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1 COMPONDO NARRATIVAS DE INSPIRAÇÃO FOTOETNOGRÁFICA SOBRE CRIANÇAS & OBJETOS UM MODO DE PESQUISAR A INFÂNCIA EM ESCOLA DO INTERIOR DO RIO GRANDE DO SUL Ana Paula Lima Aprato Universidade Luterana do Brasil Programa de Pós-graduação em Educação ULBRA Este artigo deriva do recorte de um dos capítulos de minha dissertação de mestrado, intitulada Crianças & objetos: uma pesquisa de inspiração fotoetnográfica sobre infâncias do nosso tempo em escola do interior do Rio Grande do Sul. Ao apresentar o caminho investigativo de meu estudo, destaco o conceito teórico- metodológico da fotoetnografia, uma metodologia desenvolvida a partir de narrativas com imagens. Apresento neste artigo como foi trilhado o caminho investigativo de minha pesquisa; características específicas da fotografia na antropologia visual e na etnografia; os principais conceitos teórico-metodológicos da narrativa fotoetnográfica subsidiados por Achutti (1997 e 2004); assim como importantes estudos sobre fotolivro, a leitura de um livro predominantemente com imagens, realizados por Badger (2015). Com o objetivo de evidenciar a fluidez da imagem à um saber “inacabado”, um exercício de trabalho, um método de investigação que não contempla o fim, mas o início de outra investigação, nesta pesquisa procuro mostrar uma das possibilidades da metodologia fotoetnográfica, sem nenhuma pretensão de encontrar verdades. Minha intenção é simplesmente tentar um outro modo de mostrar e pensar sobre a infância de nossos dias, com fotografias que permitam vislumbrar ideias, modos de existir e interpretações. Pois não somos iguais uns aos outros, não vivemos todos no mesmo contexto e não experimentamos as coisas da mesma forma.

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COMPONDO NARRATIVAS DE INSPIRAÇÃO FOTOETNOGRÁFICA

SOBRE CRIANÇAS & OBJETOS – UM MODO DE PESQUISAR A INFÂNCIA EM

ESCOLA DO INTERIOR DO RIO GRANDE DO SUL

Ana Paula Lima Aprato

Universidade Luterana do Brasil

Programa de Pós-graduação em Educação ULBRA

Este artigo deriva do recorte de um dos capítulos de minha dissertação de

mestrado, intitulada Crianças & objetos: uma pesquisa de inspiração fotoetnográfica

sobre infâncias do nosso tempo em escola do interior do Rio Grande do Sul. Ao

apresentar o caminho investigativo de meu estudo, destaco o conceito teórico-

metodológico da fotoetnografia, uma metodologia desenvolvida a partir de narrativas

com imagens. Apresento neste artigo como foi trilhado o caminho investigativo de

minha pesquisa; características específicas da fotografia na antropologia visual e na

etnografia; os principais conceitos teórico-metodológicos da narrativa fotoetnográfica

subsidiados por Achutti (1997 e 2004); assim como importantes estudos sobre

fotolivro, a leitura de um livro predominantemente com imagens, realizados por

Badger (2015).

Com o objetivo de evidenciar a fluidez da imagem à um saber “inacabado”,

um exercício de trabalho, um método de investigação que não contempla o fim, mas

o início de outra investigação, nesta pesquisa procuro mostrar uma das

possibilidades da metodologia fotoetnográfica, sem nenhuma pretensão de

encontrar verdades. Minha intenção é simplesmente tentar um outro modo de

mostrar e pensar sobre a infância de nossos dias, com fotografias que permitam

vislumbrar ideias, modos de existir e interpretações. Pois não somos iguais uns aos

outros, não vivemos todos no mesmo contexto e não experimentamos as coisas da

mesma forma.

