A prática era, no fundo, uma resposta determinada e firme contra os maometanos, hábeis na guerra da táctica simulada, de escaramuças, e de estra­tagemas.

(~) Cfr. RICARD, Robert-«Le Maroc Septentrional au XV• Siecle d'apres les Chroniques Portugaises,., in 'Studes sur l'Histoire des Portugais au Maroc, Coimbra, Acta Universitatis Conimbrigensis, 1955, ,pp. 25·26.

( 4 ) ZURARA, C. P. M ., caps. 15, 17, 19-20, pp. 51-55, 57-59, 61-65. (~) CRUZ, Abel dos Santos -A Nobreza Portuguesa em Marrocos: 1415-

·1464, Porto, Dissertação de Mestrado em História Medieval apresentada à Faculdade de Letras do Porto, 1995, p. 124.

(") ZURARA, C. P. M., cap. 9, p . 36. ( 7 ) Para tudo isto, cfr. FARINHA, António Dias-ob. oit., vol. 1, pp. 194·

-218; CRUZ, Abel dos Santos - ob. cit., pp. 273-288. ( 8 ) ZURARA, C. P. M., cap. 23, p. 73.

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Como é patente, os fronteiros tiveram de adaptar-se a uma nova forma da arte de combater: a cilada; uma 'guerra fria', feita de ataques súbitos, com o propósito de esbulhar aldeias e colheitas. Ora a região era adequada a esse tipo de intervenção armada, matéria hem sabida do alferes-mor da casa do infante D. Duarte. Ainda assim, não raras vezes, alguns homens, imbuídos da ideia de cava­laria medieval, perderam a vida por se embrenharem imprudente­mente em terreno adverso. As mortes de Martim Gomes, João Soaio e dois moços do monte da casa do Navegador (9), conscienciali­zaram para o perigo de tais incursões. Por tudo isto, interessava ao capitão de Ceuta introduzir postos de vigilância - atalaias -para garantir a segurança do corpo expedicionário.

A este facto, acresce um outro: D. Pedro de Meneses cedo se apercebeu da dificuldade em abastecer a fortaleza, circunstância que foi factor de descontentamento, e responsável pelos apertos sen­tidos pela 'força militar' que servia a monarquia lusa no norte de África ( 10

). O certo é que os parcos haveres do reino não garantiam a sobrevivência dos soldados no além-mar. A juntar a esse óbice, a consequente guerra de surpresa e armadilha, também impedia o normal reabastecimento de Marrocos.

A dura realidade foi, então, 'atenuada' com a política de saque ('11

). É que perante ·a instabilidade e escassez de recursos,

(P) ZURARA, e. P. M., cap. 19, p. 62. (1º) A presença portuguesa no Magrebe conheceu, desde o primeiro ins­

tante, dias sombrios. Não era fácil prover a região marroquina. D. Manuel, para remediar o sofrimento dos seus habitantes, criou uma feitoria na Andaluzia [cfr . .CORTE-REAL, Manuel Henrique-A Feitoria Portuguesa na Andaluzia: 1500-1532, Lisboa, Centro de Estudos Históricos da Faculdade de Letras, 1967]. Mas nem sempre o resultado foi satisfatório. O certo é que o reinado manue­lino correspondeu ao declínio do poder lusíada em Marrocos, situação que se agravou com D. João III. Por essa altura, era grande a aflição vivida, por exemplo, em Azamor: « ..• a pobreza e a necessidade dos moradores desta cidade é tanta que ... se inão fosse a caça do monte .. . já muitos deles se foram por esse mundo de desesperados ... » cit. por LOPES, David-A Expansão em Marrocos, Lisboa, Teorema, 1989, p. 67; ainda CRUZ, Maria Augusta Lima -«Documentos Inéditos para a História dos Portugueses em Azamor», in Arquivos do Centro Cultural Português, vol. II, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1970, pp. 104-179, para quem, a p. 121, « ... os recursos da cidade estavam fre­quentemente longe de poder superar as suas necessidades•; Idem - Os Portu· gueses em Azamor: 1513-1541, Lisboa, dissertação de licenciatura em História apresentada à Faculdade de Letras, 1967 [dactilografado]; Idem- «Os Portu­gueses em Marrocos nos Séculos XV e XVI», in História dos Descobrimentos e Expansão Portuguesa, Lisboa, Universidade Aberta, 1990, pp. 93-99.

( 11 ) Não se pense, contudo, que a pilhagem foi a «fórmula mágica• encontrada. :e. certo que contribuiu para atenuar algumas carências, no entanto, o •problema mantinha-se.

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havia que res1shr e, para o fazer, lutar. Desde fogo, a resposta da nobreza foi favorável ao assalto, até porque a guerra era por exce­lência a sua actividade preferida. No fundo, para a fidalguia, dese­josa de glória e fortuna, combater o islamismo em proil da cristan­dade, ooupava a ordem no exercício .das armas, e garantia-lhe honra e proveito. O problema era a cavalaria - uma arma essencial para fazer-se lançadas em África. A ·dificurldade na posse e manutenção do cavalo (1 2

) era de tal ordem, que condicionava o seu recruta­mento para a frontaria em Marrocos. Não devemos ignorar, por isso, o sentimento de 'dor' pela perda do animal. Zurara desenvolveu este ponto da seguinte maneira : <<bem he que a principal perda dos christãos fd.i os oavallos, caa Joham Pereira perdeo alli o seu, e senaõ fora bem acorrido alli fezera sua fim, e tambem matárom o d'Alvaro Merules, e o de seu filho, e o de Pero Vazques, caa estavam em tal lugar que se nom podiam revolver . . . nom ficou o cavallo do corule foro deste danno, caa de tres azagayadas f<ii ferido e sempre se manteve em sua força até à cidade, em que foi acabar» ( 13

). Então não será de estranhar que, numa primeira fase, as corridas em território inimigo fossem circunscritas ao arrabalde de Ceuta.

Importa considerar um outro assunto. A obra literária do cro­nista é, por toda, a narrativa da heroicidade lusíada na Berberia. Como escreve A. J. Dias Dinis «sã.o episódios vários de epopeia portuguesa, gestas oavaleirosas . . . guerrilhas e escaramuças entre mouros e cristãos, as quais têm de ser compreendidas ... à luz da sua época, mas que traduzem incontestável tenacidade, arrojo e valentia dos portugueses . . . contra i;nimigos simultaneamente polí­ticos e religiosos» {'1 4

). No entanto, não .devemos pensar que o dia-a-dia em Ceuta fosse unicamente limitado a proezas bélicas em território hostil. «Haverá, neste [>Onto, que seguir com alguma cautela, as crónicas de Zurara que refutam, sobretudo, as almoga­verias mais violentas, deixando na penumbra, a realidade quotidiana muito mais tranqui"la» e~>.

{~2 ) Na carta de Bruges de 1426, o infante D. Pedro dizia: «Bem sabeis senhor como em uosa terra ha muy poucos caualos o que he grande mjngoa a lierra onde os não ha pera os feitos da guerra ... »; Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte .. . , p. ·38.

(1G) ZURARA, e. P. M., cap. 45, p,p. 154-155. (IH) DINIS, António Joaquim Dias - «D. Pedro de Meneses, primeiro

conde de Vi.Ia Real e primeiro capitão e governador de Ceuta», in Studia, vol. 38, Lisboa, C. E . H. U. - J . 1. C. T., 1974, pp. 539-54-0.

( 15) FARINHA, António Dias - ob. cit., p. 231.

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É chegado o momento de perguntar : a quem cumpria a auto­rização, o modo como devia rea'lizar-se, o número ·de soldados e a chefia dos rebates? A competência do ataque estava sob a alçada do capitão ou, na sua falta, do fidalgo - .de início - mais apto l'ara a chefia. Diz a propósito António Dias Farinha : «com o decorrer dos anos tal função passou a caber aos adaís, na ausêncÚJ do capitão . . . o que revela . . . a passagem do exército com caracte­rísticas feuddis que permanecÚJ mas praças por perfodos curtos ... para uma guarnição militar permanente, enquadrada por oficúiis de <(Carreira», experimentados na guerra de África» (1~). Há, todavia, a esclarecer um aspecto muito importante: era frequente o gover­uador enviar escutas - almocadéns - a explorar e bater o ter­reno (11

). As informações que recolhiam eram depois confiadas ao fronteiro que avaliava os factos apurados.

O que se acaba de dizer, acabou por determinar as operações militares em território inimigo : as entradas ou almogaverias ( 18

).

* * *

A documentação reunida, dá-nos a conhecer 63 pelejas (1º). É certo que alguns rebates, ao todo 10 a Ceuta e 6 a Alcácer, são o 1·esultado do assédio muçulmano. Ainda que a iniciativa bélica, neste caso, pertença aos marroquinos, insatisfeitos com a presença cristã em Marrocos, não podíamos deixar de incluir, para efeito estatístico, a «cavalgada» obtida.

A primeira entrada em terra de mouros foi corrida sobre Vale de Laranjo ( 20

) ; logo secundada por tantas outras contra aldeias,

( 16) FARINHA, António Dias - ob. ait., p. 227. (117) ~ nossa intenção dar à estampa um trabalho que vimos a desen­

volver sobre «Ü Serviço de Escuta em Marrocos». (tB) Sobre o assunto, veja-se FARINHA, António Dias - ob. cit., pp. 226-

·227; BRAGA, Isabel Drumond- «As Almogaverias durante o reinado de D. João III, vistas através das cartas de privilégio», in Mare Liberum, n.º 6, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portu­gueses, 1993, pp. 83..S8.

( 10) Importa aqui considerar um aspecto: deste número, fazem parte as conquistas de Ceuta, Alcácer Ceguer, Arzila e Tânger, e alguns ataques desencadeados pelos mouros sobre as possessões portuguesas.

( 2º) Neste cometimento ia por principal Gonçalo Nunes Barreto, capitão em Ceuta dos homens da casa do infante D. Pedro, secundado por Gil Lourenço de Elvas, cavaleiro e vassalo régio, e Gomes Martins, escudeiro. Desta «Corrida» resultaram oito mouros mortos, seis cristãos feriidos - Gomes Marti.Ills - e a captura de 30 almas e 50 vacas e bois [ZURARA, C. P. M., caip. 23, pp. 73-78].

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<'ampos, julgados, outeiros e serras ( 21), que revelaram aos assai·

tantes oportunidades únicas. Para este tipo de guerra de surpresa, a participação no assalto era favorável 'ªºs nobres ( 22

), pois mais facilmente podiam dispor de cavalo e armadura, e enfrentar a carga de cavalaria muito rápida e ataque súbito - sistema militar desen· volvido pelos inimigos, e que consistia na vantagem da cilada e do número ( 23

) •

Com o decorrer do tempo, algumas ,almogaverias foram con· duzidas a aldeias mais afastadas do domínio português. Aconteceu, então, que em 1417, D. Pedro de Meneses, depois de mandar escutas a reconhecer o terreno e a ordenança de Almarça e Agua de Ramel, apartou Álvaro Mendes Cerveira, fidalgo, guarda em Ceuta da torre Madrabaxabe e capitão dos escudeiros de Beja e Évora, «homem que sabia muito nos autos de guerra», para dirigir o ataque. Acom­panhavam-no Fernão Barreto, cavaleiro-fidalgo da casa do infante D. Pedro, guarda da Almina e responsável na praça pelos cerca de cem arneses de Lisboa, Gil Lourenço de Elvas, João Eanes Raposo, João Ferreira, Pedro Vaz Pinto, cavaleiro, Rui ,de Sousa, cavaleiro­.fidalgo, alcaide do castelo de Marvão e capitão dos ginetes e de 40 homens, afora onze cavaleiros e 630 peões. A operação permitiu, após a morte de vinte almas, captur-ar 300 cabeças de gado grande, 500 do miúdo, alguns asnos e éguas, além de pão, vinho, legumes e roupa ( 2'). No mesmo ano, correu-se sobre Cayde Carream, Bena­herdão, Targa, Tagacete e Albergai, resultando o aprisionamento de 61 infiéis (duas mouras velhas), 6 5 2 cabeças de gado vacum, 14 asnos, poucas cabras e 2 2 7 peças de pano ( 2~). Por toda a década de 20, há a registar a entrada de Rui Vaz em Targa e Tetuão, e sete rebates muçulmanos a Ceuta: quatro em 1420 e os restantes em 1425, em que ficaram cativos 1.162 almas Cª).

( 21 ) Conforme refere o Prof. RICARD, Robert - ob. cit., p. 54, cO texto de Zurara traz-nos toda uma série de topónimos que podem ter o seu interesse para o linguista e o sociólogo como para o historiador».

( 22 ) Favorável, mas não exclusiva. Como teremos oportunidade de obser­var, são inúmeros os exemplos citados por Zurara de homens a pé que 'engrossam' o corpo expedicionário das almogaverias.

( 28 ) Cfr. FARINHA, António Dias - ob. cit., p. 227. (U) ZURARA, e. P. M., cap. 37, pp. 123-126. ( 23 ) ZURARA, C. P. M., caps. 38, 43, 44, 47, 50-51, pp. 126-130, 146-151,

158-161, 165-173. Diz o cronista: « ... os mortos forom tantos e em tantas partes que naõ poderaõ ser contados ... » [Idem - C. P. M., cap. 47, p. 161].

( 24) ZURARA, C. P. M., cap. 80, pp. 267-271; liv. II, caps. 2, 5, 7, 12, 15, 17-18, pp. 282-298, 319...320, 326-330, 335-346.

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Mais tarde, foi a vez de Alfages, Coleate, Benaxame e Belua­zem, receberem a visita de corajosos agressores. O objectivo era, de novo, obter cativos e gado. Como resultado foram mortos 139 muçulmanos, 19 cativos e capturados 620 bois e vacas, além de oito asnos, três éguas e ·alguns bezerros. As operações permitiram, também, a Gil Vaz da Costa, Vasco Domingues, Diogo Afonso de Negrelos e Pedro Porto Carreiro, passar a beneficiar da dignidade de cavaleiro ( 21

).

Até ao desastre da expedição a Tânger, o exército cristão entrou ainda vitorioso em 1Boburim Cª), Cencem (29

), Tetuão (8°), Benagara (81

) e Benamadem (32). Daí até Alcácer Ceguer, ·a ausência

de almogaverias é total (8ª). Depois disto, o exercício das armas foi praticado sobre Benambroz {84

), Canhete C's), Anexamez {86),

( 27 ) Estes confrontos tiveram lugar entre 1432-1433. ZURARA, e. P. M., liv. II, caps. 27, 29 a 31, pp. 374-377, 381-387; Idem-e. D. M., caps. 6, 9 a 11, pp. 28-30, 40-47.

( 28 ) ZURARA, C. P. M., liv. II, cap. 32, pp. 387-390; Idem-e. D. M., cap. 12, pp. 47-51.

( 28) ZURARA, e. P. M., liv. II, cap. 34, pp. 39·2-395; Idem - e. D. M., cap. 13, pp. 51-55.

(ªº) Esta surtida teve a participação de D. Sancho de Noronha que havia passado a Ceuta em 1435, acompanhado por 50 homens a cavalo. Partindo em companhia de D. Duarte de Meneses e de 150 cavaleiros e 300 peões, o futuro conde de Odemira, foi por ele aí - lugar fronteiro, cercado por muros, torres e castelos de menagem - armado cavaleiro. ZURARA, C. P. M., liv. II, cap. 35, pp. 395-402; Idem - e. D. M., cap. 14, pp. 56·63; MORENO, Humberto Ba­quero -A Batalha de Alfarrobeira. Antecedentes e Significado Histórico, sep. da «Revista de Ciências do Homem», vol. IV, Série B, Universidade de Lourenço Marques, 1973, pp. 901-910.

cu) Foram honrados com o título de cavaleiro Afonso Vaz da Costa e Fernão Martins de Vasconcelos, depois de tomarem 15 almas e 358 cabeças de gado grande. ZURARA, e. P. M., liv. II, cap. 36, pp. 403-405; Idem - C. D. M., cap. 16, pp. 67-70.

(ª2 ) Com uma força de 210 cavaleiros e 300 peões, os soldados portu­gueses mataram 84 marroquinos e regressaram a Ceuta com 52 infiéis, 920 cabeças de gado vacum, 40 asnos e 5 bestas cavalares. No rebate foi libertado um cristão: o Magriço. ZURARA, e. P. M., liv. II, cap. 37, pp. 406-411; Idem -e. D. M., cap. 17, pp. 70-75.

C'ªª) Esta situação deve-se ao facto de faltar na e. D. M. os artigos que se seguem ao capítulo 27, truncado, apenas voltando a aparecer o escrito 33, incompleto.

( 84 ) Acompanhado de Gonçalo Vaz Coutinho, Diogo de Lemos recebeu o estatuto de cavaleiro, depois de queimada a aldeia. Zurara, e. D. M., cap. 67, pp. 176-178.

(ªs) Apesar de apresadas 60 cabeças de gado grande, 200 de miúdo e da concessão do grau de cavaleiro a D. João e D. Pedro d'Eça, Vasco Martins de Oliveira. Vasco de Almadão, Luís Vaz de Sampaio e Vasco de Carvalho, o rebate foi aziago para a hoste cristã, porque nele perdeu a vida Gonçalo Pires Malafaia. ZURARA, e. D. M., cap. 68, pp. 178-187.

( 36 ) A alguns fidalgos desagradava ir sobre a aldeia porquanto o « ... lugar he muy grande em comparoçaõ de vossa pouquidade .. . a terra he de grande povoaçam e toda gente especial e usada de pelleja . . . ha hi bem quinhentos adargados ... ». Porém, o ataque foi bem sucedido: 60 mouros cativos e algum gado. ZURARA, Gomes Eanes de-C. D. M., cap. 87, pp. 228-234.

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Vale de Anjera (31), Tânger (8ª), Beneçoleimão {39

), Amar, Ceta~ Leonçar e Palmeira ('4°), N azare ('41

) , Outeiro do Barbeiro (42 ) ,

Bogalzame C"') e Adeimuz e·). Houve casos em que a participação de estrangeiros, sobretudo

castelhanos, fo·i recompensada. Aconteceu que no ataque a uma zona - não identificada - os despojos foram de 7 4 cativos, 90 vacas e bois, 300 cabeças de gado pequeno, 10 asnos, bem como roupas, armas e alfaias domésticas. A peleja permitiu a Inhego de Sousa e Nuno Vaz de Altero, ascenderem à ordem de cavalaria ('45

).

Será, ainda, oportuno analisar outras notícias da incursão de portugueses no território do adversário. A 5 de Abril de 1463, o conde de Viana partiu com destino a Çafa de Anjera e << ••• como

quer que os mouros posessem toda sua força em se defender e em­pachar aquella entrada . . . em b"f'eve conhecerom o erro . . . porque nom podendo sofrer os golpes das contrarias ... se leixavaõ prender por seguraretm as vü:las». O saque foi extraordinário: 355 cativos, mais de mil cabeças de gado grande, duas mil do miúdo, 50 asnos, 23 bestas, e dos que morreraim « ... naõ se pode saber o conto certo» (4ª).

Não menos importante foi a pe~etração à zona do Farrobo e Benavolence. Sob o comando do capitão de Alcácer, D. Duarte de

( 31 ) O saque obtido em Anjera - 20 mouros, 304 vacas e bois, 600 cabeças de gado miúdo e 11 asnos - foi muito importante porque, como refere o croni!sta, dera grande sustento a Alcácer. ZURARA, C. D. M., caps. 89, 114, 125, pp. 235-239, 266-271, 306-307.

(418) PINA, e. A. V., cap. 145, pp. 793-794; ZURARA, e. D. M., cap. 107, pp. 240-245.

( 89 ) ZURARA, C. D. M., cap. 108, pp. 246-248. ( 4º) ZURARA, e. D. M., cap. 109, pp. 248-253. (41) Esta cavalgada, sob as oridens de D. Henrique de Meneses, foi de

33 mouros, 230 vacas, 600 cabeças de gado pequeno, 15 asnos e 5 éguas. ZURARA . e. D. M., oap. 115, pp. 271-275.

( 42 ) Povoação do julgado de Anjera. Rendeu 50 vacas e bois. ZURARA, e. D. M., cap. 116, pp. 275-276.

(411) Caíram seis almas, além de 75 vacas e algum gado pequeno. ZURARA, C. D. Mi., cap. 117, pp. 277-278.

(4-4) Nesta corrida houve a participação de fronteiros de Tarifa. O resul­tado apurado foi de 15 infiéis mortos e outros 1antos feridos. ZURARA, C. D. M., caip. 115, pp. 217-275.

('") A honra foi extensiva a Nuno Pereira, Duarte Fogaça, Diogo de Almeida e D. Fernando de Meneses. ZURARA, C. D . M., caip. 124, p. 305.

( 48 ) ZURARA, e. D. M., oap. 126, :PP· 307-312.

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!\Ieneses, a presa resultou em 42 almas, 350 cabeças de gado vacum e mais de duas mil do pequeno (47

).

T·ambém expressiva foi a visita a Ramele. Da cavalgada: 265 reféns, 400 vacas, mais de mil cabeças de gado menor, 64 asnos e 33 bestas grandes, o conde de Viana outorgou a D. João de Noronha e ao alcaide de medina, afora a parte que lhes cabiam, seis e oito mouros, respectivamente ('"ª).

* * *

É tempo de concluir. O resultado das escaramuças ('' 8) cons­

tituía um meio de abastecimento das praças através do saque apreen­dido: gado vacum, cabrum e cavalar, gorduras, objectos preciosos, produtos alimentares, tecidos, utensílios domésticos. Importante foi também a captura de mouros, depois resgatados por presos cristãos ou por avultadas somas ·de dinheiro.

Claro que as almogaverias, é bom não esquecer, eram recontros de alto risco, mas era também proveitoso galopar sobre o infiel, fazer cativos, roubar o gado e, por fim, receber a dignidade de cavaleiro ("'1º), e a 'bênção' papal ('5~).

Outro aspecto interessa definir : « ... nos presídios marroqui­nos, observa Maria Augusta Lima Cruz, a guerra era entendi.da como

("i ZURARA, e. D. M., cap. 130, pp. 318-322. ( 48 ) ZURARA, e. D. M., cap. 134, ipp. 335-337. ( 48 ) Sem qualquer pretensão de rigor histórico, será interessante avaliar

o número de mortos resultantes de confrontos entre cristãos e muçulmanos. No primeiro caso perderam a vida 272 homens e, do outro, 3.352. Cfr. CRUZ, Abel dos Santos - «Morrer em Marrocos•, in ob. cit., pp. 253-259.

(~) Sobre indivíduos que receberam honra de cavalaria a partir de feitos militares, veja-se BRAGA, Isabel Drumond-ob. cit., pp. 8~5; CRUZ, Abel dos Santos - ob. oit., pp. 247-249.

( 51 ) As incursões sobre os inimigos da fé de Cristo eram, para o corpo expedicionário que servia a monarquia portuguesa no além-mar, apetecidos feitos de cavalaria, protegidas por sucessivas indulgências papais. Cfr., a pro­pósito, DE WITTE, Charles Martia'l-Les bulles pontificales et l'Expansion portugaise au XV" siecle, sep. da cRevue d'Histoire Ecclésiastique•, tomo XLVIII (1953), tomo XLIX (1954), itomo LI (1956), tomo LIII (1958).

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um combate em defesa de posu;oes ameaçadas pelos inimigos ela cristandade ... » C2

). No fundo, era uma tarefa que mantinha acesa a hostilidade entre cristão e muçulmano, permitia aos 'cruzados' receber mercês e assegurava o abastecimento da alcáçova.

AP.lr:NDICE

FRONTEIROS QUE PERDERAM CAVALO NA LUTA CONTRA O INFIEL ( *)

DADOS IDENTIFICATIVOS ALDEIA ANO FONTE

NOME CATEGORIA LAÇO SOCIAL FAMIUAR

""es Pinto Vassalo D. Afonso V Ramele 1463 C. D. M . cap. 133

Alvaro de Atmde Fidalgo D. Afonso V Alcácer 1459 e. D. M .. cap. 62

Alvaro Mendes Fidalgo D. João! Ximeira 1417 C. P. M .. cap. 45; Cerveira [?] Ceuta 1426 liv. li, cap. 18 Alvaro Pinto o Moço Escudeiro D. Pedro de Ceuta 1426 e. P. M .. liv. II.

Meneses cap. 18 Diogo de Vargas Escudeiro D. Afonso V • Adeirnuz 1462 e. D. M .. cap. 122

Estevao Eanes Escudeiro inf. D. Ceuta 1426 e. P. M .. liv. II. Henrique cap. 18

Fernão de Almeida - - Canhete 1459 C. D. M .. cap. 68

Femao l:iOnçalves tseudeiro - Ceuta 1417 C. P. M .. cap. 44

Fernão de Gralhas Escudeiro-criado inf. D. Ceuta 1417 C. P. M .. cap. 44 Fernando

Fernão Rodrigues Escudeiro D. João! Ceuta 1417 C. P. M .. cap. 44 '

Fernao Teles de Fidalgo inf. D. Alcacer 1459 C. D. M .. cap. 62 Meneses Fernando Fernão Vaz Corte- Fidalgo D. Afonso V Nazare 1461 e. D. M .. cap. 115 -Real Gonçalo Fernandes Escudeiro· inf. D. Duarte Ceuta 1417 L . P. M., cap. 44

Joao de Barros Cavaleiro D. Afonso V Anjera 1459 e. D. M ., cap. 89-Ramele 1463 133

J<.•.IO!lClTTÔSO Escudeiro D. Joaol Ceuta 1415 C. P. M .. cap. 19

João Eanes Raposo - - ,Ceuta 1415 C. P. M .. cap. 19

João Pereira Escudeiro inf. D. Ximeira 1417 C. P. M .. cap. 45 Henrique

Joao Privado Escudeiro D. Afonso V Adeirnuz 1462 e. D. M .. cap. 122

(~2 ) CRUZ, Maria Augusta Lima - «A viagem de Gonçalo Pereira Mar­ramaque do Minho às Molucas ou os itinerários da fidalguia portuguesa no Oriente», in Stvdia, n.º 49, Lisboa, Instituto de Investigação Científica Tropical, 1989, pp. 323-324.

(*) A leitura das diversas crónicas deu-nos a conhecer um total de · 82 cavalos mortos. Se exceptuarmos o rebate à serra da Ximeira, é patente, na _etapa preambular da presença portuguesa em Marrocos, a morte do animal em Ceuta. Fica claro que a sua falt-a con~ici.ona a entrada por .terras islamitas.

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João Rodrtgues Escudeiro-criado D. Pedro de Ceuta 1425 e. p M .. liv. II. Godinho Meneses cap. 14 João da Sertã Escudeiro-criado D. Duarte de Alcacer 1461 C. D. M .. cap. 113

Meneses Lopo de Cavaleiro D. João! Ceuta 1420 e. P. M .. liv. II. Albuquerque cap. 7 Lopo Vasques de - - Ceuta 1426 e. P. M .. liv . II. Portocarreiro cap. 18 Lws Alvares da Cavaleiro D. João! Ceuta 1415 C. P. M.. cap. 19 Cunha Mendo Alonso - - Adeimuz 1462 C. D. M. . cap. 122

Nuno de Barros Escudeiro - Ceuta 1419 e. P. M .. cap. 74

Palomades Vasques - - Ceuta 1426 e. P. M .. liv. II. da Veiga cap. 18 Pedro Alvares - - Benaminir 1463 C. D. M .. cap. 141

Pedro Gonçalves Escudeiro D. Afonso V Canhete 1459 e. D. M .. cap. 68 Guie! Pedro Lourenço Escudeiro D . Afonso V Ramele 1463 C. D. M .. cap. 133

Pedro de Meneses l º. conde de Vila D. João! Ceuta 1416 e. P. M .. cap. 28-[DJ Real Ximeira 1417 45 Pedro Vaz Pinto Cavaleiro - Ximeira 1417 C. P. M .. cap. 45;

Ceuta 1426 liv. Il. cap. 18 Rui Gonçalves de Fidalgo D. Afonso V Alcãcer 1459 C. D. M.. cap. 62 Sousa RuiJusarte Cavaleiro irú. D. Anjera 1459 e.:. D. M., cap. 89

Fernando Rui de Melo Fidalgo D. Afonso V Benaminir 1463 e. D. M .. cap. 141

Rui Mendes Cavaleiro D. João 1 Ximeira 141 7 C. P. M., cap. 45 Cerveira [?] Rui Pais Criado João de Ramele 1463 C. D. M. , cap. 133

Magalhães

GADO CAPTURADO AOS MOUROS: 1415-1471 BOVINO CAPRINO EQUINO

Grande 1 Miudo Asnos 1 Azémolas 1 Bestas 1 Cavalos 1 Eguas 6.870

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Prof. Doutor ANTÓNIO DIAS FARINHA

Comunicação a publicar oportunamente.

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O GENERAL BõHM NO BRASIL

Gen. SiLVINO DA CRUZ CURADO

Para além dos bem conhecidos Schomberg, Lippe, Wellington ou Beresford, muitos outros oficiais estrangeiros serviram as armas portuguesas depois da Restauração.

Em 1762, quando já decorriam as hostilidades, chegou a Por· tugal, acompanhando o Conde de Lippe, o coronel alemão de for­mação prussiana, João Henrique de Bohm ( 1 ), tendo a sua actuação, como ajudante-general, sido devidamente apreciada pelo Marechal­-General e pelo Conde de Oeiras.

Não gostou Bohm do que viu durante a curta campanha, regis­tando no seu diário:

Le désordre, la confusion, k peu de discipline dans ks régiments, l'ignorance, la paresse et la mauvaise volonté des oficiers de l'armée portugaise ne peuve se comprendre (2).

Não desejando «demorar-se mais em Portugal, ainda que S. Ma· jestade o fizesse o seu primeiro general» ( ª), regressou à Alemanha logo em Janeiro de 1763.

Como se sabe, o Conde de Lippe cá permaneceu até Setembro de 1764, levando a cabo um notável trabalho de reorganização do Exército que serviu de referencial até aos nossos dias.

Temendo que os seus esforços se perdessem com a sua retirada, conseguiu o Conde, pelo seu empenho pessoal e pelas condições

( 1 ) Nome pelo qual ficou conhecido em Portugal, aparecendo também referido como Boehm. Em alemão Joham Heinrich Bohm. Na sua correspon­dência, redigida em francês, assinava Juan Henri de Bohm.

( 2 ) Citado por Ernesto A. P. Sales, O Conde de Lippe em Portugal, p. 52. (li} Citado por Ernesto A. P. Sales, ·cO Tenente general Bohm•, Revista

Militar, 1931.

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vantajosas acordadas, que Bohm deixasse, pela segunda vez, o Go­verno de Bremen, sua cidade natal, para vir para Lisboa, em Janeiro de 1765, a fim de contribuir para a conservação da disciplina e da táctica que acabavam de ser estabelecidas no Exército.

Nomeado marechal-de-campo, o primeiro posto de oficial ge­neral, dedicou-se com afinco à sua missão, sendo considerado por Dumouriez, por essa altura em Portugal, ccalma danada do minis­tério, oficial instruído e vafunte, mas demasiadamente cortesão» (~ ).

Em 1767, o Conde de Oeiras, convencido que os ingleses, in­fluenciados pelos jesuítas, tencionavam intervir no Brasil, decidiu reforçar a guarnição do Rio de Janeiro com unidades da Metrópole e enviar Bohm, já nomeado tenente-general, como inspector-geral de todas as tropas .do Brasil.

Ao Conde da Cunha, ainda Vice-Rei, fazia o futuro Marquês de Pombal, em nome de D. José, os maiores elogios a Bohm, reco­mendando-lhe que procurasse ganhar a boa vonta·de e o afecto daquele general que considerava importante e indispensável naquela conjuntura (').

Ao chegar ao Rio de Janeiro encontrou Bohm uma situação pouco animadora.

As fortificações eram em número exagerado mas estavam todas inacabadas e apresentavam deficiências por serem executadas por oficiais com poucos conhecimentos e por serem sempre limitados os recursos. Não tinham quartéis, armazéns ou cisternas e as mura­lhas cc pareciam mais rrwros de quintas».

ccA guarnição desta capital, meu Senhor» - escreveu o Gene­ral - cc não tem um cartucho cam bala, nem pólvora, seniio uma pouca para o exercício ; e da mesma sorte estão as guarnições nas fortalezas, pois nem as cartucheiras trazem cartuchos, nem ainda quando montam guarda» ( 6 ) •

Por seu turno, o brigadeiro sueco Jacques Funck que acom­panhou Bohm como chefe do corpo de engenheiros e artilheiros constatou que a artilharia de todas as fortalezas estava em muito mau estado, com um quarto das peças incapazes, metade com tanta ferrugem que os projécteis não entravam nos tubos e apenas um reduzido número em estado de fazer bom serviço ( 7

) •

(•) Ibidem. ( 5 ) Carta de 20 de Junho de 1767, citada por Giberto Ferrez, O Rio de

Janeiro e a defesa do seu porto, p . 93. ( 6 ) Carta ao Vioe,R,ei, de 25 de Fevereiro de 1768, transcrita em Ferrez,

op. cit., p. 96. ( 7 ) «Relation Generale de toutes les Pieces d'artillerie ... », de 6 de Março

de 1768, parcialmente transcrita em Ferrez, op. cit., p. 97.

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Pelo que respeita ao restante armamento, considerou Bohm que poderia fazer mais mal às tropas de Sua Majestade que às tropas dos seus inimigos.

Os efectivos estavam muito desfalcados e com ccfalta de ins­trução que dava ao ofü:ial pretexto para se relaxar e ao soldado oportunidade de se subtrair à vigilância dos superiores, alojando-se onde podia e queria, abandoTUZr-se a uma vida libertiTUZ, aos seus maus pendores e a desertar» ( 8 ).

Perante tal quadro não admira que Bohm se tornasse incómodo, solicitando repetidas vezes, ao Vice-Rei e ao Conde de Oeiras, tudo o que considerava indspensável para colocar o Rio de Janeiro «con­tinuamente prevenido contra surpresas e em condições de as repelir».

Conseguiu logo grandes progressos na instrução da tropa re­gular. Porém, ao voltar-se para os corpos auxiliares (tropas não pagas), igualmente indispensáveis à defesa do Brasil, não viu apro­vado o regulamento que propôs para os mesmos, por o Conde de Azambuja, Vice-Rei chegado pouco depois do General, considerar que tais forças não dependiam deste.

Pouco pôde realizar este Vice-Rei, por falta de saúde e de meios, nos dois anos da sua curta permanência no Rio.

Seguiu-se-lhe o 2.º Marquês do Lavradio, D. Luís de Almeida Portugal, que durante dez anos, de 1769 a 1779, conseguiu levar a cabo obra muito proveitosa e enfrentar uma das mais perigosas ameaças espanholas ao Sul do Brasil.

Com boa formação militar, tinha comandado um regimento na campanha de 1762, tornando-se notado pelo Conde de Lippe, quer em operações quer na reorganização.

Parece, por isso, que a opinião deste Vice-Rei, no relatório que elaborou para o seu sucessor ( 9 ), juntando a visão do militar à do político, constitua um contributo importante para o conheci­mento da actuação do general alemão na América.

Lavradio achou cca tropa em muito bom estado pelo que tor,ava a evoluções» e «a ser muito bem assistida de tudo o que precisava», o que confirma o empenho de Bohm nos dois anos anteriores. Mas estavam cc muito alteradas as jurisdições, porque o Tenente-General queria mais do que lhe competia ... ».

(ª) Citado em Cel. João Batista Magalhães, A evolução militar do Brasil, p. 199. ,

( 9 ) «Relatório do Marquês do Lavradio, Vice-Rei do Brasil de 1769 a 1779. aoresentado ao Vice-Rei Luís de Vasconcelos e Sousa, seu sucessor», de 19 de Junho de 1779, citado em Visconde de Carnaxide, O Brasil na Admi­nistrar;ão Pombalina, p . 216 e em Hélio de A. Avellar, «Administração Pom­balina», ip. 241.

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<<Ele exercitava bastante aspereza com. a tropa e os sew ofi­ciais» - diz o relatório - «pôs em prática a execução do regula­mento ainda em muitas daquelas coisas, que aliás não são praticada! neste país, pelos prejuízos graves que geralmente podem seguir, assim à vida dos homens, como ao Estado».

Tudo o Vice-Rei diz ter remediado, começando por fazer chegar o Tenente-General ao seu lugar.

Referiu ainda: «Este oficial é muito hábil na sua profissão, muito bem instruído, e tem bastante prática: é verdade que ele se tem adiantado muito nestes conhecimentos depois que está nesta comissão ... >>. E depois de várias considerações muito negativas res­peitantes ao carácter do General, concluiu : « ... para inspector de tropas é excelente, para o ouvir sobre esta matéria não é mau, e para comandar pouco me fiaria dele ... ».

Ora, no momento em que Lavradio escrevia, estava Bõhm a concluir o comando do maior exército que Portugal tinha tido no Ilrasil, o qual estivera prestes a defrontar a maior expedição que a Espanha tinha enviado à América, envolvendo ambas as forças efec­tivos, que em termos coloniais, para a época e para uma região tão desprovida de tudo, se podiam considerar avultados.

O que motivou as reticências do Vice-Rei ao comando de Bõhm?

Procuremos algumas pistas nos factos, aqui apresentados de uma forma necessariamente muito resumida.

Em 1763, D. Pedro de Cevallos, Governador de Buenos Aires, no âmbito da Guerra dos Sete Anos, tomou os fortes de Santa Teresa e S. Miguel, a Vila do Rio Grande de São Pedro e a margem norte do canal que liga a Lagoa dos Patos ao mar, passando a impedir a sua navegação aos portugueses (Esboço 1 ) .

Dando uma interpretação forçada à letra do Tratado de Paris que pusera fim à guerra, conseguiu o referido Governador que a Espanha não devolvesse as conquistas, facto com que nunca concor­daram Portugal e as populações já fixadas na região.

Em 1767, culminando uma sucessão de incidentes, apodera­ram-se os portugueses da margem norte do canal mas os espanhóis, com o fogo dos seus fortes, continuaram a negar a entrada de navios lusitanos na Lagoa, situação que asfixiava o interior.

No início de 1774, Vertiz y Salcedo, entretanto nomeado Go­vernador de Buenos Aires, saiu de Montevideo com uma expedição de mais de mil homens e lançou as fundações do forte de Santa Tecla em territórios que o anulado Tratado de Madrid de 17 50 tinha reconhecido como portugueses.

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Dali partiu a ameaçar o forte do Rio Pardo que não ousou atacar, desistindo de tal intento antes mesmo de ter conhecimento que dois seus destacamentos tinham sido destruídos ou aprisionadOB por esse lendário guerrilheiro que foi Rafael Pinto Bandeira.

O Marquês de Pombal, de posse de notícias ainda incompletas destes acontecimentos, tomou conhecimento de que em Espanha se preparava uma expedição de quatro navios de guerra e 2700 homens que podia dar a Vertiz a possibilidade de levar a cabo, em situação de ainda maior superioridade, a ofensiva que anteriormente fra­cassara.

Pombal, que durante anos ignorou os pedidos do Vice-Rei no sentido de se reforçar o Rio Grande, decidiu, então, enfrentar a situação e resolvê-la em definitivo. Com espantosa energia para um homem de 7 5 anos, tomou com imparável frenesim, toda uma série de medidas diplomáticas, militares e administrativas que só é pena nem sempre serem isentas de irrealismo, demagogia e excesso de detalhe.

Exemplo dessas medidas são as notáveis instruções dirigidas ao Vice-Rei, Marquês do Lavradio, em 9 de Julho de 1774 (1°).

Depois de dispor sob a forma de financiar a guerra e de admi­nistrar as respectivas verbas, estabeleceu que todas as forças do Brasil fizessem causa comum com as do Rio de Janeiro e com o Exército do Rio Grande de São Pedro que era reforçado, entre outros ele­mentos, com os Regimentos de Bragança, Moura e Extremoz até então sediados na Capital. E para comandar, este Exército nomeara D. José o Tenente-General Bohm, levando como comandante da artilharia e director das operações Jacques Funck que recebia a patente de marechal-de-campo.

Com este Exército, de 7395 homens de efectivo previsto, dos quais 2000 não pertencentes à tropa regular, devia o General, suces­sivamente, assegurar a defesa das posições ocupadas pelos portu­gueses, desalojar os espanhóis das suas posições na margem sul do canal, avançar até ao Rio Chui, fixando a defesa em Monte Castillos e no forte S. Miguel e, ·por razões diplomáticas, aguardar aí o ataque espanhol. Vencido este, como era de esperar, passar-se-ia, decla­radamente, à ofensiva.

Entre muitas outras disposições, estabeleceu, ainda, a consti­tuição de uma pequena esquadra confiada ao comando de um outro estrangeiro, o irlandês Mac Douall, sendo quatro dos navios coman-

(l0 ) «Carta dirigida pelo Marquês de Pombal ao Marquês de Lavradio em 9 de Julho de 1774», transcrita em Carnaxide, op. cit., pp. 193 a 212.

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dados por ingleses. Recorde-se que a Companhia de Jesus já tinha sido extinta no ano anterior e que Portugal se reaproximava da Velha Aliada.

Pombal não deixou de referir a forma de defender a Ilha de Santa Catarina, indispensável ao apoio das operações no Rio Grande e, ainda, a maneira de proceder no caso muito provável de ataque à Colónia do Sacramento, a fortaleza mártir, isolada e praticamente cercada, no Rio da Prata.

Esboçada, assim, a situação que levou Bohm ao Rio Grande, convém referir que a sua saúde não se dera bem na América pelo que, em 1773, mostrara vontade de regressar à Europa. O Vice-Rei, ao dar conhecimento à Corte, louvou o seu zelo e actividade, admi­tindo que, para além das moléstias, o alemão sentia desgosto por não serem fornecidos os meios indispensáveis à defesa do Brasil.

No final do mesmo ano, ainda o Tenente-General se dirigia ao Marquês de Pombal relatando as dificuldades sentidas e dizendo que, se tomava a liberdade de voltar tantas vezes à carga, lhe fossem per­doadas, por graça, aquelas importunidades do dever. Referiu a falta de saúde e, na parte final da carta, pediu ao Ministro que acreditasse que, ainda que estrangeiro, tinha os sentimentos de um bom por-

A ( 11) tugues . A 5 de Dezembro de 1774, já com 66 anos, partiu Bohm do

Rio de Janeiro para a missão que iria pôr à prova a sua capacidade de comando em operações. Ficava sob a direcção de Lavradio, reco­mendando-lhe Pombal, bem no seu estilo, que trabalhasse em comum acordo com o Vice-Rei a fim de que entre ambos se dividisse a muita g]ória que as Armas de El-Rei prometiam às direcções de dois tão distintos generais ( 12

) •

Chegado ao Rio Grande, verificou que os fortes ali existentes não mereciam esse nome, não passando de baterias mal construídas e fracamente guarnecidas. Não havia hospital, nem depósitos e fal­tavam todos os recursos. Os efectivos eram insuficientes e levaria muito tempo a reunir-se a força que lhe fora prometida.

Situemo-nos na época e no local. Demos o devido valor à dis­tância expressa em tempo, não esquecendo que não havia transportes regulares e os respectivos meios nem sempre se encontravam dispo­níveis. Assim, o Rio de Janeiro ficava a mais de três meses de

(11) Car.ta de 11 de Dezembro de 1773 existente no Arquivo Histó­rico Militar.

(12) Patente como Comandante, de 22 de Julho de 1774, citada em Dauril Alden, Royal Government in Colonial Brazil, p. 7.

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Lisboa e a parte dos Regimentos que seguiram com Bohm levou um mês da Capital ao Rio Grande, tendo viajado de navio até Santa Catarina, em navios mais pequenos da Ilha até Laguna e daí, por terra, numa odisseia de cerca de 600 quilómetros (Esboço 1). Mas, quatro meses depois, ainda não tinham chegado as restantes oito companhias dos referidos Regimentos.

Face à situação encontrada, o General Bohm informou que só atacaria de imediato se isso lhe fosse superiormente imposto.

Exasperava-se o Vice-Rei que ansiava ver os espanhóis expulsos antes que pudessem ser reforçados a partir do Rio da Prata ou da Europa e porque sofria fortes pressões de Lisboa no mesmo sentido.

Insistia Lavradio, utilizando os argumentos de Pombal acerca da superioridade dos portugueses sobre os espanhóis e lisonjeava Bohm, mostrando a maior confiança nos seus dotes para conseguir uma gloriosa vitória. Mas ia informando a Corte de que duvidava que alguma vez o General, competente mas demasiado cauteloso, tomasse a ofensiva a não ser que ele, Vice-Rei, lá de tão longe, assumisse a responsabilidade.

Em Julho de 1775, terminada uma visita de inspecção de um mês ao sector do Rio Pardo, relatou novamente Bohm as muitas deficiências que encontrou, considerando serem muito grandes os riscos de uma ofensiva em tais condições.

Talvez o Comandante-Chefe exagerasse os referidos riscos, ra­ciocinando em termos europeus quando, de facto, os espanhóis, em inferioridade numérica e a mais de 1000 qulómetros de Buenos Aires, lutavam com dificuldades semelhantes às dos portugueses.

Tal não sgnifica que a sua missão fosse fácil. Os espanhóis dispunham, ao longo dos dez quilómetros do

canal que liga a Lagoa dos Patos ao mar, de 7 fortes razoavelmente guarnecidos e artilhados, cujos fogos eram reforçados pelas 94 peças de 5 navios fundeados no sector de mais provável travessia. Conta­vam ainda com outras pequenas embarcações armadas em guerra e balsas para atacar, ainda na água, os invasores (Esboço 2).

Nestas condições seria natural pensar numa manobra de envol­vimento mas tal não era viável porque, para o interior, seguia-se a Lagoa com 300 quilómetros de comprimento e setenta de largura e, do lado da costa, não existiam condições para um desembarque.

Restava, assim, a transposição do canal que tinha a largura de pouco mais de um quilómetro na foz e cerca de quatro na ligação à Lagoa. As correntes eram extremamente caprichosas e existiam numerosos baixios movediços que provocavam frequentes encalhes das embarcações. As margens alagadiças e lamacentas constituíam outras armadilhas, mesmo para os conhecedores da área.

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Não admira, por isso, que o Governador de Buenos Aires, o já referido V ertiz que era general e tinha estado na Vila do Rio Grande quando da frustrada acção contra o Rio Pardo, tivesse tranquilizado. a sua Corte, em Março de 1775, considerando impossível o ataque através do canal.

Uma tal operação exigia um número avultado de meios de transposição de pequeno calado pelo que chegou a recorrer-se a jangadas do tipo ainda em uso no No:iideste do Brasil, feitas com madeira ida dessa distante região.

Bohm exigia que Mac Douall destruísse previamente os navios inimigos ancorados no canal e, oomo ali não entrava a maioria dos navios da Esquadra, houve que conseguir outros de pequeno calado, guarnecê-los e armá-los.

Tudo isto levava muito tempo e, em termos diplomáticos, esse tempo estava mais que esgotado, o que fazia desesperar o Marquês de Pombal que, de acordo com as negociações que decorriam em Madrid, deveria mandar suspender as operações.

Sempre à espera de notícias das desejadas vitórias, recebeu Pombal, em Dezembro de 1775, cartas de Lavradio e de Bohm, datadas de Agosto, que levaram o desalentado Ministro a escrever que aquelas provavam cc que eles nada haviam feito, e nada podemos já esperar que venham a fazer».

Enganava-se, porém, o velho Marquês. Em 19 de Fevereiro seguinte, tentou Mac Douall destruir os

navios espanhóis e, não o tendo conseguido, Bohm não arriscou a travessia.

Mas, finalmente, em 1 de Abril, na data precisa em que che­garam ao Rio de Janeiro as ordens de suspensão das hostilidades, tomaram as forças de Bohm, numa manobra bem concebida e exe­cutada, a margem sul do canal. Para o conseguir, utilizou o General o factor de surpresa que ali parecia impossível de lograr. E foi buscá-lo à escolha para a operação da noite em que se prolongavam, de forma bem ruidosa, os festejos do aniversário da Rainha de Por­tugal que deixavam os espanhóis tranquilos.

Entretanto, no interio-r, haviam já sido destruídas as duas for­tificações espanholas avançadas, a de São Martinho, do lado das Missões, e a de Santa Tecla, mais a sul, construída por Vertiz.

Passou Bohm a organizar a defesa e a administração da margem sul onde chegou a notícia do ·armistício antes que tivesse intentado oonquistar os fortes de Santa Teresa e de São Miguel, facto que Lavradio nunca aceitou.

Mais tarde, em Agosto, Pombal autorizou o prosseguimento da acção para conquista dos referidos fortes mas, pouco depois, temendo

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as complicações diplomáticas, arrependeu-se e cancelou a autori­zação. Lavradio, não só não transmitiu a Bohm o cancelamento como continuou a .insistir com ele, repetidamente mas sem sucesso, para que realizasse a operação. O General, com graves problemas logísticos, entendia não poder afastar-se tanto do único porto por onde ia recebendo alguma farinha que constituía com a carne local, também já escassa, a alimentação do pessoal.

Reagiu a Espanha enviando uma formidável expedição de f16 navios, dos quais 20 de ·guerra, 9000 homens de guarnição e 10 000 de desembarque, comandados por D. PedTo CevaUos, o já referido conquistador do Rio Grande em 1763.

General com maior prestígio em Espanha e declarado inimigo de Portugal, tomou posse sem ·qualquer oposição da Ilha de Santa Catarina, cortando a linh~ de reabastecimento de Bohm, e seguiu a conquistar o Rio Grande, no que foi impedido por forte temporal que lhe dispersou a esquadra.

Optou, então, por passar à Colónia do Sacra1IDento que se rendeu e preparava-se para m~rchar contra as posições de Bohm quando, em fins de Agosto de 1777, chegou a notícia .do armistício que antecedeu o Tratado de Santo I1defonso, pelo que não se chegou a efoctuar o confronto entre as forças dos dois prestigiados Generais.

