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Primeiro capítulo de Como os Franceses Inventaram o Amor de Marilyn Yalom
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TraduçãoLeila V. B. Gouvêa
Como os franceses
inventaram o amor
Nove séculos de romance e paixão
Marilyn Yalom
conhecimento
1010
IntroduçãoAbelardo e Heloísa, santos
patronos dos amantes franceses
Em toda a minha vida, sabe Deus, foi tu, e não Ele, quem eu temi ofender, foi tu, em vez Dele, quem procurei agradar.
Heloísa a Abelardo, c. 1133
Abelardo e Heloísa são tão familiares aos franceses como Romeu e
Julieta aos demais países do Ocidente. Esse casal de amantes, que viveu
no início do século XII, nos legou uma história tão estranha que pode ser
lida como uma narrativa gótica. As surpreendentes cartas que trocaram,
em latim, e a autobiografia de Abelardo, Historia calamitatum [A história
de minhas calamidades], tornaram-se textos emblemáticos na história do
amor na França.
11
Introdução
Abelardo foi um pregador itinerante, erudito, filósofo e o professor
mais popular de seu tempo. Dos vinte até quase os quarenta anos, ficou
famoso por seus discursos sobre dialética (lógica) e teologia. E sua beleza
não o prejudicou. Como os astros de rock de hoje, sua aparência como
orador ajudou a atrair multidões de admiradores. Antes do surgimento
das universidades na França, havia escolas urbanas distritais que se for-
mavam em torno de estudiosos célebres, e a que foi criada por Abelardo
em Paris reuniu estudantes de todas as regiões da cristandade.
Heloísa, sobrinha e pupila do cônego de uma igreja em Paris, já na
adolescência se destacava pela brilhante inteligência e pelo aprendizado
avançado. Já dominava o latim e viria a se tornar proficiente em grego e
hebraico. Atraído por esse talento singular, Abelardo engendrou um pla-
no infalível para seduzi-la: hospedar-se na casa do cônego a fim de mi-
nistrar aulas particulares à jovem. Não demorou para Abelardo e Heloísa
caírem nos braços um do outro e se envolverem em uma ardente paixão.
Durante o inverno de 1115-1116, quando se tornaram amantes,
Heloísa teria apenas quinze anos, e Abelardo, por volta dos 37. Até co-
nhecê-la, ele ainda era um adepto do celibato e estava totalmente des-
preparado diante da força irresistível daquela paixão arrebatadora: “com
os livros abertos à nossa frente, havia mais palavras de amor do que as
que estavam impressas, e mais beijos do que estudo. Minhas mãos per-
corriam mais vezes seus seios do que as páginas; o amor levava nossos
olhos a se fixarem antes um no outro do que na leitura dos textos”.1
Para Heloísa, aquele amor era um paraíso de êxtase que ela não
conseguia apagar da memória: “Os prazeres de amor que compartilhá-
vamos eram demasiado doces – nunca poderiam me desagradar, e mal
podiam deixar meus pensamentos”.
Mas havia uma desvantagem naquele amor erótico. O trabalho
de Abelardo começou a se ressentir, e seus alunos passaram a reclamar
de suas distrações. Ocupado em compor canções de amor para Heloísa,
1. The letters of Abelard and Heloise, trad. Betty Radice (London: Penguin Books, 1974, pp. 51–52). Todas as citações das Cartas e da História de minhas calamidades, de Abelardo, foram extraídas dessa tradução.
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Como os franceses inventaram o amor
mais do que em discorrer sobre teologia, ele se tornou surdo aos rumores
que passaram a circular sobre eles. Por fim, o tio de Heloísa não pôde
mais continuar alheio ao caso amoroso, e os amantes foram obrigados
a se separar, não antes, porém, que Heloísa engravidasse. Abelardo a
mandou para a casa de sua família na Bretanha e continuou em Paris en-
frentando a ira daquele tio. Os dois concordaram que o casamento seria
a solução para reparar a desonra da jovem. No entanto, nenhum dos dois
prestou atenção às objeções de Heloísa: ela preferia continuar amante de
Abelardo em vez de se tornar sua esposa, pois, a seu ver, o casamento se-
ria um desastre para a carreira do companheiro. Ela ainda compartilhava
a opinião geral de que o amor não podia florescer dentro do casamento.
Apesar disso, logo depois do nascimento do filho, a quem deram o
nome de Astrolábio, Abelardo e Heloísa se casaram secretamente numa
igreja na presença do tio dela e de algumas poucas testemunhas. Eles
pretendiam que o casamento ficasse em segredo, de modo a não pre-
judicar a reputação de Abelardo. Mas aquela situação não satisfez o tio
de Heloísa, com quem ela voltara a viver. Quando ele passou a atacá-la
com palavras duras e explosões descontroladas, Abelardo decidiu enviá-
-la temporariamente à Abadia de Argenteuil, o mesmo convento onde
ela havia sido educada na infância. Por acreditar que, com isso, Abelardo
tinha a intenção de livrar-se da moça, o tio resolveu puni-lo com um ato
monstruoso: uma noite, enquanto Abelardo dormia, criados invadiram
seu quarto e o castraram. Castrado! Até mesmo os piores filmes de mau
gosto relutam em representar um crime tão sangrento.
