COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL-EM BUSCA DE UMA ÉTICA UNIVERSAL, NOVO OLHAR SOBRE A LEI NATURAL

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Estudo sobre lei natural feita pelo vaticano.COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL-EM BUSCA DE UMA ÉTICA UNIVERSAL, NOVO OLHAR SOBRE A LEI NATURAL

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  • COMISSO TEOLGICA INTERNACIONAL

    EM BUSCA DE UMA TICA UNIVERSAL:

    NOVO OLHAR SOBRE A LEI NATURAL (*)

    SUMRIO

    INTRODUO

    CAPTULO I: Convergncias

    1.1. As sabedorias e as religies do mundo

    1.2. As origens greco-romanas da lei natural

    1.3. O ensinamento da Sagrada Escritura

    1.4. Os desenvolvimentos da tradio crist

    1.5. Evolues ulteriores

    1.6. O magistrio da Igreja e a lei natural

    CAPTULO II: A percepo dos valores morais comuns

    2.1. O papel da sociedade e da cultura

    2.2. A experincia moral: necessrio fazer o bem 2.3. A descoberta dos preceitos da lei natural: universalidade

    da lei natural

    2.4. Os preceitos da lei natural

    2.5. A aplicao dos preceitos comuns: historicidade da lei

    natural

    2.6. As disposies morais da pessoa e seu agir concreto

    CAPTULO III: Os fundamentos tericos da lei natural

    3.1. Da experincia s teorias

    3.2. Natureza, pessoa e liberdade

    3.3. A natureza, o homem e Deus: da harmonia ao conflito

    3.4. Caminhos para uma reconciliao

    CAPTULO IV: A lei natural e a Sociedade Poltica

    4.1. A pessoa e o bem comum

    4.2. A lei natural, medida da ordem poltica

    4.3. Da lei natural ao direito natural

    4.4. Direito natural e direito positivo

    4.5. A ordem poltica no a ordem escatolgica

    4.6. A ordem poltica uma ordem temporal e racional

    CAPTULO V: Jesus Cristo, realizao da Lei Natural

    5.1. O Logos encarnado, Lei viva

    5.2. O Esprito Santo e a nova lei da liberdade

    CONCLUSO

    INTRODUO

    1. H valores morais objetivos capazes de unir os homens e de

    faz-los procurar paz e felicidade? Quais so eles? Como

    discerni-los? Como coloc-los em prtica na vida das pessoas e

    das comunidades? Estas questes de sempre em torno do bem e

    do mal so, hoje, mais urgentes do que nunca, na medida em que

    os homens tomaram mais conscincia de formar uma s

    comunidade mundial. Os grandes problemas que se lhes

    colocam assumem, doravante, uma dimenso internacional,

    planetria, pois que o desenvolvimento das tcnicas de

    comunicao favorece uma interao crescente entre as pessoas,

    as sociedades e as culturas. Um acontecimento local pode ter

    repercusso planetria, quase imediatamente. Emerge, assim, a

    conscincia de uma solidariedade global, que encontra seu

    fundamento ltimo na unidade do gnero humano e se traduz

    pelo sentido de uma responsabilidade planetria. Assim, a

    questo de equilbrio ecolgico, da proteo do ambiente, das

    fontes e do clima torna-se uma preocupao premente, que

    interpela toda a humanidade e cuja soluo ultrapassa

    largamente as fronteiras nacionais. Igualmente, as ameaas, que

    o terrorismo, o crime organizado e as novas formas de violncia

    e de opresso fazem pesar sobre as sociedades tm uma

    dimenso planetria. Os desenvolvimentos acelerados da

    biotecnologia, que ameaam, por vezes, a prpria identidade do

    homem (manipulaes genticas, clonagens), apelam a uma urgente reflexo tica e poltica de alcance universal Em tal

    contexto, a busca de valores ticos comuns adquire uma nova

    atualidade.

    2. Por sua sabedoria, sua generosidade e, s vezes, seu

    herosmo, os homens e as mulheres do um testemunho vivo

    destes valores ticos comuns. A admirao que eles suscitam

    em ns o sinal de uma primeira aquisio espontnea dos

    valores morais. A reflexo dos catedrticos e dos cientistas

    sobre as dimenses culturais, polticas, econmicas, morais e

    religiosas de nossa existncia social nutre tal deliberao sobre

    o bem comum da humanidade. H, tambm, os artistas que,

    atravs da manifestao da beleza, reagem contra a perda do

    sentido e renovam a esperana dos seres humanos. Da mesma

    forma, os homens pblicos trabalham com energia e

    criatividade para fazer acontecer programas de erradicao da

    pobreza e da proteo das liberdades fundamentais. Muito

    importante , tambm, o testemunho perseverante dos

    representantes das religies e das tradies espirituais, que

    querem viver luz da verdade ltima e do bem absoluto.

    Todos contribuem, cada um sua maneira e em uma partilha

    recproca, para promover a paz, uma ordem poltica mais justa,

    o sentido de responsabilidade comum, uma repartio

    equitativa das riquezas, o respeito ao ambiente, dignidade da

    pessoa humana e aos seus direitos fundamentais. Todavia,

    esses esforos s podem ter sucesso se as boas intenes se

    apoiarem sobre um slido acordo de base quanto aos bens e

    aos valores que representam as aspiraes mais profundas do

    ser humano, a ttulo individual e comunitrio. S o

    reconhecimento e a promoo destes valores ticos podem

    contribuir construo de um mundo mais humano.

    3. A busca dessa linguagem tica comum concerne a todos os

    homens. Para os cristos, misteriosamente ela est de acordo

    com a obra do Verbo de Deus, luz verdadeira que ilumina todo o homem (Jo 1,9), e obra do Esprito Santo, que sabe fazer nascer nos coraes amor, alegria, paz, longanimidade, bondade, fidelidade, mansido, autodomnio (Gl 5,22-23). A comunidade dos cristos, que partilha as alegrias e as esperanas, as tristezas e as angstias dos homens de hoje e se sente verdadeiramente solidria com o gnero humano e com sua histria[1], no pode, de forma alguma, se furtar dessa responsabilidade comum. Iluminados pelo Evangelho,

    empenhados em um dilogo paciente e respeitoso com todos os

    homens de boa vontade, os cristos participam na busca

    comum dos valores humanos a serem promovidos:

    Finalmente, irmos, ocupai-vos com tudo o que verdadeiro, nobre, justo, puro, amvel, honroso, virtuoso, ou que de

    qualquer modo merea louvor (Fl 4,8). Eles sabem que Jesus Cristo, nossa paz (Ef 2,14), que reconciliou todos os homens com Deus por meio de sua cruz, o princpio de unidade mais

    profundo para o qual o gnero humano chamado a convergir.

    4. A busca de uma linguagem tica comum inseparvel de

    uma experincia de converso, pela qual as pessoas e as

    comunidades se afastam das foras que procuram aprisionar o

    ser humano na indiferena ou impelem a levantar muros contra

    o outro ou contra o estrangeiro. O corao de pedra frio, inerte e indiferente sorte do prximo e da espcie humana deve se transformar, sob a ao do Esprito, em um corao de

    carne[2], sensvel aos apelos da sabedoria, da compaixo, do

    desejo de paz e da esperana para todos. Essa converso a

    condio para um verdadeiro dilogo.

    5. No faltam tentativas contemporneas para definir uma tica

    universal. Aps o fim da segunda Guerra Mundial, a

    comunidade das naes, extraindo as consequncias das

    estreitas cumplicidades que o totalitarismo havia estabelecido

    com o puro positivismo jurdico, definiu na Declarao

    Universal dos Direitos Humanos (1948) os direitos

    inalienveis da pessoa humana, que transcendem as leis

    positivas dos Estados e lhe devem servir de referncia e norma.

    Esses direitos no so simplesmente concedidos pelo

    legislador: eles so declarados, isto , a sua existncia objetiva,

    anterior deciso do legislador, torna-se manifesta. Eles

    derivam, com efeito, do reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da famlia humana (Prembulo).

    A Declarao Universal dos Direitos Humanos constitui um

    dos mais belos xitos da histria moderna. Ela permanece uma das expresses mais altas da conscincia humana de nosso

    tempo[3] e oferece uma base slida para a promoo de um mundo mais justo. Contudo, os resultados nem sempre

    corresponderam s expectativas das esperanas. Alguns pases

  • contestaram a universalidade desses direitos, considerados

    demasiadamente ocidentais, o que impele a buscar uma

    formulao mais compreensvel. Por outro lado, certa

    propenso a multiplicar os direitos do homem mais em funo

    dos desejos desordenados do indivduo consumista ou de

    reivindicaes setoriais do que das exigncias objetivas do

    bem comum da humanidade, contriburam no pouco para

    desvaloriz-los. Separada do sentido moral dos valores, que

    transcendem os interesses particulares, a multiplicao de

    procedimentos e de regulamentaes jurdicas conduzem a um

    impasse que, definitivamente, serve aos interesses dos mais

    poderosos. Sobretudo, manifesta-se uma tendncia de

    reinterpretar os direitos do homem separados da dimenso

    tica e racional, que constitui seu fundamento e seu fim, em

    proveito de um puro legalismo utilitarista[4].

    6. Para explicitar o fundamento tico dos direitos do homem,

    alguns procuraram elaborar uma tica mundial no mbito de um dilogo entre as culturas e as religies. A tica mundial designa o conjunto de valores fundamentais obrigatrios, que

    formam, depois de sculos, o tesouro da experincia humana.

    Ela se encontra em todas as grandes tradies religiosas e

    filosficas[5]. Esse projeto, digno de interesse, expresso da

    necessidade atual de uma tica que tenha uma validade

    universal e global. Mas a pesquisa meramente indutiva, sob o

    modelo parlamentar, de um consenso mnimo j existente,

    seria capaz de satisfazer as exigncias de fundamentar o direito

    no absoluto? Alm disso, essa tica mnima no conduziria a

    relativizar as fortes exigncias ticas de cada uma das religies

    ou sabedorias particulares?

    7. H vrios decnios, a questo dos fundamentos ticos do

    direito e da poltica foi como que deixada de lado por alguns

    setores da cultura contempornea. Sob o pretexto de que toda

    pretenso a uma verdade objetiva e universal seria fonte de

    intolerncia e de violncia, e que s o relativismo poderia

    salvaguardar o pluralismo dos valores e da democracia, fez-se

    apologia do positivismo jurdico, que refuta se referir a um

    critrio objetivo, ontolgico, o que seria justo. Nessa

    perspectiva, o horizonte ltimo do direito e da norma moral a

    lei em vigor, que considerada justa por definio, pois ela a

    expresso da vontade do legislador. Mas isto abrir a via da

    arbitrariedade do poder, da ditadura da maioria aritmtica e da

    manipulao ideolgica, em detrimento do bem comum. Na tica e na filosofia atual do Direito, os postulados do

    positivismo jurdico esto largamente presentes. A

    consequncia que a legislao torna-se um compromisso

    entre interesses diversos; tenta-se transformar em direitos os

    interesses ou desejos privados que se oponham aos deveres

    derivantes da responsabilidade social[6]. Mas o positivismo jurdico notoriamente insuficiente, porque o legislador no

    pode agir legitimamente seno dentro de certos limites, que

    decorrem da dignidade da pessoa humana e do servio ao

    desenvolvimento do que autenticamente humano. Ora, o

    legislador no pode abandonar a determinao do que

    humano a critrios extrnsecos e superficiais, como faria, por

    exemplo, se legitimasse por si tudo o que realizvel no

    mbito das biotecnologias. Em suma, ele deve agir de forma

    eticamente responsvel. A poltica no pode prescindir da tica

    nem das leis civis e a ordem jurdica de uma lei moral superior.