Bohm, que logo a seguir à tomada da margem sul do canal pediu para regressar à Capital, teve antes que lutar contra o aban­dono a que as forças que comandava começavam a ser votadas e dirigir a retirada da sua maioria, só sendo recebido por Lavradio, em 31 de J anero de 177 9, «com todas as demonstrações de con­tentamento, atenção e a:mizade».

Talvez por influência do já citado relatório do Marquês de Lavradio, as relações de BO.hm com o Vice-Rei seguinte, Luís de Vasconcelos e Sousa, não tenham sido as melhores. Com efeito, anos mais tarde, este Vice-Rei escreveu que só encontr:ara «Um general ( Bohm) muito agoni.ado com a superioridade de um vice-rei, querendo obrar tudo J>or sua própria autoridade e nada auxiliar com o seu [HJrecer, inimigo dos oficiais de mais merecimento e de mais brio, e protector somente de aquel.es que se lhe metiam debaixo dos pés, inconstante sempre, e às vezes frenético no último posto» (1ª).

Quatro anos depois de regressar ao Rio de Janeiro, .deu o General Bohm uma queda de caviafo que lhe viria a provocar a

(111) Carta de 22 de Maio de 1789, ditigida ao Miniistro Martinho de Melo e Castro, citada em Ferrez, op. cit., ip. 107.

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morte mas não sem que •antes se convertesse ao catolicismo, facto que mereceu o maio!I' relevo na «Gazeta de Lisboa», em completo contraste com o total <laconismo da notícia do falecimento, ocorrido no mesmo ano, .do Ma·rquês de Pombal que o trouxe para Portugal e sempre o teve em grande conta ( rH).

Recor<lardos, ainda que de forma muito sucinta, alguns fa.ctos da campanha de Bõhm no Sul do Brasil, estamos em melhores con· dições para voltar ao relatório de Lavradio e ponderar estas suas afirmações : « ... eu nunca me servi.a deste oficial, tendo-o distante de mim, e a experiência me tem f orti~ix:ado muito mais neste con­ceito, porque nesta expediçOO· da Rio Grande ele lqwiz antes niio ganhar para si e para o Estado a glória de se ter feito senhor da maior parte daquele país, em que estavam os nossos inimigos, pri­sionar-lhes o seu general, derrotar-lhes as suas tropas e estabeleci­mentos, do que tomar uma reso/,ução sua, ainda que tomada sobre o verdadeiro espírito ·das minhas or<lens, com o receio de que não pudesse ter tão bom sr.wesso, como ao depois se viu que nós certa­mente o conseguiriamos, se e'le tivesse obrado de :'boa fé e s.ince· ridade » ('15

) •

Que papel desempenhou nesta apreciação a diferença .de men­talidades entre o mercenário frio e organizado que só pretendia atacar quando tivesse :garantidas as condições do êxito e a dupla de Marqueses de Pombal e do Lavradio palia ·quem a bravura dos portugueses e o seu amor ao Monarca supriam qualquer falta de meios e garantiam a derrota dos espanhóis?

É de admitir que militares mais ousados e mais empenhados pessoalmente nos objectivos das respectivas Pátrias, como Cevallos e talvez Lavradio, se estivessem. no lugar do alemão, tivessem arris­cado mais e procurado chegar ao Rio da Pr:ata.

Mas também terá ficado confirmado, na rendição humilhante de Santa Catarina e na esperada da Colónia do Sacramento, que não bastam •apelos partrioteiros e lisonjas a chefes incapazes para vencer forças superiores, comandadas de forma competente e decidida.

Repetiu-se neste período o ·que frequentes vezes aconteceu na nossa História.

( 114 ) Citado em Manuel Lopes de Almeida, Notícis Históricas de Portugal e Brasil (1751-1800), !J>p. 131 e 136.

(") Ver nota 9.

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Deixados os assuntos da defesa no maior desleixo, quando che­gava o perigo, descobriam os Monarcas e os Ministros, tardiamente, que «os santos de casa não fazem milagres» . . E era efectivamente de milagres que em tão apertadas circunstâncias se precisava. Só um salvador e, com ele, numerosos colaboradores que rapidamente o ajudassem na organização, treino e comando da força, poderia escon­jwar o perigo.

Os chefes estrangeiros tinham nessa hor.a todo o apoio da Coroa e, não sendo súbditos do Rei, chegavam a recorrer à ameaça de desistirem da missão se as suas ex;igências não eram satisfeitas. Mais difícil era conseguir colaboração de alguns chefes nacionais cujos brios só então se sentiam feridos ...

Terminada a c81Ulpanha, a retirada dos estrangeiros agradava a todos. A Cor&a podia, de novo, ignorar a rápida degradação da força e os chefes nacionais, esquecido o despeito, voltavam a ocupar os cargos e a deixar correr.

Aconteceu assim com -0 regresso definitivo do Conde Lippe aos seus Estados. E .no Rio Grande, logo que o perigo passou, teve Bõhm que lutiar com o maior empenho contra o esquecimento dos milita·res ali destacados. Depois da sua saída voltou a não se pagar aos soldados e a não se lhes distribuir fardamento, chegando a criar-se situações de autêntica nudez que impedia os homens de sair dos aquartelamentos !

Bõhm, o «Conde de Lippe do B.11asil», é considerado por vários historiadores, o criador do Exército Brasileiro. Muitos dos oficiais que teve sob o seu comando e dele receberam formação e exemplo confirmaram, ao longo de brilhantes carreiras, o valor que haviam demonstrado no Rio Grande. Estranhamente, porém, o General não merece qualquer referência a Gustavo Barroso na sua «História Militar do Brasil», nem a Carlos SelV'agem, no seu «Portugal Militar».

Estaremos, então, 1Eace a um comandante cuja actuação foi con­troversa. Mas ninguém contesta que a sua vitória, apesar de tardia e para alguns incompleta, ga.11antiu que o Rio Grande do Sul seja hoje brasileiro!

Embora sem o peso que deve ser dado à opinião severa de Lavradio, com as reservas de que julgava em causa própria, regis­te-se, a concluir, uma outra, de raiz mais humana, que foi trans­mitida por um não identificado mas bem informado «Manuel», em carta escrit,a a um «Mano do coração», em Lisboa, ainda sob a

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influência da cerimoma de beija-mão ao Vice•Rei por motivo da vitória no Rio Grande, «cuja acção · devemos toda à grande · e sempre indizível prudênein militar do Tenente-General Bohm, Comandante em Chefe do nosso Exército» ( 16

).

E mais adiante, depois de descrever a operação e de dizer que só sentimos a peroa de três soldados e um marinheiro, concluiu : «0 Tenente-General, que é cheio de prudência e sagacidade, sempre dizÜJ que não pretendia dar no Rio Grande, de maneira que ficasse a sua gente sacrificada e que só esperava um daqueles momentos favoráveis que espero:m os bons generais fHU'ª uma acção feliz».

·: !

( 16) «Carta particular sobre o ataque do Rio Grande em 1776•, transcrita ~ Jonathas C. R. Monteiro, Dominagií.o Espanhola do Ri.o Gran4e do ~µ! 1763-1777, p. 324. '

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\ 1 1 ,

PARAGUAI

BRASIL

Rio de Janeiro

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Santa Catarina •#" ,,..v ~

~º '4.>~

ºe;

LEGENDA Povoação Forte Limites actuais.... .. Tratado de Madrid 1750 ....... Tratado de Sº Ildefonso 1777 ·-• - • - •

DISTÂNCIAS PELAS ESTRADAS ACTUAIS Rio de Janeiro-Porto Alegre 1550 Km Santa Catarina-Porto Alegre 475 Km Porto Alegre-Rio Grande 325 Km

Esboço I - Sul do Brasil na segunda metade do século XVill.

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LAGOA DOS PATOS

F da Mangueira

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o \\. F da Trindade \ ;

\~ ~-;z.

F do. Triunfo O

. MARGEM SUL

F do Mosquito

ESPANHÓIS

Fde S. Juan Bautista

-~ Vila do Norte ou de São José • ••

O F. do Norte F.do Patrão-Mor O N

G. de Bõhrn

MARGEM NORTE

PORTUGUESES

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t:shoço 2 - ( 'a11a/ do Rto (Jra11dl! dl! Sâo Pedro l!m 1776

Adaptado a partir do plano dl! José C 'orrl!ta Ltshoa

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A IMPORTÂNCIA DO FABRICO DE MATERIAL DE ARTILHARIA EM MACAU

NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XVII

MACAU

Dr.ª PATRÍCIA DRUMOND BORGES FERREIRA

(Bolseira da JNICT)

«Onde vivem de mistura chineses e bárbaros. Os negociantes chineses são todos do sul. Os rios, as montanhas e os cinco picos Pertencem todos a' um mesmo sistema. Todos os países enviaram para aqui livros. Os barcos, seguindo as glaucas ondas, aqui chegaram, Indistintos, no extremo do firmamento. Na isolada cidade, o céu criou então um perigo, Pois o remoto e o próximo poderes tudo devoram. As preciosidades encontram-se acumuladas no templo de S. Paulo O ribeiro corre através do Sâp-Tchi-Mun. As mulheres bárbaras são muito apreciadas, no governo da casa. O Bispo é respeitado Os homens sapientes têm, porém, muitos bons planos. Por isso Tch'in-Sán, a chave do cadeado, ainda alí se encontra.»

«Poesia de Lei-Tchu-Kuóng» in Ou-Mun Kei-Leok

Na primeira metade do século XVII Macau viu a sua posição ei:.tratégica ameaçada pelo fim ido comércio com o Japão e pelos constantes ataques dos holandeses àquela posição portuguesa no Extremo Oriente. Os cidadãos de Macau cedo sentiram a necessidade de se protegerem, fortificando a cidade. Foi também nos anos vinte do século XVII, que Macau iniciou o fabrico de artilharia. Assim, neste pequeno ensaio apontar-vos-ei não só para as causas do surgi­mento do fabrico de material de artilharia e do seu primeiro impul-

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sionador em Macau - Manuel Tavares Bocarro, como também, e ainda, do estado de situação daquela cidade do Extremo Oriente nos anos vinte do século XVII.

Chegou a presença de Portugal aos confins da lnsulíndia, ao interior da Ásia e às portas da China, foi a ramificação do homem português pelo Mundo: levantou castelos e feitorias, fortificou-·os, ergueu povoados e igrejas, abriu escolas e hospitais, espalhou a língua e a cultura, construiu o mais variado tipo de material bélico que deixou por onde passou, como afirmou o Professor Doutor Joaquim Veríssimo Serrão, a imagem de <eum outro Portugal», e que neste caso chegou me5mo, por outras vias, à Europa ( Ingla­terra).

Para a efectivação do percurso expansionista português foi essencial a construção e -0 melhoramento do mais variado tipo de material bélico, isto porque à presença efectiva era necessário uma forte presença hélica.

Inicialmente as fábricas de material de guerra do Reino eram suficientes, mas com o decorrer dos anos e do próprio percurso expansionista português as dificuldades em abastecer, de material bélico as naus e as próprias fort·alezas levou à necessidade de •apro­veitar os recursos locais, a mão-de-obra e as capacidades dos locais para desenvolver ou criar novos centros fabris. Podemos mesmo afirmar com alguma convicção que a arte balística que se desen­volveu na Índia, floresceu, de uma forma extraordinária e única em Macau. Macau foi ainda o ponto· de confluência de técnicos nacionais que mais tarde se dirigiram para Pequim e para o Sião para ensinar a sua arte. Este serviço prestado às cortes da China revestiu-se mesmo de um importante papel diplomático ao serviço de Portugal.

As relações entre Portugal e os chineses, em laços de amizade e cooperação, embora ao longo dos séculos tivessem sofrido altos e baixos, nunca foram quebrados. A História de Macau é sem ~omhra de dúvidas comum a Portugal e à China. Para os chineses, os portugueses surgiram como os comerci•antes das especiarias vindas da índia e de Malaca, para não falar do facto de que haviam alcançado o Japão. Lentamente as relações solidificaram-se, e esta­beleceram-se direitos e obrigações.

Desde sempre Macau baseou-se num jogo de interesses múl­tiplos. Se os portugueses estavam interessados, por motivos econó­micos, em se estabelecer permanentemente no litoral sul da China, os chineses desejavam também criar um entreposto onde se centra­lizassem todos os contactos com o exterior. Haveria assim uma

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facilidade de controlo de pessoas e mercadorias. O .fabrico e a comercialização de material hélieo, conjuntamente com os interesses financeiros inerentes sobrepuseram-se, e funcionaram positivamente. As armas contribuíram para o estreitamento dos laços, como veremos mais à frente.

A pequena cidade isolada da Europa e os seus habitantes defi-11ir-se-iam como uma mescla de vários homens de vários países, desde portugueses, ·a chineses entre outros povos de outras regiões. Macau tornou-se uma espécie de encruzilhada de raças e culturas que a transformaram num importante macrocosmos, devi·do à sua varie­dade habitacional e cultural, dentro de um microcosmos muito espe­cífico, ou seja, uma pequena península que faz parte de um universo territorial muito vasto.

Foi ·dentro de uma conjuntura de sucessivos ataques dos holan­deses ( 1601, 1603 e 1604) mal sucedidos, e ·ainda em 24 de Junho de 1622, que Macau viu surgir e prosperar a sua fundição de mate· rial de Artilharia, e o seu grande impulsionador Manuel Tavares de Bocarro.

Vários documentos da época justificam frequentemente a ne­cessidade de fortificação da cidade, que até àquela ·altura se havia somente preocupado com o comércio e o enriquecimento dos seus habitantes. Não nos podemos esquecer que após 1580 a situação portuguesa no Oriente e no Extremo-Oriente alterou-se lentamente. Por isso mesmo a realidade de Macau em 1620-1640, não era a mesma de à sessenta ou setenta anos atrás. Um documento de 1623, existente na Biblioteca da Ajuda justifica e clarifica indiscutivel­mente as razões e controversias para se tratar da defesa de Macao: <e Tomado Macao perde-se o comercio tao rico de seda, louça e prata, perdesse Malaca, 1arrisca-se o Estado da Índia, e de Manila, e o c·omercio de Macau para o Japão se perde de todo, e os rebeldes mais livres, e seguramente farão fortalezas em todas costas do mar donde tarde, ou nunca poderao depois ser lançadas. ( ... ) Esta cidade esta por fortificar, e posto que alguns capitaes da viagem de japao que lambem os desta cidade fizerao cada hum se o pouco, e tirarao certidoes em como a fortificaçao a respeito de fazeres huans paredes de pedra em foço, com tudo a verdade he que convem que S. Magestade ou se o V. Rey da lndia mande a Macao hum homem das qualidades de António Pinto da Fonseca para a forti­ficar, pois não he de menor importancia Macao que Malaca» (1).

(1) Biblioteca da Ajuda, J esuíitas na Asia, Códice 49-V-5, fois. 514 v a 516 v.

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Mas o. problema da insegurança de Macau não residia apenas no facto da existência de Holandeses nos mares do Extremo Oriente. As fontes são claras quando apontam várias razões para uma urgente fortificação da cidade. São vários os perigos para ,aquela cidade, se por um lado Macau se via constantemente com problemas de corso a verdade é que a governação quer externa (a longínqua Índia, que impossibilitava um auxílio militar rápido e eficaz) como interna (a própria cidade de Macau) eram também perigos importantes. As fontes afirmam categoricamente que: «Macao mal governado e de fora a sabor da lndia, vem de lá ouvidores interceiros, ( ... ) Se a eidade de Macao he mal governada de fora, peor o he das portas a dentro, porque ha pouca justiça em os tribunais, se a parte he rica e poderosa e aparentada prevalece de ordinario com grande prejuízo e queixa dos pobres. Ha grande suborno nas eleições dos officiaes da Cidade como juizes, vereadores etc e da armação como Feitores, e~crivaes etc ( ... ) )) e).

Por vezes mais assustador ainda que os Europeus naquela região eram as ·constantes incursões judiciais e até mesmo adminis­trativas dos próprios chineses, que aplicavam constantemente a sua influência, ordem e respeito, num território sobre administração portuguesa. Ainda no mesmo documento afirma-se que: «He grande o medo que os portugueses de Macao cobrarao aos chinas, { . . . vao cavalgando cada vez mais sobre os vassalos de S. Mag.\ com grande prejuizo e descredito da nação portuguesa» (3). Mas todo este clima de instabilidade com a China ficou ainda prejudicado pelo próprio facto de os portugueses de Macau resolverem fortificar a cidade. A construção de uma protecção militar dentro do que os chineses consideravam ainda seu território prejudicou fortemente as relações. O Mandarim de Cantão obrigou, inclusivamente, as autoridades por­tuguesas de Macau a destruirem os muros de protecção construídos.

O perigo latente estrangeiro, a grande distância de Goa, e a constante influência dos mandarins chineses, na cidade de Macau tornaram, provavelmente, o nascimento desta fundição numa neces­sidade estratégica de defesa.

Dentro desta conjuntura a pedido dos macaenses e por ordem do Vice-Rei da índia, D. Francisco da Gama, foi enviado para Macau, para assumir as funções de Chefe Militar, D. Francisco de Mascarenhas. Uma das ·suas primeiras e principais preocupações

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( 2 ) Biblioteca da Ajuda, }esuítas na Asia, Códice 49-V-5, fols. 514 v a 516 v. (<3) Biblioteca da Ajuda, Jesuítas na Asia, Códice 49-V-51 fols. 514 a 516.

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foi o artilhamento da cidade. Este problema ficou solucionado com o instalar, no ano de 1623, com o patrocínio do Vice-Rei da índia, de uma fundição de bronze e ferro, próximo da Fortaleza do Bomparto, no local conhecido por Chunambeiiro ("1

). A Fundição destinou-se inicialmente, a fornecer as fortalezas de Macau de bocas de fogo, mas rapidamente esta fundição teve uma projecção mais vasta, e tornou-se no principal centro abastecedor das praças de guerra portuguesas, e das próprias naus, não só da Índia como do Extremo Oriente, alcançando mesmo a Europa e o reino, e até mesmo a própria China. Macau tornou-se, assim, a fonte de abas­tecimento mais importante de canhões de todos os calibres (ou de bronze ou de ferro fundido). Esta supremacia duraria pelo menos duas décadas.

Pero Dias Bocarro saiu de Goa para Macau em 1623, para estabelecer a fábrica do Chunambeiro. Em 1625 chegava à Cidade do Nome de Deus na China, seu filho, Manuel Tavares de Bocarro, natural de Goa. Trabalhou como fundidor, naquela cidade de 1625 a 1656. A prosperidade do negócio proporcionou-lhe o cargo de capitão Geral da Cidade de 1657 a 1664. Pouco se sabe da sua vida, ignorando-se se morreu em Macau ou em Goa. Assim, o filho de Pero Dias Bocarro, chefe dos fundidores de Goa, Manuel Tavares Bocarro iniciou, no princípio do século XVII ( 5 ), em Macau, o fabrico de canhões tanto de ferro como de bronze.

A verdade é que Manuel Tavares Bocarro vai, dentro deste cJima de alguma instabilidade, fazer prosperar o fabrico de material de artilharia, chegando mesmo, contraprudecentemente ou não, a enviar para o Império do Meio várias peças de artilharia, ou até mesmo artilheiros, como confirmarão vários documentos existentes

( 4 ) Este nome deriva do facto de naquele local se fabricar, nessa altura, cal de ostra, ,produto este que se designa por chunambo ou chunano. Ainda no s.éculo passado haviam vestígios desta tão importante fundição de material bélico do século XVII.

( 5 ) Segundo Charles Ralph Boxer: «em Macau, a arte de fundir canhões de ferro é de origem china, enquanto que a fundição de canhões de bronze teve comêço com os portuguêses.» Os chineses sabiam, muito antes da chegada dos portugueses, fundir canhões. São constantes os pedidos do Vice-Rei da 1ndia ou mesmo do Rei de Espanha e Portugal para que se arranjasse em Maceu «chinas fundidores de canhões, para ensinarem a sua arte aos portu­guêses de Goa», para além de que se sabe que os próprios operários da fundição de Manuel Tavares de Bocaro eram chineses. No entanto registou-se desde cedo a necessidade dos artilheiros ocidentais como instrutores na ciência da artilharia, uma vez que os chineses haviam perdido quase toda a sua perícia primitiva. Estas informações e muitas outras podem ser encontradas na obra do Padre Alvaro Semedo, The History of that Great and Renowed Monarchy of China, Londres, 1655.

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quer no Arquivo Histórico Ultramarino ( 6 ) e na Biblioteca da Ajuda ( 1 ) ou .até mesmo os próprios canhões que se encontram hoje na Torre de Londres, e que foram capturados em Cantão, pelos ingleses, no século XIX ( 8 ).

Em 1621 as autoridades de Macau enviaram a alguns dos mandarins influentes da China 4 canhões e bombardeiros para que fossem entregues em Pequim, com o intuito de auxiliar na luta dos Ming contra os Manchús. Esta oferta de canhões e artilheiros causou boa impressão entre os oficiais chineses. Segundo o Padre Semedo : «No ano de 1621, a cidade de Macau enviou como presente ao Rei três grandes homhardas (aliás quatro) com os seus bombardeiros; competia a êstes (que na realidade não partiram antes de 1623-4) familiarizar o soberano com o uso das peças. Desempenharam-se os bombardeiros da sua incumbência em Pequim, com grande susto de muitos mandarins, que se tinham visto obrigados a estar pre­sentes, quando se fizeram as descargas. Nessa ocasião deu-se um trágico acidente : um dos canhões, recuando com grande violência, matou um português e três ou quatro chinas, ficando muitos mais varados de terror. Os canhões foram muito apreciados e levados para a fronteira, 'ª fim de serem empregados contra os tártaros, os quais, não conhecendo o novo invento e aproximando-se numa massa compacta, sofreram tal mortandade, com o fogo de uma das peças, que não só se puseram em fuga, mas depois passaram a apro­ximar-se com muito mais cautela» ( 9 ).

O auxílio dos portugueses face aos chineses a nível militar não cessou com esta primeira e positiva tentativa. Seguiram·se vários pedidos, alguns com resultados mais positivos que outros. O auxílio prestado por Macau em 1643 à dinastia Ming foi, inclusivamente, retribuído pela cessão à Cidade de Macau, ou melhor, aos jesuítas de uma pequena porção de terreno na Ilha da Lapa, conhecida pelo nome . de Oitem Cº).

A ideia, desenvolvida pelos jesuítas, de os portugueses pres­tarem auxílio técnico e militar aos chineses, tinha fundamental-

( 6 ) A. H. U., Caixas de Macau, Caixa n .º 1, Doe. 30, Remessa para a China de 10 peças de artilharia de bronze de 10 e 12 de calibre em navios particulares, com resolução favorável do rei e aviso ao conselho da Fazenda; ou ainda o doe. 73 sobre o envio de soldados, munições e mantimentos para a China.

( 7 ) Jesuítas na Asia, Códice 49-V-3; 49-V-S; 49-V-8. ( 8 ) Na Torre de Londres conservam-se duas peças conquistadas aos

chineses : Canhão de S. Lourenço, fundido por Manuel Tavares Bocarro em Macau. em 1627, e ainda o Canhão S. Ildefonso. Vide imagem n.º 1.

( 9 ) Alvaro Semedo, The History of that Great and Renowned Monarchy of China, Londres, 1655, ,p. 99.

(:1.0 ) Arquivos de Macau, série 1, p. 381.

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mente um objectivo: o apaziguar das relações quer no Sul da China (Macau), ou mesmo na própria capital, Pequim, onde os Jesuítas, após a morte do Padre Mateus Ricci, se encontravam em eclipse, <' assim, todas estas relações voltariam a conquistar as boas graças imperiais.

Macau contribuiu, no domínio da fundição, não só com o fabrico de material bélico, onde era utilizada a mão-de-obra chinesa (como se conclui do ccContrato que 'O Capitão Geral D. Francisco Mascarenhas celebrou com Quinquo e Hiaxon, chinas gentios de <"ahelo, para fundirem peças de adilharia de ferro coado», datado de 13 de Outubro de 1623) mas, ainda com os artífices que de Macau foram enviados para Goa para exercerem o seu mister nas fundições daquela cidade.

O carácter económico encontra-se patente em toda esta con­juntura e problemática, como se deduz de uma carta de 1630 com instruções ide El-Rei, sobre as amostras de ferro enviadas da China. As discussões entre 1os conselheiros do rei são várias no que diz respeito à continuação desta fundição de Macau. Ficou mesmo com­provado, na época, que economicamente a fundição da Biscaia era mais rentável, mas, não obstante, a fundição de Macau, continuou a aprover todas as necessidades não só da índia, como do Extremo Oriente, uma vez que as instruções dadas por Lisboa para o Vice Rei da índia sobre o assunto são constantes. Quer uma carta datada de 23 de Fevereiro de 1633, como outra de 28 de Março de 1635 insistem na continuação da fundição de Macau. Havia que conti­nuar a fundir artilharia para guarnecer as fortalezas daquele estado : « ( ... ) Havendo mandado encomendar ao Conde de Linhares V osso antecessor ... que procurasse pelos meyos que fossem possíveis que o fundidor do artelh.º de ferro coado que assiste em Machao fundisse a mais ·art.ª e do maior porte que fosse possível para servir nas fortalezas desse Estado, e nas mais partes que conviesse : respondeo ( ... ) do mais que se considerava que resultaria de Utilidade em se uzar daquella fundição ( ... ) e a necessidade da art.ª tam grande, vos encomendo, e encarrego muito que procureis com todo o cuidado que se faça a fundição ida art.ª de ferro coado em Machao para provimento desse Estado na forma que tenha ordenado». Em carta de 1640 o rei recomenda novamente ao Conde de Linhares que: e. trateis com particular cuidado de que continue a fundição de Artelharia no tempo do vosso Governo, pois he tao neçessaria como se tem reprezentado para as Armadas desse Estado, e não dareis Licença aos fundidores ... pella grande falta que farão nessas partes não os havendo nellas».

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Mas o bloqueio permanente do estreito de Singapura, pelas esquadras holandesas, impossibilitou, a partir de 1634 o transporte para Goa de peças produzidas em Macau, embora a produtividade fosse intensa. Por esta razão os portugueses optaram por fretar navios ingleses para o transporte, para a Índia, das peças, quer de bronze, quer de !ferro. ccO London foi o primeiro da série dos navios que, durante anos, escoaram, desta cidade, os produtos da sua fundição, até que em 1643, o Bona Speranza, empregado com o me.smo fim, foi capturado, no Estreito de Malaca, o que repre­sentando a descoberta do estratagema, anulou a possibilidade de ser exportado o material aqui fundido» (11

). Apesar de toda esta controvérsia, a verdade é que o princípio comercial que sempre manteve Macau uma vez mais foi polvilhado por um pouco de boa sorte e, no mesmo ano em que este estratagema português de comércio bélico era descoberto, os portugueses assinavam uma trégua d.e dez anos com a Holanda. .

Estas circunstâncias foram aproveitadas por Macau, que fizeram seguir para Goa, as peças fundidas e acumuladas em Macau: cce não obstante as dificuldades, que apontaes, para se poder conduzir, a que lá estava lavrada, e cobre para fundição de outra a Goa, com a perda de Malaca, me parece dizer vos, que com a tregoa, que se tem cele­brado com os olandezes, rficarião aquelles mares franqueados, para poderem vir as peças, que estavão feitas na china, e o cobre, que se tinha mandado vir do japão, pello ·que vos encomendo muito, que pois tem cessado a cauza de não haver comercio nelle, procureis fazer vir a essa Cidade, assim as peças como o cobre com todo o cuidado, por o muito que cada huma destas couzas importa, e prazera a Deos, que Macao se ache em Estado, que a saca dellas, e condução seja facil, e sem risco, nem impedimento, que o es­torve» (12

). Dois anos mais tarde sabe-se que foram enviadas para a Índia e para Portugal ·algumas centenas de peças de artilharia.

Apesar de o fabrico de material de artilharia ter atingido o seu esplendor máximo sobre a égide de Manuel Tavares de Bocarro esta fundição continuou a exercer as suas funções, pelo menos até 1777, segundo comprovam os documentos. Mas lentamente, esta iictividade produtora foi diminuindo no Oriente Português, e outros interesses comerciais se sobrepuseram.

(11) Fernando da Silva Amaro, «Fundições e Fundidores Portugueses na A.sia e em Africa» in Boletim Eclesiástico, Janeiro de 1961, p. 78.

(L2 ) Carta de 24 de Março de 1643 para o Vice-Rei da lndia.

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Existe uma lista, elaborada por V. N. Mesquita, em 1846, que compreende a artilharia existente nas fortalezas, baluartes e dentro da própria cidade de Macau. Neste sumário de grande número de canhões, encontram-se um vasto número de peças hélicas fabricadas na maior parte pelo fundidor de canhões Manuel Tavares Bocarro, o que comprova, por um lado, a iprospecção desta fábrica fundidora, e por outro uma das principais razões que levaram ao florescimento da mesma (1ª). No entanto, os vestígios físicos são ainda visíveis, nos nossos dias, quer no Museu Militar de Lisboa, ou ainda na Torre de Londres, entre outros locais do Extremo Oriente ( 14

).

É por todas estas razões que podemos afirmar, sem sombra de dúvida que o fabrico de material de artilharia em Macau, em meados do século XVII, foi de extrema importância para a própria cidade na medida em que lhe proporcionou numa época de alguma insta­bilidade a estabilidade possível, quer a 111ível ·económico (a venda de material de artilharia acabou por se tornar proveitosa), como ainda, a nível político e até diplomático (prestigiou a cidade mesmo com os seus vizinhos chineses). Alternativa económica a um comércio cada vez e lentam.ente mais decadente; rápida e eficaz fortificação da cidade ; ou ainda aumento do prestígio da mesma face aos <rnutros» são as consequências que justificam a afirmação da impor­tância do fabrico de material de artilharia em Macau, em meados do século XVII.

Çrn) Vide Padre Manuel Teixeira, «Os Bocarros» in Congresso Interna· cional de História dos Descobrimentos, separata do vol. V das actas, Lisboa, 1961, Apêndice It.

(11•) Vide imagem n .º 1.

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Canhão de S. Lourenço fundido por Manuel Tavares Bocarro em Macau, em 1627 (Reproduzido do livro Macau na ~poca da Restauração, por C. R. Boxer, p. 188)

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ALGUMA CRONOLOGIA IMPORTANTE:

1601- Surgiram em frente a Macau as naus holandesas Amsterdam e Gouda e um patachinho da esquadra do Almirante Jacques Van Neck. Os holandeses traziam 700 homens, dos quais enviaram 7 a terra, num barco, e que foram imediatamente capturados. No dia seguinte foi enviado o patacho que com os seus 9 homens também foi capturado. O capitão mor de Maoau D. Paulo de Portugal pretendeu sair em perseguição das naus holandesas com seis navios de remo que armára, mas es navios holandeses fugiram.

1601- Execução em Macau dos 17 prisioneiros holandeses.

1603 - Foi tomada, no estreito de Johore, a nau Santa Catarina, de 1500 toneladas, comandada pelo capitão Sebastião Serrão, pelo almirante holandês Jacob Heemskerck. (Mare Clausum/Mare Liherum).

1603 - Entraram no porto de macau duas naus e um patacho holandeses que tornaram a nau do Capitão-Mor Gonçalo Rodrigues de Sousa, enquanto que a tripulação se encontrava em terra a fazer os preparativos para a viagem para o Japão.

1604 - Tent.iativa Holandesa para atacar e tomar Macau.

1605 - A esquadra holandesa do almirante Witjtrant Van W aryck tomou, no porto de Patane (Sião), a nau Sto. Antonio, na sua viagem de regresso.

1607 - Por Carta Régia, pa:r:a o Vice-Rei da Índia foi cometido o encargo de nomear, a partir daquda data (9-IX), um Capitão Gov,ernador perma­nente para a cidade de Macau, com o objectivo final de protecção militar, uma vez que aquela 'administl"ação tinha um capitão interino, ou seja, enquanto este não se encontrava na viagem para o Japão. Esta decisão não se verificou de imediato.

1607 - Tentativa holandesa para atacar e tomar Macau: oito navios holan­deses, o Orange, o Mauriíio, o Erasmo, o Eunhice, o Delft, o Pequeno Sol, o Pombinha e um iate, com uma tripulação de 551 homens e comandados pelo almi:r:ante Cornelio Metelieff. No entanto, estes foram escoraçados das águas de Macau, por seis navios portugueses. Os holan­deses perde11am uma das naus e o iate.

1609 - Os holandeses toma11am parte de Ceilão e estabelecaram a primeira feitoria no Japão.

1610 - Fim do comércio de Macau com o Japão, por intriga h<>landesa, mas o corte só se tornou evidente cerca de 1620.

1613 - Os chineses impuseram aos portugueses ccnão edificar casas novas em sítio n<>vo» de Macau.

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1615 - O Fidalgo da Casa real Francisco Lopes Carrasco foi nomeado pelo Vice-Rei da India, Capitão de Guerra e Ouvidor de Macau, sem depen­dência do Capitão-Mor da Viagem do Japão. Este torna-se assim o primeiro Governador de Macau (cargo que deveria tomar posse em 31 de Agosto de 1616).

1616 - Francisco Lopes carrasco tomou posse da Capitania e Ouvidoria de Macau, mas porque nada fez pare as obras de fortificação da cidade, e porque eram muitas as queixas contra este como Ouvidor, o Vice-Rei da Yndia mandou que regressasse preso para Goa. Foram muitos os excessos e as desordens por ele cometidos. Apesar de tudo, terá contri­buído para o projecto da Fortaleza de S. Paulo do Monte, conjunta­mente com o Padre J eronímo Rho, S. J ., devido a sua práctica como militar em África e na fodi.a.

1617 - Data provável do início da construção da Fortaleza de S. Paulo ou do Monte - a cidadela de Macau.

1620 - O patacho S. Bartolomeu, foi atacado pelos holandeses, quando seguia na sua viagem para o Japão.

1621- Pelo menos 3 e no máximo 10 canhões e pessoal para os manusear foram enviados de Macau a China para combater os Manchus, devem ter sido 7 portugueses (cfr. Bretscheider in China review, VI, 340) entre os quais João Correia, que morreu na expedição e foi enterrado na China; foram chamados pelo lmperadorTien-Ki para ensinu arti­laria em Pequim, embora esta fonte proponha a data de 1624. O Padre Semedo, S. J., dá a data de 1630 e, no que não está sozinho, eleva o contingente a 400 homens, a maioria portugueses mas também alguns chineses educados em Macau. O Padre Semedo afirma ter visto em Nan-Tch'ang o grupo expedicionário quando se dirigia para Pequim. Leviaram o Padre João Rodrigues, S. J ., da província do Japão, mas que já visitara a China em 1612 com o intuito de conhecer e refutar as seitas idólatras de China.

1622 - Vitória retumbante e definitiva alcançada por Macau face aos holan­deses que eram comandados por Kornelius Reyersoon, que coon 14 navios e 800 homens havia pretendido tomar a cidade. O inimigo foi completamente destroçado perante o esforço dos macaenses, capita­neados por Lopo Sarmento de Carvalho, com colaboração do Padre Rho, a partir da Fortaleza do Monte, e com o auxílio de material bélico construído na fundição de Manuel Tavares Bocarro. Hoje este é o dia da cidade: 24-VI.

1622 -Tomou posse do Governo de Macau o Conselho Governativo, consti­tuído por Fr. António do Rosário e pelos moradores Pedro Fernandes de Carvalho e Agostinho Gomes. Foram nomeados por alvará do Estado da Yndia de 22 de Abril do mesmo ano, para o exercício da capitania de guerra sem dependência do Capitão da Viagem do Japão.

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1622 - O monopólio com as cdáhricas» de Cantão é suspenso e Macau passa a ser o centro de apoio e de passagem de estrangeiros em demanda da feira anual de Cantão.

1623 - Carta e regimento do Vice-Rei da lndia em 6 de Maio, passados em nome do Rei, nomeando D. Francisco de Mascarenhas, Fidalgo da Casa Real, como Capitão-Geral e primeiro Governador da Cidade de Macau. Este Governador cercou a cidade com uma muralha e aper­feiçoou o sistema de fortificação, em geral.

1625-1664 - Manuel Tav·ares Bocarro f'U!Ilde canhões para Maoau e China.

1626 - Capela e Forte da Guia. Reconstruída como Fortaleza entre 1637-38, pelo capitão de artilharia António Ribeiro.

1627 - Conclusão da Fortaleza de S.Paulo, conforme inscrição epigráfica, sobre a porta de acesso.

1627 - Governando Macau como Capitão-Geral o macaense Tomás Vieira, os armadores da praça, João Soares Vivas, Marcos Botelho, António Cortes, António Rodrigues Cavalinho e João Teixeira, sob o comando do pri­meiro, saíram a barra e acometeram contra 4 naus holandesas que bloqueavam a barra com o fim de capturarem a frota que deveria largar para o Japão. Depois de algumas horas de combate e reconhe­cendo no Ouwerkerk a nau-chefe, tomaram-na e queimaram-na. Fize­ram 33 prisioneiros e apoderaram-se de 24 peças, 2000 balas e algum dinheiro.

Como se verifica são constantes os ataques aos portos de Macau o que torna o aparecimento da fundição de material de artilharia essencial. No entanto, não nos podemos esquecer que outras razões existiram para este florescimento.

Cronologia baseada em Cronologia da História de Macau, de Beatriz Bastos Silva, 2 vols., Macau, Direcção dos Serviços de Educação e Juven­tude, 1993.

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FONTES:

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Tcheong-U-Lâm e Ian-Kuong-Iâm, Ou-Mun Kei-Leok. Monografia de Macau, tradução de Luís Gonzaga, Macau, Edição da Quinzena de Macau, imp. 1979.

SEMEDO, Padre Alvaro, The History of that Grea.t and Renowned Monarchy of China, Londres, 1655.

BIBLIOGRAFIA:

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BOXER, Charles Ralph, Macau na Epoca da Restauração, Macau, 1942.

LOUREIRO, Rui, «Macau» in Dicionário de História dos Descobrimentos Por­tugueses, dirigido por Luís de Albuquerque, vol. II, Lisboa, Círculo de Leitores, imp. 1994.

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TEIXEIRA, Padre Manuel, «Os Bocarros» in Congresso Internacional de His­tória dos Descobrimentos, separata do vol. V das actas, Lisboa, 1961.

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PORTUGUESES EM ARMADAS ESTRANGEIRAS NO MEDITERRÂNEO

CMG GOMES PEDROSA

Muitos portugueses estiveram, ao longo dos séculos, ao serviço de forças militares estrangeiras, e o seu número é maior no mar do que em terra.

Com efeito, a guerra terrestre era um :fenómeno raro, extraor­dinário, porque a :fronteira era «sagrada». O seu atravessamento por um exército inimigo constituía um acto da maior gravidade, que mobilizava todos os recursos dos dois beligerantes e afectava também os interesses dos países vizinhos. Por esse motivo, poucas vezes forças militares espanholas invadiram Portugal ou forças mili­tares portuguesas invadiram a Espanha.

No mar, a «guerra declarada» também era um fenómeno raro, extraordinário. Mas a guerrilha estava inscrita no quotidiano, através do corso, forma de violência institucionalizada que permitia aos Estados exercerem pressão e atacarem os navios mercantes dos antagonistas, numa estratégia de longo prazo, de desgaste, atrição, mais eficaz do que a «guerra declarada». «0 mar é um perímetro demasiado vasto para ser encerrado nas possibilidades normativas» - foi sempre difícil :fazer a distinção entre o pirata e o corsário, o navio mercante e o navio de guerra.

Uma das condições impostas para que a guerra de corso fosse legítima consistia na obrigatoriedade de o corsário depositar, antes da largada, uma :fiança (caução) que serviria logo de indemnização às vítimas dos abusos que eventualmente cometesse.

É elucidativo o tratado que o rei D. João II celebrou em 23 de Junho de 1494 com o imperador Maximiliano ( «Capitolos de Pazes do emperador Maximiliano y Felipe seu filho com el rei J oham o 2.0 de Portugal»). Os dois comprometeram-se a dar ordem aos <oncelhos e oficiais dos portos de mar, «que não sofram alguns

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capitães nem gente de guerra de qualquer estado e condição que sejam, que vão de armada sobre mar sem dele tomarem suficiente fiança dos ditos capitães e gente de guerra», sob pena de os ditos oficiais serem obrigados a pagar os danos que eles causarem aos súbditos do outro príncipe e aos seus aliados. «E que se algum dos ditos príncipes trouxer alguns navios de guerra sobre mar», nesse caso os concelhos e oficiais «não haverão senão o conhecimento ou mandato do senhor», e se tais navios e gentes de guerra fizerem algum dano ao outro príncipe e seus aliados, «logo o dito príncipe que tiver enviado os ditos navios será teúdo de fazer a reparação e de punir e corrigir os delinquentes que tiverem feito o dito dano» (1). Isto é, o tratado prevê três situações distintas:

- l .ª) Os navios mercantes não depositam fiança ; vão desar­mados, ou então armados «mercantilmente», só para se defenderem.

- 2.ª) Se o rei tiver «navios de guerra sobre o mar», estes também não depositam fiança ; o rei é responsável pelos danos que eJes causarem.

- 3.ª) Só depositam fiança os navios que «vão de armada sobre mar», armados por particulares, isto é, que levam «gente de guerra» e vão preparados para investir e abordar os contrários.

Também elucidativa é a proposta que um embaixador do rei D. João 1 apresentou ao rei de Inglaterra, em data posterior a Novembro de 1399, para acabar com as presas marítimas entre ingleses e portugueses :

- «Que proibisse aos seus vassalos de navegarem armados em guerra, e só levando as armas indispensáveis para sua segurança, e isto reclamava em consequência dos muitos danos causados às naves, navios e súbditos de el-Rei de Portugal seu amo. Que se houvessem alguns prejuízos, fossem estes indemnizados pelos balios e gentes da cidade em que -o armamento tivesse sido feito. Que el-Rei de Portugal mandaria promulgar um decreto para igual efeito conforme as leis do seu reino ( ... ) ».

- « ( ... ) os ingleses tinham causado grandes danos e perdas aos mercadores portugueses, vendendo até as mercadorias deles, e roubando-os, e que tendo-se recorrido às justiças e autoridades dos

( 1 ) Manuela M. Matos Fernandes, «Alguns aspectos das relações externas de D. João II», in Congresso Internacional Bartolomeu Dias e a sua época, vol. I, Porto, 1989, pp. 348 e segs.

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seus reinos, só os portugueses puderam obter em resposta que tais gentes estavam sob a protecção do governo dele, rei, e em seu ser­viço de guerra, e que por esse motivo as ditas autoridades não tinham acção sobre eles ( ... ) )) e).

Ou seja, nos séculos XIV e XV o mesmo navio podia estar em quatro situações diferentes: 1.8) em viagem mercante, desar­mado; 2.ª) em viagem mercante, armado «mercantilmente», só para se defender; 3.8) «de armada», isto é, armado para cumpri­mento de acções ofensivas, em regra, acções de corso; 4.ª) em guerra, integrado na frota real, durante uma «guerra declarada». A cada uma destas situações correspondia uma tripulação diferente. À tripulação normal, os chamados «homens de mar», vinha jun­tar-se um número maior ou menor de «homens de guerra».

Alguns navios mercantes eram autênticos navios de guerra, que navegavam isolados ou forneciam escolta aos comboios, e por esse motivo vários dos seus capitães tiveram patente de capitão de mar e guerra «ad honorem» por feitos em combate. Por exemplo, em 1707, Manuel de Almeida Soares, natural de Viana e capitão da 11au Santo André e Tré$ coroas, dirige uma petição ao rei solici­tando a patente de capitão de mar e guerra «ad honorem», porque o seu navio está armado com mais de 40 peças cce todos os mais apetrechos, e gente da sua guarnição competente», navega há mais de 20 anos para o Brasil, e nunca se rendeu nos muitos combates que travou com piratas. O rei concedeu-lhe a patente, por decreto de 9 de Dezembro desse ano, como já havia concedido a ccmuitos capitães de navios» ( ª).

A mobilidade da faina marítima propiciava a emigração. Por exemplo, diz Adrien Balbi que em 1812 mais de 8 mil portugueses serviriam na marinha militar britânica e um número muito maior na marinha mercante da mesma nação. Também os navios corsários franceses eram verdadeiras cctorres de Babel», com tripulantes de várias nacionalidades, incluindo muitos portugueses (').

E os actos bélicos no mar também podiam ser praticados por embarcações de pesca. No séc. XV, caravelas de pesca participaram em expedições no Norte de África e na guerra de 1475-1479 contra

(2) João Martins da Silva Marques, Descobrimentos Portugueses, supl. vol. I, Lisboa, 1944, p. 445.

(3) Cláudio Chaby, Synopse dos decretos remetidos ao extinto Conselho de Guerra, Lisboa, Imprensa Nacional, 1870 a 1892, vol. 4.º, p. 21; Nuno Valdez dos Santos, cPortugal e a sua preparação militar para a Guerra da Sucessão de Espanha», in III Colóquio, Comissão Portuguesa de História Militar, Lisboa, 1992, p. 93.

(') Menri Malo, Les corsaires. Mémoires et documents inédits, Paris, 1908, pp. 23·24.

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o.!' reinos de Castela e Aragão. Quando se afastavam da costa iam armadas para se defenderem - ou para atacarem, se a oportunidade surgia. Em 1487 os portugueses ccAlfonso Yá:íiez, Antonio Yáyez e Diego Alfonso, patrones de carahela», iam para Valência vender pescado ; ao largo do cab() de Gata, no mar de Almería, avistaram um cccaro» (navio mouro) que ia para Malta com 30 mouros, armas e vitualhas; investiram contra ele e tomaram-no ; continuaram a Yiagem para Valência, e aí venderam o pescado e 24 mouros (ou outros 6 mouros devem ter morrido no combate). Isto é: iam para vender pescado, e acabaram por vender pescado e mouros ( 5 ).

Muitos pescadores emigraram também, voluntariamente ou à força, cativados em grande número pelos corsários mouros e, não raro, até por navios cristãos. Por exemplo·, em 1650, uma armada inglesa capturou parte da frota que regressava do Brasil, apresou catorze embarcações de pesca que lhe costumavam ir fornecer abas-­tecimentos na barra de Lisboa, e foi depois ao longo da costa apa­nhando mais embarcações de pesca e pescadores ( 6 ).

Neste domínio, o da presença de portugueses em navios estran­geiros, merece destaque o Mediterrâneo, que foi palco de uma guer­rilha marítima permanente entre cristãos e muçulmanos.

Do lado cristão, evidenciou-se a Ordem de S. João de Jerusalém, depois chamada Ordem de Malta, que dispunha de forças multina­cionais, como hoje se diria, incluindo muitos portugueses. Por dis­posição estatutária, todos os membros da Ordem eram obrigados a passar pelo menos dois anos embarcados nas suas armadas, serviço chamado cccaravanas» ( 7 ).

A primeira acção portuguesa de relevo ao serviço da Ordem ocorreu em 1480, quando os turcos cercavam a ilha de Rodes. Foi em socorro D. Diogo Fernandes de Almeida, futuro Prior do Crato, com uma caravela de 120 homens, que no caminho foi atacada por duas galés do corsário genovês Montenegro. Tomou-lhe uma das galés, seguiu viagem e participou depois em vários combates navais. :Esta vitória pode ser considerada um marco na história da láctica naval, como se lê numa carta que António Real escreveu em 15 / /12/1512, de Cochim, para o rei D. Manuel: cc ... pera esta costa, fazem mais gerra e he mais proueytosso carauelas latinas, que todas

( 5 ) Vicenta Cortes, La esclavitud en Valencia durante el reinado de los Reyes Catolicos, Valencia, 1964, p. 228. .

(&) Frederic Mauro, Le Portugal, Le Brésil et l'Atlantique au XVII siecle, Fundação Calouste Gulbenkian. Centro Cultural Português, Paris, 1983, p. 515.

(7) Conde de Campo Belo, «Alguns Portugueses ao serviço da Ord~ de S. João de Jerusalém», in Presença de Portugal no Mundo, Actas do Colóquio, Academia de História, Lisboa, 1982, pp. 53 e segs.

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as gales do mundo, que trazem pouca gente e faz tanta guerra hua carauela como hua gale; que bem sabe Vossa Alteza que huua caravela bem armada toma duas gales, como fez o priol do crato, que, com huua caravela, tomou huua galle e outra lhe fogio, semdo duas gales muito bem armadas, de genoa ( ... ) » ( 8 ) •

Quatro portugueses foram Grão-Mestres da Ordem e muitos outros participaram nas suas armadas, exercendo os mais altos cargos, mas infelizmente são escassas as fontes de informação. Conhece-se o nome de poucas dezenas. Nas suas Memórias histórico­·políti.cas-müitares de Malta e da Soberana Ordem de S. João de ]ermalém, desde a sua primeira instituição até o anno de 1803 ( ... ),(Lisboa, 1803), Felis Antonio de Christoforo de Alós indica os feitos navais de cavaleiros de Malta de várias nacionalidades, e acrescenta : «Portugal também admirou em diversas épocas o valor e os talentos de Diogo Fernandes de Almeida, de João e José de Mello, de José de Vasconcelos, dos Saldanhas, dos Telles, dos Sousas, dos Cunhas, e de muitos outros ; e presentemente ocupa com distinção o posto de vice-almirante o comendador Pedro de Men­donça e Moura» ( 9 ).

Nesta guerrilha marítima permanente que opôs cristãos e mu­çulmanos, evidenciaram-se do lado muçulmano as Regências de Argel, Trípoli, Túnis e Salé, cujas forças navais também eram multinacionais, com «turcos de nação» ( que nasceram turcos ou mouros), «turcos de profissão» (<e renegados>>) e escravos cristãos de várias nacionalidades.

