Comportamento e Cultura

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  • >editorial

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    A revista Contextos da Alimentao em seu segundo numero foi capaz de atrair artigos que refletem a natureza da revista, multidisciplinar.

    Com um olhar aberto sobre o ato de se alimentar a concepo desta revista foi a de fazer com que este espao seja um refle-xo do que sentar-se mesa representa nas mais diferentes culturas, compartilhar.

    Vem do latim cum panis que significa aquele com quem dividimos o po e neste caso pode-se expandir este conceito de po por ideias.

    Estas ideias organizadas de forma l-gica, coerente e fundamentadas, que mesmo discordante fazem com que o conheci-mento em determinada rea possa ser disseminado.

    Com este carter gregrio e tendo o alimento e ato de se alimentar como ele-mentos de ligao os artigos nesta edio trazem ricas reflexes sobre o tema de formas distintas.

    Seja sob a perspectiva histrica, cultural, fisiolgica ou religiosa o ato de se ali-mentar promove discusses interessantes e enriquecedoras.

    Enriquece na medida em que se descobrem novas formas de olhar para o pas-sado de uma nao e descobrir que um doce pode estar associado ao fortalecimento do carter identitrio desta.

    Alimentao tem recebido cada vez mais ateno em nossas sociedades, seja pelo aspecto ldico ou pela sade e todas as outras variveis que esto ao redor.

    Vive-se um paradoxo da cincia e da conscincia, onde nunca soubemos tanto sobre alimentos, suas caractersticas, composies, benefcios e impactos, porm de forma geral, cotidianamente a qualidade da alimentao no reflete este conhecimen-to, podendo dizer at que nunca comemos to mal (qualitativamente falando).

    Trocamos cereais e verduras por gorduras e carboidratos, elementos ricos em nutrientes por ricos em acares e a populao, especialmente nossas crianas, en-frenta problemas de obesidade (e suas consequncias) em nveis cada vez maiores.

    Mudanas na alimentao fazem parte de um processo cultural dinmico, afinal da mesma forma que no nos vestimos como fazamos a 50 anos, ou no nos expres-samos, oral ou escrita, da mesma forma, assim tambm fazemos com a alimentao.

    Novos produtos, novas tcnicas, novas influncias fazem com que a forma de encararmos o que um alimento seguro ou bonito sejam alteradas, qual no foi a sur-presa de muitos ao comer peixe cru pela primeira vez, ou o sabor do wasabi ou para geraes anteriores o primeiro contato com a Coca Cola.

    Assim a contexto, trazendo novas formas de pensar sobre este assunto to importante e cheio de variaes possveis, a alimentao.

    Boa leitura.

    Marcelo Traldi Fonseca (editor)

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    Desafios da gesto da segurana dos alimentos em unidades de alimentao

    e nutrio no Brasil: uma reviso

    Fernanda Maria Farias Cunha1

    Maida Blandina Honrio Magalhes2

    Deborah Santesso Bonnas3

    Resumo

    O conceito de segurana alimentar teve origem no incio do sculo XX, a partir da II Grande Guerra quando mais de metade da Europa estava devastada e sem condies de produzir alimentos. A partir da, observou-se que a fome e a desnutri-o eram oriundas no s da produo, como tambm da falta do acesso ao alimen-to seguro e, com isso, houve ampliao do conceito de segurana alimentar para o acesso ao alimento em quantidade e qualidade suficiente sem comprometimento das outras necessidades bsicas do ser humano. Assim surgiram vrias legislaes e sistemas no sentido de auxiliar a gesto das empresas do setor alimentcio como as Boas Prticas na Fabricao de Alimentos (BPFs), os Procedimentos Operacionais Padronizados (POPs) e Anlise de Perigos e Pontos Crticos de Controle (APPCC) com objetivo principal de evitar as Doenas Transmitidas por Alimentos (DTAs). Com o objetivo de compreender os principais desafios para implantao de sistemas de gesto em segurana alimentar no Brasil foi feita a presente reviso bibliogrfica em busca de artigos publicados desde o ano 2001 at 2012, alm de portarias e legisla-es pertinentes ao assunto. Diante dos trabalhos avaliados, verificou-se uma evolu-o no processo histrico da segurana alimentar no Brasil bem como dos sistemas de gesto que a regem, o que possibilitou a constatao de que a implantao desses sistemas necessita estar associada capacitao efetiva de gestores e manipulado-res de alimentos para favorecer o fornecimento do alimento seguro em Unidades de Alimentao e Nutrio (UAN).

    Palavras-chave: Segurana Alimentar. Boas Prticas de Fabricao. Manipu-ladores.

    1 Mestranda em Cincia e Tecnologia de Alimentos - Instituto Federal de Educao, Cincia e Tecnologia do Tringulo Mineiro (IFTM) Uberaba, MG, Brasil; ); [email protected], *Autor para correspondncia2 Mestranda em Cincia e Tecnologia de Alimentos - Instituto Federal de Educao, Cincia e Tecnologia do Tringulo Mineiro (IFTM) Uberaba, MG, Brasil; );[email protected], *Autor para correspondncia.3 Prof.a Dra. do Programa de Ps-Graduao Strictu Sensu em Cincia e Tecnologia de Alimentos (IFTM); [email protected]

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    Abstract

    The concept of food security dates back to the first half of the 20th century, after the II World War when more than half Europe was devastated and unable to produce food. From this time on, it was observed that hunger and malnutrition originated not only from production but also from the difficulty in having access to safe food and be-cause of this, the concept of food security was expanded in order to guarantee quan-tity and quality in the foods without hazards to the other needs of the human beings. Hence, several legislations and systems were created in order to assist the manage-ment of the companies in the food sector as Good Manufacturing Practices (GMPs) of foods, Sanitation Standard Operating Procedures (SSOPs) and Hazard Analysis and Critical Control Points (HACCP) with the main aim of preventing foodborne diseases (FBD). Aiming at understanding the main challenges of the implementation of food safety management systems in Brazil, the current review was carried out, searching for papers published between 2001 and 2012, besides resolutions and legislations which are adequate for the topic. In the papers evaluated, it was observed an evolu-tion in the historical process of Food security management in Brazil, as well as in the management systems which control it, what lead us to testify that the implementation of these systems needs to be associated with the effective capacity of food handlers and managers to favor the supply of safe food in the Food and Nutrition Units (FNU).

    Key-words: Food Safety. GMPs. Handlers.

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    Introduo

    As dificuldades impostas pelos longos deslocamentos e a extensa jornada de trabalho nas sociedades modernas, impedem que um grande nmero de pessoas rea-lize suas refeies regulares em famlia. Para uma expressiva camada da populao, a refeio fora do lar, em Unidades de Alimentao e Nutrio (UANs), uma das alternativas viveis (ROSSI, 2006).

    No Brasil, estima-se que, de cada cinco refeies, uma feita fora de casa, na Europa duas em cada seis e, nos EUA, uma em cada duas. Esses nmeros in-dicam que ainda pode haver um grande aumento e desenvolvimento dos locais que produzem refeies para consumo imediato no pas. Tais estabelecimentos incluem unidades de produo de porte e tipos de organizao diferentes entre si, como res-taurantes comerciais, restaurantes de hotis, servios de motis, coffee shops, bu-ffets, lanchonetes, cozinhas industriais, fast food, catering e cozinhas hospitalares (ARAJO; CARDOSO, 2002).

    Com o crescimento do mercado de alimentao, torna-se imprescindvel criar um diferencial competitivo nas empresas por meio da melhoria da qualidade dos pro-dutos e servios oferecidos, para que esse diferencial determine quais permanecero no mercado (AKUTSU, 2005). Sendo assim, fazem-se cada vez mais necessrias competncia e qualificao dos funcionrios em prol da manuteno do diferencial competitivo no mercado.

    Embora o termo qualidade h muito tempo faa parte do vocabulrio de muitas pessoas, defini-lo de forma a atingir toda a dimenso do seu significado bastante complexo. A qualidade envolve muitos aspectos simultaneamente e sofre alteraes conceituais ao longo do tempo (PALADINI, 1996).

    A qualidade hoje uma vantagem competitiva que diferencia uma empresa de outra, pois os consumidores esto cada vez mais exigentes em relao sua expec-tativa no momento de adquirir um determinado produto. Logo, as empresas que no estiverem preocupadas com esta busca pela qualidade podero ficar margem do mercado consumidor (FIGUEIREDO; COSTA NETO, 2001).

    Em relao s UANs, a qualidade est associada a aspectos intrnsecos do alimento (qualidade nutricional e sensorial), segurana (qualidades higinico-sanit-rias), ao atendimento (relao cliente-fornecedor), e ao preo (AKUTSU, 2005).

    No entanto, a alta rotatividade e a dificuldade na obteno da qualidade podem ser provenientes da produo de refeies com baixo custo e presena de mo de obra no qualificada formalmente para o setor (AGUIAR; KRAEMER, 2009).

    De acordo com Souza (2006) a manipulao de alimentos mostra-se como um fator que, caso no seja gerenciado e controlado, responsvel por desencadear contaminaes e afetar a segurana dos alimentos.

    A qualidade higinico-sanitria como fator de segurana alimentar tem sido am-plamente estudada e discutida, uma vez que as doenas veiculadas por alimentos so um dos principais fatores que contribuem para os ndices de morbidade nos pases da Amrica Latina e do Caribe. O Comit da Organizao Mundial da Sade/Organi-zao das Naes Unidas para a Alimentao e a Agricultura (OMS/FAO) admite que

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    doenas oriundas de alimentos contaminados seja, provavelmente, o maior problema de sade no mundo contemporneo (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 1984). Os principais problemas so consequncia do reaquecimento e refrigerao inadequa-dos e da preparao de alimentos com muita antecedncia, aumentando o tempo de espera (WEINGOLD, 1994). Sendo assim, o presente artigo de reviso teve como objetivo identificar os principais desafios para implantao de sistemas de gesto da qualidade dos alimentos em UANs no Brasil.

