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COMPONDO NARRATIVAS DE INSPIRAÇÃO FOTOETNOGRÁFICA
SOBRE CRIANÇAS & OBJETOS – UM MODO DE PESQUISAR A INFÂNCIA EM
ESCOLA DO INTERIOR DO RIO GRANDE DO SUL
Ana Paula Lima Aprato
Universidade Luterana do Brasil
Programa de Pós-graduação em Educação ULBRA
Este artigo deriva do recorte de um dos capítulos de minha dissertação de
mestrado, intitulada Crianças & objetos: uma pesquisa de inspiração fotoetnográfica
sobre infâncias do nosso tempo em escola do interior do Rio Grande do Sul. Ao
apresentar o caminho investigativo de meu estudo, destaco o conceito teórico-
metodológico da fotoetnografia, uma metodologia desenvolvida a partir de narrativas
com imagens. Apresento neste artigo como foi trilhado o caminho investigativo de
minha pesquisa; características específicas da fotografia na antropologia visual e na
etnografia; os principais conceitos teórico-metodológicos da narrativa fotoetnográfica
subsidiados por Achutti (1997 e 2004); assim como importantes estudos sobre
fotolivro, a leitura de um livro predominantemente com imagens, realizados por
Badger (2015).
Com o objetivo de evidenciar a fluidez da imagem à um saber “inacabado”,
um exercício de trabalho, um método de investigação que não contempla o fim, mas
o início de outra investigação, nesta pesquisa procuro mostrar uma das
possibilidades da metodologia fotoetnográfica, sem nenhuma pretensão de
encontrar verdades. Minha intenção é simplesmente tentar um outro modo de
mostrar e pensar sobre a infância de nossos dias, com fotografias que permitam
vislumbrar ideias, modos de existir e interpretações. Pois não somos iguais uns aos
outros, não vivemos todos no mesmo contexto e não experimentamos as coisas da
mesma forma.
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A opção por realizar a fotoetnografia na Escola Estadual Fortaleza, na cidade
de Rio Pardo1, foi pessoalmente relevante. A rua em que morei nesta localidade, no
bairro Fortaleza – entre 2015 e 2016, período em que desenvolvi a pesquisa na
escola – fica no caminho que muitos estudantes percorrem para chegar à escola. As
janelas de minha casa eram bastante próximas da calçada e costumava ouvir
diariamente as vozes e os sons das crianças da EEF. Meu interesse pela escola foi
imediato e, de certa forma, arrebatador.
Percorri este caminho de pesquisa inicialmente contando com a autorização
do diretor da EEF, assim como com o consentimento e autorização de uso de
imagem e de manifestações orais das famílias para fotografar as crianças.
Frequentei a escola em média duas vezes por semana, por cerca de um ano e meio,
onde convivi com alunos, pais e professores, e procurei me aproximar o mais
possível da vida na escola e das atividades das crianças que a frequentam.
Inicialmente, quando passei a vivenciar o ambiente escolar, os alunos
estavam eufóricos e curiosos sobre o equipamento fotográfico e as lentes que utilizo,
não interessando muito o que eu contava sobre o que fazia por lá. Queriam mesmo
ser fotografados e ver as fotos imediatamente na câmera. Percebi que mostrar as
fotografias seria uma espécie de acordo, de contrapartida estabelecida entre nós,
um retorno que instaurava certa igualdade entre as pessoas envolvidas na pesquisa.
Com esta maneira de conduzir o trabalho, algumas vezes fui pega de surpresa por
comentários sobre fotografias que não agradaram alguns alunos. Destaco
especialmente a insatisfação de uma menina quando se viu em uma das fotografias
e pediu para que eu retirasse aquela imagem da pesquisa, pois não havia gostado.