    8. Em tal contexto, em que a referncia aos valores objetivos

    absolutos reconhecidos universalmente se torna problemtico,

    alguns, desejosos de dar assim mesmo uma base racional s

    decises ticas comuns, ensinam uma tica da discusso na linha de uma compreenso dialgica da moral. A tica da discusso consiste em utilizar, no decorrer de um debate tico,

    apenas as normas com as quais todos os participantes

    concordam, renunciando aos comportamentos estratgicos para impor seus prprios pontos de vista, possam dar seu

    consentimento. Assim, pode-se determinar se uma regra de

    conduta e de ao ou um comportamento so morais, porque,

    deixando de lado os condicionamentos culturais e histricos, o

    princpio da discusso oferece uma garantia de universalidade

    e de racionalidade. A tica da discusso se interessa,

    sobretudo, pelo mtodo pelo qual, graas ao debate, os

    princpios e as normas ticas podem ser colocados prova e

    tornarem-se obrigatrios para todos os participantes. Ela ,

    essencialmente, um procedimento para testar o valor das

    normas propostas, mas no pode produzir novos contedos

    substanciais. A tica da discusso , portanto, uma tica

    puramente formal, que no concerne s orientaes morais de

    fundo. Ela corre, assim, o risco de se limitar uma busca de

    compromisso. Certamente, o dilogo e o debate so sempre

    necessrios para obter um acordo realizvel sobre a aplicao

    concreta das normas morais em uma dada situao, mas eles

    no podem marginalizar a conscincia moral. Um verdadeiro

    debate no substitui as convices morais pessoais, mas as

    supe e as enriquece.

    9. Conscientes dos contextos atuais da questo, ns queremos,

    neste documento, convidar a todos os que se perguntam sobre

    os fundamentos ltimos da tica, assim como da ordem

    jurdica e poltica, a considerar os recursos que favorecem uma

    apresentao renovada da doutrina da lei natural. Esta afirma,

    em substncia, que as pessoas e as comunidades humanas so

    capazes, luz da razo, de discernir as orientaes

    fundamentais de um agir moral conforme a prpria natureza do

    sujeito humano e de exprimi-las de modo normativo sob a

    forma de preceitos ou mandamentos. Esses preceitos

    fundamentais, objetivos e universais, tm a vocao de

    fundamentar e inspirar o conjunto de determinaes morais,

    jurdicas e polticas, que regulem a vida dos homens e das

    sociedades. Eles constituem uma instncia crtica permanente e

    garantem a dignidade da pessoa humana diante das flutuaes

    das ideologias. No curso da histria, na elaborao de sua

    prpria tradio tica, a comunidade crist, guiada pelo

    Esprito de Jesus Cristo e em dilogo crtico com as tradies

    de sabedoria que tem encontrado, assume, purifica e

    desenvolve esse ensinamento sobre a lei natural como norma

    tica fundamental. Mas o cristianismo no tem o monoplio da

    lei natural. Com efeito, fundada sobre a razo comum a todas

    as pessoas humanas, a lei natural a base da colaborao entre

    todos os homens de boa vontade, sejam quais forem as suas

    convices religiosas.

    10. verdade que a expresso lei natural fonte de numerosos mal-entendidos no contexto atual. Por vezes, ela

    evoca simplesmente uma submisso resignada e totalmente

    passiva s leis fsicas da natureza, quando o ser humano busca,

    com razo, dominar e orientar esses determinismos para o seu

    bem. Por vezes, apresentada como um dom objetivo que se

    impe de fora da conscincia pessoal, independente do

    trabalho da razo e da subjetividade, ela suspeita de

    introduzir uma forma de heteronismo insuportvel dignidade

    da pessoa humana livre. Outras vezes tambm, no curso de sua

    histria, a teologia crist justificou, muito facilmente, com a lei

    natural, posies antropolgicas que, em seguida, apareceram

    como condicionadas pelo contexto histrico e cultural. Mas

    uma compreenso mais profunda das relaes entre o sujeito

    moral, a natureza e Deus, assim como uma melhor

    considerao da tarefa da historicidade, que afeta as aplicaes

    concretas da lei natural, permitem dissipar esses mal-

    entendidos. Hoje, tambm importante propor a doutrina

    tradicional da lei natural em termos que manifestem melhor a

    dimenso pessoal e existencial da vida moral. necessrio,

    tambm, insistir mais sobre o fato que a expresso das

    exigncias da lei natural inseparvel do esforo de toda a

    comunidade humana para superar as tendncias egostas e

    facciosas e desenvolver uma abordagem global da ecologia dos valores, sem a qual a vida humana corre o risco de perder sua integridade e seu sentido de responsabilidade pelo bem de

    todos.

    11. A idia da lei natural assume numerosos elementos que so

    comuns s grandes sabedorias religiosas e filosficas da

    humanidade. Por isso, no captulo primeiro, nosso documento

    comea por recordar essas convergncias. Sem pretender ser exaustivo, ele indica que essas grandes sabedorias religiosas e

    filosficas testemunham a existncia de um largo patrimnio

    moral comum, que forma a base de todo dilogo sobre as

    questes morais. Ainda mais, elas sugerem, de uma maneira ou

    de outra, que esse patrimnio explicita uma mensagem tica

    universal imanente natureza das coisas e que os homens so

    capazes de decifrar. O documento recorda, em seguida, alguns

    pontos essenciais para o desenvolvimento histrico da ideia da

    lei natural e menciona algumas interpretaes modernas que

    esto, parcialmente, na origem das dificuldades que nossos

    contemporneos sentem diante desta noo. No captulo

    segundo (A percepo dos valores morais comuns), nosso documento descreve como, a partir dos dados mais simples da

    experincia moral, a pessoa humana colhe, de modo imediato,

    certos bens morais fundamentais e formula, por consequncia,

    os preceitos da lei natural. Estes no constituem um cdigo

    completo de prescries intangveis, mas um princpio

    permanente e normativo de inspirao a servio da vida moral

  • concreta da pessoa. O captulo terceiro (Os fundamentos da lei natural), passando da experincia comum teoria, aprofunda os fundamentos filosficos, metafsicos e religiosos

    da lei natural. Para responder a algumas objees

    contemporneas, precisa o papel da natureza no agir pessoal e

    se interroga sobre a possibilidade de a natureza constituir uma

    norma moral. O captulo quarto (A lei natural e o Estado) explicita o papel regulador dos preceitos da lei natural na vida

    poltica. A doutrina da lei natural j possui coerncia e

    validade no plano filosfico da razo comum a todos os

    homens, mas o captulo quinto (Jesus Cristo, realizao da lei natural) mostra que ela adquire todo seu sentido no interior da histria da salvao: enviado pelo Pai, Jesus Cristo , com

    efeito, pelo Esprito Santo, a plenitude de toda lei.

    CAPTULO 1: CONVERGNCIAS

    1.1. As sabedorias e as religies do mundo

    12. Nas diversas culturas, os homens progressivamente

    elaboraram e desenvolveram tradies de sabedoria, por meio

    das quais eles exprimem e transmitem sua viso de mundo,

    assim como sua percepo reflexa do lugar que o homem

    ocupa na sociedade e no cosmo. Antes de toda teoritizao

    conceitual, estas sabedorias, que so, muitas vezes, de natureza

    religiosa, transmitem uma experincia que identifica o que

    favorece ou o que impede a plena manifestao da vida pessoal

    e do bom andamento da vida social. Elas constituem uma fonte

    de capital cultural disponvel para a busca de uma sabedoria comum necessria para responder aos desafios ticos

    contemporneos. Segundo a f crist, essas tradies de

    sabedoria, apesar de seus limites e, por vezes, mesmo seus

    erros, captam um reflexo da sabedoria divina que opera no

    corao dos homens. Elas requerem ateno e respeito, e

    podem ter valor de praeparatio evangelica.

    A forma e o alcance dessas tradies podem variar

    consideravelmente. Elas so testemunho da existncia de um

    patrimnio de valores morais comuns a todos os homens, seja

    qual for a maneira com que esses valores so justificados

    dentro de uma viso particular de mundo. Por exemplo, a

    regra de ouro (No faas a ningum o que no queres que te faam [Tb 4,15]) se encontra, de uma forma ou de outra, na maioria das tradies de sabedoria[7]. Alm disso, geralmente

    elas esto de acordo em reconhecer que as grandes regras

    ticas no somente se impem a um grupo humano

    determinado, mas valem universalmente para cada indivduo e

    para todos os povos. Enfim, muitas tradies reconhecem que

    estes comportamentos morais universais so requeridos pela

    prpria natureza do ser humano: eles exprimem a maneira pela

    qual o homem deve se inserir, de modo criativo e harmonioso,

    em uma ordem csmica ou metafsica, que a supere e d

    sentido sua vida. De fato, essa ordem est impregnada por

    uma sabedoria imanente, e portadora de uma mensagem moral

    que os homens so capazes de decifrar.

    13. Nas tradies hindustas, o mundo o cosmo, como tambm as sociedades humanas regido por uma ordem ou uma lei fundamental (dharma), que necessrio respeitar sob

    pena de provocar graves desequilbrios. O dharma define,

    ento, as obrigaes sociorreligiosas do homem. Em sua

    especificidade, o ensinamento moral do hindusmo

    compreendido luz das doutrinas fundamentais dos

    Upanishads: a crena em um ciclo indefinido de

    transmigraes (samsra), com a idia segundo a qual as aes boas ou ms cometidas durante a vida presente (karman)

    influenciam as reencarnaes sucessivas. Essas doutrinas tm

    importantes conseqncias sobre o comportamento em relao

    aos outros: elas implicam um alto grau de bondade e de

    tolerncia, o sentido da ao desinteressada em benefcio dos

    outros, assim como a prtica da no violncia (ahims). As principais correntes do hindusmo distinguem dois corpos de

    textos: ruti (aquilo que entendido, isto , a revelao), e smrti (aquilo que se recorda, isto , a tradio). As prescries ticas se encontram, sobretudo, na smrti, mais

    particularmente, nos dharmastra (em que o mais importante so os mnava dharmastra ou leis de Manu, de 200-100 a.C., aproximadamente). Alm do princpio de base, segundo o

    qual o costume imemorvel a lei transcendente aprovada pela escritura sagrada e pelos cdigos dos legisladores divinos;

    em conseqncia, todo homem das trs principais classes, que

    respeita o esprito supremo que est nele, deve sempre se

    conformar com diligncia ao costume imemorvel[8], no qual se encontra uma prtica equivalente regra de ouro: Eu te direi qual a essncia do maior bem do ser humano. O homem

    que pratica a religio (dharma) do no prejuzo (ahims) universal, adquire o maior Bem. Esse homem que domina as

    trs paixes, a cobia, a clera e a avareza, renunciando-as

    para entrar em relao com os seres, adquire o sucesso. () Esse homem que considera todas as criaturas como seu a si mesmo e os trata como seu prprio eu, depondo a vara punitiva e dominando completamente sua clera, garantir a

    obteno da felicidade. () No far ao outro o que considera nocivo para si mesmo. Esta , em sntese, a regra da virtude.

