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ESPAOS E EXPRESSES DE CONFLITO E TENSO ENTRE AUTCTONES, MINORIAS MIGRANTES E NO MIGRANTES NA REA METROPOLITANA DE LISBOA

JORGE MACASTA MALHEIROS (Coord.) MANUELA MENDES (Coord.) CARLOS ELIAS BARBOSA SANDRA BRITO SILVA ALINE SCHILTZ FRANCISCO VALA

Biblioteca Nacional - Catalogao na Publicao

MALHEIROS, Jorge Macasta e outros Espaos e Expresses de Conflito e Tenso entre Autctones, Minorias Migrantes e No Migrantes na rea Metropolitana de Lisboa (Observatrio da imigrao; 22) I Mendes, Manuela ISBN 978-989-8000-29-3 CDU 316 323

PROMOTOR

OBSERVATRIO DA IMIGRAOwww.oi.acime.gov.pt COORDENADOR

PROF. ROBERTO CARNEIRO [email protected]

JORGE MACASTA MALHEIROS (Coord.) MANUELA MENDES (Coord.) CARLOS ELIAS BARBOSA SANDRA BRITO SILVA ALINE SCHILTZ FRANCISCO VALAEDIO

ALTO-COMISSARIADO PARA A IMIGRAO E MINORIAS TNICAS (ACIME)R. LVARO COUTINHO, 14, 1150-025 LISBOA TELEFONE: (0351) 218106100 FAX: (00351) 218106117 E-MAIL: [email protected] EXECUO GRFICA

GRFICA DE COIMBRAPRIMEIRA EDIO

1500 EXEMPLARESISBN

978-989-8000-29-3DEPSITO LEGAL

257239/07 LISBOA, MARO 2007

NDICE GERALNOTA DE ABERTURA NOTA DO COORDENADOR

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ESPAOS E EXPRESSES DE CONFLITO E TENSO ENTRE AUTCTONES, MINORIAS MIGRANTES E NO MIGRANTES NA REA METROPOLITANA DE LISBOACAP. 1. ENQUADRAMENTO METODOLGICO, PROBLEMATIZAO E ROTEIRO DE INVESTIGAO1.1 Perspectivas tericas sobre o conflito e a sua construo 1.1.1 Conflito, desvio, violncia e criminalidade 1.1.2 Conflitos de base tnica jovens, gangs e racismo 1.1.3 A expresso espacial dos conflitos bairros e guetos 1.2 Problematizao, modelo analtico e roteiro metodolgico

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CAP. 2. LUGARES DE PRIVAO, LUGARES DE CONFLITO: SEGREGAO ESPACIAL, GUETOS E DELINQUNCIA2.1 O quadro de partida: nveis de privao nas freguesias da AML e espaos residenciais das minorias tnicas 2.2 Situao social e segregao scio-espacial dos imigrantes na AML avaliar a existncia de guetos 2.3 Conflitos e controlo dos espaos: registos policiais, criminalidade violenta e delinquncia de jovens 92 72 62 61

CAP. 3. A CONSTRUO DOS ESPAOS DE CONFLITO: PERSPECTIVAS E IMAGENS3.1. Etnicidade e espaos de conflito I: imagem dos actores institucionais

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3.2. Etnicidade e espaos de conflito II: o olhar dos representantes dos grupos imigrantes e das minorias tnicas 3.3. Etnicidade e espaos de conflito III: do conflito criminalidade as perspectivas dos reclusos estrangeiros e do grupo cigano (minoria nacional) 3.3.1 Os estrangeiros em situao de recluso no espao da AML, em 2003 3.3.2 Breve leitura da situao prisional dos detidos ciganos: os nmeros em 1998 3.3.3 Percepes de discriminao por parte dos imigrantes de Leste e ciganos face aos sistemas judicial e prisional 3.3.4 Tipo de crime e razes da deteno 3.3.5 Discriminao por parte das foras policiais na ptica dos grupos entrevistados 3.3.6 Breve sntese 3.4. Etnicidade e espaos de conflito IV uma aproximao imagem construda pela imprensa 172 142 158 165 169 133 135 141 119

CAP. 4. CASOS DE ESTUDO: ESPAOS DE CONFLITO CONVERGENTES E DIVERGENTES4.1. O bairro do Alto da Cova da Moura 4.1.1. Introduo 4.1.2. Caracterizao do bairro 4.1.3. Conflitualidade e tenses scio-tnicas 4.1.4 Criminalidade, delinquncia e condutas de risco 4.1.5. Concluso: alguns pontos de reflexo 4.2. O Bairro da Quinta da Fonte (Apelao) 4.2.1. Caracterizao geral do Bairro 4.2.2. Bairro e contexto envolvente identificao dos principais problemas 4.2.3. Identificao das principais causas 4.2.4 Ideias e aces para a preveno e resoluo dos conflitos no bairro Quinta da Fonte 4.2.5. Principais constrangimentos 4.3 Cova da Moura e Quinta da Fonte: sntese comparativa

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CAP. 5. CONCLUSES E SUGESTES DE INTERVENO

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ANEXOSANEXO 1: LISTAGEM DAS ENTREVISTAS EXPLORATRIAS AOS AGENTES SCIO-INSTITUCIONAIS ANEXO 2: GUIO DE ENTREVISTA EXPLORATRIA AOS ACTORES SCIO-INSTITUCIONAIS COM INTERVENO JUNTO DOS IMIGRANTES E CIGANOS ANEXO 3: LISTA DAS ENTREVISTAS AOS AGENTES SCIO-INSTITUCIONAIS E SESSES DE FOCUS GROUP NOS DOIS BAIRROS EM ESTUDO ANEXO 4: GUIO DE ENTREVISTA AOS ACTORES SCIO-INSTITUCIONAIS COM INTERVENO JUNTO DOS IMIGRANTES E CIGANOS NOS BAIRROS SELECCIONADOS COMO CASOS DE ESTUDO ANEXO 5: GUIO DE APOIO DO FOCUS GROUP

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REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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NDICE DE QUADROSQuadro 01 Indicadores seleccionados para clculo do ndice de privao das freguesias Quadro 02 Lista das 25 freguesias com posies mais desfavorveis no ndice de Privao Quadro 03 Lista das 25 freguesias com posies mais favorveis no ndice de Privao Quadro 04 Coeficientes de correlao de Spearman entre a ordenao das 25 melhores e piores freguesias segundo o ndice de privao e a ordenao da percentagem de imigrantesdos diversos grupos Quadro 05 Percentagem de estrangeiros em Portugal e na rea Metropolitana de Lisboa (1991, 2001) Quadro 06 Distribuio da populao por grupos socioprofissionais na AML em 1991 Quadro 07 Distribuio da populao por grupos socioprofissionais na AML, em 2001 Quadro 08 ndices de segregao dos principais grupos tnico-nacionais residentes na AML (freguesias 1991 e 2001) Quadro 09 Elementos sobre as condies de alojamento dos estrangeiros na AML 1991 Quadro 10 Elementos sobre as condies de alojamento dos estrangeiros na AML 2001 Quadro 11 Populao residente por tipo de reas Quadro 12a Menores em Juzo, segundo a nacionalidade, por situao que provocou a actuao do tribunal (1997-2000) Quadro 12b Menores em Juzo, segundo a nacionalidade, por situao que provocou a actuao do tribunal (1997-2000) (%) Quadro 13 Menores agentes de acto qualificado como crime (2001, 2002 e 2003) Quadro 14 Reclusos estrangeiros com residncia nos concelhos da AML, por nacionalidade, em 2003 Quadro 15 Sntese do perfil social dos reclusos imigrantes de Leste, tipo de crime e tempo de recluso e de pena Quadro 16 Sntese do perfil social dos reclusos ciganos, tipo de crime e tempo de recluso e de pena Quadro 16 Peas jornalsticas analisadas segundo os anos Quadro 17 Peas jornalsticas analisadas segundo os meses Quadro 18 Nmero mdio de indivduos envolvidos nos eventos noticiados Quadro 19 Sexo dos indivduos envolvidos nos eventos noticiados Quadro 20 Categorizao etria dos envolvidos nos eventos noticiados pelos jornais Quadro 21 Instituies envolvidas nos eventos noticiados 159 162 174 175 176 177 178 178 97 97 136 96 78 80 81 89 72 73 76 77 64 69 70

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Quadro 22 Hora de ocorrncia dos eventos noticiados Quadro 23 Concelhos em que ocorreram os eventos noticiados Quadro 24 Municpio de ocorrncia dos crimes registados pelos jornais e dos crimes denunciados s autoridades nos concelhos da AML-Norte 1998-2003 Quadro 25 Cenrios concretos em que decorreram os eventos noticiados Quadro 26 Tipo de conflito mais frequente nos eventos noticiados Quadro 27 Pertenas tnicas e/ou nacionais dos indivduos envolvidos nos eventos noticiados Quadro 28 Indicadores Demogrficos da Freguesia da Apelao Quadro 29 Composio etria do Bairro da Quinta da Fonte Quadro 30 Principais profisses por titular de alojamento na Qta. da Fonte

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Cova da Moura e Quinta da Fonte (Apelao) Sntese comparativa das principais dimenses analticas (gerais e especficas, no domnio dos conflitos) 246

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NDICE DE FIGURASFigura 01 Modelo de anlise Figura 02 ndice de Privao na rea Metropolitana de Lisboa, por freguesia, 2001 Figura 03 Clusters territoriais de privao: uma leitura polarizada no contexto da AML (2001) Figura 04 Concentrao de populao da Unio Europeia (15) na AML, por seco estatstica, em 2001 Figura 05 reas de Concentrao de populao dos PALOP na AML, por seco estatstica, em 2001 Figura 06 reas de concentrao de populao do Brasil na AML, por seco estatstica, em 2001 Figura 07 reas de concentrao de populao da Europa de Leste na AML, por seco estatstica, em 2001 Figura 08 Distribuio da criminalidade violenta na AML Norte (2003 e 2004) Figura 09 Menores em Juzo (Valores Relativos) 80-00 Figura 09 Clusters territoriais de privao e locais problemticos referenciados pelos agentes de regulao da delinquncia Figura 10 Clusters territoriais de privao e locais problema referenciados pelos representantes dos grupos tnicos Figura 11 Clusters territoriais de privao e locais de conflito/criminalidade referenciados em Jornais (Pblico e Correio da Manh) Figura 12 Bairro do Alto da Cova da Moura (mapa-sntese simplificado) Figura 13 Variao relativa da populao 1991-2001 181 192 215 131 105 86 93 95 84 84 86 50 66 67

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Me fora, em que avenida Olhos que a perseguem pagam, comem Pai dentro, lambendo a ferida Com que o desemprego marca um homem E o irmo na caserna Puxando s armas brilhos E Alice no caf Habitante do Pas dos Matraquilhos Na classe dos repetentes Hoje vai haver mais uma falta Alice cerra os dentes Vendo a bola que no ar ressalta Quer l saber do exame Quer l saber da escola Aguenta no arame Matraquilho nunca cai ao ir bola H tambm Leonor Libertada da priso h meses Dizem que por amor Que olha tanto por Alice s vezes () () Quando se cai na lama Ningum pra pra nos levantar Por Alice, o pai reclama Tua me no veio pra jantar E os insultos noite fora Desvia-os em chorrilhos Alice nunca chora Adormece no Pas dos Matraquilhos ()Alice no Pas dos Matraquilhos (excertos) SRGIO GODINHO

