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400 Estilos da Clínica, 2010, 15(2), 130-149 RESUMO Neste trabalho pretendemos des- tacar as relações entre alguns fe- nômenos da contemporaneidade e seus efeitos no corpo infantil. Partimos da hipótese de que a lógica das relações utilitaristas, o ideal consumista e a fragilida- de simbólica na atualidade con- tribuem tanto para a formação de sintomas no corpo da crian- ça quanto para o fato de o cor- po infantil ser tomado como ob- jeto pelo outro. A partir da análise de um fragmento clíni- co, concluímos que o cenário con- temporâneo facilita a existência de impasses significativos no pro- cesso de constituição dos sujei- tos. Tais impasses resultam na dificuldade da passagem do gozo do corpo à linguagem. Descritores: contemporanei- dade; subjetividade e corpo; in- fância; psicanálise. Artigo A EFEITOS DA INEFICÁCIA SIMBÓLICA NO CORPO INFANTIL Caio César S. C. Próchono Cristina Leles Silva João Luiz Leitão Paravidini contemporaneidade e suas marcas na subjetividade humana tem sido objeto de estudo de vários campos do saber: da sociologia, da filosofia e da psicanálise, sendo que suas características mais destacadas são o apagamento ou enfraquecimento dos laços simbólicos e as relações marcadas pelo ideal consumista. Numa lógica utilitarista, os sujeitos tor- nam-se objetos a serem descartados, eliminados como qualquer bem de consumo. (Bauman, 1998, 1999, 2008); (Melman, 2003a); (Minerbo, 2007, 2009) O que vivemos na atualidade é a falha do sím- bolo enquanto mediador das relações dos homens com os outros e até com o próprio corpo (Minerbo, Professor de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia. Mestranda em Psicologia Aplicada na Universidade Federal de Uberlândia. Professor Adjunto do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia.

RESUMO INEFICÁCIA SIMBÓLICA NO CORPO INFANTILpepsic.bvsalud.org/pdf/estic/v15n2/a08v15n2.pdf · Partimos da hipótese de que a lógica das relações utilitaristas, o ideal consumista

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400 Estilos da Clínica, 2010, 15(2), 130-149

RESUMO

Neste trabalho pretendemos des-tacar as relações entre alguns fe-nômenos da contemporaneidadee seus efeitos no corpo infantil.Partimos da hipótese de que alógica das relações utilitaristas,o ideal consumista e a fragilida-de simbólica na atualidade con-tribuem tanto para a formaçãode sintomas no corpo da crian-ça quanto para o fato de o cor-po infantil ser tomado como ob-jeto pelo outro. A partir daanálise de um fragmento clíni-co, concluímos que o cenário con-temporâneo facilita a existênciade impasses significativos no pro-cesso de constituição dos sujei-tos. Tais impasses resultam nadificuldade da passagem do gozodo corpo à linguagem.Descritores: contemporanei-dade; subjetividade e corpo; in-fância; psicanálise.

Artigo

A

EFEITOS DAINEFICÁCIA

SIMBÓLICA NOCORPO INFANTIL

Caio César S. C. PróchonoCristina Leles Silva

João Luiz Leitão Paravidini

contemporaneidade e suas marcas nasubjetividade humana tem sido objeto de estudo devários campos do saber: da sociologia, da filosofia eda psicanálise, sendo que suas características maisdestacadas são o apagamento ou enfraquecimentodos laços simbólicos e as relações marcadas pelo idealconsumista. Numa lógica utilitarista, os sujeitos tor-nam-se objetos a serem descartados, eliminadoscomo qualquer bem de consumo. (Bauman, 1998,1999, 2008); (Melman, 2003a); (Minerbo, 2007, 2009)

O que vivemos na atualidade é a falha do sím-bolo enquanto mediador das relações dos homenscom os outros e até com o próprio corpo (Minerbo,

Professor de Psicologia da Universidade

Federal de Uberlândia.

Mestranda em Psicologia Aplicada na

Universidade Federal de Uberlândia.

Professor Adjunto do Instituto de Psicologia

da Universidade Federal de Uberlândia.

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2007), daí o aumento das interven-ções na própria carne (body art, cirur-gias plásticas indiscriminadas, etc.) eo aparecimento das novas formaçõespsicopatológicas. Para alguns psicana-listas, não estamos mais no campo darepressão dos desejos que marcou osurgimento da psicanálise. Estamos,na atualidade, no campo do gozo semimpedimentos. Melman (2003a)acrescenta que temos, portanto, a con-figuração de uma “nova economiapsíquica”.

Esta “nova economia psíquica”produz formações sintomáticas carac-terísticas e o corpo da criança nãopassa ileso por estas produções. O quetemos assistido, na verdade, é um cor-po que está marcado por essa novalógica, um corpo objetificado, violen-tado, que sofre pela falha, pela ausên-cia dos traços simbólicos que noshumaniza, um corpo entregue ao ou-tro ou ao próprio gozo.