    () No fato de refutar e de dar, na abundncia e na infelicidade, no agradvel e no desagradvel, se eximir de

    todas as conseqncias, considerando seu prprio eu[9]. Muitos preceitos da tradio hindu podem ser colocados em

    paralelo com as exigncias do Declogo[10].

    14. Geralmente, se define o budismo pelas quatro verdades nobres, ensinadas por Buda aps a sua iluminao: 1) a

    realidade sofrimento e insatisfao; 2) a origem do

    sofrimento o desejo; 2) o fim do sofrimento possvel (com

    a extino do desejo); 4) existe um caminho para a cessao do

    sofrimento. Esse caminho o nobre sentir ctuplo, que consiste na prtica da disciplina, da concentrao e da

    sabedoria. No plano tico, as aes favorveis podem se

    resumir nos cinco preceitos (la, sla): 1) no prejudicar os seres vivos nem tirar a vida; 2) no tomar o que no dado; 3)

    no ter uma conduta sexual incorreta; 4) no usar palavras

    falsas ou mentirosas; 5) no ingerir produtos intoxicantes, que

    diminuam o domnio de si. O profundo altrusmo da tradio

    budista, que se traduz em uma atitude deliberada de no

    violncia, pela benevolncia amigvel e pela compaixo,

    chega, assim, a regra de ouro.

    15. A civilizao chinesa est profundamente marcada pelo

    taosmo de Loz ou Lao-Tseu (sculo VI a.C). Segundo Lao-Tse, o Caminho ou Do o princpio primordial, imanente a

    todo o universo. Este um princpio inapreensvel de mudana

    permanente sob a ao de dois plos contrrios e

    complementares, o yn e o yng. Compete ao homem abraar esse processo natural de transformao e se deixar levar pelo

    fluxo do tempo, graas atitude de no agir (w-wi). A busca

    da harmonia com a natureza, indissociavelmente material e

    espiritual, est, portanto, no corao da tica taosta. Quanto a

    Confcio (551-479 a.C), Mestre Kong, ele tenta, por ocasio de um perodo de crise profunda, restaurar a ordem por meio

    do respeito aos ritos, fundado sobre a piedade filial que deve

    ser o corao de toda vida social. As relaes sociais se

    modelam, com efeito, pelas relaes familiares. A harmonia

    obtida por uma tica da justa medida, na qual a relao

    ritualizada (o l), que insere o ser humano na ordem natural, a medida de todas as coisas. O ideal a ser buscado o ren,

    virtude perfeita da humanidade, feita de domnio de si e de

    benevolncia para com os outros. Mansido (sh), no a palavra-chave? Aquilo que tu no queres que te faam a ti, no

    o faa aos outros[11]. A prtica dessa regra indica o caminho do Cu (Tin Do).

    16. Nas tradies africanas, a realidade fundamental a

    prpria vida. Ela o bem mais precioso, e o ideal do homem

    consiste no somente em viver na busca de satisfazer suas

    necessidades bsicas at a velhice, mas, sobretudo, em

    permanecer, mesmo aps a morte, uma fora vital

    continuamente reforada e vivificada na e para a sua

    descendncia. A vida , com efeito, uma experincia

    dramtica. O homem, microcosmo no seio do macrocosmo,

    vive intensamente o drama da tenso entre a vida e a morte. A

    misso que lhe compete, de assegurar a vitria da vida sobre a

    morte, orienta e determina seu agir tico. , assim, que deve

    identificar, em um horizonte tico consequente, os aliados da

    vida, revert-los em seu benefcio, e assegurar a prpria

    sobrevivncia, que , ao mesmo tempo, a vitria da vida. Tal

    o significado profundo das religies tradicionais africanas. A

    tica africana se revela, assim, como uma tica antropocntrica

    e vital: os atos considerados capazes de favorecer o nascimento

    da vida, de conserv-la, de proteg-la, de desabroch-la ou de

    aumentar o potencial vital da comunidade, so, de fato,

    considerados bons; todo ato considerado prejudicial vida dos

    indivduos ou comunidade passa a ser mau. As religies

    tradicionais africanas aparecem, dessa forma, como

    essencialmente antropocntricas; mas uma observao atenta

  • unida reflexo mostra que nem o lugar reconhecido ao

    homem vivo nem o culto aos ancestrais constituem algo

    fechado. As religies tradicionais africanas atingem seu vrtice

    somente em Deus, fonte da vida, criador de tudo o que existe.

    17. O Isl se compreende como a restaurao da religio

    natural original. Ele v, em Maom, o ltimo profeta enviado

    por Deus para recolocar definitivamente os homens no

    caminho direito. Mas Maom foi precedido por outros: No h uma comunidade onde no tenha passado um

    admoestador[12]. O Isl se atribui, portanto, uma vocao universal e se dirige a todos os homens, que so considerados

    naturalmente muulmanos. A lei islmica, indissociavelmente comunitria, moral e religiosa,

    compreendida como uma lei dada diretamente por Deus. A

    tica muulmana , portanto, fundamentalmente uma moral da

    obedincia. Fazer o bem obedecer aos mandamentos; fazer o

    mal desobedec-los. A razo humana intervm para

    reconhecer o carter revelado da lei e para extrair as

    implicaes jurdicas concretas. Certamente, no sculo IX, a

    escola moutacilita proclamou a idia segundo a qual o bem e o mal esto nas coisas, isto , que alguns comportamentos so bons ou maus em si mesmos, anteriormente lei divina que os

    aprova ou os probe. Os moutazilitas pensam, portanto, que o homem pode, por sua razo, conhecer o que bom ou mau.

    Segundo eles, o homem sabe espontaneamente que a injustia

    ou a mentira so ms e que obrigatrio restituir um

    emprstimo, de se distanciar de em dano ou de se mostrar

    reconhecido para com seus benfeitores, dos quais o primeiro

    Deus. Mas os acharitas, que dominam na ortodoxia sunita, sustentam uma teoria contrria. Partidrios de um

    ocasionalismo, que no reconhece alguma consistncia na

    natureza, eles pensam que s a revelao positiva de Deus

    define o bem e o mal, o justo e o injusto. Entre as prescries

    desta lei divina positiva, muitos recuperam os grandes

    elementos do patrimnio moral da humanidade e podem ser

    colocados em relao com o Declogo[13].

    1.2. As origens greco-romanas da lei natural

    18. A ideia de que existe um direito natural anterior s

    determinaes jurdicas positivas j se encontra na cultura

    grega clssica, com a figura exemplar de Antgona, a filha de

    dipo. Seus dois irmos, Etocles e Polinice, se confrontam

    por causa do poder e matam um ao outro. Polinice, o rebelde,

    foi condenado a ficar sem sepultura e ser queimado na

    fogueira. Mas Antgona, para satisfazer aos deveres da piedade

    para com seu irmo morto, apela contra a proibio de

    sepultura feita pelo rei Creonte, recorrendo s leis no escritas e imutveis.

    Creonte: E, assim, como tu ousas violar as minhas leis? Antgona: Sim, porque no foi Zeus que as proclamou

    Nem a Justia que habita com os deuses de baixo;

    Nem um nem a outra as estabeleceram entre os homens.

    Eu no penso que os teus decretos sejam to fortes

    Para que, tu, mortal, possas ir alm

    Das leis no escritas e imutveis dos deuses.

    Eles no existem desde hoje, nem desde ontem, mas sempre;

    Pessoa alguma sabe quando eles apareceram.

    Eu no devia, por temer as vontades de um homem,

    Arriscar que os deuses me punissem[14].

    19. Plato e Aristteles representam a distino feita pelos

    sofistas entre as leis que tm sua origem na conveno, isto ,

    uma pura deciso positiva (thesis), e as que so vlidas por natureza. As primeiras no so nem eternas nem vlidas de uma maneira geral, tampouco obrigam a todos. As segundas

    obrigam a todos, sempre e em toda parte[15]. Alguns sofistas,

    como o Clicles de Grgias de Plato, recorriam a essa

    distino para contestar a legitimidade das leis institudas pelas

    cidades humanas. A essas leis, eles opem sua ideia, estreita e

    errnea, da natureza, reduzida s componente psquico.

    Assim, contra a igualdade poltica e jurdica dos cidados na

    sociedade, eles sustentavam o que lhes parecia como a mais

    evidente das leis naturais: o mais forte deve prevalecer sobre o mais fraco[16].

    20. Nada disto se encontra entre Plato e Aristteles. Eles no

    opunham direito natural e leis positivas da sociedade. Eles

    estavam convictos de que as leis da sociedade so geralmente

    boas e constituem a prtica, mais ou menos bem-sucedida, de

    um direito natural conforme a natureza das coisas. Para Plato,

    o direito natural um direito ideal, uma norma para os

    legisladores e cidados, uma regra que permite basear e avaliar

    as leis positivas[17]. Para Aristteles, esta norma suprema da

    moralidade corresponde realizao da forma essencial da

    natureza. moral o que natural. O direito natural imutvel;

    o direito positivo muda conforme os povos e as diferentes

    pocas. Mas o direito natural no se coloca alm do direito

    positivo. Ele se encarna no direito positivo, que a aplicao

    da ideia geral da justia vida social na sua variedade.

    21. No estoicismo, a lei natural torna-se o conceito-chave de

    uma tica universalista. bom e deve ser realizado o que

    corresponde natureza, compreendida em um sentido ao

    mesmo tempo psquico-biolgico e racional. Todo homem,

    qualquer que seja a nao qual pertena, deve se integrar

    como uma parte no todo do universo. Ele deve viver segundo a

    natureza[18]. Esse imperativo pressupe que exista uma lei

    eterna, um Lgos divino, que est presente tanto no cosmo, que

    ela impregna de racionalidade, quanto na razo humana.