A primeira vez que ouvi os nomes de Abelardo e Heloísa foi, pro-
vavelmente, na canção de Cole Porter, “It was just one of those things”,
do musical Jubileu, de 1935: “Quando Abelardo disse a Heloísa/ Por favor,
não se esqueça de me escrever umas linhas”.
Essa canção tornou-se popular na metade do século XX, quando
se imaginava que os sofisticados frequentadores de teatro seriam capa-
zes de reconhecer tais referências. Mas aqueles nomes nada significavam
para mim, até eu vir a estudar literatura medieval francesa no Wellesley
College, na década de 1950, quando li, então, a “Balada das damas dos
tempos antigos”, escrita ainda no século XV pelo poeta François Villon:
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Introdução
Onde está a sábia HeloísaPor quem Abelardo foi castradoE feito um monge em Saint Denis?Pelo verdadeiro amor sofreu tais provas.2
Ergui os olhos diante da palavra châtré (castrado) e criei coragem
para pedir à professora que explicasse melhor. A professora Andrée Bruel
– uma mulher cheia de corpo que, nas aulas, não via problemas em usar
gestos como os dos cavaleiros numa batalha – explicou de maneira de-
sajeitada que Pedro Abelardo de fato perdeu os testículos pelas mãos de
criminosos contratados pelo tio de Heloísa. Por fim, encerrou rapidamen-
te o assunto e me recomendou a leitura das cartas trocadas pelos dois
amantes, assim como a da autobiografia de Abelardo.
De uma forma ou de outra, consegui ler esses textos entre as tare-
fas do curso (em francês traduzido do latim) e fiquei assombrada. Como
pôde aquela adolescente – mais nova do que então eu era – se render tão
completamente a um homem com o dobro de sua idade, e um clérigo,
ainda por cima! Como os dois puderam afrontar as censuras da Igreja Ca-
tólica Romana e o seu conhecido desdém pela paixão humana, a crença
de que fazer amor, a não ser dentro do casamento e com a finalidade
da procriação, consistia em fornicação pecaminosa? Como conseguiram
aguentar as pressões sociais e familiares, que penalizavam mães soltei-
ras e padres casados? Como puderam sobreviver à dor e à ignomínia da
emasculação de Abelardo?
Hoje sei que a horrível mutilação de Abelardo não teria impedido
que ele vivesse como marido com Heloísa. Tendo se casado dentro da
Igreja, eles eram esposos legítimos no sentido pleno da palavra, e a Igre-
ja assegura a anulação somente quando um casamento não chega a ser
consumado. No entanto, esse cenário doméstico não ocorreu. Abelardo
instruiu Heloísa a ficar permanentemente no convento e a fazer os vo-
tos religiosos, os mesmos que ele fizera como monge. Por que ele tomou
essa decisão e por que ela obedeceu à sua ordem?
2. François Villon, “Ballade des dames du temps jadis”. Tradução livre. [N.T.]
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Como os franceses inventaram o amor
Muito tempo depois da separação, Abelardo tentou justificar seus
atos na Historia calamitatum, escrita a um amigo na forma de uma carta
de consolo. Explicou ele:
Admito que foi por vergonha e confusão, em meu remorso e miséria, e não qualquer desejo devoto de conversão, que me levou a buscar abri-go num claustro de monastério. Heloísa já tinha concordado em tomar o véu em obediência à minha vontade e entrou para um convento. Assim, vestimos ambos o hábito religioso, eu na abadia de Saint Denis, ela no convento de Argenteuil.
A carta a esse suposto amigo circulou entre os que sabiam ler em
latim e talvez tenha chamado a atenção de Heloísa. Na época, ela já tinha
passado dos trinta anos e viveria distante de Abelardo por cerca de quin-
ze, primeiro em Argenteuil, onde se tornou madre superiora, e mais tarde
como abadessa do monastério de Paraclete, fundado por ninguém menos
que seu próprio marido, Abelardo. Sua paixão não tinha ainda perdido nem
um pouco de sua força, e ela o censurava por não ter se esforçado por con-
tatá-la ou confortá-la, como fizera em relação àquele anônimo amigo.
“Diga-me, se puder”, protestava ela, “depois que entramos para a
vida religiosa, o que foi uma decisão apenas sua, por que fui abandonada
e esquecida por você?... Eu lhe direi o que penso, e o que na verdade o
mundo desconfia. Era desejo, e não afeto, o que uniu você a mim, era a
chama da concupiscência, e não o amor.”