    Metodologia

    Os artigos selecionados foram coletados por meio de buscas nas bases de da-dos: BVS (Biblioteca Virtual em Sade), LILACS (Centro Latino-Americano e do Caribe de Informao em Cincias da Sade) SCIELO (Scientific Electronic Library Online). Para tanto, foram utilizadas as seguintes expresses: implantao de gesto de qua-lidade, gesto de qualidade, segurana alimentar, qualidade de restaurantes, alimentao coletiva, higiene alimentar e segurana alimentar em restaurantes. A busca envolveu artigos publicados desde 1996 at julho de 2012.

    Utilizou-se, tambm, o Codex Alimentarius da OMS/FAO e o Regulamento de Inspeo e Industrializao de Produtos de Origem Animal (RIISPOA) do Ministrio da Agricultura, Pecuria e Abastecimento (MAPA), a portaria n368 do MAPA, as por-tarias n 58 de 1993, n 1428 de 1993, n 326 de 1997, n 275 de 2002 e n 216 de 2004 do Ministrio da Sade.

    Evoluo da gesto da qualidade na rea alimentcia

    O conceito de segurana alimentar tem sua origem no incio do sculo XX, a partir da II Grande Guerra quando mais de metade da Europa estava devastada e sem condies de produzir alimento (BELIK, 2003). Assim, estabeleceram-se polticas con-tinentais para que fosse garantido o acesso alimentao em quaisquer situaes, seja em caso de guerra ou em caso de dificuldades econmicas (GALEAZZI, 1996).

    No incio dos anos 1970, com a crise de escassez associada a uma poltica de manuteno de estoques de alimentos e a Conferncia Mundial de Alimentao, a segurana alimentar passou a ser uma questo de produo de alimentos (produ-tivista), com nfase na comida. Na dcada de 1980, com a superao da crise de alimentos, concluiu-se que os problemas da fome e da desnutrio eram decorrentes de problemas de demanda, ou seja, de acesso e no s de produo. No final dessa dcada e incio dos anos 1990, observou-se maior ampliao do conceito, incluindo oferta adequada e estvel de alimentos e principalmente garantia de acesso, alm de questes referentes qualidade sanitria, biolgica, nutricional e cultural dos alimen-tos (VALENTE, 1997).

    O termo alimento seguro um conceito que est crescendo na conjuntura global, no somente pela sua importncia para a sade pblica, mas tambm pelo seu importante papel no comrcio internacional (BARENDSZ, 1998). Nesse contexto surge o sistema de Anlise de Perigos e Pontos Crticos de Controle, o APPCC. Este

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    sistema foi utilizado pela primeira vez, nos anos 60, pela Pillsburg Company, junto com a National Aeronautics and Space Administration (NASA) e o U.S. Army Laboratories em Natick, com o objetivo de desenvolver um programa de qualidade que, utilizando algumas tcnicas, desenvolvesse o fornecimento de alimentos para os astronautas da NASA (BENNET; STEED, 1999), sendo apresentado ao pblico pela primeira vez em 1971, durante a Conferncia Nacional para Proteo de Alimentos, realizada nos Estados Unidos (ATHAYDE, 1999). Embora tenha sido uma ferramenta desenvolvida originalmente pelo setor privado para garantir a segurana do produto, atualmente est presente na legislao de vrios pases (JOUVE, 1998).

    A legislao em segurana do alimento geralmente entendida como um con-junto de procedimentos, diretrizes e regulamentos elaborados pelas autoridades, dire-cionados para a proteo da sade pblica. O Codex Alimentarius (CODEX ALIMEN-TARIUS, 2001) estabelece as condies necessrias para a higiene e produo de alimentos seguros. Seus princpios so pr-requisitos para a implantao do APPCC, em que ocorre o controle de cada etapa de processamento.

    O Sistema APPCC uma tcnica racional para se prevenir a produo de ali-mentos contaminados, baseada em anlises e evidncias cientficas. Representa uma atitude pr-ativa para prevenir danos sade e enfatizar a preveno de problemas, ao invs de se focar no teste do produto final. Pode ser utilizado em qualquer estgio da cadeia de produo, desde a produo primria at a distribuio, e at mesmo nos locais que oferecem servios de alimentao e em casa (JOUVE, 1998).

    O uso do APPCC requer tambm procedimentos simultneos com outras ferra-mentas, tais como BPF (Boas Prticas na Fabricao de Alimentos) e sistemas avan-ados de qualidade na avaliao da produo de alimentos (HUGGETT, 2001).

    Segundo a Portaria n 58 de 1993 do Ministrio da Sade, BPF so normas de procedimentos a fim de atingir um determinado padro de identidade e qualidade de um produto e/ou servio na rea de alimentos, incluindo-se bebidas, utenslios e materiais em contato com alimentos (BRASIL, 1993). Sendo assim, o Ministrio da Sade, dentro da sua competncia, elaborou as portarias 1428 de 26/12/1993 e 326 de 30/7/1997, que estabelecem as orientaes necessrias para inspeo sanitria por meio da verificao do Sistema de Anlise de Perigo e Ponto Crtico de Controle (APPCC) da empresa produtora e de servios de alimentos e os aspectos que devem ser levados em conta para a aplicao de boas prticas de fabricao (BPF), respec-tivamente.

    Em 4 de setembro de 1997, o MAPA publicou no Dirio Oficial da Unio a por-taria no 368 (BRASIL, 1997), que define Boas Prticas de Fabricao como sendo os procedimentos necessrios para a obteno de alimentos incuos e saudveis. Nessa portaria, encontramos regulamento tcnico sobre condies higienicossanitrias de boas prticas de fabricao para estabelecimentos produtores/industrializadores de alimentos. Segundo o regulamento tcnico, as Boas Prticas de Fabricao devem in-cluir: higiene das instalaes, adequado tratamento de resduos e efluentes, facilidade de limpeza e de manuteno, adequada qualidade da gua: potvel, adequado nvel de qualidade das matrias primas e insumos, adequado procedimento para seleo de matrias primas e insumos, adequado procedimento para seleo e manuteno de fornecedores, conhecimento do grau de contaminao das matrias primas, anli-

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    se e inspees de matrias primas e produtos auxiliares, corretas operaes de rece-bimento e estocagem, higiene pessoal, equipamentos e utenslios sanitrios, aferio de instrumentos, programa de manuteno preventiva, higiene no processamento.

    Em 06/11/2002 a Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria (ANVISA) publicou a RDC no 275 (BRASIL, 2002). Essa Resoluo aprovou o Regulamento Tcnico de Procedimentos Operacionais Padronizados (POPs) aplicados aos estabelecimentos produtores/industrializadores de alimentos e a lista de verificao das boas prticas de fabricao em estabelecimentos produtores/industrializadores de alimentos.

    Devido inexistncia de portarias e normativas regulamentadoras das BPFs em relao aos estabelecimentos fornecedores de alimentao, em 2004 a ANVISA publi-cou a RDC n216 de 15 de setembro de 2004 (BRASIL, 2004), que abrange os proce-dimentos que devem ser adotados nos servios de alimentao, a fim de garantir as condies higienicossanitrias do alimento preparado. Essa legislao federal pode ser complementada pelos rgos de vigilncia sanitria estadual, distrital e municipal, visando abranger requisitos inerentes s realidades locais e promover a melhoria das condies higienicossanitrias dos servios de alimentao.

    Aplicao de sistemas de gesto da qualidade

    Diante do exposto, observa-se que a produo de alimentos e de refeies se-guras envolve uma srie de fatores, os quais merecem ateno no processo de ges-to. Tal ateno deve-se tanto em funo da legislao atual, mas principalmente pela ocorrncia das doenas transmitidas por alimentos as quais geralmente se de-senvolvem por mltiplas falhas peculiares aos servios de alimentao, entre elas: refrigerao inadequada, preparo do alimento com amplo intervalo antes do consu-mo, manipuladores infectados/contaminados, processamento trmico insuficiente, m conservao, alimentos contaminados, contaminao cruzada, utilizao de sobras e produtos clandestinos (CARDOSO; SOUZA; SANTOS, 2005, BRICIO; LEITE; VIANA, 2005).

    Muitos estabelecimentos que produzem refeies apresentam qualidade defi-ciente nos servios prestados, como observado em um estudo descritivo transversal com 22 restaurantes do municpio de Cerqueira Csar em So Paulo. Destaca-se o fato que esses estabelecimentos no apresentavam responsveis tcnicos. Houve avaliao de: higiene, processos e produtos, controle de pragas, boas prticas de produo e gesto, sendo que nenhum restaurante foi classificado como bom ou ex-celente, 91% foram classificados como deficientes e 9% como regular, sugerindo risco potencial para ocorrncia de Doenas Transmitidas por Alimentos (DTAs). Entre as concluses do estudo tem-se que tal cenrio poderia ser melhorado pela presena nos estabelecimentos de um responsvel tcnico devidamente capacitado (ESPE-RANA, MARCHIONI; 2011).

    Observa-se em alguns estudos que vrios estabelecimentos tm como gerente o proprietrio. Assim o gestor do setor de alimentao coletiva necessita conhecer os sistemas de gesto de qualidade como BPFs, POPs e APPCC. Outro estudo re-alizado com gerentes de 16 Unidades Produtoras de Refeies (UPRs) comerciais na regio centro-sul de Belo Horizonte identificou que 81,2% eram gerenciadas por

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    >Artigos

    profissionais contratados como gerentes e 18,8% pelos prprios proprietrios, porm nenhuma delas tinha responsvel tcnico com conhecimento na RDC 216/04 (BRA-SIL, 2004). Quando os gestores foram questionados sobre aspectos que garantem a segurana alimentar na produo de refeies com base na RDC 216/04, observou--se que mais da metade dos temas abordados nesta resoluo no foram citados, o que reflete uma viso limitada dos gestores em relao s boas prticas na fabricao de alimentos (BARROS et al, 2011).