    Assim, para Ccero, a lei a razo suprema inserida na natureza, que nos manda fazer o que necessrio e probe o

    contrrio[19]. Natureza e razo constituem as duas razes do nosso conhecimento da lei tica fundamental, que de origem

    divina.

    1.3. O ensinamento da Sagrada Escritura

    22. O dom da Lei no Sinai, da qual as dez palavras constituem o centro, um elemento essencial da experincia

    religiosa de Israel. Essa Lei da aliana comporta preceitos

    ticos fundamentais. Eles definem o modo como o povo eleito

    deve responder escolha de Deus por meio de uma vida santa:

    Fala a toda a comunidade dos filhos de Israel. Tu lhes dirs: Sede santos, porque eu, Iahweh vosso Deus, sou santo (Lv 19,2). Mas esses comportamentos ticos tambm so vlidos

    para os outros povos, de modo que Deus pede contas s naes

    estrangeiras que violam a justia e o direito[20]. De fato, Deus

    j havia concludo uma aliana com a totalidade do gnero

    humano na pessoa de No, que implicava, em particular, o

    respeito vida (Gn 9)[21]. Mais ainda, a prpria criao

    aparece como o ato pelo qual Deus estrutura o conjunto do

    universo, dando-lha uma lei. Louvem o nome de Iahweh, pois ele mandou e foram criados; fixou-os eternamente, para

    sempre, deu-lhes uma lei que jamais passar (Sl 148,5-6). Esta obedincia das criaturas lei de Deus um modelo para

    os homens.

    23. Juntamente com os textos que se referem histria da

    salvao, com os grandes temas teolgicos da eleio, da

    promessa, da Lei e da aliana, a Bblia contm, tambm, uma

    literatura de sabedoria, que no trata diretamente da histria

    nacional de Israel, mas que se interessa pelo lugar do homem

    no mundo. Ela desenvolve a convico que h uma maneira

    correta, sbia, de fazer as coisas e de conduzir a vida. O homem deve se aplicar em busc-la e, em seguida, se esforar

    por coloc-la em prtica. Essa sabedoria no se encontra nem

    na histria nem na natureza, e tampouco na vida de todos os

    dias[22]. Nessa literatura, a sabedoria , muitas vezes,

    apresentada com uma perfeio divina, s vezes

    hipostatizada. Ela se manifesta de maneira surpreendente na criao, onde ela o artfice (Sb 7,21). A harmonia que reina entre as criaturas d testemunho dela. Dessa sabedoria que

    vem de Deus, o homem torna-se participante de mltiplas

    formas. Tal participao um dom de Deus, que necessrio

    pedir na orao: Por isso, supliquei e inteligncia me foi dada; invoquei, e o esprito de Sabedoria veio a mim (Sb 7,7). Ela , ainda, o fruto da obedincia Lei revelada. Com efeito, a Tor

    como a encarnao da sabedoria. Desejas a sabedoria? Guarda os mandamentos e o Senhor dar-ta- em profuso;

    porque o temor do Senhor sabedoria e instruo, e seu agrado

    f e mansido (Eclo 1,26-27). Mas a sabedoria , tambm, o resultado de uma observao sagaz da natureza e dos costumes

    humanos com o objetivo de descobrir sua inteligibilidade

    imanente e seu valor exemplar[23].

    24. Na plenitude dos tempos, Jesus Cristo anunciou a chegada

    do Reino de Deus como manifestao do amor misericordioso

    de Deus, que se torna presente entre os seres humanos atravs

    de sua prpria pessoa, e apela para que busquem a converso e

    deem uma resposta livre de amor. Essa pregao no sem

    consequncia para a tica, para a maneira de construir o mundo

    e as relaes humanas. Em seu ensinamento moral, do qual o

    sermo da montanha uma sntese admirvel, Jesus retoma,

  • por sua conta, a regra de ouro: Tudo aquilo, portanto, que quereis que os homens vos faam, fazei-o vs a eles, pois esta

    a Lei e os Profetas (Mt 7,12)[24]. Este preceito positivo completa a formulao negativa da mesma regra do Antigo

    Testamento: No faas a ningum o que no queres que te faam (Tb 4,15)[25].

    25. No incio da carta aos Romanos, o apstolo Paulo, com o

    intuito de manifestar a necessidade universal de salvao

    trazida por Cristo, descreve a situao religiosa e moral

    comum a todos os homens. Ele afirma a possibilidade de um

    conhecimento natural de Deus: Porque o que se pode conhecer de Deus manifesto entre eles, pois Deus lho

    revelou. Sua realidade invisvel seu eterno poder e sua divindade tornou-se inteligvel, desde a criao do mundo, atravs das criaturas, de sorte que no tm desculpa (Rm 1,19-20)[26]. Mas esse conhecimento se perverteu em idolatria.

    Colocando judeus e pagos sob o mesmo plano, so Paulo

    afirma a existncia de uma lei moral no escrita, mas que est

    inscrita nos coraes[27]. Ela permite discernir por si mesmo o

    bem e o mal. Quando ento os gentios, no tendo Lei, fazem naturalmente o que prescrito pela Lei, eles, no tendo Lei,

    para si mesmos so Lei; eles mostram a obra da lei gravada em

    seus coraes, dando disto testemunho sua conscincia e seus

    pensamentos que alternadamente se acusam ou defendem (Rm 2,14-15). No entanto, o conhecimento da lei no suficiente

    por si para conduzir uma vida justa[28]. Estes textos de So

    Paulo tiveram uma influncia determinante na reflexo crist

    relativa lei natural.

    1.4. Os desenvolvimentos da tradio crist

    26. Para os Padres da Igreja, o sequi naturam e a sequela

    Christi no se opem. Ao contrrio, geralmente eles adotam a

    ideia estoica segundo a qual a natureza e a razo nos indicam

    quais so os nossos deveres morais. Segui-los seguir o Logos

    pessoal, o Verbo de Deus. A doutrina da lei natural fornece,

    com efeito, uma base para completar a moral bblica. Ela

    permite, alm disso, explicar por que os pagos,

    independentemente da revelao bblica, possuem uma

    concepo moral positiva. Ela lhes indicada pela natureza e

    corresponde ao ensinamento da Revelao: De Deus so a lei da natureza e a lei da revelao, que formam um todo[29]. Todavia, os Padres da Igreja no adotam pura e simplesmente

    a doutrina estoica. Eles a modificam e a desenvolvem. De uma

    parte, a antropologia de inspirao bblica, que v o homem

    como a imago Dei, cuja plena verdade manifestada em

    Cristo, probe de reduzir a pessoa humana a um simples

    elemento do cosmo: chamada comunho com o Deus vivo,

    ela transcende o cosmo, mesmo que esteja integrado nele. De

    outra parte, a harmonia da natureza e da razo no repousa

    mais sobre a viso imanentista de um cosmo pantesta, mas

    sobre a comum referncia a uma sabedoria transcendente do

    Criador. Comportar-se de acordo com a razo significa seguir

    as orientaes que o Cristo, como Logos divino, colocou,

    graas aos logoi spermatikoi, na razo humana. Agir contra a

    razo uma falta contra estas orientaes. Muito significativa

    a definio de santo Agostinho: A lei eterna a razo humana ou a vontade de Deus, ordenando conservar a ordem

    natural e proibindo de turv-la[30]. Mais precisamente, para santo Agostinho, as normas de uma vida reta e justa esto

    expressas no Verbo de Deus, que as imprime depois no

    corao do homem maneira de um timbre, que do anel passa cera, mas sem deixar de ser anel[31]. Alm disso, para os Padres, a lei natural est, daqui em diante, compreendida no

    quadro de uma histria de salvao que conduz a distinguir

    diferentes estados da natureza (natureza original, natureza

    decada, natureza restaurada), nas quais a natureza se realiza de

    modos diversos. Essa doutrina patrstica da lei natural foi

    transmitida Idade Mdia, assim como a concepo, muito

    prxima, de direito das gentes (ius gentium), segundo a qual existem, fora do direito romano (ius civile), princpios

    universais de direto, que regulam as relaes entre os povos e

    so obrigatrios para todos[32].

    27. Na Idade Mdia, a doutrina da lei natural chega a certa

    maturidade e assume uma forma clssica, que constitui o substrato de todas as discusses ulteriores. Ela se caracteriza

    por quatro traos. Em primeiro lugar, de acordo com o

    pensamento escolstico, que busca recolher a verdade onde

    quer que se encontre, ela assume as reflexes anteriores sobre

    a lei natural, pags ou crists, e tenta propor uma sntese. Em

    segundo lugar, de acordo com a natureza sistemtica do

    pensamento escolstico, ela situa a lei natural em um quadro

    metafsico e teolgico geral, compreendendo-a como uma

    participao da criatura racional na lei divina eterna, graas a

    qual ela entra de modo consciente e livre nos desgnios da

    Providncia. Ela no um conjunto fechado e completo de

    normas morais, mas uma fonte de inspirao constante,

    presente e atuante nas diferentes etapas da economia da

    salvao. Em terceiro lugar, com a tomada de conscincia da

    densidade prpria da natureza, que em parte est ligada

    redescoberta do pensamento de Aristteles, a doutrina

    escolstica da lei natural considera a ordem tica e poltica

    como uma ordem racional, obra da inteligncia humana. Ele a

    define como um espao de autonomia, uma distino sem

    separao, em relao ordem da revelao religiosa[33].

    Enfim, aos olhos dos telogos e dos juristas escolsticos, a lei

    natural constitui um ponto de referncia e um critrio luz da

    qual eles avaliam a legitimidade das leis positivas e dos

    costumes particulares.

    1.5. Evolues ulteriores

    28. A histria moderna da lei natural se apresenta, por certos

    aspectos, como um desenvolvimento legtimo do ensinamento

    da escolstica medieval em um contexto cultural mais

    complexo, marcado, de forma particular, por um sentido mais

    vivo da subjetividade moral. Entre esses desenvolvimentos,

    assinalamos a obra dos telogos espanhis do sculo XVI, que,

    semelhana do dominicano Francisco de Vitoria, recorreram

    lei natural para contestar a ideologia imperialista de alguns

    Estados cristos da Europa e defender os direitos dos povos

    no cristos da Amrica. Com efeito, esses direitos so

    inerentes natureza humana e no dependem da situao

    concreta em face da f crist. A idia da lei natural permitiu,

    tambm, aos telogos espanhis colocar as bases de um direito

    internacional, isto , de uma norma universal capaz de reger as

    relaes de povos e dos Estados entre si.

