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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE ARTES E COMUNICAÇÃO SOCIAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÍDIA E COTIDIANO CAMILLE COSTA PERISSÉ PEREIRA COMUNICAÇÃO QUE SOBREVIVE: A BUSCA DE AUTOSSUSTENTO PARA UMA MÍDIA AUTOGERIDA POR MORADORES DA CIDADE DE DEUS Niterói 2015

Comunicação que sobrevive : a busca de autossustento para uma mídia autogerida por moradores da Cidade de Deus

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A presente pesquisa se propõe a analisar e avaliar como veículos de comunicação comunitários lidam com a necessidade e dificuldade de autossustento material e autonomia, apontando novas estratégias a serem construídas com os organizadores de tais veículos. Parte-se da premissa de que os veículos analisados se inserem em um contexto de profunda concentração de propriedade dos meios de comunicação, em que, no entanto, diferentes forças seguem em disputa pela hegemonia. Essa compreensão se faz necessária para que os resultados da pesquisa não sejam simplificados em microanálises. Além da revisão bibliográfica, utiliza-se análise documental e a metodologia de pesquisa participante. O estudo se concentra na circulação de veículos comunitários do bairro Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, especificamente um jornal comunitário, conduzido, desde 2010, por moradores da Cidade de Deus. A notícia por que vive foi construído a partir de uma experiência anterior de apropriação das mídias nesta comunidade O estudo busca relacionar Comunicação Comunitária, sociedade civil e socialização da política, no intuito de expor as batalhas cotidianas que se inserem dentro destes campos. Também são incluídas no trabalho reflexões acerca do papel do Estado nas favelas e na promoção das mídias. Por fim, experiências pelas quais o veículo em questão passou ao longo de sua trajetória no que tange à arrecadação de recursos - como a participação em editais, a campanha de crowdfunding e eventos locais - e ao uso de publicidade serão reavaliadas e diagnosticadas, para que, em diálogo com os atores sociais, ainda se possam encontrar possíveis soluções éticas para o problema da autonomia financeira e sobrevivência material.This present research has the pretension to analyze e value how media of Community Communication deal with the necessity and difficulty of material self-support and autonomy, pointing new strategies to be constructed with the organizers of such Media. We start with the premise of what these media analyzed are in a context of deep media’s property’s concentration in which, however, different forces dispute hegemony. This comprehension is necessary in order to the results of research not be simplified in microanalysis. In addition to bibliographic review, we use documental analysis and Participatory Research Methods. The study concentrates in media of Cidade de Deus’s neighborhood, specifically a community journal conducted, since 2010, by locals. A notícia por quem vive was constructed from an anterior experience of local media. The study tries to relate concepts such as Community Communication civil society and politics socialization, in a way to expose the everyday battles that’s into these fields of knowledge. Also it’s included reflections about the relevance of State in communities and its promotion of media. The experiences through that these medium has passed in its trajectory in which concerns resource collection – such as public notices, the crowdfounding campain and the use of publicity – will be reassessed and diagnosticated, in order to, in dialogue with social actors, possible solutions and goals be founded to the problem of financial autonomy and material survival.

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    INSTITUTO DE ARTES E COMUNICAO SOCIAL

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM MDIA E COTIDIANO

    CAMILLE COSTA PERISS PEREIRA

    COMUNICAO QUE SOBREVIVE: A BUSCA DE AUTOSSUSTENTO PARA UMA

    MDIA AUTOGERIDA POR MORADORES DA CIDADE DE DEUS

    Niteri

    2015

  • I

    Universidade Federal Fluminense

    Instituto de Artes e Comunicao Social

    Programa de Ps-Graduao em Mdia e Cotidiano

    CAMILLE COSTA PERISS PEREIRA

    COMUNICAO QUE SOBREVIVE:

    A BUSCA DE AUTOSSUSTENTO PARA UMA MDIA AUTOGERIDA

    POR MORADORES DA CIDADE DE DEUS

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em

    Mdia e Cotidiano da Universidade Federal Fluminense, como

    requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Mdia

    e Cotidiano.

    rea de concentrao: Comunicao Social

    Orientador: Prof. Dr. Patrcia Gonalves Saldanha

    Niteri

    2015

  • Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoat

    P436 Pereira, Camille Costa Periss Comunicao que sobrevive : a busca de autossustento para

    uma mdia autogerida por moradores da Cidade de Deus / Camille

    Costa Periss Pereira. 2015. 85 f.

    Orientadora: Patrcia Gonalves Saldanha.

    Dissertao (Mestrado em Mdia e Cotidiano) Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e Comunicao Social, 2015.

    Bibliografia: f. 53-54.

    1. Meio de comunicao. 2. Publicidade. 3. Democratizao. 4. Favela; aspecto social. 5. Rio de Janeiro (RJ). I. Saldanha,

    Patrcia Gonalves. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto

    de Arte e Comunicao Social. III. Ttulo.

    CDD 302.2308

  • II

    Universidade Federal Fluminense

    Instituto de Artes e Comunicao Social

    Programa de Ps-Graduao em Mdia e Cotidiano

    CAMILLE COSTA PERISS PEREIRA

    COMUNICAO QUE SOBREVIVE:

    A BUSCA DE AUTOSSUSTENTO PARA UMA MDIA AUTOGERIDA

    POR MORADORES DA CIDADE DE DEUS

    BANCA EXAMINADORA

    ................................................................. Prof. Dra. Patrcia Gonalves Saldanha

    Universidade Federal Fluminense

    .................................................................

    Prof. Dra. Marco Schneider

    Universidade Federal Fluminense

    .................................................................

    Prof. Dr. Igor Sacramento

    Fundao Oswaldo Cruz

    Niteri

    MAIO 2015

  • III

    Aos trabalhadores e comunicadores comunitrios.

  • IV

    AGRADECIMENTOS

    A todos que me acompanharam, mesmo que por um minuto, nesses dois anos de

    trabalho, saibam que esse um momento simblico de encerramento de ciclos. O que me faz

    ter a certeza de que nada deixado pra trs, pois j faz parte de mim, e de que h de haver

    foras para se renovar e prosseguir. So muitos olhos, mos, braos e afetos que me do essa

    energia a cada momento, e que marcam a minha memria e meu aprendizado. No

    conseguirei nomear todos os seres que participaram desse processo aqui, mas esse trabalho

    em gratido a todos eles. A ordem em que aparecem no hierrquica.

    Agradeo minha orientadora Patrcia Saldanha, com toda a empatia e incentivo, e

    aos professores queridos do PPGMC, Adilson, Ana Paula, Marco, Marcio, Farbiarz, Laura,

    Denise e Renata, por acompanharem com ateno e responsabilidade essa etapa importante de

    todos os primeiros formandos do programa. E, especialmente Cludia, que merece muito

    mais que flores no dia dos servidores pblicos.

    Aos moradores comunicadores da Cidade de Deus: Anglica, Cilene, Julcinara, Felipe,

    Lanna, Rosalina, Socorro, Valria; pelos meus sbados mais alegres, pela sabedoria, pelo

    acolhimento ao longo destes trs anos. Sim, j so trs anos com vocs! Passou voando, e

    estou muito orgulhosa pelos laos feitos, pelos debates, pelos lanches e almoos, pela

    sustentabilidade do jornal, pelas fotos desprevenidas, toda a atmosfera que vocs criam me

    conforta muito e me faz saber que estou no lugar certo, trabalhando com amor por nossa

    querida CDD.

    Aos companheiros do Soltec, no tenho palavras para descrever o que aprendi com

    vocs: desde sonhar, se decepcionar, lutar, transformar, amar. Marlia, Renata e Celso, vocs

    se tornaram como minha famlia, alm de, academicamente, repassarem seu conhecimento

    prvio da CDD e construrem outros junto comigo. Sinto que ainda temos muito o que trilhar

    juntos. Amanda, Isis, Ana Pazo, Ana Castro, Lilian, Clara e Raquel, cada uma a seu modo,

    vocs tambm participaram um pouco da minha trajetria, tambm acenderam uma chama em

    meu peito. E em todos os outros projetos e espaos do ncleo, a presena de pessoas que se

    tornaram queridas e amiga(o)s, como Alan, Douglas, Felipe, Camila, Jammal, Rosina,

  • V

    Flavinho, Maressa, Lycia, Mait, Ricardo, Luiz Felipe, Jair, Thais(es), Augusto, Sido, Silvia,

    Kellen, Diego (e ainda nem cheguei perto de nomear todos que conheci) me inspiraram e

    deram foras.

    minha famlia, agradeo de corao: minha me, Leila, meu pai, Srgio, meu irmo,

    Yan, minhas tias Sonia, Mary e Katia, tios Fred e Nelson, avs Mila, Helio e Ruth, v Carlos,

    em esprito, e primos Claudinha, Dudu, Flavinho, Rafaela, Gabriel, Gabriela, Larinha,

    Marcinha, Julia. Mesmo de longe, ou de perto convivendo com meus defeitos, todos me

    deram amor. No h como dimensionar o significado de poder contar com vocs: nada eu

    seria sem isso. E posso incluir nessa famlia tambm uma criatura no humana, mas

    orgulhosamente canina: Dara.