() Entra ento no caf Um rapaz de capacete em punho Fica-se ali de p Escreve num papel um gatafunho () () E tu ainda s o rei Ser que vieste em meu auxlio A bem dizer, j no sei H tantos anos que ando no exlio Vamos a um desafio Atira tu primeiro A vida est por um fio Para quem deste bairro prisioneiro () E nunca mais ningum soube A no ser a Leonor, da Alice Aqui vai, Leonor A foto dos meus dois filhos Se reparares melhor Tm pinta assim, sei l De matraquilhos

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NOTA DE ABERTURAA publicao do presente Estudo, no quadro do protocolo estabelecido entre o Observatrio da Imigrao do ACIME e a Fundao para a Cincia e Tecnologia, reveste-se de um particular significado. A temtica do conflito e das suas expresses, associada sobrerrepresentao de comunidades migrantes num dado espao, recorrente e representa uma das maiores fontes de mal-entendidos, bem como de afirmao de tenses e medos. Quase sempre a xenofobia nasce a partir deste contexto. Torna-se, por isso, necessrio enfrentar corajosamente este tema e, sem subterfgios, nem manipulaes, entender os seus contornos e procurar a verdade. Para olhar mais longe e mais fundo, fundamental este trabalho do Prof. Jorge Malheiros e da sua equipa que, com a habitual competncia e seriedade que lhes reconhecida, nos oferecem uma leitura rica e abrangente desta problemtica. Do muito que dito, sublinho como concluso a clara associao da tenso excluso, do conflito marginalizao e da revolta falta de esperana. Com efeito, evidente que a excluso social a fonte de todos os males e que atinge com particular violncia muitos imigrantes. Um dos impactos mais dramticos e que mais nos preocupa d-se sobre as suas crianas e jovens, atendendo particular vulnerabilidade social e econmica das famlias onde nascem. Fruto da pobreza e de uma vida particularmente difcil, estas famlias lutam em condies profundamente adversas (entre emprego precrio, salrio baixo e incerto e horrio de trabalho alargado) por um futuro que muitas vezes lhes foge, apesar desse sacrifcio. A pobreza gera, assim, excluso social e esta pode atingir nveis trgicos de profunda ofensa dignidade humana. Por exemplo, o simples facto de os pais comearem a trabalhar muito cedo e no existir nos seus bairros de residncia suficiente rede de apoio pr-escolar, faz com que muitas destas crianas fiquem sozinhas, fechadas na rua, desde idades muito pequenas. Este facto s pode ter um resultado devastador. Um outro nvel a ter em considerao a sensibilidade extraordinria destas famlias s crises sociais e econmicas. So elas que esto na primeira linha dos que so atingidosEspaos e Expresses de Conflito e Tenso entre Autctones, Minorias Migrantes e No Migrantes na rea Metropolitana de Lisboa

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pelo desemprego ou pelos salrios em atraso quando chegam os tempos difceis. As alternativas rareiam e as consequncias so muito funestas: destabilizao familiar, incentivo ao abandono escolar, comportamentos desviantes,.. Por outro lado, os espaos residenciais ao alcance destas famlias so os mais desqualificados, com habitaes precrias, espaos verdes e de lazer inexistente, equipamentos sociais incipientes, maus acessos e transportes deficientes. Muitas vezes guetizados, estes espaos sub-urbanos constituem uma paisagem nascena que marca o destino. Com o inestimvel contributo do Prof. Jorge Malheiros e o apoio da Fundao para a Cincia e Tecnologia, este estudo pode representar uma pea essencial para que, conhecendo melhor a realidade, possamos centrar a nossa interveno na verdadeira causa a excluso social de muitos dos comportamentos desviantes na rea Metropolitana de Lisboa. Talvez assim no nos deixemos levar pela simplista e enganosa atribuio desses fenmenos a qualquer origem tnica ou nacional de alguns dos seus eventuais protagonistas.

RUI MARQUESALTO COMISSRIO PARA A IMIGRAO E MINORIAS TNICAS

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NOTA DO COORDENADORA cidade moderna, congestionada e apressada, usualmente encarada como arena propcia ao deflagar de conflitualidades e incivilidade de comportamentos. So alegadamente escassos os recursos urbanos susceptveis de controlar as bipolaridades fracturantes do tecido comunitrio: rico-pobre, centro-periferia, autctone-imigrante, idoso-jovem, maioria-minoria, ... Dito de outro modo, na grande urbe parecem escassear os elementos mediadores capazes de superar as tenses e de resolver os confrontos que uma desumanizao crescente das relaes de troca entre citadinos no cessa de produzir. O estudo que ora se publica, financiado ao abrigo do pioneiro protocolo de colaborao que uniu esforos do Alto Comissariado para a Imigrao e Minorias tnicas e a Fundao para a Cincia e a Tecnologia, centra-se na questo relativa possvel existncia de conflitos de base tnica na rea Metropolitana de Lisboa. A investigao, extensa e minuciosa, que objecto desta publicao conduz a resultados extremamente interessantes de que importa reter algumas das suas ideias mais salientes. Em tributo ao rigor e clareza passaremos a citar brevemente segmentos significativos das concluses fundamentais do estudo. Desde logo, pergunta sobre a existncia de conflitualidades de base tnica os resultados do trabalho desenvolvido apontam para uma resposta de teor essencialmente negativo. Com efeito, enquanto as dimenses classe, gnero e idade surgem como fundamentais para a compreenso do fenmeno da conflitualidade urbana em Lisboa, j a questo tnica emerge como um elemento supletivo relativamente a essas variveis. Importa sublinhar que os dfices no processo de sociabilizao dos jovens se distinguem como um factor fundamental para compreender as trajectrias desviantes. Por um lado, a famlia no desempenha a sua responsabilidade de fonte de sociabilizao primria. PorEspaos e Expresses de Conflito e Tenso entre Autctones, Minorias Migrantes e No Migrantes na rea Metropolitana de Lisboa

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outro lado, a escola, com destaque para o sistema pblico, que deveria funcionar como uma instituio capaz de contribuir para corrigir as desigualdades sociais, acaba por desempenhar mal (ou no desempenhar de todo) este papel. Por isso, de alguma forma, a rua e o grupo da rua acabam por substituir (e no complementar) as instncias de sociabilizao em crise. Este dfice nos processos de sociabilizao no pode ser dissociado da situao de carncia econmica e de privao social em que se encontram estes jovens. Em suma, tende a ocorrer um processo de etnicizao da pobreza, no apenas porque as populaes africanas esto sobre-representadas nos bairros degradados da periferia da AML, e entre os grupos mais pobres da sociedade portuguesa, mas tambm porque, nestes casos, as limitaes aos processos de ascenso social conjugam dfices de capital social, humano e econmico (elementos centrais) com prticas discriminatrias e racistas. Para alm das duas grandes questes mencionadas (dfices de sociabilizao e situao de privao), a produo de estigmas e a construo de representaes sobre bairros e grupos emerge como outro aspecto relevante no processo de desenvolvimento de prticas desviantes e de conflitos. Embora a dimenso tnica no assuma um carcter central evidente o seu cruzamento com todas as demais. Uma vez que a estigmatizao negativa recai mais fortemente sobre determinados grupos tnicos, parece ocorrer uma etnicizao da pobreza e os dfices de sociabilizao so acentuados pelas distncias culturais que dificultam o dilogo escolar e a assuno de uma condio de dupla pertena ou de plena integrao dos jovens na sociedade de destino dos pais. Contudo, embora se possa considerar a existncia de um elemento tnico nos conflitos, no podemos considerar tratar-se de conflitos tnicos, uma vez que outros nveis de identidade (e.g. de classe, de gnero, territorial ao nvel do bairro) parecem sobrepor-se, quer enquanto factores de coeso do grupo de pares, quer enquanto elo de oposio face ou outro. Quanto existncia ou no de gangs nos bairros da AML conclui-se que os jovens dos bairros no aparecem organizados em gangs, no sentido mais estrito e violento do termo.(16)Espaos e Expresses de Conflito e Tenso entre Autctones, Minorias Migrantes e No Migrantes na rea Metropolitana de Lisboa

Existem alguns street gangs ou, mais correctamente, soft gangs que renem grupos minoritrios de jovens de determinados bairros degradados das periferias. Procurou ainda demonstrar-se que no existem guetos tnicos na rea Metropolitana de Lisboa. Com efeito, parece mais correcto falar de bairros tnicos do que de guetos, sendo possvel aplicar o termo guetos dos pobres ou, mais correctamente, guetos de excluso a alguns dos bairros social e urbanisticamente degradados da AML. Face s problemticas detectadas e aos contornos que estas assumem, o estudo avana ainda com um conjunto valioso de sugestes de polticas pblicas segundo cinco vertentes de possvel actuao: A No domnio espao-residencial B No domnio jurdico C No domnio do acompanhamento, interveno social e educao D No domnio da segurana E No domnio do combate estigmatizao e reconstruo das imagens. equipa de investigao, superiormente dirigida pelo Prof. Jorge Malheiros, ficamos todos devedores: pela qualidade posta no estudo, pelo empenho colocado na sua realizao, pela inovao metodolgica introduzida no seu desenvolvimento, pela clareza na elaborao do texto final, pela coragem nas propostas de actuao. Mas, acima de tudo, ficam os responsveis polticos nas diversas esferas e nveis de interveno (central, regional, local, autrquica, sectorial) munidos de melhores instrumentos de anlise e de actuao a favor da construo de uma verdadeira, desejvel e duradoura cultura de paz na complexa rea Metropolitana de Lisboa.