    29. Mas, por outros aspectos, a ideia da lei natural tomou, na

    poca moderna, orientaes e formas que contribuem a torn-

    la dificilmente aceitvel hoje. Durante os ltimos sculos da

    Idade Mdia, desenvolveu-se uma corrente voluntarista na

    escolstica, cuja hegemonia cultural modificou profundamente

    a noo da lei natural. O voluntarismo se prope a valorizar a

    transcendncia do sujeito livre na relao a todos os

    condicionamentos. Contra o naturalismo, que tendia a sujeitar

    Deus s leis da natureza, ele sublinha, de modo unilateral, a

    absoluta liberdade de Deus, com o risco de comprometer a sua

    sabedoria e de tornar arbitrrias as suas decises. Da mesma

    maneira, contra o intelectualismo, suspeito de sujeitar a pessoa

    humana ordem do mundo, ele exalta uma liberdade de

    indiferena, entendida como puro poder de escolher os

    contrrios, com o risco de separar a pessoa de suas inclinaes

    naturais e do bem objetivo[34].

    30. As conseqncias do voluntarismo na doutrina da lei

    natural so numerosas. Antes de tudo, mesmo que para Toms

    de Aquino a lei fosse entendida como obra da razo e

    expresso de uma sabedoria, o voluntarismo leva a ligar a lei

    s prpria vontade, e a uma vontade separada de sua

    ordenao intrnseca ao bem. A partir da, toda a fora da lei

    reside somente na vontade do legislador. A lei , assim,

    espoliada de sua inteligibilidade intrnseca. Nessas condies,

    a moral se reduz obedincia aos mandamentos, que

    manifestam a vontade do legislador. Thomas Hobbes chega a

    declarar: a autoridade e no a verdade que faz a lei (auctoritas, non veritas, facit legem)[35]. O homem moderno,

    apaixonada pela autonomia, no poderia deixar de se insurgir

    contra tal viso da lei. Depois, sob o pretexto de preservar a

    absoluta soberania de Deus sobre a natureza, o voluntarismo a

    priva de toda inteligibilidade interna. A tese da potentia Dei

    absoluta, segundo a qual Deus poderia agir independentemente

    de sua sabedoria e de sua bondade, relativiza todas as

    estruturas inteligveis existentes e fragiliza o conhecimento

    natural que o homem pode ter. A natureza cessa de ser um

    critrio para conhecer a sbia vontade de Deus: o homem s

    pode receber esse conhecimento pela revelao.

    31. Alm disso, vrios fatores conduziram a noo de lei

    natural secularizao. Entre eles, pode-se mencionar o

    divrcio crescente entre a f e a razo, que caracteriza o final

    da Idade Mdia, ou, ainda, alguns aspectos da Reforma

    [36] ; mas, sobretudo, a vontade de superar os violentos

    conflitos religiosos que ensangentaram a Europa no alvorecer

  • dos tempos modernos. Acrescenta-se o querer fundar a unidade

    poltica das comunidades humanas colocando em parnteses a

    confisso religiosa. Da em diante, a doutrina da lei natural

    prescinde de toda revelao religiosa particular e, portanto, de

    toda teologia confessional. Ela pretende fundar-se unicamente

    sobre as luzes da razo comum a todos os homens e se

    apresenta como a norma ltima no campo secular.

    32. Alm disso, o racionalismo moderno afirma a existncia de

    uma ordem absoluta e normativa das essncias inteligveis

    acessvel razo e relativiza a referncia a Deus como

    fundamento ltimo da lei natural. A ordem necessria, eterna e

    imutvel das essncias deve ser certamente atualizada pelo

    Criador, mas, cr-se, j possui em si mesma sua coerncia e

    sua racionalidade. A referncia a Deus deve, portanto, ser

    opcional. A lei natural impor-se-ia a todos mesmo se Deus no existisse (etsi Deus non daretur)[37].

    33. O modelo racionalista moderno de lei natural se

    caracteriza: 1) pela crena essencialista em uma natureza

    humana imutvel e a-histrica, da qual a razo pode

    perfeitamente colher a definio e as propriedades essenciais;

    2) por abstrair-se da situao concreta das pessoas humanas na

    histria da salvao, marcada pelo pecado e pela graa, cuja

    influncia sobre o conhecimento e sobre a prtica da lei natural

    , portanto, decisiva; 3) pela ideia de que possvel razo

    deduzir a priori os preceitos da lei natural a partir da definio

    de essncia de ser humano; 4) pela extenso mxima dada aos

    preceitos assim deduzidos, de sorte que a lei natural aparea

    como um cdigo de leis j prontas, que regula a quase

    totalidade dos comportamentos. Essa tendncia a estender o

    campo das determinaes da lei natural foi a origem de uma

    grave crise, quando, em particular com o progresso das

    cincias humanas, o pensamento ocidental tomou maior

    conscincia da historicidade das instituies humanas e da

    relatividade cultural de numerosos comportamentos, que se

    justificavam, s vezes, apelando evidncia da lei natural.

    Esse deslocamento entre uma teoria abstrata maximalista e a

    complexidade dos dados empricos explica, em parte, a

    desafeio pela prpria noo da lei natural. Para que a noo

    de lei natural possa servir elaborao de uma tica universal

    em uma sociedade secularizada e pluralista como a nossa,

    necessrio evitar, portanto, apresent-la sob a forma rgida que

    assumiu, em particular, no racionalismo moderno.

    1.6. O magistrio da Igreja e a lei natural

    34. Antes do sculo XIII, quando a distino entre a ordem

    natural e a ordem sobrenatural no estava claramente

    elaborada, a lei natural era geralmente assimilada pela moral

    crist. Assim, o decreto de Graciano, que forneceu a norma

    cannica bsica no sculo XII, inicia-se assim: A lei natural o que est contido na Lei e no Evangelho. Depois, ele identifica o contedo da lei natural com a regra de ouro e

    precisa que as leis divinas correspondem natureza[38]. Os

    Padres da Igreja recorreram, portanto, lei natural e Sagrada

    Escritura para fundamentar o comportamento moral dos

    cristos; mas o Magistrio da Igreja, nos primeiros tempos,

    teve pouco a intervir para resolver as disputas sobre o

    contedo da lei moral.

    Quando o Magistrio da Igreja foi impelido no somente a

    resolver discusses morais particulares, mas tambm a

    justificar sua posio ante um mundo secularizado, ele apelou

    mais explicitamente noo de lei natural. no sculo XIX,

    especialmente sob o pontificado de Leo XIII, que o recurso

    lei natural se impe nos atos do Magistrio. A apresentao

    mais clara se encontra na Encclica Libertas praestantissimum,

    de 1888. Leo XIII se refere lei natural para identificar a

    fonte da autoridade civil e fixar seus limites. Ele recorda com

    veemncia que necessrio obedecer antes a Deus do que aos

    homens, quando as autoridades civis mandam ou reconhecem

    alguma coisa que contrria lei divina ou lei natural. Mas

    ele tambm recorre lei natural para proteger a propriedade

    privada contra o socialismo ou, ainda, para defender o direito

    dos trabalhadores de buscar, atravs do trabalho, o que

    necessrio para o sustento da prpria vida. Nessa mesma linha,

    Joo XXIII, na Encclica Pacem in terris, de 1963, se refere

    lei natural para fundamentar os direitos e deveres do homem.

    Com Pio XI, na Encclica Casti connubii, de 1930, e Paulo VI,

    na Encclica Humanae vitae, de 1968, a lei natural se revela

    como um critrio decisivo nas questes relativas moral

    conjugal. Certamente, a lei natural de direito acessvel

    razo humana, comum aos crentes e aos no crentes, e a Igreja

    no tem exclusividade; contudo, como a Revelao assume as

    exigncias da lei natural, o Magistrio da Igreja se constitui em

    sua garantia e em se intrprete[39]. O Catecismo da Igreja

    Catlica (1992) e a Encclica Veritatis splendor (1993)

    asseguram, assim, um lugar determinante para a lei natural na

    exposio sobre a moral crist[40].

    35. Hoje, a Igreja Catlica invoca a lei natural em quatro

    contextos principais. Em primeiro lugar, em face da

    propagao de uma cultura que limita a racionalidade s

    cincias positivas e abandona a vida moral ao relativismo, ela

    insiste sobre a capacidade natural que os homens tm de

    compreender por sua razo a mensagem tica contida no ser[41] e conhecer em suas grandes linhas as normas fundamentais de um agir justo conforme a sua natureza e a sua

    dignidade. A lei natural responde, assim, exigncia de

    fundamentar na razo os direitos do homem [42] e torna

    possvel um dilogo intercultural e inter-religioso, capaz de

    favorecer a paz universal e de evitar o choque de civilizaes. Em segundo lugar, diante do individualismo relativista, que considera cada indivduo fonte de seus prprios

    valores e a sociedade, resultado de puro contrato feito entre

    indivduos, que escolhem constituir por eles mesmos todas as

    normas, ela recorda o carter no convencional, mas natural e

    objetivo, das normas fundamentais que regem a vida social e

    poltica. Em particular, a forma democrtica de governo est

    intrinsecamente ligada aos valores ticos estveis, que tm sua

    fonte nas exigncias da lei natural e que no dependem,

    portanto, das flutuaes do consenso de uma maioria

    aritmtica. Em terceiro lugar, ante um laicismo agressivo, que

    quer excluir as pessoas de f do debate pblico, a Igreja mostra

    que as intervenes dos cristos na vida pblica, sobre temas

    que tocam a lei natural (defesa dos direitos dos oprimidos,

    justia nas relaes internacionais, defesa da vida e da famlia,

    liberdade religiosa e liberdade de educao), no so, de per se, de natureza confessional, mas revelam o cuidado que cada

    cidado deve ter pelo bem comum da sociedade. Em quarto

    lugar, face as ameaas de abuso de poder, e mesmo do

    totalitarismo, que encobre o positivismo jurdico e que

    algumas ideologias veiculam, a Igreja recorda que as leis civis

    no obrigam conscincia quando esto em contradio com a

    lei natural, e ela prope o reconhecimento do direito objeo

    de conscincia, como tambm a desobedincia em nome da

    obedincia a uma lei maior[43]. A referncia lei natural,

    longe de engendrar o conformismo, garante a liberdade pessoal

    e defende os marginalizados e aqueles que so oprimidos pelas

    estruturas sociais esquecidas do bem comum.

    CAPTULO 2: A PERCEPO DOS VALORES

    MORAIS COMUNS

    36. O exame das grandes tradies de sabedoria moral, feito no

    captulo primeiro, atesta que alguns tipos de comportamentos

    humanos so reconhecidos, na maior parte das culturas, como

    expresso de uma certa excelncia na maneira de o ser humano

    viver e realizar a sua humanidade: atos de coragem, pacincia

    nas provas e dificuldades da vida, compaixo pelos fracos,

    moderao no uso dos bens materiais, atitude responsvel face

    ao meio ambiente, dedicao ao bem comum... Estes

    comportamentos ticos definem as grandes linhas de um ideal

    propriamente moral de uma vida segundo a natureza, isto , conforme o ser profundo do sujeito humano. Alm disso,

    alguns comportamentos so universalmente percebidos como

    objetos de reprovao: assassinato, furto, mentira, clera,

    inveja, avareza Eles se manifestam como atitudes que atentam contra a dignidade da pessoa humana e as justas

    exigncias da vida em sociedade. justo ver, por meio destes

    consensos, uma manifestao do que , alm da diversidade

    das culturas, o humano no ser humano, isto , a natureza humana. Mas, ao mesmo tempo, se deve constatar que esse acordo sobre a qualidade moral de alguns comportamentos

    coexiste com uma grande variedade de teorias explicativas.