    Amigo deriva no latim, amicus, de Amar, amore. Amiga(o) quem se ama. E

    namorada(o)s e familiares podem se incluir nisso. Para mim, tanto os afetos de longos anos

    quanto os novos encantos merecem reconhecimento, por isso to difcil pr os nomes

    linearmente. Existem muito mais seres amados que convivi ou comecei a conhecer nesse ciclo

    que est se fechando: s companheiras de curso que amo, especialmente as queridas Nat,

    Karol e Tata,. A Victor, com sua ternura e o companheirismo: sou grata por todo amor e todas

    as motivaes, toda a gua que regou meu pensamento crtico e meus sonhos por liberdade.

    Aos irmos que me acompanham desde a escola: Marianne, Luis, Tainan, Guilherme, Gabi,

    Patrcia, Bruna, Dafne, vocs so pra sempre. Aos que conheci nesse meio tempo entre

    faculdade e mestrado e militncia: Elis, Celsovo, Mineiro, Cathe, Caio, Bruna, Raphael, Igor,

    Luisinha, Mariana, Thamara, Diogo, Daniel, Charles, Thane, Dbora, Julia, Vinicius. toda

    uma roda de afetos que me ajuda a viver, onde cada passo uma dana, cada voz uma

    msica, cada dar de mos, uma ciranda.

  • VI

    Volver a los diecisiete

    despus de vivir un siglo

    es como descifrar signos

    sin ser sabio competente,

    volver a ser de repente

    tan frgil como un segundo,

    volver a sentir profundo

    como un nio frente a Dios,

    eso es lo que siento yo

    en este instante fecundo.

    Se va enredando, enredando,

    como en el muro la hiedra,

    y va brotando, brotando,

    como el musguito en la piedra

    Como el musguito en la piedra

    Ay,s, s s.

    Violeta Parra

  • VII

    RESUMO

    A presente pesquisa se prope a analisar e avaliar como veculos de comunicao

    comunitrios lidam com a necessidade e dificuldade de autossustento material e autonomia,

    apontando novas estratgias a serem construdas com os organizadores de tais veculos. Parte-

    se da premissa de que os veculos analisados se inserem em um contexto de profunda

    concentrao de propriedade dos meios de comunicao, em que, no entanto, diferentes foras

    seguem em disputa pela hegemonia. Essa compreenso se faz necessria para que os

    resultados da pesquisa no sejam simplificados em microanlises. Alm da reviso

    bibliogrfica, utiliza-se anlise documental e a metodologia de pesquisa participante. O estudo

    se concentra na circulao de veculos comunitrios do bairro Cidade de Deus, no Rio de

    Janeiro, especificamente um jornal comunitrio, conduzido, desde 2010, por moradores da

    Cidade de Deus. A notcia por que vive foi construdo a partir de uma experincia anterior de

    apropriao das mdias nesta comunidade O estudo busca relacionar Comunicao

    Comunitria, sociedade civil e socializao da poltica, no intuito de expor as batalhas

    cotidianas que se inserem dentro destes campos. Tambm so includas no trabalho reflexes

    acerca do papel do Estado nas favelas e na promoo das mdias. Por fim, experincias pelas

    quais o veculo em questo passou ao longo de sua trajetria no que tange arrecadao de

    recursos - como a participao em editais, a campanha de crowdfunding e eventos locais - e

    ao uso de publicidade sero reavaliadas e diagnosticadas, para que, em dilogo com os atores

    sociais, ainda se possam encontrar possveis solues ticas para o problema da autonomia

    financeira e sobrevivncia material.

    Palavras-chave: Comunicao Comunitria; Democratizao da Comunicao;

    Publicidade Comunitria; Cidade de Deus; A Notcia Por Quem Vive

  • VIII

    ABSTRACT

    This present research has the pretension to analyze e value how media of Community

    Communication deal with the necessity and difficulty of material self-support and autonomy,

    pointing new strategies to be constructed with the organizers of such Media. We start with the

    premise of what these media analyzed are in a context of deep medias propertys concentration in which, however, different forces dispute hegemony. This comprehension is

    necessary in order to the results of research not be simplified in microanalysis. In addition to

    bibliographic review, we use documental analysis and Participatory Research Methods. The

    study concentrates in media of Cidade de Deuss neighborhood, specifically a community journal conducted, since 2010, by locals. A notcia por quem vive was constructed from an

    anterior experience of local media. The study tries to relate concepts such as Community

    Communication civil society and politics socialization, in a way to expose the everyday

    battles thats into these fields of knowledge. Also its included reflections about the relevance of State in communities and its promotion of media. The experiences through that these

    medium has passed in its trajectory in which concerns resource collection such as public notices, the crowdfounding campain and the use of publicity will be reassessed and diagnosticated, in order to, in dialogue with social actors, possible solutions and goals be

    founded to the problem of financial autonomy and material survival.

    Keywords: Community Communication; Media democratization; Community Publicity; Cidade de Deus; A Notcia Por Quem Vive

  • IX

    SSUUMMRRIIOO

    INTRODUO _____________________________________________________________________ 1

    1. COMUNICAO ENQUANTO CAMPO DE DISPUTAS _____________________________________ 9

    1.1 AS NOVAS TECNOLOGIAS NO DESENVOLVIMENTO HISTRICO OCIDENTAL ____________________________ 10

    1.2 SOCIEDADE CIVIL E OS APARELHOS PRIVADOS DE HEGEMONIA ___________________________________ 16

    1.2.1 CONTRIBUIES DA TEORIA DE GRAMSCI _______________________________________________ 19

    1.2.2 GUERRA DE POSIES E O PAPEL DA COMUNICAO________________________________________ 22

    1.3 GANHOS E PERDAS NO PROCESSO DE DEMOCRATIZAO DA MDIA ________________________________ 24

    1.3.1 AVANOS NOS DIREITOS SOCIAIS: MARCO CIVIL DA INTERNET E LEI DA RADCOM _____________________ 25

    1.3.2 A COERO DO ESTADO: HERANAS DA DITADURA? ________________________________________ 29

    2. CIDADE DE DEUS: VERIFICAES EMPRICAS _________________________________________ 33

    2.1 O CONCEITO DE COMUNIDADE SOB UM VIS DA COMUNICAO _________________________________ 34

    2.2 HISTRICO DO LOCAL ESTUDADO: CIDADE DE DEUS __________________________________________ 41

    2.3 A UPP E A MDIA: QUESTES CENTRAIS PARA A CIDADE DE DEUS ________________________________ 46

    2.4 HISTRICO DAS MDIAS COMUNITRIAS NA CDD ___________________________________________ 50

    2.5 O ACOMPANHAMENTO NO TERRITRIO __________________________________________________ 56

    3. VIDA LONGA E AUTNOMA COMUNICAO COMUNITRIA___________________________ 63

    3.1 ENTRE A CATEGORIA ACADMICA E A PRTICA: A NOTCIA POR QUEM VIVE __________________________ 65

    3.1.1 AUSNCIA DE FINS LUCRATIVOS E A GESTO E PROPRIEDADE COLETIVA ____________________________ 68

    3.1.2 PROGRAMAO COMUNITRIA E NOVOS CRITRIOS DE NOTICIABILIDADE __________________________ 69

    3.1.3 MANIFESTAES DA CULTURA LOCAL __________________________________________________ 71

    3.1.4 INTERATIVIDADE OU PARTICIPAO__________________________________________________ 72

  • X

    3.1.5 COMPROMISSO COM A CIDADANIA OU O AGIR PELA DEMOCRATIZAO DA COMUNICAO ____________ 74

    3.2 FINANCIAMENTO PBLICO PARA MEIOS DE COMUNICAO COMUNITRIA __________________________ 75

    3.3 PUBLICIDADE COMUNITRIA E SOCIAL ___________________________________________________ 79

    3.3.1 PUBLICIDADE SOCIAL COMO MOBILIZAO EXTERNA _______________________________________ 82

    3.3.2 PUBLICIDADE COMUNITRIA COMO MOBILIZAO INTERNA __________________________________ 87

    3.4 COOPERAO, SOLIDARIEDADE E AUTOGESTO _____________________________________________ 89

    3.5 REVOLUO, FILANTROPIA OU MERCADO? QUESTES TICAS PARA PROJETOS SOCIAIS __________________ 94

    4. CONSIDERAES FINAIS _________________________________________________________ 99

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS _____________________________________________________ 105