ROBERTO CARNEIROCOORDENADOR DO OBSERVATRIO DA IMIGRAO DO ACIME

Lisboa, 17 de Fevereiro de 2007Espaos e Expresses de Conflito e Tenso entre Autctones, Minorias Migrantes e No Migrantes na rea Metropolitana de Lisboa

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CAPTULO 1. ENQUADRAMENTO METODOLGICO, PROBLEMATIZAO E ROTEIRO DE INVESTIGAO1A associao de imigrantes ou de estrangeiros, com destaque para alguns grupos em particular, sobreconflitualidade e violncia um fenmeno antigo. Efectivamente, a histria aparece repleta de relatos que apontam os estrangeiros como responsveis por tragdias e eventos violentos que ocorreram em diversas cidades. Como refere o escritor Amin Maalouf, em Samarcanda (1988: 32-33), algures no ano de 1072, atravs das justificaes do Cdi local para a violncia contra os visitantes: A resposta irei eu dar-ta, ela resume-se numa palavra: o medo. Toda a violncia, aqui, filha do medo. A nossa f acha-se assaltada por todos os lados.... A interpretao deste termo (o medo) deve ser efectuada de um modo lato, assim como a ideia da ameaa/diferena da f pressupe um quadro de distines culturais mais abrangentes, que remetem para prticas distintas em diversas esferas (as normas sociais, as atitudes quotidianas...) e, sobretudo, para a ideia de etnicidade, que assenta nos elementos culturais especficos do grupo mas que incorpora uma componente relativa aos traos fenotpicos dos membros daquele, sobretudo quando traduzem visibilidade e diferenciao face maioria. Efectivamente, responsabilizar o outro por crises ou situaes de conflito, no s traduz o receio face a uma pretensa ameaa exterior que coloca em causa a ordem social e cultural que conhecemos, como 1 Os autores do estudo liberta o grupo autctone de eventuais responsabilidades na agradecem a colaborao emergncia e no desenvolvimento dos processos negativos. Neste cientfica de Isabel Andr (CEG Universidade de quadro, fcil transformar o estrangeiro (e os seus descendentes) Lisboa) e de Richard Black no explorador ou no ser violento, que deve assumir a total (Universidade de Sussex), bem responsabilidade pela violncia e pelo conflito, mesmo quando como o trabalho rigoroso e emerge como principal vtima. Esta faceta extrema da xenofobia empenhado de Cristina Latoeira, Edna Ferreira e esteve presente, de modo relativamente sistemtico, ao longo da Micaela Silva no processo de histria europeia nas atitudes de muitos povos em relao a tratamento da informao judeus e ciganos, que no primeiro caso foram arrumados em recolhida nas entrevistas.Espaos e Expresses de Conflito e Tenso entre Autctones, Minorias Migrantes e No Migrantes na rea Metropolitana de Lisboa

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guetos em muitas cidades2, expulsos e perseguidos da Pennsula Ibrica no sculo XV e condenados ao extermnio pela Alemanha nazi nos anos 30 e 40 do sculo passado. Relativamente aos ciganos, as perseguies so tambm sistemticas, tanto na Europa Ocidental como Oriental, s que neste caso a representao social atribuda ao grupo assenta, em larga medida nas imagens da indolncia, da vigarice e dos comportamentos violentos (Mendes, 1998). Esta primeira aproximao questo dos conflitos (e da violncia) que incorporam uma dimenso tnica centra-se no modo como a maioria percebe os grupos minoritrios que com ela coexistem e lhes atribui determinados esteretipos. Estes 2 O termo gueto, associado, esteretipos que so atribudos aos grupos estendem-se s no sculo XV, ao bairro de prprias prticas destes, at porque a aco inseparvel do Veneza onde se fabricavam canhes e se concentravam agente ou agentes que a originam e protagonizam. Neste sentido, judeus, tambm foi aplicado a violncia no corresponde a um dado objectivo, a uma s concentraes residenciais realidade meramente quantificvel traduzida num nico relato de judeus nas cidades da fivel e verosmil. To importante como a ocorrncia violenta em Europa Continental, em diversos momentos da histria. si a representao que os indivduos tm desta (Avenel, 3 Por grupo tnico minoritrio 2004, Ferrndiz e Feixa, 2005), a noo temporal e scioentende-se um conjunto de -espacialmente subjectiva que os leva a interpretar o aconteindivduos que partilha um conjunto de caractersticas cimento, a situ-lo no contexto marcado por esteretipos, a scioculturais especficas atribuir responsabilidades. E, como veremos adiante, o papel dos (lngua, religio, prticas culturais, origem geogrfica rgos de comunicao contemporneos no processo de efectiva ou simblico-ancesconstruo da violncia fortssimo, pela capacidade de tral), que se auto-identifica difuso e de formao da opinio pblica que possuem. como pertencendo ao mesmogrupo e que minoritrio em termos estatsticos (face a outros grupos mais numerosos) e sociais (apresenta dfices de cidadania substantiva quando comparado com outros grupos). 4 A noo de gang desenvolvida por Trasher no seu estudo de 1313 grupos (The Gang. A study of 1313

Uma outra perspectiva da relao entre violncia e imigrao remete para a eventual existncia de uma ligao entre desorganizao social + segregao espacial de natureza sociotnica e o desenvolvimento de violncia grupal de jovens, em larga medida de origem imigrante ou pertencentes a um grupo tnico minoritrio3. Uma anlise pioneira que explora esta perspectiva corresponde ao trabalho j clssico de Trasher sobre os gangs4 de

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Chicago, realizado em 1927 (citado por Avenel, 2004: 80), que destaca a inscrio territorial destes gangs nos espaos intersticiais situados entre os bairros centrais e os bairros burgueses da periferia, espaos esses predominantemente habitados por imigrantes europeus que experimentavam dificuldades de integrao. Esta linha de interpretao mantm-se at aos dias de hoje, embora assuma contornos um pouco distintos, que tendem a encontrar na dupla marginalizao dos filhos dos imigrantes, face sociedade de destino e aos prprios progenitores e sua cultura, um dos principais motivos para o mal-estar que conduz ao desvio (Decker, 2005). Este tipo de interpretao, expressa muita vezes na metfora da no pertena dos filhos dos imigrantes, entalados entre duas culturas sem pertencer bem a nenhuma, resulta tambm da forma como as sociedades receptoras tendem a assumir o outro, frequentemente desejando o seu conformismo face s normas e aos valores dominantes, mas esperando que mantenha um comportamento diferente, que remete para os elementos da identidade original (Vala, 1999 e 2002). Apesar do multiculturalismo e do interculturalismo fomentarem o respeito pela diferena e valorizarem os aspectos especficos da cultura dos imigrantes, os membros dos grupos autctones tendem a olhar para os descendentes dos estrangeiros como cidados diferentes, frequentemente dotados de uma menor legitimidade face aos direitos, mesmo que se trate de cidados formalmente possuidores da nacionalidade do Estado de destino. Ainda que estes cidados possuam direitos polticos formais e tenham passado por um processo de socializao nas escolas dos locais de destino, acabam, frequentemente, por ser excludos em termos sociais e econmicos (Avenel, 2004). gangs in Chicago) muito Finalmente, o ltimo aspecto que importa desenvolver nesta pesquisa prende-se com a expresso espacial dos conflitos. Como acabamos de ver, a violncia urbana tem, frequentemente, como pano de fundo, a revolta face ao espao envolvente e a segregao espacial de base social e tnica. Efectivamente, o desenvolvimento de uma cidade mais segregada do ponto de vista social e tnico, ao longo do perodo situado entre os anos 40 e os anos 80 do sculo XX, acentuou a separao entre os espaos residenciais das classes pobres e das classes mais favorecidas.abrangente, incluindo desde mfias a grupos de delinquentes, passando por fraternidades escolares e escuteiros (Ferrndiz e Feixa, 2005: 214). Decorre daqui alguma impreciso na associao destes gangs violncia, embora Trasher refira que mais de 500 estejam associados a comportamento delinquente. Esta questo dos gangs ser desenvolvida no prximo subcaptulo.

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Mesmo que os ltimos 20-25 anos no sejam, necessariamente, marcados por um crescimento da segregao scio-tnica em muitas cidades da Europa Ocidental (Malheiros, 2002), emergindo fenmenos como a nobilitao de reas dos centros histricos ou dos espaos porturios (Bairro Alto e Alcntara em Lisboa, Ramblas em Barcelona, Kop Van Zuid e Nordijland em Roterdo, as Docklands londrinas, para citar apenas alguns exemplos) que do origem a processos de fragmentao scio-espacial (coexistncia de famlias de grupos sociais distintos nos mesmos bairros, provocando contiguidade espacial sem continuidade social), algumas reas parecem ter visto acentuar-se os seus problemas sociais. Efectivamente, a polarizao social que caracterizou a evoluo de muitas metrpoles europeias nos anos 80 e 90 (Sassen, 1991; Kloosterman, 1995; Salgueiro et al., 1997) e que est associada ao crescimento do desemprego e precarizao das relaes laborais, assume particular expresso nalgumas reas das cidades. Estas, que correspondem a bairros sociais perifricos como os localizados na envolvente de Lisboa ou Paris, a bairros de barracas como os da rea Metropolitana de Lisboa ou ainda a reas antigas de gnese operria situadas nas proximidades do centro das cidades, como acontece na Holanda ou na Gr-Bretanha, registam uma sobrerrepresentao do desemprego, do insucesso escolar e da populao com baixas qualificaes, elevados nveis de degradao do espao pblico e, frequentemente, evidncias de situaes de insegurana e de criminalidade (sobretudo trfico de droga) superiores mdia. Actualmente, estes bairros so muitas vezes habitados por um nmero significativo de famlias imigrantes, sendo tambm marcados por um certo isolamento geogrfico, social e simblico face ao resto da cidade, transformando-se em no go areas. O desenvolvimento de culturas de fechamento e violncia nestes espaos, onde a sociabilizao de rua junto do grupo de pares se apresenta aos jovens como um processo mais interessante do que os oferecidos pela famlia ou a escola, acaba por funcionar como uma resposta violncia da sociedade, ao dfice de reconhecimento identitrio (enquanto jovens, enquanto membros de pleno direito da sociedade de destino...) e ao prprio isolamento do bairro (Wilson, 1987).

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1.1 PERSPECTIVAS TERICAS SOBRE O CONFLITO E A SUA CONSTRUO 1.1.1 Conflito, desvio, violncia e criminalidade Conflito e violncia no so termos equivalentes. Conflito remete para a existncia de um antagonismo que se manifesta de uma forma mais ou menos evidente; traduz uma discordncia e tem implcita a existncia de tenso entre duas partes. Os conflitos so susceptveis de regulao (atravs do respeito pelas normas de conduta social, do auto-controlo, no caso extremo, do recurso aos tribunais) e no degeneram necessariamente em violncia, podendo mesmo funcionar como factor capaz de desencadear processos de transformao e emancipao. Efectivamente, os conflitos latentes ou de base manifesta tendem, frequentemente, a mascarar ou a ocultar outros problemas que carecem de resoluo e que remetem, por exemplo, para as desigualdades socioeconmicas. Marx, por exemplo, concebia o conflito social como um factor revolucionrio de mudana, assente na contradio fundamental entre capital e trabalho, com traduo na luta de classes entre dominantes (proprietrios dos meios de produo) e dominados (destitudos desses meios, s dispondo da sua fora de trabalho). Ao assumir que a burguesia desempenhou um papel revolucionrio na histria, proporcionando a destruio do modo de produo feudal, Marx (1848/1997) identifica o tipo de grupos que, atravs da mobilizao sistemtica de protestos violentos, pode desencadear grandes mudanas sociais. Estes grupos so normalmente compostos por aqueles que estando em processo de ascenso social ou conscientes de que podem percorrer tal trajectria, a vem de alguma forma coarctada. Segundo Dahrendorf (2005), isto traduz uma situao de frustrao que, nas sociedades actuais, pode ser ampliada pela exigncia de resultados imediatos, contribuindo para a emergncia de protestos e conflitos. Estes, para alm do seu potencial emancipatrio, uma vez que so capazes de chamar a ateno para situaes de desigualdade que devem ser corrigidas ou significar uma transio de poder, podem ter efeitos positivos ao nvel do reforo da coeso dos grupos em conflito. nesta linha de pensamento que Simmel (2003) evidencia as funes positivas do conflito, enquanto fora motriz da prpria vida social. Para este autor, o conflito Espaos e Expresses de Conflito e Tenso entre Autctones, Minorias Migrantes e No Migrantes na rea Metropolitana de Lisboa