Neste texto, pretendemos apon-tar como as falhas ou ausências demarcas simbólicas produzem efeitosno corpo infantil, ora tomado comoobjeto, ora cenário da formação desintomas. A ausência ou falhas des-sas marcas só podem ser compreen-didas na relação com o Outro, encar-nado pela mãe, mas que se refere àlinguagem, às nossas produções cul-turais e sociais. A partir de um crimecontemporâneo, apontaremos omodo como a lógica utilitarista apa-rece na relação adulto-criança na con-temporaneidade e analisaremos osefeitos da falência do símbolo na for-

mação de sintomas na criança e noprocesso de constituição do sujeito,utilizando como aporte um fragmen-to de um caso clínico.

O cenário contemporâneo

Como já assinalamos, a contem-poraneidade é marcada por uma novalógica, na verdade, a do livre merca-do que impõe a necessidade do con-sumo desenfreado. Nesta lógica, pro-duzem-se identidades efêmeras e asrelações entre sujeitos perdem a mar-ca simbólica, tornando-se utilitaristas.

De acordo com Bauman (1998),a pós-modernidade é marcada poruma permanente incerteza: “há pou-ca coisa no mundo que se possa con-siderar sólida e digna de confiança”(p. 36). Daí o nome dado pelo autorde modernidade líquida aos temposatuais. A liquefação das certezas e opermanente convite ao consumoimediato resultam na fragilidade doslaços sociais, na recusa de qualquerforma de fixação de compromisso –amor líquido – e na construção deidentidades provisórias e efêmeras –identidade líquida. Para o autor, oshomens pós-modernos “acham ainfixidez de sua situação suficiente-mente atrativa para prevalecer sobrea aflição da incerteza” (Bauman,1998, p. 22). O apelo ao consumoexige que os indivíduos estejam“abertos” às novidades do mercadoe que possam ser permanentemente

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seduzidos pelas ofertas. Para melhorcompreensão do nosso tempo, cita-mos Bauman (1998): “neste mundo,tudo pode acontecer e tudo pode serfeito, mas nada pode ser feito uma vezpor todas – e o que quer que aconte-ça chega sem se anunciar e vai-seembora sem aviso. Nesse mundo, oslaços são dissimulados em encontrossucessivos, as identidades em másca-ras sucessivamente usadas, a históriade vida numa série de episódios cujaúnica consequência duradoura é suaigualmente efêmera memória” (p. 36).

Nesse ambiente efêmero, cons-troem-se identidades líquidas, incons-tantes. Os indivíduos não possuemmais características delimitadas, his-tórias que os definam são sujeitos dopresente, sem passado ou projeto defuturo.

Bauman (1999) acrescenta aindaque passamos de uma sociedade deprodutores para uma sociedade deconsumidores, o que implica em gran-des consequências em todos os aspec-tos da sociedade, da cultura e da vidaindividual. Segundo o autor, a grandediferença é que se a sociedade mo-derna exigia a produção de operáriose produtores, a sociedade pós-moder-na exige que os indivíduos sejam eter-nos consumidores: “a maneira comoa sociedade atual molda seus mem-bros é ditada primeiro e acima de tudopelo dever de desempenhar o papelde consumidor” (p. 88).

Essa “exigência” implica nummodelo a ser seguido: o do consumi-dor ideal. Dessa forma, os sujeitos

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devem viver para consumir, buscan-do sempre a satisfação imediata deseus desejos sempre voláteis. No en-tanto, o consumidor ideal não podejamais se satisfazer por um longo tem-po com os bens que consome, temque ser novamente seduzido, tem queestar em movimento, em alerta. Deacordo com Carrol (sem data) citadopor Bauman (1999), “A índole destasociedade proclama: caso esteja sesentindo mal, coma!... O reflexoconsumista é melancólico, supondoque o mal-estar adquire a forma dese sentir vazio, frio, deprimido – comnecessidade de se encher de coisasquentes, ricas, vitais. Claro que nãoprecisa ser comida, como na cançãodos Beatles: sinto-me feliz por dentro(“feel happy inside”). Suntuoso é ocaminho para a salvação – consuma esinta-se bem!... Há também ainquietude, a mania de mudanças cons-tantes, de movimento, de diversidade– ficar sentado, parado, é a morte... Oconsumidor é assim o análogo socialda psicopatologia da depressão, comseus sintomas gêmeos em choque: onervosismo e a insônia” (p. 90).

Dessa forma, para Bauman(1998), se o mal-estar da modernida-de advinha, como assegurava Freud,da renúncia aos instintos e aos praze-res em troca da segurança de umasociedade que prosperaria pela or-dem, o mal-estar da pós-modernida-de provém “de uma espécie de liber-dade de procura do prazer que tolerauma segurança individual pequenademais” (p. 10).

No mesmo sentido, Minerbo(2009) nos aponta que, se o sujeitomoderno padecia por ter que se ade-quar às normas e exigências das ins-tituições que fixavam os valores ereferências identitárias, o sujeito pós-moderno sofre pela ausência de mar-cas simbólicas que o filie à cultura.“Podemos entender a pós-moderni-dade como este momento da históriada civilização em que o laço simbóli-co que une significante e significadoé corrediço, e não se fixa em lugaralgum. Em outras palavras, a pós-modernidade se caracteriza pela fra-gilidade do símbolo” (Minerbo, 2009,p. 41).