Muitos dos corsários mouros e turcos eram «renegados» cris­tifos. As sociedades muçulmanas dessa época eram mais abertas do que as sociedades cristãs e aceitavam os estrangeiros, em pé de igualdade, desde que se convertessem ao islamismo. Os cristãos aprisionados eram vendidos nos mercados de escravos e, em regra, colocados aos remos das galés, suportando violências de toda a ordem enquanto aguardavam o resgate que, muitas vezes, nunca chegava. A esperança perdida de obter algum resgate ou de por outra forma regressar ao mundo cristão é a razão principal para renegar. Mas outros cristãos, condenados pelo estatuto do seu nasci­mento a uma condição subalterna, bandeavam-se voluntariamente vendo no corso muçulmano o melhor trampolim de ascensão polí-

( 8 ) Cartas de Afonso de Albuquerque seguidas dos documentos que as elucidam, dir. por R. Bulhão Pato, Academia Real das Sciencias de Lisboa, tomo III, ip. 349.

{9) Id., ibid., p. 131. Sobre o mesmo assunto, Portugal e a Ordem de Malta, direcção de Martim de Albuquerque, TLP, Lisboa, 1992.

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tica e social (1º). E muitos vieram a exercer os mais altos cargos da hierarquia civil e militar. Os mais famosos comandantes de navio ou de armada eram «renegados». Ao nome muçulmano que haviam adoptado quando se converteram, acrescentavam o designa· tivo «Arrais» (<<Reis» ou «Rais» ), que significa comandante. Por exemplo, na costa portuguesa actuaram Morato Arrais, Solimão Arrais, Calafate Arrais, etc.

Dos muitos portugueses que pudemos identificar em armadas norte-africanas, vamos indicar apenas ·alguns que exerceram cargos de maior responsabilidade.

João Vaz Mayo, natural de Tavira, comandava uma armada de cinco navios que foi atacar Faro em 1530 (11

).

Uma carta régia de 31 de Agosto de 1613 manda «entregar a Francisco de Souza, como presa por ele feita, um navio, de seu comando, saído de Argel, e que ele, capitão, amparando-se da fortaleza de Sagres, viera entregar, reconduzindo-se à nossa santa fé» ( 12

).

Um tal Ramos, natural de Gaia, Massarelos, Leça ou Mato· sinhos, era corsário importante em Argel, porque em 1616 prepa· rava uma armada de doze navios para vir atacar a costa (1ª).

Um natural da Graciosa vinha por capitão de uma das oito fragatas de Argel que tentaram desembarcar naquela ilha em 19 de Maio de 1623; « ( ... ) o qual sendo (depois) resgatado em Argel pela Redenção Geral, veio para Lisboa onde com as esmolas que tirou mandou fazer uma imagem de Nossa Senhora da Vitória que hoje está na ermida que fez o povo, nela viveu ermitão, e morreu como ermitão» e·).

Na Memorável -reúu;ão da. perda da nau Conceição que os turcos queimaram à vista da barra de Lisboa ... (1627 ), João Carvalho Mascarenhas diz que «haverá cristãos cativos em Argel, sómente da Igreja Romana, oito mil, e se não fosse a muita peste que sempre

(1º) Sobre este assunto, Bartolomé Bennassar e Lucile Bennass·ar, Les Chrétiens d'Allah, L'histoire extraordinaire des renégats, XVI-XVII isiecles, Perrin, Paris, 1989.

(11) David Lopes, História de Arzila durante o domínio português (1471--1550 e 1577-1589 ), Coimbra, 1925, pp. 334-337; Frei Luís de Sousa, Anais de D. João III, 2.ª ed., Sá da Costa, Lisboa, 1954, vol. II, pp. 127 e segs.

( 12 ) José Justino de Aindrade e Silva, Colecção cronológica de legislação portuguesa (1613-1619), Lisboa, 1855, p. 20.

( 11 ) Francisco Ribeiro da Silva, A pirataria e o corso sobre o Porto (Aspectos seiscentistas), Revista de História, vol. II, 1979, Actas do Colóquio cO Porto na época moderna», INIC, 1979, p. 301.

(H) Arquivos dos Açores, vol. IV, 1882, p. 185.

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ali houve, haveria muito mais». Um dos arrais importantes de Argel, muito conhecido e muito tido em conta, é «Mahamet Por­tuguês», criado em Alfama.

Miguel de Santiago, «renegado» em Salé, comandou em 1634 uma expedição contra a ilha de Lanzarote C1~).

Chaban Arrais, português, foi corsário em Argel e em Salé. Em 1646 comandava um navio de 16 peças e 175 homens de guar­nição, apresou um navio inglês carregado de sal e uma embarcação de pesca no golfo de Gasconha, mas foi depois capturado em 22 de Julho desse ·ano pelo corsário holandês Cornelis Verheck ('19

).

Amaro Dias, «renegado» em Tetuão, comandava uma armada em 16 5 5 quando foi morto na baía de Málaga : « Relación verdadera del exemplar castigo que Miguel Adrian Ruiter, general ·de la armada de Olanda, mandó hazer en la bahia de Malaga, a Amaro Díaz, portugues de nacion, y renegado en Tetuan ( ... ) que ha usado el pyratazgo ( ... )afio de 1655 ( ... )» (11

).

Nos fins do séc. XVII um dos mais importantes corsários de Argel era um Sebastião, natural de Azurara, que passou a chamar-se Maameth Arrais ( 18

).

Em resumo:

- Pelo menos até ao séc. XVIII, os actos bélicos no mar podiam ser praticados por navios de guerra, corso, comércio ou pesca.

- Em todos estes sectores muitos portugueses emigraram, vo­Juntariamente ou à força, e estiveram depois a servir sob pavilhão estrangeiro.

- A presença de portugueses teve especial incidência no Medi­terrâneo, que foi palco de uma guerrilha marítima permanente entre cristãos e muçulmnaos.

- Destacaram-se, do lado cristão a Ordem de Malta, e do lado muçulmano as Regências de Argel, Tripoli, Túnis e Salé.

- As forças navais da Ordem de Malta eram multinacionais, com membros da Ordem de várias · nacionalidades, incluindo portu­gueses, e escravos turcos e mouros.

(U) Les Chrétiens d'Allah, p. 216. (U) Roger Coindreau, Les corsaires de Salé, Paris, 1948, p. 81. (H) Madrid- Julian de Paredes - 1655, B. N. (18) Mário Fernandes, «O capitão Gancho nasceu no Faial?», in Didrio

de Notíci.as, 21 de Maio de 1990.

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- As forças navais das Regências também eram multinacio­nais, com turcos e mouros, <<renegados» e escravos cristãos. Os «renegados» eram de todas as nacionalidades, incluindo portugueses.

- Não é exagerado presumir que em quase todas as batalhas navais travadas no Mediterrâneo ao longo de séculos participou algum português, ,de um lado ou de outro, muitas vezes exercendo as funções de comandante de navio ou de armada.

- Esta é uma das maiores lacunas da nossa historiografia marítima : são muitos milhares de portugueses, sobre os quais quase nada se sabe.

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MILITARES PORTUGUESES NO EXÉRCITO DE D. CARLOS (1834 - 1839) -O OUTRO LADO

DA I GUERRA CARLISTA

ANTÓNIO VENTURA(*)

O objectivo desta comunicação é apresentar alguns resultados preliminares de uma investigação que estamos ·a levar a cabo, inci­dindo sobre a participação portuguesa na I Guerra Carlista. São raros os estudos sobre o auxílio prestado pelas novas autoridades libe­rais portuguesas, após a Convenção de Évora-Monte, ·ao governo de Maria Cristina, que então se debatia com os levantamentos carlistas em diversas regiões de Espanha, e coon o lento estruturar de um exército rebelde que, não obstante a enorme desvantagem em homens, material, logística e apoio internacional, se estribava em sólidas convicções e numa dedicação ilimitada àquele que conside­ravam ser o veTdadeiro rei - Carlos Maria Isidro, ou Carlos V. Correspondendo ao auxílio que desde finais de 1833, de um modo discreto, e, após a Quádrupla Aliança, de maneira clara, os liberais espanhóis proporcionaram às fileiras pedristas, D. Maria II enviou algumas forças para o país vizinho a fim de auxiliarem Maria Cris­tina a debelar a insurreição. Foi a Divisão Auxiliar à Espanha, que actuou desde Outubro de 1835 a Setembro de 1837, com um desem­penho irregular, e que viu 'ª sua mis.sã-0 abreviada em virtude do agravamento da situação interna portuguesa decorrente da Revolução de Setembro e das ten.toativas palacianas ou castrenses - com relevo ppara a Revolta dos Marechais - que ·tiveram como ohjeotivo res­taurar •a carta Constituci-0nal. Não é, porém, a 1partioipação liberal portuguesa na •guerra que nos interessa; embora já existam, como

(*) Professor da Faculdade de LetrM de Lisboa.

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referimos, alguns elementos publicados sobre ela ( 1 ) , reconhecemos

que carece de novos estudos actualizados. Como referimos ·no início, vamos abordar unicamente, e de forma sumária, a participação de miguelistas no outro lado da barricada, isto é, nas fileiras carlistas.

Vejamos como decorreu aquele conflito fractricida, para nos situarmos em termos cronológicos e face ao evoluir das operações militares.

A l.ª Guerra Carlista (1833 -1840) ('2) pode ser considerada em quatro fases bem determinadas, que apresentamos de forma esquemática •para um entendimento mais fácil :

1. Outubro de 1833 a Junho de 1835

Iniciam-sei diversas subleviações localizadas em apoio de D. Car­los, um pouco por toda a Espanha, com maior incidência em Navarra e Guipuzcua. Após uma série de fracassos militares iniciais, com a perda de Vitória e de Bilbao, os carlistas organizaram-se com Zum.alacárregui à frente. Este chefe militar, sem dúvida o mais notável de quantos se confrontaram naquele conflito, transformou grupos de voluntários realistas mal armados e organizados num exército disciplinado e eficaz. Ocupou as províncias vascongadas excepto as respectivas capitais. Derrotou todos os generais cccris­tinos» collltra s:i enviados- Rodil, Quesada, Nima e Valdés. Na estratégia carlista, era vita'l ocupar uma cidade importante para obter reconhecimento internacional. Assim se explica o cerco de Bilbao, cuja resistência e frequência de combates, com pesadas baixas, teve consequências negativas para as fileiras de D. Carlos. Aí morreu o próprio Zumalacárregui, em Junho de 1935.

2. Junho de 1835 a Outubro de 1837

O Tenelllte General Gonzàlez Moreno assumiu o comando das forças carlistas, que passam à ofensiva tentando levar a guerra a

(~) V., por exemplo, o conjunto de documentos apresentados por Hen­rique de Campos Ferreira Lima com o título de «Divisão Auxiliar à Espanha em 1835 -1837», in Boletim do Arquivo Histórico Militar, Vol. 8.º, 1938, pp. 61 a 159, e o livro de Eduardo Montufar Barreiros, Os Papéis de meu Pai, Lisboa, M. Gomes Editor, 1904, 1.º volume.

( 2 ) A Bibliografia sobre a 1.ª Guerra Carlista é numerosa. Veja-se, como obra clássica, António Pirala, História de la Guerra Civil y de los Partidos Liberal y Carlista, Madrid, Turner/História 16, 1984, 6 volumes, e, como a obra recente mais credenciada, Alfonso Bullón de Mendoza, LA. Primera Guerra carlista, Madrid, Actas, 1992.

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todo o território espanhol. Após a batalha de Mendigorria, reve­lou-se :impossível Jevar a cabo uma ofensiva generalizada, optando-se então pelo envio de expedições a regiões limitadas com o objectivo de as sublevar. É a época das expedições, as mais importantes das quais foram as de Guergué à ,Catalunha (Agosto de 1835 ), Gómez às Astúrias e Galiza (Junho-Dez.emhro Ide 1836 ), e a Expedição Real, sob o comando do Infante D. Sebastião Gabriel, organizada com o objectivo de tomar Madrid ( 1837 ). Outras expedições de menor dimensão foram comandadas por Zaratiegui, D. Basílio (a Só ria), Batamero e Sanz (a Oviedo).

Noutras regiões registou-se um surto das guerrilhas carlistas, nomeadamente em Aragão e Saragoça. Nessa época, outro facto assinalável foi a ascensão de> general Ramón Cabrera na hierarquia militar carlista.

3. Outubro de 1837 a 31 de Agosto de 1839

Declínio político e militar carJista após o fracasso da Expedição Real. Os partidários de D. Carlos tentaram manter alguma inicia­tiva, de que foi exeimplo a expedição do conde Negri, mas o isola­mento internacional, a impossibilidade de receber auxílio exterior em virtude do bloqueio naval, e as divisões internas nada auguraram de bom. Ocorre nesse período a ascensão do General Maroto, após a perda de Peííacerrada. O episódio mais dramático das lutas intes­tinas foram os fuzilamentos de Estella, onde, por ordem. daquele general, foram executados diversos chefes carlistas entre os quais Sanz e Guergué. Maroto acabou 'por negociar directamente com .os liberais, assinando o Convénio de Vergara, em virtude ·do qual a maior parte do exército do norte abandonou a luta. D. Carlos viu-se obrigado a procurar refúgio em França.

O general Cabrera prosseguiu a luta e capturou Morella. Depois de Vergara, os liberais convergiram sobre Aragão. O conde de Espanha continuou a luta na Catalunha até à sua morte.

4. Novembro de 1839 a Julho de 1840

Cabrera retirou-se para França, onde entrou a 5 de Julho de 1840. Noutras regiões de Espanha actuaram guerrilhas mais ou menos numerosas, em especial em Castela, onde actuou o célebre Padre Merino, que chegou a reunir 10 000 homens, Galiza, La Mancha, Extremadura e Andaluzia.

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Quanto ao enquadramento internacional, as potências do norte apoiaram D. Carlos - Rússia (a mais entusiasta), Prússia, Áustria, Holanda, Nápoles e Sardenha; mas todas demasiado longe para enviar auxílio. Em contraparti,da, a Quádrupla Aliança apoiou Maria Cristina e Isabel II - Inglaterra, França e Portugal. O blo· queio naval inglês foi 1decisivo para impedir o reabastecimento car­lista. Constituíram-se corpos de voluntários estrangeiros, apoiados explícita ou implicitamente pelos respectivos governos. Enquanto do lado carlista lutaram voluntários, na sua maior parte nobres !egitimistas europeus, do bando liberal combateram corpos bem organizados como a Legião Francesa, a Legião Britânica e a já refe­rida Divisão Auxiliar Portuguesa, forças que no seu total ascen­deram a cerca de 20 000 homens. No caso português, há ainda a registar o célebre Batalhão de Caçadores do Porto, formado por estrangeiros que lutaram no exército de D. Pedro e por alguns por­tugueses, cO!mandados por Caetano Borso di Carminati, a quem o governo espanhol conferiu o posto de brigadeiro., e que partiu de Portugal em Fevereiro de 1836.

No exército de D. Carlos combateram algumas centenas de portugueses apoiantes de D. Miguel, para os quais a sua causa e a do pretendente estavam intimamente ligadas. Uma vitória carlista em Espanha facilitaria, certamente, um levantamento miguelista em Portugal e o hipotético regresso do rei exilado. A investigação que estamos a levar a cabo ainda é preliminar, pelo que, neste momento, apenas alinhamos algumas ideias iniciais sobre este tema.

Diversos miguelistas acompanharam D. Carlos ainda em Por· tugal, e infiltraram-se no território espanhol no fim da guerra civil portuguesa, juntando-se às guerrilhas carlistas. Existiram grupos mistos, de portugueses e espanhóis, que actuaram nas fronteiras no norte e das Beiras. Na sua maior parte, os miguelistas saíram do país depois da Convenção de Évora-Monte, seguindo para diversos destinos e dali passaram a Espanha. Uns foram para Itália, para junto de D. Miguel, outros para Inglaterra, onde Ribeiro Saraiva lhe deu algum apoio, outros directamente para França. Desses países passavam à Espanha pela fronteira francesa, geralmente junto a Bayona, onde atravessavam a linha divisória clandestinamente, com a ajuda de guias ligados aos carlistas. Naquela cidade francesa existiam agentes de D. Carlos que tinham como missão fazer passar para território controlado pelos carlistas esses voluntários, de várias nacionalidades, que queriam juntar às suas fileiras. Outra fonte de recrutamento foi a própria Divisão Auxiliar enviada por D. Maria II. Dezenas de desertores provenientes daquele corpo engrossaram as fileiras carlistas e chegaram a formar uma companhia comandada

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pelo Capitão de Infantaria António Teles Jordão, familiar do gene­ral Teles Jordão morto no combate da Cova da Piedade em Julho de 1833.

A integração de miguelistas obedeceu a alguma organização. O próprio D. Miguel incentivou esse recrut31IILento impondo crité­rios de qualidade. Quatro oficiais miguelistas merecem, nesse con­texto, uma referência especial. Em primeiro lugar, o brigadeiro Luís Guilherme Coelho ( 1791-1836 ), que D. Miguel enviou expres­samente a D. Carlos, e que, após uma viagem aventurosa, com documentos falsos, conseguiu iludir a vigilância da polícia francesa a apresentar-se no quartel-general carlista em Abril de 1836. Antigo comandante de Artilharia, com uma acção destacada na guerra civil, o brigadeiro Coelho acompanhara D. Miguel na Stag, vindo a morrer em combate a 26 de Outubro de 1836 no cerco de Bilbao, depois de se ter distinguido no ataque a Larraga. Outro oficial que merece uma referência destacada foi Vitorino Dantas Pereira (1804-1867), filho de José Maria Dantas Pereira, Conselheiro do Almirantado, que morreu no exílio, em Montpellier a 23 de Outubro de 1836. Vitorino Dantas Pereira alistou-se de imediato nas fileiras carlistas, onde teve o posto de capitão de Artilharia. Comandou a artilharia de Irún, teve uma participação de relevo nos combates de 16 e 1 7 de Maio de 1837, em virtude do que foi graduado em tenente-coronel e agraciado com a Cruz de l.ª Classe da Real Ordem Militar de S. Fernando. Ferido e capturado, foi libertado depois da Convenção de Vergara. O terceiro oficial miguelista cuja acção merece ser aqui sublinhada foi o marechal de campo Raimundo José Pinheiro ( 17 7 0-• 1839). Herói da Guerra Peninsular -foi ele que iniciou a insur­reição do Porto, em 1808, contra os franceses- teve uma carreira militar longa e plena de percalços, apoiando calorosamente D. Miguel ao ponto de voltar ao serviço activo. Fez a guerra civil, foi Gover­nador Militar de Braga, de Cascais e do Forte de S. Julião da Barra, comandando ainda uma das colunas encarregadas de reprimir as guerrilhas liberais no Ribatejo e Alto Alentejo em Julho de 1833. Governador das Armas do Minho com o posto de Marechal de Campo, partiu para o exílio em Londres depois da assinatura da Convenção de Évora-Monte. Dali passou a Espanha, onde se juntou a D. Carlos, em cujo exército conservou a patente de Marechal de Campo. Morreu em Agosto de 1839 em Tolosa, País Basco. O quarto e último militar foi, sem dúvida, o mais importante de todos e o que atingiu maior notoriedade internacional - D. Álvaro da Costa de Sousa de Macedo ( 1789-1840 ), conde da Ilha da Madeira, título concedido por D. Miguel em 26 de Outubro de 1833. Irmão do conde de Mesquitela e herói da Guerra Peninsular, D. Álvaro da

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Costa possuía uma carreira militar brilhante, nomeadamente na Divisão dos Voluntários Reais de El-Rei que participou na campanha de Montevideu. Ali se manteve até 1823, conservando-se fiel a D. João VI, quando o general Lecor ·apoiou D. Pedro e a indepen­dência do Brasil. Governador 1de Setúbal e das Armas do Minho, D. Álvaro foi, desde 1830, Capitão General e Governador da Ma· deira, apoiando D. Miguel até ao fim. Depois de Évora-Monte exilou-se e passou ao serviço de D. Carlos com o posto de Tenente General, o mesmo que detinha quando a guerra civil terminara em Portugal. O seu comportamento durante a 1 Guerra Carlista foi famoso em toda a Europa, divulgado, em especial, pelo Príncipe Lichnowsky ( 8 ).

O levantamento completo de todos os portugueses que comba­teram nas fileiras carlistas não é fácil, agravado pela incorrecção dos nomes, frequentemente incompletos, trocados ou adulterados. Embora muitos deles fossem militares em Portugal, e, por esse motivo, existem elementos biográficos sobre eles, nomeadamente no Arquivo Histórico Militar, uma boa percentagem tinha aqui postos inferiores - sargentos ou soldados - ou eram mesmo civis. Alguns eram realistas assumidos desde 1822/3, participantes activos nos levantamentos chefiados pelo conde de Amarante, acompanhando depois os regimentos sublevados, comandados por Magessi e Teles Jordão, após a promulgação da Carta Constitucional em 1826. Mesmo assim, conseguimos identificar mais de meia centena de militares, embora este número esteja longe da realidade. De facto, em Abril de 1840, o cônsul português em Bayona informava o seu governo que se tinham apresentado a ele 120 oficiais portugueses de todas as graduações, e que estavam nas fileiras carlistas mais de 100 soldados desertores do Exército Português ...

Num estudo pormenorizado a publicar futuramente - que não cabe numa comunicação deste tipo - daremos conta da abundante documentação que recolhemos, dos meandros diplomáticos, das mo· tivações, das aventuras e desventuras dos voluntários que se arris­cavam a atravessar os Pirinéus e também das biografias de todos os que conseguimos identificar e sobre os quais tivemos a felicidade de obter informações, por mais reduzidas que fossem. É mais uma página da nossa História Contemporânea, quase ignorada, e que esperamos vir a iluminar parcialmente.

( 8 ) Príncipe Féliz Lichnowsky, Recuerdos dJe la Guerra Carlista (1831· -1839 }, Madrid, Espasa•Calpe, 1942.

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OS COMBATES DA INFANTARIA PORTUGUESA EM FRANÇA C)

1917. 1918

Luís M. ALVES DE FRAGA

Coronel da Força Aérea

1. INTRODUÇÃO

Quando os historiadores se referem à participação de Portugal na l.ª Guerra Mundial e, em especial, à acção bélica desenvolvida pelas tropas nacionais no teatro europeu, é vulgar limitarem as suas observações à célebre batalha do Lys, iniciada na madrugada de 9 de Abril de 1918 (2).

Esta atitude encontra justificação no facto de as operações mili­tares terrestres, durante a l.ª Guerra Mundial, na Europa, se terem caracterizado pela imobilidade das forças frente a frente e, por conseguinte, só as grandes rupturas da estabilidade constituírem facto estratégico significativo. Contudo, parece-me injusto que, ainda hoje, numa perspectiva histórica, se omitam do conhecimento público acontecimentos militares que, embora de quase nula impor· tância para a condução da guerra, têm, em si próprios, um grande valor pelo entendimento que permitem fazer do quadro social, humano e militar que definem.

Na verdade, enquanto as grandes batalhas põem em evidência massas anónimas de soldados e trazem para a ribalta da História

(1) Deve esclarecer-se, aqui e desde já, que por combate de infantaria entendo, para efeitos desta comunicação, o confronto entre uma parcela bem delimitada de tropas apeadas e portadoras de armas ligeiras sem que procurem um rompimento na estrutura defensiva da frente.

(2) Nesta mesma situação já eu próprio incorri, daí que, com este tra­balho, me procure redimir, dando agora a conhecer os mais significativos momentos de combate limitado da Infantaria portuguesa em França.

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o pensamento e a acção dos estrategistas que as delinearam, os pequenos combates, as escaramuças, entre unidades militares de reduzida dimensão, evidenciam nomes e tipos humanos que jamais figurariam nas páginas que guardam o passado. Trata-se, natural­mente, de «pequena» História, mas, ao mesmo tempo, trata-se de uma outra visão ·da História, talvez mais humana e, por isso. mais viva.

A traços bem largos, creio que dei uma ideia do ohjectivo desta comunicação o qual posso, ainda, sintetizar, dizendo que é meu desejo descrever os combates em que esteve envolvida a infan­taria portuguesa, desde Julho de 1917 até ao dia 2 de Abril de 1918, na Flandres francesa (3), procurando evidenciar as acções, tanto colectivas como individuais, que se tornaram mais notáveis.

Para conseguir alcançar a meta que me proponho, começarei por, sum·ariamente, descrever o método que, de parte a parte, se utilizava para preparar e desenvolver o combate entre tropas de infantaria ; depois, farei uma caracterização geral dos combates ocorridos na frente portuguesa nos anos de 191 7 e 1918 ; em seguida, procederei ao estudo de alguns particularismos desses mesmos com­bates; depois, farei uma breve referência às escaramuças mais signi­ficativas que não chegaram a merecer a designação de combates ; por fim, concluirei, procurando pôr em evidência alguns aspectos que se tenham mostrado mais importantes e significativos.

2. O MÉTODO DE PREPARAÇÃO E DESENVOLVIMENTO DOS COMBATES

Antes de descrever o método de preparação e desenvolvimento dos combates de infantaria, convirá recordar as condições em que se encontravam os exércitos beligerantes, na frente ocidental, logo desde o começo do ano de 1915.

A fixação das tropas ao terreno levou a que, de parte a parte, fossem escavando trincheiras, cada vez mais perfeitas e, se é possível clizê-lo, cada vez mais cómodas. Uma grande parte dos efectivos da tropa de infantaria passou a viver em abrigos enterrados donde saía somente para guarnecer as trincheiras, procurando detectar o menor movimento nas linhas do adversário.

( 8 ) As primeiras tropas portuguesas de infantaria a «enrtrarem» nas linhais, isto é, a ficarem sujeitas à usura do combate, fizeram-no a 2 de Abril de 1917 (Vasco de Carvalho, A 2.• Divisão Portuguesa na Batalha do Lys (9 de Abril de 1918), Lisboa, Lusitânia Editora Lt:, 1924, p. 14).

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A distância entre as linhas defensivas de ambos os lados va­riava, podendo dizer-se que as mais afastadas não excediam um quilómetro e as mais próximas chegavam a estar a cem metros. Mais distantes das primeiras linhas situavam-se os abrigos das me­tralhadoras pesadas e, mais longe ainda, ficavam as baterias de morteiros pesados e as das peças e dos obuses de artilharia.

Descrito, em síntese, o dispositivo das tropas na frente ("), é fácil, agora, compreender-se que os grandes confrontos podiam ser de três tipos (5) : a) simples combates de artilharia, durante os quais se procurava atingir, em especial, as baterias adversárias; b) combates mistos que, embora começando por duelos de artilharia, davam lugar a combates de infantaria, os quais visavam um rompi­mento da frente adversária ; e) e, por fim, combates de infantaria, que, não tendo como finalidade provocar alterações duradouras na frente, envolviam a artilharia para gerar a inibição no adversário. Destes três tipos diferentes de operações ( ª) só o segundo estava na origem das grandes batalhas ( 1 ) ; o primeiro e o terceiro esgota­vam-se em pouco tempo e tinham finalidades bem delineadas.

Na verdade, os combates de artilharia visavam a destruição de material e a quebra do moral de todos os combatentes, porque obri­gavam a um permanente alerta e ao reforço do dispositivo de defesa da infantaria - um bombardeamento em larga escala feito pelo adversário ·podia ser o prenúncio do começo de uma batalha. Quanto aos simples combates de infantaria tinham como finalidade fazer 11risioneiros, testar a capacidade de resistência do adversário ou desgastar o moral das tropas atacadas enquanto contribuíam para elevar o das tropas atacantes. Estes combates de infantaria foram, também, entre os Aliados, designados por raids. É desta modalidade de operação militar que, em exclusivo, me vou ocupar de seguida.

(') Para mais pormenores, em especial relativos ao sector português na frente da Flandres francesa, pode consultar-se o meu trabalho «A Participação de Portugal na Grande Guerra» in História Contemporânea de Portugal (dir. João Medina), tomo II, Lisboa, Amigos do Livro, Editores, 1985, P'?· 34-53.

( 3 ) Claro que, como é evidente, estou a excluir desta análise a simples troca de tiros de armas ligeirais -espingardas, metralhadoras e, por vezes, morteiros ligeiros - e, em .casos raros, alguns disparos de peças de artilharia. No caso vertente, descrevo os combates dos quais me foi possível encontrar os relatórios dos Comandantes de Divisão. Devo, 1também. esclarecer que, por norma, qualquer dos três tipos de operações a que me refiro, era desencadeado à noite, ou ao escurecer, de forma a associar ao efeito do fogo a desorientação que a escuridão provoca.

(~) Deve dizer-se que estas operações eram sempre bem planeadas e não aconteciam por mero acaso.

(') Por batalha entendo o combate entre exércirtos no qual os adversários usam todos os meios materiais e humanos possíveis com vista a conseguir a decisão final da guerra ou a tentá-la.

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O raid, ou combate de infantaria, não acontecia por mero acaso ou pela simples vontade do comando dos mais baixos escalões das unidades empenhadas na frente ; estes combates eram planeados e preparados, no maior segredo, por regra, com alguma antecedência, pelos estados-maiores e comandos intermédios - Brigada e, até, Divisão - das unidades atacantes ( 8 ). Marcava-se o objectivo ou intenção, o dia e a hora - normalmente, de noite- a zona da frente onde devia ocorrer o combate e as tropas que iam ficar envolvidas na acção, as quais constituíam, no mínimo, o efectivo de uma Companhia e, no máximo, o efectivo de um Batalhão ( 0 ).

No momento previamente estabelecido a artilharia começava a bombardear a frente adversária, fazendo incidir o fogo tanto sobre as primeiras linhas de trincheiras como sobre as tropas mais re­cuadas. Nesta fase procurava-se criar a ilusão, no inimigo, de que se tratava de um mero combate de artilharia, por isso a zona bom­bardeada era ampla, tanto em profundidade, como em comprimento. O bombardeamento com estas características tinha uma duração variável, nunca ultrapassando os sessenta minutos, ficando-se, quase sempre, pelos quinze a trinta minutos. Na altura combinada, o fogo da artilharia concentrava-se todo sobre as primeiras linhas, ainda numa larga extensão da frente; nesse momento, as tropas de infan­taria que iam proceder ao ataque saltavam das trincheiras e colo­cavam-se, ordenadamente, na chamada terra de ninguém; nesta operação gastavam-se poucos minutos, findos os quais a artilharia concentrava todo o seu potencial de fogo, passando a bater um qua· clrilátero que começava uma ou duas centenas de metros à frente das tropas atacantes e delimitava os contornos da zona a atacar; forma­va-se o que, então, se designava por caixa. Quando o tiro da arti­lharia estava perfeitamente correcto e os lados do quadrilátero estavam bem delineados, a barreira de fogo que estava à frente da infantaria atacante, começava a deslocar-se em direcção às trinchei­ras adversárias, permitindo, assim, que as tropas se fossem aproxi­mando delas ao abrigo dos impactos das granadas; à hora determi­nada cessava o fogo da artilharia sobre as primeiras linhas, manten­do-se, contudo, sobre os lados da caixa de forma a impedir que para

(ª) Claro que este tipo de organização refere-se à que era seguida pelo Exército Inglês, que foi aquela que o Exército Português adoptou, já que o Corpo Expedicionário Português (CEP) passou a estar integrado no vasto sector que a Grã-Bretanha ocupava na frente ocidental. Convirá esclarecer que a orga­nização utilizada começava, ao mais alto escalão, no Exército, que era composto por três Corpos de Exército, integrando cada um deles três Divisões e , cada uma destas, comportando três Brigadas as quais, por seu turno, agrupavam quatro Batalhões, tendo estes quatro Companhias.

( 9 ) Estes efectivos rondavam os 120 e 480 homens, respectivamente.

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o seu interior entrassem reforços ou que dele fosse po!SÍvel a fuga, quer dizer, as tropas da infantaria adversária tinham de se defrontar em combate directo.

Logo que a artilharia preparava as condições para a infantaria poder chegar ao contacto com o inimigo, iniciava-se, rapidamente, o 'assalto; contudo, por vezes, o bombardeamento das trincheiras inimigas não era suficiente para destruir o arame farpado que estava colocado, em grandes rolos, na frente destas e, por isso, tornava-se necessário que grupos de militares especializados procedessem ao corte desse arame, de modo a possibilitar a passagem das tropas. Logo que estava desobstruído o caminho começava o assalto propria­mente dito. Este consistia na entrada nas trincheiras adversárias, no uso do armamento ligeiro e individual para anular toda a resis­tência, chegando-se, até, ao combate corpo a corpo. Em princípio, procurava-se fazer o maior número possível de prisioneiros, tendo o cuidado de procurar militares graduados, e, ao mesmo tempo, passava-se uma rápida revista aos abrigos com a intenção de apreen­der quaisquer documentos que fossem úteis à obtenção de inf or­mações sobre o inimigo. Todas estas acções estavam previamente destinadas, evitando-se a confusão entre os assaltantes. O tempo de permanência das tropas nas trincheiras do adversário variava con­soante o tipo de objectivo que estava adjacente à acção, todavia, era @empre reduzido, não passando de alguns minutos, porque à hora prevista a artilharia passava a bombardear, de novo, as primeiras linhas. Assim, logo que chegava o momento para a retirada, as tropas assaltantes reuniam os prisioneiros, os feridos e, até, os mortos e regressavam às suas linhas sob a protecção do fogo da artilharia que, entretanto, desfazia a caixa e passava a bombardear toda a frente do adversário para evitar a possibilidade de perseguições ( 10

).

Como se vê, um combate de infantaria era uma operação com­plexa que envolvia muitos meios e muita preparação prévia, emhora, quase sempre, se tornasse numa acção viantajosa, que mais não fosse, pelo efeito que tinha sobre o moral das tropas atacantes.

Uma vez que descrevi, em síntese, o método que era utilizado para preparar e desenvolver o combate entre tropas de infantaria, passarei, em seguida, a caracterizar, ainda que na g·eneralidade, os raúls ocorridos na frente portuguesa nos anos de 191 7 e 1918.

( 1º) Sobre o que acabamos de descrever pode consultar•se o relato feito por Jaime Cortesão na obra Memórias da Grande Guerra, Lisboa, Portugália Editora, 1969, ipp. 171-177.

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3. OS COMBATES DE INFANTARIA LUSO-GERMÂNICOS

Os combates de infantaria havidos entre portugueses e alemães foram onze, em cerca de um ano de permanência das tropas lusas nas trincheiras - cinco em 191 7 e seis em 1918 -, deste total somente três foram da iniciativa nacional ( 11 1

).

No ano de 1917 o primeiro combate de infantaria entre ale­mães e portugueses deu-se por iniciativa lusa e ocorreu na noite de 26 para 27 de Julho com um efectivo de um Pelotão, ou seja, com pouco mais de trinta homens do ·Batalhão de Infantaria n.º 24, t•omandados pelo Alferes miliciano Manuel Caseiro Alves Marques. Houve, entre a infantaria portuguesa, pelo menos, três feridos e um morto, quer em resultado de estilhaços de granada, quer como con­sequência da acção dos gases tóxicos. Da leitura do relatório do General Gomes da Costa parece poder concluir-se que o falhanço da operação resultou da inexperiência dos nossos soldados, embora, pessoalmente, julgue que a preparação da artilharia não foi sufi­ciente para garantir alguma liberdade de movimentos aos ·assal­tantes ( 12

).

O segundo roid foi da iniciativa alemã e ocorreu na noite de J 4 de Agosto com um efectivo de cerca de quatrocentos homens. Como resultado final do combate ficaram mortos dezassete portu­gueses e um número indeterminado de alemães, embora se saiba que dois eram oficiais; entre as tropas nacionais houve 162 feridos, sendo 109 com gases tóxicos, e foram feitos prisioneiros 51 militares. Aos alemães conseguiram os portugueses prender cinco homens. Como consequência do seu comportamento em combate foram lou-

( 11 ) Em abono da veroade, devo dizer que tenho conhecimento da exis­tência de mais um raid levado a efeito por uma Companhia do Batalhão de Infantaria n.º 14, comandada pelo Capitão Vale de Andrade, e apoiada por um grupo de engenharia, no ano de 1918, mais precisamente na noite de 18 para 19 de Março. Não encontrei relatório desta acção da infantaria; os únicos elementos de que tenho conhecimento são: um relatório do oficial de engenharia que comandou a equipa de sapadores encarregada da destruição de dois abrigos nas linhas alemãs (Arquivo Histórico Militar - AHM -, t.• Div., 35.• Sec., Cx. 144, N.º 170). Alferes miliciano de sapadores mineiros, Jaime Faria de Ataíde e Melo, e o texto de um telegrama enviado para o Ministério da Guerra, no próprio dia, que é do seguinte teor: «ÀS 5 horas hoje 19, após bombardea­mento artilharia pesada e campanha iniciado este Corpo 5 horas, urna Com­panhia infantaria 14 e destacamento sapadores mineiros, aitingiu linhas de apoio inimigo. fez três prisioneiros, causou baixas importantes, destruiu dois abrigos, sendo um de cimento, apreendeu duas metralhadoras e mais material de guerra. Perdas nossas : seis praças feridas e um morto. Nenhum desaparecido» (AHM, t.• Div., 35.• Sec., Cx. 74). Sobre este assunto pode consultar-se Jaime Cortesão, op. cit., pp. 217-218 e, também, Capitão David Magno, Livro da Guerra, Porto, Companhia Portuguesa Editora, 1920, pp. 85-107.

(12) AHM, l.ª Div., 35.ª Sec., Cx. 144, N.º 160.

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vados 18 militares portugueses, estando entre eles o Alferes mili­ciano Hernâni António Cidade, que, mais tarde, tão brilhantes provas l'eio a dar como professor e investigador da cultura portuguesa ('13

).

O terceiro combate de infantaria deu-se na noite de 2 3 de Agosto, uma vez mais, por iniciativa alemã, o qual fracassou, quanto ao seu objectivo, porque a artilharia portuguesa conseguiu criar uma barreira de fogo sobre a t:erra de ninguém, ao mesmo tempo que a infantaria, com o fogo das armas ligeiras, obrigava o inimigo a ficar agarrado ao terreno. Na prática nunca chegou a haver luta corpo a corpo. Como resultado do intenso bombardeamento alemão morreram sete militares portugueses e ficaram feridos 75, sendo 48 por acção dos gases tóxicos. As tropas defensoras conseguiram fazer três prisioneiros ( 14

). Ao que parece nenhum militar foi lou­vado ou punido nia sequência do combate (1 5

).

o quarto raid deu-se ao fim da tarde ( 18 horas) {'16) de 1 o

de Novembro, por iniciativa do Comando alemão. A força atacante não era superior ia cem homens e actuou de forma tacticamente correcta, de tal modo que conseguiu surpreender alguns sectores da defesa nacional. Foi morto um só militar português, no entanto, foram feitos onze prisioneiros e dez feridos. Como resultado do êxito germânico foram punidos cinco militares, contudo, pela forma <'omo se bateram, foram louvados sete homens e promovidos por distinção dois outros C1 7

).

O quinto e último combate do ano de 191 7 deu-se pelas l 7h30 de 22 de Novembro, uma vez mais, por iniciativa alemã. Não foi possível calcular o número de assaltantes, contudo, estes foram repe­lidos pela infantaria portuguesa, tendo, até, sido feitos dois prisio­neiros. Entre a nossa tropa não houve mortos, ·mas ficaram feridos oito militares. Em resultado da forma galharda como se bateram os soldados nacionais, nove foram louvados, seis foram promovidos por distinção e sete foram condecorados com 'ª medalha da Cruz de Guerra (18

).

( 13) AHM, 1.ª Div., 35.ª Sec., Cx. 144, N.º 162. ( 14 ) Esta última informação colhe-se do texto do telegrama para o Mi­

nistro da Guerra enviado pelo General Tamagnini de Abreu e Silva, no dia 25 de Agosto de 1918 (AHM, 1." Div., 35.• Div., Cx. 74).

{U) AHM, 1.ª Div., 35." Sec., Cx. 144, N.º 161. ( 16 ) Deve ter-se em conta que na Flandres francesa, em Novembro,

àquela hora, já é suficientemente escuro. (H) AHM, 1.ª Div., 35." Sec., Cx. 144, N.º 163. (is) AHM, 1.ª Div., 35.ª Sec., Cx. 144, N.º 164.

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Como síntese do que relatei relativamente ao ano de 1917, pode dizer-se que entre os portugueses houve: 25 militares mortos, 258 feridos e 62 prisioneiros; do lado alemão, e segundo os elemen­tos de que disponho, houve, confirmados, 2 mortos e 10 prisioneiros . . Ainda como consequência dos combates, foram punidos 5 militares, 34 foram louvados, 8 foram promovidos por distinção e 7 foram condecorados com a medalha da Cruz de Guerra.

No ano de 1918, até 8 de Abril, deram-se seis combates de infantaria, tendo ocorrido o primeiro no dia 2 de Março (iJ.ª), por iniciativa germânica. Não há certezas quanto aos efectivos utilizados contra as trincheiras portuguesas (2°), contudo, supõe-se que devem ter sido superiores a quatrocentos homens. No combate perderam a vida somente seis militares portugueses, enquanto que se admite que entre os alemães as baixas tenham sido muito próximas das duas centenas de homens, estando nelas incluídas, pelo menos, dois oficiais (2'1.). Os feridos portugueses subiram a 7 2, sendo 4 5 ga­seados; os ·alemães fizeram 69 prisioneiros. Na sequência deste raid, foram louvados seis militares portugueses ( n).

O segundo combate de infantaria aconteoeu cinco dias depois daquele que, sumariamente, acabei de descrever, ou seja a 7 de Março, pelas cinco horas. A iniciativa foi, também, alemã e envol­veu cerca de 200 a 250 homens. Dada a rápida reacção, tanto da artilharia como da infantaria nacionais, os alemães não conseguiram chegar ao corpo a corpo, no entanto, mesmo assim, houve dois mortos e 15 feridos entre a tropa portuguesa (23

).

O terceiro confronto entre a infantaria portuguesa e alemã deu-se a 9 de Março e resultou da iniciativa nacional. Nele tomaram parte os efectivos de uma Companhia de infantaria reforçados por

(19) Recorde-se que toda a acção ofensiva alemã, durante o mês de Março, já estava articulada com o planeado ataque que o alto comando germânico previa para o começo de Abril. Tratou-se, por conseguinte, de uma forma de desgaste da frente portuguesa, quer quanto aos meios de defesa, quer quanto ao moral.

( 2º) Na verdade, o relatório do Comandante da l.ª Divisão aponta para efectivos semelhantes aos de um Batalhão - cerca de 400 homens - e o relatório do Comandante da 5.• Brigada a.ponta para efectivos da ordem de uma Com­panhia - 200 militares. Este último número parece-me excessivamente reduzido, se atendermos ao número presumível de mortos e feridos feitos pelos Ç>Or­tugueses.

( 21 ) Veja-se telegrama, datado de 6 de Março de 1918, .para o Ministro da Guerra. (AHM, l.ª Div., 35.• Sec., Cx. 74.

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( 22 ) AHM, t.• Div., 35.• Sec., Cx. 144, N•. 183. (") AHM, 1.• Div., 35.• Sec., Cx. 144, Nº. 165.

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elementos de tropas de engenharia, num total de cerca de 120 homens. O assalto iniciou-se às 5 horas e foi bem sucedido, tendo as forças atacantes feito cinco prisioneiros e morto cerca de 40 mili­tares alemães (24

). Entre os portugueses houve 20 feridos. Como consequência do êxito da acção empreendida, foram dados 12 lou­vores, igual número de Cruzes de Guerra e foram promovidos por distinção, ao posto imediato, 1 O militares (2~').

O combate seguinte deu-se a 12 de Março, por iniciativa alemã, tendo começado às 5 horas e 45 minutos. Os efectivos atacantes rlevem ter sido à volta de 400 homens que provocaram alguns danos nas forças portuguesas. Assim, foram mortos 13 militares nacionais e feridos 59, dos quais três com gases tóxicos. Os alemães deixaram dois mortos no terreno (embora, segundo se presume, tivessem morrido muitos mais) e foram feitos sete prisioneiros (2º).

O ·quinto raid aconteceu dois dias depojs do anterior, isto é, a 14 de Março, também, por iniciativa ·alemã. O assalto foi feito por duas colunas distintas- uma, com 160 homens e, outra, com cerca de 240. A reacção, por parte dos portugueses, foi muito boa, de tal modo que a iniciativa germânica se mostrou pouco compen­~atória. Na verdade, somente 14 militares morreram, tendo ficado feridos 55. Um comportamento tão galhardo levou a que o General Gomes da Costa, Comandante da 1.ª Divisão do CEP, tivesse louvado seis militares, propondo-os para promoção por distinção aos postos imediatos e para serem agraciados com a medalha da Cruz de Guena ; pela primeira vez, em França, por comportamento exemplar em <·omhate, foram louvados colectivamente dois Batalhões de Infan­taria - o 9 e o 34 (21

).

O sexto e último ( 28) combate de infantaria, na Flandres, antes

da batalha do Lys, foi da iniciativa portuguesa e deu-se na noite de 2 para 3 de Abril, quer dizer, uma semana antes da fatídica data que arredou, para sempre, as tropas portuguesas da frente. Foi um raid que à partida ficou condenado, porque as ordens foram sendo divergentes quanto ao dia da sua execução ; facto é que as forças portuguesas que atacaram as trincheiras alemãs, cerca de 120 homens, as encontraram completamente desguarnecidas, indício

C") Este número não foi possível confirmar. (U) AHM, 1.ª Div., 35.a Sec., Cx. 144, Nº. 166. (2º) AHM, 1.ª Div., 35.ª Sec., Cx. 144, Nº. 179. (2T) AHM, 1.ª Div., 35.ª Sec., Cx. 144, Nº. 167. (ZS) Veja.se a nota n.° 10.

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de que estes haviam desconfiado da operação que se preparava ('29).

Ao retirarem, as tropas portuguesas foram bombardeadas pela arti­lharia adversária, causando 12 feridos e levando ao desaparecimento de 11 soldados que se perderam, na confusão que se gerou ("1º).

Em síntese, pode dizer-se que, em cerca de um mês - o de Março - se levaram a efeito mais confrontos entre a infantaria alemã e portuguesa, no ano de 1918, do que durante quatro meses, no ano de 1917. Comparando os resultados numéricos, verificamos que em 1918 os alemães terão empenhado 1450 homens em combates de infantaria, enquanto que no ano transacto só haviam envolvido 500; por seu turno, os portugueses terão empenhado, respectiva­mente, 240 e 30 militares. O número de mortos nacionais também Eubiu de 2 5 para 3 5 ; o mesmo aconteceu aos alemães que passaram de 2 para 242; em contrapartida, os portugueses feridos foram em número mais reduzido - 233 para 258; todavia, foi maior o nú­mero de feridos alemães, já que se admite que tenham sido da ordem dos 42 contra nenhum no ,ano de 191 7 ; em 1918 o número de desaparecidos portugueses subiu a 80 e o de prisioneiros a 69; as tropas nacionais conseguiram aprisionar mais alemães, já que passaram de 7 para 12. No ano de 1918 houve menos louvores jndividuais, mas houve duas unidades de infantaria louvadas colecti­v a mente ; houve o dobro das promoções por distinção ( 16 contra 8), e mais condecorações com a Cruz de Guerra ( 18 contra 7 ) .

Depois desta análise sumária, e quase meramente quantitativa dos combates da infantaria portuguesa, nos anos de 1917 e 1918~ em França, resta-me passar ao estudo de alguns particularismos desses acontecimentos bélicos de forma a pessoalizá-los.

4. PARTICULARISMOS DOS COMBATES E COMPORTAMENTOS INDIVIDUAIS

O primeiro combate de infantaria, levado a efeito pelos por­tugueses, em França, ocorrido na noite de 26 para 27 de Julho

( 29 ) Não possuindo mais nenhuma informação sobre esta operação portu­guesa, socorro-me das palavras de Jaime Cortesão, que transcrevo: «Das nossas tropas vem a notícia de mais um raid, realizado com grande valentia. O Américo Olavo consegue levar a sua gente até à segunda linha boche, mas a noite chuvosa, a terra encharcada, e mais do que isso a rápida retirada dos alemães, não lhe dão os felizes resultados que o seu valor merecia. Com este é o terceiro grande raid das nossas .tropas, pois já antes do Olavo, o Capitão Vale de Andrade realizara uma incursão às linhas inimigas com muito e feliz arrojo» (Op. cit., pp. 217-218).

( 80 ) AHM, l.ª Div., 35.ª Sec., Cx. 144, N.º 177.

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de 1917, foi, ao que parece, bem preparado, tendo-se, até, treinado os militares na escola de Le Drumez. O oficial que comandava a força de 30 homens, do Batalhão de Infantaria 24, era o Alferes miliciano de infantaria Manuel Caseiro Alves Marques e a operação de assalto estava organizada da seguinte forma : oito soldados, armados de espingarda com baioneta, tinham como objectivo atacar e limpar a trincheira adversária ; oito soldados, armados de granadas de mão, cobriam o flanco esquerdo do avanço, enquanto outros quatro cobriam o flanco direito ; seis soldados, armados de espin­gardas, ficavam de guarda à entrada da trincheira para evitarem a chegada de reforços alemães; quatro soldados sapadores mineiros procediam à destruição dos rolos de arame farpado que se situavam na frente da trincheira inimiga (31

). Segundo a opinião do Capitão Albuquerque, o insucesso deste raid resultou do facto de julgar que « ( ... ) os alemães teriam dele conhecimento ou por meio de espio­nagem ou por um nosso suposto desertor do sector de Neuve Cha­pelle » (32

) •

O combate que se deu no começo do dia 14 de Agosto de 1917 (88

), levado a efeito sobre o sector de Fauquissart, foi descrito, nessa mesma data, da seguinte forma, em telegrama cifrado, para o Ministro da Guerra, em Lisboa: «Ü inimigo fez esta madrugada i1taque ao centro do nosso sector com forte coluna composta de bávaros e saxões com tropas especiais de assalto. O ataque foi pre­cedido e acompanhado por grande bombardeamento com granadas de diversos calibres e gases. Inimigo, que chegou a pôr pé nas nossas trincheiras, foi repelido, tendo deixado bastantes mortos, entre os quais um oficial e cinco prisioneiros. Choque principal foi rece­bido Infantaria 35. Tanto infantaria como artilharia, que foram fortemente bombardeadas, se portaram valentemente. ( ... ))) e .. ). Ainda sobre este combate, respigo do relatório do General Gomes da Costa a seguinte passagem: « ( ... ) tornaram-se notáveis pelo seu valor o Alferes Hernâni António Cidade (8~) e o l.º Cabo n.º 469,

( 3") Veja-se AHM, l." Div., 35." Sec., Cx. 144, N.º 160. ( 82 ) Idem, relatório anexo ao do General Gomes da Costa. ( 88 ) Muito embora a comunicação oficial para Lisboa, como se verá mais

à frente, não dê grande ênfase ao facto, deve dizer-se que este foi o raid que, durante um ano, maior número de baixas provocou às forças .nacionais. Com efeito, como já vimos anteriormente, entre mor.tos, feridos e prisioneiros con­tam-se 230 homens.