Depois de certos argumentos meus e dela, acatei a decisão da garota, seguindo um
1 Fonte: Em torno de 1633, jesuítas espanhóis que viviam onde hoje se situa o município de Rio Pardo foram expulsos por bandeirantes de Raposo Tavares, apoiados por índios Tupis. A colonização portuguesa teve início com o assentamento de casais açorianos um século depois. Por conta da resistência portuguesa às fronteiras estabelecidas pelo Tratado de Madrid, foi erguido, em 1752, o forte Jesus-Maria-José. Entre os séculos XVIII e XIX, Rio Pardo foi um dos núcleos mais importantes da Capitania do Rio Grande do Sul, como praça militar e tráfego comercial. Dali partiram expedições militares para defender zonas ameaçadas pelos espanhóis ou para expandir os domínios da Coroa portuguesa. Em 1715 o Capitão de Brito Peixoto batizou a cidade com o nome de Rio Pardo, devido a cor parda das águas do rio Jacuí que banha a cidade. Disponível no site <www.cidades.ibge.gov.br>.
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dos preceitos da fotoetnografia, que é justamente estabelecer condições para um
diálogo possível entre o pesquisador e as pessoas que participam da pesquisa.
Simultaneamente a esta aproximação com a escola e os trâmites para obter
consentimentos e autorizações para fotografar as crianças, submeti a pesquisa ao
Comitê de Ética da ULBRA, via Plataforma Brasil, sendo esta aprovada em um
processo que durou praticamente um ano.
Os registros de inspiração fotoetnográfica foram complementados por
anotações em um caderno de campo sobre as observações que fiz na escola e fora
dela e sobre falas das crianças do 1º, 2º e 3º anos do ensino fundamental. Além da
imersão na escola, me aproximei de outros espaços da cidade frequentados pelas
crianças, como pracinhas, parques, lojas, sorveterias.
Muitos autores me ajudaram a pensar sobre a narrativa com imagens
fotográficas como ferramenta para este estudo sobre objetos e infâncias do nosso
tempo. Para tentar captar e ressaltar, nos registros fotoetnográficos que produzi,
determinadas peculiaridades locais da cidade de Rio Pardo, como espaços que as
crianças frequentam, programações culturais de que participam, suas relações com
o mundo permeado pelo consumo, atulhado de objetos sedutores que impactam
suas vidas, cabe aqui mencionar a importante contribuição que encontrei
particularmente nas seguintes obras: Identity, de Catherine Balet (2006) e
Permanent Error, de Pieter Hugo (2011). Nos três tópicos a seguir, discorro sobre
obras, artigos e reflexões que fecundaram meu olhar neste percurso de pesquisa
inspirado na fotoetnografia.
A fotografia na antropologia visual e na etnografia
A antropologia, uma ciência social que objetiva o estudo de culturas e
sociedades, desde o final do século XIX utilizou técnicas fotográficas aplicadas ao
trabalho antropológico para ilustrar com imagens um texto escrito, para auxiliar
alguma detalhada coleta de dados, ou mesmo para aproximar o pesquisador do
povo e da cultura no campo de pesquisa.
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No campo da antropologia, a etnografia constitui uma metodologia de coleta
de dados que estuda de forma descritiva os grupos sociais, suas características
antropológicas, culturais e sociais. A etnografia é, ao mesmo tempo, método de
produção de dados e os próprios dados produzidos.