    ANEXOS _______________________________________________________________________ 109

    ANEXO A - REGIMENTO INTERNO ________________________________________________________ 1

    ANEXO B - DIRIO DE CAMPO __________________________________________________________ 5

    ANEXO C - IMAGENS ________________________________________________________________ 35

  • XI

    NDICE DE FIGURAS

    Figura 1: Viso de satlite da Cidade de Deus..........................................................................43

    Figura 2: Capa de A notcia por quem vive ed.n1....................................................................54

    Figura 3: Capa em homenagem Dona Joana..........................................................................56

    Figura 4: Logomarca do jornal feita pela LUPA.................................................................. .....59

    Figura 5: Primeira Logomarca do jornal................................................................... ................81

    Figura 6: Reunio de 13/04/2013: quando mostrado o vdeo com o adendo da homenagem a

    Mestre Mido........................................................................................................................83

  • 1

    INTRODUO

    A construo de uma Comunicao Comunitria no Brasil ainda um desafio que encontra

    muitas condies adversas. Pode-se fazer uma analogia com uma terra infrtil em que se torna

    difcil germinar espcies mais variadas e a tentativa de se restaurar uma flora exuberante

    difcil. A Comunicao Comunitria foi uma semente plantada h anos atrs, que resistiu s

    intempries, e ainda hoje seus gros do frutos, mas no se desenvolvem em toda sua

    potencialidade. Isso mais por conta do ambiente: h alguns perodos de seca, outros de

    alagamento, desequilbrios causados pela sociedade. Faltam nutrientes favorveis nessa terra,

    assim como nas monoculturas agroindustriais, por exemplo, onde por tanto tempo se plantou

    apenas um tipo de cereal, e as terras se tornaram secas e imprprias para uso em longo prazo.

    Os nutrientes em questo para garantir uma vida longa e florida s mdias comunitrias so os

    prprios recursos materiais da sociedade-terra em que elas esto plantadas. A partir da

    concentrao de conglomerados empresariais, de leis e da tica que esto em conformidade

    com o mercado, tais nutrientes no se apresentam totalmente disponveis a esse tipo de

    comunicao que se acredita ser uma erva daninha, justamente por colocar em questo valores

    capitalistas hegemnicos. A todas as pragas que podem prejudicar o crescimento abundante

    das monoculturas latifundirias de mdias tradicionais de grande circulao, so lanados

    agrotxicos, a fim de normalizar as cores, cheiros e frutos. Toda a cultura nessa lgica deveria

    seguir o padro de qualidade. Porm, novos brotos crescem a cada dia, resistindo ao padro.

    s vezes morrem cedo, mas deixam um legado, deixam suas sementes serem carregadas pelo

    vento e germinar em outros lugares.

    Ser visto aqui um pouco dessas experincias, de supostas ervas daninhas que na verdade

    so girassis, ou so gardnias, so mata atlntica, selvagem: so uma pluralidade de vidas

    que se diferem da monotonia dos cereais j to semeados. So a comunicao de grupos

    desprivilegiados, de moradores da periferia, de favelas, e so tambm, ao mesmo tempo, a

    comunicao de comunidades quilombolas, de pescadores, de trabalhadores rurais, de

    mulheres. A Comunicao Comunitria uma flora heterognea que sobrevive, no importa

    se a terra estiver seca. Porm, o intuito de se fazer uma pesquisa como essa o de perceber

    como ela pode ir alm dessa sobrevivncia, como ela pode vicejar, aproveitar o mximo da

  • 2

    luz, gua e nutrientes ao redor, e conseguir crescer com mais exuberncia. Mantendo, claro,

    certa autonomia e equilbrio para no virar mais uma daquelas dominantes, que no deixam

    outras espcies se desenvolverem.

    Dentro de todo um contexto de concentrao das mdias, h movimentos no sentido de

    democratizar a comunicao, que gerou alguns frutos inclusive nas leis do Estado, apesar de

    toda a violncia e represso. As novas tecnologias, inclusive, ainda esto dentro de um campo

    de batalha que puxa, de um lado, essa terra da sociedade civil para a manuteno de

    latifndios, e de outro, para assentamentos comunitrios. a partir dessa anlise de

    conjuntura que se entra em um territrio especfico, Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, para

    destrinchar o cotidiano da construo de uma mdia por seus moradores comunicadores. Isso

    apenas foi possvel por um contato da pesquisadora com esse projeto desde antes da sua

    iniciao no curso de mestrado, que a motivou a seguir pesquisando no campo da

    Comunicao Comunitria.

    O sentimento de empatia e a desconstruo de toda a simbologia disseminada pela mdia

    tradicional j comeavam ali, nas primeiras idas a campo em abril de 2012. Em primeira

    instncia, foi percebido que a Cidade de Deus, ou CDD, era um bairro at parecido com a

    vizinhana perifrica das classes mdias do Rio de Janeiro, inclusive a da prpria

    pesquisadora. H uma avenida principal e pequenas ruas e travessas que compem a parte

    central da Cidade de Deus, carregando ainda o modelo de vila residencial quando foi

    planejada em 1964, com a inteno de abrigar mo de obra para o desenvolvimento da zona

    oeste, a nova rea nobre da cidade. Esse centro da CDD se limita mais ou menos entre a

    Estrada Edgar Werneck e a margem direita do Rio Grande. As moradias nessa rea so

    pequenas casas populares de um, dois e trs quartos, e residncias mistas que permitem a

    pequenos comerciantes morarem em cima ou ao lado do prprio comrcio. A rua mais

    movimentada de comrcio local a Josias. Alis, todos os logradouros nessa parte tambm

    possuem nomes bblicos. Indo, porm, aos lugares mais afastados e pobres, como o Karat,

    onde nem todas as ruas so asfaltadas, percebe-se uma segunda impresso: de que quem mora

    na parte central da CDD possui uma condio social bem mais favorvel que os moradores de

    outros setores da favela, onde h bem menos infraestrutura. Uma das construes mais

    recentes e numa zona de precariedade a conhecida como os Apartamentos, que so

    prdios verdes que j podem ser avistados desde a Linha Amarela. Nas chuvas fortes que j

    ocorreram por ali, o rio e esgoto inundaram e deixaram muitas vtimas. Talvez por essa

  • 3

    desigualdade a Cidade de Deus no seja considerada pelo IBGE como favela em toda a sua

    extenso, mas apenas em algumas regies fora dessa parte central. Essa descrio territorial

    tambm ser detalhada co segundo captulo.

    Em termos de convvio com as pessoas, foi observado primeiramente que a construo de um

    jornal comunitrio organizado por moradores da Cidade de Deus teve como objetivo inicial

    transmitir mensagens, notcias e opinies que mostrassem o lado daqueles que sempre foram

    colocados como apenas objetos/receptores na veiculao miditica. Em um processo de

    mobilizao e auto-organizao de atores locais, com longas reunies e estreita vinculao

    com pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro, nasceu um novo produto de

    comunicao da Cidade Deus: o jornal A notcia por quem vive. Os moradores comunicadores

    expressam nele o desejo de mudar o reconhecimento da identidade de um lugar que ficou

    estigmatizado pela violncia, mas sempre foi um cenrio complexo de muitas experincias

    culturais e sociais.