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A opção por realizar a fotoetnografia na Escola Estadual Fortaleza, na cidade

de Rio Pardo1, foi pessoalmente relevante. A rua em que morei nesta localidade, no

bairro Fortaleza – entre 2015 e 2016, período em que desenvolvi a pesquisa na

escola – fica no caminho que muitos estudantes percorrem para chegar à escola. As

janelas de minha casa eram bastante próximas da calçada e costumava ouvir

diariamente as vozes e os sons das crianças da EEF. Meu interesse pela escola foi

imediato e, de certa forma, arrebatador.

Percorri este caminho de pesquisa inicialmente contando com a autorização

do diretor da EEF, assim como com o consentimento e autorização de uso de

imagem e de manifestações orais das famílias para fotografar as crianças.

Frequentei a escola em média duas vezes por semana, por cerca de um ano e meio,

onde convivi com alunos, pais e professores, e procurei me aproximar o mais

possível da vida na escola e das atividades das crianças que a frequentam.

Inicialmente, quando passei a vivenciar o ambiente escolar, os alunos

estavam eufóricos e curiosos sobre o equipamento fotográfico e as lentes que utilizo,

não interessando muito o que eu contava sobre o que fazia por lá. Queriam mesmo

ser fotografados e ver as fotos imediatamente na câmera. Percebi que mostrar as

fotografias seria uma espécie de acordo, de contrapartida estabelecida entre nós,

um retorno que instaurava certa igualdade entre as pessoas envolvidas na pesquisa.

Com esta maneira de conduzir o trabalho, algumas vezes fui pega de surpresa por

comentários sobre fotografias que não agradaram alguns alunos. Destaco

especialmente a insatisfação de uma menina quando se viu em uma das fotografias

e pediu para que eu retirasse aquela imagem da pesquisa, pois não havia gostado.

Depois de certos argumentos meus e dela, acatei a decisão da garota, seguindo um

1 Fonte: Em torno de 1633, jesuítas espanhóis que viviam onde hoje se situa o município de Rio Pardo foram expulsos por bandeirantes de Raposo Tavares, apoiados por índios Tupis. A colonização portuguesa teve início com o assentamento de casais açorianos um século depois. Por conta da resistência portuguesa às fronteiras estabelecidas pelo Tratado de Madrid, foi erguido, em 1752, o forte Jesus-Maria-José. Entre os séculos XVIII e XIX, Rio Pardo foi um dos núcleos mais importantes da Capitania do Rio Grande do Sul, como praça militar e tráfego comercial. Dali partiram expedições militares para defender zonas ameaçadas pelos espanhóis ou para expandir os domínios da Coroa portuguesa. Em 1715 o Capitão de Brito Peixoto batizou a cidade com o nome de Rio Pardo, devido a cor parda das águas do rio Jacuí que banha a cidade. Disponível no site <www.cidades.ibge.gov.br>.

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dos preceitos da fotoetnografia, que é justamente estabelecer condições para um

diálogo possível entre o pesquisador e as pessoas que participam da pesquisa.

Simultaneamente a esta aproximação com a escola e os trâmites para obter

consentimentos e autorizações para fotografar as crianças, submeti a pesquisa ao

Comitê de Ética da ULBRA, via Plataforma Brasil, sendo esta aprovada em um

processo que durou praticamente um ano.

Os registros de inspiração fotoetnográfica foram complementados por

anotações em um caderno de campo sobre as observações que fiz na escola e fora

dela e sobre falas das crianças do 1º, 2º e 3º anos do ensino fundamental. Além da

imersão na escola, me aproximei de outros espaços da cidade frequentados pelas

crianças, como pracinhas, parques, lojas, sorveterias.