( 84 ) AHM, l." Div., 35.• Sec., Cx. 74. {M) O texto completo dos louvores publicados na Ordem de Serviço da

t.• Divisão do CEP, do dia 20 de Agosto de 1918, é o seguinte: «O Capitão, Comandante interino do B. I. 15, João Maria Ferreira do Amaral, pelo sangue frio e valores demons.trados durante a acção [de 14 do corrente] percorrendo

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da 3.ª Companhia de Infantaria 35, António Dias Beja: o primeiro, quando os alemães l"etiravam com prisioneiros, caiu sobre eles com um grupo de homens do seu Pelotão e libertou-os, bem como a uma metralhadora ; o Cabo estava com uma metralhadora em Ducks Bill (8ª) e com ela conteve o inimigo» ( 11 1

).

Acel"ca do combate ocorrido na noite de 23 para 24 de Agosto de 1917, sobre o sector de 1Ferme du Bois, pouco se sabe, para além da seguinte afirmação do General Gomes da Costa, feita no seu relatório : « ( ... ) a infantaria inimiga tentou atacar em diversos pontos, mas não chegou ao contacto» ( 3 8

).

O combate ocorrido no começo da noite de 10 .de Nov·embro de 1917, sobre o sector de Ferme du Bois, foi descrito para o Mi­nistro da Guerra, no habitual telegrama, da forma mais simples que é possível imaginar: cc ( ... ) No dia 10 repelimos um raid mimigo que, contudo, conseguiu entrar na nossa primeira linha, áprisionando Alferes Infantaria 29, Joaquim Tristão Pel"eira Pi­menta, e 1 O praças. ( ... ) » ( 39

). O texto desta notícia esconde muito bem o sentir do General Gomes da Costa quanto ao comportamento das tropas portuguesas. Na verdade, no relatório, datado de 12 de Novembro·, aquele oficial general é inexorável no julgamento, porque, a dado passo, ·diz: ccA Companhia da esquerda - 2.ª Com­panhia de Infantaria 29 - portou-se bem, cumprindo oficiais e

o seu Batalhão apesar do bombardeamento e adoptando as mais acerta.dais. dis· posições para proteger os seus homens do fogo inimigo e repelir este com energia». «Ü Alferes do B. I. 23, Mário Saraiva da Mouta Dias, porque tendo recebido cinco ferimentos de bala de espingarda e estilhaços de morteiro, se manteve no seu posto até cair, fortalecendo os subordinados com o seu belo exemplo». «Ü Alferes do B. I. 15, Raúl Satiro da Cunha Fajardo, porque se manteve no seu posto apesar de ferido, recusando retiiar-se para ser tracado, antes do fim da acção». «O Alferes do B. I. 35, Hernâni António Cidade, porque ao ver retirar uma fracção inimiga, levando prisioneiros soldados portugueses, reuniu um grupo de homens do seu Pelotão, carregou o inimigo e libel:'tou os prisioneiros». «O 1.° Cabo, da 4.ª Companhia do B. 1. 35, António Rebêlo de Almeida. o 2.º Cabo, ( .. . ),Manuel Marques, o soldado, ( ... ), Francisco dos Santos Marquinho, o soldado, ( ... ), António Lopes Maço, o soldado, ( ... ), Armando Figueiredo, o soldado, ( ... ), José Maria Pereira. o soldado, ( ... ), João Coelho, e soldado, ( ... ), César de Almeida, o soldado, ( ... ),Albertino Antunes, o soldado, ( ... ), António Maria de Almeida e Silva, o .soldado,{ .. . ), Guilherme Ferreira da Silva, por terem acudido prontamente à chamada do seu comandante de Pelotão,. carregando o inimigo com bravura e libertando prisioneiros». «O l.º Cabo, da 3.ª Companhia do B. I. 35, António Dias de Beja, porque, sendo chefe de uma metralhadora. defendeu com muito valor a entrada de forças de assalto pelo .ponto que guarnecia» (AHM, 1.ª Div., 35.ª Sec., Cx. 144, N.º 162).

( 36 ) Dado que o sector de trincheiras ocupado pelos portugueses havia sido antes guarnecido por tropas inglesas, mantiveram-se as designações que já se haviam tornado tradicionais.

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(ª7 ) AHM, 1." Div., 35." Sec., Cx. 144, N.º 162. ( 88 ) AHM, 1.ª Div., 35." Sec., Cx. 144, N.º 161. (u) AHM, l ." Div., 35." Sec., Cx. 74.

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praças o seu dever : salientou-se o Alferes José Neves Eugénio pela forma como manteve os seus homens, procedendo com energia e decisão. Não tinha, porém, àquela hora, estabelecido ainda as pa­trulhas de escuta na sua frente, motivo por que deve ser punido com a pena de repreensão na Ordem da Brigada. Na mesma Ordem será louvado pelo restante procedimento». Mais à frente, pune, com vinte dias de prisão correccional, o Comandante da 3.ª Companhia do Batalhão de Infantaria n. º 2 9 ('40

), « ( ... ) , porque à hora •a que se deu o ataque ainda não verificara se o serviço de segurança na sua frente estava bem estabelecido, resultando dessa falta de <'llidado o penetrar o inimigo nas trincheiras e ainda, porque, tendo o combate terminado às 19 horas de 10, ainda às 10 horas do dia 11 não tinha ido à frente inquirir o que se passava, ver os seus homens e ordenar as reparações necessárias, pretextando doença, o que é inadmissível em casos desta importância» (41

). A acção punitiva do Comandante da l .ª Divisão não ficou por estes dois graduados, já que três soldados, também da 3.ª Companhia de Infantaria 29 « ( ... ) são punidos com 60 dias de prisão correccional, porque, fazendo parte da guarnição do posto de granadeiros, não atacaram o inimigo à granada como deviam, abandonando o posto, do que resultou o inimigo apoderar-se de uma metralhadora e ser aprisio­nado o chefe desta, o l.º Cabo 486, da 3.ª Companhia de Infan­taria 29, Joaquim da Costa». Mas a maior culpa do sucesso dos alemães atribuiu-a o General Gomes da Costa ao Alferes Joaquim Tristão Pereira Pimenta « ( ... ) por não ter estabelecido as escutas, ignorar o sinal de S. O. S. ('42

) e não consentir no lançamento de very lights (4ª). Foi feito prisioneiro pelos alemães sem lutar, devendo tomar-se-lhe contas do seu procedimento quando regresse a Portugal» ('" ) .

( 4º) Trata-se do Capitão João Baptista Gomes. (41) Julgo que posso considerar esta punição como o verdadeiro para­

digma da falta de cumprimento dos deveres de um oficial, porque evidencia aquilo que se espera de um chefe militar, de um condutor de homens: ordenar o que deve ser feito; verificar se o que deve ser feito, foi feito; averiguar o que ainda deve ser feito; orientar o modo de fazer; acompanhar e conduzir os subordinados. Tudo isto, sacrificando a sua saúde e, até se necessário, a vida.

(•2) Esta sinalização luminosa era utilizada quando as comunicações telefónicas estavam avariadas, pedindo o apoio da artilharia, que deveria come­çar, de imediato, a bombardear a terra de ninguém de modo a impedir qualquer progressão adversária.

( 4ª) Trata-se de projécteis iluminantes, disparados por uma pistola espe­cial, os quais ao cair muito lentamente, permitem observar, na escuridão, quais.. quer movimentos suspeitos.

(••) AHM, l.ª Div., 35." Sec., Cx. 144, N: 163.

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Se o combate anterior foi exemplar pelo número de pumçoes o de 22 de Novembro' de 1917, mais uma vez sobre Ferme du Bois, pode dizer-se que se notabilizou pelo elevado número de louvores, promoções por distinção e condecorações ( 4~). Curiosamente, tam­bém o texto ·do telegrama para o Ministro da Guerra esconde este facto; repare-se: «Üntem. à noite repelimos uma tentativa inimiga nosso flanco direito, fazendo dois prisioneiros. Tivemos 1 oficial e 5 praças feridas» ('4<i). Uma vez mais foi o Batalhão de Infan­taria n.º 29 que suportou o ataque alemão, embora, também, o Batalhão de Infantaria n.º 3 tenha sid() atacado. Foram 1quatro os oficiais louvados, todos do Batalhão de Infantaria n.º 29: Alferes Eduardo da Fonseca Guerreiro (porque, «comandante de Pelotão, manteve os homens nos seus postos de combate, animando-os com entusiasmo, demonstrando- desprezo pelo perigo, coragem e exce­fontes qualidades de comando, sendo com o seu exemplo qwe todos se mantiveram nos seus postos e repeliram 'º \inimigo. Este ofal. [ sic] já em casos anterio,ies de---tou [não legível] o seu realce» [o texto em itálico foi escrito pelo punho do General Gomes da Costa]), Alferes Artur Marques Salgado, Alferes José Gonçalves Coruche (porque «demonstraram serenidade e sangue frio, contri­buindo eficazmente para a defesa») e Alferes José das Neves Eu­génio ('41

) (porque, apesar de ferido numa perna, se manteve no seu posto, comandando o seu Pelotão, demonstrando coragem e consciência ·dos deveres da sua graduação») ('4ª). Foram louvados três sargentos: o 2.º Sargento, da l.ª Companhia do Batalhão de Infantaria n.º 29, Manuel Correia Folhadela Guimarães (porque, sendo responsável pelo comando de um posto de combate «dirigiu a defesa do posto com muita bravura, dando aos seus homens exem­plos de coragem e sangue frio, sendo devi.do ao seu procedimento que o seu posto niio f ot forçado [o texto em itálico foi escrito pelo punho do General Gomes da Costa]), o 2.º Sargento, da 2.6 Com­panhia do Batalhão de Infantaria n.º 3, Aheillard Rodrigues de Morais (porque «demonstrou coragem e decisão na captura de 2 sol-

(4 ~) Em maior número conjunto de públicos reconhecimentos de acções individuais só foi ultrapassado pelo raid da iniciativa portuguesa realizado a 9 de Março de 1918.

(48) O número de praças feridas é diferente daquele que é indicado no relatório do Comandante da Divisão. AHM, l.ª Div., 35." Sec., Cx. 74.

( 47 ) O mesmo que, anteriormente, havia sido punido e louvado. ( 48 ) Dos Alferes não foram propostos para serem galardoados com a

medalha da Cruz de Guerra o Artur Marques Salgado e o José Gonçalves Coruche e só foi proposto rpara a promoção por distinção a Tenente o Alferes Eduardo da Fonseca Guerreiro.

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dados alemães») e o 2.º Sargento, da I.ª Companhia do Batalhão de Infantaria n.º 29, José Zamith Gonçalves Viana (porque «revelou serenidade e sangue frio, dirigindo o fogo de uma metralhadora com grande eficácia, apesar do ataque emergir de início sobre o seu posto e da [ sic] pequena guarnü;ão deste [o texto em itálico foi escrito pelo punho do General Gomes da Costa] ) ('49

). Se os louvores dos oficiais e sargentos são significativos do apreço pelos actos de cora­gem levados a efeito, os que são dados a dois cabos e a um soldado demonstram o que é o sentido do dever e o desprezo pela vida ( so). Do l.º Cabo Manuel do Nascimento Dias Costa, do Batalhão de Infantaria n.º 29, diz o Comandante da l.ª Divisão do CEP o St~guinte: «pela sua vigilância pressentiu e denunciou a tempo o desenvolvimento do ataque inimigo, comandou acertadamente os seus homens, expôs-se com grande coragem para repelir o inimigo, tendo-se já notabilizado no Batalhão pelas numerosas patrulhas que tem comandado na. terra de ninguém». A respeito do l .º Cabo Domingos Lopes, da l .ª Companhia do mesmo Batalhão, tece o ielatório do Comandante da l.ª Divisão a seguinte imagem: «chefe da metralhadora do posto Mole, bateu-se rudemente, desencravando por três vezes a sua metralha,dora, demonstrando grande coragem e sangue frio, sempre tão activo e cintilante que é conhecido no Ba­talhão pelo Cabo Vi Light ( very light) ». Por fim, o soldado Gaspar Rodrigues, da l.ª Companhia do Batalhão de Infantaria n.º 29, é lou­vado por ter demonstrado «coragem e serenidade, provando ser um excelente granadeiro, confirmando a reputação de bravo que tem no Batalhão» (~1 ).

O combate de dia 2 de Março de 1918, sobre o sector de Chapigny, foi importante, porque, além dos alemães terem efec­tuado uma excelente preparação geral e terem usado sem parcimónia a acção da artilharia - o que desgastou o moral das tropas em defensiva - traduziu-se no segundo ataque que maior número de baixas provocou nas forças do CEP. Com efeito, como já antes foi visto, entre mortos, feridos e prisioneiros contam-se 14 7 homens. Acerca deste raid será interessante pormenorizar um pouco os dife­rentes relatórios.

{ 49) Dos Sargentos só não foi proposto para ser galardoado com a m~ dalha da Cruz de Guerra o José Zamith Gonçalves Viana, tendo os outros dois sido, também, propostos para a promoção por distinção ao posto de 1.0 Sargento.

( 50 ) Os dois Cabos e o soldado foram propostos para receberem a medalha da Cruz de Guerra e foram promovidos por distinção aos postos imediatos.

(~) AHM, l.ª Div., 35.ª Sec., Cx. 144, N.º 164.

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Para o Ministro da Guerra, como já era habitual, as notícias eram dadas, aparentemente, sem grande alarme. Assim, o telegrama datado de 2 de Março, dizia o seguinte: «Inimigo atacou esta manhã J)úbre frente ocupada 9.\ 10.ª e 11.ª Companhias Infantaria 4 refor­çadas uma Companhia Infantaria 1 7. Ataque efectuado força apro­ximada um Batalhão, após preparação artilharia todos os calibres, granadas de gases, morteiros, metralhadoras. Contra-atacámos, reo­cupando posições primitivas. Nossas perdas, até agora averiguadas, 43 feridos, sendo 1 oficial, 53 desaparecidos, sendo 3 oficiais, 6 mortos» (õfl). No entanto, o relatório do Comandante interino da 2.ª Divisão, Coronel Adolfo A. Barbosa, já é muito mais rico em iwrmenores, começando por afirmar que o ataque devia estar a ser preparado, pelo menos, desde 27 de Fevereiro. A artilharia alemã iniciou a sua acção às 5 horas e 30 minutos, batendo as defesas de arame farpado, a primeira linha de trincheiras e as trincheiras de comunicação. «Passado este período, que durou 15 minutos, enquanto a artilharia inimiga, alongava o seu tiro, batendo a 2.a linha e trin­cheiras de comunicação, as tropas de assalto, a coberto das crateras de Mauquissart (~}, e mascarados por nuvens de fumo, inicia[m] o assalto. O inimigo lança-se em vagas e com impetuosidade contra a nossa trincheira de combate, penetrando nela ( ... ). Vencida a resis­tência da guarnição da l.ª linha a primeira vaga avançou a corta mato sobre a linha de suporte, enquanto outra vaga passou a fazer pri­sioneiros, a estabelecer-se em toda a linha da frente, ( ... ) , e a fazer a evacuação dos seus feridos. A sua situação tomou-se insustentável em virtude da barragem feita pela artilharia, quer na 1 .. linha, quer no no man's land [ sic], então, pelas 8 horas abandonaram as nossas linhas». Deve-se associar a esta descrição suficientemente ·viva, para se perceber o que foi o tipo de resistência portuguesa, a relação de munições consumidas na acção ; de artilharia de 7 ,5 foram disparadas 3100 granadas, de obuses de campanha de 4,5 fizeram-se 508 tiros, de metralhadora consumiram-se 14 000 car­tuchos, de morteiro ligeiro gastaram-se 250 granadas, de morteiro médio foram disparadas 10 granadas, consumiram-se 2600 cartuchos de espingarda e 195 granadas de mão. Face a estes números con­segue-se perceber a extraordinária actividade da artilharia portu­guesa que, em média, fez 21 disparos em cada minuto C").

(32) AHM, 1.ª Div., 35.• Sec., Cx. 74. ( 58 ) Trata-se de uma região que ficava fronteira ao sector Chapigny,

no qual estavam instaladas as forçais da s.• Bri~da de Infantaria, também chamada Brigada do Minho.

(3•) AHM, 1.ª Div., 35.• Sec., Cx. 144, N.• 183.

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O combate .de 7 de Março de 1918, sobre os sectores de Neuve {:hapelle e Ferme du Bois, foi, do ponto de vista da acção da infan­taria, um falhanço alemão, muito embora, na perspectiva de um duelo de artilharia, tenha sido um excelente exercício para as tropas germânicas. Realmente, segundo o relatório do General Gomes da Costa, a artilharia inimiga, tendo começado a bombardear a frente portuguesa às cinco da madrugada só cessou a sua acção uma hora e meia depois; contudo·, a infantaria adversária terá tentado assaltar as primeiras linhas da defesa do CEP, no sector de Neuve Chapelle, aproveitando-se do nevoeiro que fazia, mas foi descoberta antes de chegar ao arame farpado e «Infantaria 15, que guarnecia os postos de Mole e Pope recebeu o atacante com fogo de espingarda, granadas tle mão e morteiros ligeiros, fazendo logo o sinal de S. O. S. à artilharia. Sob a intensi·dade do fogo ·da infantaria, o inimigo retro­cedeu, sendo batido pela nossa artilharia quando penetrava nas suas linhas». Entretanto, no sector de Ferme du Bois, também <<chegou a aparecer a infantaria para o ataque, ( ... ), mas sob o fogo da nossa infantaria ( 22) e a barragem de artilharia, retiraram sem ter <'hegado aos nossos arames» C15 ). Deve notar-se que, ao que sei, foi a primeira vez que os alemães tentaram o ataque simultâneo em dois sectores da frente nacional - Neuve Chapelle e Ferme du Bois - facto que representou, de alguma forma, uma inovação comparativamente aos anteriores combates. De ora em diante esta .situação vai ser constante, parecendo que o adversário procurava ser capaz de dominar, momentaneamente, um largo espaço na frente portuguesa.

O raid de 9 de Março de 1918 foi, como já é sabido, da ini­ciativa ·, portuguesa e teve como finalidade perfeitamente expressa «manter elevado o moral das tropas da 1.ª Divisão e obrigar o inimigo a temê-las», tal como afirma o General Gomes da Costa no seu relatório que, em grande extensão passo a transcrever, por se tratar de uma peça histórica importante C'ª) :

( 5~) A~M. t.• Div., 35.• Sec., Cx. 144, N.º 165. ( 51 ) Curioso será, também, transcrever o telegrama que, nestas circll!lls­

tâincia'S, era habitual mandar ao Ministro da Guerra: «Às 5 horas hoje 9, após bombardeamento artilharia pesada e campanha, iniciado 4 horas este Corpo, uma Companhia Infantaria 21 e destacamento sapadores mineiros atingiu segunda linha inimiga, fez cinco prisioneiros, causou baixas importantes ainda não conhecidas, destruiu dois abrigos, apreendeu uma metralhadora. outras armas, equipamentos. Feridos nossos: Tenentes. Gonzaga e Henrique Augusto, Alferes Alípio, o primeiro gravemente, um soldado morto trincheiras efeito bombardeamento inimigo, nenhum desaparecido» (AHM, t.• Div., 35.• Sec., Cx. 74). Há, quanto à morte de um soldado, disparidade de informação, por-

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O raid fo'i executado na manhã de 9 do corrente pela 1.ª Companhia de Infantaria 21, com um grupo da 3.ª Com­panhia de sapadores mineiros e coadjuvado pe"la artJÜharia da Divisão.

Pe"las 4 a. m. ( ~.7 ) a artilha"T1Ui da Divisão bombardeou a frente inimiga auxiliada pela artilha.,,ia pesada do X Corpo ( 58

)

que bateu vários pontos importantes à retaguarda. A partJir das 4 ,55 a. m. o fogo da artilharia incidiu prin­

cipalmente sobre a 2.ª e 3.ª linhas do in~migo à retaguarda do Boar's Head e acabou por fixar a barragem na Mitzi e Salad Trenchs, formando a caixa onde o raid se executou.

( ... ). Às 4,30 a. m. a força encarregada do raid saiu das entrin­

cheiramentos e fm colocar-se na frente da nossa rede de arame, esperando que te,,minasse a preparação da artilharia.

Às 5 horas a. 1m. os três Pelotões da Companhia de infan­taria avançaram, cada qual na sua direcção sobre a frente a atacar, acoimpanhados pelos sapadores mineiros.

Cortado o arame, que a artilharia niio conseguira destruir de todo, toda a força penetrou jna 1.ª ~inha inimiga, sendo recebida com fogo de fusi"laria e metralha<loras.

O Pelotão do centro avistou uns 30 alemães sobre os quais avançou decididamente, mas el,es abandonaram a posú;ão, fu­gindo, perseguidos pelo nosso fogo de infantaria, que lhes causou grandes baixas.

Fracoionou-se, então, o Pelotão em três grupos que pas­saram a revistar os abrigos, encontrando em dois del,es alguns soldados alemães, que foram mortos após curta resistência.

O Pelotão da esquerda procedeu analogamente, conse­guindo apoderar-se de uma metralhadoro com que o inimigo o tentava deter, após violento combate em que foram grave­mente feridos o seu comandante Alferes Alípio [Cruz .d'Oli­veira] e o Tenente [Luís de Sousa] Gonzaga.

quanto, talvez um ou dois dias após a operação, o próprio General Comandante da 1.ª Divisão não dá, no seu relatório, indicação de qualquer morte. Pode admitir·se que a frase do telegrama se refira a uma morte ocorrida dentro das nossas trincheiras.

(~7 ) Trata-se de uma clara influência britânica para distinguir as horas nocturnas das horas diurnas.

(~8 ) O Corpo de Exército Português não estava completo nos seus efec­tivos de combate, a:ssim, entre outros meios, faltava-lhe a aviação e a artilharia pesada. O apoio táctico dos meios em falta era fornecido pelas unidades britâ­nicas física e geograficamente mais próximas.

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O }'elotão da direita, comandmlo -pelo Alferes Henrique Augusto caiu sobre um abrigo fortemente guarnecido donde lhe feriram 11 homens : os soldados alemães foram todos mortos, menos um, que fkou prisio~tro.

Parecendo ao comandante do raid, [Capitão] António Germano Ribrd.iro de Carvalho, que nada mais havia a fazer, deu o sinal de retirar.

Como é sabido, é através da análise das recompensas dadas aos militares que se pode avaliar a importância de uma operação e o c:omportamento da tropa nessa acção. Passemos, por conseguinte, a esse estudo, identificando os militares recompensados e as razões determinantes. O Comandante da l .ª Divisão do CEP louvou doze militares - directa ou indirectamente, já que para alguns propôs ao Comandante do Corpo de Exércto que fosse este a fazê-lo - e desses, promoveu, ou propôs que fossem promovidos, ao posto ime­diato dez, propondo, também, para a totalidade, a condecoração com a medalha da Cruz de Guerra, nas diferentes classes ( 'ª). Os doze militares distinguidos foram: o Capitão António Germano Guedes Ribeiro de Carvalho ( 00

), o Tenente Luís de Sousa Gonzaga (6J.), Tenente Henrique Augusto e Alferes Alípio Cruz de Oliveira (62

),

.Alferes Vitorino Rodrigues ( 63), Alferes miliciano de engenharia, da

3.ª Companhia de Sapadores Mineiros, António Nunes Correia ( 84),

2.º Sargento Albano Joaquim do Couto (65), soldado José Faus-

( 51 ) Veja-se o relatório da operação em AHM, l.ª Div., 35.• Sec., Cx. 144, N.º 166.

(ªº) Promoção a Major e Cruz de Guerra de 1." Classe, porque «comandou o raid com grande inteligência e acerto; revelou grandes qualidades de comando; dirigiu perfeitamente toda a operação; expôs-se constantemente com grande bravura e serenidade».

(81) Promoção a Capitão e Cruz de Guerra de 1.• Classe, por «grande coragem e bravura; avançou ao aissalto com grande galhardia; atacou o inimigo à frente do seu Pelotão com denodo, pondo-o em fuga, recebendo três ferimentos muito graves».

(ª2) Promoção aos postos imediatos e Cruz de Guerra de 2.• Classe, pela «coragem e bravura com que atacaram o inimigo à frente dos seus Pelotões, recebendo cada um seu ferimento, demonstrando ambos qualidades de comando excc:;pcionais e valor».

(&3) Cruz de Guerra de 3.• Claisse, porque «atacou o inimigo com bravura, collltribuindo para o bom resultado da operação».

(84) Cruz de Guerra de 3: Classe, por ter demonstrado «coragem e valor, tomando parte no assalto e destruindo 2 abrigos de cimento e um Decauville».

(ª') Promoção ao posto imediato e Cruz de Guerra de 3.• Classe, porque «conduziu com grande valor e acerto uma fracção do seu Pelotão, carregando com coragem e recebendo vários ferimentos».

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tino (u), soldado Sebastião Pinto C'1 ), soldado João Correia C'ª)y ~oldado Francisco da Silva Garrido ( 69

), soldado António Leitão ( 70)

e soldado Valentim Dias Leitão ( 71).

Como se vê, esta foi a operação que deu origem ao maior número de louvores, promoções por distinção e distribuição de medalhas da Cruz de Guerra ; pelo teor dos louvores percebe-se que o combate foi renhido e, acima de tudo, sangrento, não se tendo poupado os graduados a animar os seus homen.s de modo a levá-fos aos maiores sacrifícios, se fosse necessário. Pode dizer-se que foi uma operação que teve êxito e honrou as tradições da Infantaria Portuguesa.

O combate seguinte aconteceu a 12 de Março de 1918, envolveu efectivos da 2.ª Divisão do CEP e deve ter sido renhido (72

), já que o moral da tropa portuguesa estava levantado pela operação de dias antes. Como quase sempre, a preparação feita pela artilharia alemã começou de madrugada, às 5 horas e 45 minutos, e só se deu por finda a actividade da artilharia portuguesa às 8 horas, isto éy quando já não havia quaisquer movimentos da infantaria na terra de ninguém, «tendo terminado a acção da nossa infantaria às 7 » (7ª). Tal como no combate de 7 de Março, os alemães atacaram dois sectores da defesa nacional - Fauquissart e Chapigny-, isto é, a área de trincheiras guarnecid,a por dois Batalhões de infantaria. Com auxílio do telegrama enviado para o Ministro da Guerra, a 13 de Março, é possível avaliar melhor o decorrer da acção. Com efeito, diz-se ali: «Depois intensa preparação artilharia, inimigo, efectivo aproximado um Batalhão, atacou manhã 12, nossas linhas, parte g:uamecida Infantaria 2 e 20, havendo luta terra ninguém, chegando

( 98 ) Promoção ao posto imediato e Cruz de Guerra de 3.ª Classe, porque «valente soldado; perseguiu, sózinho, um oficial alemão que fugia acompanhado de um soldado, conseguindo a,prosionar esses».

( 67 ) Promoção ao posto imediato e Cruz de Guerra de 3.ª Classe, porque centrou num abrigo, prendendo 2 alemães».

( 68 ) Promoção ao posto imediato e Cruz de Guerra de 3." Classe, porque «atacou um alemão que manejava uma metralhadora e apoderou-se dela».

( 69) Promoção ao posto imediato, Cruz de Guerra de 3.a Classe, porque «atacou, feriu e prendeu um soldado alemão que atacava o Tenente Gonzaga».

( 7º) Promoção ao posto imediato, Cruz de Guerra de 3.ª Classe, porque, catacou e abateu uma sentinela alemã dum .posto de metralhadoras».

( 71 ) Promoção ao posto imediato, Cruz de Guerra de 3." Classe, porque e.aprisionou um soldado alemão, tendo de lutar com ele».

( 72 ) O relatório do Comandante interino da 2." Divisão é muito parco, tirando-se dele muito pouca informação com interesse histórico.

( 73 ) Relatório do Coronel Adolfo A. Barbosa. AHM. t.· Div., 35.• Sec., Cx. 144, N.º 179.

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corpo a corpo, tendo sido completamente repelido. Grandes baixas inimigo, ficando nossas mãos sete prisioneiros e dois mortos. Perdas nossas: 13 mortos, 56 feridos, 3 gaseados, 6 desaparecidos» (74

).

Como se vê, para haver luta na terra de ninguém tiveram •as tropas portuguesas de abandonar as trincheiras para esperar a infantaria germânica ou para a perseguir; em qualquer dos casos trata-se de um feito temerário.

O Comando alemão tomou a iniciativa de, na madrugada do dia 14 de Março de 1918, atacar os sectores guarnecidos pela 1.ª Divisão do CEP - Ferme du Bois e Neuve Chapelle. Tratou-se de uma operação de envergadura média, porque o adversário dis­tribuiu forças numa extensão de frente mais significativa; tal como o General Gomes da Costa pressentiu, eram sondagens ccpara apreciar os diversos pontos da linha a fim a fim de verificar sobre qual ou quais poderá executar um ataque a fundo». Assim, as unidades portuguesas envolvidas na defesa foram os Batalhões de Infantaria 28, 34 e 9. A decisão alemã de ampliar a frente a atacar, sendo já a terceira vez que acontecia, estava relacionada com o desgaste moral que pretendia obter, com o treino do seu pessoal para a efectivação de uma ruptura da frente e com a necessidade de estar permanentemente informada sobre a continuidad.e da presença por­tuguesa naquela frente.

O bombardeamento inimigo iniciou-se às 5 horas e 30 minutos, tendo, à mesma hora começado o ataque da infantaria sobre um dos sectores defensivos - Ferroe du Bois- o qual foi repelido a custo. No sector de Neuve Chapelle os alemães, às 5 horas e 35 minutos, lançaram duas vagas de assaltantes, cada uma com cerca de 80 homens, sobre um grupo de militares do Batalhão de Infantaria n.º 9. Os soldados germânicos foram recebidos ccpelo fogo da infantaria e metralhadoras; um grupo pequeno conseguiu ainda subir ao para­peito do posto Pionner, mas foi contra atacado e repelido». A defesa deste ataque deve ter sido tão empolgante e tão heróica que o Gene­ral Gomes da Costa propôs ao General Comandante do CEP os seguintes louvores :

25

Os Batalhões de Infantaria n.º 9 e 34, pela bravura com que se bateram ,no combate de 14 do corrente, mantendo-se nas posições, apesar do violento bombardeamento do inimigo, e repeündo esfJe com denodo, 1infligindo-lhe baíxas e levan­tando mais ainda o prestígio da 1 . " Divisão

(H) AHM, l.ª Div., 35.ª Sec., Cx. 74.

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Em todas as reuniões de tropas das respectivw Brigad& estes Batalhões passem a formar à direita.

( ... ). As seguintes prm;as ( r:i ) que se disti-inguiram no combate

de 14 do' corrente :

1. -2.º Sargento , da 3.ª Companhi.a, Belarmino Ribeiro de Almeida, porque, comandando um Pelotão, houve-se com grande cnitério e serenidade, dirigindo e animando os seus homens, repelindo o ataque inimigo ao seu posto e avisando os postos dos flancos do que se passava, demonstrando valor, coragem e qualidades de comando. Louvo-o em ON:lem da Divisão e proponho-o para a promoção a 1.º Sargento e Cruz de Guerra de 3.ª Classe.

2. - 1.º Cabo, da 4.4 Companhia, Joaquim Teixeira, pela fonna como comandou um posto de metralhadoras, animando e exortando os soldados que o guarneci.am, repelindo o ataque inimigo, demonstrando qualidades de comando, valor e cora· gem; louvo-o em Ordem da Divisão e proponho-o para a pro· moção a 2.º Sargento e Cruz de Guerra de 3.4 Classe.

3. - Soldado, da 4.ª Companhia, José Serafim, por de­monstrar grande valor, coragem e abnegação, salvando debaixo de fogo, dois camaradas que tinham ficado soterrados, debaixo de um abrigo, louvo-o em 0-rdem da Divisão, promovo-o a 1.º Cabo e proponho-o para a Cruz de Guerra de 3.4 Classe.

4. - Soldado, da 3.ª Companhi.a, António dos Santos, porque, vendo que outros soldados que guarneciam o seu posto hesitavam, lançou mão da metralhadora, começando pronta· mente a fazer fogo sobre o inimigo, e invectivou os seus cama· radas, animando-os e 'levando-os a repelir o ataque, o que con· seguiu. Revelou qualidades de comando, valor e coragem, pelo que o promovo a 1.° Cabo e o proponho para a Cruz de Guerra de 3." Classe e louvo-o em Ordem da Divisão.

Batalhão de Infantaria 34 1. - Soldado, da 3 ." Companhia, António Cardoso,. pela

coragem, valor e decisão demonstrados no comando de um posto de granadeiros, animando os camaradas e 'levando-os a re-pelir o inimigo. Louvo-o em Ordem da Divisão, promovo-o a 1.º Cabo e proponho-o para a Cruz de Guerra de 3.ª Classe.

{ 1 :1) Nesta época os sargentos eram, ailnda, oonsideriados praças de pré, não formando uma classe à parte.

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2. - So/Jado, da 3.ª Companhi.a, Ma:ru.rel da Silva, por­que, sendo o seu posto evacuado, recusou acompanhar os sew camaradas e foi com a sua metralhadora para o posto de Copse auxili.ar a defesa deste posto, dando assim um grande exemplo de valor m~litar e disciplina. Louvo-o em Ordem da Divisão ; promovo-o a 1.º Cabo e proponho-o para a Cruz <k Guerra de 3.ª Classe (7°).

Curiosamente o General Tamagnini de Abreu e Silva, Coman­dante do CEP, lançou, com o seu próprio punho o seguinte despacho no relatório do General Gomes da Costa: «Aprovo as propostas supra, modificando a proposta de Cruz de Guerra 3.ª pela de pri­meira, proponho o seu louvor em O. [ rdem] do E. [ xército] do sold.º 401 [António dos Santos] da 3.ª de lnf. 9 [ ?] 398 [Manuel da Silva] da 3.ª de lnf. 34» (1 1

).

Olhando atentamente os textos dos louvores percebe-se que, cada vez mais, eles, além de galardoar os militares que praticariam actos de grande valor, são uma arma de propaganda junto das tropas exaustas; parece que o Comando, na impossibilidade de resolver a situação de falta de repouso, que era geral nas tropas das duas Di­visões, tenta arrancar delas os últimos fiapos da vontade, da coragem e do valor. No mínimo, Gomes da Costa, era um dos oficiais que mais consciência tinha da situação critica do CEP e da possibilidade que havia dos alemães quererem explorar essa fragilidade na frente aliada.

É essa já fraca vontade de combater, essa ausência de ânimo moral que, bem no fundo, está presente nos militares que deviam levar a efeito o raid de dia 3 de Abril e que justifica o falhanço dessa acção ( 78

). Este combate frustrado era bem o indício do prin­cípio do fim do CEP e das esperanças que alguns políticos e mili­tares tinham posto na beligerância portuguesa ( 79

) •

(16) AHM, t.• Div., 35.• Sec., Cx. 144, N.º 167. (11) AHM, 1.ª Div., 35." Sec., Cx. 144, N.º 167. (78) AHM, l.ª Div., 35." Sec., Cx. 144, N.º 177. Evidentemente que a falta

de sucesso do raid se ficou a dever a causas diferentes das de ordem moral, todavia, é sabido que uma operação militar resulta quando quem a executa acredita nela; ora, era difícil, depois do tormento que foi o mês de Março, alguém, nas tropas da· 1." linha do CEP, acreditar no quer que fosse.

(79) A propósito dos fins políticos da beligerância portuguesa pode-se consultar o meu trabalho Portugal e a Primeira Grande Guerra. Objectivos PoUticos e Esboço da Estratégia Nacional, 1914-1916, Lisboa, Instituto Superior de Ciências Sociais e Poüticas, 1990.

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Para concluir este estudo dos combates da Infantaria Portu­guesa na Flandres francesa nos anos de 191 7 e 1918, falta fazer uma brevíssima referência aos recontros que, embora não tendo tido a grandiosidade daqueles que acabei de analisar, foram suficiente­mente significativos para figurarem nos curtos relatórios que todas as semanas eram enviados ao Minstro da Guerra, para Lisboa.

5. AS ESCARAMUÇAS ENTRE INFANTARIAS

A primeira notícia que tenho sobre participação das tropas de infantaria em recontros de certa envergadura é datada de 2 5 de Junho de 1917, quando se diz, ao Ministro da Guerra, que «As nossas tropas têm repelido vários raids inimigos, tendo um Pelotão nosso tomado parte numa incursão às trincheiras alemãs. O Ba­talhão de Infantaria 34 destroçou completamente uma forte patrulha inimiga, aprisionando-lhe os cinco sobreviventes, entre os quais um Sargento condecorado com a Cruz de Ferro» (8º).

A 9 de Julho de 1917 dizia-se, relativamente à semana ante­rior: «Repelimos um raid e diversas tentativas do inimigo» (81

).

No relatório relativo à semana de 30 de Julho do referido ano diz-se: «Repelimos um raid e tentámos outro (si) sem resul­tado» ( 83

).

Na mesma noite em que os portugueses lançavam um raid sobre ai!I trincheiras alemãs, devem ter estes tentado outro sobre as trin­<'heiras portuguesas, porque, no telegrama p·ara o Ministro da Guerra, datado de 31 de Julho, se diz o seguinte a propósito do desapareci­mento do Alferes miliciano José Rodrigues Pinto Pinhal: «Foi capturado pelos alemães, depois de ferido no raid executado sobre as nossas trincheiras na noite de 2 5 / 2 6 e que foi por nós repe­lido» (84

) •

No dia 7 de Agosto, conforme se diz no relatório para o Mi­nistro da Guerra, « ( ... ) os alemães chegaram a pôr o pé nalguns dos nossos elementos de trincheira de l .ª linha, após bombardea­mento com morteiros e granadas de gás, sendo repelidos)> ( 11:1).

196

(80) AHM, t.• Div., 35.ª Sec., Cx. 74. ( 81 ) Idem. ( 82 ) Refere-se ao combate de 26 de Julho de 1917. ( 81 ) AHM, l.ª Div., 35.• Sec., Cx. 74. ( 84 ) Idem. (85) Idem.

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No dia 2 5 de Agosto de 1917, foi sinteticamente descrito, para o Ministro da Guerra português, em telegrama, um confronto de tropas de infantaria, da maneira que se segue: ccOntem, o Batalhão de Infantaria 2 9, em instrução (86

) numa Brigada britânica, repeliu um ataque fazendo 3 prisioneiros. Batalhão portu-se muito bem, apesar ser primeira vez que entrava na linha, recebendo cumpri­mentos do Comandante da Divisão britânica. Teve 7 mortos e 'i 5 [ ? ] (81

) feridos» {88).

Curiosamente, no dia 1 7 de Setembro de 191 7 e em relação à semana transacta, diz-se para Norton de Matos, Ministro da Guerra, à data: ccNo dia 10 efectuámos um raiá sobre trincheiras inimigas. ( ... ). Na manhã de 15 o inimigo fez um raid nas proximidades de Neuve Chapelle, sendo repelido e tendo deixado 5 prisioneiros e alguns mortos, entre eles um oficial. Distinguiu-se nesta acção o Alferes de infantaria Gomes Teixeira e o Sargento de Infantaria 7 Diogo Martins de Lima» ( 89

).

Também, no dia 1 de Outubro de 1917, se dava notícia para o Ministro da Guerra, em relação à actividade bélica da semana anterior, que ccNa madrugada de 24» havia sido repelido ccum forte raid inimigo, infligindo-lhe bastantes baixas» ( 90

).

Segundo o telegrama de dia 17, no mês de Dezembro, nas noites de 12 e de 15, foram as trincheiras portuguesas assaltadas por ccforte patrulha inimiga». ccO Alferes David Rodrigues Neto e uma orde­nança aprisionaram 1 oficial, 1 Sargento-Ajudante e 6 soldados que formavam uma patrulha reconhecimento que entrara nossa primeira Jinha manhã de 15 » (91

). Ainda no mesmo mês, na manhã de dia 26, foi repelida uma ccforte patrulha inimiga» (92

). Para fina­lizar o ano os ·alemães bombardearam a frente portuguesa na noite de 31 de Dezembro, chegando a utilizar, em elevado número, gra­nadas de gás. Toda esta acção da artilharia foi acompanhada pela

(88) Esta expressão resulta do facto das unidades portuguesas, depois de uma primeira fase de instrução em escolas próprias na retaguarda, terem passado a fazer um estágio prático junto das unidades britânicas de nível equivalente antes de assumirem, em exclusivo, a responsabilidade de defesa de uma zona das. trincheiras.

(81) Este número não se lê correctamente no telegrama, já que está grafado da seguinte forma - IS. Podemos ter, por conseguinte, 15 ou 75 feridos. Qualquer dos números é aceitável, se atendermos ao que havia acontecido no dia 23, aquando do raid alemão que fez 27 feridos e 48 gaseados.

( 88 ) AHM, t.• Div., 35.• Sec., Cx. 74. ( 89 ) Idem. ( 90 ) Idem. (91) Idem. (r.!) Telegrama de dia 31 de Dezembro de 1917. Idem.

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exploração da frente portuguesa por duas fortes patrulhas que, con­tudo, foram repelidas ( 93

).

Com o telegrama de dia 21 de Janeiro, para o Ministro da Guerra, Sidónio Pais, relativo à actividade bélica durante a semana transacta, dá-se a seguinte notícia: «Repelimos forte patrulha ini­miga dia 16, um ataque dia 17 e outro mais importante, feito por três grupos, com grande preparação artilharia, dia 18. lnimig<> sofreu perdas, sendo sempre repelido sem conseguir seus objec­tivos ( 94

). Fizemos 3 prisioneiros, um dos quais desertor» ( 9s). A 4 de Fevereiro, no habitual telegrama semanal, dizia-se que

havia sido repelida, «em 29, patrulha inimiga» (9°). Na semana seguinte, a 11, dá-se a notícia de ter sido repelida, no dia 6, uma patrulha inimiga «que deixou três mortos nosso parapeito» (91

).

Novamente, na semana seguinte, a 18 de Fevereiro, se diz que foram repelidas «algumas patrulhas» e que na noite de 17 «surpreendemos uma [patrulha] aprisionando um oficial e duas praças» ( 98

).

No relatório para o Ministro, reportado à semana anterior a 4 de Março de 1918, diz-se que aumentou a actividade das patrulhas alemãs, tentando aproximarem-se das trincheiras portuguesas {99

).

A 11 de Março, no telegrama para o Ministério da Guerra, afirma-se textualmente: ccAumentou consideravelmente actividade artilharia f' patrulhas inimigas, tentando estas entrar nas nossas linhas nos dias 7, 8 e 10, sendo sempre repelidas pelo nosso fogo, sem con­seguir obter identificações (1°0

). ( ••• ) • Capturámos dois deserto­res dia 5, um prisioneiro e um desertor dia 8 e dois desertores dia 10» C1ºJ.).

No dia 1 de Abril de 1 918 o telegrama para o Ministério da Guerra começava da seguinte forma: «Alguma actividade artilharia mlIDlga. Dimimuiu actividade patrulhas inimigas» ( 1º2

). O derra-

(93) Telegrama de dia 7 de Janeiro de 1918. Idem. (9•) É muito curiosa esta afirmação, já que parece julgar-se que o objec­

tivo alemão era, a partir de um pequeno ataque, conquistar e permanecer nas trincheiras portuguesas. Pode dizer"5e que havia uma certa ingenuidade por parte do Estado-Maior do CEP ou que, então, se pretendia fazer crer, em Lisboa, que a conquista definitiva de partes das trincheiras era possível ... talvez se esperasse, assim, o envio de alguns reforços humanos!

(9S) Idem. (96) lidem. ( 97 ) Idem. ( 98 ) Idem. ( 99 ) Idem. ( 100 ) A importância da reçolha de identificação por parte do adversário

• ra grande, porque dava a dirneinsão do esforço e do moral das tropas contra quem se combatia.

( 101 ) Idem. ( 102 ) Idem.

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deiro telegrama antes da grande batalha do Lys confirmava o que parecia ser uma tendência nova na frente, já que começava pelos seguintes termos: <e Diminuiu actividade artilharia e patrulhas ini­migas (1°3

). Fizemos dois prisioneiros» (1°4).

Em síntese, pode dizer-se que, durante o ano de 191 7, para além dos confrontos que identificámos anteriormente e a que chamei combates ou raids, houve mais de doze recontros com patrulhas alemãs de alguma dimensão. Deve, no mesmo ano, adicionar-se ao raid da iniciativa nacional, mais um outro. No ano de 1918, só entre 16 de Janeiro e 1 O de Março, não contando com os combates já descritos, terão havido mais de oito recontros com forças inimigas. Interessante, também, será verificar que nestes pequenos recontros se conseguiram mais prisioneiros - trinta - do que na sequência dos combates mais vultosos - vinte e dois.

Chegado a este ponto, creio que, tendo cumprido o objectivo que me tinha imposto no início, posso passar a evidenciar alguns aspectos que me pareceram mais significativos e importantes.

6. CONCLUSÃO

O facto de os historiadores militares portugueses darem um especial relevo à batalha do Lys leva a que quase se olvide todo o esforço bélico desenvolvido pelo CEP até 9 de Abril de 1918. Não tendo a espectacularidade dessa batalha decisiva para a presença r1ortuguesa na l .ª Grande Guerra, os combates de infantaria, que se foram sucedendo ao longo dos meses, tiveram um papel significa­tivamente importante, porque contribuíram, em especial durante o primeiro trimestre de 1918, para o desgaste físico, moral e material das tropas portuguesas na Flandres. Assim, parece-me que falar de La Lys sem explorar o que, do ponto de vista militar, ·aconteceu antes, sem procurar averiguar, tanto quanto possível, os efeitos da rotina mortífera da campanha, é dar uma visão incompleta do comportamento das tropas do CEP; era imperioso traçar os con­tornos desse. desgaste, desse calvário que lentamente foi sendo subido pelos ignorados soldados portugueses, em França. Propus-me, então, descrever os combates em que esteve envolvida a infantaria portu-

(1<>a) Tratava-se da acalmia que ia anteceder a grande tempestade; _aos alemães oonvinhha dar a ideia de que as acções de pequena envergadura iam ser reduzidais para evitar uma substituição dos portugueses por tropas re­pousadas.

( 10•) Idem.

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guesa {1°5), na Flandres francesa, entre Julho de 191 7 e 2 de Abril

de 1918. Comecei por dar uma ideia da forma como eram organizados

us combates de infantaria, tanto no que respeita à decisão da sua ocorrência como no que se relaciona com a preparação e decurso do assalto. Depois, passei a identificar os combates, ou raids, havidos entre alemães e portugueses, recortando os aspectos mais significa­tivos desses confrontos:

a) Em primeiro lugar, conclui que, sustentados por rela­tórios dos Comandantes das Divisões, havia conhecimento de onze raids efectuados entre Julho de 191 7 e Abril de 1918, e que, no entanto, no mínimo, teria ocorrido um outro a 19 de Março deste último ano ;

b) Conclui, também, que a iniciativa de todas estas acções foi maioritariamente alemã, pois, de doze assaltos, oito tinham sido planeados pelo Comando germânico ;

e) Da análise dos dados fornecidos, é possível concluir que as baixas totais sofridas pelos portugueses foram da ordem dos 764 homens; destas, 419 são relativas ao ano de 1918 ou, melhor dito, ao mês de Março desse mesmo ano. Fica, assim, evidenciado o desgaste imediato e directo provocado pelos alemães com vista à preparação da batalha do Lys {1°6

). Claro que as baixas totais do CEP, durante os períodos em análise, não se limitaram aos números apresentados;

d) É, também, possível concluir que houve uma clara desproporção entre o número de prisioneiros alcançados de parte a parte. Assim, enquanto aos portugueses foram feitos 131 prisioneiros, aos alemães fizeram-se 22;

e) Também se tornou possível saber que o raid de 14 de de Agosto de 191 7 foi o que provocou maiores danos humanos nas forças nacionais - 230 baixas-, logo seguido do de 2 de Março de 1918 -147 baixas;

( 105 ) Porque a t.• Guerra Mundial foi, em terra e na Europa, essencial­mente, um confronto de artilheiros e de infantes.

( 106 ) Teinha-se em atenção que se devem descontar as baixas sofridas nas duas acções que foram iniciativa do Comando português - 43 -, passando a ser o total corrigido da ordem dos 376 homens.

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f) Uma outra 'conclusão que foi possível tirar, relacio­na-se com o comportamento · disciplinar da tropa portuguesa. Assim, em consequência directa dos combates, foram dadas cinco punições ( 1 O de Novembro de 191 7 ) , foram averbados 58 louvores individuais mais dois louvores colectivos, foram propostas 24 promoções por distinção ao posto imediato e foi proposta a atribuição de medalhas da Cruz de Guerra a 25 mi­litares. Torna-se curioso o facto de uma só vez o Comando do CEP ter recorrido à punição de responsáveis pelos resul­tados desastrosos dos combates e mais curioso se torna quando sabemos que essa acção disciplinar ocorre logo nos primeiros meses de campanha.