    Esses moradores que frequentam as reunies do jornal so em maior parte mulheres de uma

    gerao de faixa etria de 40 a 60 anos, e isso gera uma compreenso de que as lideranas

    comunitrias podem ter caractersticas diferentes do que se espera, por uma sociedade liberal

    e machista, de uma liderana poltica: e, nesse contexto, a memria local se torna uma frente

    de luta, assim como saber adquirido pela experincia de viver as diferentes fases da CDD

    desde os anos 1960 est em constante dilogo com os saberes mais tcnicos e acadmicos do

    jornalismo, trazidos pela universidade. Esse o fundamento pelo qual se opta por desenvolver

    uma pesquisa participante, em que h meu envolvimento pessoal com as atividades do jornal,

    em vez de me posicionar como um sujeito distante ou observador. A relao informalmente

    contratual que foi estabelecida nesse sentido, desde 2012, de uma pesquisadora participante,

    que auxilia na organizao das reunies, pautas e diagramao. As visitas a campo j haviam

    comeado antes do curso de mestrado, completando, ao final dessa pesquisa, trs anos. Essa

    experincia mais longa foi fundamental para estabelecer uma relao de confiana e de

    atuao em prol do futuro desse coletivo. E, a partir do incio dessa vivncia e das anotaes

    em dirio de campo, gerou-se uma dvida que parte do particular para o mais universal:

    Como a Comunicao Comunitria pode garantir sua continuidade em termos materiais, sem

    perder de vista a sua autonomia e responsabilidade social, e sem colocar em xeque seu

    compromisso tico?

  • 4

    O objetivo geral da reunio de um acervo de conhecimento nessa direo o de contribuir

    com os saberes de comunicadores populares disseminando noes at agora pouco conhecidas

    entre eles, como Publicidade Social e Comunitria e Economia Solidria, alm de aprimorar

    prticas que j vem sendo feitas como as de mobilizao social e de busca por financiamento

    pblico. Acredita-se que, ao agir em diversas frentes e com coeso interna na organizao, o

    veculo consegue garantir sua continuidade com autonomia, e sem perder de vista seu esprito

    comunitrio. Ou seja, para se nutrir e crescer no preciso sugar apenas o sal da terra, mas

    tambm estar atento ao clima exterior, se protegendo coletivamente no mutualismo das

    diferentes espcies e sabendo aproveitar os momentos de Sol e chuva.

    Especificamente, com o corpus estabelecido de um grupo de comunicadores da Cidade de

    Deus, se pretende fazer uma avaliao estratgica da maneira como suas mdias vm

    sobrevivendo e possveis projees futuras. Posteriormente ao trabalho e como

    consequncia dele, podero ser planejadas metas de ao, nos moldes metodolgicos da

    pesquisa-ao, para dar continuidade pesquisa participante.

    Desse modo, os captulos que se seguem sero organizados da seguinte maneira: em A

    comunicao enquanto campo de disputas ser feita uma anlise de conjuntura poltica da

    sociedade ocidental onde se inserem os meios de comunicao. No primeiro item, a sociedade

    ps-industrial interpretada por Harvey (2011) como regime de acumulao flexvel ser

    explorada com o vis crtico do desenvolvimento de novas tecnologias da informao e

    comunicao (TIC). Tambm sero includas nesse contexto as anlises dos autores Hall

    (2005) sobre os aspectos da modernidade tardia, Marcuse (1973) com a individualidade do

    homem unidimensional, Sodr (2011) com a individualizao familiarizada da televiso e o

    conceito de midiatizao, e Ianni (1999) com a interpretao conjuntural do Prncipe

    Eletrnico.

    Sero introduzidos, assim, conceitos importantes para o entendimento da teoria de Gramsci,

    so eles: sociedade civil, aparelhos privados de hegemonia e guerra de posies.

    Primeiramente, com Acanda (2006), as diferentes conotaes que sociedade civil ganhou ao

    longo da histria sero expostas para, ento, dar prosseguimento com o entendimento

    marxista e, mais especificamente, gramsciano do termo. Alm do autor original, Coutinho

    (2007), entra como auxlio para o entendimento dessa teoria, que abarca o entendimento da

    sociedade civil no interior do Estado ampliado e como palco da Guerra de Posies.

  • 5

    Com objetivo de comparar avanos e perdas no cenrio da luta pela democratizao da

    comunicao, j que mdias comunitrias esto inseridas nele, ser visto no contexto

    brasileiro de acordos e leis acerca da mdia, promulgados pelo Estado em conjuno com

    atores da sociedade civil, o que comprova a relao orgnica entre Estado ampliado e a

    Guerra de Posies. Durante todo o captulo e nos seguintes, a teoria de Heller (2008) acerca

    da formao dos preconceitos tambm ser articulada.

    Seguir-se- assim um captulo de verificao emprica da realidade imediata escolhida para

    ser estudada: os comunicadores da Cidade de Deus. Em Cidade de Deus: verificaes

    empricas haver um esforo para apreender a estrutura e a dinmica dessa realidade, no s

    atravs do contato vivenciado no territrio, mas somado ao acmulo de conhecimento gerado

    at ento sobre a conjuntura em que ele est inserido. Ser questionado o conceito de

    comunidade atribudo s favelas cariocas, especialmente aps a instalao de Unidades de

    Polcia Pacificadora (UPPs) nessas formaes urbanas, como demonstrar a anlise de

    Baiense (2014).

    Para um resgate terico mais histrico sobre comunidade, os autores Paiva (2003), Peruzzo

    (2006) e Saldanha (2012) j fornecero importantes colocaes para servirem como base ao se

    pensar em Cidade de Deus. Dessa forma, as premissas tericas sero articuladas com o

    prprio histrico do territrio pesquisado, relatado tambm em Alvear (2008), Gonalves

    (2010) e Tommasi & Velzco (2013). A heterogeneidade desse territrio ser importante para

    entender o papel e as limitaes da comunicao l, onde o jornal A Notcia por quem Vive e o

    portal comunitrio so protagonizados por grupos de moradores que j eram ativos em outras

    instituies locais, e algumas vezes com divergncias internas. Assim, o captulo ser fechado

    com uma descrio metodolgica e relato de experincia em campo, para se estabelecer uma

    ligao com o prximo captulo, que expressar o objetivo central da pesquisa aplicando a

    prtica teoria e vice-versa.

    Foram utilizados dirio de campo, fotografia e gravaes a fim de registrar a vivncia em

    campo. Esses dados, juntamente com as leituras proporcionadas pela reviso bibliogrfica

    recortada para o tema, so importantes metodologicamente para a formao da teoria

    formalmente apresentada neste trabalho, entendida aqui como o movimento real do objeto

    transposto para o crebro do pesquisador o real reproduzido e interpretado no plano ideal

  • 6

    (do pensamento). (NETTO, 2011: 21). Considera-se que na pesquisa participante a

    experincia emprica no territrio de onde se inicia o conhecimento: por isso no perdem a

    importncia as primeiras, segundas e conseguintes impresses tidas ao longo do tempo.

    Partindo-se desse nvel subjetivo da realidade, o norte alcanar um nvel mais objetivo ao

    formular, teoricamente, a essncia dela. Por isso, o esforo de articulao entre o exerccio

    reflexivo do pensamento e as impresses do cotidiano permeia todo o trabalho, visando

    alcanar uma teoria dialtica.

    Em Vida longa e autnoma Comunicao Comunitria a pesquisa ir aplicar-se pergunta

    problema de fato: sobre a continuidade material de mdias comunitrias, frente ao risco de

    perda de autonomia na busca por financiamento. Primeiramente, os critrios para uma

    comunicao comunitria descritos em Paiva (2003) e Peruzzo (2007) sero interpostos com a

    experincia em campo na organizao do jornal A notcia por quem vive. Em seguida, o

    balano j feito na esfera das leis e a democratizao da comunicao enquanto reivindicao

    pblica sero retomados, com base tambm em Moraes (2011) e Peruzzo (2006) e na

    experincia do jornal com editais do Ministrio da Cultura.

    O conceito-chave de Publicidade Social, de Saldanha (2012), dar base para pensar

    Publicidade Social como ferramenta de mobilizao externa e combater argumentos

    contrrios ao seu uso, assim como a Publicidade Comunitria pode ser uma estratgia de

    mobilizao interna. Os relatos demonstraro que ambas j foram utilizadas no contexto do

    jornal, mesmo que no se utilizasse esse nome para referir-se a elas. Do mesmo modo feita

    uma breve pesquisa no campo do desenvolvimento local e Economia Solidria buscando

    contribuies do cooperativismo e da autogesto para se pensar em uma frente de apoio

    continuidade do veculo.