    Ainda que se trate de doutrinas fundamentais dos Upanishads

    para o Hindusmo ou das quatro verdades nobres para o Budismo, ou do Do de Lao-Tse ou a natureza dos estoicos, cada sabedoria ou cada sistema filosfico compreende o agir

    moral a partir de um quadro explicativo geral, que vem

    legitimar a distino entre o que bem e o que mal. Diante

  • de uma diversidade de justificaes, que torna difcil o dilogo

    e o fundamento das normas morais, h o que fazer.

    37. Portanto, sejam quais forem as justificativas tericas do

    conceito de lei natural, possvel descobrir os dados imediatos

    da conscincia, dos quais se quer se dar conta. O objeto do

    presente captulo , precisamente, mostrar como esto ligados

    os valores morais comuns, que constituem a lei natural. E, em

    seguida, veremos como o conceito de lei natural se apoia sobre

    um quadro explicativo, que fundamenta e legitima os valores

    morais de uma forma capaz a ser compartilhada por muitos.

    Para se fazer isso, a apresentao da lei natural por santo

    Toms de Aquino aparece particularmente pertinente, entre

    outros, porque ele situa a lei natural dentro de uma moral que

    sustenta a dignidade da pessoa humana e reconhece sua

    capacidade de discernimento[44].

    2.1. O papel da sociedade e da cultura

    38. S progressivamente que a pessoa humana acede

    experincia moral e se torna capaz de dar a si mesma os

    preceitos que deve guiar o seu agir. Ela a atinge na medida em

    que, desde o seu nascimento, est inserida em uma rede de

    relaes humanas, comeando pela famlia, que lhe permite

    tomar pouco a pouco conscincia dela mesma e da realidade

    que a cerca. Isto acontece, em particular, com a aprendizagem

    de uma lngua a lngua materna pela qual aprende a dar nome s coisas e possibilita tornar-se um sujeito consciente de

    si mesmo. Orientada pelos outros que a cercam, impregnada da

    cultura na qual est imersa, a pessoa percebe certos modos de

    se comportar e de pensar como valores a buscar, leis a

    observar, exemplos a imitar e vises do mundo a acolher. O

    contexto social e cultural exerce, portanto, um papel decisivo

    na educao dos valores morais. Contudo, no se podem opor

    esses condicionamentos liberdade humana. Ao contrrio, eles

    a tornam possvel, pois que atravs deles que a pessoa pode

    chegar experincia moral que a permite revisar,

    eventualmente, certas evidncias que ela interiorizou no curso de sua aprendizagem moral. De outra parte, no contexto

    de globalizao atual, as sociedades e as prprias culturas

    devem praticar inevitavelmente um dilogo e uma troca

    recproca sincera, fundadas sobre a corresponsabilidade de

    todos perante o bem comum do planeta: necessrio deixar de

    lado os interesses particulares para concordar com os valores

    morais que todos so conclamados a partilhar.

    2.2 A experincia moral: necessrio fazer o bem

    39. Todo ser humano, que chega conscincia e

    responsabilidade, faz a experincia de um apelo interior de

    cumprir o bem. Ele descobre que , fundamentalmente, um ser

    moral, capaz de perceber e de exprimir a interpelao que,

    como j foi visto, se encontra no interior de todas as culturas:

    necessrio fazer o bem e evitar o mal. sobre esse preceito que se fundamentam todos os outros preceitos da lei

    natural[45]. Esse primeiro preceito conhecido naturalmente,

    imediatamente, pela razo prtica, assim como o princpio da

    no contradio (a inteligncia no pode, simultaneamente e

    sob o mesmo aspecto, afirmar e negar algo de um sujeito), que

    est na base de todo o raciocnio especulativo, e apreendido

    intuitivamente, naturalmente, pela razo terica, quando o

    sujeito compreende o sentido dos termos empregados.

    Tradicionalmente, esse conhecimento do primeiro princpio da

    vida moral atribudo a uma disposio intelectual inata, que

    se chama de sindrese[46].

    40. Com esse princpio, ns nos situamos imediatamente no

    plano da moralidade. O bem que assim se impe pessoa ,

    com efeito, o bem moral, isto , um comportamento que,

    superando as categorias do til, caminha no sentido da

    realizao autntica deste ser, ao mesmo tempo uno e

    diversificado, que a pessoa humana. A atividade humana

    irredutvel a uma mera questo de adaptao ao ecossistema: ser humano significa existir e se situar dentro de um quadro

    mais amplo, que define um sentido, valores e

    responsabilidades. Na busca do bem moral, a pessoa contribui

    ao aperfeioamento de sua natureza, indo alm dos impulsos

    do instinto ou da busca de um prazer particular. Esse bem d

    testemunho para si mesmo e compreendido a partir de si

    mesmo[47].

    41. O bem moral corresponde ao desejo profundo da pessoa

    humana, que como todo o ser tende espontaneamente,

    naturalmente, para o que a realiza plenamente, para o que a

    permite atingir a perfeio que lhe prpria, a felicidade.

    Infelizmente, o sujeito sempre pode se deixar arrastar pelos

    desejos particulares e escolher bens ou fazer atos que vo de

    encontro ao bem moral que ele reconhece. Ele pode negar se

    superar. o preo de uma liberdade limitada em si mesma e

    enfraquecida pelo pecado; uma liberdade que encontra

    somente bens particulares, nenhum capaz de satisfazer

    plenamente o corao do homem. Diz respeito razo de o

    sujeito examinar se esses bens particulares possam se integrar

    na realizao autntica da pessoa: neste caso, eles sero

    julgados moralmente bons e, ao contrrio, moralmente maus.

    42. Esta ltima afirmao capital. Ela fundamenta a

    possibilidade de um dilogo com pessoas pertencentes a outros

    horizontes culturais ou religiosos. Ela valoriza a eminente

    dignidade de toda pessoa humana ao sublinhar sua aptido

    natural a conhecer o bem moral que deve cumprir. Como toda

    criatura, a pessoa humana se define por um feixe de

    dinamismos e de finalidades, que anterior s escolhas livres

    da vontade. Mas, diferentemente dos seres que no so dotados

    de razo, ela capaz de conhecer e de interiorizar tais

    finalidades e, portanto, de avaliar, em funo delas, o que

    bom ou mau para si. Assim, ela reconhece a lei eterna, isto , o

    plano de Deus para a criao, e participa da providncia de

    Deus de uma maneira particularmente excelente, guiando a si

    mesma e guiando os outros[48]. Esta insistncia sobre a

    dignidade do sujeito moral e sobre a sua autonomia relativa se

    enraza no reconhecimento da autonomia das realidades

    criadas e se torna um dado fundamental da cultura

    contempornea[49].

    43. A obrigao moral que o sujeito percebe no vem,

    portanto, de uma lei que lhe seria exterior (heteronomia pura),

    mas se afirma a partir de si mesma. De fato, como indica o

    axioma que havamos invocado necessrio fazer o bem e evitar o mal , o bem moral que a razo determina se impe ao sujeito. Ele deve ser cumprido. Ele se reveste de um carter de obrigao e de lei. Mas aqui o termo lei no indica as leis cientficas, que se limitam a descrever as constantes

    fatuais do mundo fsico ou social, nem um imperativo imposto

    arbitrariamente de fora do sujeito moral. Aqui a lei designa

    uma orientao da razo prtica, que indica ao sujeito moral

    qual tipo de agir est conforme ao dinamismo inato e

    necessrio de seu ser, que tende a sua plena realizao. Essa lei

    normativa em virtude de uma exigncia interna do esprito.

    Ela brota do corao mesmo de nosso ser como um impulso

    realizao e superao de si. No se trata, portanto, de se

    submeter lei de outro, mas de acolher a lei de seu prprio ser.

    2.3. A descoberta dos preceitos da lei natural: universalidade

    da lei natural

    44. Uma vez posta a afirmao bsica, que introduz na ordem

    moral necessrio fazer o bem e evitar o mal , vejamos como se opera, no sujeito, o reconhecimento das leis

    fundamentais que devem governar o agir humano. Tal

    reconhecimento no consiste em uma considerao abstrata da

    natureza humana nem do esforo de conceitualizao, que

    depois ser o objeto da teorizao filosfica e teolgica. A

    percepo dos bens morais fundamentais imediata, vital,

    fundada na dimenso conatural do esprito com os valores, e

    ela, tambm, empenha tanto a afetividade quanto a

    inteligncia, tanto o corao quanto o esprito. uma aquisio

    frequentemente imperfeita, ainda obscura e crepuscular, mas

    que tem a profundidade do imediato. Trata-se aqui dos dados

    da experincia o mais simples e o mais comum , que esto implcitos no agir concreto das pessoas.

    45. Na busca do bem moral, a pessoa humana se pe escuta

    do que ela e toma conscincia das inclinaes fundamentais

    de sua natureza, que no so outra coisa do que simples

    desejos cegos do desejo. Percebendo que os bens para os quais

    ela tende por natureza so necessrios a sua realizao moral,

    ela formula a si mesma, sob forma de injunes prticas, o

    dever moral a ser colocado em prtica em sua vida. Ela

    exprime para si mesma um certo nmero de preceitos muito

    gerais, que compartilha com todos os seres humanos e que

    constituem o contedo do que se chama de lei natural.

    46. Tradicionalmente, distinguem-se trs grandes conjuntos de

    dinamismos naturais, que esto presentes na pessoa

    humana[50]. O primeiro, que comum a todo ser substancial,

  • compreende essencialmente a inclinao a conservar e a

    desenvolver a sua existncia. O segundo, que comum a todos

    os seres vivos, compreende a inclinao a se reproduzir para

    perpetuar a espcie. O terceiro, que prprio como ser

    racional, comporta a inclinao a conhecer a verdade sobre

    Deus assim como para viver em sociedade. A partir destas

    inclinaes se podem formular os preceitos primeiros da lei

    natural, conhecidos naturalmente. Esses preceitos so muito

    gerais, mas formam como que um primeiro substrato, o qual

    est na base de toda reflexo ulterior sobre o bem a praticar e o

    mal a evitar.

    47. Para sair dessa generalidade e esclarecer as escolhas

    concretas a fazer, necessrio apelar para a razo discursiva,

    que ir determinar quais so os bens morais capazes de realizar

    a pessoa e a humanidade e formular os preceitos mais concretos, aptos a guiar seu agir. Nessa nova etapa, o

    conhecimento do bem moral procede por raciocnio. Este

    muito simples em sua origem: suficiente uma experincia

    limitada da vida e ele se mantm de acordo com as

    possibilidades intelectuais de cada um. Se fala aqui de

    preceitos segundos da lei natural, descobertos graas a uma mais ou menos longa considerao da razo prtica, em

    contraste com os preceitos gerais fundamentais, que a razo

    colhe de modo espontneo e que so chamados de preceitos primeiros[51].