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um fenmeno universal que faz parte integrante da vida em sociedade, actuando como uma forma de socializao, o que significa que o funcionamento e a existncia das sociedades se alimenta, tambm, da sua prpria conflituosidade. Neste quadro, defende que a luta externa favorece a coeso interna do ingroup, contribuindo para identificao de comunalidades e solidariedades e, tambm, para a definio de limites e fronteiras entre grupos. J Coser (1956) d maior amplitude ao conflito, pois embora considere que o conflito com o outro mobiliza energias internas e aumenta a coeso, refere que os efeitos deste no grupo dependem da forma como se estrutura o grupo e do tipo de conflito. Efectivamente, grupos fortemente desestruturados e com manifesta falta de solidariedade interna tendem, segundo este autor, a desintegrar-se perante o conflito exterior. Por vezes, os grupos no manifestam abertamente conflitos, preferindo camuflar as situaes e acumular a tenso. Quanto mais emotivas e afectivas so as ligaes sociais mais violentos so os conflitos. Em qualquer grupo ou sociedade esto presentes correntes de convergncia e de divergncia. A presena de unio e de oposio dentro de um dado grupo, ou mesmo a nvel macro-social, contribuem para a violncia do conflito, e quanto mais estreitas as relaes, mais apaixonado e violento tender a ser o conflito. Em sntese, embora o conflito possa desembocar em violncia efectiva e explcita e comporte riscos ao nvel da gerao de anomia e da ruptura da coeso social, deve ser encarado como um fenmeno social inerente ao prprio funcionamento das sociedades, uma vez que a expresso da existncia de interesses divergentes e de objectivos distintos por parte dos actores sociais. Adicionalmente, o conflito pode ter efeitos positivos ao nvel da identificao dos elementos comuns dos grupos e, em sequncia, do reforo da sua prpria coeso interna. Por ltimo, o conflito pode dar contributos fundamentais para o prprio processo de regulao social, uma 5 Isto no se verifica quando vez que, na maioria dos casos5, fora o estabelecimento de os conflitos tm um vencedor compromissos assentes em regras e em normas sociais que que impe as suas exigncias e as suas normas, reduzindo permitam o funcionamento e a coexistncia dos antagonistas. os opositores a uma situao Tambm por esta razo, Simmel (2003) reala o carcter positivo de dependncia ou, em casos dos conflitos. extremos, eliminando-os.(26)Espaos e Expresses de Conflito e Tenso entre Autctones, Minorias Migrantes e No Migrantes na rea Metropolitana de Lisboa

J a violncia tem um significado distinto do conflito. Pode-se entend-la como o uso agressivo de fora fsica por parte de indivduos ou grupos contra outros indivduos ou grupos, havendo outras formas de agressividade no fsica (verbal, simblica, moral) que podem causar maiores danos. Ademais, a violncia no se limita ao uso da fora, mas tambm possibilidade ou ameaa de a utilizar (Ferrndiz e Feixa, 2005: 212). A violncia configura uma forma de desvio no contexto de sociedades que condenam todos os comportamentos violentos situados fora das esferas especficas criadas para este efeito o ring de boxe da periferia parisiense do filme O dio (La Haine) de Mathieu Kassovitz, realizado em 1995, ou o seu equivalente no South Side de Chicago, apresentado por Wacquant (2005) e que criaram um quadro regulador dos conflitos (atravs dos tribunais ou de prticas disciplinares especficas das escolas, dos empregos, etc.) que exclui e desvaloriza a violncia enquanto uso agressivo da fora fsica. Esta ideia de desvio pressupe a existncia de um comportamento mdio ou ideal que se relaciona com a ordem e conformidade sociais expectveis. Para o interaccionismo simblico, designadamente para Becker (1966), no h desviantes em si mesmos, mas uma relao entre actores que se rotulam mutuamente, de forma consciente ou inconsciente. O desviante classificado e estigmatizado segundo as normas do grupo maioritrio, mas pode no o ser no seu ingroup (age em conformidade com as expectativas do seu grupo de pertena). a prpria sociedade e os seus agrupamentos que constroem o desvio ao estabelecer as regras cuja infraco constitui desvio e ao aplic-las aos outsiders. Conforme com a situao e o contexto, qualquer um de ns poder ser etiquetado como desviante ou normal, pois o desvio criado pela sociedade, no sendo uma caracterstica intrnseca ao indivduo ou grupo social, mas um veredicto social que lhes atribudo, no mbito de um determinado ambiente temporal e scio-espacial. Martine Xiberras (1996) considera que o desvio e a marginalidade no provocam apenas desagregao moral e social. Acredita que o desvio tem potencialidades regenerativas, ou seja, conduz tambm recomposio do tecido social. J anteriormente R. Merton (1967) antevia nos comportamentos desviantes um potencial inovador, dado que podem introduzir mudana social. Efectivamente, a inovao pressupe sempre um desvio face norma estabelecida, uma ruptura relativamente atitude padro (Andr e Malheiros,Espaos e Expresses de Conflito e Tenso entre Autctones, Minorias Migrantes e No Migrantes na rea Metropolitana de Lisboa

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2002), pelo que o comportamento desviante pode ter um contedo positivo, podendo gerar dinmicas sociais novas. Atendendo s definies apresentadas, percebe-se que muitas formas de desvio (a apropriao de bens alheios, as injrias, o vandalismo) e, sobretudo, a violncia se enquadram no contexto dos actos criminalizveis, situando-se o ltimo tipo de prtica no mbito da categoria crimes contra as pessoas. Contudo, nem toda a violncia prefigura um crime (um acto que viola o conjunto formal de normas que regula a vida em sociedade6), como evidenciam os actos de legtima defesa, a aco da polcia com o intuito de fazer cumprir as normas de segurana ou as atitudes violentas assumidas em contexto de guerra, desde que respeitem as normas internacionais, com destaque para a Conveno de Genebra. Embora o presente estudo se centre nos conflitos, o facto de muitos destes aparecerem associados a comportamentos desviantes e desembocarem em atitudes violentas e criminalizveis, justifica a anlise dos trs ltimos domnios. Adicionalmente, a observao de informao estatstica e jornalstica associada a conflitos implica a recolha de dados sobre os actos violentos (porque sendo visveis so reportados pelos rgos de informao) e sobre os crimes (contabilizados nas estatsticas da justia). J os conflitos, porque podem estar latentes ou ter uma expresso atenuada, remetem para uma anlise de carcter qualitativo e teor extensivo, centrada em entrevistas que pretendem contribuir para identificar as causas profundas dos fenmenos.

1.1.2 Conflitos de base tnica jovens, gangs e racismo6 Esteves (1999: 15) considera crime o acto cometido por algum contra uma determinada lei. Daqui decorre a ideia de crime enquanto acto de violao grave das normas que regulam a vida em sociedade.

Embora esta pesquisa se centre nas expresses territoriais do conflito e nas suas dimenses de base tnica, inevitvel abordar aqui a questo dos jovens. Efectivamente, seja por via da anlise dos conflitos propriamente ditos, seja atravs do estudo dos actos criminalizveis (no caso concreto, prtica de violncia e/ou de comportamentos desviantes que configuram crimes contra o

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patrimnio ou a propriedade), chega-se facilmente concluso de que os jovens do sexo masculino esto claramente sobrerrepresentados nestes processos. Esta constatao antiga est na base de alguns estudos clssicos sobre violncia e juventude, com destaque para o trabalho pioneiro de Stanley Hall7, elaborado em 1904, que associa o processo de metamorfose fsica e psquica dos jovens crise psicolgica e tenso social que remetem para um quadro de acrscimo do potencial conflictivo (Hall, 1904 in Ferrndiz e Feixa, 2005: 210). Desta interpretao resultou uma associao entre tenses psicolgicas e patologias sociais, emergindo a violncia como o resultado, quase inevitvel, destes factores. Actualmente, esta perspectiva naturalista da violncia que remete para as caractersticas fsicas dos jovens do sexo masculino as motivaes fundamentais para a agressividade e o conflito, tem sido largamente posta em causa. Efectivamente, esta associao entre jovens rapazes e violncia ignora o processo de construo social das prticas e dos imaginrios violentos, admite que todos os jovens tm tendncias conflituais relativamente uniformes e esquece o papel que os meios sociogeogrficos tm na criao, difuso e mesmo tipologia dos comportamentos violentos (i.e., tambm relativamente aos comportamentos anti-sociais, no igual crescer num bairro degradado da periferia lisboeta ou num bairro de classe mdia-alta da Linha do Estoril ou das Avenidas Novas, em Lisboa). Na verdade, a existncia de uma sobreagressividade associada aos jovens do sexo masculino, sobretudo oriundos dos bairros urbanos e das classes populares, tem estado presente na literatura ao longo dos ltimos 150 anos (Mucchielli, 2002). Este tipo de comportamentos aparece fundado em culturas de virilidade, muito associadas ao grupo de pares (rapazes jovens do sexo masculino), e assume uma expresso simblica muito forte (o vandalismo e os graffitis que desafiam, as provocaes orais aos mais velhos e aos outros, a utilizao de uma linguagem especfica). Esta conflituosidade exuberante, para utilizar uma expresso de Monod, traduz sentimentos 7 Adolescence: Its psychology de oposio de alguns jovens, sobretudo oriundos dos grupos and its relations to physiology, menos privilegiados da sociedade mas que esto conscientes das anthropology, sociology, sex, suas desvantagens sociais, que se traduzem no confronto entre crime, religion and education.Espaos e Expresses de Conflito e Tenso entre Autctones, Minorias Migrantes e No Migrantes na rea Metropolitana de Lisboa