    Para tanto, a capacitao de gestores pode ser determinante na segurana ali-mentar, observando-se a importncia de se avaliar a efetividade de um treinamento (EBAN et al, 2007). Porm, quando se procura segurana alimentar em alimentao coletiva, as aes devem ser direcionadas no s com os gestores, mas tambm com os manipuladores de alimentos. Por isso, de acordo com Aguiar e Kraemer (2009) as empresas de refeies coletivas devem repensar o gerenciamento de pessoas e investir em formao profissional.

    Quintiliano et al. (2008) avaliaram as condies higienicossanitrias em restau-rantes comerciais da Baixada Santista, face nova Legislao Federal RDC n. 216. Tais autores observaram elevados ndices de no conformidades frente a legislao destacando-se a falta de registros e documentao. Entre as concluses do estudo os autores destacam que os proprietrios eram os responsveis tcnicos dos esta-belecimentos e no estavam preparados para cumprir as exigncias da legislao (QUINTILIANO et al., 2008).

    H necessidade de qualificar os trabalhadores em alimentao coletiva visando o oferecimento de uma refeio de qualidade. Esta afirmao reforada por estudo que discutiu o nvel de educao formal (desenvolvida em escolas e universidades) e no formal (capacitao) dos trabalhadores de alimentao coletiva em restaurantes populares do Rio de Janeiro por meio de entrevistas com 426 funcionrios, incluin-do desde auxiliar de servios gerais nutricionista. Referente educao formal, constatou-se que 39,2% dos entrevistados possuam ensino fundamental incompleto e 14,3% completo. J para o ensino mdio, foram encontrados 25,1% completo e 14,9% incompletos. Com relao educao no formal, 60,5% relataram participa-o em treinamento para exercer cargo atual, sendo os nutricionistas responsveis pelos treinamentos (AGUIAR; KRAEMER, 2010). Assim, percebe-se a importncia da educao no formal em prol da segurana alimentar em UANs.

    Santos, Rangel e Azeredo (2010) avaliando as condies higienicossanitrias em restaurantes no Rio de Janeiro afirmam em seu estudo, que a capacitao dos manipuladores de alimentos, embora no tenha sido o item avaliado com maior per-centual de no conformidades (60%), a parte mais crtica de todo o processo de produo de alimentos, uma vez que eles esto ligados a todos os itens, devendo por isto, estar capacitados em relao s Boas Prticas.

    Tal afirmao concorda com resultados obtidos por Oliveira e Faria (2012), os quais avaliaram a contaminao nas mos de manipuladores de alimentos em uma UAN em Cuiab, MT. Os autores identificaram que, aps a capacitao dos manipu-ladores para utilizao de Procedimento Operacional Padronizado de higienizao de mos, os resultados obtidos para Estafilococos coagulase positiva foram satisfatrios.

    Outro aspecto identificado nessa reviso foi em relao percepo do risco,

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    >Artigos

    por parte dos manipuladores de alimentos sobre higiene alimentar em restaurantes comerciais, a qual pode comprometer a qualidade da refeio por no ser satisfatria, como mostra um estudo transversal realizado por Gonzalez (2009) em 42 restauran-tes na cidade de Santos. Nesse estudo os manipuladores de alimentos foram ques-tionados quanto ao perfil demogrfico e educacional, conhecimento e percepo do risco. O estudo identificou que a percepo do risco de intoxicao alimentar ao comer verduras cruas foi classificada como baixa, ao contrrio da percepo do risco de um funcionrio doente contaminar alimentos, que foi classificada como alta. Dos manipuladores de alimentos entrevistados 46% nunca haviam participado de treina-mentos em Boas Prticas de Produo (BPP). Com isso, o autor questiona a eficcia dos treinamentos bem como a frequncia e as tcnicas aplicadas sugerindo reformu-laes desses treinamentos.

    Consideraes finais

    A gesto na qualidade de alimentos subsidiada por vrias legislaes com a finalidade de oferecer alimentos seguros, alm de favorecer a manuteno das em-presas no mercado consumidor.

    Nos estudos que vem sendo realizados no Pas em relao implantao de sis-temas de gesto da qualidade em alimentos, foram destacados os seguintes aspec-tos: relao entre a m qualidade do ambiente e a ausncia de responsvel tcnico qualificado; falta ou deficincia de capacitao dos gestores dos estabelecimentos em relao s ferramentas de qualidade, destacando-se as Boas Prticas de Fabricao e desconhecimento da legislao; necessidade de capacitao especifica para os manipuladores de alimentos visando, entre outros aspectos, fornecer subsdios para que eles tenham real percepo dos perigos associados manipulao incorreta dos alimentos e os riscos gerados para o consumidor.

    Portanto, para garantia da qualidade dos alimentos, de fundamental impor-tncia que as empresas do ramo possuam no quadro de funcionrios gestores e ma-nipuladores de alimentos com conhecimentos e prticas de trabalho compatveis s legislaes vigentes e requisitos para segurana dos alimentos, alm de possurem e implementarem planos de capacitao peridicos em relao as ferramentas da qua-lidade para gerentes e manipuladores.

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    >Artigos

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    >Artigos

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    Alimentao e cultura: caminhos para o estudo da Gastronomia.

    Frederico de Oliveira Toscano1

    Resumo

    O presente artigo tem como objetivo apontar caminhos e estratgias para se pensar a alimentao atravs da Histria sob uma perspectiva cultural. Atravs do trabalho de autores que abordam no apenas as relaes do homem com o alimento, mas tambm as formas como a cultura alimentar se move dinamicamente atravs do tempo, pretende-se compreender melhor o papel que a comida, junto com os rituais a ela associados, influencia e sofre influncias, refletindo a complexidade do desenvol-vimento humano.

    Palavras-chave: Histria, Cultura, Alimentao.

    1 Mestrando em Histria - Programa de Ps-graduao em Histria Centro de Filosofia e Cincias Humanas - UFPE - Univ. Federal de Pernam-buco, Campus do Recife, CEP: 50670-901, Recife, Pernambuco - Brasil. Bolsista CNPq. Mestrando UFPE.

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    Abstract

    The present article intends to point out pathways and strategies to think the act of feeding throughout History under a cultural perspective. Through the works of authors who approach not only the relationship between men and their food, but also the ways by which the food culture moves dynamically through time, this paper intends to better comprehend the role that food, along with the rituals associated with it, influences and suffers influences, thus reflecting the complexity of human development.

    Key-words: History, Culture, Food.

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    Alimentao, Cultura, e Identidade

    O arcabuzeiro alemo Hans Staden de Homberg, oriundo da cidade de Hessen, estava em sua segunda viagem ao Novo Mundo. Na primeira, em 1549 havia visitado as costas das capitanias de Pernambuco e da Paraba, tendo deixado a Europa a partir do reino de Portugal, metrpole que, poucas dcadas antes, havia se deparado com uma parte das Amricas de Cristvo Colombo, tomando posse desse territ-rio. Retornou s terras natais e no ano seguinte, zarpando da Espanha, tornou possesso portuguesa abaixo do Equador, dessa vez aportando no Sul do territrio, posteriormente seguindo viagem para a capitania de So Vicente. Era esta a terra que mais tarde originaria o estado de So Paulo e cujas matas fervilhavam de naes indgenas rivais, tais como os Tupiniquins, os Goitacs, os Carajs, os Maracajs, os Guaians e os Tupinambs. Estes ltimos haviam capturado o alemo enquanto este caava pelas matas, decidindo, por fim, levar a presa para sua aldeia. E foi l que Staden conversou com os seus captores, aprendeu parte dos seus costumes e lngua, observou suas tcnicas e artes, registrou o que pde e aguardou a hora de ser morto e devorado pela tribo (STADEN, 2010).

    O sacrifcio, uma forma de entregar aos seres sobrenaturais uma ddiva, pode ser entendido, em sua gnese, como uma ligao entre o ordinrio e o divino, uma forma primitiva de se estabelecer uma comunicao entre homens e deuses. Sua prtica poderia envolver a morte de animais ou de homens, mas a constncia do holo-causto, da morte em oferenda a algo ou algum, tem perpassado diversas civilizaes atravs do tempo, cada qual munida de rituais prprios que regem a relao entre o grupo que deseja o sacrifcio e a vtima. Os costumes que porventura visassem pro-teger a sociedade dos Tupinambs, talvez proscrevendo o ritual do sacrifcio, eviden-temente se aplicavam apenas aos indivduos da tribo. Staden, um prisioneiro branco, jamais poderia tirar vantagem de tais benefcios, mesmo que os indgenas decidissem observar tais prticas. Passou algum tempo trocando de mos entre chefes tribais, sendo por vezes bem tratado, em outras temido, sempre tratado com desconfiana e jamais como um igual. Seu papel era o de iguaria. Ao morrer, o europeu estaria dando algo para a tribo, representada pelo sacrificante, o carrasco que lhe tomaria a vida. E ao final, todos estariam modificados, pois como indica os antroplogos Marcel Mauss e Henry Hubert, o sacrifcio um ato religioso que, mediante a consagrao de uma vtima, modifica o estado da pessoa moral que o efetua ou de certos objetos pelos quais ela se interessa (MAUSS, 2005, p 19).