    2.4. Os preceitos da lei natural

    48. Ns identificamos, na pessoa humana, uma primeira

    inclinao, que ela compartilha com todos os seres: a

    inclinao para conservar e desenvolver sua existncia. H,

    habitualmente, entre os seres vivos, uma reao espontnea em

    face da ameaa iminente de morte: fuga, defesa da integridade

    da prpria existncia, luta para sobreviver. A vida fsica

    aparece, naturalmente, como um bem fundamental, essencial,

    primordial: da brota o preceito de proteger a prpria vida. Sob

    esse enunciado de conservao da vida se perfilam as

    inclinaes para tudo o que contribui, de uma forma prpria ao

    homem, manuteno e qualidade da vida biolgica:

    integridade do corpo; uso dos bens exteriores, que garantam a

    subsistncia e integridade da vida, tal como a nutrio, a

    vestimenta, a moradia, o trabalho; a qualidade do ambiente

    biolgico A partir dessas inclinaes, o ser humano se prope fins a realizar, que contribuem ao desenvolvimento

    harmonioso e responsvel do prprio ser e que, portanto, lhe

    aparecem como bens morais, valores a buscar, obrigaes a

    cumprir e direitos a fazer valer. Com efeito, o dever de

    preservar a sua prpria vida tem como correlativo o direito de

    exigir o que necessrio sua conservao em um ambiente

    favorvel[52].

    49. A segunda inclinao, que comum a todos os seres vivos,

    concerne sobrevivncia da espcie, que se realiza pela

    procriao. A gerao se inscreve no prolongamento da

    tendncia de perpetuar o ser. Se a perpetuao da existncia

    biolgica impossvel ao prprio indivduo, ela possvel

    espcie, e, assim, em certa medida, se encontra vencido o

    limite inerente a todo ser fsico. O bem da espcie aparece,

    ento, como uma das aspiraes fundamentais presentes na

    pessoa. Particularmente, em nossos dias tomamos conscincia

    quando certas perspectivas, como o aquecimento climtico,

    avivam nosso senso de responsabilidade para com o planeta

    como tal e da espcie humana em particular. Essa abertura a

    um certo bem comum da espcie anuncia j algumas

    aspiraes prprias ao homem. O dinamismo para com a

    criao est intrinsecamente ligado inclinao natural, que

    leva o homem para a mulher e a mulher para o homem, dado

    universal reconhecido em todas as sociedades. O mesmo vale

    para a inclinao de cuidar dos filhos e de educ-los. Essas

    inclinaes implicam que a permanncia do casal de homem e

    mulher, e at mesmo sua fidelidade mtua, j sejam valores a

    buscar, mesmo se eles s possam se manifestar plenamente na

    ordem espiritual da comunho interpessoal[53].

    50. O terceiro conjunto de inclinaes especfico ao ser

    humano como ser espiritual, dotado de razo, capaz de

    conhecer a verdade, de entrar em dilogo com os outros e de

    estabelecer relaes de amizade. Assim, deve-se reconhecer

    sua particular importncia. A inclinao a viver em sociedade

    deriva, primeiramente, do fato de que o ser humano tem

    necessidade dos outros para superar seus limites individuais

    intrnsecos e atingir sua maturidade nos diferentes mbitos de

    sua existncia. Mas, para manifestar plenamente sua natureza

    espiritual, ele tem necessidade de estabelecer relaes de

    amizade generosa com seus semelhantes e de desenvolver uma

    cooperao intensa na busca da verdade. Seu bem integral est,

    assim, intimamente ligado vida em comunidade, que existe

    em virtude de uma inclinao natural e no por uma simples

    conveno, e que o faz se organizar em sociedade poltica[54].

    O carter relacional da pessoa se exprime tambm pela

    tendncia de viver em comunho com Deus ou o Absoluto.

    Isso se manifesta no sentimento religioso e no desejo de

    conhecer a Deus. Certamente, ela pode ser negada por aqueles

    que se refutam admitir a existncia de um Deus pessoal, mas

    que permanece mais ou menos implcita na busca da verdade e

    do sentido que habita em todo ser humano.

    51. A essa tendncia especfica do homem corresponde a

    exigncia percebida pela razo de realizar concretamente esta

    via de relaes e de construir a vida em sociedade em bases

    justas, que correspondam ao direito natural. Isto implica o

    reconhecimento da igualdade fundamental de todo indivduo

    da espcie humana, alm das diferenas de raa e de cultura, e

    um grande respeito pela humanidade l onde ela se encontre, e

    inclusive do menor e do mais desprezado de seus membros.

    No faas para o outro o que no queres que te faam. Ns reencontramos aqui a regra de outro, que hoje posta como

    princpio prprio de uma moral de reciprocidade. O primeiro

    captulo permitiu-nos reportar presena dessa regra na maior

    parte das sabedorias, assim como no prprio Evangelho. em

    referncia a uma formulao negativa desta regra de ouro que

    so Jernimo manifestava a universalidade de vrios preceitos

    morais. justo o julgamento de Deus que escreve no corao do gnero humano: Aquilo que no queres que te faam, no faas aos outros. Quem no sabe que o homicdio, o adultrio, os furtos e toda espcie de cobia so o mal, e, por isso, que

    no queremos que sejam feitos a ns mesmos? Se no

    soubssemos que estas coisas so ms, jamais nos

    lamentaramos quando elas nos fossem infligidas[55]. A regra de ouro une vrios mandamentos do Declogo, assim como

    numerosos preceitos budistas, at regras do confucionismo, ou

    ainda a maior parte das orientaes das grandes Cartas que

    indicam os direitos das pessoas.

    52. Ao final desta rpida explicitao dos princpios morais,

    que derivam da tomada de conscincia pela razo das

    inclinaes fundamentais da pessoa humana, estamos na

    presena de um conjunto de preceitos e valores que, ao menos

    em sua formulao geral, podem ser considerados universais,

    porque se aplicam a toda a humanidade. Eles se revestem,

    tambm, de um carter de imutabilidade, na medida em que

    decorrem de uma natureza humana cujos componentes

    essenciais permanecem idnticos ao longo de toda a histria.

    Todavia, pode acontecer que estejam obscurecidos ou mesmo

    apagados no corao humano em razo do pecado e dos

    condicionamentos culturais e histricos que podem influenciar

    negativamente a vida moral pessoal: ideologias e propagandas

    insidiosas, relativismo generalizado, estruturas de

    pecado[56] necessrio, portanto, ser modesto e prudente quando se invoca a evidncia dos preceitos da lei natural. Mas correto reconhecer nestes preceitos o fundo comum

    sobre o qual se pode apoiar um dilogo em vista de uma tica

    universal. Os protagonistas deste dilogo devem, no entanto,

    aprender a abstrair-se de seus interesses particulares para se

    abrir s necessidades dos outros e se deixar interpelar pelos

    valores morais comuns. Em uma sociedade pluralista, na qual

    difcil se entender sobre os fundamentos filosficos, tal dilogo

    absolutamente necessrio. A doutrina da lei natural pode

    trazer sua contribuio a tal dilogo.

    2.5. A aplicao dos preceitos comuns: historicidade da lei

    natural

    53. impossvel permanecer no nvel de generalidade, que

    aquele dos princpios primeiros da lei natural. A reflexo

    moral, com efeito, tem necessidade de descer ao concreto da

    ao para a lanar sua luz. Mas quanto mais ela enfrenta

    situaes concretas e contingentes, tanto mais suas concluses

    so afetadas por uma nota de variabilidade e de incerteza. No

    surpreendente, pois, que a aplicao concreta dos preceitos

    da lei natural possa tomar formas diferentes nas diversas

    culturas ou mesmo em pocas diferentes dentro de uma mesma

    cultura. Basta invocar a evoluo da reflexo moral sobre

    questes como a escravatura, emprstimo a juros, duelo ou

    pena de morte. s vezes, essa evoluo conduz a uma

  • compreenso melhor da interpelao moral. s vezes, tambm,

    a evoluo da situao poltica ou econmica traz uma

    reavaliao das normas particulares que foram estabelecidas

    anteriormente. De fato, a moral se ocupa de realidades

    contingentes que evoluem no tempo. Se bem que tenha vivido

    em uma poca de cristandade, um telogo como santo Toms

    de Aquino, tinha uma percepo muito ntida. A razo prtica, escreve ele na Suma Teolgica, se ocupa de realidades

    contingentes, nas quais se exercem as aes humanas. por

    isto que, embora nos princpios gerais haja alguma

    necessidade, quanto mais se afronta as coisas particulares tanto

    mais h indeterminao (...). No campo da ao, a verdade ou

    a retido prtica no a mesma para todos nas aplicaes

    particulares, mas unicamente nos princpios gerais; e para

    aqueles que a retido idntica em suas prprias aes, ela no

    igualmente conhecida por todos. (...) E aqui, quanto mais se

    desce no particular, mais a indeterminao aumenta[57].

    54. Tal perspectiva se d conta da historicidade da lei natural,

    cujas aplicaes concretas podem variar no tempo. Ao mesmo

    tempo, ela abre uma porta reflexo dos moralistas,

    convidando ao dilogo e discusso. Isto to mais necessrio

    porque, na moral, a pura deduo por silogismo no

    adequada. Quanto mais o moralista aborda situaes concretas,

    tanto mais ele deve recorrer sabedoria da experincia; uma

    experincia que integre as contribuies das cincias e que se

    nutre com o contato de mulheres e de homens engajados na

    ao. S essa sabedoria da experincia permite considerar a

    multiplicidade das circunstncias e chegar a uma orientao

    sobre o modo de fazer o que bom hic et nunc. O moralista

    deve, tambm, lanar mo (e esta a dificuldade de seu

    trabalho) dos recursos, de forma integrada, da teologia, da

    filosofia, assim como das cincias humanas, econmicas e

    biolgicas, para discernir bem os dados da situao e

    identificar corretamente as exigncias concretas da dignidade

    humana. Ao mesmo tempo, ele deve estar particularmente

    atento a salvaguardar os dados bsicos expressos pelos

    preceitos da lei natural, que permanecem alm das variaes

    culturais.