Quando passei ao estudo e análise dos particularismos e com­portamentos individuais nos combates que antes havia descrito suma­riamente, tornou-se possível extrair algumas conclusões que me parecem interessantes. Vejamo-las:

a) .Na maioria dos casos, era cautelosamente elaborada a notícia telegráfica sobre os raüls, a transmitir ao Ministro da Guerra, em Lisboa, t~ndo o cuidado de não fornecer exces­sivos pormenores ; ·

b) Os assaltos da infantaria adversária surtiam tanto menor efeito quanto mais cedo era dado o alerta e pedido o apoio de fogos da .artilharia sobre a terra de ninguém ;

. '··

e) Os combates .entre infantarias tinham tanto maiores probabilidades de êxito quanto mais eficiente era a barragem de fogo de artilharia ;

_d) Os homens defendiam-se, quase sempre, sob a pro­tecção :das trincheiras, podendo ocorrer a retirada para melho­res abrigos ou, o que era mais raro, passarem a combater na terra de ninguém ; ·

e) No começo do ano de 1918, pela passagem ao ataque simultâneo em dois sectores da defesa portuguesa, os alemães mostraram que tinham objectivos mais vastos, embora, na altura, nem todos os responsáveis militares tenham apreendido esse indício ;

f) Nas punições que foram dadas, os factos mais eviden­ciados eram a falta de coragem para enfrentar o inimigo e a falta de cuidado no cumprimento das obrigações, quer de ro­tina, quer excepcionais ~

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g) Nos louvores, em geral, os atributos mais realçados foram a coragem, a bravura, a galhardia, o sangue frio e a capacidade de comando.

Seguindo o meu plano expositivo, passei ao último ponto do estudo, ou seja, à inventariação das escaramuças entre infantarias. Tratou-se de uma tentativa para, por um lado, esgotar as hipóteses de me ter escapado algum combate importante e, por outro, pôr em evidência a sequência de operações que normalmente tinham lugar no dia a dia das trincheiras. Desta fase do trabalho retirei algumas conclusões :

a) Aos combates de infantaria já identüicados devem acrescentar-se mais de 21 escaramuças acontecidas no mesmo espaço de tempo, uma das quais é da iniciativa do Comando português;

b) No decorrer destas escaramuças fizeram os portu· gueses maior número de prisioneiros alemães do que durante os grandes combates;

e) O elevado número de desertores alemães que se en­entregaram às tropas portuguesas dá indicação de um abaixa­mento do moral nos sectores inimigos ou da existência de piores condições de vida, no começo de 1918 ;

d) A redução, quase brusca, da actividade adversária na frente dos sectores portugueses, no final do mês de Março de 1918, indiciava uma alteração na condução das operações, que não foi interpretada a tempo pelos responsáveis militares.

Em síntese final, face ao estudo que agora conclui, pode dizer-se que a infantaria portuguesa, o mesmo é dizer o CEP, adoptou a defensiva como posicionamento táctico, durante a sua permanência nas trincheiras da Flandres, de Julho de 191 7 a Abril de 1918, já que, à partida, se não podiam contar com grandes reforços idos de Portugal, ao mesmo tempo que, em crescendo, as forças ·alemãs foram desenvolvendo o posicionamento ofensivo que levou ao colapso final.

Lisboa, Outubro de 1995.

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A CORRESPOND:ftNCIA DE GUERRA E A VIV:ftNCIA NAS TRINCHEIRAS DA FLANDRES

ISABEL PESTANA MARQUES (*)

A guerra e a acção militar dos exércitos são factores de mu­dança dos indivíduos e das nações, constituindo mecanismo dessa mudança o acto de inflingir sofrimento humano através da violência. Deste modo, a violência, o combate, a batalha, a guerra exigem estudos históricos.

O carácter inovador de ccguerra total» da Grande Guerra, exi­gindo durante um longo período temporal e num conjunto espacial diversificado uma mobilização militar e civil de características até então desconhecidas (quantitativas e qualitativas), e a participação portuguesa nas duas frentes de guerra, a europeia e a africana, fazem deste conflito um objecto de estudo histórico de eleição.

A historiografia internacional, ao debruçar-se sobre este evento, não tem receios de considerá-lo como ccexpressão de modernidade»: o conflito de 1914-18 é percepcionado como o precipitar de tudo quanto de novo se acumulou no decénio anterior; o fundador da «memória moderna», .da ccpolítica de massas» e do novo ccmundo mental». Enfim, a Grande Guerra é ,assumida como um sanguino­lento rito de passagem do velho para o novo mundo, apesar da evidente e extrema tentativa de garantir a sobrevivência do velho regime.

O estudo do quotidiano português de guerra, da batalha e do combate, em geral, e da I Guerra, em particular, não tem recebido a atenção que merece por parte da historiografia portuguesa, onde por vezes ainda domina a identificação ·da história militar com a << histoire bataitle ».

(*) Licenciada em História pela F.C.S.H./U.N.L.

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Impõe-se novas leituras de acordo com as orientações da emer­gente «nova história militar», nomeadamente no âmbito da «História dos militares» (estudo interno da organização militar e, sobretudo, da experiência de combate) : a novidade não poderá ser entendida como superioridade mas sim como diferença, ou seja, leitura de novas fontes (escritas, materiais, orais, etc.) segundo novas pers­pectivas interpretativas (nomeadamente, as psico-sociológicas) de novos campos de estudo (o dia a dia dos militares no teatro de guerra, os momentos de instrução militar, de vigília e de combate tal como a -Ocupação dos tempos «livres»; as reacções individuais e colectivas às situações de perigo e à coacção da disciplina imposta pela autoridade militar e em última instância pelo estado moral das tropas).

Dada a vastidão temática e devido a constituir o tema central da disesrtação de Mestrado que pretendo defender proximamente na .Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da U.N.L. impôs-se abordar uma ·questão especifica, a saber : compreender a vivência quotidiana dos combatentes portugueses nas trincheiras da Flandres através do estudo da correspondência de guerra.

Este trabalho baseia-se na consulta de um conjunto de missivas e postais de correio de praças e de oficiais portugueses em campanha apreendidas pelo serviço de censura e existente no Arquivo Histórico Militar tal como algumas missivas recebidas em Portugal por fami­liares, amigos e conhecidos de combatentes existentes em arquivos particulares e disponibilizados generosamente pelos respectivos fa­miliares.

Partindo da problemática do quotidiano de guerra e tendo em conta as características das fontes consultadas tentaremos abordar: os autores, os destinatários, as características materiais e formas das missivas e os conteúdos das mensagens de forma a compreender a própria função da troca de correspondência durante a campanha militar.

A vivência das duras condições do quotidiano de guerra, dos problemas materiais sentidos na campanha e da luta constante entre a vida e a morte impôs-se aos expedicionários portugueses durante os dois anos de campanha.

Neste conjunto vivencial opressor, os <<tempos livres» afirmam-se como um elemento fundamental para a construção e/ ou manutenção do equilíbrio físico-psicológico dos combatentes, apesar dos respec­tivos condicionalismos específicos.

Gozados nos momentos de descanso, os «tempos livres» em zona de guerra distinguem-se daqueles gozados em tempo de paz, dadas a~ suas características específicas.

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Os tempos não serão tão «livres» cOIID.o indica a expressão defi­nidora do acto, ou seja, é a autoridade militar que define quando, onde e como esse período temporal é gozado pelo expedicionário ao impor um sistema regulador dos momentos de descanso e do perímetro de circulação do indivíduo e ao estipular as actividades não militares proibidas e as respectivas punições ao desrespeito das normas ins­tituídas.

Então, será a possibilidade de usufruir dessa «liberda!:k», mesmo que condicionada, que permitirá duas actuações ·diferentes de objectivos divergentes:

- as autoridades consentiram e organizaram actividades não militares com o fim de garantirem a estabilidade psicológica do combatente transformando os «tempos lvres» em instru­mentos fundamentais para o êxito da campanha;

- os expedicionários resistiram passivamente ao quotidiano de guerra com o fim de garantirem a própria estabilidade psicológica transformando os <<tempos livMs» em actos de evasão da realidade constrangedora fundamentais para a sobrevivência individual.

Deste modo, a vivência dos «tempos livres» será heterogénea no seio do C.E.P., de acordo com uma multiplicidade de factores complementares: as actividades realizadas, as características dos sujeitos envolvidos, os espaços em que são usufruídos, os meios dis­poníveis e os objectivos pretendidos.

No múltiplo conjunto de actividades de ocupação dos períodos de descanso destingue-se a correspondência de guerra como activi­dade de iniciativa particular.

Sendo uma das actividades realizada com maior empenho e satisfação pelos combatentes durante oss momentos de descanso, independentemente do local (trincheira, linha das aldeias ou base), dos materiais disponíveis (papel, caneta e tinta, sobre o joelho ou sobre escrivaninhas improvisadas com caixotes de «corneed beef» ), da capacidade de escrita e de leitura dos combatentes e da disposição do momento, a recepção e o envio de missivas durante a campanha nunca foi inteiramente privada e individual, em suma, livre. Essa falta de liberdade determinará as características e as funções das missivas no quotidiano de guerra.

Com o ohjectivo de impedir a transmissão de informações con­sideradas valiosas para o inimigo (qualquer que pudesse pôr em risco o sucesso militar dos aliados) e de informações que abalassem

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o moral da população em Portugal (qualquer que pudesse pôr em risco o esforço de guerra dessa retaguarda), as autoridades militares criaram o serviço de censura postal do C.E.P., verdadeiro instru­mento repressivo da liberdade de expressão e de informação.

Estando sujeitas as missivas escritas e recebidas à acção da censura dos oficiais superiores e dos funcionários do correio militar {o único autorizado) e estando os escrevedores e receptores sujeitos à acção punitiva disciplinar quando as missivas infringissem as normas estipuladas no regulamento de censura postal vigente (desde a retenção da missiva até à prisão disciplinar), a acção de trocar correspondência reflectirá comportamentos individuais de sujeição à autoridade mas, também, de tentativas de infringir o poder esta­belecido.

Lamentavelmente, o estudo desses comportamentos e das res­pectivas funções é dificultado dado o número muito reduzido de missivas conservadas e disponíveis à consulta.

Na impossibilidade de analisar correspondência escrita em França e recebida em Portugal por correio civil ou por mão própria (escapando à censura postal) e/ ou por correio militar (sujeita ao crivo da censura) ou de correspondência recebida em França por idênticos meios devido à impossibilidade de localização, opta-se pelo estudo de missivas e postais apreendidos pelos serviços de censura postal do C.E.P. e de missivas recebidas em Portugal por familiares, amigos e conhecidos de combatentes.

Apesar de reduzido e de mero indicador de uma realidade mais vasta mas de difícil percepção global, este conjunto de missivas reflecte um mundo privado que procura sobreviver às contingências impostas pelo quotidiano de guerra através da comunicação escrita individual : a compreensão dos autores, dos destinatários, das carac­terísticas materiais e formais das missivas e dos conteúdos da men­sagem é fundamental para entender as funções inerentes ao acto.

Naturalmente, a autoria das missivas, escritas em França e durante os anos de 191 7 e 1918 (sobretudo), era masculina e militar, distinguindo-se o maior número de praças de pré autores que oficiais: a apreensão no seio do sector do C.E.P. justifica a masculinidade e a militarização dos autores; o maior número de praças existente no efectivo do C.E.P. e a acção censória das missivas, a cargo dos oficiais, explica a predominância de missivas apreen­didas no seio das praças (os oficiais facilitavam os seus pares).

Salientam-se, ainda, algumas missivas ·de autoria feminina, civil e de naturalidade francesa por demonstrarem a recepção no seio do C.E.P. de missivas de população local francesa.

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Todavia, os destinatários das missivas escritas na zona ·de guerra não vão inscrever-se nessa uniformidade caracterizadora dos autores : os expedicionários utilizarão as missivas para contactarem um mundo menos masculinizado (escrevendo quer para homens quer para mulheres), menos militarizado (escrevendo para camaradas perten­centes ao C.E.P. - prisioneiros na Alemanha e/ ou camaradas esta­cionados noutras unidades - e camaradas exteriores ao C.E.P. -prestando serviço em Portugal) e sobretudo civil, numa tentativa de contactarem um mundo diferente do seu, exterior ao do quotidiano de guerra.

A escolha do destinatário baseia-se também no tipo de relação existente entre o autor e aquele. Constituindo a troca de missivas um acto pessoal e de difícil realização em tempos de guerra, os autores vão decidir escrever àqueles que lhes são mais próximos, cujas relações são de maior confiança e intimidade.

Deste modo, a afectividade será o instrumento decisório na selecção do tipo de relações a privilegiar com a troca de uma missiva justificando a preferência dos autores em corresponderem-se, em primeiro lugar, com familiares, em segundo com amigos e em ter­ceiro com namorados( as).

Na prioridade familiar, destacam-se os pais, a cônjuge e os irmãos como destinatários das missivas dos combatentes confirmando a importância da família nuclear dos solteiros (escreviam preferen­cialmente aos pais e irmãos) e dos casados (escreviam preferencial­mente às mulheres) pois o contacto com outros graus ·de parentesco era mais fortuito.

Na prioridade de amizade, destacam-se as relações entre cama­radas de armas, muitas vezes construídas em França, expressas pela troca de missivas entre' militares do C.E.P. · e as relações existentes entre os sexos opostos expressas pelas missivas de galanteio, ainda não consolidado numa relação de namoro.

Na prioridade de namoro, salienta-se a troca de missivas entre autores de diferentes sexos, ou seja, eles e elas trocavam cartas de amor independentemente do local e da língua do destinatário.

Tendo em conta o tipo de destinatário das missivas (ambos os sexos, mais civil que militar, principalmente familiares e só depois amigos e namorados), a distribuição do local de destino das missivas confirma o desejo de contactar o mundo exterior ao da zona de guerra : a rectaguarda portuguesa era o primeiro local de ·destino das missivas, expressando uma forte necessidade de contacto com as ansiadas e distantes terra natal e gentes familiares; os campos de concentração alemães que mantinham em cativeiro camaradas portugueses eram os segundos locais mais contactados numa expressão

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de solidariedade ; as terras francesas ocupam o terceiro lugar e as terras inglesas o quarto lugar de destino pois aí estão os camaradas de armas e as namoradas de guerra ; os restantes lugares de destino (E.U.A., Brasil e Espanha) receberão missivas procurando manter laços familiares.

Quanto às missivas propriamente ditas, as suas características materiais e formais pautam-se por uma homogenidade frágil.

Materialmente, as missivas caracterizam-se pela uniformidade de suporte (sobretudo o papel de escrita vendido nas cantinas mili­tares) e da dimensão das missivas (em geral, os expedicionários escreviam missivas de dimensão média - quatro e duas páginas).

Formalmente, as missivas obedecerão a uma tendência mode­ladora mais flexível.

Em geral, a maioria das missivas iniciavam-se com um cabe­çalho semelhante de poucas variações :

«Meus querido'S pa.es do coração.

Os meus mais ardentes votos é que ao receber desta :minhá carta estejam na posse duma perfeita e felis saude assÍAm como meus queridos manos, eu bem felismente » ( 1 ).

Mas, a maioria das missivas não termina de forma semelhante, predominando a liberdade e a criatividade, embora um número significativo de missivas obedeça ao seguinte modelo:

ccMuitos abraços aos meus manos, beijinhos ao ]ose e ao Almiro ; muitas recommendações a toudos os ,meus tws e tias, primos e preimas, a todos os rapases e raparigas do meu tempo e a toda a nossa vesenhança. Meus queridos paes recebam uma [riscado] viva saudade e um grande A braço d' este seu quer.ido filho que já mais os esquesse e lhe deseja pedir a bençãon (2).

A utilização de um modelo de missiva, expresso na frequência de missivas de semelhanças externas, confirma a existência de um modelo de escrever missivas anterior à guerra e o recurso, por parte dos combatentes analfabetos, a «escrevedores profissionais», ou seja,

( 1 ) A.H.M., ob. cit., Caixa 86, Missiva de Manuel Martinho, 2.º sarg. n.º 198 da Ad.m. Militar do C.E.P., França, 15/8/918, p. 1 [para Jose Bartholomeu da Silva, Rua de Almodovar, Ourique, Alentejo- pai].

( 2 ) A.H.M., ob. cit., Caixa 86, Missâva de Manuel Martinho, 2.0 sarg. n.º 198 da Adm. Militar do C.E.P., França, 15/8/918, p. 4 [para Jose Bartholomeu da Silva, Rua de Almodovar, Ourique, Alentejo-pai].

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de camaradas que conheciam algumas letras escreviam nnssivas a troco de dinheiro ou de favores, adoptado sempre o mesmo modelo formal e só variando nos conteúdos.

A falta de instrução dos autores das missivas é também con­firmada pela qualidade da escrita.

Escritas em português (maioritariamente) e em francês de acordo com a nacionalidade do destinatário e as capacidades linguís­ticas dos autores, a qualidade da escrita (ortografia, construção de frases, ac~ntuação, pontuação, etc.) era diversificada mas predomi­nando o nível baixo, salvo algumas excepções.

Sendo maioritariamente escritas por praças de reduzida ins­trução, a escrita em português em geral era decalcada ·da oralidade (por exemplo, trocand<> os.· b pelos v) sem grandes preocupações pelas regras subjacentes à escrita e a escrita em francês que, em geral, fundia a língua natal com a estrangeira numa simbiose de má qualidade : muitas vezes a leitura da mensagem tornava-se impossível.

Conhecendo-se quem escrevia, para quem escreviam e como escreviam importa saber o que escreviam, ou seja, os conteúdos das missivas para compreender as funções que cumpriam as missivas no quotidiano de guerra.

Apesar do carácter individual de cada mensagem escrita, no conjunto das missivas consideradas salientam-se cinco grandes grupos de conteúdos, de diferentes naturezas e dimensões, a saber:

- em primeiro lugar, surgem as referências ao «quotidiano de guerra» ;

- em· segundo, a formulação de «pedidos»;

- em terceiro, a «prestação de informações»;

- em quarto, a manifestação de «queixas dos correios»;

- por fim, a expressão de «amor» ocupa o quinto e último lugar.

Sujeitos à v1vencia de um quotidiano diferente ao de paz, a realidade da guerra impõe-se como conteúdo das missivas.

Das múltiplas facetas do quotidiano de guerra, os combatentes i!entralizarão a sua atenção num conjunto mais restrito, expressão das preocupações e dificuldades mais sentidas pelos autores.

Neste contexto, o sistema de concessão de licenças de campanha será o assunto mais referido nas missivas. A ansiedade e o desejo de gozar licença de campanha em Portugal justificará as numerosas linhas escritas à família e ·amigos ·: ·

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- a falta de informação sobre os reqws1tos de usufruto da licença motivará o pedido de informações em Lisboa ou o pedido de diferentes quantias de dinheiro para a passagem terrestre;

- a concessão irregular de licenças de campanha motivará os protestos e ·as denúncias das situações de descriminação e de injustiça bem como aguçará o engenho criador de «esquemas» facilitadores de obtenção de licenças de cam­panha (por exemplo, fingir uma gravíssima doença familiar ou problemas graves jurídicos de herança).

A falta de saúde dos combatentes constituirá o segundo tema do quotidiano de guerra expresso nas missivas : a doença e os pe­ríodos de hospitalização motivarão as linhas escritas com a preo­cupação de sossegar a família.

Apesar de proibido pelo regulamento de censura postal, o tema da dureza dos «momentos de combate» estará bem presente nas missivas apreendidas. Numa tentativa de partilhar a experiência de guerra com pessoas que lhes são próximas e de materializar por escrito (exteriorizando) as impressões dos combates involuntaria­mente interiorizadas, as missivas vão ecoar os sentimentos, os desejos e as iras mais profundas dos autores. Em suma, a existência de algum abatimento moral esquecerá os perigos de punição por in­fringir o regulamento e levará a escrever linhas de desânimo face às características originais dos combates da grande guerra, ao esforço físico da vida na zona de guerra e à falta de meios humanos e materiais.

Dada a dimensão da batalha do Lys e das respectivas conse­quências na evolução da campanha, os autores também são escrever sobre o tema apesar da ameaça de punição : a simples referência ao facto (em geral, por praças) ou extensas narrativas descritivas e/ou explicativas ·do 9 de Abril de 1918 (em, geral, por oficiais) permitirão aos autores dar a conhecer informações cuja divulgação a censura da imprensa, vigente em Portugal, impedia.

Os problemas materiais como as carências alimentares e de fardamento também motivarão os autores a escrever : a queixa da fome devido à carência de pão e a denúncia ·da carência de roupa, expressa por pedidos de encomendas, encontrarão eco nas missivas.

Por fim, algumas missivas expressam relações individualizadas de combatentes com o sagrado : as preces privadas na zona de guerra e as orações de familiares na rectaguarda portuguesa (invocadas ou não pelos combatentes) afirmam-se como instrumento de apoio, de

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sobrevivência às agruras do quotidiano de guerra e confirmam a existência de alguma religiosidade em campanha.

Ao escreverem sobre o quotidiano de guerra vivido na Flandres, os expedicionários elegeram as missivas como instrumento de comu· nicação das preocupações mais prementes, das dificuldades mais sentidas e das consequentes reacções individuais com a rectaguarda portuguesa com os intuitos de partilhar experiências e sentimentos (numa tentativa de comunhão), de dar a conhecer realidades dife­rentes das vividas em tempo de paz (numa tentativa simultânea de identidade de campanha e de rejeição do conforto vivido na recta­guarda distante dos horrores da guerra). Deste modo, as missivas cumprem a função última de evasão do contingente.

Na tentativa de fazer participar aqueles que se encontram em espaços exteriores aos vividos pelos expedicionários, os autores vão formular uma série de pedidos de natureza interventiva diversa.

O principal pedido formulado pelos autores é o de recepção de missivas. Uma vez que a missiva era o único meio de comuni­cação entre o exterior e os expedicionários, fundamental à evasão da realidade da campanha, os autores raramente deixaram de re­clamar resposta breve às suas missivas, sendo muitas vezes a formu­lação desse pedido a expressão de ccterminus» da missiva.

No conjunto das áreas das notícias solicitadas, a família ocupa o primeiro lugar (sobretudo, o pedido de notícias sobre a saúde dos pais, da mulher e dos filhos) ; a terra natal (sobretudo, o pedido de notícias sobre os vizinhos e a produção agrícola) e o país (sobre­tudo, o pedido de notícias sobre a actuação do governo devido à falta de jornais e à censura da imprensa divulgada no sector do C.E.P.) ocupam o segundo fogar e o cativeiro nos campos de con­centração alemães (sobretudo, o pedido de notícias sobre o bem­-estar do destinatário e dos camaradas prisioneiros) ocupou o ter­terceiro lugar.

A formulação do pedido de dinheiro, por parte do autor, é motivada pelo desejo de gozar a lioença de campanha em Portugal.

Apesar de conscientes de sobrecarregarem o orçamento familiar (já não da família nuclear pois solicitam dinheiro a parentes de diversos graus), os combatentes formulam o pedido com o fim de comprarem o bilhete de comboio e o trajo civil, indispensáveis para atravessal'lem Espanha, dado o desejo forte de reencontrar a família e de afastamento da zona de guerra.

O pedido de visita breve é também formulado nas missivas com ·alguma insistência, nomeadamente quando relações de amizade e de namoro unem os autores e os destinatários : nalgumas missivas os expedicionários solicitam a visita de camaradas colocados noutras

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unidades (em geral, amigos de longa . data e naturais da mesma terra) ; noutras, em maior número, os expedicionários apelam à visita da namorada francesa e/ou inglesa ou vice-versa.

Por fim, o pedido de encomendas (sobretudo fotografias mas também jornais, tabaco brasileiro, roupa, etc.) completa o con­junto de formulações de pedidos comum às missivas trocadas com o exterior.

Deste modo, as missivas afirmavam-se como um meio de fazer intervir os destinatários na vida dos expedicionários (ao cumprirem o desejo formulado pelos autores) e um meio de aproximação entre o exterior e o espaço de guerra (através da partilha de desejos dos autores e da satisfação dos pedidos formulados pelos destinatários), esbatendo por uns instantes a distância entre os combatentes e ·a população exterior ao quotidiano de guerra.

A prestação de informações também motivarão os combatentes a escreverem missivas.

No conjunto diversificado de informações prestadas pelos auto­res salientam-se aquelas que abordam as seguintes áreas:

- diferentes informações sobre a campanha do C.E.P. (opera­ções militares, organização, promoções, deslocações de uni­dades, relações entre combatentes, actividades, relações com outros exércitos, etc.) ;

- as informações sobre camaradas de armas ;

- as informações sobre a família ;

- as informações sobre a política portuguesa de guerra ;

- as informações sobre a terra natal (produções agrícolas, celebração de noivados, actividades de vizinhos e amigos).

Desta forma, a prestação de informações por escrito permitia aos combatentes construir e/ ou manter contacto com o exterior: ao dar a conhecer a realidade da zona de guerra e ao manter-se a par da realidade da rectaguarda (.família, política portuguesa, terra natal) os autores extravasam o quotidiano de guerra a que · estão sujeitos numa manifesta atitude de evasão.

Esta necessidade de comunicar com o exterior justificará os autores ocuparem ias linhas das missivas com violentas queixas ·dos correios militares.

Longe da terra natal e restringidos a um. espaço militar limi­tado autoritariamente, os correios apresentaviam-se como o único instrumento de contacto com o exterior: interdito o correio civil

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e o clandestino pelas autoridades militares (receosas da acção de e1"pionagem inimiga), competia ao correio militar português levar as missivas dos expedicionários aos destinatários tal como fazer-lhes chegar às mãos as missivas a eles destinadas.

Mas, a tarefa desses correios será muito dificultada devido à falta de transportes marítimos e às greves dos funcionários desen­cadeadas em Portugal em 1918, envolvendo sempre a recepção do <'Orreio na zona de guerra portuguesa numa multiplicidade de sen­timentos.

Assim, a queixa de falta de missivas (respostas às enviadas pelos expedicionários) e dos atrasos dos correios militares portu­gueses vai ecoar nas linhas escritas da maioria das missivas.

A falta de confiança na acção dos correios oficiais originará acções desesperadas dos combatentes :

- a escrita de numerosas missivas para o exterior, apesar da demora das respostas, numa tentativa inconsciente de pres­sionar a troca de missivas ;

- o recurso ao correio civil francês (afrancesando o remetente de forma a não ser detectado pelos serviços de censura ou pedindo à população civil, sobretudo a feminina, de enviar as missivas escritas pelos combatentes para Portugal) e/ ou ao correio clandestino (os expedicionários que viajassem até Portugal em licença de campanha transportavam consigo missivas escritas pelos camaradas com o fim de apressar a recepção mas também com o fim de escapar à censura postal do C.E.P) sob a ameaça de punição disciplinar em caso de detecção da infracção pelas autoridade§• militares.

A queixa da acção da censura postal, do odiado traço vermelho ou azul, sobre as missivas escritas pelos expedicionários também será manifestada por escrito :

- os resignados com a situação criada pelas normas e punições previstas pela censura postal limitam-se a denunciar os limites à livre expressão escrita dos expedicionários numa tentativa de fazer compreender aos destinatários a impossi­bilidade de escreverem o que desejam transmitir;

- os rebeldes à imposição autoritária de limites à livre ex­pressão escrita preferem denunciar a situação e infringi-la conscientemente, quer utilizando o correio civil clandestino quer utilizando o correio oficial, apesar das possíveis puni·

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ções dada a necessidade individual e premente de explicitar protestos, sentimentos ou experiências interiorizados.

Por fim, a troca de missivas permitia construir ou manter rela­ções de 'amor entre os autores e os destinatários.

Todavia, o teor das :mensagens de amor serão diferentes, de acordo com o tipo de relação amorosa e a proximidade geográfica existente.

As relações entre casados e de longa distância (marido expe­dicionário e mulher em Portugal) são objecto de maior desgaste provocando queixas e ciúmes das mulheres e protestos e repreensões dos maridos que valorizam as agruras da experiência de guerra em detrimento dos sentimentos das mulheres em Portugal.

As relações entre não casados (namorados, amantes) e de curta distância (entre expedicionários e francesas ou inglesas) são objecto de maior atenção motivando a troca de missivas com declarações de amor, de organização de encontros amorosos e até com pedidos de casamento.

Apesar de reflectirem diferentes expressões amorosas, as mis­sivas afirmam-se como um instrumento importante à sobrevivência psicológica em campanha : centralizando a atenção individual e privada na construção ou na manutenção de relações amorosas, os expedicionários evadem-se dos elementos repressivos do quotidiano de guerra (supremacia do interesse colectivo e militar, imposto auto­ritariamente, e menosprezo da identidade individual e dos senti­mentos privados).

Podemos, assim, concluir que as características das missivas escritas e/ ou lidas durante os momentos de descanso fizeram do acto de troca de correspondência um autêntico instrumento de evasão: o contacto com o exterior ansiado, invejado e até odiado torna-se preferível à vivência ·da realidade contingente da zona de guerra.

Fontes:

Arquivo Histórico Militar, I Divisão, 35.• Secção, Caixas 85 e 86.

Arquivo Histórico Militar, I Divisão, 35.• Secção, Reservados n.• 13, Missivas recebidas pelo General Fernando Tamagnini de Abreu e Silva.

Arquivo Particular da Senhora DoUJtora Susana Silva, Diversas missivas de Alfredo Francisco Pereira, 2.º sargento da 3.º Companhia de Infantaria n.ª 2 do C.E.P., prisioneiro de guerra no campo alemão, Alemanha, 1918-1919; Diversas missivas recebidas por Alfredo Francisco Pereira, 2. º sargento da 3.• Companhia de Infantaria n.º 2 do C.E.P., prisioneiro de guerra 1W campo alemão, Portugal, 1918-1919.

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ALIANÇA ATLÂNTICA E MUDANÇA POLÍTICA EM PORTUGAL ( 1949-1961) - I. A METAMORFOSE

POLÍTICO-MILITAR DO SALAZARISMO NA DÉCADA DE 50

Cap. JosÉ MANUEL ALVES QUINTAS(*)

RESUMO

O período compreendido entre 1949 e 1961 corresponde a uma fase de estreita relação entre Portugal e a Aliança Atlântica. Atentando na relação entre o protagonismo militar e a mudança política, aqui se apresentam alguns resultados de uma investigação cuja problemática geral se enquadra no estudo dos factores transna­cionais de mudança dos regimes políticos, após a II Guerra Mundial. Apesar do carácter intergovernamental da Aliança Atlântica, e uma vez que os compromissos assumidos entre os diversos países envolvem a criação de processos de negociação e ajustamento mútuo, foi colo­cada a seguinte questão : como e até que ponto a relação entre Portugal e a OTAN funcionou como um indutor de mudança polí-tica de sentido democrático? ·

Aqui se conclui que a participação portuguesa na Aliança Atlântica, no período consderado, propiciou e ajudou a legitimar um conjunto de reformas afectando a superestrutura político-militar do regime e a orgânica do conjunto das Forças Armadas. Obser­vando o conteúdo daquelas Teformas foi possível detectar o estabe­lecimento de um novo consenso político-militar no seio do regime do Estado Novo -naquilo que corresponde ao que aqui designamos por uma metamorfose político-militar do salazarismo na década de 50, protagonizada pelo Ministro Santos Costa-, em resultado do qual (a) se consumou parte substancial do seu projecto político-

(*) Professor da Aoademia da Força Aérea, da Esc.ola Superior de Tecno. logias Militares Aeronáuticas e da Academia Militar.

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-militar original e ( b) se introduziram dispositivos institucionais que, levando a uma crescente autonomização da instituição militar, vieram a propiciar a manifestação de uma nova geração de chefes militares refractários aos propósitos do regme.

fNDICE

1. INTRODUÇÃO.

2. OS COMPROMISSOS DE PORTUGAL COM A OTAN.

3. A UNIDADE ORGÂNICA DO EXÉRCITO E A REESTRU­TURAÇÃO DO GOVERNO (1949-1950).

4. DA CRIAÇÃO DA FORÇA AÉREA PORTUGUESA À NOVA ccORGANIZAÇÃO DA NAÇÃO PARA A GUERRA» (1952-1956).

5. CONCLUSÕES.

l . Introdução

Ao aproximar-se o desfecho da II Guerra Mundial com uma previsível vitória Aliada, os vários círculos oposicionistas ao Estado Novo rejubilaram de esperança. A nova ordem mundial, com o predomínio das Democracias no Ocidente, viria decerto a impor uma transformação na natureza do regime político salazarista ; a Democracia -era essa a expectativa - viria a ser em Portugal o regime do próximo futuro.

Parece ter sido no protagonismo das chefias militares que se começaram por concentrar as atenções daqueles que acreditaram na possibilidade de uma mudança. Todas as esperanças acabaram defraudadas. O conturbado período político-militar aberto com as conspirações de 1944 - no sentido ·de pressionar Salazar a proibir a exportação de volfrâmio para a Alemanha - prosseguindo nas insurreições claramente destinadas a derrubar o regime ( Outu­bro de 1946 e Abril de 1947), acabou por se saldar num fortaleci­mento da posição de Salazar, na ascensão de Santos Costa à chefia do Ministério da Guerra, e na demissão compulsiva de cerca de duas dezenas de destacados militares oposicionistas (1).

( 1 ) Vidé José Medeiros Ferreira, O Comportamento Polltico dos Militares. Forças Armadas e Regimes Políticos em Portugal no Século XX, Lisboa, Edit~ rial Estampa, 1992, P'P· 223-233; acerca dos imediatos antecedentes. António José Telo. Portugal na Segunda Guerra (1941-1945 ), II vol., Lisboa, Vega, 1991, pp. 116, 121; pp. 133-141; para uma síntese cronológica das tentativas de izoloe de Bstado militar durante a Ditadura (1926-1974). ver Douglas L. Wheeler, "The Military and the Portuguese Dictatorship, 1926-1974: «The Honor of the Army»" in Lawrence S. Graham and Harry M. Makler (eds.), Contemporary Portugal. '(he .Revolution and lts Antecedents, Austin/London, University of Texas Press, 1979, pp. 191-219; 'PP· 210-215.

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Saneadas as chefias militares mais incómodas, ficou aberto aquele que viria a ser o mais longo período de acalmia nas relações entre a instituição militar e o regime salazarista - de Abril de 1947 a Maio de 1958 (2). Será, com efeito, na sequência da can­didatura do general Humberto Delgado às eleições presidenciais daquele ano, que se abrirá um novo ciclo de agitação político­-militar: às perturbações de Março de 19 5 9, sucede o assalto ao Santa Maria e, a culminar o processo, dá-se a revolta das principais chefias militares em Março-Abril de 19 61 - a «A brifuda de 19 61 », como viria a ficar conhecida - levando à demissão da equipa do Ministro da Defesa, general Júlio Botelho Moniz.

Assim, em síntese, no período compreendido entre o final da II Guerra Mundial e o inicio .da década de 60, é possível identificar três ciclos distintos quanto ao comportamento político dos militares: a um ciclo de forte agitação ( 1944-1947) sucede um de relativa acalmia { 19 4 9-19 5 8 ) , dando lugar a um novo ciclo de agitação ( 1958-1961 ).

É, pois, o período compreendido entre 1949 e 1961 balizado por processos de significativa mudança político-militar com especial significado no quadro das relações entre Portugal e a Aliança Atlân­tica: quando, em 1949, se dá a adesão à Aliança Atlântica, o regime salazarista acabava de vencer, por via administrativa, um conturbado período político-militar ( 1944-1947); no subsequente período de relativa acalmia {1949-1958) Portugal participou na criação da OTAN, em 1951, assumindo e cumprindo os subsequentes compromissos até 1961; na sequência do deflagrar da guerra em África e da Abrilada, veio a ser praticamente anulada a componente operacional da ·participação portuguesa naquela organização, ficando encerrado mais um ciclo de agitação entre as chefias militares { 1958--1961) (').

Maria Carrilho, num estudo sobre a mudança política em Por­tugal no século XX, tendo por objecto a relação entre a instituiQão militar e o regime político, detectou aquilo que designou pela « dete­rioração do controlo governativo sobre as Forças Armadas» por via

(2) 1! certo que ainda se voltará a sentir um ligeiro prenúncio de agitação ao emergir a questão da chefia do Estado, na sequência da morte do Presidente Carmona. em 1951, mas tudo serenará na sequência da escolha do seu sucessor, o general Craveiro Lopes.

(ª) A década da participação portuguesa na OTAN pode ser periodizada do seguinte modo: 1951 ·53 - Fixação dos Compromissos; 1954-56- Definição dos Compromissos; 1957-59 - Consolidação dos Compromi•ssos; 1960-61-Alte. ração dos Compromissos. Cf. Ernesto Ferreira de Macedo, Subsídios para o Estudo do Esforço Militar Português na década de 50 - Os Compromissos com a O.T.A.N., 1.0 vol., Lisboa, Estado Maior do Exército, 1988, p. 8.

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da integração de Portugal nessa Organização, precisando, entre as suas consequências, o «aumento do nível de demands de eficiência organizacional», o «crescimento do Corpo de Oficiais ( ... ) acom­panhada pela prevalência de critérios mais objectivos nas promo­ções» e, ainda, os «contactos dos oficiais com realidades políticas de várias democracias» ("' ) .

Mais recentemente, Medeiros Ferreira viria a indicar a «ten­dência para a autonomia da instituição militarr face ao regime salazarista» em resultado dos novos compromissos derivados da participação na Aliança Atlântica. Sobretudo por via do estudo dos mecanismos institucionais em funcionamento na <<Àbrüada» de 1961, Medeiros Ferreira identificou duas importantes inovações introduzidas após a entrada de Portugal na OT AN : uma nova superestrutura orgânica da Defesa Nacional e, ao nível interno das Forças Armadas, a existência de órgãos próprios de avaliação dos objectivos propostos pelo Governo ("').

A pertinente questão de fundo a que Maria Carrilho e Medeiros Ferreira aludem, subjacente às asserções referidas, pode ser colo­cada da seguinte forma : como, e até que ponto, funcionou a par­ticipação ·portuguesa na Aliança Atlântica como um indutor da mudança política no sentido da Democracia, vindo a transformar a instituição militar - uma instituição-chave da constelação de poderes do Estado Novo - e, por seu intermédio, a própria natu­reza do regime?

Com esta questão estamos a identificar de forma clara um dos canais políticos que ·se terão estabelecido entre Portugal e as demo­cracias do Atlântico, dando conta, aliás, da dúvida que o próprio Salazar terá tido ao receber o convite de Dean Acheson, em 15 de Março de 1949, para que Portugal subscrevesse o Tratado do Atlân­tico Norte, nas inerentes ameaças de «contágio» para o Estado Novo.

Se nos distanciar-mos da perspectiva que concentra o estudo da política internacional nas relações entre os Estados ( «state-centric view ») (6) para compreender os processos de mudança política - perspectiva no quadro da qual este problema não tem lugar, ou

( 4 ) Maria Carrilho, Forças Armadas e Mudança Política em Portugal no Século XX, Lisboa, Imprensa Nacional- Casa da Moeda. 1985, p. 470.

(~) Cf. José Medeiros Ferreira, Op. cit., «Capítulo X- Uma Autonomia Crescente», pp. 255-277.

(ª) Da chamada crescola realista» (na linha de autores como Ha1ns Mor­genthau (Politics among Nations. The Struggle for Power and Peace, t.• ed.: 1948), em cujas perspectivas mais puri:stas, se consideram os Estados como os únicos actores em política externa. Ver crítica eb, •por exemplo. Robert O. Keohane e Joseph S. Nye. Jr. (eds.), Transnatianal Relations and WnrTd Pnli­tics, Fifth printing, Cambridge, Mass., Harvard University Press (1970) 1981; PP· ix-xxix.

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se arruma em torno a explicações como a de invocadas «ingerências externas» - e encararmos as Alianças militares contemporâneas, e as organizações intergovernamentais delas decorrentes como a OTAN, como potenciais agentes de transformação inter e intra­·estados, então talvez ganhe outra pertinência a percepção desse tipo de instituições como indutoras de mudanças políticas ( actuando como instituições transnacionais) ( 1 ). Do ponto de vista metodo­lógico e disciplinar uma tal problemática é susceptível de tratamento num largo espaço de intercepção entre a História e a Sociologia no estudo daquilo que, no âmbito das relações civis-militares, se tem designado pelo . «protagonismo político dos militares» (8).

Com esse horizonte problemático por referência será aqui observado o papel desempenhado pela Aliança Atlântica na trans­formação institucional político-militar dos anos cinquenta, ficando para uma futura oportunidade o tratamento do problema da even­tual intencionalidade externa, bem como o dos efeitos da indu­zida modernização técnico-operativa, naquela que já foi justamente considerada como uma «revolução pacífica» ( 9 ), operada sobre os homens e as estruturas das Forças Armadas portuguesas Cº).

(T) Talvez também por aí, se possa vir a verter outra ·duz sobre algumas das razões que explicam a «impetuosa estratégia norte-americana [após a II Guerra Mundial] para tratar das questões europeias económicas e militares num plano marcadamente multilateral»; cf. José Medeiros Ferrei!ª• «As Rela­ções Luso-Americanas no Século XX - A Descoberta do Plano Bilateral», Ler História, n.º 25, 1994, rpp. 71-87; cf. p. 75. . ..

{ª) Na linha da preocupação com as ongens dos golpes rmhtares, ex-pressas em autores como S. Huntington (Political Order in Changing Societies, New Haven, Con., Yale University Press, 1968), M. Janowitz (The Military in the Development of New Nations: An Essay in Comparative Politics, Chicago, Ill., University of Chicago Press, 1977) ou R. Achene (The Likelihood of Coup~, Gower, Aldershot, 1982). Estudos algumas vezes realizados atentando em fac. tores exógenos, em estpecial no estudo das situações de intervencionismo militar no quadro de países com acentuada depndência político-económica; cf. J. Hartman. & P. Walters, «Dependence, Military Assistance and Development: A Cross-National Study», Politics and Society, 14, 1985, pp. 431-458; F. Cardoso, & E. Faletto, Dependence and Development in Latin America, Berkeley, Uni­versity of California Press, 1979; R. Evans & M. Timberlake, «Dependcnce, Inequality, and Growth of the Tertiary: A Comparative Analysis of Less Developed Countries», American Sociological Review, 45, 1980, •pp. 531-552.

( 9 ) Intervenção do Professor António José Telo (soz o título «Portugal e o Mundo da Guerra Fria») no Colóquio Internacional sobre o General Humberto Delgado, Lisboa, 1995, referindo-se às alterações da mentalidade do corpo de Oficiais por via dos contactos no seio da OTAN; vide registo vídeo do Arquivo da Biblioteca Museu República e Resistência, Lisboa.

( 10) O que espero vir a poder tornar público numa futura oportunidade, sob o título «Aliança Atlântica e mudança política em Portugal, 1949-1961- II. Uma década de participação portuguesa na OTAN, 1951-1961». Com esse texto se completará um nova versão, refundida e abreviada, de um relatório de investigação apresentado no âmbito do Semindrio de História das Relações Internacionais (Século XX) , Mestrado em História Contemporânea, realizado sob a orientação científica do Prof. Doutor José Medeiros Ferreira, intitulado «Aliança Atlântica e mudança política em Portugal, 1949-1961 » (Lisboa. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - Universidade Nova de Lisboa, 1994, polic.).

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2. Os compromissos de Portugal com a OTAN

Ao ser as.sinada em Londres, a 19 de Junho de 1951, a Con­venção entre os estados partes no tratado do atlântico norte reÚJtiva ao estatuto das suas forças ( ccEstatuto das Forças Armadas»), dá-se início ao processo de constituição da Organização do Tratado do Atlântico Norte ( OT AN) ( rn).

Poucos meses depois, em 20 de Fevereiro de 1952, ao reunir-se em Lisboa <> Conselho do Atlântico Norte, foram cometidas ao Exército português, a constituição, o treino e a capacidade de mobi­lização de uma grande unidade de nível Divisão, a ser atribuída como reserva do Comando do Centro da Europa, sendo ainda atri­buídas à Marinha portuguesa missões de luta anti-submarina e de patrulhamento integradas no Comando do Atlântico. Na reunião de Paris, de 15 a 18 de Dezembro do mesmo ano, é ainda atribuído a Portugal um sector de defesa dos Pirinéus - o ccSector de Bur­gete - Vale Carlos» - pelo que deveria ser constituído um <<Corpo de Exército» para aí actuar em caso de necessidade.

O Ministro da Defesa, Santos Costa, estabelecidos os primeiros compromissos, vai de imediato tomar medidas visando o seu rápido e integral cumprimento (12

). As.sim, pouco mais de um mês depois das decisões da reunião de Paris, o Ministério da Defesa Nacional distribuía uma Directiva intitulada «.O Esforço Militar Português», onde se procurava dar conhecimento aos órgãos executantes da natu­reza dos compromis.sos assumidos para que estes iniciem os respec­tivos trabalhos de planeamento.

Será um processo longo e difícil, só concluído em finais de 1954, inícios de 1955, depois de uma atribulada dança de pedidos de informação entre os vários departamentos superiores do Exército e do Ministério da Defesa Nacional ( 13

) •

(11) A Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) foi instituída por intermédio dos seguintes Documentos subscritos pelos países signatários do Tratado do Atlântico Nor-te: Convenção entre os Estados Partes no Tratado do Atlântico Norte relativa ao Estatuto das suas Forças (Estatuto das Forças Armadas), Londres, 19 de Junho de 1951; Convenção sobre o Estatuto da Organização do Tratado do Atlântico Norte, dos Representantes Nacionais e do Pessoal Internacional (Estatuto Civil), Otava, 20 de Setembro de 1951; e o Protocolo sobre o Estatuto dos Quartéis-Generais Militares Internacionais cr~ados em consequência do Tratado do Atlântico Norte, Paris. 28 de Agosto de 1952.

( 12) O processo de ratificação, ao contrário, viria a revelar-se moroso, só ficando concluído em 1955. Com efeito, apenas a 27 de Abril desse ano deram entrada na Aissembleia Nacional os Pareceres nos. 23, 24 e 25/VI emitidos pela Câmara Corporativa relativos aos ·textos das Convenções entre os Estados Partes no Tratado do Atlântico Norte.

( 18 ) Elucidar-se-á esse •processo noutra oportunidade (ver nota n.º 10). Interessará aqui salientar como, em rigor, o documento intitulado cO Esforço Müitar Português•, constitui o verdadeiro ponto de partida para o estudo do

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No entanto, a verdade é que o Governo português está, desde a assinatura do Tratado do Atlântico Norte, em 1949, e como que antecipando-se à constituição da Organização do Tratado do Atlântico Norte, em 1951, a introduzir profundas reformas na sua superestrutura político-militar.

3. À unidade organica do Exército e a reestruturação do Governo ( 1949-50)

Em 194 9, pôr fim à distinção entre o exército colonial e o exército metropolitano, na dependência respectiva do Ministério das Colónias e do Ministério da Guerra, era já uma velha aspiração de importantes sectores daquele ramo das Forças Armadas.

Aquela aspiração começara por ser, além do mais, a de muitos dos militares que haviam contribuído para o movimento militar de 2 8 de Maio de 19 2 6. O primeiro passo na direcção da unificação dos Exércitos Ultramarino e Metropolitano, com efeito, seria dado na sequência daquele movimento militar, ainda as armas não tinham regressado aos quartéis, ao serem extintos os quadros privativos coloniais (1'•). O propósito da unidade orgânica do Exército, porém, se chegou a existir, veio a ficar adormecido até ·que a Constituição de 19 3 3 o recuperou, ao recolher a doutrina segundo a qual a ccnação una serve o Exército uno». Mas, como em outros aspectos, o que aí estava inscrito era apenas isso: doutrina.

Tanto assim foi, que as mais importantes reformas militares após a institucionalização do Estado Novo, realizadas entre 19 3 7 e 1939, não viriam a avançar muito no sentido da adequação ao texto constitucional. Apesar de já se ter considerado ter-se dado aí início ao processo de integração dos exércitos ('13

), a verdade é que a distinção entre exército metropolitano e colonial não deixará de persistir ( 10

).

processo de participação portuguesa na OTAN. Cf. Ernesto Ferreira de Macedo, Subsfdios para o Estudo do Esforço Militar Português na Década de 50 - Os compromissos com a OTAN, vol. 1, Lisboa, Estado-Maior do Exército, Direcção do Serviço Histórico Militar, 1988, pp. 23-24.

(H) Decreto-Lei n.º 11 746, de 10 de Junho de 1926 (Base VI); ma!Illtendo-se a diistinção entre exérdto metr~litano e colonial.

( 13 ) Kaúlza de Arriaga, A De-tesa Nacional Portuguesa nos últimos Qua­renta Anos e no Futuro, Lisboa. 1966, 'P· 16.

( 18) Estas reformas, para além da supressão de várias unidades por razões orçamentais, e da introdução de uma :11JOva organização de armas e serviços, deixaram o território do continente dividido em qua•tro regiões mili­tares, com quartéis-generais no Porto, Coimbra, Tomar e ~vora, e um governo militar, com quartel-general em Lisboa. Os arquipélagos dos· Açores e da Madeira

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Foi no decurso da II Guerra Mundial que se deu o prenúncio­de uma mudança que poderia vir a ser mais duradoura. Ainda que, de início, com uma intenção legislativa algo contraditória (11

), acabou por se julgar conveniente colocar sob a autoridade do Ministro da Guerra, as forças militares estacionadas nas colónias até aí depen­dentes do Ministério das Colónias ( 18

).

Terminada a guerra, no entanto, apesar da experiência ter mostrado a vantagem de não manter situações propiciadoras de conflitos de jurisdição - como se dizia -, o processo acabará por ser revertido. Com efeito, o conturbado período das conspirações militares de 1944-47, acabará por se saldar, para além das sensíveis alterações nas relações civis-militares dentro do regime, no estabe­lecimento da anterior separação orgânica dos exércitos metropoli­tano e colonial, da tradicional orgânica militar portuguesa ( 19

).