O fotógrafo e etnógrafo francês Pierre Verger, aos trinta anos de idade deixou
Paris, sua cidade natal, para se dedicar às pesquisas sobre culturas negras do Brasil
e da África. Desenvolveu um conjunto de saberes, análises e interpretações
inovadoras a partir de sua obra que aborda um olhar reflexivo sobre si mesmo e
sobre algumas culturas, onde experimentou três maneiras de aprendizado: imagem,
oralidade e escrita. As três constituíram fontes metodológicas para Verger e são
analisadas detalhadamente na obra de Jérôme Souty (2011), intitulada Pierre
Fatumbi Verger: do olhar livre ao conhecimento iniciático. Verger, que descobriu a
Bahia em 1946 e encantou-se pela literatura de Jorge Amado, valorizou o silêncio no
seu trabalho, o não dito, o mistério e a fotografia como prática despreendida e
inconsciente. Quando saía a campo, não desejava aplicar um método de
investigação e trazer informações com a intenção de compreender o que viu, o que
o interessava era o conhecimento de outras culturas e outras experiências. Com
encantamento pela religiosidade e arte baiana, não intencionava estudar aquelas
pessoas, preferia viver com elas. O fotógrafo não costumava definir o que procurava
pesquisar e nem de que maneira o faria, arriscava ser capturado pela consciência
desorganizada, pelo instante.
A obra Fotografia e antropologia: olhares fora-dentro de Rosane de Andrade
(2002), relaciona o processo de construção da imagem fotográfica com o de sua
interpretação e reporta ao trabalho de Pierre Verger, quando menciona o embate
entre ser fotógrafo e pesquisador, observador e participante como criador da
imagem fotográfica. A autora percebe na fotografia uma expressão autônoma e uma
forma de pensamento visual. Enfoca na linguagem marcada pela visualidade o
sentido de ver com olhos livres, propondo que não seja “preciso ser selvagem para
pensar selvagem. Necessita-se de um olhar único e singular, um processo solitário
na tentativa de redescobrir no outro e o outro em si mesmo” (p.29).
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Uma coletânea de ensaios que compõe o livro Entre arte e ciência: a
fotografia na antropologia, organizado por Sylvia Caiuby Novaes (2015), parte das
variadas alternativas em relação à fotografia e antropologia. Os artigos reunidos
relacionam informação, conhecimento e arte ao abordar combinações entre o
fotógrafo-pesquisador e as pessoas fotografadas. No ensaio “Fotografar: expor (e se
expor) – a utilização da fotografia no contexto da violência”, de Bárbara Copque
(2015) sobre tatuagens dos presos da penitenciária de Bangu II, a fotógrafa obteve a
confiança dos detidos após mostrar as imagens aos presos, que decidiram quais
cenas seriam usadas na pesquisa. Outro ensaio em que o pesquisador compartilha
e dialoga sobre as imagens fotográficas é “O rúgbi em cadeira de rodas: um breve
ensaio sobre a (des)construção da imagem da deficiência física”, de Joon Ho Kim
(2015). Com a intenção de romper com a idéia de cadeirante passivo, além de
fotografados, os jogadores participaram ativamente da construção fotográfica.
Novaes (2015) argumenta sobre o poder das imagens quando “tornam visível o que
não era, subvertem o senso comum, denunciam com sensibilidade única e, por isso
mesmo, agem” (p.15).
Narrativa fotoetnográfica – uma metodologia desenvolvida por Luiz Eduardo
Robinson Achutti
Para exercer a prática fotoetnográfica na escola Estadual Fortaleza, foi
principalmente nos trabalhos Fotoetnografia: um estudo de antropologia visual sobre
o cotidiano, lixo e trabalho (1997) e Fotografia da Biblioteca Jardim (2004) do
fotógrafo, doutor em antropologia e criador do conceito de fotoetnografia, Luiz
Eduardo Achutti, que encontrei inspiração e orientações metodológicas.