Muitos autores me ajudaram a pensar sobre a narrativa com imagens

fotográficas como ferramenta para este estudo sobre objetos e infâncias do nosso

tempo. Para tentar captar e ressaltar, nos registros fotoetnográficos que produzi,

determinadas peculiaridades locais da cidade de Rio Pardo, como espaços que as

crianças frequentam, programações culturais de que participam, suas relações com

o mundo permeado pelo consumo, atulhado de objetos sedutores que impactam

suas vidas, cabe aqui mencionar a importante contribuição que encontrei

particularmente nas seguintes obras: Identity, de Catherine Balet (2006) e

Permanent Error, de Pieter Hugo (2011). Nos três tópicos a seguir, discorro sobre

obras, artigos e reflexões que fecundaram meu olhar neste percurso de pesquisa

inspirado na fotoetnografia.

A fotografia na antropologia visual e na etnografia

A antropologia, uma ciência social que objetiva o estudo de culturas e

sociedades, desde o final do século XIX utilizou técnicas fotográficas aplicadas ao

trabalho antropológico para ilustrar com imagens um texto escrito, para auxiliar

alguma detalhada coleta de dados, ou mesmo para aproximar o pesquisador do

povo e da cultura no campo de pesquisa.

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No campo da antropologia, a etnografia constitui uma metodologia de coleta

de dados que estuda de forma descritiva os grupos sociais, suas características

antropológicas, culturais e sociais. A etnografia é, ao mesmo tempo, método de

produção de dados e os próprios dados produzidos.

O fotógrafo e etnógrafo francês Pierre Verger, aos trinta anos de idade deixou

Paris, sua cidade natal, para se dedicar às pesquisas sobre culturas negras do Brasil

e da África. Desenvolveu um conjunto de saberes, análises e interpretações

inovadoras a partir de sua obra que aborda um olhar reflexivo sobre si mesmo e

sobre algumas culturas, onde experimentou três maneiras de aprendizado: imagem,

oralidade e escrita. As três constituíram fontes metodológicas para Verger e são

analisadas detalhadamente na obra de Jérôme Souty (2011), intitulada Pierre

Fatumbi Verger: do olhar livre ao conhecimento iniciático. Verger, que descobriu a

Bahia em 1946 e encantou-se pela literatura de Jorge Amado, valorizou o silêncio no

seu trabalho, o não dito, o mistério e a fotografia como prática despreendida e

inconsciente. Quando saía a campo, não desejava aplicar um método de

investigação e trazer informações com a intenção de compreender o que viu, o que

o interessava era o conhecimento de outras culturas e outras experiências. Com

encantamento pela religiosidade e arte baiana, não intencionava estudar aquelas

pessoas, preferia viver com elas. O fotógrafo não costumava definir o que procurava

pesquisar e nem de que maneira o faria, arriscava ser capturado pela consciência

desorganizada, pelo instante.

A obra Fotografia e antropologia: olhares fora-dentro de Rosane de Andrade

(2002), relaciona o processo de construção da imagem fotográfica com o de sua

interpretação e reporta ao trabalho de Pierre Verger, quando menciona o embate

entre ser fotógrafo e pesquisador, observador e participante como criador da

imagem fotográfica. A autora percebe na fotografia uma expressão autônoma e uma

forma de pensamento visual. Enfoca na linguagem marcada pela visualidade o

sentido de ver com olhos livres, propondo que não seja “preciso ser selvagem para

pensar selvagem. Necessita-se de um olhar único e singular, um processo solitário

na tentativa de redescobrir no outro e o outro em si mesmo” (p.29).

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Uma coletânea de ensaios que compõe o livro Entre arte e ciência: a

fotografia na antropologia, organizado por Sylvia Caiuby Novaes (2015), parte das

variadas alternativas em relação à fotografia e antropologia. Os artigos reunidos

relacionam informação, conhecimento e arte ao abordar combinações entre o

fotógrafo-pesquisador e as pessoas fotografadas. No ensaio “Fotografar: expor (e se

expor) – a utilização da fotografia no contexto da violência”, de Bárbara Copque

(2015) sobre tatuagens dos presos da penitenciária de Bangu II, a fotógrafa obteve a

confiança dos detidos após mostrar as imagens aos presos, que decidiram quais

cenas seriam usadas na pesquisa. Outro ensaio em que o pesquisador compartilha

e dialoga sobre as imagens fotográficas é “O rúgbi em cadeira de rodas: um breve

ensaio sobre a (des)construção da imagem da deficiência física”, de Joon Ho Kim

(2015). Com a intenção de romper com a idéia de cadeirante passivo, além de

fotografados, os jogadores participaram ativamente da construção fotográfica.