    2.6. As disposies morais da pessoa e seu agir concreto

    55. Para chegar a uma justa avaliao das coisas a fazer, o

    sujeito moral deve estar dotado de um certo nmero de

    disposies interiores, que lhe permitem estar aberto s

    interpelaes da lei natural e, ao mesmo tempo, bem

    informado sobre os dados da situao concreta. No contexto do

    pluralismo, que o nosso, se est cada vez mais consciente que

    no se pode elaborar uma moral fundada sobre a lei natural

    sem uni-la a uma reflexo sobre as disposies interiores ou

    virtudes que tornem o moralista apto a elaborar uma norma de

    ao adequada. Isto ainda mais verdadeiro para o sujeito

    engajado pessoalmente na ao e que deve elaborar um juzo

    de conscincia. No surpreende o fato de hoje se assistir a um

    novo reflorescimento de uma moral de virtudes, inspirada na tradio aristotlica. Ao insistir sobre as qualidades morais

    requeridas para uma reflexo tica adequada, compreende-se o

    papel importante que as diversas culturas atribuem figura do

    sbio. Ele goza de uma particular capacidade de discernimento

    na medida em que possui as disposies morais interiores que

    lhe permitem fazer um julgamento tico adequado. um

    discernimento desse tipo que deve caracterizar o moralista,

    quando ele se esfora por concretizar os preceitos da lei

    natural, assim como todo sujeito autnomo encarregado de

    fazer um julgamento de conscincia e de formular a norma

    imediata e concreta de sua ao.

    56. A moral no pode, portanto, limitar-se a produzir normas.

    Ela deve, tambm, favorecer a formao do sujeito para que

    ele, empenhado na ao, seja capaz de adaptar os preceitos

    universais da lei natural s condies concretas da existncia

    nos contextos culturais diversos. Essa capacidade assegurada

    pelas virtudes morais, particularmente pela prudncia, que

    integra a singularidade para guiar a ao concreta. O homem

    prudente deve possuir no somente o conhecimento do

    universal, mas tambm o conhecimento do particular. Para

    destacar bem o carter prprio dessa virtude, santo Toms de

    Aquino no teme em dizer: Se ele no chega a ter um dos dois conhecimentos, prefervel que este seja o conhecimento das

    realidades particulares, que toca mais de perto a

    operao[58]. Com a prudncia, ele trata de penetrar em uma contingncia, que permanece sempre misteriosa para a razo,

    de se moldar sobre a realidade de modo o mais exato possvel,

    de assimilar a multiplicidade das circunstncias, de registrar o

    mais fielmente possvel uma situao original e indescritvel.

    Tal objetivo necessita de numerosas operaes e habilidades

    que a prudncia deve prover.

    57. Todavia, o sujeito no deve se perder no concreto e no

    individual, como foi censurado na tica de situao. Ele deve descobrir a reta regra de agir e estabelecer uma adequada norma de ao. Essa regra deve derivar dos princpios

    preliminares. Aqui se pensa nos princpios primeiros da razo

    prtica, mas tambm cabe s virtudes morais abrir e tornar

    conatural a vontade e a afetividade sensvel aos diferentes bens

    humanos, e indicar, assim, ao homem prudente quais so os

    fins que ele deve perseguir no fluxo do quotidiano. nesse

    momento que ele ser capaz de formular a norma concreta que

    se impe e de impregnar a ao dada pela luz da justia, da

    fora ou da temperana. No ser falso, aqui, falar do exerccio

    de uma inteligncia emocional: os poderes racionais, sem perder sua especificidade, se exercem dentro de um campo

    especfico, de sorte que a totalidade da pessoa est empenhada

    na ao moral.

    58. A prudncia indispensvel para o sujeito moral por causa

    da flexibilidade requerida pela adaptao dos princpios morais

    universais diversidade das situaes. Mas tal flexibilidade

    no autoriza a ver na prudncia uma espcie de facilitao do

    compromisso para com os valores morais. Bem ao contrrio,

    por meio das decises da prudncia que se exprimem as

    exigncias concretas da verdade moral para um sujeito. A

    prudncia uma passagem necessria para a obrigao moral

    autntica.

    59. H uma perspectiva que, dentro de uma sociedade

    pluralista como a nossa, se reveste de uma importncia, que

    no dever ser subestimada sem incorrer em danos

    considerveis. Com efeito, ela nasce do fato de que a cincia

    moral no pode fornecer ao sujeito agente uma norma que se

    aplique de forma adequada e quase automtica situao

    concreta: s a conscincia do sujeito, o juzo de sua razo

    prtica, pode formular a norma imediata da ao. Mas, ao

    mesmo tempo, ela no deixa a conscincia entregue s a

    subjetividade: visa fazer o sujeito adquirir as disposies

    intelectuais e afetivas que lhe permitem se abrir verdade

    moral de tal sorte que seu juzo seja adequado. A lei natural

    no poder ser apresentada como um conjunto de regras j

    constitudo e que se impe a priori ao sujeito moral, mas ela

    uma fonte de inspirao objetiva para seu processo,

    eminentemente pessoal, de tomada de deciso.

    CAPTULO 3: OS FUNDAMENTOS TERICOS DA LEI

    NATURAL

    3.1. Da experincia s teorias

    60. A aquisio espontnea dos valores ticos fundamentais,

    que se exprime nos preceitos da lei natural, constitui o ponto

    de partida do processo que conduz, em seguida, o sujeito moral

    ao juzo da conscincia na qual ele anuncia quais so as

    exigncias morais que lhe so impostas em sua situao

    concreta. tarefa do filsofo e do telogo refletir sobre esta

    experincia de aquisio dos primeiros princpios da tica para

    verificar o valor e a fundament-lo na razo. O

    reconhecimento desses fundamentos filosficos ou teolgicos

    no condiciona, todavia, a adeso espontnea aos valores

    comuns. Com efeito, o sujeito moral pode pr em prtica as

    orientaes da lei natural sem ser capaz, em razo dos

    condicionamentos intelectuais particulares, de discernir

    explicitamente os fundamentos tericos ltimos.

    61. A justificao filosfica da lei natural apresente dois nveis

    de coerncia e de profundidade. A ideia de uma lei natural se

    justifica, antes de tudo, no plano da observao refletida pelas

    constantes antropolgicas, que caracterizam uma humanizao

    bem-sucedida da pessoa e uma vida social harmoniosa. A

    experincia refletida, veiculada pelas sabedorias tradicionais,

    pelas filosofias ou pelas cincias humanas, permite determinar

    algumas das condies requeridas para que cada um

    desenvolva o melhor possvel as capacidades humanas em sua

    vida pessoal e comunitria[59]. assim que alguns

    comportamentos so reconhecidos como expresso de uma

    exemplar excelncia no modo de viver e realizar a sua

  • humanidade. Eles definem as grandes linhas de um ideal

    propriamente moral de uma vida virtuosa segundo a natureza, isto , conforme a natureza profunda do sujeito humano[60].

    62. No entanto, s levando em conta a dimenso metafsica da

    realidade se pode dar lei natural sua plena e completa

    justificao filosfica. Com efeito, a metafsica permite

    compreender que o universo no encontra nele mesmo a sua

    razo ltima de ser, e ela manifesta a estrutura fundamental do

    real: a distino entre Deus, o prprio Ser subsistente, e os

    outros seres postos por Ele na existncia. Deus o Criador, a

    fonte, livre e transcendente, de todos os outros seres. Estes

    recebem dele, com medida, nmero e peso (Sb 11,20), a existncia segundo uma natureza que os define. As criaturas

    so, portanto, a epifania de uma sabedoria criadora pessoal, de

    um Logos fundador, que se exprime e se manifesta nelas.

    Toda criatura verbo divino, porque ela fala de Deus, escreve so Boaventura[61].

    63. O Criador no somente o princpio das criaturas, mas

    tambm o fim transcendente, para o qual elas tendem por

    natureza. Assim, as criaturas so animadas por um dinamismo

    que as leva realizao, cada uma a seu modo, na unio com

    Deus. Ests dinamismo transcendente, na medida em que ele

    procede da lei eterna, isto , do plano da providncia divina,

    que existe no esprito do Criador[62]. Mas ele , tambm,

    imanente, porque no imposto de fora ab extra s criaturas, mas inscrito na sua prpria natureza. As criaturas

    puramente materiais realizam espontaneamente a lei de seu ser,

    ao passo que as criaturas espirituais a realizam de modo

    pessoal. Com efeito, elas interiorizam os dinamismos que as

    definem e os orientam livremente para a sua plena realizao.

    Elas formulam a si mesmas como normas fundamentais de seu

    agir moral esta a lei natural propriamente dita e se esforam para cumpri-las livremente. A lei natural se define,

    ento, como uma participao da lei eterna[63]. Ela mediada,

    de uma parte, pelas inclinaes da natureza, expresses da

    sabedoria criadora, e, de outra parte, pela luz da razo humana,

    que as interpreta e que ela mesma uma participao criada na

    luz da inteligncia divina. A tica se apresenta, assim, como

    uma teonomia participada[64].

    3.2. Natureza, pessoa e liberdade

    64. A noo de natureza particularmente complexa e no ,

    de maneira alguma, unvoca. Em filosofia, o pensamento grego

    da physis exerce um papel matricial. Nela, a natureza designa o

    princpio de identidade ontolgica especfica de um sujeito,

    isto , a sua essncia, que se define por um conjunto de

    caractersticas inteligveis estveis. Essa essncia toma o nome

    de natureza, sobretudo quando compreendida como o

    princpio interno do movimento, que orienta o sujeito para a

    sua realizao. Longe de remeter a um dado esttico, a noo

    de natureza significa o princpio dinmico real do

    desenvolvimento homogneo do sujeito e de suas atividades

    especficas. A noo de natureza foi formada, antes de tudo,

    para pensar as realidades materiais e sensveis, mas no se

    limita a esse mbito fsico e se aplica analogamente s realidades espirituais.

    65. A idia, segundo a qual os seres possuem uma natureza,

    impe-se ao esprito quando se quer dar a razo da finalidade

    imanente dos seres e da regularidade que se percebe em seus

    modos de agir e de reagir[65]. Considerar os seres como

    natureza significa, portanto, reconhecer que eles tm

    consistncia prpria e afirmar que so centros relativamente

    autnomos na ordem do ser e do agir, e no simples iluses ou

    construes temporrias da conscincia. Mas essas naturezas no so unidades ontolgicas fechadas, encerradas em si

    mesmas, e puramente justapostas umas s outras. Agem umas

    sobre as outras, estabelecendo relaes complexas de

    causalidade entre si. Na ordem espiritual, as pessoas tecem

    relaes intersubjetivas. As naturezas formam, portanto, uma

    rede e, em ltima anlise, uma ordem, isto , uma srie

    unificada pela referncia a um princpio[66].

    66. Com o cristianismo, a physis dos antigos repensada e

    integrada em uma viso mais ampla e mais profunda da

    realidade. De uma parte, o Deus da revelao crist no um

    simples componente do universo, um elemento do grande

    Tudo da natureza. Ao contrrio, ele o criador, transcendente

    e livre, do universo. De fato, o universo finito no pode fundar

    a si mesmo, mas aponta para o mistrio de um Deus infinito,

    que, por amor, o criou ex nihilo e permanece livre para intervir

    no curso da natureza cada vez que quiser. De outra pa