O criador da disciplina intitulada fotoetnografia, Luiz Eduardo Achutti (2004),
alinha-se às discussões que consideram a fotografia um gesto de criação e não de
mera reprodução e, segundo ele, no caso da fotoetnografia, o domínio da técnica
fotográfica coloca-se a serviço do olhar do pesquisador. Procura-se com ela
desenvolver um trabalho de pesquisa interpretativa, compondo imagens que
intentam mostrar a singularidade de um determinado grupo ou prática cultural. Para
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isso, é necessário que o fotoetnógrafo tenha um contato próximo com as pessoas
estudadas na pesquisa, de forma a conhecer suas peculiaridades, sendo importante
servir-se de diferentes recursos e técnicas. Em geral, nas etnografias utiliza-se
desde o tradicional bloco de anotações, como também os gravadores de som, as
câmeras fotográficas, cinematográficas e de vídeo. Contudo, apesar da adoção
desses diferentes meios técnicos, comenta o autor, a maioria dos trabalhos de
antropologia visual que utiliza fotografia não costuma explorar as possibilidades
oferecidas por uma narrativa fotográfica, e a divulgação dos resultados é geralmente
feita por consagradas formas verbais e escritos considerados próprios da linguagem
acadêmica. O uso da fotografia costuma ser aceito no mesmo sentido que os
desenhos dos antigos viajantes, como auxílio para blocos de notas. Achutti (2004)
problematiza este ponto com a sugestão de que, talvez, ao adquirir domínio sobre a
técnica fotográfica, o pesquisador possa contribuir mais e instaurar a fotografia para
além de um mero instrumento de trabalho. É este o caso desta pesquisa. Considero,
junto com Achutti (2004), que “quando a fotografia é utilizada como ferramenta de
pesquisa, ele [o domínio técnico] se torna fundamental quando empregado como
meio narrativo.” (p.95). Além disso, “as fotografias jamais devem ser utilizadas de
forma isolada, mas devem ser objeto de construções sob forma de sequências e de
associações de imagens, tendo por objetivo treinar o leitor a praticar outras
associações para nelas encontrar uma significação.” (p.95 e 96).
Achutti (2004) argumenta que, assim como para compor um bom texto é
preciso escrever com clareza e correção, com certo domínio técnico, da mesma
forma acontece com a fotografia. Além disso, para se ter um bom resultado com a
fotografia é preciso ir além, é importante saber fazer escolhas. O domínio técnico da
linguagem fotográfica implica escolher o equipamento fotográfico, o foco, as
objetivas, a velocidade do obturador, a abertura do diafrágma, o enquadramento, a
luz, a ampliação. Tudo isso é indispensável para a utilização adequada da
linguagem fotográfica. E o autor faz um destaque importante:
(…) quando se quer fotografar a vida em movimento, é preciso não apenas ter habilidade, mas também saber manter o espírito livre para poder se
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dedicar a todas as outras tarefas necessárias e, principalmente, a mais difícil e a mais importante de todas: saber olhar (ACHUTTI, 2004, p.97)
O fotógrafo pesquisador, então, não propõe alternativas nem desavenças
entre texto escrito e imagem; considera, porém, que mesmo o texto sendo
fundamental, ao associá-lo a diferentes linguagens é possível ter um ganho e elevar
a qualidade da pesquisa. A fotoetnografia é proposta a partir de um outro viés, que
pretende um olhar diferente, e mesmo quando o pesquisador escolhe trabalhar com
a linguagem fotográfica não deve, segundo Achutti (2004), negligenciar seu caderno
de campo ou deixar de anotar suas percepções e suas leituras do que é investigado.
Uma narrativa fotoetnográfica consiste na apresentação de uma série de fotos
relacionadas entre si, com a proposta de serem olhadas calmamente para que o
tempo desta apreciação proporcione uma leitura pessoal e subjetiva. O uso da
fotoetnografia como narrativa não pretende competir com outras formas narrativas,
mas ser valorizada de maneira singular. Achutti (2004) sugere que esta sequência
de informações visuais não contenha texto escrito intercalado com a imagem para
não desviar a atenção do leitor, para que cada estilo de escrita explore fortemente o
seu potencial. Como são textos diferentes, devem ser apresentados de modos
também diferentes e em seções separadas. Sendo assim, uma narrativa informa a
outra e elas informam o leitor. Nada de legendas abaixo das fotografias, nem textos
teóricos entre as imagens. Caso contrário, o resultado, segundo esse autor, será um
leitor cansado pelos seguidos apelos textuais que não permitem que ele se lance
verdadeiramente na sequência da narrativa visual. Isso, porém, não determina que
algumas escritas não possam aparecer. Seja anteriormente ou posteriormente à
narrativa fotoetnográfica, seja eventualmente em forma de poesia. Segundo ele, o
estilo de linguagem escrita mais próximo da fotografia é a poesia porque ambas
utilizam-se de formas simbólicas e metafóricas para expressar ideias sobre o
mundo. A respeito da fotografia e da poesia, Achutti (2004) sublinha ainda que
ambas dependem da sensibilidade e da “capacidade de lidar com as imagens
mentais que povoam a sua memória” (p.110), assim como ambas supõem uma
capacidade de leitura que exige uma motivação afetiva, pois é necessário gostar de
ler imagens e poesias.