    O banquete antropofgico, do qual Staden deveria, eventualmente, fazer parte na desafortunada posio de prato principal, j havia sido observado pelo europeu que, ainda que horrorizado pelo espetculo que se apresentava aos seus sentidos, nem por isso deixou de buscar compreend-lo. Interessado nos pormenores do que talvez viesse a ser o seu destino, o arcabuzeiro detalhou a forma como os indgenas escolhiam um carrasco que, munido de uma maa cerimonial, daria o golpe final na nuca do prisioneiro, matando-o imediatamente. Em seguida, seria arrastado pelas mulheres em direo fogueira, tendo toda a sua pele arrancada e l sendo deixa-do, para que finalmente seu corpo fosse separado em quatro pedaos. Estes seriam divididos entre os espectadores, sendo as vsceras reservadas para as mulheres, fervidas e transformadas em uma espcie de mingau, enquanto que s crianas ca-

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    beriam o crebro e a lngua. Aquele que havia executado o prisioneiro era recoberto de grande honra, e era admirado at mesmo por membros de outras aldeias, tambm presentes durante o ritual. Staden, que acabaria por escapar do tenebroso fim que lhe era reservado, viveu para contar a histria dos selvagens canibais que quase o haviam devorado na terra que viria a ser conhecia como Brasil (Idem, 2010).

    Este relato, um dos mais antigos acerca da colnia, nessa poca recm desco-berta pela coroa portuguesa, impressiona tanto pela assustadora riqueza de detalhes proporcionada por seu autor, quanto pela propenso de Staden de buscar entender os comos e porqus dos fatos que havia presenciado. Os Tupinambs, afinal de contas, eram caadores, coletores e possuam at mesmo sua prpria agricultura, ainda que limitada. Alimentavam-se de peixes moquecados, farinha de mandioca e carne de animais diversos, tais como porcos selvagens, capivaras e tatus. Do milho, produziam o cauim, uma bebida sagrada utilizada em rituais (Idem, 2010). Se sua dieta era at certo ponto variada e, em dadas pocas, farta, por que, Staden pode ter se pergunta-do, matam outros homens e comem sua carne? o prprio aventureiro que fornece a resposta, afirmando que

    No fazem isto para saciar sua fome, mas por hos-tilidade e muito dio, e, quando esto guerreando uns contra os outros, gritam cheios de dio: debe mar p, xe remiu ram begu, sobre voc abata-se toda a des-graa, voc ser minha comida (Idem, 2010, p 157).

    E nesse momento que se forma uma diferena crucial, que separa o simples ato de alimentar-se, ou seja, ingerir alimentos para saciar uma necessidade biolgica, do de comer. O primeiro atende aos desmandos do corpo, enquanto o segundo d vazo a um costume profundamente enraizado no esprito de um povo. Em outras palavras, o homem que reveste de significado essa ao, atribuindo valores que orientam as causas, as formas e suas relaes. Compreende-se ento que o ato de comer uma criao humana. Animais se alimentam para providenciar sustento para seu corpo e assegurar sua existncia. J as pessoas ressignificam essa necessidade fisiolgica, cercando-a de simbolismos e fazendo do ato de comer uma ao social, religiosa e, em alguns casos, at mesmo poltica. A antroploga Lilia Schwarcz, ao prefaciar a obra Farinha, feijo e carne-seca: um trip culinrio no Brasil colonial, de autoria de Paula Pinto e Silva, aponta bem esta distino, quando afirma que

    ... em um nvel mais concreto simplesmente comemos temos fome e nos saciamos -, de maneira mais abstrata pro-duzimos valores e sentidos quando pensamos estar lidando apenas com a nossa satisfao e mera sobrevivncia. Tudo isso porque o homem no sobrevive apenas, mas antes in-venta significados para tudo o que faz (Silva, 2005, p 10).

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    >Artigos

    Comer se compreende, portanto, como uma inveno, que praticada por uma sociedade em sua totalidade e cuja complexidade independe do seu avano tecno-lgico, adequando-se no apenas s necessidades nutricionais de um grupo, mas principalmente ao conjunto de crenas, prticas e tradies firmemente arraigadas na vivncia de indivduos que so tanto racionais quanto emocionais e que metamorfo-seiam alimentao em ritual. Ritual este que praticado em diferentes nveis de pro-fundidade, porm inescapvel, visto que se atrela a uma necessidade perene. Pode--se viver sem o consolo da religio, a satisfao da intelectualidade, os debates da poltica, a abstrao da arte ou os prazeres do sexo, mas jamais sem o ato de comer e beber. Essa prtica constante, cujas ramificaes extrapolam a esfera da refeio em si, e que se alia a tantas outras que plasmam o comportamento dos sujeitos inseridos nas mais diversas realidades, converge junto a outras criaes para formar aquilo que se convencionou chamar de cultura (RIEOX , 1999).

    Os conceitos de cultura e, especialmente, o de Histria da Cultura, so at certo ponto fugidios e propensos a suscitar debates quanto a sua definio, mas sem dvida partilham de um conceito que Peter Burke deixa bastante claro em sua obra Cultura Popular na Idade Moderna: a cultura fruto de um aprendizado. Conhecimen-tos e tradies so passadas adiante atravs das geraes, repletas das particulari-dades que remetem identidade de um determinado povo (BURKE, 2010). Aprende--se no apenas a falar a lngua ptria, mas tambm, quase que junto ao leite materno que alimenta o ser humano em formao, as noes do que comer, como comer e por que comer. Dessa forma, fortalece-se a noo de unidade em um determinado grupo, seja ele uma tribo, um estado, uma regio ou um pas. Os indgenas que aprisionaram Hans Staden haviam desenvolvido uma identidade prpria, uma criao cultural que atribua significados fortemente identitrios ao ato de devorar a carne dos inimigos derrotados. Ao faz-lo, legitimavam no apenas sua vitria sobre o rival, mas tambm reafirmavam sua cultura e o sentido de unio de sua nao. Banqueteando-se, pare-ciam clamar Sou Tupinamb.

    Essa ideia de cultura atrelada formao de uma identidade, especialmente a cultura alimentar, foi bem observada pelo socilogo pernambucano Gilberto Freyre, ao afirmar que

    O paladar defende no homem a sua personalidade nacio-nal. dentro da personalidade nacional e regional que prende o indivduo de modo to ntimo s arvores, s guas, s igre-jas velhas do lugar onde nasceu, onde brincou menino, onde comeu os primeiros frutos proibidos (FREYRE, 2002, p 64).

    Aprendemos a gostar e as desgostar de certas comidas dentro das idiossincra-sias inerentes nossa cultura. E ao faz-lo, contribumos para a formao de uma identidade coletiva que nos define enquanto povo. Hans Staden, inconformado com um fim desprovido de sentido na barriga de um guerreiro Tupinamb, buscou enten-der as causas de um dos aspectos formadores da cultura dos seus captores. Se por um lado o europeu abominava a prtica, por outro no se furtou a buscar explicar os motivos que levavam os indgenas ao banquete antropofgico. Dessa forma, pode-se

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    pensar no relato de Staden como uma das primeiras discusses da cultura alimentar do Brasil e a sua inquietao lana reflexos que alcanam os dias atuais. O alemo, que por muito pouco escapou de ser devorado, segue sendo canibalizado a cada refeio entendida dentro da perspectiva cultural de um povo e como elemento defi-nidor de um grupo social. Assim que, no Brasil, h quase quinhentos anos se come Staden e se sente a boca o gosto de feijoada, vatap, buchada e cachaa. Porque ao comer, exercita-se no apenas o trato digestivo, mas tambm os msculos culturais, dessa forma desenvolvendo uma ideia de povo e de nao.

    Alimentao e folclore

    No incio da segunda dcada do sculo XX, um jovem Gilberto Freyre caminha-va pelas ruas do Recife, perdido em pensamentos. Tendo chegado de viagens que o fizeram passar por Nova York, Nova Orleans, Munique, Londres, Paris e outras gran-des cidades do mundo, o estudioso andava desgostoso com a ambientao dos cafs que se haviam estabelecido na capital pernambucana. Tudo muito chic. Tudo muito afrancesado. Freyre, que nessa poca j criava textos para o Dirio de Pernambuco, ps-se ento a imaginar, em forma de artigo, qual seria o caf ideal para o Recife. Que, em suas palavras, possusse cor local. Atmosfera. O objetivo, pontificava o jovem escritor, seria fazer com que o turista, chegando de algum pas estrangeiro, fosse capaz de desfrutar dos prazeres de uma mesa e um clima verdadeira e tipica-mente pernambucanos. Entusiasmado, o socilogo entregava-se verborragicamente ao exerccio de inventar tal lugar, que deveria comportar

    ... uns papagaios em gaiolas de lata, cco verde vontade pelo cho no se serve cco verde nos caf do Recife! uma fartura de vinho de jenipapo, folhas de canela aromatizando o ar com seu pungente cheiro tropical. noite, menestris cantado-res! cantando ao violo trovas de desafio; num canto uma dessas pretalhonas vastas e boas, assando castanhas ou fazendo pamo-nha. Ao seu lado, quitutes e doces, ingenuamente enfeitados com flores de papel recortado, anunciando uma culinria e uma con-feitaria que constituem talvez a nica arte que verdadeiramente nos honra. Isso sim, seria uma delcia de caf (Idem, 2009, p 21).

    Freyre encerra o artigo lamentando a hesitao do seu tio, que o acompanhava em visita a uma confeitaria francesa, em pedir um mate ou um caldo de cana. Mais elegante, naqueles tempos, era degustar de um desses gelados de nome extico. Se a descrio do escritor de um caf que exibia papagaios engaiolados e cocos rolando pelo assoalho chega a impressionar pelo regionalismo exacerbado, mais sintomtico ainda perceber que Freyre, na verdade, sente saudades de um lugar que jamais existiu, a no ser talvez em seu corao. Para ele, esse deveria ser o caf pernambu-cano, ainda que inventado, embora admita em certo momento que isso de atmosfera no se improvisa. Em outras palavras, apenas os elementos tpicos locais, de acordo com sua tica, no eram suficientes. Era necessria tambm a vivncia, a tradio. O

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    costume legitimado pelo tempo. Alm, evidentemente, de uma ferrenha indisposio acerca de elementos estrangeiros, especialmente os franceses, que nessa poca se mostravam cada vez mais pronunciados no Recife (REZENDE, 2005).