Novaes (2015) argumenta sobre o poder das imagens quando “tornam visível o que

não era, subvertem o senso comum, denunciam com sensibilidade única e, por isso

mesmo, agem” (p.15).

Narrativa fotoetnográfica – uma metodologia desenvolvida por Luiz Eduardo

Robinson Achutti

Para exercer a prática fotoetnográfica na escola Estadual Fortaleza, foi

principalmente nos trabalhos Fotoetnografia: um estudo de antropologia visual sobre

o cotidiano, lixo e trabalho (1997) e Fotografia da Biblioteca Jardim (2004) do

fotógrafo, doutor em antropologia e criador do conceito de fotoetnografia, Luiz

Eduardo Achutti, que encontrei inspiração e orientações metodológicas.

O criador da disciplina intitulada fotoetnografia, Luiz Eduardo Achutti (2004),

alinha-se às discussões que consideram a fotografia um gesto de criação e não de

mera reprodução e, segundo ele, no caso da fotoetnografia, o domínio da técnica

fotográfica coloca-se a serviço do olhar do pesquisador. Procura-se com ela

desenvolver um trabalho de pesquisa interpretativa, compondo imagens que

intentam mostrar a singularidade de um determinado grupo ou prática cultural. Para

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isso, é necessário que o fotoetnógrafo tenha um contato próximo com as pessoas

estudadas na pesquisa, de forma a conhecer suas peculiaridades, sendo importante

servir-se de diferentes recursos e técnicas. Em geral, nas etnografias utiliza-se

desde o tradicional bloco de anotações, como também os gravadores de som, as

câmeras fotográficas, cinematográficas e de vídeo. Contudo, apesar da adoção

desses diferentes meios técnicos, comenta o autor, a maioria dos trabalhos de

antropologia visual que utiliza fotografia não costuma explorar as possibilidades

oferecidas por uma narrativa fotográfica, e a divulgação dos resultados é geralmente

feita por consagradas formas verbais e escritos considerados próprios da linguagem

acadêmica. O uso da fotografia costuma ser aceito no mesmo sentido que os

desenhos dos antigos viajantes, como auxílio para blocos de notas. Achutti (2004)

problematiza este ponto com a sugestão de que, talvez, ao adquirir domínio sobre a

técnica fotográfica, o pesquisador possa contribuir mais e instaurar a fotografia para

além de um mero instrumento de trabalho. É este o caso desta pesquisa. Considero,

junto com Achutti (2004), que “quando a fotografia é utilizada como ferramenta de

pesquisa, ele [o domínio técnico] se torna fundamental quando empregado como

meio narrativo.” (p.95). Além disso, “as fotografias jamais devem ser utilizadas de

forma isolada, mas devem ser objeto de construções sob forma de sequências e de

associações de imagens, tendo por objetivo treinar o leitor a praticar outras

associações para nelas encontrar uma significação.” (p.95 e 96).