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Explicando a metodologia fotoetnográfica, Achutti revela que o momento de
decidir apertar o disparador da câmera é uma das últimas escolhas, antecedida por
muitas outras decisões, como o equipamento fotográfico, a objetiva, a velocidade, o
diafragma, o foco, a cor ou o preto e branco, o enquadramento, entre outros. Em
suas palavras:
As fotografias são recortes arbitrários, traduções da realidade. Suas margens delimitam as escolhas feitas pelo fotógrafo para demarcar o tempo e o espaço; elas são o resultado de um só gesto, um gesto último e definitivo, aquele de apertar o disparador; é um ato intencional determinado pelo ponto de vista particular daquele que olha e adota uma certa posição frente à realidade. Uma fotografia é a materialização de um olhar, é o discurso de um olhar (ACHUTTI, 2004, p.110)
O fotoetnógrafo decide os enquadramentos ao longo do trabalho no campo,
sem esquecer que o objetivo principal é relatar visualmente, de forma interpretativa,
uma condição específica. A intenção é conseguir captar os momentos mais
relevantes e traduzi-los por meio de uma descrição visual.
(…) não apenas cada foto deverá bastar-se a si mesma, isto é, ter uma significação própria quando for “lida” individualmente, como deverá também fazer parte de uma sequência de fotos representando em seu conjunto a narração antropológica da singularidade de uma cultura determinada (ACHUTTI, 2004, p.113)
Mais uma questão importante na pesquisa fotoetnográfica, enfatizada por
Achutti (id.), é a iluminação, seja de um espaço, de uma cena, de um retrato. Assim
sendo, o flash2 deve ser evitado para não interferir nas condições próprias de
iluminação do ambiente, pois a luz também “fala”.
Além disso, o inventor da fotoetnografia lembra que o pesquisador que opta
por este tipo de trabalho investigativo deve retornar muitas vezes a campo, para
conhecer melhor as pessoas e o ambiente. Deve falar de si, do trabalho, enfim,
estabelecer um diálogo. Ao começar a fotografar, é importante perceber que existe
uma relação de certa igualdade entre o fotógrafo e as pessoas fotografadas. Nestas
circunstâncias, é crucial a postura ética. Uma série fotográfica deve, também, ser
2 Clarão elétrico momentâneo de grande luminosidade, usado em fotografia. s.m. (pal. ingl.). Fonte: Dicionário Online de Português disponível em <http://www.dicio.com.br/flash/>.
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composta sem pressa, produzindo-se as fotos aos poucos, nas frequentes idas a
campo. É também fundamental que, ao longo da pesquisa, o volume de trabalho
fotoetnográfico vá sendo selecionado, editado, copiado e não acumule. Poderá ser
concomitantemente compartilhado com o público pesquisado, estabelecendo uma
relação de respeito e confiança. Trata-se de uma troca em que alguns retornos
poderão ser muito interessantes para o pesquisador fotógrafo.