    Finalmente, o autor introduz um elemento que, mais do que os cantadores e seus violes, escancara sua viso particular do que popular, ao se referir negra quituteira, confortavelmente entregue ao seu papel na sociedade e ao seu ofcio, re-miniscente ainda da poca da escravido. Uma carinhosa e patriarcal imagem que, possivelmente, remete infncia do socilogo. Todas essas caractersticas da cons-truo do caf tipicamente pernambucano de Freyre a defesa de uma forma pura, um sentido no to claro, porm prevalecente, de origem, a ideia de tradio, a opo-sio aos estrangeirismos, uma criao erudita e, possivelmente, elitista do conceito de popular atrelado a elementos de exotismo se unem para formar uma imagem idealizada de um aspecto supostamente frgil da cultura nacional, que deveria ser protegido da mudana e defendido das influncias externas. Um caf, em suma, pro-fundamente folclrico.

    As preocupaes de Freyre remontam, em parte, ao esprito de antiqurio apontado pelo historiador Renato Ortiz, em seu livro Romnticos e Folcloristas, onde o autor discorre acerca das razes da pesquisa folclrica na Europa, a partir do sculo XVI. Originando-se como uma coleta de curiosidades exibida por parte da intelectu-alidade de pases como Frana, Inglaterra e Alemanha, inicialmente se concentrava em uma perspectiva elitista que observava os hbitos, supersties e histrias que faziam parte da vivncia do povo. Essa problemtica noo existia em oposio de elite e era criada e sustentada pela mesma, que enxergava as vidas dos campo-neses sob um vis de exotismo, direcionando sua ateno at mesmo para o que poderia ser considerado bizarro ou estranho para as classes mais elevadas. Ou seja, uma cultura em separado, dona de caractersticas prprias, popular (CHARTIER, 1995). Contudo, somente a partir do sculo XIX que os pesquisadores da cultura do povo passam a usar a denominao folclorista, com clubes de folclore surgindo em diversas cidades europeias. J sob uma perspectiva romntica, o povo passa a ser ressignificados enquanto matriz original da nao, detentor de saberes e fazeres au-tnticos, necessitando ser protegidos das investidas exteriores que buscariam minar o patrimnio cultural da nao (ORTIZ, 2006).

    O tempo passa a ser um inimigo, engolindo cruelmente tradies, que estariam fadadas ao esquecimento no fosse o trabalho rduo dos intelectuais que buscam no entender como a cultura de um povo opera suas mudanas atravs da Histria, mas de fato procuram preservar uma noo construda, romntica, idealizada e imu-tvel de popular. Como afirma Ortiz

    Os folcloristas, no entanto, se assemelham mais aos inte-lectuais de provncia, Gramsci descreve como tradicionais. Reco-nhecendo a radicalidade das mudanas em curso, eles se voltam para uma operao de resgate. Os intelectuais orgnicos cami-nham a favor do tempo histrico, os tradicionais nadam contra a corrente, e procuram armazenar, em seus museus e bibliotecas, a maior quantidade de uma beleza morta (Idem, 2006, p 40).

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    O folclorista , antes de tudo, um saudosista. Amedrontado pela inexorabilidade temporal, busca prender a cultura, cerceando seus movimentos. Procura pelo unicr-nio por sua pureza e exotismo e, ao encontr-lo, cerca-o para que jamais escape, para que nenhum perigo possa vir a abater-se sobre ele, esperando que o mtico animal ali permanea para sempre. Constri um museu de tranquilidade para a fantstica cria-tura, empalhada por toda a eternidade em uma demonstrao atemporal (CERTEAU, 1995).

    Esse pensamento, evidentemente, no ficaria restrito apenas Europa. O Brasil comeou a produzir seus prprios folcloristas, mais notadamente a partir de 1922, quando aconteceu a Semana de Arte Moderna em So Paulo que, com resqucios de Hans Staden entre os dentes, professava uma antropofagia cultural. Os escritores Mario de Andrade e Rodrigo Melo Franco de Andrade buscaram coletivizar a cultura, tanto vertical quanto horizontalmente, buscando diminuir a distino entre o saber culto e o popular. A partir de 1935, cursos de formao para folcloristas passaram a ser abertos, incentivando o estudo etnogrfico de manifestaes ditas populares (ABREU, 2003). Assim como fora do pas, o folclore suscitou suas querelas, no ape-nas por sua propenso buscar congelar prticas culturais no tempo e pela sua pro-blemtica definio de popular, mas tambm por sua metodologia incipiente e a falta de um problemtica acerca do objeto estudado, preocupando-se mais em preservar do que em reconstruir. Chamados de intelectuais de provncia, os folcloristas tiveram as portas da Academia fechadas para seus estudos e sua disciplina no chegou a ser reconhecida como uma cincia, ainda que tomasse emprestados conceitos da Antro-pologia e da Etnografia (OLIVEIRA, 2008).

    Gilberto Freyre, que no era um folclorista e escreveu seu Manifesto Regionalis-ta como uma resposta as ideias divulgadas na Semana de Arte Moderna, ainda assim carregava consigo uma viso patriarcalista acerca de diversos aspectos da socieda-de brasileira. Sua nostalgia, principalmente acera de uma alimentao tipicamente pernambucana, evoca imagens de um romantismo protetor, que busca legitimar a tradio alimentar local, ainda que esta seja uma construo idealizada. Esse tradi-cionalismo ecoa fortemente nas palavras do folclorista potiguar Cmara Cascudo, que defendia a ideia de uma

    ... eleio de certos sabores que constituem o alicer-ce de patrimnio seletivo no domnio familiar, de regies intei-ras, unnimes na convico da excelncia nutritiva ou agrad-vel, cimentada atravs dos sculos (CASCUDO, 1983, P 19).

    Essas eleies de sabores, unnimes em regies inteiras, como afirma o autor, levam a um sentido de pertencimento de um alimento, geralmente junto com os ingredientes e tcnicas a ele associados, a uma determinada regio ou localidade. Dessa forma, cria-se uma imagem coletiva de um patrimnio alimentar que precisa ser protegido e que jamais deve abandonar suas caractersticas originais, marchando inclume pela Histria, sendo preparado e consumido exatamente da mesma maneira desde a sua criao, ainda que no seja possvel identificar com preciso de que for-ma ela se deu. A problemtica desse pensamento pode ser sentida ao se buscar com-

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    >Artigos

    preender uma preparao culinria de forte apelo regionalista e intimamente ligada cultura de um povo, como o caso do acaraj. A iguaria, tradicionalmente associada Bahia, possui uma reconhecida carga tnica e religiosa, sendo comida dos iorubas da frica Ocidental, sofrendo influncias do falafel rabe, tendo o gro-de-bico sendo substitudo pelo feijo fradinho no Brasil. Frito em leo de dend fervente, tem sua massa aberta e acrescida de recheios variados, tais como vatap, caruru, camaro refogado, pimenta e salada crua. Sua imagem quase indissocivel da baiana que o prepara e vende pelas ruas da cidade, quase sempre coberta da cabea aos ps de trajes tpicos e de forte apelo comercial e turstico (GOSTO, 2009, p 87).

    Uma viso folclorista do acaraj poderia levar a crer que o alimento manteve sua forma, funo e elementos constitutivos atravs do tempo, pouco ou nada mudan-do desde que trazido para o Brasil da frica, na forma de bolinho de fogo, o acar, as-sociado ao verbo comer, ajeum. Contudo, como demonstra o antroplogo baiano Raul Lody, o prato sofreu, ao longo do tempo, diversas modificaes, sendo os recheios e a forma de partir a massa, como um po, incluses tardias remontando poca da segunda guerra mundial e presena de soldados americanos principalmente no nordeste do Brasil que, quando estacionados em Salvador, consumiam seus acarajs como uma espcie de sanduche, um acaraburguer nas palavras de Lody (LODY, 2008). Por outro lado, o acaraj de Pernambuco, que pode ser encontrado em diver-sas vias do Recife, tais como a Dantas Barreto, a Agamenon Magalhes e vrias ruas paralelas Avenida Conde da Boa Vista, conserva caractersticas que o aproximam mais dos encontrados ainda nos dias de hoje em cidades africanas como Lagos e Por-to Novo. Bem menor do que soteropolitano, o acaraj recifense produzido com feijo macassa e frito em leo de soja ou milho mesmo. Trajes e adereos tpicos inexistem e a conotao religiosa raramente lembrada. No h recheios, sendo acompanha-do, quando muito, de pimenta malagueta e algum camaro defumado (CARVALHO, 2010).

    Apresenta-se a uma questo interessante, opondo duas preparaes culin-rias que possuem significados e composies diversos, mas que partilham do mesmo nome e de algumas caractersticas em comum. O acaraj de Salvador, miditico, ge-neroso, enxergado como um patrimnio da cultura baiana, servido entre os paralele-ppedos e o casario colorido do alto do Pelourinho, que sofreu influncias americanas em sua composio, considerado como representativo dentro de uma ideia de pure-za construda atravs das dcadas. J o do Recife, diminuto, discreto, quase tmido, vendido entre os sebos e vendedores de rolete de cana do bairro da Boa Vista ou sombra das palmeiras imperiais da Praa do Derby, possui uma aproximao muito maior com suas origens africanas e assim permanece at os dias de hoje, contudo no costumeiramente reconhecido como tal. Qual seria, ento, o acaraj verdadei-ro? A resposta, de fato, ambos. A compreenso folclorista e estanque de cultura no suficiente para explicar as mudanas ocorridas com a alimentao atravs da Histria.