Para Melman (2003b), um dosgrandes fenômenos da atualidade é aqueda dos grandes textos fundadoresda cultura, o que significa que há, nacontemporaneidade, um desinvesti-mento do lugar do Outro. Segundoo autor, é como se houvesse uma fo-raclusão desse Outro, que seria re-sultante de várias razões como: aqueda da ideologia comunista, o de-senvolvimento da economia liberal,progressos tecnológicos como aInternet, dentre outros, e “esse des-ligamento do lugar do Outro marcatambém um desligamento em rela-ção à linguagem” (p. 58). É como senós, sujeitos pós-modernos, estivés-semos à mercê do outro enquantosemelhante, já que não mais nos re-ferimos ao Outro simbólico queestá falido. Essa queda das marcassimbólicas nas relações produz inú-meros efeitos individuais e sociais,

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sendo um desses efeitos a produção de sintomas no corpo e suacoisificação.

Os corpos que teriam que ser, no advento da modernidade,domesticados e docilizados para a manutenção da ordem burguesa,agora, no cenário pós-moderno, devem ser hiperinvestidos, torna-dos desejáveis aos consumidores, como objeto de consumo de umoutro gozador e desmedido. Neste cenário, destacam-se patologiascujos sintomas inscrevem-se no corpo, como os transtornos ali-mentares, as somatizações e os quadros que apresentam um certoempobrecimento de conteúdos simbólicos, como as depressões eas compulsões. Tais patologias contemporâneas “trazem à baila umdomínio do psíquico que não diz respeito ao campo das representa-ções recalcadas” (Maia, 2004, p. 120). Esses quadros representam amarca do vazio da representação no processo de constituição dosujeito e de seus sintomas.

Assim, um novo desafio se impõe à psicanálise: como encararesses sintomas que se ancoram no corpo, mas parecem não maisremeter a um sentido simbólico, representado, inscrito numa or-dem linguageira? Para pensarmos esta questão, torna-se impor-tante traçar um breve percurso da questão do corpo na teoria psi-canalítica.

O corpo na psicanálise

O surgimento da psicanálise está intrinsecamente ligado à exis-tência da Ciência Moderna. No entanto, segundo Elia (2000), aque-la não se reduz a esta. O que a Psicanálise realiza, na verdade, é umcorte subversivo que vai redimensionar a questão do sujeito no cam-po das ciências. Desse modo, se as Ciências Positivistas polarizamos registros do empírico e do espiritual – do corpo e da mente –realizando uma disjunção entre tais registros, a escuta freudiana dodiscurso das histéricas, por sua vez, traz de volta o sujeito para ocorpo que habita. Sobre este aspecto, Birman (2003) destaca que“desde o início dos anos 90, no século XIX, Freud já criticava amedicina positivista então hegemônica no campo dos cuidados. Issoporque essa se centrava apenas numa leitura objetivista dos sinto-mas, esquecendo-se, pois, de uma coisa óbvia, qual seja, de que erasempre pela linguagem que os enfermos comunicavam os seus ma-

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les para os médicos. Estabelecia aque-le então uma distinção fundamental,considerando este ponto de partida,entre a narrativa dos sofrimentos pe-los enfermos, que tinham no psíqui-co o seu pólo de referência, e a enfer-midade, que tinha no somático o seureferente primordial” (p. 5).

De acordo com esse autor, o dis-curso freudiano realiza uma rupturaepistemológica significativa que supe-ra o dualismo cartesiano corpo/espí-rito e que confere uma nova carto-grafia ao corpo que sofre. Este corponão mais será tomado em sua dimen-são orgânica pura, mas será compre-endido como ponto de partida e dechegada da constituição subjetiva.

Se os estudos sobre a histeriaconferem um novo lugar ao corpo,por outro lado, na opinião de mui-tos, afastam a ciência psicanalíticadeste. Sobre esse “afastamento” dateorização freudiana, Ferraz (2007)considera que “o corpo, em psica-nálise, é essencialmente um “resto”,e que tal “resto” é simultaneamenteresto da teoria – aquilo que foi, emdeterminado momento, abandonadocomo objeto psicanalítico – e “res-to” do suj ei t o psíqu ico em suaontogênese” (p. 66).

Desse modo, esse autor apontaque o estatuto do corpo na psicanáli-se segue uma trajetória tortuosa, sen-do, num primeiro momento da teori-zação freudiana, deixado de lado,dando o lugar central aos sintomaspsiconeuróticos. No entanto, segun-do Ferraz (2007), a retomada do cor-

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po somático como objeto da psica-nálise ocorrerá em Além do princípio doprazer (1920), pois este trabalho “...se trata exatamente de uma psicolo-gia do traumático, ou seja, do não-re-presentável” (p.69).

A distinção entre corpo erógenoe corpo somático, apontada porFerraz (2007), nos é essencial paracompreendermos essa retomada freu-diana. O conceito de corpo erógenoou corpo representado surge a partirda investigação freudiana sobre a his-teria. O corpo histérico, palco dos sin-tomas conversivos, é um corpolibidinizado, corpo da representação.O corpo somático se refere ao corpobiológico, soma, aquele que não foirepresentado, erogeneizado e, portan-to, inscrito numa ordem simbólica.“Enquanto o processo de conversão,na histeria, opera sobre o corpo re-presentado, a somatização recai sobreo corpo biológico ou somático; recaiexatamente sobre a função não sub-vertida – logo, não representada. Eaqui nos encontramos com o papeldefinitivo da pulsão de morte naeclosão das patologias não-neuróticas,ligadas ao registro do corpo real”(Ferraz, 2007, p. 70).