Em relação à composição final do trabalho, aos resultados da pesquisa,
Achutti (2004) esclarece:
Seguindo um processo de seleção permanente, o fotoetnógrafo deverá, portanto, proceder à organização dos dados e das fotos de forma a constituir um todo. À medida que sua pesquisa avança, ele vai substituir algumas delas, trocar outras de lugar, acrescentar novas, tendo como objetivo final a coerência de um conjunto de imagens. As fotos que não foram bem-sucedidas poderão ser substituídas por outras que serão tiradas durante a próxima visita em campo, não constituindo, portanto, um problema muito grave para a narração final (ACHUTTI, 2004, p.117)
Sumariando as recomendações de Achutti (2004) acerca da composição de
uma narrativa fotoetnográfica como resultado de pesquisa, saliento os seguintes
pontos: domínio da técnica fotográfica; consideração da fotografia para além de um
simples instrumento técnico de trabalho; preservação das condições usuais de
iluminação do ambiente; preservação de um ritmo sem atropelos; retorno frequente
ao campo para conhecer melhor as pessoas e o ambiente; familiaridade e
proximidade com o campo da pesquisa; adoção de um caderno de campo para
anotações sobre as singularidades, detalhes, curiosidades; opção por uma narrativa
composta de uma série de fotos relacionadas entre si, para serem olhadas
calmamente e proporcionar uma leitura pessoal e subjetiva; ausência de legendas
abaixo das fotografias, assim como de textos teóricos entre as imagens.
Fotolivro – a leitura de um livro predominantemente com imagens
Nunca estive na Amazônia, no Rio nem na Bahia, mas esses fotógrafos me levam até esses locais de um modo muito específico, transmitindo seu ponto de vista (mais amplo ou restrito, conforme o caso) sobre a história e a
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sociedade brasileiras. O fotolivro faz isso de um modo particular – complexo, intrigante e criativo.
Para mim, a verdadeira importância do fotolivro é essa. Menos do que escolher entre parede ou livro, se a fotografia é arte ou literatura – e por que não os dois? –, trata-se do lugar em que se acredita que a fotografia entoe sua canção mais plena e significativa. (BADGER, 2015, p.148)
O livro Fotoetnografia: um estudo de antropologia visual sobre o cotidiano,
lixo e trabalho de Achutti (1997), além de apontar as primeiras incursões do autor na
criação da disciplina da fotoetnografia, foi inspirador para minha dissertação de
mestrado por conta de seu formato, ao propor uma leitura que oferece dois
caminhos de leitura, uma escolha que basta virar o livro para ler com palavras de um
lado ou com imagens de outro. Também proponho este modelo de leitura em minha
dissertação de mestrado e, assim, me aproximo dos fotolivros, uma possível
perspectiva para apresentação de trabalhos fotoetnográficos.
O fotógrafo e curador inglês Gerry Badger, publicou entre os anos 2004 e
2014, juntamente com o fotógrafo britânico Martin Parr, os três volumes da coleção
Photobook: A History. Ao contar histórias de fotolivros, relacionou a fotografia com a
arte literária e a capacidade de refletir a visão de mundo do autor. Em 2015, Badger
publicou o artigo “Por que fotolivros são importantes”, na Revista Zum de Fotografia,
uma publicação do Instituto Moreira Salles, onde comentou:
Nos últimos anos, o fotolivro – um tipo particular de livro fotográfico, em que as imagens predominam sobre o texto e em que o trabalho conjunto do fotógrafo, do editor e do designer gráfico contribui para a construção de uma narrativa visual – vem recebendo uma atenção inaudita, seja com o lançamento de histórias e antologias, seja com o florescente mercado de colecionadores. (BADGER, 2015, p.134)
Recentemente o fotolivro passou a ser bastante prestigiado. Porém, ele existe
praticamente desde o início da fotografia, em 1839. Já em 1843, os célebres
fotógrafos Anna Atkins3 e William Henry Fox Talbot4 colavam fotos em álbuns e
livros.