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    Culturas alimentares

    As preparaes culinrias se ressignificam, sofrem e exercem influncias, trans-formando-se constantemente. Para se compreender tais processos, preciso, antes de tudo, buscar entender as trocas operadas pelas culturas e de quais formas elas se modificam atravs do tempo. A ideia, como j se falou, de uma cultura intocada, espe-cialmente aquela que se convencionou a se referir como popular, como algo recal-cado em um nicho limitado, parte do mainstream, suspenso no tempo e invulnervel s influncias externas perde cada vez mais o seu sentido. Ao contrrio, j possvel pensar em um folclore malevel, que exibe caractersticas regionais marcantes, mas que dialogue com as mudanas que ocorrem no mundo ao seu redor. Essa relao se d, em grande parte, atravs de necessidades comerciais, que empurram o detentor do fazer popular, seja ele arteso, cantor, poeta ou quituteiro, a uma aproximao natural com uma ideia de modernidade. Ao se expandir os horizontes econmicos, abrem-se as portas para trocas culturais que, ao contrrio do que se poderia pensar, no contribuem para a destruio de um bem cultural. Como brilhantemente afirma o pesquisador mexicano Nstor Canclini,

    O que no se pode dizer que a tendncia da moder-nizao simplesmente provocar o desaparecimento das cul-turas tradicionais. O problema no se reduz, ento, a conser-var e resgatar tradies supostamente inalteradas. Trata-se de perguntar como esto se transformando, como interagem com as foras da modernidade (CANCLINI, 1997, p 218).

    O autor segue afirmando que o popular, afinal de contas, no se concentra nos objetos que fabrica, nem deve ser congelado em patrimnios de bens estveis. Essa noo corri a ideia do folclore engessado, aproximando sua visualizao no de um lago de guas mortas, mas sim de um rio, em constante movimento, mas que no dei-xa para trs sua nascente. Como explica Canclini, em vez de uma coleo de objetos ou de costumes objetivados, a tradio pensada como um mecanismo de seleo, e mesmo de inveno, projetado em direo ao passado para legitimar o presente (Idem, 1997, p 219).

    No difcil trazer essa compreenso para o campo da alimentao, uma vez que essa dinamizao acontece todos os dias. A tapioca, por exemplo, alimento de origem indgena, fabricado da massa de mandioca e cuja etnografia parte da palavra tupi mbei, que quer dizer enrolado, considerada patrimnio imaterial da cidade de Olinda. Consumida pelos ndios ensopada junto ao caldo da preparao de peixes e carne de caa, o beiju popularizou-se com o acompanhamento de coco adocica-do atravs das escravas de ganho das senhoras de engenho pernambucanas, que saam pelas ruas da cidade a apregoar seus produtos (SOUTO MAIOR, 2004). A tapioca, bastante popular, continua sendo vendida nos dias de hoje, mas raramente encontrada como um simples beiju dobrado com raspas de coco doce. No Alto da S, um dos pontos tursticos mais visitados da cidade de Olinda, tapiocas so ven-didas com os mais variados recheios e o limite dessa criatividade parece ser apenas

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    a imaginao dos vendedores. Em cardpios de plstico, alguns at mesmo apre-sentando capengas explicaes em ingls, possvel encontrar massas no apenas recheadas com queijo coalho, mas tambm camaro, bacon, catupiry, strogonoff, cho-colate, banana caramelada e at mesmo tapiocas vegetarianas, grvidas de rcula e tomate seco. Continuam sendo tapiocas, mas seu leque de sabores, visando atender as necessidades de um mercado cada vez mais exigente e dinamizado, aumentou consideravelmente.

    A mistura de ingredientes possui reflexos nas inter-relaes culturais, mas anti-gas do que se poderia inicialmente supor. A ideia, evidentemente, vai se encontro ao pensamento folclrico de culturas puras, que estariam sob o risco de perder suas identidades atravs da internacionalizao cultural. Como explica Gruzinsky,

    Mesmo reconhecendo que todas as culturas so hbridas e que as misturas datam das origens da histria do homem, no podemos reduzir o fenmeno formulao de uma nova ideologia nascida da globalizao (GRUZINSKY, 2001, p 41).

    O autor quebra o conceito de um sistema impecvel, que se desestabiliza com a introduo de um elemento estrangeiro. Na verdade, as misturas ou mestiagens es-tariam, de fato, na raiz da ideia de cultura e no como um exotismo distante e desas-sociado de um elemento anterior puro. No existe uma evoluo ou marcha ordenada rumo uma realidade idealizada, e sim uma aceitao de que a cultura formada por elementos imprevistos e aleatrios, que interagem entre si de maneira catica e ines-perada. Esse movimento constante, esse devir enlouquecido, rodopiando atravs do tempo entre paradoxos que no se limitam a um tempo presente, fundindo passado e futuro em um movimento incessante, se recusa a aceitar noes de pureza ou de autenticidade. Assim sendo, o estudo da alimentao sob uma tica cultural deve ser encarado no dentro de limitaes que cerceiem seu movimento, mas inserido nas inmeras possibilidades que se apresentam ao pesquisador (DELEUZE, 2009).

    Estas comeam a ser percebidas com mais clareza no apenas pelo meio aca-dmico, mas tambm pelo poder pblico e mesmo pela populao, formando um triangulo de vrtices claramente desiguais, mas que exibem uma crescente preocu-pao, cada um sua maneira, com os rumos da Gastronomia local. Se por um lado existe um esforo de cunho folclorista para encapsular certas prticas e insumos em um nicho apartado do tempo e das inescapveis mudanas que ele enseja, por outro a cultura alimentar frequentemente se mostra indomvel, uma fera de beleza selva-gem e mutante, incapaz de dobrar-se docilmente ante o cabresto de limitaes artifi-cialmente impostas. longo o tempo da culinria, afirma o socilogo Carlos Alberto Dria, ao referir-se sua construo e sua relao com o ser humano que, afinal, a cria, mas raramente controla (DRIA, 2009, p 13). longo tambm o tempo da cultu-ra, onde a alimentao est inexoravelmente inserida e cujo caminho se estende para um horizonte distante que promete apenas mutabilidade e incerteza. Sero estes os ingredientes primordiais de todos aqueles que se dedicarem ao estudo da Gastrono-mia, um cardpio em constante e imprevisvel transformao. A mesa est posta.

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    Referncias Bibliogrficas

    ABREU, Martha; SOIHET, Rachel. Ensino de Histria: conceitos, temticas e metodologia. Rio de Janeiro: Ed. Casa da Palavra, 2003.

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    _________, Nstor Garcia. Culturas Hbridas: estratgias para entrar e sair da modernida-de. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 1997. p 219.

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    Cozinha de ingredientes: uma forma de atualizar tradies gastronmicas?

    Joana A. Pellerano1

    Luana Budel2

    Talitha Ferreira3

    Resumo

    Apesar de passar, muitas vezes, despercebida diante da correria cotidiana cau-sada pela organizao da sociedade contempornea, a comida traz discusses que vo muito alm da mesa. As crises de identidade regional e nacional; o uso de novos produtos brasileiros; a massificao dos gostos e texturas por conta da indstria ali-mentcia; a falta de compreenso e pacincia dos comensais mediante a sazonalidade da natureza, e at mesmo o atual papel assumido pelos chefs de cozinha e cozinhei-ros, chamam a ateno e remetem a pensar a essncia da comida: seus ingredientes. A juno de tcnicas advindas da industrializao com as ideias que surgem dentro das cozinhas, alm dos estudos luz da Histria, Sociologia e Antropologia voltados alimentao, a valorizao e o maior conhecimento dos ingredientes - desde o trato com a terra finalizao de um prato - podem ser pensados justamente como uma metodologia de aproximao da teoria e da prtica, sendo a cozinha de ingredientes um dos espaos possveis para que isso acontea. A cozinha de ingredientes visa explorar novas tcnicas culinrias em produtos j cotidianamente utilizados, alterar as formas de lidar com os ingredientes de uma receita tida como tradicional ou tpica e apresentar novos formatos para antigas preparaes sem que se tema a perda de uma histria e identidade que a sociedade estabeleceu com a comida, por meio da cultura, ao longo do tempo. O objetivo desse artigo entender de que forma isso acontece, com base em pesquisas bibliogrficas que exploram o conceito e as espe-cificidades dessa forma de cozinhar.

    Palavras-chave: gastronomia, cozinha, ingredientes, tradio, sazonalidade

    1 Possui graduao em Comunicao Social - Jornalismo pela Universidade Federal do Esprito Santo (2004), mestrado em Comunicao e Gas-tronomia - Universitat de Vic (2007) e ps-graduao em Gastronomia: Vivncias Culturais - Centro Universitrio Senac (2010). Est cursando mestrado em Cincias Sociais na PUC-SP - Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo e coordena a especializao Gastronomia: Histria e Cultura da unidade Aclimao, Senac So Paulo. 2 Formou-se em Gastronomia pela Universidade FMU de So Paulo, tem ps-graduao em Gastronomia: Vivncias Culturais pelo Centro Uni-versitrio Senac e atua como docente nos cursos de graduao em Tecnologia em Gastronomia e na ps-graduao em Gastronomia Funcional da Faculdade Mtodo de So Paulo (Famesp) 3 Formou-se em Hotelaria (2005), especializou-se em Cozinha Internacional (2007) e tem ps-graduao em Gastronomia: Vivncias Culturais (2009) pelo Centro Universitrio Senac. Est cursando graduao em Cincias Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

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    Abstract

    Though often unnoticed in face of the daily rush and the organization of contem-porary society, food can generate discussions that go far beyond the table. The crises of regional and national identity, the use of new Brazilian products, the massification of tastes and textures due to food industry; the lack of understanding and patience of the diners in face of seasonal nature and even the role played by chefs and cooks get our attention and lead us to think the essence of food: ingredients. The encounter between industrializations techniques and the ideas that emerge inside the kitchens, besides the studies in light of History, Sociology and Anthropology about food, the appreciation and greater knowledge about ingredients from the labor with the soil to the final pre-sentation of a dish - can be thought as a methodology of approaching theory and prac-tice, and this form of looking to ingredients is one of the possible places to make this happen. The focus on ingredients aims to explore new culinary techniques in everyday products, change the ways of dealing with the ingredients of a typical or traditional re-cipe and show new ways for presenting ancient preparations without being subject to loss of identity or history that society established with the food through the culture over time. The goal of this paper is to understand how this happens, based on bibliographic research that explore the concept and characteristics of this form of cooking.