Achutti (2004) argumenta que, assim como para compor um bom texto é

preciso escrever com clareza e correção, com certo domínio técnico, da mesma

forma acontece com a fotografia. Além disso, para se ter um bom resultado com a

fotografia é preciso ir além, é importante saber fazer escolhas. O domínio técnico da

linguagem fotográfica implica escolher o equipamento fotográfico, o foco, as

objetivas, a velocidade do obturador, a abertura do diafrágma, o enquadramento, a

luz, a ampliação. Tudo isso é indispensável para a utilização adequada da

linguagem fotográfica. E o autor faz um destaque importante:

(…) quando se quer fotografar a vida em movimento, é preciso não apenas ter habilidade, mas também saber manter o espírito livre para poder se

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dedicar a todas as outras tarefas necessárias e, principalmente, a mais difícil e a mais importante de todas: saber olhar (ACHUTTI, 2004, p.97)

O fotógrafo pesquisador, então, não propõe alternativas nem desavenças

entre texto escrito e imagem; considera, porém, que mesmo o texto sendo

fundamental, ao associá-lo a diferentes linguagens é possível ter um ganho e elevar

a qualidade da pesquisa. A fotoetnografia é proposta a partir de um outro viés, que

pretende um olhar diferente, e mesmo quando o pesquisador escolhe trabalhar com

a linguagem fotográfica não deve, segundo Achutti (2004), negligenciar seu caderno

de campo ou deixar de anotar suas percepções e suas leituras do que é investigado.

Uma narrativa fotoetnográfica consiste na apresentação de uma série de fotos

relacionadas entre si, com a proposta de serem olhadas calmamente para que o

tempo desta apreciação proporcione uma leitura pessoal e subjetiva. O uso da

fotoetnografia como narrativa não pretende competir com outras formas narrativas,

mas ser valorizada de maneira singular. Achutti (2004) sugere que esta sequência

de informações visuais não contenha texto escrito intercalado com a imagem para

não desviar a atenção do leitor, para que cada estilo de escrita explore fortemente o

seu potencial. Como são textos diferentes, devem ser apresentados de modos

também diferentes e em seções separadas. Sendo assim, uma narrativa informa a

outra e elas informam o leitor. Nada de legendas abaixo das fotografias, nem textos

teóricos entre as imagens. Caso contrário, o resultado, segundo esse autor, será um

leitor cansado pelos seguidos apelos textuais que não permitem que ele se lance

verdadeiramente na sequência da narrativa visual. Isso, porém, não determina que

algumas escritas não possam aparecer. Seja anteriormente ou posteriormente à

narrativa fotoetnográfica, seja eventualmente em forma de poesia. Segundo ele, o

estilo de linguagem escrita mais próximo da fotografia é a poesia porque ambas

utilizam-se de formas simbólicas e metafóricas para expressar ideias sobre o

mundo. A respeito da fotografia e da poesia, Achutti (2004) sublinha ainda que

ambas dependem da sensibilidade e da “capacidade de lidar com as imagens

mentais que povoam a sua memória” (p.110), assim como ambas supõem uma

capacidade de leitura que exige uma motivação afetiva, pois é necessário gostar de

ler imagens e poesias.

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Explicando a metodologia fotoetnográfica, Achutti revela que o momento de

decidir apertar o disparador da câmera é uma das últimas escolhas, antecedida por

muitas outras decisões, como o equipamento fotográfico, a objetiva, a velocidade, o

diafragma, o foco, a cor ou o preto e branco, o enquadramento, entre outros. Em

suas palavras:

As fotografias são recortes arbitrários, traduções da realidade. Suas margens delimitam as escolhas feitas pelo fotógrafo para demarcar o tempo e o espaço; elas são o resultado de um só gesto, um gesto último e definitivo, aquele de apertar o disparador; é um ato intencional determinado pelo ponto de vista particular daquele que olha e adota uma certa posição frente à realidade. Uma fotografia é a materialização de um olhar, é o discurso de um olhar (ACHUTTI, 2004, p.110)

O fotoetnógrafo decide os enquadramentos ao longo do trabalho no campo,

sem esquecer que o objetivo principal é relatar visualmente, de forma interpretativa,

uma condição específica. A intenção é conseguir captar os momentos mais

relevantes e traduzi-los por meio de uma descrição visual.