    Por fim, tendo como base Sociedade civil, classes sociais e converso mercantil-filantrpica,

    de Virgnia Fontes (2006), ser problematizada a autonomia das mdias comunitrias na

    converso mercantil-filantrpica. Essa discusso tambm perpassa como tica pode se aplicar

    Comunicao Comunitria enquanto prxis, se rearticulando, no ltimo item, com Sodr

    (2007) e Heller (2008).

    Todas essas questes demonstram que no simples o cultivo da Comunicao Comunitria.

    necessrio seguir princpios para que ela no seja destruda pelo meio ambiente hostil ou

  • 7

    mesmo seja destruidora dele. Assim como as plantas, no interior de seu organismo h um

    complexo funcionamento com rgos interdependentes; porm, diferente delas, esse

    funcionamento orgnico da Comunicao Comunitria no pr-determinado biologicamente

    e tampouco libera oxignio no ar: libera vozes humanas, de diferentes timbres e imprevisveis.

  • 8

  • 9

    1. COMUNICAO ENQUANTO CAMPO DE DISPUTAS

    vozes a mais

    vozes a menos

    a mquina em ns

    que gera provrbios

    a mesma que faz poemas,

    somas com vida prpria

    que pode mais que podemos

    Paulo Leminski

    O que comunicar nos tempos de hoje? O que significa ter voz em uma sociedade, e quem

    tem? importante iniciar esta pesquisa com a considerao de que os diferentes interesses e

    culturas humanos, que resultam em batalhas, negociaes, consensos e derrotas, interpassam

    totalmente pelo campo da comunicao. Essas disputas se fazem presentes nos discursos, nas

    imagens e no desenvolvimento de toda a tecnologia idealizada e empregada por seres

    humanos: incluindo as novas e velhas mdias. Portanto, se faz necessria aqui uma anlise de

    conjuntura da Comunicao Social.

    Neste primeiro captulo, se pretende resgatar o debate poltico sobre a democratizao da

    comunicao no sentido de multiplicao de vozes, em que situaes concretas de meios

    comunitrios que primam por outra lgica contrria a interesses capitalistas e sociedade de

    consumo emergem com urgncia na vida social cotidiana. Para tanto, a base ser em

    referncias bibliogrficas e em exemplos para compreend-los em sua complexidade de

    detalhes e em sua diversificao, explicitando a heterogeneidade em que ocorrem as

    transformaes histricas.

    Sero problematizadas a seguir as ambiguidades trazidas pelas novas tecnologias, j que

    muito disseminada a ideia de que h conjunto de valores que vm se construindo a partir

    delas. Nota-se que essa construo um movimento ondulatrio, como bem postula Heller

    (2011), de possibilidades imanentes ao gnero humano que emergem das circunstncias

    cotidianas, podendo se cristalizar em preconceitos ou elevar-se a valores humanos universais

  • 10

    (humano-genrico). Sero feitas leituras sobre Estado e sociedade civil e sobre o papel da

    mdia na democracia.

    1.1 AS NOVAS TECNOLOGIAS NO DESENVOLVIMENTO HISTRICO OCIDENTAL

    No momento histrico atual, vivemos um perodo que tem suas razes na modernidade,

    quando, na economia, o modelo fordista de produo deu lugar ao modo de acumulao

    flexvel. Em Condio Ps-Moderna, de David Harvey (2011), colocada como uma das

    consequncias da acumulao flexvel a acelerao do tempo de giro no mercado (o tempo de

    produo da mercadoria associado com o tempo de circulao da troca). Isso implica novas

    regras tanto nas relaes de trabalho quanto nas relaes culturais e formaes ideolgicas

    dessa sociedade.

    Como a circulao de mercadorias se d com avanos tecnolgicos numa velocidade cada vez

    maior e o regime de acumulao se acelera, h uma intensificao e precarizao do trabalho

    humano, assim como surgem novas qualidades a serem valorizadas, tais como a

    instantaneidade e a capacidade de tornar coisas descartveis. Essa dinmica, segundo Harvey,

    ficou mais evidente (ao menos nos Estados Unidos, de onde o autor analisa) depois dos anos

    60:

    Ela significa mais do que jogar fora bens produzidos (criando um

    monumental problema sobre o que fazer com o lixo); significa tambm ser

    capaz de atirar fora valores, estilos de vida, relacionamentos estveis, apego a coisas, edifcios, pessoas e modos adquiridos de agir e ser (HARVEY,

    2011: 258).

    H tambm uma grande tendncia fragmentao e a um pensamento a-histrico, apoltico.

    Mas apesar destas serem tendncias globais, elas partem do desenvolvimento capitalista

    ocidental, e nem todos os lugares do mundo esto no mesmo grau de insero nesta lgica.

    Tampouco todos os lugares de uma cidade. A incapacidade de compreender essas

    desigualdades muitas vezes resulta em um entusiasmo acrtico com as novas tecnologias da

    informao e comunicao (TICs):

    Assim como na esfera da economia a converso dos mais pobres teoria do

    livre-mercado incrementa a cruel indiferena humana do economicismo, a

  • 11

    converso acrtica da sociedade ao ecossistema tecnolgico leva, na esfera da comunicao, ideia enganosa de que tudo o que humanamente importante

    se acha na esfera hegemnica da mdia, sendo considerados socialmente

    vlidos apenas os discursos legitimados pela articulao das instituies

    hegemnicas com os dispositivos de informao. A aparente virtude democrtica dessa realidade contribui para ocultar o fato de que a real

    liberdade de expresso e de ao consiste na possibilidade de se estar

    tambm fora da midiatizao e de suas injunes simblicas. (PAIVA et. al, 2014: 4-5)

    Segundo a pesquisa TIC Domiclios 20131, no Brasil o acesso Internet ainda est limitado a

    48% dos domiclios na rea urbana e 15% na rea rural. No recorte de classes, o alcance de

    98% na Classe A, e decresce a 80% na Classe B, 39% na Classe C e 8% na DE. Ou seja,

    apesar desse nmero vir crescendo de ano a ano, a maioria da populao brasileira, por ser

    pobre, nem sequer possui acesso ao medium que se acredita mais democrtico e relevante na

    sociedade contempornea.

    Do mesmo modo, nenhuma das caractersticas globalizantes foi acionada de repente, em um

    s tempo e espao. Pode ser visto em Hall (2005) muitas tendncias j encontradas na histria

    recente que nos antecede:

    As transformaes associadas modernidade libertaram o indivduo de seus

    apoios estveis nas tradies e nas estruturas. Antes se acreditava que essas

    eram divinamente estabelecidas; no estavam sujeitas, portanto, a mudanas fundamentais. O status, a classificao e a posio de uma pessoa na "grande

    cadeia do ser" a ordem secular e divina das coisas predominavam sobre qualquer sentimento de que a pessoa fosse um indivduo soberano. O nascimento do "indivduo soberano", entre o Humanismo Renascentista do

    sculo XVI e o Iluminismo do sculo XVIII, representou uma ruptura

    importante com o passado. Alguns argumentam que ele foi o motor que

    colocou todo o sistema social da "modernidade" em movimento. (HALL, 2005: 25)

    Para o autor, aps esse longo processo, a chegada da modernidade tardia surge com o

    predomnio do carter da mudana, que, em outros termos, significa o processo de

    globalizao: as mudanas adquirem um ritmo mais rpido e um alcance mais abrangente no

    planeta. Tambm com base em Harvey, mas em articulao com Giddens e Laclau, ele afirma

    que h descontinuidades nessas mudanas da ordem social. O que o serve de ponto de partida

    para adentrar na sua questo central: as identidades, e seu processo de fragmentao ou

    pluralizao.

    1 Disponvel em: . Acesso em:

    04/03/2015.

  • 12

    Giddens, Harvey e Laclau oferecem leituras um tanto diferentes da natureza

    da mudana do mundo ps-moderno, mas suas nfases na descontinuidade,

    na fragmentao, na ruptura e no deslocamento contm uma linha comum. Devemos ter isso em mente quando discutirmos o impacto da mudana

    contempornea conhecida como "globalizao". (HALL, 2005: 18)

    As teorias crticas da comunicao deram uma importante contribuio ao analisar a histria

    moderna luz desse desenvolvimento de novas TICs, verificando como a indstria de massa

    passa a interferir, inclusive, no tempo livre e criativo do homem. Um primeiro exemplo a

    famosa vertente alem conhecida como Escola de Frankfurt, fundada em 1924 com

    pesquisadores do Instituto para Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt que,

    influenciados pelo marxismo, analisam a maneira como passam a ser feitas as artes e produtos

    miditicos. Na primeira fase, at 1933, os autores relatam a ideia de um caos cultural, um

    mundo entregue supremacia da tcnica, onde a racionalidade e a lgica mecnica dos

    processos industriais teriam ultrapassado o mbito da produo fabril como ser visto um

    pouco mais adiante e se estendido para diversos aspectos do cotidiano, consolidando a

    dominao de um sistema, atravs da indstria cultural.