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identidades juvenis em afirmao e busca de poder e reconhecimento e identidades adultas, consolidadas e pretensamente dominantes (Ferrndiz e Feixa, 2005: 214). Quando estas identidades adultas aparecem fragilizadas ou deixam de funcionar como referncia, como acontece nos casos de desemprego ou pobreza persistente dos pais, ou ainda nas situaes de discriminao e distanciamento social de muitos trabalhadores imigrantes face sociedade de destino, a revolta dos jovens tende a assumir expresses mais fortes e intensas. Nestes casos, o vandalismo e a destruio das organizaes (empresas, servios pblicos) e dos bens materiais tendem a revestir propores particularmente fortes, uma vez que passam a representar, em simultneo, as estruturas incapazes de promover a integrao (dos prprios e dos pais) e os objectos socialmente inalcanveis atravs de comportamentos socialmente conformes (o sucesso escolar aparece sempre limitado, a aquisio de bens-smbolo da sociedade de consumo difcil, a esquadra da polcia emerge como o espao de represso e no de proteco). Estas explicaes vo parcialmente ao encontro de um dos aspectos da teoria da anomia que se centra sobre as insatisfaes suscitadas por um eventual desequilbrio entre os desejos e os meios de os satisfazer (Mucchielli, 2002). Com a expanso da sociedade de consumo e a multiplicao dos apelos frequncia de determinados espaos (e.g. os grandes centros comerciais criados nos ltimos 25 anos) e aquisio de bens materiais, cada vez mais marcados pelo seu valor simblico (e.g. roupa e calado de marca), todo o perodo do ps-Segunda Guerra Mundial inevitavelmente caracterizado pelo agravamento dos sentimentos de desconforto e mesmo revolta entre os jovens das classes mais desfavorecidas. Efectivamente, o acentuar das lgicas de mercadorizao de todos os domnios da sociedade, da cultura restaurao, passando pelo desporto e pelo ensino superior, no quadro do ps-modernismo e do neoliberalismo contemporneos, vai acentuar a dicotomia entre o desejo de possuir e de consumir e as limitaes formais e remuneratrias para o fazer, em toda a sua plenitude. Neste quadro, a associao que Merton (1967) efectuou, j nos anos 30, entre o desajuste atrs descrito e o eventual acrscimo dos comportamentos desviantes entre os jovens, parece encontrar, na actualidade, um potencial explicativo acrescido (Pais, 2003). Contudo, este tipo de explicao para os comportamentos desviantes de alguns jovens revela-se necessariamente incompleto, at porque nem todos os indivduos que se sen(30)Espaos e Expresses de Conflito e Tenso entre Autctones, Minorias Migrantes e No Migrantes na rea Metropolitana de Lisboa

tem insatisfeitos por no conseguir realizar determinados desejos materiais ou de lazer assumem atitudes violentas. Efectivamente, torna-se relevante reflectir, quer sobre os mecanismos de controlo do potencial da agressividade juvenil, quer sobre as transformaes sociais contemporneas e os contextos scio-geogrficos especficos que, eventualmente, a potenciam. Na bibliografia cientfica francesa sobre o fenmeno dos bairros sensveis e dos jovens, enquanto nova classe perigosa8, possvel identificar um conjunto de factores que ajudam a perceber o fenmeno da delinquncia juvenil contempornea, sobrerrepresentada em determinados espaos urbanos (Mucchielli, 2002; Beaud e Pialoux, 2003; Avenel, 2004): i) O crescimento do desemprego e a afirmao de relaes laborais assentes na precariedade, a partir da segunda metade dos anos 70. Este processo afecta os pais dos jovens, podendo agravar fortemente a situao social (dvidas, cortes na aquisio de determinados bens) e acentuar as dependncias face aos organismos pblicos (segurana social e rendimentos de insero, subsdio de desemprego) e as instituies de natureza scio-caritativa, como o Banco Alimentar. Relativamente aos jovens, sobretudo os menos qualificados e etnicamente diferentes da populao maioritria, apresentam riscos agravados de insucesso no mercado de trabalho, seja por possurem frequentemente nveis de instruo mais reduzidos que so uma funo da origem social e, eventualmente, de estratgias familiares, e no de uma qualquer etnicidade (Mucchielli, 2002: 98) , seja por se depararem com fortes processos de estigmatizao e discriminao que remetem para etiquetagens sociais (s ter oportunidades na construo civil, como mecnico ou a trabalhar no McDonalds, pensamento comum a vrios professores acerca dos seus alunos de8 A utilizao, neste caso particular, de referncias francesas prende-se com alguma proximidade entre o contexto scio-geogrfico que enquadra a violncia juvenil nas grandes cidades deste pas e a situao na rea Metropolitana de Lisboa: existncia de periferias degradadas com enormes reas de habitao social, concentrao espacial de imigrantes e descendentes nestes espaos, quadros jurdicos de inspirao semelhante, evoluo dos nmeros de criminalidade desde a dcada de 80 comportando vrios pontos de contacto (incremento dos crimes contra a propriedade e dos delitos associados ao trfico de estupefacientes, uma certa diminuio dos crimes mais violentos) (Mucchielli, 2002; Seabra, 2005). No obstante estes pontos de contacto, no ignoramos que se trata de contextos diferentes, no s

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origem africana) ou formas de racismo desculpabilizante (os nossos clientes no querem um indivduo com as suas caractersticas) ou dissimulado (o posto de trabalho acaba de ser preenchido). Como referem Beaud e Pialoux, 2003), promove-se a construo social da no empregabilidade destes jovens. A crise das instituies clssicas de sociabilizao primria e controlo social, com destaque para a famlia e a vizinhana. Relativamente famlia, importante mencionar que o conflito de geraes no um fenmeno novo, estando bem analisado na sociologia e na psicologia. O que importa aqui realar que o desajuste entre os valores dos pais (mais conservadores) e os valores dos filhos, naturalmente possuidores de um carcter mais emancipatrio, pode ser acentuado pela velocidade da sociedade de consumo, cujas ofertas tecnolgicas e culturais parecem marcar mais intensamente as diferenas intergeracionais, sobretudo no caso das famlias de menores recursos, e, tambm, pela origem imigrante de alguns jovens. Neste ltimo caso, as divergncias prprias da dinmica temporal que marca as vrias geraes so acentuadas por diferenciaes culturais mais intensas, uma vez que os referenciais identitrios associados aos meios de origem de pais e filhos so substancialmente distintos. Para alm destes aspectos, alguns estudos referem-se a uma relao entre porque os quadros imigratrios modelos familiares (a problemtica das famlias monoparentais), so distintos (em termos temdemisso/superviso parental (sobretudo a ausncia do pai, porais, de origens geogrficas, reformado, detido, fora do domiclio conjugal) e incidncia da etc.), como pelo facto de a prpria evoluo da criminalidelinquncia juvenil. Embora o dfice de superviso parental e dade de jovens no apresentar uma menor intensidade nas relaes familiares (conversar ao um paralelismo claro (crescimento dos delitos cometidos sero, tomar pelo menos uma refeio em conjunto diariapor jovens oriundos das perimente) possam ter alguma relao com o desenvolvimento de ferias pobres das cidades comportamentos desviantes entre os jovens, parece ser claro que francesas relativa estabilidade da delinquncia juvenil em a capacidade de controlo dos pais relativamente aos filhos Portugal, ainda que o final depende, fortemente e de modo directo, do nvel de vida daqueles dos anos 90 e o incio do sculo XXI paream revelar (Mucchielli, 2000). Na grande maioria das famlias, o pai ou a uma tendncia para o crescime tentam desempenhar o seu papel de controlo e orientao mento, j pressentida nalguns dos filhos. estudos Seabra, 2005).(32)Espaos e Expresses de Conflito e Tenso entre Autctones, Minorias Migrantes e No Migrantes na rea Metropolitana de Lisboa

ii)

iii)

A escola e o desajuste entre oferta e procura escolar desempenham um papel importante na gerao de sentimentos de insatisfao e frustrao que podem contribuir para acentuar as atitudes anti-sociais entre os jovens. Em primeiro lugar, a escola est muito vinculada a programas uniformes e razoavelmente rgidos que parecem pouco adaptados a jovens cuja linguagem e cultura domstica remetem para referncias pouco aproveitadas em contexto escolar. Perante este desajuste, a sociabilizao de rua, entre o grupo de pares, emerge como algo mais atractivo do que a sociabilizao fechada, em meio escolar, at porque, como algum frisou numa entrevista, a rua e o mundo so a cores e a escola demasiado a preto e branco. Neste quadro, se a sociabilizao menos regulada da rua, que faz apelo virilidade e competio masculina, no contrabalanada por uma sociabilizao mais formatada que remete para o espao domstico e a escola, ento o campo para a emergncia de incivilidades (provocaes verbais, danificao de automveis, edifcios, etc) e mesmo de pequena delinquncia (furtos de objectos, ofensas corporais menores) alarga-se bastante. Em segundo lugar, a associao entre sucesso escolar e percursos marcados por mobilidade scio-profissional ascendente tem vindo a ser interiorizada pelas famlias e pelos jovens de todos os meios sociais, designadamente por via do alargamento do perodo de escolaridade obrigatria e da generalizao e democratizao do ensino, desde o bsico ao superior. Ora, a boa insero no meio escolar e o sucesso que nele se atinge dependem, em larga medida, do meio social de origem dos jovens, pois aqui que estes adquirem a linguagem, os valores e as referncias que os aproximam ou afastam mais do universo escolar. Como os jovens oriundos das classes populares esto inseridos numa cultura domstica mais distante da cultura escolar, as probabilidades de insucesso aumentam, como atestam os rankings de sucesso escolar do ensino secundrio portugus, que apresentam invariavelmente no topo colgios privados ou escolas localizadas em bairros de classe mdia e mdia-alta, onde uma parte significativa dos alunos possui nveis de capital econmico, cultural e social superiores mdia da populao. importante frisar que o insucesso (ou menor sucesso) no tem apenas significado intrnseco, possuindo igualmente um valor simblico, traduzindo a aparente incapacidade do jovem para ascender socialmente, simbolizando o coarctar das aspiraes relativamente a boa insero social. Disto decorre um distanciamento relativamenteEspaos e Expresses de Conflito e Tenso entre Autctones, Minorias Migrantes e No Migrantes na rea Metropolitana de Lisboa

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escola, um reforo das formas de rejeio que podem desembocar nas supracitadas incivilidades. Finalmente, e em terceiro lugar, as escolas incorporam mecanismos de segregao duplos, tanto ao nvel externo, (porque muitas famlias colocam os alunos autctones das classes sociais mais favorecidas em estabelecimentos especficos deixando algumas escolas de bairro para os filhos das classes populares, cada vez mais com origem na imigrao), como interno (em virtude da frequente concentrao dos alunos com pior desempenho escolar nas mesmas turmas, sob a justificao de um acompanhamento mais prximo e especfico que, frequentemente, esconde uma atitude de separao os maus alunos no podem perturbar o funcionamento das turmas normais e de um certo abandono no raramente estas turmas difceis ficam para os professores mais jovens e inexperientes). iv) A interiorizao de um certo destino de classe, cada vez mais prximo de um destino de etno-classe, marcado por um cepticismo face s instituies de sociabilizao ( escola, aos vizinhos do bairro) e ao prprio futuro, acaba por contribuir para acentuar os sentimentos de excluso e a revolta de muitos jovens. significativo que muitos menores oriundos das classes mais desfavorecidas, quando interrogados acerca do seu futuro, sejam incapazes de o projectar, fixando-se no imediatismo, como atestam os estudos de Moura Ferreira (2000) e Seabra (2005). Este sentimento de impotncia face a hipteses de incluso coarctadas, sobretudo em comparao com as possibilidades da juventude oriunda das classes mdia e alta, maioritariamente descendente de autctones, reforado nos momentos em que os jovens oriundos das classes populares originrias da imigrao comeam a procurar o primeiro emprego, uma vez que menores qualificaes, estigmas de natureza tnica e social e discriminao, emergem como factores limitadores de uma insero profissional bem sucedida. E, nestes casos, o prolongamento das respostas violentas em idades mais avanadas ou o conformismo relativamente aceitao dos empregos desqualificados que a sociedade oferece emergem como duas possibilidades extremas. A criminalizao da pobreza (Wacquant, 2000), que decorre, frequentemente, da aplicao de um modelo securitrio de interveno social, pode, tambm, reforar

v)