Compartilhamos com o autor aidéia de que o corpo em sua dimen-são somática será retomado por Freudno desenvolvimento de sua teoria so-bre as pulsões. Destacamos, juntocom Freud (1915/2004), sua impor-tância enquanto conceito que articulaas dimensões biológicas e psíquicas dosujeito humano. “Se abordarmos ago-

ra a vida psíquica do ponto de vistabiológico a ‘pulsão’ nos aparecerácomo conceito-limite entre o psíqui-co e o somático, como o represen-tante psíquico dos estímulos que pro-vêm do interior do corpo e alcançama psique, como uma medida da exi-gência de trabalho imposta ao psíqui-co em consequência de sua relaçãocom o corpo” (p. 148). Para Birman(2003), o esforço de Freud sempre foio de superar o dualismo cartesiano,sendo a teoria das pulsões o principalaparato conceitual que tentará resol-ver esse impasse.

Considerado como um dos prin-cipais conceitos freudiano, o concei-to de pulsão, mais sistematicamentedesenvolvido por Freud a partir de1905, no trabalho Três ensaios sobre ateoria da sexualidade, servirá como pon-to de virada da teorização freudianasobre o conflito psíquico. Freud dei-xará de entendê-lo como um conflitoentre ideias/representações incompa-tíveis e passará a compreendê-locomo um conflito entre pulsões(Hans, 2004). No prefácio à quartaedição destes ensaios, Freud (1905/1996) observa que este trabalho fazfronteira com a biologia.

Não pretendemos aqui refazertodo o percurso teórico desse con-ceito tão caro à psicanálise. Mas, des-tacamos que será a teoria das pulsõesque trará a articulação organismo-cor-po ou biológico-psíquico como fun-damento da constituição do psiquis-mo humano. Desse modo, desde seunascimento, o bebê humano será to-

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mado por sensações internas, provenientes de seu organismo, asquais lhe trarão desconforto e exigirão aplacamento. Será a capturadessas sensações pelo outro materno que irá inscrevê-las numa or-dem imaginária e simbólica. Nesse sentido, Jerusalisnky afirma que“A captura do corpo por parte de uma cadeia significante o ordenaem um olhar, escutar, dirigir-se, receber, entregar etc., em que asfunções nutritícias ou excrementícias, ou os princípios perceptivosvisuais da Gestalt-Theorie, cedem lugar a este ordenamento simbó-lico do corpo operado por um Outro, que rearma esse corpo emuma posição imaginária” (p. 25).

Assim, será por meio da inserção do infans no campo da lingua-gem ou do Outro, da cultura, que será possível a inscrição signifi-cante da pulsão enquanto representante psíquico do biológico. Ditode outro modo, será o Outro que ao operar o mal-estar do bebê – eisso exige que este Outro seja não-todo – delimitará a fonte da pulsão,direcionará sua força e articulará a posição do objeto em relação aum fim (Jerusalinsky, 2007).

Mas, o que ocorre quando esse outro falha em sua dimensãosimbólica? Quando se apresenta como não barrado e não faltante e,portanto, toma o corpo infantil como objeto para aplacamento deseu próprio mal-estar? Ou quando, por condições subjetivas pró-prias ou contingências sociais, não confere um lugar significante aocorpo infantil? Quais efeitos, no corpo infantil, podemos observarcomo resultantes dessa falência simbólica do Outro? Passaremos aproblematizar essas questões.

Corpo infantil: objeto de consumo

Como abordamos, uma das marcas da contemporaneidade sãoas relações utilitaristas, nas quais os indivíduos são tomados comoobjeto de consumo. Nesse sentido, se o outro com o qual me relaci-ono é mais um objeto com o qual me satisfaço temporariamente,não posso reconhecê-lo como sujeito de desejo, daí a necessidadede encará-lo como objeto ou puro corpo.

No contexto da sociedade de consumo, a família se configuranuma nova ordem. Se antes, a função da família era a transmissãoda cultura, agora, os pais demandam que os filhos se ofereçam comoobjeto de consumo. Daí as inúmeras atividades (línguas estrangei-

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ras, informática etc.) nas quais ascrianças são inseridas desde bem pe-quenas para se tornarem adultos supercompetentes, ou ainda, terem altovalor no mercado. Assim, só resta aospequenos desempenharem funçõesque atendam a essa demanda, colo-cando-se no lugar de objeto do ou-tro. Para Kupfer e Bernardino (2008),a criança, na contemporaneidade, échamada a se posicionar como “aque-la através da qual o Outro social con-cederia finalmente o gozo a todos dafamília.” (p. 674).

Para exemplificarmos essa posi-ção de objeto que a criança e seu cor-po ocupam na nossa sociedade, fare-mos uma breve consideração de umcrime contemporâneo. Tal crime fi-cou conhecido como caso IsabellaNardoni e refere-se à morte de umamenina brasileira, de cinco anos deidade, que foi jogada do apartamentode seu pai, em São Paulo, na noite dodia 29 de março de 2008. Não realiza-remos aqui, um detalhamento do caso,mas destacaremos a repercussão so-cial e midiática que teve, por entender-mos que tal repercussão pode ser ex-plicada pelo fato do crime seremblemático da forma como a socie-dade atual tende a lidar com a criança.