Em tão atribulada conjuntura político-militar merece destacar uma das poucas vozes que se levantou na Assembleia Nacional contra a reposição da antiga orgânica, a do deputado brigadeiro Craveiro Lopes, que levará aliás bem longe a ideia de concentração orgânica ao defender a constituição de um departamento de defesa nacional, e ainda a sugerir a constituição de uma Força Aérea, como ramo independente do Exército e da Marinha ( 20

).

ficaram dotados de dois Comandos Militares , com os respectivos quartéis­-generais em Ponta Delgada e no Funchal - Lei n.º 1960, de 1 de Setembro de 1937; Decreto-Lei n.º 28 401, de 31 deDezembro de 1937; Decreto-Lei n.º 29 957, de 6 de Outubro de 1939; Decreto-Lei n .º 29 686, de 14 de Junho de 1939.

( 17 ) Ainda antes de deflagrar o conflito mundial foi nomeada uma comissão militar especial para estudar o problema da defesa dos territórios de além-mar. Sem que a referida comissão tivesse dado por concluído o seu estudo, é publicada legislação onde se fixava que por cada agrupamento de quatro com•panhias de caçadores e uma de engenhos, seria criada em Angola e Moçambique uma Inspecção de Infantaria; em caso de guerra, ou em estado de sítio, o respectivo Inspector assumiria o comando das tropas. Decreto-Lei n.º 29 685, de 14 de Junho de 1939.

( 18 ) O Decreto-Lei n.º 32 157, de 21 de Julho de 1942, estabeleceu que ficasse a cargo do Ministro da Guerra a superintendência técnica, administrativa e fiscalizadora sobre todos os serviços militares, com a excepção dos navais. A administração e o emprego das forças ficava a cargo do governador da res­pectiva colónia, mantendo-se. assim. a sua competência definida no artigo 34.º da Carta Orgânica do Império Colonial Português. ~ de notar ainda que o território de Mocambique não deixava de estar parcialmente dotado de forças militares dependentes das Companhias Majestáticas (Beira e Niassa), e que a transferência de competências não podia ser tomada como definitiva, manten­do-se nominalmente a distincão entre exército metropolitano e colonial.

( 19) Decreto-Lei n.º 36 071, de 30 de Dezembro de 1946. Voltaram à depen. dência exclusiva do Ministério das Colónias todos os Serviços Militares de Angola, Moçambique, Macau e Timor.

( 2 0 ) O então deputado Craveiro Lopes, saudando a inauguração da carreira aérea entre Lisboa-Luanda-Lourenço Marques, e referindo-se à colocacão dos assuntos respeitantes à aeronáutica civil dentro da orgânica do novo Ministério das Comunicações, afirmará a dado passo ser desejável «a concentração, em um só departamento, de todos os elementos que trabalham no ar, a fim de que

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Mas eis que, logo após a assinatura do Tratado do Atlântico Norte, a primeira medida legislativa de vulto no domínio militar, será precisamente a transferência definitiva de todas as ccforças mili­tares coloniais» ·da dependência do Ministério das Colónias, e do Gov·ernador .do respectivo território, para o Ministério da Guerra ( 21

).

Que relação havia entre a obtida unidade de direcção ministerial sobre a orgânica do Exército e a inserção de Portugal na Aliança Atlântica? Nem o Tratado assinado exigia tal inserção, nem a lei a invocava ; algo mudara porém, de forma sensível, na correlação de forças internas ao regime, ou na postura de alguns dos seus mais destacados protagonistas, em evidente deriva para novos entendi­mentos ('22

).

Mas outras reformas se preparavam já na orgânica do Governo bulindo com as pastas ministeriais concernentes às Forças Armadas. No Verão de 1950, o Ministro da Guerra, Santos Costa, fez aprovar em Conselho de Ministros, uma verdadeira revolução prenhe de consequências no futuro das relações entre a direcção política e as chefias militares.

Um observador mais desprevenido podia ser tentado a ver na reforma uma simples actualização de conceitos, ou uma trivial ope­ração de cosmética : no lugar do Ministério da Guerra surgia o Ministério do Exército, sendo criado um Ministério da Defesa Nacional, com Santos Costa a transitar para a nova pasta. A reforma tinha, todavia, um outro alcance: além da organização da Presi­dência do Conselho ter passado a compreender os cargos de Ministro <la Presidência e de Ministro da Defesa Nacional (2"), foi criado um

se possa tirar deles o maior rendimento e justificar o sacrifício financeiro que o país terá de fazer, caso deseje acom•panhar os progressos extraordinariamente rápidos da aviação, sendo (ainda) preciso ... coordenar ... e ainda assistir à criação de um grande departamento de defesa nacional, onde poderiam viver irmanados ... o Exército, a Marinha e a Aviação ... » Diário das Sessões, n.º 69, 194647, p. 216; cf., com comentários de Viriato A. Tadeu in Quando a Marinha tinha asas ... -Anotações para a História da Aviação Naval Portuguesa (1916-1952), Lisboa, Edições Cui.turais da Marinha, 1984, pp. 376-377.

(21) Decreto-Lei n.º 37 542, de 2 de Setembro de 1949. r( 22 ) Recorde-se que o general Norton de Matos se encontrava de há muito

entre os que mais destacadamen·te haviam proposto e saudado a reforma do cexército único•, entendendo-a como uma exigência que decorria da necessidade de pôr termo à •'política colonial», para passar a haver apenas uma «política nacional». A sua concepção assentava em três pilares de alcance não estrita­mente militar: autonomia administrativa de cada uma das partes da Nação, civilização dos habitantes que os portugueses encontraram, e povoamento branco; cf. Norton de Matos, A Nação Una-Organização Política e Adminis­trativa dos Territórios do Ultramar Português, prefácio do Professor Egas Moniz, Lisboa, Edição de Paulino Ferreira, Filhos, 1953.

( 23 ) Decreto-Lei n.° 37 909, de 1 de Agosto de 1950, Art. 2.°.

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Subsecretariado de Estado da Aeronáutica ( 24), na imediata depen­

dência do Ministro da Defesa Nacional, dadas como extintas as Majorias-Generais do Exército e da Armada e ainda instituído um Secretariado-Geral da Defesa Nacional (25

).

Para que servia este Secretariado-Geral da Defesa Nacional? -u articulado legislativo estabelecia que este era o órgão de estudo e de trabalho do Ministro da Defesa Nacional, ficando sob a direcção de um oficial general, cccom a designação de chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas» ( CEMGF A), a quem competia cctrans­mitir e executar as instruções do Ministro relativas à coordenação da actividade dos Ministérios ·do Exército e da Marinha e do Subse­cretário de Estado da Aeronáutica».

Virá esse órgão a surgir dotado de um vasto leque de compe­tências no âmbito dos cc altos problemas da defesa nacional» (2º), surgindo desde já o Ministro da tutela com a competência especial de cccoordenar as actividades relativas à preparação militar da Nação em harmonia com os tratados e convenções militares» ( 21

). Ficava claro um dos propósitos do Ministro Santos Costa: a participação de Portugal na Aliança Atlântica iria ficar sob a sua estrita direcção e vigilância político-militar.

Que reacções suscitaram as anunciadas reformas? Importantes sectores militares, tomando as reformas como suas, saudaram-nas com entusiasmo. Entre estes cumpre destacar o influente grupo da Revista Militar, que, por intermédio do general Ferreira de Passos, destacava caber àquela revista cca honra ( ... ) de ter precedido qualquer legislação doutrinária ou coerciva, destinada a reunir em ambiente comum, oficiais de terra, mar e ar» (2ª). Na sua perspec­tiva, eram as novas realidades tecnológicas, e a própria geografia, que o impunham: ccA transformação da táctica de duas para três dimensões, a extensão dos campos de batalha cujas retaguardas terão sempre uma parte oceânica, as coligações a que são forçadas, pela geografia, as mais heterogéneas nações, obrigarão a um tipo inter-

( 2•) Idem, elste Subsecretariado de Estado seria provido logo que fosse decretada a reorganização das forças aéreas (Art. 8.°).

( 25 ) Idem, Art. 7.°; o Decreto-Lei n.º 37 955, de 9 de Setembro de 1950, viria a definir com detalhe a organização e as atribuições do Secretariado-Geral da Defesa Nacional (SGDN).

( 26) Viria a estabelecer-se, por exemplo, que «nas zonas de particular interesse para a defesa e em tudo o que reS'peita a grandes obras de caminhos de ferro, portos ou rios não poderão ser iniciados novos empreendimentos sem a concordância do Secretariado-Geral da Defesa Nacional»; Decreto-Lei n.º 37 955, de 9 de Setembro de 1950, Art. 3.º.

( 27 ) Decreto-Lei n.º 37 909, de 1 de Agosto de 1950, Art. 6.0, § único, e).

( 2ª) Alvaro Telles Ferreira de Passos, «A Revista Militar perante o Secre­tariado Geral da Defesa Nacional», Revista Militar, n.• 1, Janeiro de 1951, pp. 9-·12; cf. IP· 10.

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mutável de organização militar consequente dos meios e armamentos a utilizar e forçarão a centralizações de direcção da Guerra, nos campos técnico, político e administrativo, em cada uma dessas

- (29) naçoes ». As maiores ohjecções à nova orgânica, que não passaram des­

percebidas a estrangeiros, viriam a surgir nos meios militares navais Cº). Talvez porque tivesse uma maior tradição de autonomia face ao poder político, a verdade é que a Marinha era, de facto, o ramo que oferecia maior resistência à concentração de poderes em organismos como o Ministério da Defesa, a nível político, ou o Estado-Maior General das Forças Armadas, a nível militar.

Um dos militares da Marinha que viveu o processo, Viriato Augusto Tadeu, trinta e cinco anos depois da adesão de Portugal à Aliança Atlântica, deixava · ainda tombar, no seu estilo peculiar, uma sofrida interpretação daquele que considerou como um dos seus efeitos colaterais negativos: «esse passo transcendente da polí­tica nacional (a integração de Portugal na Aliança) buliria com a orgânica da Defesa Nacional, libertando o braço e o gládio acutilante que sempre pendeu sobre o frágil escudo de protecçã<> da Aviação Naval» (81

). Na sua opinião, a reformulação orgânica do Governo, era o prenúncio de uma «manobra político-administrativa» no sen­tido da fusão das aviações ( aa).

A «manobra», como lhe chamou Augusto Tadeu, iniciada em Agosto, com a introdução de alterações à orgânica do governo, prosse­guiria em Setembro na sua componente militar, ao serem estabele­cidas a organização e as atribuições do Secretariado-Geral da Defesa Nacional. Ainda nesse ano · deu entrada na Assembleia Nacional a proposta de Lei relativa às Bases da Defesa Nacional. O seu preâmbulo vai provocar declarações de voto na Câmara Corporativa pelos comandantes Lopes Alves e Quelhas Lima, em que se questiona o conceito de «coordenação» apresentado na referida proposta de lei.

(29) Idem, op. cit., p. 9; ver também «Crónica Militar-Ministério único da Defesa Nacionãh, Revista Militar, 1951, pp. 855-6, em que é invocado o exemplo da Fránça no Ministério sob a presidência de Pleven - com a consti· tuição das duais vice-presidências do Conselho: a económica e a da defesa nacional- e ainda, «Supremacia Aérea e Supremacia Marítima-a S.• Arma dos Exércitos e o Ministério da Defesa Nacional», Revista Militar, 1952, pp. 585 ss ..

(ªº) O embaixador da França, por exemplo, fazia saber ao seu governo que as «reformas em curso ou em gestação irritaram profundamente os meios marítimos e, estes desejariam encontrar na execução das obrigações derivadas do Pacto Atlântico uma oporttllilÍdade salutar de renovação para a Marinha q>ortuguesa»; citado por José Medeiros Ferrera, Op. cit., p. 256.

(31) Viriato A. Tadeu, Op. cit., p. 382. ( 12 ) No que seguia de perto o exemplo da «manobra» francesa de fusão

das aviações. Viriato Tadeu, na «Justificação» com que abre a sua obra, confessa expressamente a influência recebida pelo livro Aeronavale ( 1915-1954) do oficial de marinha aviador Albert Vullier {p. XXVIII).

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Será o então coronel Humberto Delgado, como relator do res­pectivo Parecer da Câmara Corporativa, quem vem em auxílio do Ministro Santos Costa, ao discorrer sobre os conceitos de um Minis­tério da Defesa coordenador de funções ou de concentração de pode­res, acabando por concluir ser o tipo adoptado, dada a existência dos Ministérios do Exército e da Marinha, o de ccMinistro coorde­nador». Assim, esta reforma, argumentava ainda Humberto Delgado, para além de fazer emergir o conceito de cccoordenação inter­-Ramos», permitia também cc o aparecimento de interlocutores nacio­nais similares aos seus homólogos dos países da Aliança Atlân­tica» ( 83

).

4. Da cri.ação da Força Aérea Portuguesa à nova «Organiuu;ão da Nação [>ara a Guerra» (1952-1956)

Depois de estabelecida a unidade orgânica do Exército, da con­centração política de poderes no Ministério da Defesa Nacional, e do poder militar no CEMGF A, as reformas vão prosseguir, em 1952, com a criação da Força Aérea como ramo independente das Forças A:r:madas. A solução adoptada vai ser a da fusão da Aero­náutica Militar (uma das Armas do Exército) com a Aviação Naval.

Na sessão de Assembleia Nacional, realizada em 24 de Janeiro de 1952, chegou à Mesa a proposta de Lei do Governo sobre a organização geral da Aeronáutica Militar (3""). No respectivo rela­tório preliminar eram apresentados os fundamentos e objectivos do articulado posto à consideração dos deputados : «a primeira das grandes linhas das propostas, consiste em que ( ... ) a organização das forças aéreas não tem um sentido metropolitano restrito», pelo que a aeronáutica portuguesa deveria ser capaz de «enxergar e sentir simultaneamente todos os territórios nacionais, de aquém e de além-mar» c ·S),

O argumento da vantagem da unidade orgânica da aeronáutica, surgia depois desenvolvido em torno de um misto de critérios técnico-económicos e de argumentos retira·dos das relações externas ; st.ria por intermédio da unidade orgânica das aviações militares que melhor se aplicaria eco princípio da economia das forças», enquanto,

(U) José Medeiros Ferreira, Op. cit., p. 255. ( 14) Didrio das Sessões, n.º 126, 24 de Janeiro de 1952, pp. 293-301; como

vimos (nota 24), a reorganização das forças aéreas tinha sido prevista no Decreto. -Lei n.• 37 909, de 1 de Agosto de 1950.

(ª') Idem, 'PP· 28Pr293.

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nas relações externas, a garantia dada por uma «inteligente política de amizade peninsular» havia reduzido ao «tipo expedicionário as hipóteses de guerra a prever» ( 36

).

Mas seria aludindo aos compromissos, entretanto assumidos no seio da OTAN, que o argumento da «economia das forças» ganhava contornos mais precisos: porque «temos de colaborar na luta anti­-submarina e assumir parte da responsabilidade da defesa das comu­nicações marítimas dentro de determinada zona [na área de res­ponsabilidade do Atúintic Cormmand ( ACLANT)], verificamos ter de ser superior ao de aviões o número de unidades navais a aumentar ao efectivo». Ora, em tais circunstâncias, argumentava-se, havia que evitar o perigo, a persistirem separadas as duas aviações, de estas poderem vir a definhar ; do mesmo modo que os compromissos já assumidos «em relação às forças terrestres, tornaram impossível a regular renovação e modernização de material» da Aeronáutica Mi­litar portuguesa (31

), também os que se assumiram para a Marinha, não . parecem aconselhar que esse ramo «gaste as suas reduzidas possibilidades de efectivos em guarnecer totalmente uma pequena força aérea que poderia, sem dificuldade de maior, ser posta à sua disposição pelo Subsecretariado de Estado da Aeronáutica» ( 38

).

A reacção da Marinha, uma vez mais, não se fez esperar. Quando a Câmara Corporativa produziu o Parecer n.º 27, em apoio ao sentido geral da Proposta de Lei, logo se produziram três decla­rações de voto rde viva contestação ao sentido geral da solução pre­conizada pelo Governo ; inicialmente apresentada pelo procurador Joaquim de Sousa Uva, surgia também subscrita pelos procuradores João Francisco Fialho e José Tristão de Bettencourt ( 39

). Segundo aquela declaração de voto, ao contrário do que se defendia na pro­posta do Governo, a preparação, utilização e administração das forças aéreas de cooperação naval deveria permanecer na depen­dência da Marinha. O essencial da contra-argumentação era apre-8entado nos seguintes termos : as novas realidades tecnológicas - os torpedeiros, contratropedeiros, unidades submarinas, e o desenvolvi­mento da aviação - haviam imposto ao moderno combate marí­timo a noção de «poder aeronavaln, fazendo com que as armadas passassem e ser constituídas por forças capazes de actuar nas três

( 81 ) Ibidem. (") O argumento referia-se à Aeronáutica Militar do Exército; recorde-se

que a Aviação Naval havia sido recentemente dotada com 24 aviões monototores de bombardeamento picado e luta anti-submarina Curtiss Helldiver SB2C-5.

(18) Diário das Sessões, n.º 126, 24 de Janeiro de 1952, p. 288. (aD) e Parecer n.º 27/V - Proposta de lei n.º 186» in Diário das Sessões,

n.º 131, 3 Março de .1952, pp. 399-417.

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.dimensões: à superfície, em profundidade, e no ar. No caso .por­tuguês, por razões técnicas decorrentes da natureza aeronava! do teatro de operações, aquela tríplice função deveria ser concentrada num único órgão, dado que <<a preparação das forças aéreas para a luta sobre o mar ( ... ) e, em especial, para a acção anti-submarina requer um alto nível de especialização que, para ser atingido, exige dos oficiais não apenas formação naval escolar, mas efectivo e prático conhecimento dos métodos e tácticas navais de ataque e defesa» (4°). ·

Assim, se era verdade que a integração das forças navais nos comandos navais da OTAN poderia vir a dar forte satisfação pro­fissional aos quadros da Marinha, face à proposta de extinção da Aviação Naval, acabava por se confirmar o pressentido dois anos antes pelas chefias militares navais.

Humberto Delgado, relator do referido Parecer, ainda acres­centou na sua declaração de voto, em defesa da proposta governa­mental, «que, trabalhando há uma dezena de anos em contacto com técnicos da aviação de todo o Mundo, não encontrou um que, ao conhecer a situação portuguesa, não achasse extraordinário ·que se mantivessem separadas duas forças aéreas tão pequenas. O caso de forma mais flagrante se repetiu quando se tratou do fornecimentó de material aéreo pela Inglaterra a Portugal, como consequência dos acordos de 1943, ao virem para o País pequenas quantidades de aviões iguais, destinados a dois Ministérios diferente$» (<41

).

Uma critica mais detalhada às objecções que haviam sido pro­nunciadas na Câmara Corporativa, virá ainda a ser apresentada por uma Comissão constituída pelo tenente-coronel Venâncio Deslandee, e pelos majores J. S. Corte Real e Fernando P. Resende. No Memo­randum que produziram era liminarmente rebatido o argumentó técnico : a ameaça submarina nas nossas águas, afirmaram, não esgotava o campo das ameaças. E logo se levantava a seguinte questão baseando-se na importância da Defesa Aérea: «e se não se fizer sentir a ameaça submarina nas nossas águas e antes viermos a sofrer repetidos ataques aéreos aos nossos pontos vitais, que apli­cação terá a aviação naval integrada na Marinha?».

A contra-argumentação prosseguia afirmando que o Subsecre­tariado estaria em melhores condições para guarnecer a aviação de cooperação naval. O critério da Marinha na formação de pilotos era o de formar primeiro marinheiros e depois pilotos, enquanto o do Subsecretariado, argumentava-se, era mais expedito porque os ia

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('º) Idem, p. 411. ( 41 ) Idem, p. 417.

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buscar directamente à vida civil. Uma vez que «OS padrões OTAN» iriam exigir à Marinha juntar um grande número de pilotos aos seus quadros, estaria o Subsecretariado em melhores condições para os prover de forma económica e expedita. Era necessário, portanto, por economia de meios - no que se reiterava o relatório do go­verno - mas também por maior rapidez e eficiência na adesão aos padrões da OTAN, caminhar na direcção de uma força aérea unificada.

Como Sousa Uva se havia baseado nos exemplos dos EUA, França e Holanda - países onde as forças aéreas de cooperação naval se mantinham integradas nas suas Marinhas -, a «Comissão Deslandes», respondia invocando os exemplos da Inglaterra, Canadá, Suécia, Noruega, Espanha, etc., onde as forças aéreas de cooperação não estavam integradas ( "42).

A polémica acabará por desaguar na imprensa, em especial no Diário de Notícias, onde Maurício de Oliveira - um jornalista com boas relações com o almirante Quintanilha - desencadeou uma campanha em prol da manutenção das Forças Aéreas Navais (4ª).

Em meados de Março, as propostas de Lei do Governo e res­pectivo Parecer da Câmara Corporativa foram postos à discussão na Assembleia Nacional. Quando se esperava uma tumultuosa dis­cussão, logo a abrir o debate, surgiu um novo e surpreendente argu­mento em defesa das propostas do governo.

O presidente da Comissão de Defesa Nacional da Assembleia, brigadeiro Frederico Vilar, antes de pôr as propostas legislativas do governo à discussão na Assembleia, começou por se pronunciar nos seguintes termos acerca da relação entre Po-rtugal e a Aliança Atlân­tica : «a política externa portuguesa dos próximos vinte anos será nitidamente dominada pelo Pacto do Atlântico, com todos os seus naturais reflexos na rpolítica interna do País» {'4

). Ao concluir,

( 42 ) Cf. Dossier cFusão da Aeronáutica Militar com a Aviação Naval•, Arquivo Histórico da Força Aérea, Força Aérea Portuguesa, 1952; Edgar Cardoso, História da Força Aérea Portuguesa, 1 vol., pp. 121-128.

( 43 ) Ver Maurício de Oliveira, Em Defesa de uma Política Naval, 1959; Cf. também Fernando Valença, As Forças Armadas e as Crises Nacionais. A Abrilada de 1961, Lisboa, Publicações Europa-América, s. d., p. 72. Os artigos na imprensa geral e da especialidade sucederam-se dando eco aos mais variados matizes na defesa de uma ou outra das posições: cf. José Maria Ponte Rodrigues, «A reorganização das Forças Aéreas Portuguesas», Revista do Ar, Janeiro de 1952, p,p. 7-9; J. Correira Pereira, «A Aviação não deve desaparecer», Primeiro de Janeiro, 4 de Janeiro de 1952; «Rotina Aeronáutica», Diário do Nort~ 16 de Janeiro de 1952; «O domínio do ar», Diário Popular, 28 de Janeiro de 1952; cOrganização da Aeronáutica Militar•, Primeiro de Janeiro, 22 de Fevereiro de l'J52; cOrganiização da Aeronáutica Militar•, O Século, 7 de Fevereiro de 1952; cA Aviação Naval», Diário de Lisboa, 12 de Fevereiro de 1952; etc.

(~) Didrio das Sessões, 137, 15 de Março de 1952, p. 526.

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acabará por deixar tombar aquela que, afinal, seria a ultima ratio das propostas do Governo: «como signatário do Pacto do Atlântice> Norte, tem o governo de dar cumprimento aos compromissos assu­midos. ( ... ) Se atendermos a que a modalidade da nossa cooperaçãe> no seio da organização criada poo.- esse Pacto foi superiormente indicada ( ... ) só podiamos contar com possíveis aquisições de mate­rial de guerra, sobretudo aeronáutico, nos mercados inglês e norte­-americano, e estes, por agora só estão em condições de fornecer na medida em que esse material interessa à satisfação da colaboração pedida ( ... ) lastimo que não seja do interesse nacional poder for­necer, em sessão pública desta Câmara, elementos mais detalhados a tal respeito, e que o governo tem por confidenciais, pois ficariam VV. Ex.as em melhores condições de poder avaliar a oportunidade das duas propostas de lei (relativas à organização geral da aeronáu­tica e ao recrutamento e serviço militar nas forças aéreas) que o Governo submete hoje à apreciação desta Câmara. Lastimo, mas compreendo» (~ ).

Ficavam as propostas de Lei do Governo instaladas em forta­leza inexpugnável, com o argumento das obrigações condifenc'iais pairando em vigília. Ainda se seguiu acesa discussão - por efeito de inércia, ou pelo desejo de deixar bem vincadas as respectivas razões - com os deputados Botelho Moniz, Quelhas de Lima e Lopes Alves a rejeitarem vigorosamente o projecto da fusão. Os pro­jectos de lei do governo acabariam por vingar, sem sobressaltos de maior c·6

).

Nas páginas da Revista Militar, vem então o coronel Linhares de Lima colher os louros da vitória salientando, em reflexão acerca do alcance último• do conjunto das recentes reformas, quer na super­estrutura político-militar, quer na própria orgânica militar, afir­mando que finalmente se «inicia um novo período na evolução das instituições militares portuguesas». Deixando em silêncio as mais recentes alterações na orgânica das forças aéreas, ainda assim se proclamava que as últimas peças legislativas representavam «O desen­volvimento ordenado de uma doutrina fixada na Constituição Polí­tica de 1933, com começo de realização preparatória pelo Decreto de Setembro de 1949». Ou seja, a via da unidade orgânica do Exército chegava finalmente ao seu termo, na própria contaminação obtida na unidade orgânica das aviações milit•ares. Reiterava-se uma

(•~) Ibidem. (H) A organização geral da aeronáutica militar foi promulgada na Lei

n.• 2055, de 27 de Maio de 1952, enquanto as regras sobre recrutamento e serviços militares nas forças aéreas foram promulgadas pela Lei n.º 2056, de 2 de Junho do mesmo ano.

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vez mais o desígnio perseguido e finalmente atingido - «À Nação una serve o Exército uno» - acrescentando-se, numa alusão à par­ticipação portuguesa na Aliança Atlântica: «em caso de conflito internacional em que Portugal tenha de tomar parte ao lado das Nações aliadas, todas podem ser destacadas para os teatros de ope­rações em que se mostre necessária a sua cooperação» (41

).

A obra legislativa da Defesa Nacional no pós-guerra virá a ficar coerentemente consagrada, em 1956, quando o Ministro Santos Costa vê decretada pela Assembleia Nacional, e promulgada por Oliveira Salazar, as novas bases da «Organização da Nação para a Guerra» (4ª).

Aí se consagra que a estrutui.ia orgânica da Defesa Nacional é una para todo o território (Base IV), bem como o essencial da superestrutura político-militar, na orgânica inter-ramos definida na sequência da legislação de 1950. No Título II da referida Lei, no entanto, ao definir-se a composição e atribuições dos órgãos supe­riores de coordenação da defesa nacional, emerge um órgão com reforçada composição militar: o Conselho Superior Militar (Base XV), composto pelo Ministro da Defesa Nacional - ·que presidirá na ausência do Presidente do Conselho - e pelos titulares dos departamentos do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, pelo Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, bem como pelos Chefes de Estado-Maior dos três Ramos ("'º).

Ainda antes do afastamento de Santos Costa da pasta da Defesa, em 1958, vai assistir-se à reorganização da Força Aérea em 1956--1957, visando o previsível cenário de guerra em África. Com o mesmo propósito, serão estabelecidas novas funções e organização no Ex~rcito, mas já por intermédio da equipa «reformadora» que lhe sucede, sob a direcção do seu ex-chefe do Estado-Maior General

('") Linhares de Lima, «Organização Militar una em todo o território nacional», Revista Militar, 1, 1953, pp. 7-11; cf. ~- 9.

(-4ª) Lei n.º 2084, de 16 de Agosto de 1956. (") O Conselho Superior Militar era uma metamorfose do Conselho

Superior de Direcção de Guerra previsto na Lei n.º 2024 de 31 de Maio de 1947. Recorde-se que o CSDG, entre 1947 e 1952, fora constituído pelo Presidente do Conselho, que presidia, pelos Ministros da Defesa Nacional, do Exército, da Marinha e dos Negócios Estrangeiros, Subsecretário de Bsitado da Aeronáutica, Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas e, quando os assuntos a tratar respeitassem ao ultramar, pelo Ministro das Colónias. Com a Lei n.º 2051 de 15 de Janeiro de 1952 adoptou a designação de Conselho Superior Militar (Base III) ficando •previsto que o Ministro da Defesa pres•idiria tna falta do Presidente do Conselho de Ministros; a presença dos Mdnistros dos Negócios Estrangeiros e do Ultramar ainda podia ser solicitada, quando oo assuntos a versar tivessem interesse para os respectdvos departamentos.

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das Forças Armadas, Júlio Botelho Moniz C'º); não serão tocadas as novas bases da ccOrganização da Nação para a Guerra», promul­gadas em 1956.

5. Conclusões

Na breve digressão retrospectiva realizada pelas :reformas mili­tares do segundo pós-guerra foi possível identificar três importantes transformações : a obtenção da unidade orgânica do Exército ; a alteração da superestrutura orgânica da Defesa Nacional; e a criação da Força Aérea como ramo independente das Forças Armadas.

A obtida unidade orgânica do Exército apresentava uma clara linha de continuidade com o propósito dos fundadores do regime em 1926, e que viria a ter acolhimento constitucional, em 1933, na proclamada ·obediência ao princípio ccPátria una, Exército uno». Apesar de aquela reforma estar inscrita na matriz do regime, e de ter sido reivindicada durante anos por significativos sectores polí­tico-militares, importa sublinhar que esta só veio a ter um princípio de efectiva concretização em 1949, depois de sucessivos adiamentos, tentativas e retrocessos. O seu mais importante retrocesso, recor· de-se, havia ocorrido no quadro da crise político-militar do imediato pós-guerra (1944-1947).

Se para a obtenção da unidade orgânica do Exército não foram invocados compromissos decorrentes da participação portuguesa na Aliança Atlântica, o mesmo não aconteceu na 1alteração da super­estrutura orgânica da Defesa Nacional e na fusão das aviações mili­tares na Força Aérea Portuguesa.

A primeira alusão aos compromissos assumidos com a Aliança teve, como vimos, a sua primelÍra expressão aquando da introdução de alterações à orgânica do Governo, em 1950. A necessidade de criar interlocutores nacionais similares aos seus homólogos da Aliança Atlântica, foi a forma que assumiu o argumento apresentado por Humberto Delgado em auxílio à proposta do Governo. Não sendo linear que o figurino governamental encontrado tenha esgotado o campo das possibilidades na criação dos referidos interlocutores,

( 50 ) Decreto· Lei n.º 42 546. de 7 de Outubro de 1959 - reorganizacão do Ministério do Exército; e o Decreto-Lei n.º 43 351, de 24 de Novembro de 1960-reorganização territorial: são constitu~das quatro regiões militares (duas no continente com quartéis-generais no Porto e em Tomar, e duas no uitramar com quartéis-generais em Luanda e Lourenço Marques) e um governo mi1itar (com quartel-general em Lisboa). As regiões mfütares do ultramar foram subdivididas em comandos 'te rritoriais. ·

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merece ser ainda salientado que aquele argumento surgiu num quadro de viva contestação proveniente sobretudo dos meios mili­tares navais, e que a solução adoptada fora reivindicada na Assem­bleia Nacional, bem antes da constituição da Aliança Atlântica, no exacto momento em que o GO'Verno acabava de repor na sua inte­gralidade a distinção orgânica entre Exércitos Ultramarino e Metro­politano e enfrentava as últimas tentativas de subversão ao regime no imediato pós-guerra.

O resultado mais saliente daquela reforma na orgânica lo Governo foi a criação de um Ministério da Defesa Nacional com acrescido relevo no seio do Governo, dotado de largos poderes sobre o conjunto das Forças Armadas e de efectiva direcção político­-militar sobre o processo de participação de Portugal na Aliança Atlântica.

Mas viria a ser no processo de fusão das aviações militares que a invocação da Aliança Atlântica foi levada ao paroxismo, quando as propostas de Lei do governo surgiram escoradas na forma ·de um compromisso confidencial entre o Governo português e as autori­dades atlânticas. Apesar da prudência que sempre deve caracterizar qualquer investigação histórica, parece-se ser legítimo sustentar a hipótese de que nunca terá existido qualquer exigência externa, ou compromisso, daquela natureza. O invocado compromisso confi­dencial, apresentado pelo brigadeiro Frederico Vilar na abertura do debate na Assembleia Nacional, terá sido antes um expediente de última hora lançado no sentido de apaziguar as previsíveis ondas de choque da viva contestação da Marinha, de que a imprensa se acabara de fazer eco. Até prova documental em contrário, parece-me ser de sustentar que terão sido os reais compromissos assumidos por Portugal com a OT AN - nomeadamente, a atribuição à Marinha portuguesa de missões de luta anti-submarina e de patrulhamento integradas no Comando do Atlântico - que, ao colocarem em risco de subalternização a Aeronáutica Militar do Exército, terão levado as respectivas chefias a defender a fusão das aviações militares na criação de um novo ramo das Forças Armadas.

Entre as alterações produzidas na orgânica d·o Governo, e as que levaram à criação da Força Aérea Portuguesa - os .dois casos em que se invocaram compromissos com a Aliança - há, no entanto, ·algumas diferenças de alcance e significado a não menosprezar. Ainda que, em ambas, como vimos, o sentido reformador tenha pré-existido à própria Aliança Atlântica, deverá notar-se que en­quanto a reforma no Governo, e na superestrutura orgânica das Forças Armadas, afecto"Q a modalidade de inserção da instituição militar na constelação de poderes do Estado Novo, a criação da

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Força Aérea, revestindo o aspecto de uma reacção segmentária cor­porativa, ainda que apenas tenha bulido com a orgânica interna da instituição militar, é reveladora de uma alteração na correlação das forças que actuavam de forma mais ou menos organizada no seu seio. Ainda que ambas as reformas tenham sido invocadamente realizadas no sentido de uma acomodação a imperativos externos, estamos, no segundo caso, perante um movimento de reacção a um efeito não desejado dos compromissos efectivamente assumidos por Por­tugal no seio da OTAN.

Olhando para o conjunto das reformas militares da década de cinquenta parece-nos claro que a Aliança Atlântica mais do que impor mudanças na superestrutura político-militar do regime, ou na orgânica geral das Forças Armadas, tornou possível a produção de um discurso de legitimação das reformas que se pretenderam in­troduzir.

Procurando agora observar o conjunto das reformas à luz do problema da mudança política enunciado na introdução, parece-nos que estas indiciam uma mudança de perspectiva nos sectores mili­tares dominantes, antes e depois do ciclo de agitação político-militar de 1944-1947. É particula111D.ente significativo, neste particular, que tenham sido as reformas <<vencidas», reivindicadas por Craveiro Lopes naquela conturbada conjuntura, as que vêm a ser aplicadas depois de 1949.

E uma vez mais deve ser salientada a importância que a «Àbrilada» de 1961 tem para o nosso tema, por ter sido o momento em que melhor se revelaram os efeitos político-militares das reformas introduzidas. Com efeito, depois de se ter assistido, da segunda metade da década de trinta em diante, a uma progressiva subordi­nação das Forças Armadas ao Governo deu-se, no decurso dos anos cinquenta, em simultâneo com a participação portuguesa na Aliança Atlântica, uma inversão do referido padrão naquilo que Medeiros Ferreira designou por uma tendência para a autonomia da insti­tuú;ão militar face ao regime.

Como se salientou na introdução, Medeiros Ferreira, por via do estudo dos mecanismos institucionais em funcionamento na «Àbrilmla» de 1961, identificou duas importantes inovações intro­duzidas após a entrada de Portugal na OTAN : uma nova super­estrutura orgânica da Defesa Nacional e, ao nível interno das Forças Armadas, a existência de órgãos próprios de avaliação dos objectivos propostos pelo Governo ("111

). Como se salientaria no referido estudo,

(n) José Medeiros Ferreira, Op. cit., e Capitulo X - Uma Autonomia Cres­cente», pp. 255-277.

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«todo o processo de decisão dos chefes militares no sentido de alte­rarem o regime político (na «Àbrifuda» de 1961} decorre em reu­niões de órgãos de definição estratégica» ( l!.'2 }, em especial no âmbito do Conselho Superior Militar convertido (em 1956) em órgão polí­tico-militar de exclusiva composição militar. Ou seja, as Forças Armadas haviam ficado efectivamente dotadas de instrumentos pró­prios de avaliação da situação político-militar, capazes de gerarem soluções alternativas às propostas provenientes das instâncias estrita­mente políticas.

Assim, deu-se o caso de, entre meados da década de 30 e meados da década de 50, ser sob a direcção da mesma pessoa, ou à sua sombra, que se percorreram dois caminhos de sentido contrário : Santos ,Costa, que havia liderado do lado militar a subordinação das Forças Armadas ao regime, e que estivera na primeira linha do combate pela sobrevivência deste último no imediato pós-guerra, irá no decurso da década de 50, com poderes acrescidos, dirigir e supervisionar reformas antes reivindicadas por alguns daqueles que se lhe opounham; reformas que vieram a tornar possível uma real autonomização da instituição militar face ao regime. Ganha sentido, por isso, o subtítulo inscrito na portada desta comunicação, segundo o qual ter-se-á dado uma vel'!dadeira metamorfose político-militar do salazari&mo na década de 50, protagonizada pelo Ministro Santos Costa.

Qual o significado político de tal metamorfose? Na base dos elementos aqui coligidos é possível vislumbrar o estabelecimento tácito de um consenso forjado entre sectores político-militares antes desavindos. Este consensw, no sentido de compromisso, poderá ser o conceito-chave do processo legislativo aqui observado. Sabendo-se que o consenso é por definição conjuntural, e que em situações de conflito latente a sua função principal é a de ocultar conflitos de racionalidade - um consenso só funciona num mar de equívocos, e só no equívoco se pode manter - este terá sido estabelecido de 'forma deliberada e consciente, por Santos Costa, ao abandonar as ilusões acerca do papel a desempenhar pela tradicional aliança inglesa, no novo cenário da chamada «guerra fria», ocorrida nos anos 1947-48. Ainda que um mais amplo significado deste pro­blema aqui não possa ser mais do que enunciado - extravasando em muito a base empírica e o propósito da presente comunicação-, sempre se adianta que o Ministro Santos Costa, tomando consciência da incontornável viragem, com os Estados Unidos da América a assumirem na nova ordem mundial o papel de liderança do campo

(~) Idem, Op. cit., .p. 267.

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ocidental, ter-se-á resolvido a protagonizá~la do lado português e, ainda que a contra-gosto, chamou a si as propostas e os «vencidos» da crise do imediato pós-guerra. Nesse sentido Santos Costa foi capaz de forjar, ou deixou que se forjasse, um consenso no qual se acabaria por adoptar uma nova política de Defesa Nacional já não assente num teatro de operações continental, mas sobretudo num teatro aeronava!, e de dotar as Forças Armadas, de um conjunto de normas e instituições que, com o pretexto da adequação às novas realidades emergentes, acabaram por propiciar a alteração do tipo de relações ·que a instituição militar mantinha com o regime do Estado Novo.

A vítima do consenso - todos os consensos, uma vez desfeitos, criam vítimas - seria o próprio Ministro Santos Costa ; mas quando este foi afastado da pasta da Defesa, em 1958, foi a instituição militar que fez promover aquele que nela detinha um lugar hierar­quicamente mais elevado - o que é só por si um claro indicador do peso específico que a instituição militar havia entretanto adqui­rido no seio do regime. O Presidente da República, também um militar, permaneceria como a válvula de segurança do regime, como se viu na «Àbrilada» de 1961.

Assim, se parece ter existido no seio do regime, durante os anos 50, uma crescente linha de fractura entre cccraveiristas» (tidos como mais atlantistas) e cccostistas» (mais isolacionistas, ou nacio­nalistas) - como tem sido referido na historiografia sobre este período - o que é legítimo concluir face aos dados aqui apresen­tados é que, entre 1949 e 1958, foi possível o estabelecimento de um consenso, no qual o conteúdo político desses grupos surgiu miti­gado, não reflectindo claramente os respectivos papéis. Mesmo se a aludida fractura teve signifiC'ado no imediato pós-guerra - e estamos em crer que o teve no quadro da agitação militar do imediato pós-guerra ( 1944-47) - no período de acalmia que lhe sucede ( 1949-58), onde se inscreve a suprema magistratura da República de Craveiro Lopes ( 1951-58 ), ela foi visivelmente mitigada nas reformas político-militares então encetadas.

As reformas que vieram a possibilitar a manifestação de uma superfície refractária aos objectivos militares do regime político sala­zarista foram introduzidas pela equipa do Ministro Santos Costa_. Depois dele, com os «reformadores» de Botelho .Moniz ( 1958-61 ), até por força da conjuntura, não se tocará no essencial das reformas realizad•as, a não ser para adequar as Forças Armadas a um futuro conflito não convencional, em cenário africano.

A luz da questão norteadora da presente investigação - como, e até que ponto, funcionou a participaç~o portuguesa ·na Aliança

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Atlântica como um indutor da mudança política no sentido da Democracia? - pode ser afirmado, em síntese conclusiva, que se a autonomização da instituição militar no seio do regime não era garantia <le suscitar impulsos de sentido democrático, a criação de órgãos próprios de avaliação estratégica podia suscitar - como suscitou no decurso do chamado «golpe Botelho Moniz» - a criação de abordagens alternativas às que se produziam nas instâncias estri­tamente políticas do regime.

Para a elucidação das condições .de emergência das referidas abordagens alternativas ter-se-á que atentar nos efeitos produzidos pela modernização técnico-operativa das Forças Armadas portuguesas em resultado <los reais compromissos com a OTAN. Essa verdadeira «revolução pacífica» operada sobre os homens e estruturas das Forças Armadas, poderá ser observada nas mudanças decorrentes da reorganização geral do Exército, na abertura do Corpo de Estado­-Maior, na reforma do Instituto de Altos Estudos Militares, na alte­ração dos métodos e programas de instrução, nas novas técnicas <le Estado-Maior na cooperação interarm.as, nas novas técnicas de recolha e tratamento de informações, etc. Serão esses alguns dos aspectos dos efeitos da participação portuguesa na OTAN a tratar numa próxima oportunidade.

Novembro de 1995.

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PORTUGAL E AS OPERAÇÕES DE PAZ DAS NAÇÕES UNIDAS

(Resumo da Comunicação)

Prof. Doutor NuNo SEVERIANO TEIXEIRA Dr.ª ISABEL FERREIRA NUNES

As operações de paz são um fenómeno histórico recente, que emerge na cena internacional do pós Segunda Guerra, de acordo com um princípio internacionalmente partilhado e sediado numa base institucional especializada. O princípio tem sido o da resolução pacífica dos conflitos, a base institucional a Organização das Nações Unidas.

No período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial os estados procuraram instituir uma organização de segunrança global direccio­nada para a consolidação de um sistema de segurança colectiva, com vista à resolução pacífica de conflitos entre estados com o auxílio de um instrumento de legitimação internacional das suas acções, a Carta das Nações Unidas. As acções das Nações Unidas passaram assim a pautar-se pelos princípios do não emprego da força ; pelo direito dos povos à autodeterminação ; pelo princípio da igualdade ~oberana dos estados ; pelo direito ·dos estados à soberania, indepen­dência e integridade territorial; pelo princípio da boa fé nas rela­ções internacionais e pelo direito e justiça internacionais.

Mas foi sem dúvida a •questão do Suez que possibilitou à ONU testar uma prática de resolução pacífica de diferendos, com base r;a emissão de um mandato de contornos precisos, na obtenção de um consenso internacional e no consentimento das partes em litígio sobre a intervenção das Nações Unidas.

Os anos 60 marcariam um novo período de intervenção da organização na resolução de conflitos regionais e subsequentes pro­cessos de reconstrução nacional, em virtude da instauração de um

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estado de anarquia generalizado na sequência da retirada das potên­cias colonizadoras.

Criadas para a defesa do status quo internacional e apesar das suas inúmeras acções, as operações de paz das Nações Unidas exer­ceriam, até 1989, uma influência que resultava mais do seu peso moral, do que do seu poder militar.

Terminado o período da Guerra Fria gerou-se um clima inter­nacional de confiança nas capacidades pacificadoras das organiza­ções internacionais vocacionadas para a segurança global, a que a Guerra do Golfo acabaria por pôr termo obrigando os líderes mun­diais a constatar que para assegurar a paz era preciso impô-la pela força das armas.

Os objectivos contidos na Agenda para a Paz acabariam deste modo, por ir ao encontro de uma expressão duplamente preventiva e reactiva na resolução dos conflitos, com base em novos conceitos de diplomacia preventiva, de restabelecimento, manutenção e impo­sição da paz, pressupondo este último o recurso a missões de paz de segunda geração.

Portugal não foi alheio à reactivação da ONU como organi­zação de segurança colectiva. A permanência até 197 4 de um re­gime autoritário na ordem interna e neutro face à guerra de 1939--1945, manteve Portugal à margem da reorganização da cena inter­nacional do pós-guerra.

Contudo, a constituição do sistema de bipolaridade, a formação de alianças e a política de blocos, haveria de levar Portugal à orga­nização em 1955.

Os anos 50 são marcados pela entrada de Portugal na NATO, reforçando o empenhamento militar português em compromissos com o mundo ocidental e pela primeira participação nacional em operações de paz das Nações Unidas no Líbano em 1958.

Os anos 60 são caracterizados pelo confronto ,aberto e siste­mático de Portugal com as Nações Unidas tendo como objecto de litígio a política colonial do Estado Novo, o que impedirá novas participações de Portugal em operações de paz.

Só a transição à democracia, na segunda metade dos anos 70, veio alterar esta situação, com o início da descolonização portuguesa pondo termo ao conflito diplomático entre Portugal e as Nações Unidas.

Todavia, as indefinições da política interna e externa portu­guesas no período da transição e o papel político dos militares no processo de transição e consolidação democrática, não proporcio-

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navam condições para um empenhamento nacional em missões in­ternacionais.

A estabilização definitiva da democracia, a definição da polí­tica externa portuguesa e de um novo 'quadro legal de relação civil­-militar, a partir da década de 80 vieram criar as condições neces­sárias para uma maior participação portuguesa na cena interna­cional.

No campo d·a política externa Portugal passou a orientar a sua política externa em função de três prioridades fundamentais : primeiro, a manutenção de uma ligação bilateral com os Estados Unidos e multilateral com a NATO ; segundo, o desenvolvimento de uma opção europeia consumada na adesão de Portugal à CEE em 1986; finalmente, o reforço de laços com países de língua por­tuguesa saídos do processo de descolonização.

No que respeita à política de defesa, duas condições acabaram por favorecer o empenhamento de Portugal em missões interna­C'.ionais, em particular no quadro das Nações Unidas, fruto da subor­dinação dos militares ao poder político e da definição de missões para as forças armadas, não apenas no quadro tradicional da defesa territorial, mas também ao abrigo de compromissos internacionais e de apoio à política externa portuguesa.

É neste quadro que tem de se compreender o envolvimento de Portugal em operações de paz desde 1989 até hoje.

Qualquer empenhamento dos Estados em missões da ONU passa por equacionar a questão do futuro das operações de paz. Ou as NU limitam os seus compromissos desenvolvendo missões compatí­veis com os recursos existentes ou assumem de facto um novo papel na manutenção da estabilidade e segurança internacionais e re­conhecem a necessidade de proceder a reformas substanciais ao nível institucional e funcional.

Limitar os seus compromissos significa recusar a -0portunidade <'onjuntural que se oferece às Nações Unidas, para o desempenho de um protagonismo internacional na resolução de crises e conflitos. Assumir um novo papel na gestão de crises e conflitos passa pela concretização prévia de reformas institucionais, a-0 nível das estru­turas de decisão e pela constituição de um novo quadro normativo que legitime as acções internacionais e as reformas funcionais ao nível operacional e financeiro.

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DOS PIRINÉUS A ANGOLA - A POLÍTICA MILITAR NACIONAL NOS ANOS 50

Prof. Doutor ANTÓNIO JosÉ TELO

1 - A ESTRATÉGIA NACIONAL NO PÓS-GUERRA

A primeira parte do título desta intervenção justifica-se porque a política militar portuguesa antes da entrada para a NATO estava dominada pela ideia da defesa dos Pirinéus, à qual se dedicavam os melhores recursos das forças armadas. Este conceito inseria-se dentro da visão da evolução do sistema internacional que dominava entre os responsáveis portugueses no fim da 2. ª Guerra Mundial e da estratégia nacional associada, pelo que temos de a esboçar previamente nas suas grandes linhas.

Portugal sai do grande conflito do século XX numa pos1çao invejável, que se pode comparar favoravelmente com a da maior parte da Europa : escapou no essencial ao turbilhão da guerra e, exceptuando o caso de Timor, não sofreu destruições em larga escala; tem substanciais reservas de ouro e divisas, resultantes do retorno dos capitais e de três anos muito anormais de uma balança comercial favorável ; tem um governo estável que é reconhecido internacionalmente e mantém uma boa relação com os poderes anglo-americanos, que o apoiam de forma clara no fim da guerra em termos das convulsões internas e da aceitação externa.

O que é curioso é que, apesar desta situação favorável, a visão dos responsáveis portugueses é pessimista. As preocupações são multifacetadas.

Em primeiro lugar, há a situação no Atlântico, onde se reco­nhece que o poder transitou em larga medida para os EUA, reti­rando muita da anterior eficácia da aliança inglesa, embora ainda não se tinha consciência da real queda do poder britânico.

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Em segundo lugar, há a situação na Europa, onde os poderes centrais virtualmente desapareceram, o que significa que a Rússia está no centro do continente ( Berlim, Viena e Praga).