    A partir das ameaas da Segunda Guerra Mundial, o instituto sofreu uma transio para

    mover-se a universidades de outros pases, passando por Sua e Estados Unidos. Na fase da

    reabertura do instituto na Alemanha, em 1953, Herbert Marcuse comea a se destacar, tendo

    escrito o livro datado de 1964 A ideologia da sociedade industrial (O Homem

    unidimensional), que aborda a racionalidade tcnica e instrumentalizao de coisas e

    indivduos:

    Marcuse, professor na Universidade da Califrnia, pretende desmascarar as novas formas de dominao poltica: sob a aparncia de um mundo cada vez

    mais modelado pela tecnologia e pela cincia, manifesta-se a irracionalidade

    de um modelo de organizao da sociedade que subjulga o indivduo, em vez de libert-lo. A racionalidade tcnica, a razo instrumental reduziram o

    discurso e o pensamento a uma dimenso nica, que promove o acordo entre

    a coisa e sua funo, entre a realidade e a aparncia, a essncia e a existncia (MATTELART, 2011: 81).

    Assim como foi visto em Hall que a histria moderna remete instabilidade e a

    transformaes (e isso transparece nos exemplos de muitas crises e grandes guerras e

    revolues), para os frankfurtianos as mudanas estruturais na indstria e nos modos de

  • 13

    trabalho foram fundadoras de um tempo em que o mercado passa a ser cada vez menos

    controlvel pelo homem, que, por sua vez, tambm vai se desumanizando Hoje, a

    dominao se perpetua e se estende no apenas atravs da tecnologia, mas como tecnologia

    (MARCUSE, 1973: 154). A ordem produzir mais, circular mais rpido, descartar e substituir

    mais. No s bens materiais, como pessoas.

    No mesmo sentido, ao analisar a televiso brasileira, Muniz Sodr (2010) categoriza o

    processo de individualizao familiarizada. A individualizao, para ele, se d com a crena

    ocidental no ego nico e dotado de livre escolha, mas, paradoxalmente, a tev

    desindividualiza o sujeito, j que sua linguagem uniformizante. Na anlise da emisso,

    Sodr observa que utilizada uma linguagem que simula um contato direto e individual com

    os telespectadores, como se o jornalista ou apresentador estivesse emitindo sua mensagem a

    apenas um deles, enquanto, na realidade, o est com todos ao mesmo tempo.

    O aspecto familiar dessa individualizao se d, ao mesmo tempo, na recepo:

    O receptor percebe a mensagem da tev como algo de natural no interior da sua casa. Caem as eventuais barreiras aos fenmenos de projeo e identificao, desde que a mensagem atenda s caractersticas de

    naturalidade do veculo. Este finge ser o olho da famlia assestado para a espontaneidade dos acontecimentos do mundo, escondendo a sua condio de olhar hipntico e imobilizador do sistema. (SODR, 2010: 59)

    Nessa tentativa de aproximar as relaes com o telespectador, a televiso criou uma diferena

    importante, enquanto tecnologia audiovisual, em relao clssica fotogenia

    cinematogrfica (SODR, 2010: 62). O cinema se utiliza de efeitos de imagem fascinantes,

    que absorvem o pblico num mundo idealista e fantasioso, onde, por exemplo, atrizes tm

    aspectos de divindades, inacessveis ao pblico. J a imagem televisiva busca imitar o

    cotidiano familiar das imagens, o que faz com que o rosto televisionado no seja misterioso

    ou impenetrvel, e sim acessvel, provocando a identificao. As duas linguagens tambm

    expressam o espao e o tempo de maneiras distintas, j que a narrativa ficcional e o dilogo

    cotidiano com o telespectador exigem montagens e ritmos diferentes. Sodr ainda indica que a

    linguagem ftica da tev, ao ser basicamente a mesma que o jornalismo, se aproxima mais do

    rdio que do cinema. Isso pode levar a pensar na influncia subjetiva que o jornalismo gera no

    medium que significa canalizao, fluxo comunicacional, tanto televisivo quanto a internet,

    por exemplo (SODR, 2011) implantando nele mais uma vez essa lgica

  • 14

    individualista/desumana sem que apenas as condies materiais industriais da sociedade

    determinem essa tendncia.

    Por ltimo, uma boa ponte entre essa discusso crtica sobre as tecnologias da comunicao e

    o que ser analisado posteriormente em Gramsci O Prncipe Eletrnico, de Octvio Ianni.

    Segundo ele, esse processo de globalizao vem a radicalizar as tendncias do capitalismo,

    que, cada vez mais em nvel mundial, provoca grandes tenses na disputa por poder, sendo

    consequncia a emergncia de novos grupos sociais, classes, novas acomodaes e lutas. Para

    ele, as novas tecnologias fazem parte desse mesmo processo de radicalizao da condio

    poltico-econmica e sociocultural do mundo, do que vem a utilizao do termo eletrnico

    em seu conceito principal:

    as instituies clssicas da poltica esto sendo desafiadas a remodelar-se, ou a ser substitudas, como anacronismos, j que outras e novas instituies e tcnicas da poltica esto sendo criadas, praticadas e teorizadas. Em lugar

    de O prncipe de Maquiavel e de O moderno prncipe de Gramsci, assim

    como de outros prncipes pensados e praticados no curso dos tempos modernos, cria-se O prncipe eletrnico, que simultaneamente subordina,

    recria, absorve ou simplesmente ultrapassa os outros. (IANNI, 1999: 12)

    No sendo mais um lder ou uma organizao como nos autores anteriores, O Prncipe (que

    em todos os casos simboliza o poder poltico), para Ianni seria tambm a televiso, enquanto

    entidade onipresente a partir da globalizao. Apesar da relativizao da sua hegemonia, a

    qual dependeria dos intelectuais orgnicos (os quais ele qualifica como certos profissionais,

    incluindo jornalistas, mas originalmente em Gramsci seriam pessoas representantes de um

    pensamento de classe, no necessariamente graduados em tal saber), o prncipe eletrnico

    expressa sobretudo a viso do mundo prevalecente nos blocos de poder predominantes, em

    escala nacional, regional e mundial, habitualmente articulados (IANNI, 1999: 15). Para ele,

    as produes intelectuais que representam classes e grupos sociais subalternos apenas

    enriquecem o prncipe eletrnico, tornando-o mais sensvel ao que vai pelo mundo (id.,

    ibid.).

    Dessa forma, o autor conclui que sempre h interesses (no caso da indstria de massa,

    corporativos) por trs do desenvolvimento tecnolgico e das mdias, e tais interesses impem-

    se a todas as instituies polticas tambm. Mais uma vez aparece a ideia frankfurtiana de

    indstria cultural.

  • 15

    O que singulariza a grande corporao da mdia que ela realiza limpidamente a metamorfose da mercadoria em ideologia, do mercado em

    democracia, do consumismo em cidadania. Realiza limpidamente as

    principais implicaes da indstria cultural, combinando a produo e a

    reproduo cultural com a produo e reproduo do capital; e operando

    decisivamente na formao de "mentes" e "coraes", em escala global. (id.,

    ibid.).

    A ideia falaciosa do jornalismo como atividade tcnica associada pura informao isenta de

    valores faz parte da ideologia hegemnica (por ideologia como conceito marxiano, entende-se

    velamento ou inverso do real) e se tornou consensual para alm dos jornalistas e donos da

    mdia, j que h no comportamento humano em sociedade a norma do mnimo esforo: que

    promove uma integrao sem conflitos com os interesses de nossa integrao social, pode

    poupar pensamento individual e deciso individual (HELLER, 2008: 67). A notcia passa a

    ser, tambm, uma mercadoria. No contedo do jornalismo, se tem feito um claro investimento

    em temas espetaculares para chamar ateno da audincia, com recorrente apelo violncia,

    esteretipos e sensacionalismos: A, tudo se espetaculariza e estetiza, de modo a recriar,

    dissolver, acentuar e transfigurar tudo o que pode ser inquietante, problemtico, aflitivo.