    Keywords: gastronomy, cuisine, ingredients, tradition, seasonality

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    Cozinha de ingredientes: uma forma de atualizar tradies gastro-nmicas?

    Valorizar o ingrediente, fazendo com que seu sabor e frescor sejam notados pelo comensal: assim pode ser definida a cozinha de ingredientes. De acordo com Dria (2009. p.58), essa forma de cozinhar a expresso do esforo por inovar sem pagar tributo aos receiturios tradicionais, isto , aos usos histricos dos mesmos.

    As tcnicas culinrias seguidas risca pelos profissionais da gastronomia e amplamente ensinadas dentro das escolas profissionalizantes de culinria e hotelaria tendem a se difundir pelo mundo, perdendo a capacidade de diferenciar as especi-ficidades de uma culinria das demais. A vulgarizao e estabilizao de tais tcnicas nas mos de diferentes cozinheiros fato j consumado e pode levar os muitos sabo-res de uma cozinha a uma homogeneidade e consequente monotonia: a cozinha de ingredientes aparece, portanto, como possibilidade de melhor desenvolver as prepa-raes culinrias e aguar o conhecimento e criatividade dos cozinheiros, a favor do prazer do comensal. O objetivo desse artigo entender de que forma isso acontece, com base em pesquisas bibliogrficas que exploram o conceito e as especificidades dessa forma de cozinhar.

    A cozinha de ingredientes implica em uma misso principalmente para os cozi-nheiros de conhecer a fundo, pensar e utilizar os ingredientes independentemente de seus conceitos pr-estabelecidos, suas origens, suas amarras histrico-culturais. Assim, tratando-se de culinria brasileira, todos os ingredientes aos quais os brasi-leiros podem ter acesso (sem restries relacionadas s fronteiras geopolticas) se tornariam possibilidades de criaes culinrias criativas e originais. O regionalismo culinrio [...] uma armadilha para o conhecimento. Ele serve para o turismo mais do que para a gastronomia. (ATALA; DRIA, 2008, p. 197).

    Para Dria, a capacidade de inovar depende justamente do repertrio de ingre-dientes e produtos utilizados na experimentao gastronmica:

    A viso hierrquica do trabalho culinrio essencial para que a cozinha de ingredientes no se perca em discus-ses estreis que s limitam o impulso criativo e renovador dos chefs de cozinha atuais. Ao mesmo tempo, ela exige que observemos nossa prpria histria culinria sob nova ptica como histria de ingredientes plasmados pela cultura bra-sileira, sejam eles nativos ou exticos. (Idem, 2009, p.61).

    Relativamente nova, a cozinha de ingredientes depende da compreenso do consumidor a respeito da sazonalidade dos ingredientes e dos problemas energti-cos e ambientais envolvidos na logstica de transportar comida pelo mundo todo para tornar os alimentos eternamente disponveis (DELIND, 2006). A lgica da sociedade moderna em relao ao consumo nem sempre caminha paralelamente lgica da produo dos ingredientes que vm diretamente da natureza: o deslocamento e alon-gamento das noes de tempo e espao na modernidade, bem como descrito por

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    Giddens (1998), faz com que as pessoas percam de vista as restries atreladas a ambos, o que gera a constante impresso de que tudo est ao alcance em todos os lugares, o tempo todo.

    Embora a qualidade dos produtos locais e, consequentemente, mais frescos, tenha sido reconhecida ao longo da Histria, o movimento de valorizao das cozi-nhas regionais tem somente um par de sculos (MONTANARI, 2008). At meados do sculo XVII, superar a dimenso local e encher a mesa de especialidades e experin-cias - o que hoje a sntese dos restaurantes self-service a quilo - era sinal de poder e ostentao. O conceito local surge quando se consolidam as identidades nacionais, e apenas o incio do processo de globalizao dos mercados e dos modelos alimenta-res faz germinar no homem o gosto da geografia (Ibidem, p.141).

    Como o sculo XX evidenciou a potencial uniformidade dos estilos de vida, sur-ge entre as populaes o medo de perder sua identidade. Cascudo, por exemplo, cr que o alimento representa o povo que o consome, d a impresso confusa e viva do temperamento e maneira de viver, de conquistar os vveres, de transformar o ato de nutrio numa cerimnia indispensvel de convvio humano (CASCUDO, 2004. p.387). A comida assume, ento, uma categoria simblica relevante na construo da identidade social, o que confere a ela grande importncia dentro da estrutura da sociedade na qual se insere.

    Para Fischler, se a frmula diga o que comes que te direi quem s reflete [...] uma verdade no s biolgica e social, mas tambm simblica e subjetiva, h de se admitir que o comensal moderno, duvidando do que come, pode muito bem duvidar de quem ele (1995, p.212). As tradies alimentares, portanto, podem ter uma funo emblemtica de resistncia cultural, e a identidade nacional - que uma das principais fontes de uma identidade cultural, pois est relacionada ao que as pessoas so (ou acham e mostram ser) , quando ameaada, tambm pode ser reafirmada por meio de escolhas feitas mesa. Esta ltima, ento, torna-se terreno de disputa entre os ditames da histria e as novidades do momento atual.

    Para Poulain, a supervalorizao do menu regional sinal de crise identitria: a patrimonializao do alimentar e do gastronmico emerge num contexto de transfor-mao das prticas alimentares vividas no modo da degradao e mais amplamente no do risco de perda da identidade (Idem, 2004. p.38). J Fonseca et al (2009, p.3856) reforam que, apesar da diversidade inerente aos sistemas alimentares, um aspecto fundamental na significao da alimentao: a identidade. O comensal precisa se identificar com o alimento para reconhec-lo e signific-lo - necessidade que acaba se vendo ameaada pelos mercados transnacionais, que causam o deslocamento dos alimentos de determinada origem geogrfica para locais onde no so tradicio-nalmente associados. Nas palavras de Fischler (1995. p.211): o alimento moderno j no tem identidade, pois no identificvel.

    O desconhecimento da origem de um alimento, portanto, cria a possibilidade da incorporao de algo possivelmente nocivo ao fsico ou ao psicolgico. Dessa forma cria-se, em especial nas grandes cidades, a valorizao da volta natureza, do sim-ples e do rstico; uma nostalgia de um espao social em que o comedor viva sem angstia, ao abrigo de uma cultura culinria claramente identificada e identificante (POULAIN, 2004, p.34).

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    Assim nasce uma viso utpica da ruralidade: os habitantes do interior - que em teoria tm contato com a terra, local de onde nascem os alimentos - passam a ser guardies do patrimnio gastronmico, e os ingredientes e modos de preparo tpicos, baluartes da tradio, que devem ser valorizados e protegidos das coisas da moder-nidade. O ser cosmopolita, que habita as grandes cidades e que sente a presso da variedade mundial roubar-lhe as lembranas do simples, passa a buscar refgio na utopia desse lugar privilegiado, onde tudo descomplicado, livre das presses e im-presses da vida contempornea.

    A partir disto, os ingredientes tradicionais passam a simbolizar esse estilo de vida simples e conquistam os interesses da sociedade no apenas por seu valor nos-tlgico, mas por sua raridade no espao habitado pelo cosmopolita. Montanari ressal-ta que os ingredientes sempre foram causadores de uma interessante dicotomia: h comidas que se apresentam nas mesas simples e sofisticadas sem ao menos agradar aos comensais em volta delas. Os mais pobres as consomem por necessidade, e os mais ricos pela utopia de uma simplicidade (Idem, 2009).

    Na gastronomia, a discusso e a reflexo terica sobre os paradoxos da ali-mentao contempornea auxiliam a se compreender assuntos cada vez mais pro-curados no s por quem cozinha, mas principalmente por quem come: slow food, cozinha tecnoemocional e comfort food so somente alguns dos vrios movimentos (e conceitos) j criados em torno dos alimentos para determinar no s um ingrediente, mas tambm um conjunto de hbitos, preparos, espaos e caractersticas especficas que precedem o comer daqueles que buscam, por exemplo, resposta s produes de alimentos em larga escala, ou at mesmo agitada vida urbana que impede que as pessoas apreciem suas comidas em um tempo considerado ideal. Assim, tem-se a impresso que esses movimentos trazem ao cotidiano da sociedade moderna, mesmo que lentamente, novos padres alimentares e maiores transformaes no hbito de comer, que sero realmente estabelecidos num futuro prximo, como que para as prximas geraes.

    A cozinha de ingredientes aparece neste contexto de hiperexposio s novida-des, especialmente aquelas vinculadas alimentao. Por conta disso, sua proposta funciona como um meio termo entre utilizao de novas tcnicas e aplicao de novos conhecimentos, e um paladar j costumeiro. como observa Dria:

    Interessante que nos grandes centros urbanos, onde forte a presso das culinrias do mundo todo, vivemos uma nova fase talvez defensiva de celebrao da culinria bra-sileira. Com esforos prprios de estilizao, muitos chefs ino-vadores buscam situar essa tradio no imaginrio e nos dese-jos de um pblico consumidor vido por novidades (2009, p.9).

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    Todavia, no h necessidade de enaltecer o passado com o intuito de preser-var-se das incertezas futuras. Ainda que fortemente enraizados na identidade social, os sistemas alimentares esto sempre expostos a influncias externas e potenciais adaptaes. Os cardpios vm passando por processos de globalizao h milhares de anos, iniciados com a troca de plantas e animais recm-domesticados muito antes das Grandes Navegaes e do atual intercmbio frentico de economias e culturas (KIPLE; ORNELAS, 2000).