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os sentimentos de revolta e, potencialmente, as atitudes conflituais. Embora a criao de sentimentos de segurana urbana seja essencial para a boa qualidade de vida na cidade, este desiderato no pode justificar a implementao de um poltica de interveno assente, primariamente, na aco securitria da polcia e no encarceramento. Como destaca Wacquant (2000), a criminalizao da misria tem custos sociais e econmicos significativos (em termos de desestabilizao das famlias, dos valores que se gastam com prises e tribunais) e, a mdio/longo prazo, contribui para agravar os potenciais de violncia e conflitualidade existentes na sociedade (pela estigmatizao dos ex-detidos, pelo reforo da sua no empregabilidade, pela aprendizagem da violncia e da delinquncia que, em muitos casos, representa a passagem pelo sistema prisional). Em alternativa a esta poltica em que a natureza securitria assume primazia, pode-se apostar na extenso dos direitos de cidadania e na manuteno das garantias do Estado social, combatendo a excluso ligada pobreza, ao desemprego e precariedade no mercado de trabalho. Adicionalmente, as formas modernas de policiamento podem assumir um carcter inovador que garanta maior proximidade aos cidados, designadamente atravs das lgicas do policiamento comunitrio e do policiamento de proximidade (Damas, 2004). Estes modelos de policiamento tm a preocupao de estabelecer pontes entre a polcia e os cidados (comunidade), envolvendo estes ltimos no processo de identificao e resoluo dos problemas de segurana da sua rea de residncia ou trabalho. Alm disso, a actividade da polcia procura centrar-se no combate s causas da insegurana, incluindo-se aqui a preveno dos problemas da comunidade e a interveno no sentido de minorar as incivilidades, mesmo que estas no configurem propriamente crimes. Para desenvolver esta actividade, o policiamento deve ser personalizado e o patrulhamento efectuado a p ou de bicicleta, com a manuteno de agentes especficos em cada bairro que devem assegurar um contacto estreito com as populaes e as instituies locais e ter uma atitude pr-activa de preveno e regulao das tenses e conflitos (Damas, 2004). vi) Como mencionmos atrs, a representao da violncia to relevante como o fenmeno em si mesmo. Efectivamente, os media possuem um papel fundamentalEspaos e Expresses de Conflito e Tenso entre Autctones, Minorias Migrantes e No Migrantes na rea Metropolitana de Lisboa

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no processo de construo dos eventos violentos e dos conflitos e na atribuio de estigmas aos lugares urbanos e s vrias populaes que neles habitam. A televiso e os restantes rgos de comunicao social participam na co-construo dos conflitos e dos eventos violentos, amplificando-os e fornecendo uma visibilidade aos autores que estes naturalmente no enjeitam (Mucchielli, 2002; Avenel, 2004, Ferin Cunha e Almeida Santos, 2004). O espectculo meditico pode no s ampliar um fenmeno violento, como deform-lo, atravs do modo como so captadas as imagens (por exemplo, mostrando s determinado grupo de indivduos), da seleco de entrevistados a incluir na pea (frequentemente realizada pressa e sem possibilidade de crtica sustentada das fontes) e do modo como so seleccionados e apresentados os depoimentos recolhidos. Um bom exemplo deste fenmeno de deformao e ampliao corresponde ao tratamento meditico dos acontecimentos de 10 de Junho de 2005, na praia de Carcavelos, onde a preocupao da jornalista que efectuou os directos com a no estigmatizao atravs do uso de linguagem correcta acabou por no conseguir evitar a distoro do contedo do denominado arrasto. Por um lado, a sucessiva repetio de imagens que misturavam alguns jovens negros a correr e a furtar objectos na praia com outros que corriam juntamente com os autctones, apanhados desprevenidos no quadro do acontecimento, levou a uma interpretao que aglutinou todos os jovens de origem africana num nico conjunto de infractores que perpetravam um delito colectivo (o tal arrasto) contra os desprevenidos banhistas brancos. A somar a isto, uma ou duas entrevistas efectuadas a pessoas presentes na praia no momento do arrasto recolheram depoimentos que mencionavam, sem qualquer base estatstica ou meramente contabilstica fivel, que se tratava de uma aco planeada que envolvia 400 ou 500 jovens. Depois de esta imagem se ter expandido (mesmo entre os mass media europeus), acentuando sentimentos de medo colectivo dos residentes na AML, a prpria polcia declarou tratar-se de um acontecimento envolvendo um grupo muito menor de pessoas (30 ou 40) e no efectuou qualquer deteno, no tendo sido apresentadas queixas polcia por parte dos banhistas que se encontravam na praia, nesse dia 10 de Junho. Por ltimo, deve frisar-se que os rgos de informao tambm contribuem para a estigmatizao das pessoas e dos bairros, noticiando essencialmente os acontecimentos extraordinrios que, em determinadas reas(36)Espaos e Expresses de Conflito e Tenso entre Autctones, Minorias Migrantes e No Migrantes na rea Metropolitana de Lisboa

correspondem violncia (apreenses de droga, conflitos entre grupos rivais ou com a polcia, etc.) e nunca a eventos positivos, mesmo que estes sejam mais frequentes (ACIME, 2006). vii) A concentrao de populao pertencente a grupos sociais mais desfavorecidos em grandes bairros de habitao social tambm parece facilitar a emergncia de tenses sociais e comportamentos desviantes. Em primeiro lugar, a homogeneidade social destes espaos limita o desenvolvimento de dinmicas econmicas que dependem da existncia de famlias pertencentes classe mdia, assim como de mudanas sociais, tambm elas muito associadas a indivduos dotados de nveis elevados de capital humano e social. Esta homogeneidade social nivelada por baixo implica tambm uma concentrao espacial de problemas como o desemprego ou o insucesso escolar, o que acentua as dificuldades associadas desocupao, sobretudo dos jovens do sexo masculino, abrindo a porta para o reforo das formas de sociabilizao de rua. Em segundo lugar, muitos destes bairros destinaram-se a alojar populaes de origem rural ou que residiam em bairros de barracas, no tendo os realojamentos sido correctamente acompanhados, o que implicou que a aprendizagem da vida em edifcios altos, distantes da rua, sem jardins ou pequenas hortas, a requererem a manuteno de partes comuns e geridos em regime de condomnio, no fosse efectuada correctamente. Daqui decorre a dificuldade em estabelecer boas relaes de vizinhana, assim como a incapacidade de conservar as partes comuns (e, por vezes, os prprios alojamentos) dos edifcios. Em terceiro lugar, mesmo que originalmente alguns destes bairros sociais, como certas cits da periferia das grandes cidades francesas, fossem objecto de um planeamento interessante e construtivo (densidades no muito elevadas, instalao de vrios equipamentos e espaos verdes), a sua implementao no respeitou, frequentemente, muitos destes pressupostos, acabando por se verificar uma densificao do construdo, algum sacrifcio na instalao dos equipamentos e uma desvalorizao do espao pblico (por atrasos nos arranjos, falta de manuteno). Por ltimo, o prprio modo de conceber os bairros e os edifcios no facilita o desenvolvimento de boas relaes de vizinhana, nem o controlo social. Em muitos casos, estes bairros esto relativamente isolados da envolvente, pois localizam-se nas margens das reasEspaos e Expresses de Conflito e Tenso entre Autctones, Minorias Migrantes e No Migrantes na rea Metropolitana de Lisboa

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urbanizadas, possuem poucas entradas e aparecem muito voltados para dentro. Adicionalmente, os edifcios altos dificultam o controlo que os pais (sobretudo as mes) exercem sobre os filhos, uma vez que os andares esto muito distantes da rua. Uma expresso desta violncia localizada associada aos jovens e aos bairros o gang que, como vimos, remete para o estudo de Chicago, efectuado por Trasher, nos anos 20. Embora o termo gang esteja na ordem do dia na imprensa e mesmo na investigao social e criminalstica, no existe uma definio nica e universal (Falk, 2005; Decker, 2005). A anlise de vrias perspectivas permite destacar um conjunto de elementos, designadamente a existncia de um grupo de indivduos que assumem uma identidade grupal marcada por determinados smbolos (a designao do grupo, certos graffitti especficos, etc.) e que se dedicam delinquncia e/ou criminalidade. A noo de gang remete, tambm, para alguma constncia na pertena dos membros, mesmo que alguns destes grupos apresentem estruturas relativamente abertas. Como refere Falk (2005) e a prpria tipologia original do estudo de Trasher evidenciava , o termo gang aplicado a organizaes muito distintas, que vo das estruturas do crime organizado (tipo mfia) e do trfico organizado de drogas at aos grupos violentos de motociclistas e de jovens que actuam nas ruas e se dedicam, essencialmente, a incivilidades (comportamentos socialmente reprovveis), a alguma pequena criminalidade e, eventualmente, ao trfico de droga em escala reduzida. A definio de eurogang de Decker (2005) aponta precisamente para este ltimo tipo de grupos, uma vez que considera tratar-se de grupos de jovens baseados na rua, cujo envolvimento em actividades ilegais parte da identidade e que apresentam uma certa durabilidade. As justificaes para o envolvimento nestes youth gangs ou street gangs remetem para um quadro relativamente complexo que inclui a afirmao social dos jovens atravs do respeito e do poder que a pertena ao gang suscita, bem como a criao de sensaes de proteco e solidariedade juvenil no contexto dos bairros. A alienao social e os rendimentos que gera o trfico de droga quando os gangs se dedicam a tal actividade so outros motivos que funcionam como justificaes para o envolvimento nestes grupos (Wortley e Tanner, 2005).(38)Espaos e Expresses de Conflito e Tenso entre Autctones, Minorias Migrantes e No Migrantes na rea Metropolitana de Lisboa

Do ponto de vista estrutural, o desenvolvimento dos gangs de jovens, que so designados por bandes na bibliografia francesa e, por vezes, por grupos de jovens, na literatura portuguesa, parece depender fortemente de factores como o sexo (sobretudo rapazes), a idade (entre os 13-14 e os 23 anos), o grupo social de pertena (sobretudo jovens oriundos das classes populares e da classe mdia-baixa), as estruturas familiares, o (fraco) envolvimento escolar e a origem imigrante/pertena tnica, ainda que esta ltima em menor grau (Wortley e Tanner, 2005). H ainda autores que relacionam o aparecimento de bandos de jovens em meio urbano aos processos de renovao urbana (realojamento ou outros), visando o processo de (re)agrupamento destes a recuperao de marcas territoriais herdadas do bairro pr-interveno associadas a uma identidade prpria, distante dos modelos normativos da ideologia dominante. Neste quadro, a origem imigrante e a pertena tnica emergem como condies supletivas dos motivos sociodemogrficos e familiares que esto na base do envolvimento em gangs (no sentido mais abrangente do termo), a larga maioria dos quais de baixa periculosidade e dedicados a incivilidades que perturbam a ordem pblica mas esto longe de corresponder a formas de criminalidade violenta e organizada. Cabe tambm aqui lembrar que a construo do gang e da sua imagem um processo para o qual contribuem os membros que o integram e as suas actividades, mas tambm as narrativas que so transmitidas pela imprensa, pelos actores polticos e, de algum modo, pela prpria polcia9. Uma profuso de notcias mais alarmistas centradas na actividade dos grupos de jovens associada a declaraes espectaculares marcadas por algum oportunismo poltico que justificam o recurso violncia policial quando aplicada a gangs, sem especificar do que se trata, contribuem para estigmatizar os jovens e para uma interiorizao da violncia, em tudo contrria preveno dos conflitos, dos delitos e da violncia. Na verdade, prevenir a transformao destes grupos de jovens em gangs violentos e centrados na actividade criminal mais perigosa constitui um desiderato fundamental em termos de dissuaso e preveno. E estas aces, que devem procurar tirar partido dos lados positivos do conflito atrs explicitados, assentam mais na interveno social do que na represso policial, devendo esta ltima, de resto, ser complementar da primeira. De qualquer forma, considerar os jovens ou mesmo os jovens das segundas geraes como uma categoria social homognea9 A este propsito, ver Macedo, A. (2004), captulo 6.