    (IANNI, 1999: 19)

    Portanto, essas novas relaes materiais permitem, num plano mais subjetivo, novas

    configuraes que regulam as experincias sociais. A mdia pode ser entendida no s como

    tecnologia, mas como um sistema simblico que possui tanto contedo quanto modo de fazer

    e contribui para a formao cultural de um senso comum, que seria, com base na

    determinao gramsciana, a filosofia dos no filsofos ou seja, um conjunto de valores e

    modos de interpretao que formam em sua coerncia algo que pode ser chamado de

    ideologia mesmo que seja (coerentemente com a prpria lgica de acumulao flexvel)

    uma ideologia caracterizada pelo apelo ao consumo, pela fragmentao e competitividade.

    Assim, senso comum, categoria gramsciana semelhante de valores morais, que em Heller

    (2008) o sistema das exigncias e costumes que permitem ao homem converter mais ou

    menos intensamente em necessidade interior a elevao acima das necessidades imediatas

    (p.17) objeto trabalhado diretamente pela mdia, passando nesse caso por um processo

    especfico de mediao, chamado por Sodr (2011) de midiatizao.

    uma ordem de mediaes socialmente realizadas no sentido da comunicao entendida como processo informacional, a reboque de

    organizaes empresariais e com nfase num tipo particular de interao a

  • 16

    que poderamos chamar de tecnointerao -, caracterizada por uma espcie de prtese tecnolgica e mercadolgica da realidade sensvel, denominada

    medium.

    Existem mediaes que vo alm da mdia, e tambm trabalham com o senso comum: a arte,

    a arquitetura e a prpria linguagem, considerada a mediao oficial. Ao mesmo tempo, as

    instituies mediadoras esto inseridas no que se entende por sociedade civil e, por uma

    concepo gramsciana, podem ser encaradas tambm como aparelhos privados de

    hegemonia, o que ser explicado a seguir.

    1.2 SOCIEDADE CIVIL E OS APARELHOS PRIVADOS DE HEGEMONIA

    O termo sociedade civil j foi utilizado, ao longo do tempo, em diferentes aspectos, com

    uma variedade de significados e conotaes ideolgicas. De acordo com Seligman (apud

    Acanda, 2006), seus trs usos fundamentais so como slogan poltico, como conceito

    sociolgico analtico ou como conceito filosfico normativo. O primeiro, utilizado como

    ideologia, faz referncia ideia utpica de salvao ou reconstruo de uma sociedade ideal.

    O segundo, atrelado a verificaes empricas de democracia e cidadania participativas, tem a

    finalidade de expor casos de organizaes especficas por vezes ressaltando a necessidade

    da comunidade e cooperao, por outras centrando-se no indivduo autnomo. O campo da

    Comunicao Comunitria faz muito uso da sociedade civil nesse sentido sociolgico (com

    realce a experincias de comunidades e cooperativismo). J o terceiro uso se constitui de

    reflexes mais tericas no terreno das aes simblicas e formao de valores ticos.

    Segundo Acanda, houve um retorno do primeiro uso, o slogan poltico, de sociedade civil a

    partir do contexto poltico dos anos 1970, quando da ascenso liberal nos pases capitalistas

    desenvolvidos que defendia a privatizao da economia e uma nfase sociedade civil em

    detrimento do Estado, ao mesmo tempo em que certos setores nos pases comunistas do leste-

    europeu rejeitavam um Estado ultracentralizador. Ao final dessa dcada, a esquerda latino-

    americana tambm se apropriou do conceito na oposio s ditaduras-militares: seria uma

    "nova fora capaz de exigir do Estado no somente a diminuio da represso como maior

    responsabilidade social" (ACANDA, 2006: 22). Em todos esses casos, enfatiza o autor, h

    uma raiz conceitual comum de dicotomia entre o Estado (entendido como sociedade poltica)

  • 17

    e sociedade civil. O que gera alguns problemas em sua aplicao.

    A sociedade civil, vista nessa dualidade, se resumiria a uma funo reguladora em

    substituio ao Estado, sendo o espao autnomo do no-poltico (ALEXANDER apud

    ACANDA, 2006). Isso se explica por uma crise poltica que foi se instaurando em grande

    parte dos pases depois da guerra fria, tanto capitalistas quanto comunistas: "uma clara crise

    de identidade da poltica democrtica e das perplexidades que assolam os diferentes discursos

    ideolgicos" (Valespin, 1996: 4). Tambm foi ganhando notoriedade, nesse contexto, o

    mtodo de pensamento positivista, de oposies binrias, coisificante, que corrobora para tirar

    da sociedade civil seu aspecto poltico. Ou seja, se pretendemos buscar um lugar ideal

    solidrio e humano e desacreditamos que se possa encontrar tal lugar no espao do poltico,

    estamos ento diante da dicotomia Estado x sociedade civil, que d fora ao senso comum de

    que o poder corrompe. Acanda tambm percebe que hoje j se faz a separao em trs

    dimenses: sociedade civil (voluntria e virtuosa), mercado (competitivo) e Estado

    (burocracia).

    De acordo com Meschkat (apud ACANDA, 2006: 40), o discurso da sociedade civil na

    Amrica Latina tendeu a fortalecer a ideologia dominante, em trs sentidos: a) simplifica

    Estado x Sociedade Civil, como se tudo que no dependa do Estado significasse um passo em

    direo emancipao social; b) encobre a luta de classes, o poder econmico, os

    monoplios, o capital transnacional, etc; c) difunde o conceito vago e ambguo de

    Organizao No-Governamental (ONG), em que se diluem as enormes diferenas entre

    aquelas de compromisso real com as organizaes populares e as que no promovem nenhum

    tipo de transformao, apenas corroboram com a ordem j estabelecida e retiram a obrigao

    do Estado de arcar com o social.

    Fontes, ao analisar os movimentos sociais e ONGs dos anos 1980 no Brasil, bem como sua

    relao com o recm-criado Partido dos Trabalhadores, tambm confirma que

    Ocorria uma idealizao do conceito de sociedade civil como se esta se limitasse apenas ao mbito popular. A sociedade civil, assim encarada, seria o momento socialista da vida social, o momento virtuoso. Por seu turno, o

    Estado seguia confundido, ora com a ditadura, ora com a ineficincia e

    incompetncia, ora com seu patrimonialismo ou clientelismo, desconsiderada sua ntima articulao com a sociedade civil. (FONTES,

    2006: 348)

  • 18

    Por conta dessa noo anistrica e antipoltica de sociedade civil que predominou no

    pensamento moderno, houve certo repdio por parte de tericos socialistas marxistas

    especialmente aqueles que vieram das burocracias no poder, da antiga Unio Sovitica e

    outros pases comunistas do leste europeu, os quais Acanda enquadra como marxistas

    dogmticos ou ps-marxistas exorcizando-a como fenmeno social objetivo - ao conceb-

    la como antagnica ao Estado e sociedade socialista" (ACANDA, 2006: 20). Essa rejeio

    tambm trouxe uma limitao para que se pudesse fazer novas interpretaes do conceito e

    contribuir na construo do pensamento crtico.

    Dessa forma, a sociedade civil surgiu na modernidade com srias simplificaes que a

    impediram de se configurar como categoria que correspondesse s reais determinaes da

    sociedade.

    Penso que tudo isso nos permite afirmar estarmos diante de uma metfora, de

    uma ideia, e no diante de um conceito ou categoria... A intensificao do

    carter coisificado e alienante tanto dos Estados quanto do mercado capitalista fez o tradicional problema da relao entre indivduo e sociedade

    ser proposto como o problema da relao entre o indivduo com os poderes

    que estruturam a sociedade e a transformam num lugar hostil: o poder poltico e o poder econmico. Surgiu, assim, a necessidade de conceber um

    espao intermedirio entre esses dois poderes, uma espcie de "refgio" no

    qual o indivduo possa encontrar proteo contra essas foras que tudo tentam devorar. (ACANDA, 2006: 25-26)

    Apesar desse histrico, ainda se pode encontrar nas apropriaes de sociedade civil alguma

    teoria mais consistente e menos contraditria. De acordo com o autor, nos novos

    movimentos de luta popular e de resistncia antiglobalizante, a referncia sociedade civil se

    baseia na compreenso da existncia, no interior do social, de uma interao orgnica entre o

    sistmico e o anti-sistmico (id., ibid.: 44). Essa relao dialtica a base da concepo

    sociolgica e filosfica do terico Antonio Gramsci.