Heloísa enfatizava uma diferença que será sempre feita e refeita
quando abordamos as variações sobre o tema do amor. Serão os homens
motivados principalmente pelo desejo físico, e as mulheres, por suas
emoções? Ou, de maneira mais crua, os homens são comandados por seu
pênis, e as mulheres, por seu coração? Uma combinação de desejo físico
e ligação emocional é o que Heloísa sentia por Abelardo e pensava que
ele se deixara levar apenas pela luxúria. Isso soa como uma diferença en-
tre homens e mulheres muito discutida até hoje. (Penso particularmente
nos livros do neuropsiquiatra Louann Brizendine, The female brain [O cé-
rebro feminino] e The male brain [O cérebro masculino], que afirmam que
um homem tem duas vezes e meia mais espaço no cérebro dedicado à
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Introdução
procura de sexo do que a mulher, enquanto o sistema de empatia do cé-
rebro feminino é consideravelmente mais ativo que o do cérebro mascu-
lino.3) Decerto, Heloísa conservou seu amor por Abelardo “para além de
todos os limites”, mesmo muito tempo depois de ele a ter abandonado.
Quinze anos antes, ela vestira o hábito por decisão dele, sem
qualquer vontade própria, e sua absoluta sujeição ao amado, mais do
que a Deus, não mudou ao longo do tempo. Mesmo enquanto abadessa
de Paraclete, ela ainda o colocava no papel de “mestre”, “pai” e “mari-
do” que tinha poder total sobre seu destino. Ser mulher naquele tempo
significava submeter-se aos homens. Isso valia tanto para a vida pessoal
como para a religiosa, embora algumas ordens religiosas femininas con-
seguissem assegurar uma considerável autonomia, e certas mulheres de
personalidade forte fossem capazes de dominar o marido. O único lugar
que nenhuma delas podia controlar, nem mesmo a própria Heloísa, era
o inconsciente.
Em suas cartas a Abelardo, ela confessava desejos eróticos que
não desapareceram com o passar dos anos e aceitava a castração dele
como uma forma de punição divina. Com 54 anos na época das cartas,
e tendo perdido a parte do corpo que responde pela virilidade, Abelardo
considerava aquele caso de amor e o casamento como histórias encerra-
das, substituídas inteiramente pelo amor a Deus. E aconselhou Heloísa
a procurar seguir seu exemplo. Mas ela não tinha então mais do que 32
anos e ainda se espicaçava pelos prazeres perdidos. Enquanto desem-
penhava o papel de abadessa com visível empenho, em sua imaginação
continuava a ser a mulher e amante de Abelardo, deixando-se consumir
por lúbricas recordações:
Para onde quer que me volte, elas estão sempre ali, diante de meus olhos, trazendo com elas desejos e fantasias despertos que nem me deixam dor-mir. Até mesmo durante a celebração da missa, quando nossas preces de-vem ser mais puras, visões lascivas daqueles prazeres provocam tal aper-to sobre a minha alma infeliz que meus pensamentos se voltam para a
3. Louann Brezendine, The male brain (New York: Broadway Books, 2010).
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Como os franceses inventaram o amor
lascívia, no lugar das preces. Eu deveria estar gemendo sobre os pecados que cometi, mas posso apenas suspirar pelo que perdi. Tudo o que fize-mos, assim como os instantes e os lugares, está gravado em meu coração com a sua imagem, e através dela eu vivo novamente tudo isso com você.
O grito apaixonado de Heloísa ecoou através dos tempos. Ela fala a
todas as mulheres que amaram sem reservas e, depois, perderam aquele
a quem amavam. Morte, divórcio, abandono e deficiência física reduzi-
ram incontáveis mulheres, e homens, a vidas de inquieto desespero. Se-
parados de maneira tão abrupta e grotesca, Heloísa e Abelardo viveram
os anos que lhes restaram como membros das ordens religiosas que os
abrigaram, ainda que Abelardo se visse constantemente em conflito com
seus colegas teólogos, e Heloísa fosse continuamente atormentada pelos
desejos da carne. Ainda em seu tempo, os dois eram vistos com assombro
por seus contemporâneos e, nos últimos séculos, conquistaram devota-
dos seguidores, que passaram a considerá-los como santos patronos. É
inegável que a castração de Abelardo contribuiu para sua aura sagrada,
uma vez que algum tipo de mutilação física – lembre-se de São Sebastião
com o peito perfurado pela seta, ou de Santa Ágata, com os seios ampu-
tados – tem sido frequentemente associado à santidade. Assim, não seria
difícil considerar esse par famoso, Abelardo com sua debilitante mutilação
e Heloísa com sua angústia psíquica, como mártires do amor.
Conforme o pedido que deixou, Abelardo foi sepultado em Para-
clete em 1144, e Heloísa se uniu a ele duas décadas depois, em 16 de maio
de 1164. Mais tarde, na época da Revolução Francesa, quando o convento
foi vendido e o edifício demolido, seus ossos foram levados para a vizinha
Igreja de Saint Laurent, em Nogent-sur-Seine. Em 1817, seus restos mor-
tais foram transladados para o Cemitério Père-Lachaise, em Paris, onde
repousam sob uma alta tumba em estilo gótico. Os apaixonados come-
çaram a fazer peregrinações a seu túmulo. Da última vez que o visitei, vi
um buquê de narcisos e um pequeno cartão que pedia bênçãos ao casal,
morto há séculos.