O crime não é extraordinário seconsiderarmos o número de casos deviolência na infância existentes nopaís. No entanto, o que chama a aten-ção é o modo como a mídia destacouo fato e como milhares de pessoasacompanharam pela televisão, jornaise até pessoalmente o caso. Durante

dias, não se falava noutras coisas nopaís. Pessoas se deslocavam em dis-tâncias para conhecer a cena do cri-me, atentas a todas informações queeram repetidas infinitamente pelosjornalistas.

Diante de milhares de boletinsinformativos sobre o caso, um noschamou a atenção sobremaneira edestacamos o título da reportagempublicada no jornal O Globo: “Vejacomo foi a reconstituição da mortede Isabella. Pai e madrasta não parti-ciparam, alegando divergir da versãoda polícia. Boneca foi usada para si-mular a presença da garota, mas nãofoi jogada pela janela” (O Globo, 27/04/08). Aqui destacamos a frase “Bo-neca foi usada para simular a presen-ça da garota, mas não foi jogada pelajanela”, que nos indica que esperava-se que, na reconstituição do crime,fosse repetido o ato de jogar a bone-ca/criança pela janela. Esta expecta-tiva parece nos indicar que o que cha-ma a atenção de milhares de pessoasé o fato da menina ter sido jogada pelajanela, tal como um objeto/boneca.Mas, aqui não temos a ingenuidadede pensar que o fascínio pelo ato seexplica somente pelo horror/penacomo muitos afirmavam. A comoçãoprovocada nos indica que o crime re-aliza, na radicalidade, o desejo de to-mar uma criança como objeto quepode tanto satisfazer o gozo do adul-to quanto ser descartado caso não osatisfaça de alguma maneira.

Sobre este tipo de crime e suarelação com o enfraquecimento dos

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laços simbólicos, Minerbo (2007) nosfala de forma muito contundente quetais “crimes contemporâneos pare-cem determinados por uma lógicautilitarista: pessoas passaram a ser vis-tas como coisas que podem ser usa-das das mais variadas maneiras, ouentão descartadas quando estorvam.Em minha interpretação desse fenô-meno social, essa lógica se relacionacom a desnaturação de certos siste-mas simbólicos” (p. 136).

Nesse sentido, podemos afirmarque será em seu corpo ou, na “pró-pria carne”, que a criança sofrerá osefeitos dessa lógica de relações quemarca a contemporaneidade. Nessalógica, o corpo pode ser descartadocomo qualquer objeto que cause in-satisfação ao consumidor, pois comodestaca Baumam (2008) “não se es-pera dos consumidores que juremlealdade aos objetos que obtêm coma intenção de consumir.” (p. 31).

Corpo infantil: cenário desintomas

Além de tomar o corpo o infan-til como objeto, a ausência ou enfra-quecimento da mediação simbólicacontribui para a formação de sinto-mas no corpo da criança, daí, na atua-lidade, o grande número de casos dehiperatividade que chegam aos con-sultórios psicológicos e psiquiátricos.Esclarecemos que nosso intuito nãoé propor que este fenômeno seja com-

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preendido de modo reducionista, ouseja, não pretendemos atribuir a es-tes quadros supostas etiologias so-cioculturais em detrimento de hipó-teses organicistas. Supomos, dessemodo, que o crescente número decasos diagnosticados como “hipera-tividade” reflete uma “...tendência dacontemporaneidade para redescreveras experiências humanas tendo comoreferência os parâmetros corporais”(Lima, 2004, p. 11) promovendo acriação de “bioidentidades”.

Acreditamos, portanto, que nocerne da sociedade de consumo, pro-duzem-se subjetividades que tendema ser reconhecidas no real do corpo(ou nas alterações neuroquímicas),inscrevendo-se aí os quadros cujasdescrições trazem sintomas corporais,como a agitação psicomotora na in-fância. Para nós, tais sintomas podemser compreendidos como mais umadas formas do “corpo” da criança es-tar à mercê da ineficácia do símbolo.

Outra característica da socieda-de de consumo apontada por Bauman(1999) nos parece interessante parapensarmos esses quadros de agitaçãopsicomotora na infância da contem-poraneidade. Segundo o autor, “Paraaumentar sua capacidade de consu-mo, os consumidores não devem nun-ca ter descanso. Precisam ser manti-dos acordados e em alerta sempre,continuamente expostos a novas ten-tações, num estado de excitação in-cessante – e também, com efeito, emestado de perpétua suspeita e prontainsatisfação” (p. 91).

Assim, a necessidade dos consu-midores estarem sempre em movi-mento, permanentemente seduzidose insatisfeitos parece refletir nos cor-pos infantis, já que muitos dos peque-nos pouco tempo se detêm em algumbrinquedo ou brincadeira passando deum objeto ao outro numa velocidadequase vertiginosa.