    A culinria de um povo, fazendo parte das estruturas sociais dele, mostra-se tambm como um sistema aberto e fica exposta s mudanas que provm do passar do tempo. Para Morin, uma mudana nestes sistemas acontece quando sua exis-tncia e a manuteno de sua diversidade so inseparveis de inter-relaes com o ambiente (Idem, 2000. p.292). Elucidando as estrtuturas sociais: se um determinado sistema fechado e monoltico, como uma pedra, representa aquele que est em estado de equilbrio, visto que no troca matria ou energia com o exterior. J um sistema aberto possui uma relao termodinmica com o exterior: [...] as estruturas permanecem as mesmas, ainda que os constituintes sejam mutantes; assim acontece [...] com nossos organismos, onde nossas molculas e nossas clulas renovam-se sem cessar, enquanto o conjunto permanece aparentemente estvel e estacionrio (Idem, 2006, p.21).

    Para Poulain (2004. p.31), os particularismos nacionais e regionais no desa-parecem to rapidamente, pois so mais fortes e enraizados que qualquer novidade. Alm disso, como aponta Montanari, as identidades culturais no so partes do DNA de um povo, mas esto constantemente adaptando-se s influncias externas e s trocas com outras culturas: as identidades, portanto, no existem sem as trocas cul-turais, e proteger a biodiversidade cultural no significa enclausurar cada identidade numa concha, mas, sim, conect-las (Idem, 2009. p.12).

    Prova disso que, mesmo em uma poca em que as refeies j no feitas em casa, o interesse pela cozinha brasileira cresce a cada dia (DRIA, 2009). Seja por moda, saudosismo ou preocupao com os caminhos que a identidade nacional anda percorrendo, enquanto o local for valorizado, o foco no ingrediente - seja tanto por par-te de quem cozinha quanto de quem come- promete ter lugar garantido nos cardpios rotineiros e trazer novas experincias aos comensais, que podero provar o novo por meio do tradicional.

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    Referncias Bibliogrficas

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    POULAIN, Jean-Pierre. Sociologias da Alimentao: Os comedores e o espao social alimentar. Florianpolis: Editora da UFSC, 2004.

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    A restaurao nos meios de hospedagem: uma abordagem

    terica sobre a importncia da garantia da qualidade nos alimentos

    Rosislene de Ftima Fontana1

    Resumo

    Partindo do princpio de que os empreendimentos hoteleiros no fornecem so-mente o servio de hospedagem, mas sim tambm servios de alimentao, o pre-sente artigo caracteriza-se como um estudo terico a respeito da importncia das Boas Prticas para o setor de restaurao dentro dos meios de hospedagem, sendo esse o objetivo geral do mesmo. Visando um melhor entendimento dos leitores, apre-senta conceitos e explanaes sobre o setor de restaurao dos empreendimentos hoteleiros, bem como sobre a segurana de alimentos, as boas prticas e, do manual de boas prticas.

    Palavras-chave: empreendimentos hoteleiros; restaurao; manual de boas prticas.

    1 Possui graduao em Turismo e Hotelaria pela Universidade Norte do Parana (2001), graduao em Processamento de Dados pela Universida-de Norte do Parana (1994), mestrado em Hospitalidade pela Universidade Anhembi Morumbi (2005). Especializao em Gesto da Segurana de Alimentos pelo SENAC - PR (2011). Doutoranda em Turismo e Hotelaria pela Universidade do Vale do Itaja - SC. Docente titular da UNIOESTE - campus Foz do Iguau, trabalhando com o curso de Hotelaria. Atualmente est como Coordenadora do Curso de Hotelaria. Tem experincia na rea de Turismo, atuando principalmente nos seguintes temas: turismo, turismo rural, hospitalidade, hotelaria e comunicao.

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    Abstract

    Assuming that the tourist resorts not only provide the hosting service, but also food services, this article is characterized as a theoretical study about the importance of Practice for the catering industry within the means hosting, which is the general purpose of it. Seeking a better understanding of readers, presenting concepts and ex-planations about the sector of restoration of tourist resorts, as well as food safety, best practices, and the manual of good practice.

    Keywords: tourist resorts, restaurants, good practice manual.

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    Introduo

    Feliz o homem que come comida, bebe bebida, e por isso tem alegria (FERNAN-DO PESSOA).

    A refeio tem sido uma ocasio mpar para a prtica da sociabilidade do ser humano e, desta forma, a alimentao est ligada aos setores de produo, abasteci-mento e consumo, tendo ainda vnculo com a nutrio.

    Com origem no caldo restaurador, a palavra restaurao deu origem ao restau-rante. Hoje, o setor da restaurao engloba no apenas os restaurantes, mas todos os estabelecimentos comerciais destinados a alimentar as pessoas (FREIXA; CHAVES, 2008).

    A empresa hoteleira tem como princpio bsico oferecer hospedagem a determi-nada clientela. Porm, a maioria dos estabelecimentos hoteleiros oferece no somen-te o alojamento, como tambm a alimentao e demais servios.

    A rea de restaurao a mais complexa dentro da estrutura organizacional e funcional do empreendimento hoteleiro, contemplando espaos como, por exemplo, restaurante, cozinha, copa, bar e banquetes, dependendo do tamanho da estrutura fsica e dos servios oferecidos aos clientes (CASTELI, 2006).

    Dessa forma, entende-se que os servios de restaurao oferecidos dentro de uma empresa hoteleira devem primar pela qualidade dos mesmos. Qualidade essa que aliada a inocuidade dos alimentos tem se constitudo uma das principais preocu-paes dos consumidores.

    Dia aps dia, os consumidores vm se conscientizando de seus direitos com relao aquisio de produtos ou servios, inclusive os que tangem a produo e comercializao de alimentos.

    A produo de alimentos com qualidade assegurada representa um importante desafio ao setor de restaurao. Implementar aes para assegurar a qualidade exige muito comprometimento e envolvimento de todo o pessoal relacionado ao processo produtivo.

    Diversos so os instrumentos utilizados para atingir os objetivos referentes qualidade do alimento oferecido ao consumidor e, um destes instrumentos a adoo das Boas Prticas de Fabricao (BPF) (NETO, 2005).

    Sendo assim, entende-se que o empreendimento hoteleiro tambm deve buscar pela qualidade e segurana dos alimentos oferecidos no setor da restaurao hote-leira.

    Dessa forma, o presente artigo tem como objetivo demonstrar, por meio de um estudo terico, a importncia das Boas Prticas na Restaurao para a segurana alimentar nos empreendimentos hoteleiros.

    A metodologia deste artigo est centrada na pesquisa e coleta de informaes de ordem terica viabilizada, portanto, atravs de levantamento bibliogrfico em livros e em peridicos que abordam o tema em questo.

    Trata-se portanto de um trabalho de carter descritivo qualitativo, com pesqui-

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    >Artigos

    sa bibliogrfica e documental. Para Andrade (2006), na pesquisa descritiva os fatos so registrados, analisados, classificados e interpretados, sem a interferncia do pes-quisador, ou seja, procura-se descobrir a freqncia com que um fato ocorre, sua natureza, caractersticas, causas, relaes com outros fatos. Caracteriza-se como pesquisa qualitativa, pois busca-se a anlise de dados para a elaborao do trabalho a partir de fontes fidedignas sobre o tema em questo. De acordo com Gil (1999) a pesquisa bibliogrfica desenvolvida a partir de livros e artigos cientficos, pautada no levantamento e na anlise de diferentes fontes bibliogrficas j tratadas. Similarmente pesquisa bibliogrfica, a pesquisa documental consiste em uma abordagem de apoio s diversas pesquisas. O que difere essencialmente a pesquisa bibliogrfica e documental a natureza das fontes (GIL, 1999).

    1. Conhecendo o empreendimento hoteleiro e a restaurao nele praticada

    O desenvolvimento dos meios de hospedagem iniciou h muito tempo, devido necessidade de abrigo durante viagens.

    De acordo com o Regulamento Geral dos Meios de Hospedagem (BRASIL, 2002, p.1), no seu artigo 2, [...] considera-se empresa hoteleira a pessoa jurdica, constituda na forma de sociedade annima ou sociedade por quotas de responsabi-lidade limitada, que explore ou administre meio de hospedagem e que tenha em seus objetivos sociais o exerccio da atividade hoteleira [...].

    Para Castelli (2003, p.56) Uma empresa hoteleira pode ser entendida como sendo uma organizao que, mediante pagamento de dirias oferece alojamento a clientela indiscriminada.

    Na atualidade existem variaes de meios de hospedagem adequados para atender as necessidades dos mais variados pblicos, desde mochileiros, at hspe-des exigentes que procuram atendimento de alta qualidade e luxuosas instalaes.

    Os meios de hospedagem so empreendimentos que prestam servios, - quan-do vendem apartamentos, servios de lavanderia, etc. -, transformam matrias primas em produtos - como o caso do setor de A&B Alimentos e bebidas (Restaurao) -, e revendem produtos que no foram transformados no estabelecimento, como re-frigerantes, chocolates, dentre outros, exercendo uma atividade comercial (BOEGER, YAMASHITA, 2005).

    1.1 A restaurao nos meios de hospedagem

    O setor de restaurao (conhecido tambm como A&B) constitui pea funda-mental para o funcionamento de um hotel e , geralmente, entendido como o setor de organizao mais complexa dentro deste tipo de empreendimento. Ali, a exigncia de mo-de-obra qualificada e especializada maior, e seu custo cerca de 2,5 vezes mais alto do que nos outros setores do negcio (CASTELLI, 2006).

    Para muitos hotis a restaurao um negcio rentvel na medida em que ela dotada de excelente organizao e controle, sob o comando de um bom adminis-trador.

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    O agrupamento de setores como cozinha, restaurante, bar, copa, banquetes e stewarding sob a direo nica do gerente de A&B oferece vantagens como: poder coordenar os