3 Anna Atkins, botânica inglesa, foi precursora ao perceber o potencial da fotografia em trabalhos de documentação científica. Em 1843, utilizando o recém descoberto processo da cianotipia, publicou o primeiro livro de fotografias que se tem
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Segundo Badger (2015), um bom fotolivro precisa ter um tema e ser uma
narrativa fotográfica autoral. O fotógrafo não necessita manter um estilo visual único
ou uma assinatura, tão exigidos pelas galerias. O que deve ocorrer são as reflexões
do fotógrafo sobre suas próprias opiniões e sobre o mundo, auxiliando a desbravar
fronteiras. É também fundamental saber fotografar, pois boas fotografias são
precedentes para a realização de um fotolivro.
Se o fotógrafo escolher manter uma coerência visual, ele o faz
tranquilamente, afinal as galerias de arte seguem buscando estes formatos e
frequentemente é uma maneira de divulgar seu trabalho para ingressar nestes
espaços. Até mesmo ir para além das galerias tradicionais, chegando em países
distantes e lugares inimaginados, internacionalizando o fotolivro. O autor justifica:
Além desse seu internacionalismo, o fotolivro, assim como a internet, ensejou uma nova democracia das imagens fotográficas, um novo ecletismo, que pode ser verificado em muitos dos trabalhos atuais. Fotógrafos podem passear por gêneros diversos, se assim o desejarem, refletindo sobre o modo como diferentes tipos de fotografia nos informam – ora objetivamente, ora de modo expressivo, em cores ou em preto e branco. Contanto que o livro constitua uma declaração compreensível e integrada, vale tudo. (BADGER, 2015, p.144)
Atualmente é comum encontrar nas galerias de arte, nos espaços
antigamente ocupados somente pela pintura, fotografias de alto impacto, que partem
de algo restrito e posteriormente são superampliadas. Mas, para Badger, certas
formas de arte fotográfica são problemáticas, assim como um artista sem nada de
notável. O autor chega na seguinte questão:
Não seria a fotografia, em essência, uma arte literária, uma arte em que o fotógrafo não é propriamente um manipulador de formas no interior da moldura fotográfica, mas antes um narrador que se vale de imagens em vez de palavras, alguém que conta uma história? (BADGER, 2015, p.135)
conhecimento com esta técnica, intitulado Photographs of british algae: cyanotype impressions. Disponível em: <www.tipografos.net/fotografia/atkins.html>.
4 William Henry Fox Talbot iniciou suas pesquisas fotográficas obtendo cópias por contato de silhuetas de folhas, penas, rendas. Em 1884, Talbot publicou o primeiro livro ilustrado com fotografias feitas por meio da calotipia, intitulado The Pencil of Nature. Disponível em: <www.tipografos.net/fotografia/talbot.html>.
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Talvez a ideia de produzir fotos únicas, obras de arte fotográfica exclusivas,
se distancie de uma potente força do meio de expressão fotográfico. Pode ser que a
fotografia não seja arte do mesmo modo que a pintura – uma única imagem capaz
de atribuir o máximo que o artista é capaz de produzir naquele momento. E sim uma
arte diferente, em série, com uma sequência de imagens.
O fotolivro se tornou uma tendência a partir da década de 1950 e se
intensificou no século XXI, com a influência da tecnologia digital, na maneira como
as fotografias são disseminadas, como são vistas e o que elas dizem. O diretor do
Departamento de Fotografia do Museu de Arte Moderna de Nova York (MOMA),
John Szarkowski, conta Badger (2015), foi o primeiro a falar da personalização da
fotografia. Na apresentação de sua exposição Novos Documentos (1967),
Szarkowski observou que na última década, fotógrafos voltaram seu enfoque
documental para um olhar mais pessoal. Não com o objetivo de transformar a vida,
mas de conhecê-la. Obras que revelam defeitos e imperfeições da sociedade, pois
seria inútil tentar mudar o mundo por meio da fotografia, mas valeria à pena utilizá-la
para conhecê-lo.