Em terceiro lugar, há a «confusão» no Oci·dente, <<minado» pelo liberalismo e pela democracia, que renasceram depois da guerra, «confusão» que o enfraquece, a pontos dos comunistas participarem nos governos da França e da Itália. Isto significa nomeadamente que está aberto o caminho dos Exércitos russos até à Mancha e aos Pirinéus e que não serão as debilitadas · forças dos países da Europa continental que os detêm, muito especialmente porque na visão portuguesa estes perd·eram a vontade de lutar. Significa igualmente que a França e outros poderes vão favorecer a implantação de uma democracia em Espanha, não sendo certo que o regime franquista uguente a pressão. Pelo contrário, o perigo de ver recomeçar a guerra civil espanhola é maior do que nunca, embora agora devido a um pronunciamento pró-democrático . de uma parte das forças armadas, sendo o envolvimento português quase inevitável.

Em quarto lugar, há a situação no Império, onde a Índia e a Indonésia vão aceder à independência a curto prazo, colocando pro­blemas em Goa e em Timor, enquanto a situação de Macau será posta em causa pela vitória do comunismo na China. Há, em resumo, uma previsível vaga dos movimentos de autonomia, que se fará sentir em primeiro lugar na Ásia. A situação é tanto mais preo· cupante, quanto se teme que ·a Inglaterra não resista na índia e que os EUA favoreçam de forma mais ou menos discreta as autonomias no continente africano, como forma de acabarem com as zonas econó­micas exclusivas da Europa.

Todos estes aspectos são preocupantes e até desconcertantes, pois vão contra as perspectivas do regime, que já tinha passado vários atestados ·de óbito ao liberalismo e à ·democracia. A .aparência era que o Ocidente tinha entrado numa fase adiantada de confusão e decadência de que, como Sailazar dizia, podia não haver re­cuperação.

O novo mundo do pós-guerra, em resumo, estava minado de perigos para o Estado Novo, todos eles interligados: o perigo do avanço russo até ao Atlântico ; o perigo do recomeço da guerra ciVil na Espanha ; o perigo da hegemonia· americana, que não reconhece os <<valores tradicionais do Ocidente»; o perigo das autonomias dos Impérios, favorecidas pela «decadência» do Ocidente e com uma discreta ajuda dos EUA.

É de notar que esta visão representa uma profunda alteração em relação às preocupações vi.gentes durante a 2.ª Guerra Mundial. Então, o alinhamento básico de Portugal tinha sido a aliança inglesa

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e a ideia de que o país não se devia envolver nos conflitos do con­tinente. Esta era a trave mestra da clássica po1Htica externa por­tuguesa, tal como foi interpretada por Luís Teixeira de Sampaio nos anos trinta e aplicada durante a guerra.

Agora a ideia era .diferente : era preciso rever o contexto da aliança coon a Inglaterra, tendo em conta o poder americano. Ao mesmo tempo, havia a ideia de que o país não podia continuar a ser indiferente aos conflitos do contnente. A razão era ,smples: eram os valores básicos do Ocidente que estavam em jogo e, no caso de uma eventual guerra, a ofensiva russa não pararia na fronteira da Espanha. Era igualmente ponto assente para os militares portu­gueses que o país só se podia defender nos Pirinéus e que, uma vez estes passados, Lisboa não tinha defesa.

O problema era tanto mais urgente quanto havia a ideia de que uma nova guerra geral iria estalar dentro de pouco tempo, tese abertamente defendida por vários responsáveis portugueses nas con­versas com os anglo-americanos e alimentada por estes. Tudo indica que havia mesmo a esperança de que essa guerra cclimpasse o Oci­dente», o fizesse regressar aos valores rtradicionais e afastasse os «desvios» destes «loucos tempos» do pós-guerra, com os quais o Estado Novo não se identificava.

A resposta portuguesa a estas múltiplas preocupações e perigos era variada.

Pensava-se que a Europa tinha de retomar o seu lugar como centro do Ocidente, o que passava pclo reforço da sua ligação à África. Para isso, era necessário que os «núcleos sãos» do conti­nente apontassem o caminho da regeneração. O mais importante continuava a ser a Inglaterra que, apesar de dominada pelos tra­balhistas, ainda era quem melhor compreendia os valores tradicio­nais. A seguir, estava a Península Ibérica, o vel.'dadeiro bailuarte da Europa eristã e tradicional, a única linha que poderia resistir ao avanço russo, um ccbastião» do renascimento futuro. Esta visão implicava, obviamente, que a defesa do regime franquista eontra os ataques externos passava a ser um objectivo importante de Por­tugal, até porque havia a consciência de que, ao defender o fran­quismo, o Estado Novo se ,defendia a si próprio, pois garantia a estabilidade da sua única fronteira terrestre na Europa.

O segundo objectivo, era a aproximação à Inglaterra, encarada até 1947 ainda com um dos ccilrês» grandes, o único centro à volta do qual se poderia refazer a Europa tradicional. Havia a ideia de que o ccsecular aliado» já não tinha o peso anterior, mas nunca se esperou a queda na vertical que veio a ocorrer - o poder aparente da Inglaterra no fim da guerra era artificial e insustentável a prazo,

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coisa que Portugal não entendia. De qualquer modo, a Inglaterra era o único poder aparentemente importante que parecia aceitar os regimes peninsulares e defendia a continuação dos impérios euro­peus, pontos centrais para o Estado Novo.

O terceiro objectivo era o reforço do Império, o que corres­pondia à ideia muito repetida de que a Europa só se podia afirmar em ligação à África, como um bloco único, que fizesse frente simul­taneamente à URSS e aos EUA.

O quarto objeotivo era a aproximação possível aos EUA, pois havia consciência da alteração básica do poder no Atlântico e, nas palavras de Salazar, ,da «deslocação do centro da política mundial para o Atlântico». O problema na relação com os EUA, do ponto de vista ,do Estado Novo, era que eles não garantiam o Império ou a dualidade peninsular e não aceitavam os valores tradicionais do Ocidente, parecendo ser «iluminados, não por Deus, mas pela lâm­pada eléctrica», para citar a frase usada numa conversa com David Eccles.

2 - A POLÍTICA MILITAR PORTUGUESA NO PÓS-GUERRA

A visão esboçada anteriormente conduz a uma política militar que tem como objectivo central criar uma força de defesa de Por­tugal continental contra um perigo que venha da Europa através da Espanha.

Nesta altura ( 1945), a tónica ,da política de defesa continua a ser colocada no Exército, tal como acontecia desde 19 3 5. Em caso de mobilização, o armamento fornecido pelos Aliados depois de 1943 permitia já pôr em campo 5 divisões de infantaria e mais 3 a 5 de segunda linha, com importantes deficiências em material pesado, de comunicações, engenharia, transporte e logística. Para as apoiar, havia uma aeronáutica que, em 1949, tinha 285 aviões, onde se destacavam 4 esquadrilhas de Spitfire V e 6 esquadrilhas de Hurricanes II, aparelhos já antiquados, mas melhores que os da vizinha Espanha.

Os perigos te1ni.dos no pós-guerra levam os responsáveis portu­gueses a decidir avançar para a terceira fase do programa gel"al de rearmamento aprovado em 1935, pois só ela permitiria criar uma força capaz de defender Portugal continental contra o nível de ameaça pensado. O alvo é manter a aeronáutica e a marinha no nível que tinham alcangado, levando a cabo somente programas de modernização modestos (era o caso do programa de modernização

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dos contratorpedeiros) e aumentar o Exército para cerca do dobro em caso de mobiliziação. O que se pretende é criar uma força terrestre de 10 divisões de infantaria e 1 mecanizada, apoiadas por uma reserva de segunda linha de mais 5 divisões. É um programa extremamente ambicioso, que representa de longe a maior força terrestre que Portugal a•lguma vez ambicionou formar na época contemporânea.

O programa é exposto à Inglaterra em Janeiro de 1947 (1), quando se justifica pela necessidade de rever o plano de defesa preparado em 1943. Diz-se que a nova ameaça aponta para a necessidade de um plano permanente de defesa de Portugal conti­nental, o que implica a existência das 16 divisões portuguesas para aguentarem o primeiro embate, iantes da chegada dos reforços bri­tânicos. Menciona-se igualmente que seria útil alargar o plano à Espanha, de modo a incluir a defesa da Península contra um inimigo que viesse dos Pirinéus. Portuga:l esclarece que já pode equipar parcialmente 5 divisões de primeira linha e outras 5 de reserva, pelo que se pede que a Inglaterra forneça o armamento para mais 5 divisões de infantaria e 1 mecaniHda. A lista do material neces­sário é imensa, representando a maior encomenda de armamento isolada que o país ailguma vez fez: engloba, por exemplo, 450 mor­teiros, 240 canhões antitanque, 222 canhões e obuses ( 48 obuses de 25 lib:ras, 60 canhões de 114 mm, 90 obuses de 140 mm, 24 canhões de 150 mm), tanques, camiões, veículos blindados, equipa­mento de transmissões, de engenharia, de transporte, de apoio e tudo sem esquecer o apoio técnico e a formação. Era bastante mais do total fornecido pela Inglaterra entre 1936 e 1947.

Londres recebe este imenso pedido com surpresa e estuda-o rapidamente. A resposta passa sobretudo por dois considerandos políticos fundamentais: não interessa preparar um plano perma­nente de defesa de Portugal continental e/ ou da Península, que iria provocar uma forte reacção negativa dos países europeus com os quais a Inglaterra tem já um acoroo ·de defesa (.Pacto de Bruxelas); interessa favorecer o desejo português e espanhol de reforçar a defesa da 1Península, do mesmo modo que interessa atrair os EUA para esta zona. A resposta inglesa é assim uma negativa cuidadosa, onde se fala abertamente da conveniência de uma aproximação aos EUA e mesmo da hipótese da transformação da Aliança num acordo tripartido EUA-Inglaterra-Portugal. Em relação ao pedido de arma­mento, a Inglaterra informa que ·pode fornecer uma pequena parte, mas quanto ao restante ... seria bom contactar os EUA.

('1) Versão inglesa do documento português em PRO FO 371 67 889 13ó 553.

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Londres dá este conselho sabendo à partida que Portugal não pode comprar o imenso armamento pretendido nos EUA iatravés de uma operação comercial, pelo que seria necessário um prévio acordo político e uma ajuda militar. O país, na realidade, tinha créditos na Inglaterra do tempo da guerra de mais de 80 milhões de libras, que podiam ser usados para comprar armamento, mas não possuía reservas em dólares que dessem para armar as 6 divisões, tal como se pretendia.

A aproximação à Inglaterra é precedida por contactos com a Espanha, que era o segundo pilar da política militar nacional. Os contactos entre Estados-Maiores começam mesmo antes da guerra terminar e intensificam-se depois da reafirmação do Pacto Ibérico. Deles saiem planos para uma defesa conjunta dos Pirinéus contra um ataque externo, que implicam a preparação 1de uma força expe­dicionária a deslocar para a fronteira espanhola. A completar estes planos, são igualmente preparados outros para o apoio mútuo dos dois regimes ibéricos, fosse contra um ataque de surpresa vindo do mar ou do ar, fosse contra golpes internos, hipótese bastante mais provável. Finalmente, as polícias pO'líticas ibéricas estreitam igual­mente os seus laços e passam a trocar regularmente informações sobre as respectivas oposições.

Podemos pois dizer que a política militar nacional tal como definida antes da formação da NATO estava num impasse desde fins de 1947, quando se recebeu a resposta negativa da Inglaterra. Existiam planos conjuntos com a Espanha para a defesa da Península e dos regimes, mas sabia-se que as forças do país vizinho tinham um armamento obsoleto enquanto as nacionais, embora melhor equi­padas, eram insuficientes. A negativa inglesa impedia que o pro­grama de rearmamento do Exército se concretizasse e, o que era mais importante, fazia com que não houvesse nenhum plano de apoio externo, para a defesa da Península em caso de guerra.

Para qualquer dos dois problemas a única solução estava numa aproximação em relação aos EUA.

3 - A NATO: A APROXIMAÇÃO POSSÍVEL AOS EUA

Os planos de guerra de Washington davam grande importância ao espaço atlântico português, muito especialmente aos Açores, onde os americanos se tinham instalado desde 1944. O Esta·do-Maior­Conjunto americano tinha desde essa altura identificado ~ inte­resse de longo prazo no estabelecimento de bases permanentes nas­ilhas portuguesas, que passam a ser classificadas de «vitais» desde

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1947. Os pedidos nesse sentido são apresentados muito cedo em Lisboa, com grande abertura no que diz respeito a eventuais contra­partidas no campo económico e da defesa.

O problema, do ponto de vista de Portugal, era essencialmente político. Já esclarecemos qual a visão que prevalecia em relação aos EUA. É ela que leva Lisboa a conceder meramente direitos de trânsito de curto prazo nos Açores, mas mantendo sempre os contactos.

Quando a ·proposta apresentada à Inglaterra no campo da defesa é recusada, Portugal vai mais longe e procura saber qual a disponi­bilidade americana para um acordo de defesa permanente. Preten­dia-se garantir pelo menos a validade ·de uma das duas funções essenciais da aliança inglesa (a garantia da defesa de Portugal con­tinental), pois sabia-se que os EUA nunca poderiam fornecer a outra (a garantia de uma defesa activa do Império). O objectivo por­tuguês era assegurar a transição da aliança inglesa para um entendi­mento com os EUA, depois de se ter descoberto da pior maneira possível e com bastante atraso que a Inglaterra já não assegurava as funções tradicionais.

A resposta americana é bastante generosa. Os EUA vão tão longe quanto era possível antes da formação da NATO e garantem que, em caso de ataque a Portugal continental, desencadeariam mecanismos de consulta no sentido de participar na sua defesa. Era uma fórmula pouco comprometedora, mas ultrapassava as ga­rantias dadas a qualquer outro país europeu nesta altura antes da NATO.

As negociações bilaterais entre Portugal e os EUA decorrem de forma paralela e independente dos contactos americanos com os países do Pacto de Bruxelas. Parecem estar bem encaminhadas em começos de 1948, mas são bruscamente interrompidas quando os EUA descobrem que Portugal, «;le qualquer modo, não cederia hases permanentes em tempo de paz. Isto leva Washington a reavaliar a situação.· É então decidido interromper as negociações bilaterais de momento e que aguardar a formação da NATO, de modo a retomar os contactos numa base bilateral e com um enquadramento político diferente.

É esta a principal razão porque Portugal é convidado para membro fundador da NATO. Depois da adesão, os contactos reco­meçam, mas já num entendimento diferente. Os EUA esclarecem que se pretende somente estudar a forma de Portugal dar um con­tributo para a concretização dos planos de defesa da NATO e que o uso das bases nos Açores é o melhor de todos. Os organismos colectivos, a começar no SHAPE e a terminar no grupo do Atlântico

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Norte (o SACLANT só se formou depois) concordam. Finalmente, em 19 51, o país assina um acordo de defesa bilateral, que dá aos EUA o essencial do que desejavam, nomeadamente o direito de uso de hases nos Açores em tempo de guerra para todo o tipo de funções e, em tempo de paz, para as funções NATO, bem como a perma­nência dos seus técnicos nas ilhas por períodos renováveis - o pri­meiro dos quais se concluía em 19 5 7.

O acordo de defesa de 19 51 dá a Portugal um amplo acesso aos fundos do MDAP, o programa americano de ajuda à defesa do Ocidente. Para os gerir criou-se em Lisboa o MAAG, que vai ter um papel essencial na reformulação das forças armadas portuguesas «> na mudança da política militar.

4 - A POLÍTICA MILITAR DEPOIS DA ADESÃO A NATO

Para os responsáveis portugueses a adesão à NATO não altera no essencial a política militar naeional. Portugal é mesmo muito original, pois é o único a não pedir uma substancial ajuda militar aos EUA logo de início. Esta peculiar atitude é provocada pela ideia de que tal iria enfraquecer a posição portuguesa nas negocia­ções sobre os Açores, que só estão concluídas em 19 51.

A visão inicial portuguesa é muito bem expressa num documento de 1950, quando os EUA informam que vão aumentar muito a ajuda militar, devido ao começo da guerra da Coreia e à necessidade de tranquilizar os aliados europeus. Num documento resumo, elabo­rado por Santos Costa e aprovado pelo Governo, Portugal resume então a sua polítca militar e quantifica a ajuda de que necessita para a concretizar. Começa por referir que o nível de força para que se aponta foi aprovado antes da 2.ª Guerra Mundial. O ohjec­tivo imediato é criar, em caso de mobilização, uma força de 10 di­visões de infantaria e 1 blindada, garantindo-se que já se dispõem dos elementos necessários para 7 a 8 divisões. É esclarecido que posteriormente se pensa elevar este alvo para 15 divisões, embora de momento não existam «quadros preparados em quantidade sufi­ciente» para tal. Pede-se armamento para completar o alvo ime~ diato, nomeadamente em relação aos pontos mais deficientes, como engenharia, comunicações, artilharia pesada, transportes, etc. Da Marinha praticamente não se fala e ia Aeronáutica é tratada em poucas linhas e encarada como uma força de defesa das cidades do continente e de apoio ao Exército em operações C).

( 2 ) Documento inicial português de 19 de Agosto de 1950, posteriormente alargado e esclarecido por outros. ANTT AOS;CO/NE-17-1.

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Os EUA recebem este documento com um sorriso, mas, de momento nada dizem de concreto, pois estão em curso as nego­ciações dos Açores. Limitam-se a garantir que o nível de ajuda desejado por Portugal é possível, mas ... será necessário futuramente concretizar melhor o seu conteúdo, de acordo com os planos da NATO em preparação.

É neste campo que Portugal sofre as maiores desilusões. A sua posição inicial é de que a NATO devia preparar planos para a defesa de Pe>rtugal continental e da Península, o que era uma forma de trazer a Espanha para a organização. A resposta unânime dos outros parceiros é que a NATO existe para preparar planos para a defesa da Europa Ocidental e do Atlântico e não de zonas parti­culares. Para além disso, os EUA e a Inglaterra esclarecem discreta­mente que, embora eles não se importassem de preparar planos para a defesa da Península, os restantes parceiros da NATO nunca o permitiriam, pois não só tal implicava o envolvimento da Espanha, como, bastante mais importante, significava que a NATO podia ser tentada a optar por uma estratégia de defesa da Eumpa nos Pirinéus, hipótese que a França ou 'ª Itália nem sequer querem considerar.

Nos primeiros tempos Portugal vê pois recusadas ·as suas pro­postas quanto aos planos da NATO, o que significa que vai continuar a manter duas ligações paralelas e independentes em termos de política militar: os planos com a Espanha para a defesa dos Piri­néus e os planos com a NATO. Em relação a estes últimos, o país só participa no grupo do Atlântico norte, o mais numeroso, onde estão praticamente todos os parceiros da NATO. Os planos do SHAPE para a defesa da Europa Ocidental e os planos para o Mediterrâneo não têm a participação portuguesa.

Os EUA aguardam a clarifioação das relações com Portugal, que só seria alcançada depois de 19 51. Antes formam o MAAG (Military Advisory and Àssistange Group) de Lisboa, organismo de coordenação da ajuda militar americana que não tarda a contar com largas dezenas de técnicos. É preciso esclarecer que a ajuda militar americana não era um processo de mera dádiva. Ele tinha por objectivo oficial permitir que os planos da NATO fossem cum­pridos e era coordenada de forma central em cada país através do MAAG. Este devia oficialmente acompanhar 'ª entrega do material americano, orientar a reorganização, verificar o seu uso e avaliar os resultados, fazendo propostas quanto à continuação do programa de ajuda. Na prática, era o mais impo·rtante mecanismo para os EUA conseguirem modernizar as forças armadas dos países da NATO, adaptarem-nas aos sistemas americanos e, mais importante,

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integrarem-nas na filosofia, tipo e lógica do sistema Ocidental, tal como estava a ser montado.

O efeito do programa de ajuda militar americano em Portugal foi imenso, ao contrário do que normalmente se pensa. Aqui vamos somente referir os aspectos que dizem respeito à política militar e as suas implicações com o Exército.

5 - EFEITOS DA NATO NA REORGANIZAÇÃO DO EXÉRCITO

Quando a NATO aprovou o plano de defesa de médio prazo (MTDP), visou essencialmente ,alcançar um alvo de cerca de 50 divisões na frente central até 1954, por razões que já examinamos. O método seguido ainda era primário: cada país recebia um alvo IJrÓprio, de modo a perfazer o total das 50 divisões.

Como Portugal pensa ter meios para mobilizar cerca de 11 divisões e equipar por completo quase 8, Santos Costa afirma nas primeiras reuniões da NATO que o país se compromete a defender o seu território, criar 3 divisões para os Pirinéus e colocar de ime­diato 1 à disposição da NATO, número que podia ser elevado a 5 (mais 4) até 1954. Ou seja, o compromisso global português era criar, em caso de guerra, cerca de 10 divisões: o equivalente a 2 para Portugal continental ; 3 para a defesa dos Pirinéus ; 5 para a NATO, numa força de campanha que podia participar em ope­rações na Europa. Cautelosamente, mas sem comentários críticos, o MTDP só prevê o alvo de 1 divisão NATO para Portugal.

Segundo Santos Costa referia, a generosa oferta era uma ccforma hábil e subtil» de levar a NATO a apoiar a formação de mais 4 di­visões modernas e de a pressionar para chegar a um acordo com a Espanha para a defesa da Península.

A directiva inicial do ministro da defesa refere a formação de 2 tipos de divisão: a territorial, ou tipo português (TP), e a de campanha, ou tipo americano (TA), como seriam depois classifi­cadas. Outra directiva, enviada em Março de 19 51 ao Estado-Maior do Exército ( EME), retoma o conceito e defende que a principal diferença entre as duas está na quantidade de carros de combate e meios motorizados. O Ministro da Defesa esclarece. que, na sua concepção, a TA usa 132 tanques e a TP meramente 66. É este o ponto de •partida do EME para estudar o quadro e tipo de organi­zação dos novos tipos de divisão, actividade que arranca em meados de 1951.

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O EME não tarda a aperceber-se que aquilo que se chama em Portugal uma «divisão» não tem muito a ver com a concepção ame­ricana e que a diferença não é meramente de umas dezenas de Lanques a mais ou a menos. Pelo contrário, é todo um universo que, em última instância, corresponde a sociedades muito düerentes. O que estava em causa era o tipo de guerra em que se pensava. O EME descobre com surpresa que, por exemplo, uma única divisão americana utiliza mais téoo.icos especialistas dos que os existentes na totalidade do Exército Português. O que é ainda pior : centenas de especialidades técnicas (mais de 300) do Exército americano pura e simplesmente não existem em Portugal e de algumas nem sequer se ouviu falar. Esta mera constatação, só por si, obriga a rever todos os planos e coloca a ridículo a pretensão de formar mais 4 divisões TA (tipo americano) até 1954.

É muito significativo que o primeiro nível onde se chega à con­clusão que os planos portugueses são totalmente irrealistas seja téc­nico (os departamentos especializados do EME, especialmente a 3.ª divisão). O recentemente criado Ministro da Defesa continua a defender que se podem formar várias divisões de campanha até 1954, quando o EME já se apercebeu que nem sequer se pode criar uma, pois falta tudo, a começar na mentalidade de base.

O grande problema era justamente o de criar unidades mo­dernas, as chamadas divisões ccNATO» ou TA. Quanto à sua utili­zação, a preferência portuguesa era que elas fizessem parte de um exército britânico. Simplesmente, no esquema NATO, os exércitos britânicos operavam no norte da Alemanha e retiravam para o Canal. Tal implicava que as divisões portuguesas estariam longe dos Piri­néus e teriam linhas logísticas no sentido sul-norte, que cortavam todas as linhas logísticas da NATO, que corriam no sentido Oeste­-Este. Os responsáveis portugueses são os primeiros a não quererem que as unidades nacionais sejam afastadas dos Pirinéus, pelo que esquecem a preferência pelos ingleses e aceitam a ideia de as inte­grarem no exército americano que está na zona de Bordéus, no sul da França. Esta decisão permite que, em caso de retirada, as uni­dades nacionais sigam para sul e para os Pirinéus, onde se juntam ao corpo português já aí estacionado, no âmbito do acordo com a Espanha.

A aceitação deste esquema implica que as divisões portuguesas, que operam integradas num Exército americano, adoptam a orga­nzação, -0 equipamento e as regras de treino, operações e logística dos EUA e não da Inglaterra. É o começo do ccperíodo americano» do Exército, imposto pela força das circunstâncias, contra os desejos das chefias nacionais.

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As conclusões dos inquéritos iniciais do MAAG confirmam o que já se pensava pelas informações anteriores, mas agora de forma que não levanta dúvidas e está perfeitamente documentada : as divisões portuguesas só existem no papel, pois têm um armamento muito variado, uma logística deficiente, uma quase total ausência de equirpamento de engenharia e comunicações, treino !inadequado a todos os níveis, falta de capacidade de comando e grandes limita­ções de transporte e mobilidade. As conclusões são esmagadoras, embora não digam muito de novo em relação ao que já se sabia: «Não é de esperar que o actual Exército Português se ·porte bem em combate, pois tem um comando antiquado e fraco nos graus supe­riores, não têm experiência ·de guerra moderna, está mal equipado, e~tá mal treinado e não possui sequer um espírito batalhador» ( ª).

A prrioridade da acção do MAAG vai justamente para um aspecto a que os portugueses atribuíam pouca importância: a revi­talização do corpo de oficiais, com um intenso programa de treinos. Espera-se que este acabe por ter o efeito de afastar os mais idosos dos cargos de chefia, o que só pode ser obtido através de uma cola­boração crescente entre o MAAG e a direcção militar. Uma das formas de o conseguir é justamente através do equipamento e treino da divisão TA. Na concepção .do MAAG não se trata meramente de formar uma nova unidade. O grande objootivo, é que ela se torne a escola ·de uma geração formada pelos americanos, com uma mentalidade diferente.

Há, assim, duas visões muito diferentes sobre as funções e o papel da divisão TA: na visão portuguesa, trata-se de cumprir um compromisso NATO, uma espécie de preço a pagar para receber a ajuda militar; na visão americana, trata-se de criar uma alavanca que modifique por completo a mentalidade, organização, capacidade técnica e objectivos do Exército português, ou seja, que mude o conjunto da sua filosofia de forma gradual e quase insensível. No essencial, foi 'ª visão americana que prevaleceu.

Ao fim das primeiras semanas de acção do MAAG, o próprio Ministro da Defesa já se apercebeu que a ideia ide criar 5 divisões TA em poucos anos é irrealista. Faz então uma oferta intermédia e fala na formação imediata de 2 divisões. de modo a criar um Corpo de Exército (4).

("') Relatório do MAAG para 1951, com um resumo dos inquéritos e levantamentos entretanto feitos a vários níveis, datado de Dezembro de 1951. NA RG 334 MAAG Lisbon.

{•) Directiva do Ministro do Exército de Março de 1952. Mencionada por Ernesto Ferreira de Macedo, Subsldios para o Estudo do Esforço Militar Por­tuguês na Década de 50, iEME, Lisboa, 1988, vol. 1, pp. 39·41.

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Os EUA recebem friamente a «oferta» portuguesa de colocar 2 divisões à disposição da NATO. A sua opinião é que se deve começar por formar l única, sabendo perfeitamente que tal é impos­sível, pois faltam milhares de técnicos e centenas de especialidades. Para convencer os portugueses, os EUA apresentam uma lista capaz de matar um touro do que implica a criação de uma divisão moderna em termos de equipamento e técnicos, deixando que os números falem por si(~).

O EME, como já referimos, é quem primeiro compreende o total irrealismo da política oficial, o que afirma pela primeira vez no já citado estudo de Novembro de 1951. A MAAG sabe-o desde o começo e, logo em fins de 1951, defende que «Se torna evidente que Portugal não vai cumprir o seu compromisso com o MTDP» ( ~), entendendo por tal que nem sequer terá uma divisão NATO pronta antes de 1954 - Portugal falava num mínimo de 2 e talvez em 5, mas tal não é problema. Segundo o MAAG, o que interessa, é justa­mente o contrário : continuar o lento esforço de formar uma única divisão moderna e impedir que se desviem recursos da Força Aérea e da Marinha para o Exército. Esta hipótese é, para os americanos, a pior de todas e receia-se que Santos Costa tente justamente isso ao aperceber-se que os alvos oficiais não podem sem alcançados.

A análise do MAAG leva-nos a salientar um importante ponto, essencial para compreender o que vai suceder. Quando o MAAG -e a NATO- não criticam abertamente o Exército de 10 ou 15 divisões, mas insistem em formar de imediato pelo menos uma, estão a fazer muito mais do que simplesmente alterar a organização e mentalidade do Exército, o que já seria importante. Estão a mudar o conceito central da política de defesa nacional, tal co.mo aprovada até aí. Na realidade, a famosa divisão moderna não se pode impro­visar, pois a formação de muitas centenas de técnicos e a criação de novos quadros organizativos demora tempo. É uma tarefa onde não se pode comprar tempo com mais gastos, ou onde isto só é possível numa medida muito limitada. O MAAG tem assim a justi-

(.;i) Está previstQ, por exemplo, todo o equipan:umto de rádio, telefone e radar (não usado pelo Exército até aqui); 35 veículos anti-aéreos M-19; 35 canhões auto..pro,pulsados M-16; 42 semi-lagartas M3Al; 5 tanques M3A.1; 11 tanques M-24; 145 tanques M-47; dezenas de traotores e transportes blm­dados; centenas de jeeps e camiões; 800 metralhadoras pesadas; 612 bazucas M20· dezenas de morteiros; aviões de observação; equipamento de sapadores e en'genharia; instalações de cozinha de campanha, tendas, hospitais, etc., e.te. Só o número de ambulâncias, por exemplo, é equivalente ao de itodo ~Exército português; o número de mecânicos é maior que o existente. na totahdade das forças armadas ( ! ), com especialidades de que nunca se ouviu falar. O choque para os ·portugueses pior informados é imenso.

(&) Relatório de Bonbright (MAAG), de 23 de Novembro de 1951. NA 753.5/11.235.

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ficação para afirmar que não vale a pena trazer para Portugal mais armamento e ·equipamento moderno para o Exército, quando o pro­blema é a falta de preparação. A partir deste raciocínio, é quase inevitável haver uma deslocação de recursos para a Força Aérea e para a Marinha e, logo, uma alteração no equilíbrio das capaci­dades operacionais e da estrutura da força armada.

Em última instância, esta deslocação, gradual e aparentemente ~em importância, conduz a uma mudança na tónica da política de defesa para uma concepção essencialmente aeronava!, virada para •l espaço atlântico. Por outras palavras, sem nunca levantar ou dis­cutir questões de fundo, o MAAG altera em poucos anos os conceitos centrais da política de defesa portuguesa. Os planos anteriores con­tinuam a existir no papel, mas as capacidades reais criadas apontam num sentido muito diferente e são estas que contam.

O processo implica vencer muitas resistências, especialmente por parte de Santos Costa que, de forma inteligente, se apercebe muito cedo do que está a suceder e não gfosta. O Ministro da Defesa confirma os receios do MAAG em rfins de 1951, quando pede um encontro com o general Gruenther ou um representante do SHAPE. Nessa altura, reafirma que Portugal, para além de enviar 3 divisões para os Pirinéus, coloca mais 2 à disposição da NATO, assim que exista um acordo com a Espanha nesse sentido e que estas serão dvisões TA.

O ano 'de 1951 é, para o Exército, o do ccchoque inicial»~

quando a consciência da imensidão da diferença se instala nos sec­tores mais lúcidos e se abre o confronto com o Ministro da Defesa. Os anos de 1952-54 serão os da vitória do realismo, que é acom­panhado por importantes modificações a todos os níveis. Como é normal em Portugal, a «vitória do realismo» implica o sacrifício dos elementos que, mais lucidamente, foram os primeiros a criticar os conceitos anteriormente dominantes. A defesa da eficácia paga-se caro nas organizações tipo corporativo, como todos os portugueses Pahem.

A primeira correcção é feita em termos dos alvos atribuídos a Portugal e surge logo em começos de 1952, no seguimento da cimeira da NATO em Lisboa. O compromisso português é reduzido a todos os níveis e) :

( 7 ) Decisões do Conselho da NATO de Lisboa, em Fevereiro de 1952. ANTT AOS/CO/PC-78M. Descrição confirmada nos documentos da NATO e do MAAG (NA RG 334}.

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caso a guerra estale em 1952, Portugal assegura a formação de unidades para · a defesa do continente e Ühas <contra ataques em pequena escala e de 1 única divisão territorial, para uso nos Pirinéus em D + 60 ( 60 dias depois da mobi­lização);

caso a guerra comece em 19 5 3, para além das unidades de defesa do território, garante-se a formação de 1 1divisão territorial ( Pirinéus) e 1 de campanha (a usar em França) em D + 30, sendo 'ambas aumentadas para 2 em D + 60; caso a guerra estale em 1954, Portugal assegura a formação de 2 divisões de campanha e 1 territorial em D+ 30, com mais 2 territoriais em D + 60, para além das undades a manter em Portugal.

É uma redução para 1quase metade dos alvos anteriores, mas são compromissos ainda demasiado ambiciosos, como o futuro mos­traria. Com base neles. o Ministro da Defesa emite uma no·va direc­tiva (em Maio de 1952), que representa um recuo, mas não satisfaz o Exército. Fala-se agora na formação de 2 divisões de campanha até 1954, concordando-se que se deve começar por uma; diz-se que as unidades portuguesas formam 2 corpos de exército (CE) : um nos Piriné.us, com as 3 divisões territoriais ; outro em França, com as 2 de campanha. Quase ao mesmo tempo, uma outra directiva fonfirma que as divisões de .campanha devem seguir o modelo da <li visão de infantaria americana (8).

O EME fica admirado. por vários motivos. Em primeiro lugar, ·Continua a pensar ·que os compromissos são exagerados ; em segundo lugar, nunca estudou a preparação dos 2 CE que enquadram as divisões, necessidade só agora mencionada e questão que está longe de ser secundária; em terceiro lugar, sabe que não é possível formar uma única divisão igual às ·americanas.

Damos somente uma referência, 1para se compreender o imenso alcance da «rev<>lução serena». Os estudos que são lançados pelo ME em 1952 não tardam ·a 'concluir que não se podem simplesmente ndoptar as especialidades americanas, sendo necessário simplificar e cortar muita coisa. Mesmo assim, a l.ª relação de especialidades do Exéreito português que foi aprovada um ano depois (a 23 de ·Março de 1953) aponta para 423 especialidades, bastante mais ·do ·que as existentes antes. Não era suficiente, pois a simplificação foi excessiva. Passados 7 meses, era aprovada uma 2.ª relação, onde

(ª) General Ferreira de Macedo, op. cit., vol. I.

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se previam 4 9 3 especialidades (Outubro de 19 5 3 ) . Mais uns meses e surge a 3.ª relação, com largas dezenas de especialidades adicionais.

O EME lança igualmente a criação de novos serviços, que cor­respondem a tarefas antes não praticadas, ou praticadas numa escala incompatível com o armamento NATO. Um dos mais importantes é o chamado Serviço de Material, onde se agrupam as múltiplas especialidades de manutenção e reparação. A sua organização é um dos mais complexos problemas do Exército, a pontos de ter demo­rado quatro anos: aprovado em 1952, só seria criado em 1956 (9), justificando-se a longa gestação com o «atraso industrial do nosso país». Outros serviços adquirem autonomia e complexidade: é o caso do Quartel Mestre, do Serviço de Transportes e Transmissões (antes englobado na Engenharia) ou do serviço de Ajudante General (que inclui a administração, contabilidade e serviços especiais). No entanto, as maiores e mais amplas modificações dão-se a nível do serviço de Estado-Maior, que antes da NATO estava reduzido a uma pel'!Illanente improvisação.

O EME está, assim, numa situação difícil : recebe fortes pres­sões da direcção política para alcançar alvos irrealistas e tenta fazer o que pode. A isto, há a juntar um outro importante factor muito diffoil de avaliar: a resistência passiva de um corpo de oficiais tradicional e numeroso que se começa a aperceber que com a NATO chega uma verdadeira revolução. As novas exigências são dificil­mente compatíveis com o modelo do oficial pouco empenhado, de ieduzida formação técnica e que arredonda o orçamento com uma actividade por fora, que corresponde à maioria. Muitos oficiais aperbebem-se que são todos os critérios de carreira e promoção que estão em causa e iniciam uma resistência surda. O seu argumento é perfeitamente lógico : se querem técnicos empenhados e moti­vados, paguem e criem as condições para tal. O resultado final é que reorganização do Exéreito avança muito lentamente.

O EME tem o apoio do MAAG e dos oficiais do SHAPE, entre­tanto instalado em Fontainebleau. O facto ainda mais exaspera Santos Costa que, dentro do seu temperamento característico, encara todo o processo como uma espécie de boicote conspirativo com «apoios internacionais» e inconfessáveis intenções políticas.

Finalmente, no seguimento de uma nova visita do Marechal Montgomery a Portugal, acaba por se aceitar que se deve criar ini­cialmente uma única divisão ccNATO», onde se concentraria a ajuda MAP. Seria ela a escola de treino de todo o Exército e a escola de renovação da capacidade de comando - era o que o MAAG dizia

(º) DL 40 880, de 24 de Novembro de 1956.

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e queria desde o primeiro minuto. As nomeações do comando da divisão NATO são feitas em Julho de 1952: o comando é entregue ao general Manuel Topinho (gue acumula com o comando da 2.ª RM), tendo como segundo comandante o brigadeiro João Pinto Ribeiro (do IAEM) ; o CE onde a divisão se integra é comandado pelo general Álvaro de Passos ( director do IAEM), tendo como CEM o coronel Júlio Botelho Moniz.

6 - O PAPEL DA «DIVISÃO NATO»

Os trabalhos para a formação efectiva da divisão NATO arran­cam em força no último trimestre de 1952, quando é decidido avançar com, o campo de Santa Margarida. As obras de Santa Mar­garida recebem toda a prioridade, mas, mesmo assim, decorrem com uma lentidão que exaspera os americanos.

As dificuldades surgem a todos os níveis, sendo uma das pri­meiras a falta de oficiais de estado-maior. São imediatamente orga­nizados cursos especiais, com o apoio do MAAG, tendo o triplo da frequência normal ( 1º). O DL 3 9 O 5 3 (de 2 6 de Dezembro de 19 5 2 ) consagra uma nova organização do curso de Estado-Maior do IAEM, 1eduzido no tempo e com maiores facilidades para inscrição. No entanto, como a duração do curso é de dois anos, tal significa que só em fins de 1954 estão formados o mínimo dos oficiais para uma única divisão e o CE.

A formação da dvisão NATO representa uma alteração de grande envergadura, pois o que se passa com os oficiais de estado­-maior acontece com quase todas as outras especialidades. Em pra­ticamente todas se verifica que Portugal não tem quadros em número suficiente. Improvisam-se dezenas de cursos de formação, animados alguns pelos oficiais que receberam treino no exterior a partir de 1951. Noutros casos, é apressado o envio de oficiais para os EUA ou para a Alemanha.

Criam-se também novas escolas. É o caso, por exemplo, da Escola Militar de Electromecânica, formada a partir do grupo de especialidades de Paço de Arcos, com a missão de dar cursos de mecânicos electricistas, mecânicos de instrumentos, aparelhagem radioeléctrica e radar, bem coino de formar operadores de radar

(lU>) O facto é referido no 1.º volume da já mencionada obra do general Ernesto Ferreira Macedo, o único estudo português sobre o processo da for­mação da divisão NATO.

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para os três ramos das forças armadas e organizar estágiqs de actµa­lização para oficiais (11

).

Entre 1951 e 1957 são aprovados dezenas de novos Fegula­mentos, em muitos casos uma mera tradução simplificada dos· textos americanos. Os técnicos do MAAG apoiam esta actividade editorial, sabendo à partida que é uma das melhores maneiras de incentivar a «revolução serena», conquistando assim os quadros com uma men­talidade fortemente burocratizada, que precisa sempre de ter tudo claramente regulado e escrito.

Os relatórios do iMAAG não tardam a referir que um dos prin­cipais efeitos do envio de centenas de oficiais para a formação no exterior foi que a anterior desconfiança em relação a tudo que era americano tende a ser substituído pelo seu contrário : uma admi­ração quase incondicional pelos novos métodos e técnicas. A partir de 1954, o que é americano passa a ser aceite como bom, de forma tão acrítica como anteriormente, mas no sentido inverso.

Um dos efeitos mais demolidores e dissolventes deste facto é que a nova geração, mais técnica e de mentalidade aberta, perde muito do respeito venerador que tinha pela hierarquia. Para o quadro médio formado em 1951-61 na escola americana, os oficiais superiores tradicionais, com a quase total falta de mentalidade téc­nica, capacidade de iniciativa nula e métodos lentos e rotineiros, passam a ser os «dinossauros».

O armamento americano chega em força a partir de 19 5 2. O 14.º Regimento de Infantaria é a primeira unidade que o recebe, bem como o Regimento de Cavalaria de Belém. Os novos tanques (M-47 e M-24) causam espanto e admiração, bem patente no facto de a sua fotografia ser frequentemente usada na capa das revistas militares. O seu uso exige cursos especiais na reorganizada escola de tanques, dirigida pelo major Valentim Deslandes, formado nos EUA.

A escola de artilharia de Vendas Novas adopta igualmente os métodos americanos, fogo em 1952. Há, no entanto, projectos de aproveitar o numeroso material de artilharia alemã recebido durante a guerra, pondo a indústria nacional a fazer a conversão plirtt• .os calibres da NATO. Os EUA apoiam este projecto que é um dos m~is bem sucedidos. A artilharia recebe assim poucas peças americanas - quase só peças autotransportadas de lagarta. Em contrapartida, os tractores, material de transmissões, predictores e métodos de organização passam a ser americanos, enquanto os serviços de apoio

( 11 ) DL 38 945, de 11 de Outubro de 1952.

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e a logística são revistos de alto a bailo. A artilharia recebe igual­mente material inovador, onde se destacam as avionetas Piper Cub, usadas para observação pela Escola de Vendas Novas (12

).

Na engenharia, as transformações são ainda mais radicais. O material americano tem capacidades muito superiores ao anterior e toda a organização e métodos são alterados, assim que os primeiros técnicos regressam dos cursos nos EUA. As transformações aqui são lentas, pois as mudanças são demasiado amplas para poderem ser improvisadas. A Escola Prática de Engenharia vê o quadro alar­gado (1ª).

A partir de 1952, o arranque do esforço real para formar uma única divisão cria um verdadeiro efeito de choque que leva os comentários dos oficiais mais conscientes para os documentos oficiais.

Abranches Pinto, o Ministro do Exército, de mentalidade téc­nica e espírito pró-americano, não tarda a dar razão aos oficiais do EME, que lhe provam de muitas maneiras que os alvos a que Portugal se comprometeu são irrealistas. Logo em Maio de 1952 já Abranches Pinto diz isso mesmo, e de forma oficial, ao coronel Luís Pina. Os seus argumentos são muito fortes : o MDAP está a fornecer material a um ritmo como Portugal nunca conheceu ; no entanto, grande parte deste tem de ficar nos armazéns, pois não há técnicos formados para a sua manutenção e uso; apesar deste ritmo, o material a receber até 1954 só dá para 1 divisão e, mesmo assim, não é possível formar todos os técnicos correspondentes ; logo, é impensável obter as 2 divisões NATO em 1954 e muito menos em 1953, o que é o alvo que Portugal estabeleceu para si próprio C1 ... ).

Santos Costa reage fortemente a esta negação oficial da sua política e, quando se apercebe que ela corresponde a uma irrecusável realidade, dá a entender de diversas formas que a culpa é da inefi­cácia do Exército em geral, do seu ministro em particular e que, muito possivelmente, há por detrás de tudo uma acção concertada. Abranches Pinto responde em termos corporativos, falando em nome do Exército contra o Ministro da Defesa. Refere nomeadamente que o Exército sempre achou que não se podia combater ao lado dos americanos com armamento de calibre diferente, com equipamento diferente e com outros métodos; que Santos Costa deu pessoalmente ordem para desviar o material em armazém ·destinado à divisão NATO para outras unidades; que o MAAG conhece a situação, talvez

('2) Relatório do MAAG de Li1Sboa para Novembro de 1952. NA RG 334 MAAG Lisbon.

01~) DL 38 438, de 25 de Setembro de 1951. ('H) Apontamento de conversa entre os referidos oficiais, datado de

13 de Maio de 1952. ANTI AOSJC0/PC-78M.

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mesmo melhor que o Ministro da Defesa, razão porque não prevê a entrega do material para a segunda divisão até 1954; e, final­mente, que a culpa dos atrasos não é do Exército, que faz o seu melhor, mas sim da apatia anterior, criticando de forma velada mas notória o gigantismo irrealista (15

).

O diferendo passa a ser oficial e ao mais alto nível. Salazar é chamado a arbitrar e Santos Costa explica-lhe a sua versão. Mantém a ideia de que é possível formar 2 divisões de campanha até 1954, embora tal implique negociar o aumento da ajuda americana ; dá a entender que as resistências partem de um sector limitado do Exér­cito, mas que podem ser removidas. Salazar, aparentemente, resolve não intervir abertamente, por enquanto.

O diferendo de meados de 1952 não podia ser resolvido por acordo mútuo. Abranches Pinto tinha obviamente razão, o que pouco interessava num diferendo que era uma prova de força polí­tica. O Ministro da Guerra contava com o apoio do sector mais dinâmico e moderno do Exército e, em larga medida, limitava-se :e ser porta-voz de uma opinião firmemente enraizada e que a experiência da formação da divisão de Santa Margarida confirmava diariamente. Santos Costa, por seu lado, sentia que era toda a sua política que estava a ser posta em causa e usava o argumento que era preciso manter os alvos para desviar o equipamento americano para as outras divisões não-NATO (1ª).

O Ministro da Defesa contacta com o MAAG de Lisboa e pede um aumento da ajuda. Os americanos conheciam melhor do que ninguém as dificuldades da formação• da divisão de Santa Margarida e sabiam que o material que forneciam ficava nos armazéns ou era desviado. Eles eram os últimos que ·podiam ser enganados com meia dúzia de frases e promessas nos documentos oficiais. No entanto, nesta fase (fins de 1952) as negociações com a Espanha ainda não estão concluídas, pelo que não há a certeza sobre o futuro esquema de bases no sul da Europa e interessa manter os portugueses tão contentes quanto possível (1 1

). Assim, a resposta é positiva.

(ts) Comunicação de Abranches Pinto a Santos Costa, datada de 5 de Junho de 1952. ANTT AOSJ CO/ PC-78M.

('16) Santos Costa parecia alimentar a ideia ingénua de que era possível desviar o equipamento americano sem o conhecimento do MAAG. Na realidade, o MAAG sabia perfeitamente o que estava a ser feito, mas fechava os olhos. Santos Costa parecia não se •ter ainda apercebido da real penetração dos ame­ricanos nas forças armadas, mesmo logo em 1952, graças ao programa de formação e aos amplos fundos.

('.I T) O raciocínio é exposto numa carta do Ass. Secretary for Europe, Jonas Bonbright, dirigida ao Secretário de Estadoj a 7 de Agosto de 1952. NA 753.56353/7;552.

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Os americanos aceitam manter o alvo oficial das 2 divisões para 1954 (sabendo que é irrealista) e, quanto ao material, pro­metem fornecer o necessário e garantem que não será pela sua falta que a formação das unidades NATO se atrasa (1ª). Os novos planos, apontam para a existência da infra-estrutura da primeira divisão NATO até Março de 1953, com uma segunda até Março de 1954. Nessa altura, devia ser possível igualmente, em caso de guerra, formar outras 2 divisões para os Pirinéus e os grupos de defesa do continente e ilhas, ou seja um total de 5 a 6 divisões - já se estava longe dos anteriores alvos.

O MAAG sabe que estes objectivos são teóricos e que as alte· i·ações no Exército português são lentas. É esta a tese defendida igualmente no relatório do adido de defesa inglês para 1952. Aí é dito que as obras de Santa Margarida estão atrasadas e que a for­mação dos milhares de novos técnicos necessários decorre de forma anormalmente lenta, não sendo de prever que esteja acabada antes dos fins de 1954, ou seja, nessa altura nem sequer haverá uma divisão pronta e jamais as duas. De qualquer modo a «divisão de Santa Margarida» só funciona enquanto tal no curto período das manobras anuais e as últimas revelaram mais uma vez as conhecidas deficiências portuguesas. Em relação às divisões TP (tipo portu­guês) a usar nos Pirinéus, elas usam armamento obsoleto muito diverso (origem alemã, italiana e inglesa), nunca funcionaram enquanto divisões, tem métodos da era pré-NATO e pouca utilidade tem numa guerra real, mesmo em funções secundárias. Considera-se que os métodos americanos estão a ser absorvidos muito lentamente t' ainda não provocaram alterações significativas (isto em fins de 19 5 2 ) . A conclusão geral é semelhante à dos anos anteriores :

ccDe momento, o Exército português só serve para acções de segunda linha. Será preciso pelo menos um ano depois de um conflito começar pal"a o preparar para •participar activamente nos combates e, mesmo assim, só se as unidades a formar saírem de Portugal e passarem por um treino intensivo e uma ambientação gradual sob apertado controlo e comando aliado» (1º).

Os ingleses refetiiµn mesmo que o atraso se· devia a . uma «evi­dente relutância por parte dos portugueses» e a uma <<antipatia natural» pelos americanos. No entanto, eles seriam os primeiros a contrariar esta tese passado um ano. No relatório de 1953, o

(11ª) Carta de Santos Costa ao MAAG de Lisboa, a 25 de Novembro de 1952 e resposta. NA RG 334 MAAG Usbon. Esta posição de fun~o pão impede que se recusem uma série de pedidos concretos, como o da substitmção das peças AA de 3,7' inglesas pelo material de 90 mm americano.

f'") Relatório anual para 1952. PRO FO 371 107646.

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adido militar inglês reconhecia já que «a influência amerioana é evidente», sendo cada vez maior o número de "Oficiais que se inscrevia em cursos para aprender o inglês, que se tinha tornado uma língua obrigatória para quem queria fazer carreira ; reconheciam que uma nova geração estava em rápida ascensão, criava ccilhas de eficácia» dentro de uma máquina geral ainda incompetente, amorfa e parali­sante, que continuava igual a si própria. A Inglaterra reconhecia assim o discreto mas imenso trabalho do MAAG americano em poucos meses e confirmava que o seu impacto estava a ser maior do que tinha pensado inicialmente ( 20

).