Meira (2004) realizou uma pes-quisa sobre as brincadeiras infantis naatualidade e conclui que há uma pre-valência de jogos artificiais e virtuaisentre crianças de classe média e alta.Segunda a autora, tais brincadeirasrestringem os movimentos corporaisdas crianças. Anestesiadas em frenteàs telas de games, as crianças de hojepouco colocam seus corpos em cenaem espaços de trocas simbólicas. Elaspouco inventam e se reinventam embrincadeiras. Daí “... quando vão àescola, movimentam seu corpo emdobro pelo que são rotuladas de hi-percinéticas” (p. 148).

Desse modo, o sintoma infantilde outrora aparece, no mundo atual,sob uma nova roupagem. Basta quetracemos um paralelo entre o célebrePequeno Hans dos primórdios da psi-canálise e tais quadros hiperativos daatualidade, para entendermos essanova formação sintomática. No casoanalisado por Freud (1909/1999), oque vemos é a construção de um sin-toma fóbico, em que o medo de ca-valos substitui aquilo que fora recal-cado, a saber, o temor da castração.Temos em Hans, portanto, um sinto-ma neurótico onde o símbolo (cava-

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lo) é colocado no lugar do afeto (an-gústia de castração). Já nos casos dehiperatividade, o que vemos é o cor-po infantil tomado pela ausência derepresentação, a pulsão sem seu re-presentante, daí um corpo super agi-tado, carente de contornos simbóli-cos eficazes.

Perfeito (2007), ao realizar umapesquisa acerca das transformaçõessociohistórico-culturais das funçõesparentais, concluiu que há, na atuali-dade, crises nas referências simbóli-cas. A autora acrescenta que nas con-dições atuais de tudo poder ser ou ter,“os pais se apresentam em demasiano nível das necessidades, oferecen-do recursos materiais, objetos, alimen-tos, mas falham em suas funções sim-bólicas” (p. 210).

Acreditamos que a falênciasimbólica dos pais, na contempora-neidade, relaciona-se com a mudan-ça da figura do pai que, segundoPetri (2008), “está hoje ocultada soba forma de um ajudante de mãe”. Aautora acrescenta ainda que “A exi-gência dos pais enquanto Outros re-ais com relação à criança sofre oatravessamento do discurso socialvigente, o qual, em nossa contem-poraneidade, remete-se à realizaçãode um ideal negador da castração”(p. 79).

Sabemos que, por negar a cas-tração, o sujeito “paga” com a for-mação do sintoma e que, na infância,a não operação da castração inviabili-za a retirada da criança do lugar deobjeto de gozo do Outro e, portanto,

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dificulta a renúncia do gozo do cor-po pela linguagem.

Nesse sentido, Kupfer e Bernar-dino (2009) relacionam o crescentenúmero de casos que apresentamsintomas de agitação motora na in-fância à desqualificação simbólica dopai na contemporaneidade; dito deoutro modo, os sintomas corporaisna infância parecem dizer dessa im-possibilidade de representar simboli-camente a falta do Outro, já que seráa função paterna que irá viabilizar aretirada da criança do lugar de objetodo outro materno. Para as autorasacima citadas, os sintomas de hipera-tividade seriam uma “reação, corpo-ral e não simbolizada, ao declínio dafunção paterna” (p. 51).

Em seguida, apresentaremos ofragmento de um caso clínico no in-tuito de ilustrar como a inoperânciado simbólico, muitas vezes, colocaimpasses significativos no caminho dapassagem do gozo do corpo para ogozo na linguagem. Tal passagem tor-na-se crucial no processo de consti-tuição do sujeito.

Vinícius: não te quero, masnão te deixo

Vinícius é um menino de 9 anos,que chega a um serviço de atençãoem saúde mental infantil com queixade agressividade, impulsividade, faltade limites e agitação. Nas palavras doprofissional que o encaminha para tal

serviço, Vinícius tem certo “excessode energia”. Tem dificuldades em serelacionar com outras crianças e con-ta com uma difícil trajetória de esco-larização, tendo sido expulso de vá-rias escolas.

Vinícius foi retirado do convíviocom a mãe biológica aos 9 meses devida pois sofria maus tratos. Segundorelato de Marta (mãe adotiva de Viní-cius), a mãe biológica “não suportavao choro dele” e o enrolava em cober-tores deixando-o debaixo da cama.Por isso, Vinícius foi abrigado quan-do ainda era bebê. Sobre esta ques-tão, Vinícius nos diz: “a minha outramãe não tinha leite, não tinha coisapra dar pra mim e me deixou lá”.Marta decidiu adotá-lo aos 7 anos deidade e conta que já sabia que ele erauma criança difícil, que não respeita-va ordens e era muito agitado. Noentanto, ela diz que tinha esperançaem “consertá-lo”. Como seu projetonão teve muito sucesso, Marta resol-ve então que quer devolvê-lo, ou seja,já entrou com pedido judicial paradesfazer a adoção. Entretanto, embo-ra ela traga, em sua fala, o desejo dedevolvê-lo, quando a juíza exige queela se posicione, ela vacila e volta atrás:“Resolvi que não quero mais deixá-lo, achoque tenho que ficar com ele, deve ser minhamissão”. Assim, a história desse meni-no passa a ser marcada por uma cons-tante oscilação dessa mãe que o“pega”, mas não o assume como fi-lho. Aqui perguntamos: onde estáVinícius? Onde é este “lá” que ele nosdiz que a mãe – e aqui não importa

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qual das duas, se entendermos por mãe uma função – o deixa? Ten-tamos encontrá-lo quando está conosco.