Com as câmeras fotográficas digitais e as redes sociais, a personalização da
fotografia seguiu avançando. O próprio fotojornalismo foi atualizado, com repórteres
fotográficos em áreas de guerra, referindo-se a seus trabalhos como “meu diário de
viagem com as tropas”, ao invés do perfil do profissional isento e objetivo.
Após estudar algumas produções acadêmicas que circundam a metodologia
de pesquisa que adotei, observei arestas sobre o caminho teórico-metodológico da
fotoetnografia e principalmente a dificuldade dos pesquisadores em aplicar a
metodologia nos trabalhos que encontrei. Minha intenção é lançar um olhar atento, a
partir desta pesquisa, para a utilização de uma metodologia fotoetnográfica
sugerindo um direcionamento para estudos do campo da Educação, com ênfase nos
Estudos Culturais. Como uma possibilidade metodológica que requer prática
específica, seja tangível e passível de análises de seu uso no meio acadêmico.
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REFERÊNCIAS
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ACHUTTI, Luiz Eduardo Robinson. Fotoetnografia: um estudo de antropologia visual, lixo e trabalho. Porto Alegre: Tomo Editorial; Palmarinca: 1997.
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ANDRADE, Rosane de. Fotografia e antropologia: olhares fora-dentro. São Paulo: Estação Liberdade; EDUC, 2002.
APRATO, Ana Paula Lima. Crianças & objetos: uma pesquisa de inspiração fotoetnográfica sobre infâncias do nosso tempo em escola do interior do interior do Rio Grande do Sul. 2017. Apresenta duas paginações, uma acessa as narrativas com palavras, 152 f., e outra as narrativas com imagens, CXXIX f. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Luterana do Brasil. Canoas. 2017.
BADGER, Gerry. Por que fotolivros são importantes. Zum Revista de Fotografia. São Paulo, número 8, p.132-155, 2015.
BALET, Catherine. Identity. Dress codes in European Schools (London-Paris-Berlin-Barcelona-Milan. January 2004 – April 2006). Gottingen: Steidl, 2006.
BONI, Paulo César; MORESCHI, Bruna Maria. Fotoetnografia: a importância da fotografia para o resgate etnográfico. Doc On-line, n.03, p.137-157, dezembro de 2007, www.doc.ubi.pt.
COPQUE, Bárbara. Fotografar: expor (e se expor) – a utilização da fotografia no contexto da violência. In: NOVAES, Sylvia Caiuby (Org.). Entre Arte e Ciência: A fotografia na Antropologia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2015.
HO KIM, Joon. O rúgbi em cadeira de rodas: um breve ensaio sobre a (des)construção da imagem da deficiência física. In: NOVAES, Sylvia Caiuby (Org.). Entre Arte e Ciência: A fotografia na Antropologia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2015.
HUGO, Pieter. Permanent Error. Estados Unidos da América: Prestel, 2011.
NOVAES, Sylvia Caiuby (Org.). Entre Arte e Ciência: A fotografia na Antropologia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2015.
PARR, Martin; BADGER, Guerry. The Photobook: A History. 3 vols. Phaidon Press, 2004 – 2014.
RECUERO, Carlos Leonardo. Fotoetnografia da Ilha dos Marinheiros. XI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sul. Novo Hamburgo – RS– maio de 2010. Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2006/resumos/r1160-1.pdf>. Projeto Ilha dos Marinheiros disponível em: <www.projetoilhadosmarinheiros.wordpress.com>.
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TRINDADE, Eneus; LINARES, Nicolás Llano; BRAHIM, Victor Farah. El consumo alimentario que marca el centro de São Paulo: una experiência fotoetnográfica del
15
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TROIS, Loide Pereira. O privilégio de estar com as crianças: o currículo das infâncias. 2012. 183f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 2012.