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radica num falso processo de simplificao que ignora todas as diferenciaes internas, em termos de origens, sociais, familiares e outras. Se este quadro de raciocnio levou Bourdieu a declarar que a juventude, enquanto categoria social, no existe, parece-nos tambm pertinente afirmar que a generalizao da imagem dos jovens descendentes de imigrantes, pretensamente mais envolvidos em conflitos e crimes, constitui uma perspectiva distorcida e redutora da realidade. Efectivamente, se as crianas e os jovens com origens tnicas no europeias crescerem em contextos socioterritoriais mais favorveis, dominados pelas classes mdias ou mdias-altas, com uma qualidade urbanstica elevada associada presena de equipamentos e de oportunidades escolares, as oportunidades de sucesso social e profissional incrementam-se exponencialmente e o envolvimento em comportamentos desviantes decresce substancialmente.

1.1.3 A expresso espacial dos conflitos bairros e guetos A temtica da concentrao espacial das populaes imigrantes na rea Metropolitana de Lisboa tem sido abordada, de forma directa ou indirecta, por diversos autores (Castro e Freitas, 1991; Malheiros, 1998; Machado, 2002, entre outros) que destacam a formao de bairros onde predominam determinados grupos tnicos minoritrios, em muitos casos caracterizados por condies habitacionais degradadas. precisamente o destaque dado a esta associao entre relativa homogeneidade tnica (associada a um determinado grupo de origem migrante ou, eventualmente, a uma minoria nacional e.g. o grupo cigano) e meio fsico e social degradado que tem, frequentemente, marcado o debate acadmico e poltico em torno da questo da segregao sociotnica do espao residencial. Neste sentido, o cerne da discusso passa da organizao espacial segregada da cidade (o mosaico decorrente da existncia de reas urbanas caracterizadas por uma certa homogeneidade tnica e social , separadas umas das outras Kempen e Ozuekren, 1998; Malheiros, 2002) para a problemtica do gueto (enunciada de forma mais sistemtica desde os anos 20 atravs dos socilogos da Escola de Chicago, nomeadamente Louis Wirth), entendido, na sua acepo mais simples, como um espao marginalizado e relativamente fechado envolvente, que conjuga degradao urbanstica(40)Espaos e Expresses de Conflito e Tenso entre Autctones, Minorias Migrantes e No Migrantes na rea Metropolitana de Lisboa

e social com homogeneidade tnica, assente na fortssima concentrao de um determinado grupo tnico minoritrio. Adiante, teremos oportunidade de discutir e operacionalizar a noo de gueto, importando agora reflectir em torno do significado da concentrao espacial dos grupos migrantes, mais concretamente se esta se traduz num problema adicional para a cidade, com consequncias perniciosas em termos de perda de propinquidade, reduo da coeso social e territorial e acentuao dos conflitos. Como ponto de partida para esta discusso, podemos comear por afirmar que a concentrao espacial das minorias no , necessariamente, um processo negativo. Sabe-se que os Japoneses tendem a exibir nveis de concentrao espacial elevados nas cidades de destino, no sendo tal considerado um problema. Tambm nalgumas metrpoles da Europa do Sul (e.g. Madrid e Lisboa) se verificam nveis de segregao elevados dos imigrantes oriundos de pases desenvolvidos (Unio Europeia e Amrica do Norte), para alm de a sua localizao residencial ser distinta da dos outros grupos migrantes e se aproximar da correspondente das classes afluentes das duas metrpoles (Buckeley Iglesias, 1998: 8; e Malheiros, 2000: 224-227). Esta constatao remete, de imediato, para duas questes interessantes. Em primeiro lugar, entre os membros dos grupos tnicos mais solventes, a identificao de classe relativamente a indivduos com uma posio social idntica, mas pertencentes a outros grupos tnicos maior, o que facilita a sua insero nas reas residenciais de maior qualidade. Isto no impede, contudo, que os elementos tnicos e culturais continuem a ser relevantes no processo de deciso de reagrupamento no destino. Por outras palavras, mesmo num contexto de proximidade de classe, a existncia de diferenas importantes ao nvel dos costumes e prticas culturais, como acontece entre os norte-europeus e os mediterrnicos, por exemplo, tem como consequncia a emergncia de segregao espacial. Claro que a segregao dos grupos de origem no europeia e das populaes mais abastadas da UE e da Amrica do Norte tem contornos diferentes que levaram Malheiros (2000: 224) a falar de segregao activa e passiva. Enquanto os ltimos tm acesso informao e nveis de rendimentos que alargam o seu leque de escolhas residenciais, os primeiros revelam muito mais limitaes noEspaos e Expresses de Conflito e Tenso entre Autctones, Minorias Migrantes e No Migrantes na rea Metropolitana de Lisboa

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acesso aos diferentes segmentos do mercado residencial (rendimentos mais reduzidos, irregularidade na presena no mercado de trabalho, alguns constrangimentos no acesso habitao social, preconceitos por parte dos proprietrios de habitaes). Perante esta situao, torna-se claro que a segregao tnica no pode, por si s, ser considerada um problema. Claro que os processos de segregao passiva de carcter tnico se podem considerar negativos, uma vez que eles so, pelo menos parcialmente, o produto de condies mais limitadas de acesso ao mercado residencial. Para mais, vrios autores referem que a concentrao espacial dos imigrantes e das minorias em determinadas reas limita as suas possibilidades de participao na sociedade, uma vez que se reduzem os contactos com os autctones (Kempen e zekren, 1998: 1632; Blom, 1999: 298). Ainda segundo estes especialistas, isto revela-se particularmente desvantajoso em termos de acesso ao mercado de trabalho e de uma participao escolar bem sucedida por parte dos descendentes de imigrantes que contribua para reforar as trajectrias de ascenso social geracional. E embora reconheamos a pertinncia destas observaes, designadamente em termos da construo de uma sociedade mais solidria e inclusiva, elas baseiam-se numa perspectiva claramente integracionista, que concebe a trajectria dos imigrantes nas sociedades de acolhimento como um processo unidireccional, em que apenas os que chegam devem mudar. Contrariando esta ideia, deve referir-se que os bairros predominantemente tnicos so portadores de recursos muito importantes para os imigrantes e as minorias, quer em termos de satisfao de necessidades sociais e culturais especficas, quer em termos de contactos ou mesmo de acesso ao mercado de emprego. Como referem Kestelot e Cortie (1998: 1845-1846) para Bruxelas, as estratgias econmicas e sociais dos imigrantes, nomeadamente em situaes de crise, tiram forte partido das redes de solidariedade que envolvem conterrneos, o que tem como consequncia um reforo das ligaes aos bairros residenciais de carcter tnico. Por ltimo, a segregao efectivamente problemtica quando a minoria tnica est inserida num espao social e urbanisticamente degradado, que efectivamente coarcta oportunidades. Com efeito, o problema reside nos espaos em que a segregao tnica(42)Espaos e Expresses de Conflito e Tenso entre Autctones, Minorias Migrantes e No Migrantes na rea Metropolitana de Lisboa

coincide com a segregao social, isto , nos locais onde as minorias pobres esto sobrerrepresentadas e se reproduzem processos de excluso como o desemprego, a desvalorizao de mecanismos de sociabilizao formal como o ensino, e o desenvolvimento de culturas de ilegalidade ligadas droga, violncia e criminalidade. Contudo, a maioria dos bairros tnicos europeus e os portugueses no so excepo so marcados por uma razovel heterogeneidade das populaes e por um nvel de abertura ao exterior no negligencivel. A importncia da racializao ou etnicizao enquanto marcas sociais distintivas tem um significado bastante menor nas sociedades da Europa do Sul do que na sociedade norte-americana e mesmo nas sociedades inglesa ou holandesa, com as suas categorizaes dos grupos ou minorias tnicas. Como refere Wacquant (1996: 261-262), a propsito de Paris, a grande fonte de conflituosidade nos bairros degradados relaciona-se com as fortes tenses entre os jovens, frequentemente descendentes de migrantes, mas no necessariamente de uma nica origem, e os restantes grupos sociais. Este tipo de clivagens, presente em muitas cidades europeias, s parcialmente se relaciona com eventuais desajustes associados origem tnica, sendo muito mais o produto do contexto scio-geogrfico de destino, no apenas ao nvel local (o bairro) mas tambm ao nvel institucional e relacional. Em geral, esta discusso em torno da problemtica da segregao residencial de grupos tnicos e de imigrantes pobres acaba por ser colocada sob a forma da gerao de guetos ou da denominada guetizao. Este contexto tem levado diversos investigadores que analisam o fenmeno de segregao residencial de base tnica nas cidades da Europa a procurar pronunciar-se acerca da existncia ou no de guetos. Na bibliografia cientfica, um gueto, em sentido estrito, corresponde a uma rea onde a totalidade da populao residente pertence ao mesmo grupo tnico ou racial, verificando-se tambm que quase toda a populao da cidade (ou regio) que pertence a esse grupo se concentra no gueto (est pouco presente noutros bairros) (Peach, 1996: 216-217). Amersfoort (1990) junta a esta definio a componente institucional, que significa que a concentrao do grupo tnico no gueto o resultado de um processo no desejado e de algum modo coercivo, imposto por actores sociais externos ao grupo (proprietrios urbanos, autoridades municipais e planeadores, etc.). Tambm presente na acepo de gueto est a noo de fechamento, isto , de reduo das relaes daquela entidade espacial com o exterior,Espaos e Expresses de Conflito e Tenso entre Autctones, Minorias Migrantes e No Migrantes na rea Metropolitana de Lisboa