(…) não apenas cada foto deverá bastar-se a si mesma, isto é, ter uma significação própria quando for “lida” individualmente, como deverá também fazer parte de uma sequência de fotos representando em seu conjunto a narração antropológica da singularidade de uma cultura determinada (ACHUTTI, 2004, p.113)

Mais uma questão importante na pesquisa fotoetnográfica, enfatizada por

Achutti (id.), é a iluminação, seja de um espaço, de uma cena, de um retrato. Assim

sendo, o flash2 deve ser evitado para não interferir nas condições próprias de

iluminação do ambiente, pois a luz também “fala”.

Além disso, o inventor da fotoetnografia lembra que o pesquisador que opta

por este tipo de trabalho investigativo deve retornar muitas vezes a campo, para

conhecer melhor as pessoas e o ambiente. Deve falar de si, do trabalho, enfim,

estabelecer um diálogo. Ao começar a fotografar, é importante perceber que existe

uma relação de certa igualdade entre o fotógrafo e as pessoas fotografadas. Nestas

circunstâncias, é crucial a postura ética. Uma série fotográfica deve, também, ser

2 Clarão elétrico momentâneo de grande luminosidade, usado em fotografia. s.m. (pal. ingl.). Fonte: Dicionário Online de Português disponível em <http://www.dicio.com.br/flash/>.

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composta sem pressa, produzindo-se as fotos aos poucos, nas frequentes idas a

campo. É também fundamental que, ao longo da pesquisa, o volume de trabalho

fotoetnográfico vá sendo selecionado, editado, copiado e não acumule. Poderá ser

concomitantemente compartilhado com o público pesquisado, estabelecendo uma

relação de respeito e confiança. Trata-se de uma troca em que alguns retornos

poderão ser muito interessantes para o pesquisador fotógrafo.

Em relação à composição final do trabalho, aos resultados da pesquisa,

Achutti (2004) esclarece:

Seguindo um processo de seleção permanente, o fotoetnógrafo deverá, portanto, proceder à organização dos dados e das fotos de forma a constituir um todo. À medida que sua pesquisa avança, ele vai substituir algumas delas, trocar outras de lugar, acrescentar novas, tendo como objetivo final a coerência de um conjunto de imagens. As fotos que não foram bem-sucedidas poderão ser substituídas por outras que serão tiradas durante a próxima visita em campo, não constituindo, portanto, um problema muito grave para a narração final (ACHUTTI, 2004, p.117)

Sumariando as recomendações de Achutti (2004) acerca da composição de

uma narrativa fotoetnográfica como resultado de pesquisa, saliento os seguintes

pontos: domínio da técnica fotográfica; consideração da fotografia para além de um

simples instrumento técnico de trabalho; preservação das condições usuais de

iluminação do ambiente; preservação de um ritmo sem atropelos; retorno frequente

ao campo para conhecer melhor as pessoas e o ambiente; familiaridade e

proximidade com o campo da pesquisa; adoção de um caderno de campo para

anotações sobre as singularidades, detalhes, curiosidades; opção por uma narrativa

composta de uma série de fotos relacionadas entre si, para serem olhadas

calmamente e proporcionar uma leitura pessoal e subjetiva; ausência de legendas

abaixo das fotografias, assim como de textos teóricos entre as imagens.

Fotolivro – a leitura de um livro predominantemente com imagens

Nunca estive na Amazônia, no Rio nem na Bahia, mas esses fotógrafos me levam até esses locais de um modo muito específico, transmitindo seu ponto de vista (mais amplo ou restrito, conforme o caso) sobre a história e a

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sociedade brasileiras. O fotolivro faz isso de um modo particular – complexo, intrigante e criativo.