Ao participar de atividades em grupo, Vinícius oscila em duasposições: uma “colada” no corpo do outro, preferencialmente, deadultos e outra invasiva e agressiva. Assim, só consegue realizar ati-vidades, como desenhos, pintura, etc., se estiver junto (colado) deoutra pessoa, que deve oferecer seu corpo como suporte para queele consiga se deter em qualquer atividade. Quando não está nessaposição, Vinícius quase não consegue estar junto de outras crianças,arrancando os objetos dessas e provocando situações que acabamculminando em tapas, chutes ou gritos.

Uma cena vivida num grupo nos chama atenção. Vinícius par-ticipava de uma oficina em que estavam sendo confeccionadas pi-pas. Num primeiro momento, havia somente meninos nesse grupoe Vinícius, do lado de um adulto, conseguia com destreza montaruma pipa. Nesse instante chega uma menina no grupo, a única atéentão, e Vinícius começa a se agitar, não mais se interessando pelaatividade. Ele passa então, a gritar no ouvido dessa menina e a ten-tar destruir a pipa que ela fazia. Nesse momento, os profissionaisque conduziam a oficina tentam impedi-lo de destruir “a menina” eseus objetos, primeiro, solicitando que ele parasse e tentasse ajudá-la a fazer a pipa, já que ele tinha facilidade para tal, como não temefeito, os profissionais pedem que ele se retire da oficina. Nessemomento, Vinícius passa a empurrar a menina tentando derrubá-la,os profissionais tentam segurá-lo e ele se agita sobremaneira. Co-meça então a dar chutes, socos e mordidas em quem está próximodele. Os profissionais não conseguem conter seu corpo que parece,nesse momento, puro “excesso de energia”, hiper agitado, descon-trolado.

Essa cena nos indica que, para Vinícius, parece ser impossíveladmitir simbolicamente a castração do Outro – encarnada na pre-sença de uma menina – e que, por isso, seu corpo é tomado pelogozo absoluto, pelo transbordamento pulsional, entrando em curtocircuito. Neste sentido, podemos perceber que Vinícius está coloca-do numa posição de objeto a ser consertado, devolvido ou deixadopelo Outro. No entanto, tal posição parece não ser tão radical quan-to àquela ocupada pela criança psicótica. Vinícius consegue, de al-guma forma, construir saídas para o lugar de objeto no qual é colo-cado. Podemos supor que seu sintoma de hiperatividade seria umapelo ao Pai simbólico para que se restabeleça sua função ali onde

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ele “se percebe em risco em sua sub-jetividade, caracterizando então umquadro neurótico” (Kupfer e Bernar-dino, 2009, p. 52).

Desse modo, o corpo desse me-nino sofre os efeitos dessa falênciasimbólica do Outro. Um Outro quenão pode significar seu corpo numcampo linguageiro e o toma comocoisa em si. Nesse momento, nos re-cordamos de outra situação que en-volve o menino e a mãe: trata-se deuma festa típica, na qual participavamos dois, repleta de quitutes e gulosei-mas que estavam servidas numa mesa.Vinícius vai até essa mesa e pega to-dos os tipos de comida que conseguecarregar, senta-se do lado da mãe,entrega-lhe parte desses quitutes ecomeça a devorá-los, comendo peda-ços de todos os tipos de alimentos aomesmo tempo. A mãe, do seu lado,começa a colocar na boca dele os ali-mentos que está com ela, sem pausa.Vinícius come ou melhor observan-do, engole tudo indistintamente, semse deter em nenhuma das guloseimas.Assim, morde num pedaço de docee, antes de engoli-lo, coloca pipoca naboca que, antes de se fechar, recebeuma colher de outro doce dada pelamãe. Nesse momento, nos aproxima-mos de Vinícius e da mãe e dizemos:“Nossa, desse jeito não dá pra sentir o gostode nada, não dá nem pra saber o que se estácomendo”. Mas, os dois parecem nemouvir essa fala e continuam no mes-mo movimento: Vinícius, boca queengole tudo, mas não come nada e amãe, mão que enfia comida numa

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boca que quase não se fecha. Assim, não percebemos, nessa cena,um espaço entre Vinícius e o outro, um espaço de pausa, ou me-lhor, de falta. O que vemos aqui é um corpo sendo preenchidoquase que completamente por alimentos. Quando acabam as gulo-seimas, Vinícius sai correndo pela festa, sem parar, num movimen-to quase que extensivo ao que estava, ou seja, da mesma maneiraque não diferencia os alimentos que come, não há diferença entrecomer ou correr.

Portanto, trata-se de um corpo que é hiper ato1 ou sem sentido.Vinícius não pode sentir os gostos e sabores dos quitutes, à medidaque não se efetiva a lógica da alternância prazer-desprazer, presen-ça-ausência. Só pode estar de um lado (sem leite, sem alimento) oude outro (preenchido por alimentos). Sem a mediação simbólica, ocorpo de Vinícius fica à mercê da violência pulsional ou da colagemno corpo do outro, pois como ressalta Minerbo (2007), “A media-ção une e separa dois corpos em relação, de modo que a presençado outro não seja intrusiva, nem sua ausência seja um abandonotraumático. Ao mesmo tempo, institui os lugares psíquicos que cadaum vai ocupar. Quando está ausente, não se cria a relativa assimetriade uma relação. O bebê que chora pode se tornar um monstro amea-çador de quem a mãe precisa se livrar” (p. 142).