Em começos de 1953, as obras de Santa Margarida estão adian­tadas e é possível reunir as principais unidades da divisão NATO, algumas das quais já parcialmente equipadas com material ameri­cano, embora ainda muito deficientes em termos de técnicos. Para dar uma ideia do ritmo de chegada do material MDAP, basta referir que só num mês (Janeiro de 19 5 3 ) desembarcam no porto de Lisooa 55 tanques M-47, 447 •camiões e 32 ambulâncias, para além de centenas de toneladas de equipamento diverso. Nessa altura, o 14.º regimento já está no essencial equipado com veículos e armas americanas e os 10.º e 12.º regimentos de infantaria estão num estado avançado de transição.

7 - AS REALIDADES

Como seria de esperar, em Marito de 19 5 3, quando a primeira divisão NATO devia estar completa, o processo ainda está no começo, como o EME previu antecipadamente

Nesta altura, porém, os efeitos da formação da divisão NATO fazem-se já sentir em todo o Exército. A principal razão foi o método seguido. Os portugueses aperceberam-se que o material americano era muito superior ao que possuíam, representando um pulo qualitativo imenso, ao qual estava associado uma organização e métodos diferentes. Alteram então a filosofia da formação da divisão NATO, seguindo os conselhos do MAAG. Passa a haver a preocupação de distribuir o material moderno tão amplamente quanto possível por unidades de todas as regiões militares, ao con­trário do que tinha acontecido inicialmente.

Em meados de 1953, a força NATO era chamada de 2.ª divisão e estava baseada sobretudo na 2 .ª RM, mas com ampla participação

(2º) Relatório da embaixada inglesa sobre o Exército português para 1953. PRO FO 371 101975.

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das outras. Incluía batalhões que pertenciam a 7 regimentos de ~nfantaria, 3 regimentos ·· de cavalaria e 5 regimentos de artilharia, enquanto o Estado-Maior era ela responsablidade de outros 2 regi­mentos. Por outras palavras, quase todos os regimentos portugueses, .de ~orte a sul, estão envolvidos em maior ou menor grau no pro­cesso de formação da divisão de Santa Margarida - que só se reúne para manobras que duram poucos dias.

Deste modo, o impacto dos métodos americanos é muito amplo e faz-se sentir em todas as armas e em quase todos os regimentos. O MAAG obteve plenamente os seus objectivos.

A partir de 1953, existem claramente dois padrões no Exér­cito português. As unidades ligadas à divisão NATO tem equipa­mento, organização, treino, doutrinas tácticas e capacidades subs­tancialmente diferentes das restantes. É o próprio EME que incen­tiva este processo, aparentemente numa tentativa consciente por parte do sector mais técnico da corporação de apressar a mudança em curso. O ministro da defesa discorda, o que origina mais um <:onflito com o Ministério do Exército.

O diálogo entre os dois é muito elucidativo, pois reflecte as dificuldades de introduzir a modernidade de uma élite numa má­quina obsoleta e adversa à inovação. Santos Costa defende a menta­ldade da maior parte do corpo de oficiais, dizendo que não se entende a existência de duas doutrinas e dois padrões, até porque, na sua opinião, tudo se resume a unidades com maior ou menor poder de fogo, o que não justifica uma duplicação de critérios, que contribui para a própria dissolução do espírito de coesão da força armada. O EME responde de forma cautelosa, com infinitos rodeios, para chegar finalmente à conclusão que é evidente para qualquer técnico que participe efectivamente no processo : o que está em causa não é um mero aumento do poder de fogo ; é uma completa alteração de critérios, doutrinas, lácticas, formação e organização. Recorda pacientemente que, sem o <<extenuante esforço» de formação -em curso, não existiria a :divisão de manobras de Santa Margarida e acaba com uma saída diplomática: ccnão se fazem comentários ao resto do despacho de S. Ex.ª o Ministro da Defesa» ( ! ).

Nesta altura, as tensões .são muito fortes. O general Barros Rodrigues ( CEME) sugere ao · Ministro do exército ( Abranches Pinto) que o EME só deve manter correspondência com ele, pois Santos Costa não tem competência para entender argumentos téc­nicos. O final deste documento é anormalmente forte no Estado Novo, onde tudo se escrevia ,ias entrelinhas e nunca se faziam crí­ticas frontais:

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«Ü EME não pode continuar a trabalhar, sem grave preJmzo da sua eficácia e 'até do seu ·próprio nioral, subordinado a entidades com critérios e pontos de vista diferentes e até completamente opostos» ('21

).

Era mais uma crise da «revolução serena». De novo Salazar é chamado a arbitrar, pois o Exército está dividido, o que pode ser perigoso para o próprio regime. O ministro do Exército exige que Santos Costa retire a acusação de que a culpa de não terem sido atingidos os alvos da NATO é do EME. Salazar intervém directa· mente a dar-lhe razão e a «corrigir» a linguagem dessa parte do relatório de Santos Costa ( 22

). Abranches Pinto desfaz-se em agra­decimentos ( 23

), mostrando a sua falta de conhecimento dos métodos de Salazar. A tese de fundo é que o Ministério do Exército fez o melhor possível nas circunstâncias e o facto de, em fins de 19 5 3, não estar sequer uma divisão organizada não reflecte a sua incompe­tência, mas sim o irrealismo dos obectivos, algo que os amercanos subscrevem sem hesitar. Recorda-se que, por exemplo, o EME re­duziu muito o número de técnicos e quadros intermédios na única d.ivisão NATO, pois o Exército português não tinha elementos for­mados em número suficiente, nem perspectivas de os ter nos anos mais próximos.

Abranches Pinto conseguiu uma vitória à Pirro. O conflito, aberto e oficial, tinha ultrapassado os limites possíveis no Estado Novo. Não interessava quem tinha razão, até porque ninguém a tinha, como Salazar certamente compreendia. O problema é que o conflito estava a dividir o Exército e à volta dos dois ministros organizav-am-se grupos de pressão que Salazar não podia permitir que se consolidassem, especialmente porque tinham uma base que excedia as pessoas: Abranches Pinto reunia o apoio dos oficiais mais jovens, dinâmicos e competentes, com maior capacidade técnica, adeptos incondicionais da escola americana, em rápido crescimento; Santos Costa representava a mentalidade da maior parte do corpo de oficiais, que dizia apoiar e incentivar as mudanças em curso, mas, na realidade, temia as suas consequências e ficava assustado 11elo facto de as dominar muito mal.

(21) Documento de base do EME de 1 de Maio de 1953, resposta do ministro da defesa de 17 de Junho e contestação do EME sem data. ANTT AOS/CO/ GR-10.

(22) Santos Costa aceita o facto, pois o pedido foi feito numa missiva pessoal e confidencial de Salazar. Coorrespondência e cartão de Santos Costa, datado de 6 de Julho de 1953. ANTT AOS/CO/GR-11.

(2S) «Tenho •agora de redobrar as expressões do meu reconhecimento, pelo Exército e por mim, por as coisas haverem sido postas por parte de V. Ex.• nos seus devidos termos». ANTT AOS/CO/GR-11.

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Salazar, actua com a sua normal habilidade política: dá razão a Abranches Pinto em termos privados e, assim que o conflito é esquecido, afasta-o do Governo. Santos Costa acumula as pastas da Defesa e do Exército a partir de Abril de 1954.

O que é curioso neste conflito, é que tanto Santos Costa como Abranches Pinto dizem pretender aplicar a doutrina da NATO, reclamam para si a compreensão e apoio do MAAG e atacam-se mutuamente, mas sempre afirmando que é o outro que não respeita os compromissos internacionais. Este facto, mais do que qualquer outro, mostra que a «revolução serena» em curso era muito profunda e iria para diante independente de quem vencesse os múltiplos con­flitos concretos da adaptação, o que não quer dizer que estes fossem indiferentes.

Santos Costa, em particular, enfrenta uma contradição difícil de ultrapassar. Foi o primeiro a aplaudir a entrada na NATO, julgando que ela se traduziria no acelerar de uma muito necessária modernização. Na sua visão inicial, a NATO era o camnho para concretizar o crescimento numérico em que se baseava a política de defesa. Simplesmente a modernização, quando chegou, implicou sobretudo alterações qualitativas, insuspeitas antes, e provocou, não um crescimento, mas uma contracção dos alvos quantitativos ante· riores. Além disso, a modernização acarretou uma mudança de mentalidade significativa na melhor e mais activa parte do Exército e um choque da jovem élite técnica com a grande massa do corpo de oficiais. Santos Costa sabe que precisa dos jovens oficiais for­mados pelos americanos, sabe que eles são o melhor do Exército, mas quer evitar 'ª mentalidade diferente que eles trazem consigo, sem compreender que são aspectos inseparáveis. O resultado, são os múltiplos conflitos que descrevemos muito por alto e a efectiva paralisação da política de defesa oficial.

A acumulação das pastas da Defesa e do Exército não resolve o problema, antes pelo contrário. Numa primeira fase serve mesmo para aumentar os conflitos entre o EME e Santos Costa. Um resul· tado evidente é um maior atraso na formação da divisão NATO, processo que está longe de estar completo em 1954 (2;4). O que é mais, Santos Costa não tarda a concluir que precisa de ganhar o apoio da geração formada pela NATO e tem de adaptar os seus ritmos às realidades. Isto leva-o a incentivar uma revisão drástica, mas silenciosa, da política de defesa a partir de 1954. O resultado

(2• ) Â. embaixada inglesa n.ão duvida que a pmncipal razá;o do atraso em 1954/55 são os frequentes conflitos surdos entre o E~tado-Ma1or e Santos Costa.

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final foi que, nas palavras do poeta, «o vencedor rendeu-se ao vencido», por outras palavras, as teses de Abra.nches Pinto venceram, o que implicou o afastamento de Abranches Pinto.

Santos Costa, no entanto, é o primeiro a promover e a colocar nos postos de responsabilidade os principais nomes da «geração NATO», como era inevitável a médio prazo. É ele que faz subir e promove homens como Costa Gomes, Botelho Moniz e Humberto Delgado entre outros, todos com uma ampla experiência da NATO. A sua relação é, no entanto, sempre tensa e nunca se regista a simpatia pessoal e de objectivos políticos. Assim, não é para admirar que os homens que Santos Costa promove, serão os primeiros a virar-lhe as costas depois de 1958.

O processo é acompanhado por uma ampla renovação da alta hierarquia a partir de 1954. Esse ano é um dos mais significativos em termos .da alteração do quadro de oficiais generais do Exército : saiem 8 e entram nada mP.nos de 13. A mudança é tão rápida, que dos generais existentes em 1958, só 6 são anteriores a 1954. Algo de semelhante se passa aos restantes níveis. O processo de modernização ida NATO é acompanhado por uma ampla alteração das chefias superiores e intermédias, com uma ascensão anormal­mente rápida da geração mais técnica formada pelos americanos, uma alteração imensa dos quadros e uma redução dos quantitativos teóricos da força, tanto em tempo de paz como de guerra. Eram resultados inesperados para Santos Costa e os seus efeitos políticos seriam evidentes.

A partir de 1953/54, os responsáveis portugueses ganham cons­ciência de um facto que antes não percebiam : custa muito caro manter uma unidade moderna e, se o programa de ajuda americano fjnancia generosamente a sua formação, é o orçamento português que tem de pagar o essencial da manutenção regular. Um estudo feito em começos de 1954 chega à conclusão que a mera manutenção das unidades dos três ramos recentemente formadas com a ajuda americana custa anualmente cerca de 7 4 milhões de dólares, ou seja, mais que o total do orçamento de defesa normal. Este facto,, só ·por si, impede a concretização dos planos de Santos Costa.

Os programas NATO obrigaram entre 1950 e 1956 não só a um constante aumento das despesas ordinárias com a defesa, mas igualmente à inclusão de duas fatias (ambas de três anos, num total de 6 anos) de despesas extraordinárias, num vlaor de cerca de 4 milhões de contos. Os orçamentos a:quais referiam com regulari­dade o grande esforço de defesa a que a «solidariedade atlântica» obriga e, desde 1954, não se esquecem de acrescentar que este esforço impede o crescimento do investimento na economia ao ritmo dese-

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jado. Tudo coincide com a necessidade de reforçar a guarnição ·da índia, Macau e Timor e de enviar forças navais significativas à escala naconal para o Índico.

Em meados de 1954, o próprio Santos Costa, agora à frente dos Ministérios do Exército e da Defesa, reconhece o que Abranches Pinto dizia antes: até fins de 1954, e mesmo nos anos seguintes, só é possível formar uma única divisão moderna (tipo NATO, ou americano - TA). As realidades, ao fim de muitos anos, acabam por se impor!

Em 1954, Portugal faz um especial esforço para empenhar em manobras todas as unidades operacionais que devia formar em caso de conflito.

A directiva então distribuída, ordena à 2.ª Região Militar, ajudada pela 3.a, que forme o esqueleto da divisão NATO; a 1.\ 3.ª e 4.ª regiões militares, deviam formar três divisões territoriais, que seriam encaminhadas para os Pirinéus; participam ainda nas operações outras unidades destinadas à defesa do território da me­trópole e que aí se devem manter, no equivalente a mais uma divisão. Estas forças são o máximo que os responsáveis portugueses podem mobilizar em caso de conflito, depois de abandonarem os seus esquemas gigantescos iniciais.

Tinha-se atingido finalmente uma estrutura de força estável e realista, que se iria manter até ao começo das guerras de África.

A reorganização do Exército aprovada em 19 5 5 consagra-a oficialmente, simplesmente agora a divisão NATO passa a depender sobretudo da 3.ª Região Militar, pelo que será conhecida pela 3.ª divisão. Em caso de mobilização, Portugal formaria: a 3.ª divisão ligada à NATO; as 1.\ 2.ª e 4.ª divisões para a defesa dos Pirinéus; a 5.ª divisão, formada 1por diversas unidades dispersas para a defesa do continente, ilhas e império. Um total de 5 divisões, das quais só uma moderna, ou seja, bastante longe .das 15 divisões pensadas desde 19 3 5.

Teoricamente todas têm a mesma orgânica, o que corresponde a um dos pontos de princípio de Santos Costa, mas não à realidade. Na prática, a 3.ª divisão é muito diferente, sendo a única que mantém um efectivo de 30 a 50 % em tempo de paz.

Segundo o plano de mobilização aprovado em 1956, a for­mação deste dispositivo em tempo de guerra implicaria 134 395 homens, assim divididos e~) :

("'") Ernesto Ferreira de Maoodoj op. cit., vol. I, p. 145.

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Divisão NATO ( 3.ª divisão) 3 divisões nos Pirinéuse ... Forças no continente e ilhas Forças na Índia e reservas ..

Total

19 938 50 538 44 035 19 884

134 395

Nenhuma destas divisões está operacional rapidamente, mesmo em caso de mobilização : tanto a unidade NATO como as outras não passam de um esqueleto em fins de 1954. O MAAG é 'claro: Portugal, em caso de conflito, não consegue cumprir 'o objectivo de formar uma divisão NATO em D+ 30, nem se deve esperar que o faça antes de D+ 180 (e isto com ajuda substancial!); quanto às 3 divisões territoriais tal como existem em 1954, a opinião do MAAG é que elas só podem ser usadas 'em defesa estática e a sua utilidade real é muito duvidosa caso entrem em combate, mesmo sem se movimentarem.

Na realidade os progressos da :formação da divisão NATO em 1954 são bastante menores que no ano anterior. ' A chegada de Santos Costa ao Ministério do Exército teve como efeito imediato uma centralização de !unções, com a perda de autonomia do EME e do comandante de divisão. O resuitado, foi a destruição tempo­rária de uma das poucas ccilhas de -eficácia», de onde resultaram frequentes conflitos surdos e resistências passivas, que se traduziram numa paralisia de todo o 'processo. Como dele depende a moder­nização do Exército português em geral, os efeitos negativos não tardam a ser evidentes no exterior.

O MAAG faz sentir a sua influência de forma subtil, mas pfectiva, defendendo as teses da nova geração formada pela NATO. O próprio SHAPE intervém através de mais uma visita de Montgo­mery a Portugal. O marechal consegue 'arrancar a Santos Costa a promessa de uma maior autonomia para a divisão NATO, que passa então a depender principalmente da 3.ª RM.

Não vamos acompanhar os muitos conflitos que marcam esta época, porque todos eles obedecem ao mesmo padrão :

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• o EME resiste activamente a Santos Costa com base em argumentos técnicos;

• tem, em regra, o apoio dos oficiais mais cO'Dlpetentes ; • Salazar é obrigado a intervir várias vezes, como já fez ante­

riormente, com soluções de compromisso, quase sempre aceitando os argumentos do EME, mas com a preocupação de não atingir a autoridade de Santos Costa ;

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• Santos Costa impõe a sua vontade, mas tem cada vez menos apoio no corpo de oficiais, a começar na Marinha e a con­tinuar no Exército.

A embaixada inglesa classifica este período como sendo de «ordens e contra-ordens», com grande «confusão» (26

). É uma boa definição.

8 - A MUDANÇA DA POLÍTICA MILITAR

Podemos concluir que a «revolução serena» seguiu um sentido inesperado. A força existente em 1956 era muito diferente da de 1951 e era igualmente muito diferente do planeado. Abandonou-se com grande relutância e resistência a ideia de um Exército de massas com 15 divisões e criou-se uma realidade muito diferente, mais pequena, mais técnica, com outra formação, com uma nova geração nos postos importantes e com uma mentalidade anormalmente aberta aos valores ocidentais de eficácia, dinamismo e liberdade. Era o resultado que os EUA sempre procuraram.

Qual a real eficácia desta máquina em 1956/ 58 e 'ª sua capa­cidade de cumprir as tarefas que lhe estavam oficialmente atri-buídas? Em termos simples e directos: quase nula. .

A divisão de Santa Margarida era, sem dúvida, a força mais capaz e tecnicamente avançada que o Exército português possuiu e estava a anos luz da realidade de 19 51 , :mas pura e simplesmente não era o equivalente a uma divisão americana. Para tal não bas­tavam 4 anos de esforços intensos: era preciso muito mais tempo pois, em última instância, o que se tinha de mudar era a falta de mentalidade técnica, de educação de base e ,de métodos de iniciativa, democracia e eficácia do poís. Por outras palavras: a «revolução serena» ia ao fundo dos problemas, mas não podia produzir milagres em 4 anos.

O SHAPE conhecia perfeitamente esta situação e não se preo­cupava com ela. Basta dizer que, por exemplo,. foi só em. fins de 1954 e por insistência portuguesa que o SHAPE atribuiu teorica­mente uma zona de concentração no sul da França à -divisão portu­guesa (a zona Perigueux-Limoges-Angoulême). Dizemos teorica­mente porque o SHAPE sabia que, em caso de guerra, não seria possível assegurar o transporte das unidades nacionais. Basta referir

( 24 ) Relatório político para 1954. PRO FO 371 117766.

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a este respeito, e sem entrar em pormenores, o estudo do EME de começos de 19 5 8, segundo o qual seriam precisos pelo menos 123 dias para transportar pela Espanha o material pesado da divisão, quando o compromisso teórico português era ter tudo em França no dia D+ 30 - e isto partindo do duvidoso princípio de que a Espanha facilitava o transporte.

O SHAPE e a NATO são informados desta conclusão, mas não se mostram preocupados. Pelo contrário, a opinião oficial do SHAPE, transmitida a Portugal, era que em fins de 1956 as uni­dades portuguesas não tinham eficiência para combater na Europa central, ou seja, para cumprir a missão para que estavam teorica­mente a ser treinadas à 5 anos. Por outtras palavras, o SHAPE sabia que a divisão de Santa Margarida não podia combater na .frente central. Por esse motivo não se preocupava me resolver o ccproblema» do transporte, que ainda não tinha solução em 1960.

Todo este processo a nível do Exército é acompanhado por outra evolução de efeitos ainda mais significativos na Força Aérea e na Marinha, que não acompanhamos por falta de espaço. A Força Aérea de recente criação, por exemplo, entra na era do jacto e da dectrónica pela mão da NATO; a Marinha, que era já a arma mais técnica e bem organizada, modifica substancialmente a sua estrutura de força, tácticas e métodos.

No conjunto, é toda a política militar portuguesa que se altera substancialmente. Antes da NATO, temos uma política militar ba­&eada no entendimento preferencial com a Espanha e a Inglaterra, que tem como primeira prioridade a defesa dos Pirinéus e do regime e que aponta para um exército de 15 divisões, ao qual os restantes ramos se subordinam. Depois da NATO, temos uma política militar baseada num entendimento preferencial multilateral onde os EUA são predominantes, que tem como primeira prioridade a defesa da Furopa dentro de uma estratégia atlântica, onde a tónica é colocada nos elementos aeronavais e numa única divisão moderna, a usar teoricamente na França em caso de guerra.

É uma mudança de fundo ·da política militar, mas não é a única nos anos cinquenta. A partir de 1957 desenha-se a transição para uma políttica militar que coloca a tónica na defesa do Império, com o efectivo abandono dos compromissos NATO, embora tal não seja assumido oficialmente. A transição está completa em 19 5 9, bastante tempo antes do começo da luta armada em Angola.

Chegamos assim a uma conclusão e aparentemente difícil de <'Ompreender: a divisão NATO, o centro das preocupações da Exér­cito portuguê.5 durante dez anos, o motor das transformações dos

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anos cinquenta, nunca existiu, ou seja, nunca pode realmente cumprir as suas funções teóricas e oficiais. O que é mais: a NATO não se importou nada com o facto, que conhecia perfeitamente. Pelo con­trário, no pensamento do SHAPE as forças terrestres portuguesas sempre foram uma espécie de reserva de longo prazo, que depois de uma guerra começar precisariam de ,cerca de um ano de esforços aliados para serem realmente operacionais, sendo muito duvidoso que houvesse tempo para tal. Recordamos que os planos de guerra da NATO depois de 1954 apontam para um conflito nuclear desde o primeiro momento e de curta duração.

O facto da NATO em geral e os EUA em particular não se preocuparem com a incapacidade da divisão portuguesa cumprir a sua missão oficial leva-nos ao cerne do problema, tal como o enca­ramos desde o começo. A NATO foi e é sobretudo uma instituição com objectivos •políticos e a participação portuguesa visou fins de grande estratégia, que eram diferentes dos oficiais e não podiam ser ditos publicamente, sob pena •de perderem a sua eficácia. O verda­deiro inimigo da divisão de Santa Margarida, na perspectiva da NATO, não eram os tanques russos nas planícies da França. O ver­dadeiro inimigo, era um exército tradicional, obsoleto, pouco técnico e renitente ao espírito ocidental e americano ; o verdadeiro inimigo, era a política de defesa de Santos Costa, continental, terrestre e anti-NATO. Esses dois inimigos foram completamente derrotados e desbaratados pela «revolução serena».

A divisão de Santa Margarida cumpriu a sua função, mesmo que esta não fosse a oficial. As mudanças em curso eram muito mais amplas e vastas do que os responsáveis da altura, ou muitos dos historiadores posteriores, pensavam.

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SESSÃO DE

ENCERRAMENTO

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DISCURSO DE ENCERRAMENTO

Gen. MANUEL THEMUDO BARATA

Chegou ao fim mais um Colóquio de História Militar. É o sexto duma série surgida na hora própria. Daí, antes de mais, a regularidade da sua frequência e o crescer dos seus frutos.

Como primeiro responsável pela sua organização, cabem-me nesta sessão de fecho, três palavras muito breves. Uma primeira, de agradecimento a Vosssa Excelência, Senhor General Chefe do Estado Maior da Força Aérea, que nos dá a honra de presidir a este acto final do VI Colóquio. E agradecimento que peço licença para estender a tantos - e, de facto, muitos - que connosco, foram artífices do êxito conseguido. Outra palavra para cumprir a tarefa sempre ingrata de tentar um resumo daquilo que acabamos de viver, quando ainda o tempo não nos desligou do acontecido e, por isso, nos falta a perspectiva histórica, que então, sim, apontará o que de mais importante aqui se passou nestes três dias. De alguma forma ligada à anterior - até no risco de errar - a última referência que me cabe é voltada para o futuro, tentando, com prudência mas também com a ambição que nunca pode faltar a quem caminha, um esboço de projectos e de novos passos.

* * *

Quando, em 1990, a Comissão Portuguesa de História Militar tomou a iniciativa de promover estes colóquios tinha perfeita cons­ciência das suas limitações para se abalançar numa aposta de certo modo ambiciosa e pouco corrente em Portugal : pouco corrente entre nós, onde, na realidade, a dimensão do nosso meio cultural toma difícil manter este ritmo de encontros .anuais; e ambicioso, pois era tentá-lo numa área da história não só esquecida como mar­ginalizada e tida como menor.

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Agora, em face do êxito que é já este percurso de seis anos, apenas reinvindicamos para a Comissão o mérito de ter ·acreditado. E acreditado duplamente. Primeiro que tudo, ter acreditado que era a hora. Ou seja, que existia, latente, um generalizado desejo, tanto no meio universitário como entre os militares empenhados no estudo da História Militar, de recuperarmos o tempo perdido e de nos procurarmos pôr ao nível da situação vivida no estrangeiro, muito em particular nos países europeus. E, na sequência da cons­tatação deste desejo - nuns casos timidamente expresso, noutros apenas uma predisposição não comprometida e, em alguns, não muitos mas muito bons e muito decididos, um exemplo e um estí­mulo motivadores-, a ·Comissão ter acreditado que não lhe falta­riam os apoios indispensáveis a tão ambicioso projecto. E não faltaram.

Por isso, na impossibilidade de individualizar os nossos agre­decimentos, quero, neste momento, ao menos, referi-los e enqua­drá-los nos diversos aspectos em que se traduziram.

Porque está na origem da nossa existência, e nos continua a assegurar as condições de vida e de eficácia para o nosso trabalho, a nossa primeira referência é para o Ministério da Defesa Nacional, que nos criou e no seio do qual continuamos a funcionar. E, muito em especial, para Sua Excelência o Ministro, de quem directamente dependemos e no qual temos encontrado não só apoio e compreensão, como um interesse e um estímulo que estão na base do ·que temos conseguido realizar. Neste mesmo âmbito institucional, devo ainda destacar a nossa estreita colaboração com o Estado Maior General das Forças Armadas e os Estados Maiores dos Três Ramos, traduzido de várias formas, permitindo-me destacar, até pelo seu significado, a presença habitual dos Senhores Chefes dos Estados Maiores às sessões de abertura e de fecho destes Colóquios.

A terceira referência é para o meio universitário. Com efeito, tanto a Comissão como, sobretudo e muito em particular, estes Colóquios não seriam o que são hoje, sem a adesão e a força que encontraram nas universidades : o seu caminhar teria sido mais difícil e mais lento, o seu horizonte mais acanhado e, portanto, os seus frutos qualitativa e numericamente inferiores. Adesão aberta dos Senhores Reitores e dos Departamentos de História ; adesão entusiástica e activa de muitos e prestigiados professores catedrá­ticos, bem como doutros docentes; e adesão importantíssima, pelo seu significado, da nova camada de mestrandos e, mesmo, de jovens licenciados ou simples estudantes. A dinâmica originada por esta mútua influência dos que pro·gramam, ensinam e orientam com os que investigam e procuram novas pistas históricas, tem sido um dos

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factores fundamentais para o rápido renascer, nos últimos anos, da história militar em Portugal. Nesta linha de agradecimentos, devo destacar o contributo decisivo daqueles que deram vida aos nossos trabalhos. Estou a referir-me às ilustres individualidades ·que acei· taram moderar as sessões, aos autores das comunicações apresentadas e a todos os inscritos que, pelo seu interesse e assiduidade, tanto contribuíram para o bom ambiente vivido e para a animação dos debates.

* * *

Na sessão de ·abertura deste VI Colóquio, logo deixei bem claro que em três dias, embora cheios com a apresentação de 16 comu· nicações abrangendo um leque muito vasto de assuntos, não pode­ríamos esgotar o tema que nos tínhamos proposto. Aliás, todos nós, tínhamos consciência dessa impossibilidade.

Chegados ao fim, esta convicção arreigou-se. Ou seja, esta nossa comum certeza, não somente se firmou melhor como ganhou novas raízes. Com efeito, o Colóquio permitiu-nos reunir uma ampla bibliografia sobre o assunto, o que facilitará a sua posterior explo­ração em futuros trabalhos. Trouxe novas achegas sobre a inter· venção de forças portuguesas tanto na Península, e em geral na Europa, como noutros continentes, com relevo para o Brasil, Vene· zuela, Marrocos, Golfo Pérsico e Macau. Neste âmbito, aprofundou algumas participações já bem conhecidas e chamou a atenção para acções e figuras ainda pouco tratadas. No que concerne à parti­cipação de forças e de militares estrangeiros em Portugal ou ao nosso serviço, quase tudo ficou por dizer, pois em matéria tão vasta apenas dois oradores sobre ela se debruçaram.

Por este breve resumo dos temas versados, de imediato res· salta a extraordinária riqueza dum capítulo, na prática, inexplo· rado da história militar portuguesa. E inexplorado, muito em espe· cial, num filão do maior interesse e da maior actualidade para a historiografia contemporânea. Com efeito, até agora, a atenção dos raros historiadores militares que se dedicaram a tal estudo, em regra, fixou-se nos militares, quer nacionais quer estrangeiros, de maior renome. E, ·do mesmo modo, na intervenção de forças volumosas de países estrangeiros em território português ou de forças portu· guesas no exterior. Algumas das intervenções feitas neste Coloóquio vieram alertar-nos para o que falta fazer, bem de harmonia, aliás, com as mais modernas correntes historiográficas : a presença de militares portugueses ou estrangeiros, até aqui quase desconhecidos,

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mas que importa estudar para compreender o que realmente se passou. E o mesmo se diga a respeito da acção de pequenas forças militares.

Tal como nos velhos tempos da monarquia, em que mal aca­bava um reinado logo o outro se iniciava ao grito do arauto ccO Rei morreu. Viva o novo Rei». Também, agora, ao fechar-se o VI Coló­quio me cabe anunciar o VII que, assim o esperamos, se realizará, como é habitual, na primeira quinzena de Novembro do pró­ximo ano.

Até lá, a Comissão irá esforçar-se para reunir todas as comuni­caçães apresentadas, para publicação em actas. Sem elas, o Colóquio morreria aqui. Não digo que todo o nosso esforço e empenhamento teriam sido inúteis, mas certamente seria frustante para todos nós e para ·quantos esperavam vir a aproveitar destes nossos trabalhos. Daí, o primeiro apelo que neste momento dirijo a todos os parti­cipantes no Colóquio para que, tão rapidamente quanto possível, entreguem para publicação o texto definitivo das suas comunicações. Todos sabemos - e sentimos - que um trabalho de investigação é, por sua própria natureza, inconclusivo, isto é, está sempre a receber novas achegas que o enriquecem. E, por isso, nos custa a todos nós dá-lo por concluído, a curto prazo pois há sempre um novo ponto a acrescentar. Mas, quando se trata de um trabalho colectivo, como o que nos reuniu neste Colóquio, por vezes, a demora em concluí-lo - e para isso basta que faltem um ou dois textos - traduz-se na não publicação das respectivas actas. Este risco merece bem que, para o evitar, vençamos em nós mesmos esta tentação, natural mas perigosa, de perfeccionismo.

O segundo apelo - neste caso, talvez melhor, o segundo con­vite - que faço a todos os participantes deste VI Colóquio é que, desde já, se disponham a aqui estar, para o ano, em novo Colóquio. E, não apenas a aqui estar, como a proporem-se a si próprios o assunto da comunicação com que nele se inscreverão. Para tal é necessário, dir-se-á, que se defina o tema do Colóquio de 1996, o que, do antecedente, só tem sido feito muito tarde.

Reconhecendo esta deficiência, a Comissão propõe-se anunciar, já em Janeiro, o tema do VII Colóquio e procurará, neste, vir a anunciar o seguinte.

* * *

O ano de 1966 será um tempo de grandes desafios para a Comissão Portuguesa de História Militar. É que, para além da

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preparação do nosso Colóquio anual, teremos de 'avançar na orga­nização e montagem de todos os serviços e apoios necessários à realização, em Lisboa, do XXIV Congresso Internacional de História Militar que congregará centenas de historiadores dos cinco conti­nentes. E será ainda, assim o esperamos, em 1996 que a Comissão Portuguesa será reestruturada, ganhando existência legal mais sólida e mais bem definida.

Tudo isto testemunha quanto a História Militar se tem enrai­zado em Portugal nesta última década. Na realidade, quem o po­deria adivinhar anos atrás? E, como na parábola dos vimes, a força que ela hoje possui resulta da estreita ligação do trabalho que cada um de nós vem desenvolvendo na sua área própria.

Por isso, todos nós, os que acreditamos nela - e algo por ela fizémos - estamos de parabéns. E nestes encontros -ganhamos novas forças para continuar.

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A CONSOLIDAÇÃO DE PORTUGAL NA IDADE MÉDIA

Prof. Doutor HUMBERTO BAQUERO MORENO

São profundas as transformações que se operam no Portugal que transita do século XIII para o século XIV. Terminada a recon­quista em meados da centúria de duzentos, o país preparava-se para uma nova fase que pressupunha uma estabilidade, quer no plano económico, quer ainda social e institucional. Sucedia, porém, que o equilíbrio existente, aparentemente firme, encerrava em si acen­tuadas contradições que resultavam essencialmente da ansiedade dos homens, destituídos de privilégios, em libertar-se 'dos vínculos que os prendiam à terra e os obrigavam a obedecer aos detentores do poder, sem possuírem a mínima contrapartida.

Nesse aparente equilíbrio três forças se debatem entre si e visam impor a sua hegemonia: a realeza através dos seus órgãos procura sobretudo impor a sua supremacia, deparando contudo com assinaláveis dificuldades perante a oposição que lhes movem o poder senhorial e as autarquias locais ambos ciosos das suas prerrogativas. A luta que se trava ao norte do rio Tejo entre estas duas estruturas, transporta-se para o sul da referida linha de água num conflito mais esbatido devido à extensão territorial, entre os municípios e as ordens milit~res. Dificilmente se pode afirmar a quem pertence o predomínio, acentuando-se contudo ao longo do século XIV uma progressiva afirmação do poderio por parte da realeza.

O grande desenvolvimento dos concelhos vai contribuir dum modo decisivo para a transformação da sociedade portuguesa. Assim, no decurso do século XIII observa-se gradualmente o desapareci­mento da servidão da gleba, desvinculando-se o homem da terra. Progressivamente aumentam os alódios e os contratos enfitêuticos, do mesmo modo que o arrendamento substitui o colonato. Esta tendência irá reforçar-se ainda mais no século seguinte.

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O conjunto de fenómenos atrás referidos resulta sobretudo do aumento de importância dos concelhos medievais que fazem frente aos privilegiados. Inegavelmente passam a ser estes órgãos do poder local o elemento essencial que trava o poder senhorial, motivo pelo qual a coroa pretende estabelecer com eles uma melhor articulação.

Deste modo se explicam as grandes alterações que vão produ­zir-se nos municípios ao longo do século XIV. Muito embora eles se regessem pelas cartas de foral, convém observar que estas sofrem profundas modificações resultantes da aplicação de novas leis , e posturas, que acabam por transformar os mesmos em realidades novas do ponto de vista legislativo.

Explica-se este novo corpo legislativo em função da crescente complexidade desses órgãos do poder local. A necessidade de acudir com a maior eficácia às questões administrativas, irá traduzir-se no aparecimento de novos cargos, que passarão a responder adequada­mente a problemas concretos. Paulatinamente as assembleias dos homens bons irão cedendo passo a grupos de homens mais restritos, que formarão as vereações. Estas passam a ser constituídas pelos juízes de cível e do crime, pelos vereadores, pelo procurador e pelo escrivão da câmara.

Há medida, porém, que o governo local for sendo mais redu­zido, maior será a tendência para o poder central interferir, ora fazendo-se representar por um seu delegado, o alcaide, ora pressio­nando no sentido de nomear ou forçar a eleição de pessoas da sua confiança. Aliás o regimento dos pelouros de 1391 insere-se nesta lógica ao designar os candidatos em sintonia com o corregedor, repre­sentante da coroa, o que explica muitas das resistências à sua apli­cação, tal como se verifica no Algarve.

Sendo o século XIV uma época de intensa consolidação terri­torial, em que tudo sofre uma profunda transformação, natural­mente que era necessário dotar o país duma osssatura militar que lhe garantisse os contornos e o preservasse face ao perigo duma absorção política por parte de Castela, de quem se temia uma hege­monia integracionista. A estratégia de implantação dos castelos sofre uma alteração sensível. Enquanto que no período de formação estes redutos militares acompanham as principais linhas fluviais, áreas de defesa e de demarcação frente aos muçulmanos, a partir dos fins do século XIII vai-se gerar por obra de D. Dinis uma intensa acção restauradora e edificado·ra de fortalezas militares em toda a fron· teira de Portugal com Castela.

Na sua globalidade a fronteira que nos separava do reino vizinho era densamente guarnecida de castelos. Especialmente as regiões da Beira com um total de trinta e quarto castelos e do

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Alentejo col'.11 um conjunto de trinta e sete castelos, representavam uma das redes mais densas de todo o país, se tivermos sobretudo em conta que se tratavam de áreas geográficas extremamente vul­neráveis.

Importante, também, se apresenta o sistema defensivo situado ao norte do rio Douro. Área do território densamente ocupada, aceita-se que os habitantes enquadrados por uma poderosa nobreza tradicionalista procurassem garantir a sua própria 1defesa. Um total de vinte e um castelos localizados próximo da fronteira zelava pela sua integridade. Trás-os-Montes região menos povoada, mas de maior extensão que a anterior, com um conjunto de dezanove castelos, surge-nos como uma zona do território bem guarnecida se tivermos em atenção a inserção topográfica dos mesmos.

O Algarve com os seus doze castelos garantia a defesa da sua orla marítima e da fronteira com Castela. Outra área muito bem guarnecida situava-se entre Coimbra e Lisboa, a qual assentava numa rede formada por vinte e nove castelos.

A par da referida ossatura militar assiste-se em Portugal, dum modo particular na segunda metade do século XIV, a um reforço da área fronteiriça, através da fundação ·de coutos de homiziados cujo propósito visa aumentar o número de homens em localidades consideradas perigosas, quer pelas invasões quer pelas incursõe:> oriundas de Castela.

A política de consolidação da linha fronteiriça aparece-nos ini­ciada por o rei D. Dinis, em 1308, com a fundação do couto de homiziados de Noudar. A circunstância deste lugar se encontrar muito despovoado motivou o referido monarca a encetar esse tipo de ocupação humana. Na sequência desta iniciativa proceder-se-á à fundação, em data indeterminada, do couto de homizia·dos de Sabu­gal, o qual além de despovoado tinha o inconveniente, segundo um documento, de se encontrar «junto com a raya de Castela».

A crise intensa que pairava sobre Portugal, no reinado de D. Fernando, devido às campanhas militares, a que se somava uma acentuada rarefacção humana nas áreas fronteiriças, obrigou aquele monarca a desenvolver o processo de fixação de homens através do estabelecimento de novos coutos de homiziados. Assim, no seu rei­nado fundam-se os da Guarda ( 1371 ), Marvão ( 1378 ), Miranda do Douro (1379), Penamacor (1379), pontos sensíveis na defesa da fronteira. Com D. João I prossegue-se esta política ao funda­rem-se os de Arronches ( 1385 ), Castelo Mendo ( 1387 ), Belmonte ( 1387 ), Juromenha ( 1388 ), a que se seguem ainda no século seguinte, durante este mesmo reinado, os de Caminha ( 1406 ), Freixo de Espada à Cinta (1406), Penarroias (1407), Chaves

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(1412), Monsaraz (1414), Monforte do Rio Livre (1420), Ouguela (1420), Mértola (1420), Segura (1421), Outeiro de Miranda ( 1421 ), Castro Marim ( 1421 ), Penha Garcia ( 1431) e Melgaço ( 1431 ). Ao longo do século XV esta política manteve-se, com a criação de novos coutos de homiziados, em ordem a garantir a salva­guarda do espaço português face ao perigo exterior.

Cumpre observar que a situação de despovoamento em que se encontrava a raia portuguesa afectava na generalidade todo o terri· tório. São muitos os exemplos que poderemos citar com base nos dados parcelares obtidos. A par dessa situação aparecem referências aos fogos-mortos no século XIV, com a indicação de aldeias desertas, casais abandonados e herdades votados à sua sorte. As grandes arro· teias do século XIII sucedem-se agora espaços semi-desertos, onde a floresta e o mato avançam impunemente. Dificilmente, contudo, podemos afirmar qual a percentagem do espaço agricultado que teria sofrido uma redução, apenas possuindo dados seguros para a r egião do Baixo Mondego.

A Peste Negra associada a outras epidemias, que a precedem ou lhe sucedem, conjugada com outros ,factores negativos como a fome, derivada das guerras ou dos maus anos agrícolas, aumentam a taxa de mortalidade, o que provoca naturais mutações sociais. A uma sociedade relativamente estabilizada, sobretudo no que res­peita às classes populares, irá suceder uma outra que se caracteriza por uma movimentação que rompe os quadros tradicionais. Os homens abandonam as suas terras à procura de melhores condições salariais, mudando de concelho para concelho e buscando nas cidades melhor nível de vida. Nestas porém nem sempre encontram um modo de existência adequado, pelo que a acrescentar aos tradicionais extractos sociais de cavaleiros e fidalgos, mercadores, mesteirais e peões, temos a acrescentar uma massa de indigentes e de vagabundos errantes. A marginalidade aumenta dum modo significativo.

Durante o reinado de D. Pedro I executam-se algumas medidas que procuram impedir o afluxo da população rural às cidades. O di­rigismo social que o monarca procura impor apenas vêm avolumar as tensões sociais. No governo de seu filho, o rei D. Fernando, devido ao estado de miséria e de abandono em que se encontrava o país, após a invasão castelhana de 1369-1371, rebentam revoltas em Santarém, Alenquer, Abrantes e Tomar, que Fernão Lopes dum modo simplista pretende apenas atribuir ao mal-estar causado pelo impopular casamento entre o monarca e D. Leonor de Teles. O aumento da carga fiscal, a escassez do pão, a depreciação da moeda e o incremento da fome, explicam as revoltas de Portel (1374), de Montemor-o-Velho (1375) e de Tomar (1379). Are-

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volução de 1383 apresentará contornos, que ultrapassando a reacçãG contra uma possível integração em Castela, resulta dum forte movi­mento de mesteirais, que aliados à burguesia da capital, pretendem derrotar as forças do sistema feudal e alcançar o governo de cidades importantes como Lisboa, Évora e Porto. Assiste-se, assim, nos fins do século XIV a uma luta entre os mesteirais, aliados na conjuntura aos burgueses, contra os cavaleiros-vilãos, ·detentores de terras e de poder no governo focal, que a todo o custo pretendem conservar a sua influência e capacidade de intervenção.

Por seu turno a nobreza constituída pelos fidalgos detentores das grandes propriedades, mas numa fase de crise derivada de um fenómeno de extinção biológica, procura articular a sua actividade através duma aposta no comércio internacional, entrando em con­corrência com .a burguesia, cuja força em .Portugal ainda se apre­sentava bastante reduzida.

Em termos de identidade nacional temos que o século XIV conheceu várias crises, com matrizes variadas e em ritmos diferentes. Esta crise não impediu que as cid1ades se desenvolvessem com relevo para Lisboa e para o Porto. Lisboa tornou-se a cidade onde a par de . infra-estruturas navais e de comércio se escoava a maior rede de tráfico internacional. A presença nela ·de importantes colónias estrangeiras constitui um indicativo da sua vitalidade. Seguia-·se à capital em importância comercial, no que respeita a actividade mari· tima, a cidade do Porto, cujo crescimento havia sido impressionante ao longo do referido século.

Cidades com um cunho mais rural, mas também importantes como centros de comercialização de cereais, gado, vinho e azeite, eram Coimbra, Évora e Santarém. Com um papel significativo no comércio de transporte do peixe e do sal " surgem-nos Aveiro e Setúbal, a que se podem juntar as cidades algarvias de Lagos, Faro e Tavira, ligadas ao comércio internacional de exportação da fruta. Outros centros de relativa importância no comércio agrário interno eram Braga, Guimarães, Bragança, Lamego, Viseu, Guarda, ·Covilhã, Pinhel, Elvas e Beja.

Apresentando-se, ainda, a população portuguesa no século XIV com características acentuadamente rurais e apesar de todas as vicis­situdes e contrariedades, começam a notar-se sinais de desenvo.Ivi­mento urbano a que não era .alheio um certo progresso no domínio das 1écnicas de fabrico e de construção naval. Convém, ainda, salientar, que no século XIV, se aperfeiçoam os mados de produção e de circulação de bens essenciais aos homens.

Naturalmente que esta sociedade de base, não obstante a sua ânsia de libertação e de mobilidade, continua aind·a muito presa ao

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regime senhorial, que a explora e a subordina. Existe, contudo, uma acção contínua de desgaste das estruturas feudais, que visa essencialmente obrigar a aristocracia a ter de arrendar as suas terras por rendas fixas, as quais são muito vulneráveis ao permanente ritmo de oscilação do custo dos bens e da própria desvalorização da moeda.

Outro dos sintomas que caracteriza a sociedade do século XIV traduz-se na diminuição da produção cerealífera, que resulta sobre­tudo da queda do consumo devido à rarefacção da população. O aumento do comércio externo viria no entanto a incrementar a produção da fruta, do vinho e do azeite, factor que irá contribuir no sentido do desenvolvimento duma burguesia mercantil. Estes e outros factores de mudança, a par de um sentimento exacerbada­mente nacionalista que leva estes homens a terem uma reacção xenófoba contra a presença de estrangeiros, poderosos concorrentes, explica que o Portugal dos fins do século XIV em termos de iden­tidade pouco tem a ver com o Portug·al acentuadamente ruJ1alizado da centúria anterie>r. Por isso mesmo pode ·afirmar-se que a «crise» ou as «crises» do século XIV geraram um conjunto de mutações que contribuÍJ'lam dum modo decisivo para o aparecimento dum Portugal voltado para a modernidade e para a internacionalização, a que poderá acrescentar-se no século XV a descoberta duma nova dimensão . cl)m. o , aparecimento .dum PQrtugal «novo» voltado para o «novo» mundo ultramarino.

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ÍNDICE DO VI COLóQIDO

TEMA DO COLúQUIO 3

ELEMENTOS SOBRE A COMISSÃO 5

NOTA PRÉVIA .. ... ... 11

PROGRAMA DO COLúQUIO .. 13

SESSÃO INAUGURAL .. . . . . . . 21

A Nova História Militar - General Manuel Themudo Barata . . . 23

A Organização Militar nos Fins da Monarquia- Prof. Doutor Joaquim Veríssimo Serrão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29

Quelques propos ccBelges» sur les Portugais et ccl'étrangen> dans l'Histoire Militaire du Portugal - Prof. Doutor Patrick Lefevre ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... .. . ... ... 35

SESSÕES DE TRABALHO

I SESSÃO

Carlos Bessa, João Fernandes de Leão - Criador de Cidades na Venezuela .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39

António Pedro Vicente, Alorna e Gomes Freire - Propostas para uma Reorganização Militar no Início do Século XIX .. . 51

II SESSÃO

Isilda Braga da Costa Monteiro, O Exército e o Registo da Me-mória. As Monografias das Unidades ... .. . .. . . . . ... ... 69

Fernando Castelo Branco, Militares Estrangeiros ao Serviço de Portugal na Restauração. Será de Aceitar a Visão de Oliveira Martins? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85

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III SESSÃO

João Gouveia Monteiro, A Campanha Anglo-Portuguesa em Cm-tela, em 1387 •• . . . • . • • • • • . • . . . . • . . . . • . • . • • . . • 89

Abel dos Santos Cruz, As Almogaverias em Marrocos: 1415-·147 l ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 113

IV SESSÃO

Silvino da Cruz Curado, O General Bohm no Brasil . . . 129

Patrícia Drumond Borges Ferreira, A Importância do Fabrico de M ateria de Artilharia em Macau na Primeira Metade do Século XVII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 145

V SESSÃO

Gomes Pedrosa, Portugueses em Armadas Estrangeiras no Medi-terrâneo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 159

António Ventura, Militares Portugueses no Exército de D. Carlos (1834-1839) - O outro lado da I Guerra Carlista . .. ... 167

VI SESSÃO

Luís M. Alves Fraga, Os Combates da Infantaria Portuguesa em França - 1917-1918 ... ... ... ... ... ... ... ... ... 173

Isabel PestJana Marques, A Correspondência de Guerra e a Vivência nas Trincheiras da Flandres . . . . . . . . . . . . . . . . . . 203

VII SESSÃO

José Manuel Alves Quin1ias, Aliança Atlântica e Mudança Polí-­tica em Portugal (1949-1961)-I. A Metamorfose Polí-tico-Militar do Salazarismo na Década de 50 . . . . . . . . . . . . 215

Nuno Severiano Teixeira, Isabel Ferreira Nunes, Portugal e as Operações de Paz das Nações Unidas . . . . . . . . . . . . . . . . . . 239

António José Telo, Dos Pirinéus a Angola -A Política Militar Nacional nos Anos 50 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 243

SESSÃO DE ENCERRAMENTO

Manuel Themudo Bara1ia, Discurso de Encerramento .. . . . 277

Humberto Baquero Moreno, A Consolidação de Portugal na Idade Média .. . .. ... ... . .. ... ... ... . . . ... ... ... 283

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Composto e impresso nas oficinas gráficas de RAMOS, AFONSO & MOITA, LDA. R. da A Voz do Operário, 5-A- 1100 LISBOA

Depósito Legatl n.º 112 688/97