Para mim, a verdadeira importância do fotolivro é essa. Menos do que escolher entre parede ou livro, se a fotografia é arte ou literatura – e por que não os dois? –, trata-se do lugar em que se acredita que a fotografia entoe sua canção mais plena e significativa. (BADGER, 2015, p.148)

O livro Fotoetnografia: um estudo de antropologia visual sobre o cotidiano,

lixo e trabalho de Achutti (1997), além de apontar as primeiras incursões do autor na

criação da disciplina da fotoetnografia, foi inspirador para minha dissertação de

mestrado por conta de seu formato, ao propor uma leitura que oferece dois

caminhos de leitura, uma escolha que basta virar o livro para ler com palavras de um

lado ou com imagens de outro. Também proponho este modelo de leitura em minha

dissertação de mestrado e, assim, me aproximo dos fotolivros, uma possível

perspectiva para apresentação de trabalhos fotoetnográficos.

O fotógrafo e curador inglês Gerry Badger, publicou entre os anos 2004 e

2014, juntamente com o fotógrafo britânico Martin Parr, os três volumes da coleção

Photobook: A History. Ao contar histórias de fotolivros, relacionou a fotografia com a

arte literária e a capacidade de refletir a visão de mundo do autor. Em 2015, Badger

publicou o artigo “Por que fotolivros são importantes”, na Revista Zum de Fotografia,

uma publicação do Instituto Moreira Salles, onde comentou:

Nos últimos anos, o fotolivro – um tipo particular de livro fotográfico, em que as imagens predominam sobre o texto e em que o trabalho conjunto do fotógrafo, do editor e do designer gráfico contribui para a construção de uma narrativa visual – vem recebendo uma atenção inaudita, seja com o lançamento de histórias e antologias, seja com o florescente mercado de colecionadores. (BADGER, 2015, p.134)

Recentemente o fotolivro passou a ser bastante prestigiado. Porém, ele existe

praticamente desde o início da fotografia, em 1839. Já em 1843, os célebres

fotógrafos Anna Atkins3 e William Henry Fox Talbot4 colavam fotos em álbuns e

livros.

3 Anna Atkins, botânica inglesa, foi precursora ao perceber o potencial da fotografia em trabalhos de documentação científica. Em 1843, utilizando o recém descoberto processo da cianotipia, publicou o primeiro livro de fotografias que se tem

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Segundo Badger (2015), um bom fotolivro precisa ter um tema e ser uma

narrativa fotográfica autoral. O fotógrafo não necessita manter um estilo visual único

ou uma assinatura, tão exigidos pelas galerias. O que deve ocorrer são as reflexões

do fotógrafo sobre suas próprias opiniões e sobre o mundo, auxiliando a desbravar

fronteiras. É também fundamental saber fotografar, pois boas fotografias são

precedentes para a realização de um fotolivro.

Se o fotógrafo escolher manter uma coerência visual, ele o faz

tranquilamente, afinal as galerias de arte seguem buscando estes formatos e

frequentemente é uma maneira de divulgar seu trabalho para ingressar nestes

espaços. Até mesmo ir para além das galerias tradicionais, chegando em países

distantes e lugares inimaginados, internacionalizando o fotolivro. O autor justifica:

Além desse seu internacionalismo, o fotolivro, assim como a internet, ensejou uma nova democracia das imagens fotográficas, um novo ecletismo, que pode ser verificado em muitos dos trabalhos atuais. Fotógrafos podem passear por gêneros diversos, se assim o desejarem, refletindo sobre o modo como diferentes tipos de fotografia nos informam – ora objetivamente, ora de modo expressivo, em cores ou em preto e branco. Contanto que o livro constitua uma declaração compreensível e integrada, vale tudo. (BADGER, 2015, p.144)

Atualmente é comum encontrar nas galerias de arte, nos espaços

antigamente ocupados somente pela pintura, fotografias de alto impacto, que partem

de algo restrito e posteriormente são superampliadas. Mas, para Badger, certas

formas de arte fotográfica são problemáticas, assim como um artista sem nada de

notável. O autor chega na seguinte questão:

Não seria a fotografia, em essência, uma arte literária, uma arte em que o fotógrafo não é propriamente um manipulador de formas no interior da moldura fotográfica, mas antes um narrador que se vale de imagens em vez de palavras, alguém que conta uma história? (BADGER, 2015, p.135)

conhecimento com esta técnica, intitulado Photographs of british algae: cyanotype impressions. Disponível em: <www.tipografos.net/fotografia/atkins.html>.