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emergindo barreiras simblicas (imagem de espao violento, degradado, sem atractivos) e por vezes fsicas (muitos destes bairros so circundados por linhas de caminho-de-ferro e auto-estradas ou escondidos da envolvente por grandes cartazes publicitrios) que limitam a interaco, sobretudo no sentido fora-dentro. Frequentemente, so bairros e zonas residenciais desintegrados da malha urbana; no discurso popular e meditico, so considerados responsveis pela criminalidade, venda de droga e insegurana urbana. Este conceito mais estrito de gueto tem origem na anlise das concentraes espaciais da populao negra nas metrpoles americanas que, entre o incio do sculo XX e os anos 40, se deslocou em grande nmero para as cidades em rpida industrializao (sobretudo do Nordeste), sendo de algum modo forada a concentrar-se quase exclusivamente em determinadas reas residenciais, onde constitua a quase totalidade dos habitantes (Massey e Denton, 1993). Os fortssimos nveis de segregao e isolamento espacial dos negros residentes nos guetos das cidades americanas mantinham-se to elevados no incio dos anos 90 que Massey e Denton (1993: 74-78) se referem a estas reas como hipersegregadas. Partindo desta noo, diversos investigadores tm referido a inexistncia de guetos nas cidades europeias, como destacado por Peach (1996) para o caso ingls, por Blom (1999) para Oslo, por Tosi e Lombardi (1998) para as cidades do Norte de Itlia e por Musterd, Ostendorf e Breebaart (1998) para vrias metrpoles do norte do continente (Paris, Amesterdo, Bruxelas, Manchester, Londres, Frankfurt-am-Main, Dsseldorf e Estocolmo). Efectivamente, na maioria destas cidades os bairros tnicos so caracterizados, no s por uma mistura entre populao autctone e alctone, mas tambm pela coexistncia de diversos grupos minoritrios de origem imigrante. Assim sendo, no fcil efectuar leituras que acentuam o vector tnico como a nica linha de interpretao possvel ou mesmo a linha de interpretao dominante. Neste mbito, e na sequncia de estudos anteriores, procuraremos demonstrar adiante que tambm a rea Metropolitana de Lisboa marcada pela inexistncia de guetos tnicos ou, pelo menos, que estes correspondem a situaes excepcionais, no s em termos de frequncia, mas tambm relativamente s caractersticas que possuem.(44)Espaos e Expresses de Conflito e Tenso entre Autctones, Minorias Migrantes e No Migrantes na rea Metropolitana de Lisboa

Com efeito, a situao predominante, como veremos, corresponde emergncia de guetos de excluso, onde aparece frequentemente sobre-representada uma minoria tnica, em muitos casos coexistindo, quer com a populao autctone, quer com outros grupos minoritrios (PE-Portugal, 2005). Os guetos de excluso so lugares estigmatizados no olhar da sociedade. Estigmatizar no mais do que uma forma de categorizao de uma entidade (indivduo, grupo de indivduos, lugar, bairro) com base em certos atributos que fornecem informao social e que so transmitidos atravs de signos e smbolos que chamam a ateno. A estigmatizao que recai sobre indivduos, grupos e espaos residenciais cria relaes de distncia e despersonalizao das entidades estigmatizadas. Esses espaos de excluso tendem a assumir notoriedade meditica e pblica, so locais famosos, os seus habitantes ficam demasiado expostos a esta publicidade exagerada e geralmente negativa. So lugares que s pelo seu nome Spangen em Roterdo, Tres Mil Viviendas em Sevilha, Azinhaga dos Besouros ou Cova da Moura em Lisboa, Les 4000 (La Courneuve), Pablo Picasso (Nanterre) ou Les Bosquets (Montfermeil) na periferia de Paris produzem perturbao, so percepcionados como um mal da sociedade. Qualquer acontecimento negativo assume um enfoque desmesurado na comunicao social, transformando esse evento em espectculo da violncia ou do comportamento anti-social. Frequentemente, os habitantes destes lugares no so vistos publicamente como pessoas com uma personalidade individual, mas como uma categoria social. Os estigmatizados defendem-se tambm do exterior que os repudia, podendo adoptar condutas e atitudes de incomunicao, j que o exterior poder ser intudo como inimigo (poltico, tcnico de interveno social, jornalista, etc.). Apesar de habitarem em espaos de constrangimento, os residentes podem tambm pr em prtica formas de resistncia face ao modo como so percepcionados e tratados pelo exterior que, no extremo, acabam por conduzir ou acentuar os comportamentos de provocao e violncia, sobretudo entre (alguns) jovens. Goffman (1963/1988) afirma que o estigmatizado tende a reunir-se com outros estigmatizados, formando-se assim pequenos grupos sociais que correspondem a uma espcieEspaos e Expresses de Conflito e Tenso entre Autctones, Minorias Migrantes e No Migrantes na rea Metropolitana de Lisboa

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de mundos alternativos. Ainda que sobre estas reas se intensifique o controlo policial e institucional, tal no significa que evoluam no sentido de zonas no problemticas ou crticas, pois o maior controlo institucional poder gerar uma maior desejo de quebrar as regras, isto , de assumir comportamentos desviantes e agressivos. Possivelmente isso que acontece em alguns dos locais que constituem casos de estudo e que mais adiante desenvolveremos. Apesar destas constataes, que apontam para a centralidade das desvantagens socioespaciais nos processos conducentes gerao de conflitos e violncia, a enfatizao da especificidade tnica de alguns bairros, mesmo que ocorra em contexto de relativa diversidade de populaes, acaba, nalguns discursos acadmicos, e sobretudo ao nvel do discurso poltico, por se sobrepor relevncia concedida s questes sociais e urbansticas. Por exemplo, numa palestra efectuada em 199910, o ento Alto Comissrio para a Imigrao e Minorias tnicas de Portugal afirmava que a soluo para os problemas associados ao espao residencial das minorias de origem no europeia em Lisboa, passava pela sua disperso. Diversas cidades europeias (Roterdo, Bruxelas, Frankfurt-am-Main e outras) experimentaram implementar, de modo mais ou menos efectivo, polticas de disperso dos imigrantes e das minorias tnicas (Musterd, Ostendorf e Breebaart, 1998: 188-189). Na maioria dos casos, este tipo de interveno nunca foi efectivamente formalizado (caso de Roterdo, nos anos 70 e 80) e noutros, a sua implementao, embora legalmente possvel, nunca foi aplicada (caso dos municpios belgas). Em nossa opinio, considerar a disperso como o elemento primordial da poltica urbana a prosseguir nas reas residenciais problemticas onde se concentram as minorias tnicas faz pouco sentido, uma vez que se trata de um problema de privao social e no de natureza tnica e demogrfica. Por outras palavras, no se trata de dispersar as minorias, naturalmente sobrerrepresentadas na populao de menores recursos residente nestes bairros, mas de criar condies para que estes se qualifiquem, modifiquem a sua imagem e se tornem parte integrante da cidade, o que passa por processos de destruio e realojamento nos casos 10 IV Conferncia do Programa Internacional de degradao irreversvel, e de renovao fsica, social e Metropolis, realizada em econmica nos restantes.Dezembro de 1999, em Washington.

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verdade que criticamos as reas de habitao social marcadas pelo semigigantismo ou gigantismo (por exemplo, Chelas, em Lisboa, ou Apelao, em Loures) onde acabam por se reproduzir (ou mesmo agravar) os problemas que j vinham dos bairros de barracas ou de alojamento precrio, e que consideramos positiva alguma disperso espacial nos projectos de realojamento. Contudo, pensamos que as questes centrais residem na gerao de dinmicas sociais de base, envolvendo os residentes no processo de transformao urbanstica e socioeconmica e na qualificao, seja como forma de assegurar qualidade nos novos bairros de realojamento ou de revalorizar e renovar as reas que entraram em declnio, ao abrigo de programas como o PER, as iniciativas comunitrias URBAN I e II, o PROQUAL (requalificao da rea Metropolitana de Lisboa) e, mais recentemente, a Iniciativa Bairros Crticos11 que, nas fases de diagnstico e desenho da interveno, incorporou mecanismos muito fortes de participao das instituies pblicas e dos residentes, no apenas ao nvel das sugestes, mas tambm da pesquisa de solues negociadas (INH, 2006). Finalmente, assumir a disperso de um determinado grupo minoritrio como componente central de projectos de interveno pblica pouco aceitvel, no contexto de uma sociedade democrtica que entende os desejos e a participao das populaes como elementos a respeitar e a promover. De resto, a maioria das autoridades nacionais e locais que pensaram implementar polticas de disperso das minorias abandonaram de forma mais ou menos rpida esta ideia (Musterd, Ostendorf e Breebaart, 1998: 193), o que parece comprovar o seu reduzido contributo para a melhoria das situaes de degradao social e urbanstica que envolvem populaes imigradas.

11 A Iniciativa Operaes de Qualificao e Reinsero Urbana de Bairros Crticos tutelada pelo Instituto Nacional da Habitao e enquadrada pela Secretaria de Estado do Ordenamento do Territrio e Cidades, tendo origem na Resoluo do Conselho de Ministros n. 143/2005, de 2 de Agosto (DR n. 172, Srie I B, de 7 de Setembro). Comeou como um Programa Experimental destinado a desenhar processos de interveno multiinstitucionais e multi-fundos em trs bairros problemticos do ponto de vista social e urbanstico: Cova da Moura (Amadora), Vale da Amoreira (Moita) e Lagarteiro (Porto).

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1.2 PROBLEMATIZAO, MODELO ANALTICO E ROTEIRO METODOLGICO A investigao cujos resultados se expressam neste relatrio reveste, claramente, um carcter exploratrio. Pela dimenso dos recursos disponveis e, sobretudo, pelo tempo de desenvolvimento de que se dispunha, tornava-se impossvel explorar de forma mais aprofundada todas as dimenses analticas includas no trabalho. Assumindo um objecto de estudo complexo que resulta do cruzamento de populaes imigradas (componente social) e bairros onde estas esto sobrerrepresentadas (componente espacial), tornou-se evidente, desde o incio, que o aprofundamento de anlises que remetem para o conhecimento de processos cujas manifestaes se prolongam no tempo s seria possvel com a utilizao de mtodos (observao participante, entrevistas com follow-ups peridicos com o objectivo de avaliar a evoluo dos indivduos e dos grupos relativamente sua perspectiva e envolvimento nos conflitos12) impossveis de aplicar no contexto de uma investigao desenvolvida num perodo de tempo relativamente curto. As afirmaes efectuadas no pretendem, naturalmente, servir de justificao para quaisquer limitaes existentes neste estudo, mas to s clarificar os seus contornos em termos dos objectivos possveis de investigao. Esclarecido isto, importa agora identificar as questes-chave a que se pretendeu responder com o estudo, 12 Uma vez que os protagobem como esquematizar o modelo analtico e explicitar o roteiro nistas do desvio e dos conflimetodolgico que foi seguido para lhes responder. tos so, essencialmente,jovens, torna-se