Sabemos que é justamente no tempo da infância que o sujeitose constitui como sujeito de desejo. A criança deve ir renunciandoao gozo do corpo para se apropriar da linguagem enquanto sujeito.Essa renúncia será coroada pela operação de castração que descolao infans do lugar de objeto do Outro, o “... que o leva à emergêncianão de um gozo que se poderia chamar de sintomático, mas de umgozo apalavrado” (Petri, 2008, p. 49). Parece-nos que Vinícius tentacom “unhas e dentes” abrir esse caminho de passagem do gozo àlinguagem. Deste modo, os sintomas corporais de agitação e des-controle apresentados por Vinícius parecem revelar um funciona-mento inconsciente característico de uma forma de subjetivação dacontemporaneidade.

Considerações finais

Como já assinalamos, a contemporaneidade é marcada poruma lógica de relações característica que produz efeitos no pro-

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cesso de constituição dos sujeitos.Considerando que tal processo impli-ca numa relação entre o sujeito e acultura, os sintomas inscritos no cor-po ganham destaque neste cenáriomarcado pela falência simbólica doOutro da linguagem.

Nesse sentido, Ferraz (2007)acrescenta que a clínica contemporâ-nea é marcada por um aumento da in-cidência de patologias ligadas de algummodo ao corpo somático, como resul-tante de um processo de simbolizaçãomal sucedido, sendo que “... quandoum sintoma surge no corpo, ele é re-sultado de uma simbolização que foiabortada, que não se fez” (p. 73).

Sabemos que o tempo da infân-cia é marcado pela constituição dosujeito do desejo e que esse processoinclui as marcas simbólicas e imagi-nárias que o Outro/outro confere aocorpo real do infans. Quando esse pro-cesso sofre falhas a tendência é a “ex-plosão” de sintomas neste pequenocorpo. Jerusalinsky (2007) descreve,de modo bastante poético, que “Dolado do real, o corpo é puro gozar davida; sem tempo nem limite; o sujei-to se apaga, se situa nos automatismosdo gozo que colocam em cena apulsão de morte através da pura re-petição. O corpo ali goza da vida en-dereçado sem freio para a morte, daqual a subjetividade, ali em fading, nãotem antecipação e nem notícia. A fal-ta de eficácia do significante deixa osujeito à mercê da fragmentação cor-poral. O corpo explode enquanto osujeito implode” (p. 67).

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Assim, podemos concluir que se a contemporaneidade viabili-za as formas de relações nas quais o semelhante toma o outro comoobjeto de gozo, temos impasses significativos no processo de cons-tituição dos sujeitos. Por fim, se consideramos que o sujeito na in-fância tem a tarefa de ir abrindo caminho que permita a passagemdo gozo do corpo ao desejo (Petri, 2008), admitimos que nossospequenos encontram sérios obstáculos num mundo que dificultaessa passagem, restando-lhes, muitas vezes, o aprisionamento numcorpo sem palavras.

EFFECTS OF A SYMBOLIC INEFFICIENCY ON A CHILD´S BODY

Abstract

In this paper we highlight the relations between some of the contemporary phenomena and theireffects on the child´s body. We start from the assumption that the utilitarian relations, theconsumerist ideal and symbolic weakness currently contribute not only to the formation ofsymptoms in the child´s body but also for the fact that the child´s body is taken as an object byanother. From the analysis of a clinical case, we conclude that the contemporary setting makesthe existence of significant impossibilities in the process of subject constitution. Such impossibilitiesresult in the difficulty of the passage from the body enjoyment to language.

Index terms: contemporary; subjectivity and body; childhood; psychoanalysis.

EFECTOS DE LA INEFICACIA SIMBÓLICA EN EL CUERPO INFANTIL

RESUMEN

En este trabajo pretendemos destacar las relaciones entre algunos fenómenos de lacontemporaneidad y sus efectos en el cuerpo infantil. Partimos de la hipótesis de que la lógica delas relaciones utilitaristas, el ideal consumista y la fragilidad simbólica en la actualidad contribuyentanto para la formación de síntomas en el cuerpo del niño como por el hecho del cuerpo infantilser tomado como objeto por el otro. A partir del análisis de un fragmento clínico, concluímos queel escenario contemporáneo facilita la existencia de impases significativos en el proceso deconstitución de los sujetos. Esos impases resultan en la dificultad del pasaje del gozo del cuerpoal lenguaje.

Palabras clave: contemporaneidad; subjetividad y cuerpo; infancia; psicoanálisis.

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NOTA

1 Utilizamos aqui a noção de ato em psica-nálise discutida por Rudge (1998) que consi-dera que este ato não é puramente uma açãoou um movimento, mas sim uma ação motorae/ou uma palavra por meio da qual a pulsãoencontra meios de se expressar à revelia dosujeito.

[email protected] [email protected]@hotmail.com

[email protected]

Recebido em setembro/2009Aceito em setembro/2010

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