4 William Henry Fox Talbot iniciou suas pesquisas fotográficas obtendo cópias por contato de silhuetas de folhas, penas, rendas. Em 1884, Talbot publicou o primeiro livro ilustrado com fotografias feitas por meio da calotipia, intitulado The Pencil of Nature. Disponível em: <www.tipografos.net/fotografia/talbot.html>.

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Talvez a ideia de produzir fotos únicas, obras de arte fotográfica exclusivas,

se distancie de uma potente força do meio de expressão fotográfico. Pode ser que a

fotografia não seja arte do mesmo modo que a pintura – uma única imagem capaz

de atribuir o máximo que o artista é capaz de produzir naquele momento. E sim uma

arte diferente, em série, com uma sequência de imagens.

O fotolivro se tornou uma tendência a partir da década de 1950 e se

intensificou no século XXI, com a influência da tecnologia digital, na maneira como

as fotografias são disseminadas, como são vistas e o que elas dizem. O diretor do

Departamento de Fotografia do Museu de Arte Moderna de Nova York (MOMA),

John Szarkowski, conta Badger (2015), foi o primeiro a falar da personalização da

fotografia. Na apresentação de sua exposição Novos Documentos (1967),

Szarkowski observou que na última década, fotógrafos voltaram seu enfoque

documental para um olhar mais pessoal. Não com o objetivo de transformar a vida,

mas de conhecê-la. Obras que revelam defeitos e imperfeições da sociedade, pois

seria inútil tentar mudar o mundo por meio da fotografia, mas valeria à pena utilizá-la

para conhecê-lo.

Com as câmeras fotográficas digitais e as redes sociais, a personalização da

fotografia seguiu avançando. O próprio fotojornalismo foi atualizado, com repórteres

fotográficos em áreas de guerra, referindo-se a seus trabalhos como “meu diário de

viagem com as tropas”, ao invés do perfil do profissional isento e objetivo.

Após estudar algumas produções acadêmicas que circundam a metodologia

de pesquisa que adotei, observei arestas sobre o caminho teórico-metodológico da

fotoetnografia e principalmente a dificuldade dos pesquisadores em aplicar a

metodologia nos trabalhos que encontrei. Minha intenção é lançar um olhar atento, a

partir desta pesquisa, para a utilização de uma metodologia fotoetnográfica

sugerindo um direcionamento para estudos do campo da Educação, com ênfase nos

Estudos Culturais. Como uma possibilidade metodológica que requer prática

específica, seja tangível e passível de análises de seu uso no meio acadêmico.

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REFERÊNCIAS

ACHUTTI, Luiz Eduardo Robinson. Fotoetnografia da Biblioteca Jardim. Porto Alegre: Editora da UFRGS/Tomo Editorial, 2004.

ACHUTTI, Luiz Eduardo Robinson. Fotoetnografia: um estudo de antropologia visual, lixo e trabalho. Porto Alegre: Tomo Editorial; Palmarinca: 1997.

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ANDRADE, Rosane de. Fotografia e antropologia: olhares fora-dentro. São Paulo: Estação Liberdade; EDUC, 2002.

APRATO, Ana Paula Lima. Crianças & objetos: uma pesquisa de inspiração fotoetnográfica sobre infâncias do nosso tempo em escola do interior do interior do Rio Grande do Sul. 2017. Apresenta duas paginações, uma acessa as narrativas com palavras, 152 f., e outra as narrativas com imagens, CXXIX f. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Luterana do Brasil. Canoas. 2017.

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