  • 19

    1.2.1 CONTRIBUIES DA TEORIA DE GRAMSCI

    A teoria gramsciana faz um estudo sobre novas determinaes do capitalismo, em que o

    homem, sua cultura e, consequentemente, os meios de comunicao se inserem. Utilizando-a

    como fundamento, torna-se possvel compreender a realidade cotidiana em que diversas

    tentativas de se construir comunicao alternativa e comunitria emergem. Gramsci buscou

    compreender, no contexto do ps(2)-guerra, o motivo de haver pouca revolta contra a

    violenta ordem vigente iniciando, ento, uma anlise sobre o capitalismo em sua fase

    monopolista. At 1926 seus estudos assimilaram ideias bsicas de Lnin. E, assim, em sua

    reflexo terica, ele no entende o leninismo (e o marxismo em geral) como um conjunto de

    definies acabadas, mas como um mtodo para a descoberta de novas determinaes

    (ACANDA, 2006: 84).

    O Estado e a sociedade civil foram conceitos alvo de uma intensa crtica por Marx e Engels,

    no sculo XIX. Eles demonstravam razes histricas do surgimento dos Estados, mais

    especificamente o caso do Estado burgus capitalista. Desmantelaram a noo de pacto,

    demonstrando que o Estado corresponderia, na verdade, necessidade de classes sociais

    dominantes assegurarem a reproduo de sua dominao.

    Assim, a separao entre Estado e sociedade seria falsa: ao contrrio, o Estado resultaria da

    relao entre classes sociais e, portanto, esta seria sua razo de ser. De acordo com eles, a

    aparncia de separao foi legitimada e reforada por filsofos que sustentavam a burguesia

    em ascenso (principalmente a partir da revoluo francesa), chegando a se tornar senso

    comum. Por esse motivo tal lgica de pensamento considerada por eles uma ideologia. Ao

    fazer a separao dessas instncias, se justifica e se legitima a perpetuao dessa forma de

    organizao da vida social, como se Estado e sociedade civil fossem entidades com vida

    prpria e naturalmente necessrias.

    Acanda observa que, mesmo depois de tais formulaes, grande parte dos estudiosos

    marxistas se centrou apenas na crtica ao Estado, mas ignoraram a sociedade civil. Para ele:

    bem verdade que, durante os setenta anos de sua existncia como ideologia especfica, o dogma criado pelos rgos oficiais de produo, difuso e

    ensino do marxismo nos pases de 'socialismo real' inicialmente ignorou e

  • 20

    depois rejeitou esse termo como fez com o conceito de alienao e procurou ocultar sua importncia na histria do desenvolvimento do

    pensamento marxiano e marxista. Mas isso no justifica deixar de lado a obra de Antonio Gramsci, que colocou o conceito e a questo da Sociedade

    Civil no centro de sua reflexo terica. (ACANDA, 2006: 30)

    Em seu perodo de priso no regime fascista italiano (1926 1937), Gramsci reinterpretou,

    assim, a sociedade civil de acordo com as bases crticas lanadas por Marx e Engels. A

    sociedade civil gramsciana seria um momento integrante da totalidade do Estado ampliado.

    Suas reflexes partiram do momento em que o Estado capitalista desenvolvido incorporava

    em seus direitos as conquistas das lutas populares, ainda que no perdesse sua dominao

    sobre ela (isso seria, trazendo para reflexo mais recente com o pesquisador gramsciano

    Carlos Nelson Coutinho, a socializao da poltica). Tais direitos adquiridos, ao mesmo

    tempo em que eram fruto das lutas, as acalmavam e enfraqueciam.

    Surge ento o conceito de aparelhos privados de hegemonia que so as formas concretas

    de organizaes na sociedade civil: vises de mundo, conscincia, sociabilidade e cultura,

    conforme determinados interesses. Da mesma forma que o Estado, a sociedade civil expressa

    as contradies e os consensos feitos entre fraes da classe dominante e as demais. Vale

    dizer que essa nova formao conjuntural tem muito a ver com a queda das monarquias,

    sendo o que Gramsci chamava de sociedades de tipo ocidentais, j que nem todo o mundo

    se desenvolvia nas mesmas condies.

    A Igreja, as ONGs, as escolas, as empresas, a imprensa, os movimentos e sindicatos: todos

    so aparelhos privados de hegemonia que disputam o consenso. No se pode, portanto,

    atribuir a nenhuma dessas instncias a direo hegemnica ou contra-hegemnica

    incondicionalmente: pois h pessoas por trs de cada uma delas com determinados interesses

    e vises de mundo, explicitando as contradies presentes. Mas se pode analisar qual a

    predominncia de interesses em cada uma, para que no se confunda a realidade com o

    otimismo da vontade e no se insista em batalhas perdidas. Fontes j comea a vislumbrar as

    inconsistncias estratgicas por parte dos novos movimentos socais e das ONGs em 1980,

    quando os aparelhos privados de hegemonia se multiplicam e por vezes mascaram a luta de

    classes:

    As entidades empresariais atuavam corporativa e politicamente como

    sociedade civil no sentido gramsciano, como aparelhos privados de hegemonia e participavam intimamente do Estado, inclusive no perodo ditatorial, mas apresentavam-se como sociedade no sentido liberal,

  • 21

    contrapondo-se ao Estado. Deslizavam facilmente de um a outro sentido, evidenciando como a luta atravessava a sociedade civil, atravs da expanso

    de aparelhos privados de hegemonia de cunhos variados, cuja proximidade

    com as classes fundamentais nem sempre era muito ntida (FONTES, 2006:

    348)

    Pode-se visualizar por a a quase transio em que o mercado passou a ser visto dissociado

    tanto do Estado quanto da sociedade civil em um senso comum atual que separa o poltico

    nas trs dimenses j citadas acima em Acanda: Sociedade Civil / Mercado / Estado. o

    motivo que torna hoje em dia a teoria de Gramsci mal compreendida e usada at em contextos

    equivocados, pois nela deve-se pressupor que tais instncias se articulam entre si.

    Para Gramsci (2011), onde h Estado ampliado, h mais estratgias de convencimento nas

    disputas ideolgicas, e no se exclui a violncia e coero. A sociedade civil entra como

    mediadora do momento predominantemente consensual desse Estado o que, por sua vez,

    facilita que os aparelhos privados de hegemonia ocupem postos na sua forma burocrtica e

    coercitiva (o chamado Estado em sentido estrito), influenciando as leis, a agenda poltica e

    tambm as medidas de coero. O grau de convencimento ou de violncia a ser utilizado em

    um Estado ampliado para garantir uma hegemonia varia e pode gerar crises dependendo do

    contexto poltico o grau de democratizao (socializao da poltica) de uma sociedade,

    segundo Coutinho, uma das coisas que interfere nesse balano.

    O fato de que um Estado seja mais hegemnico-consensual e menos

    ditatorial, ou vice-versa, depende da autonomia relativa das esferas superestruturais, da predominncia de uma ou de outra, predominncia e autonomia que, por sua vez, dependem no apenas do grau de socializao

    da poltica alcanado pela sociedade em questo, mas tambm da correlao

    de foras entre as classes sociais que disputam entre si a supremacia. (COUTINHO, 2007: 131)

    Dessa forma, o Estado est presente dentro e fora das instncias do governo, e preciso

    discuti-lo em sua totalidade, fora dessas instncias tambm: inclusive nos trabalhos de

    Comunicao Social. Gramsci considerava que a imprensa tinha papel de partidos polticos, o

    que podemos estender hoje s mais variadas formas de mdia em suas novas tecnologias,

    especialmente as de maior circulao, j que essas fariam parte da frente terica ou

    ideolgica da classe dominante, enquanto as mdias comunitrias, como exemplo que ser

    estudado aqui, geralmente fazem frente a outros grupos sociais, minoritrios.

    A parte mais considervel e mais dinmica dessa frente o setor editorial em

  • 22

    geral: editoras (que tm um programa implcito e explcito e se apoiam em

    determinada corrente), jornais polticos, revistas de todo o tipo, cientficas,

    literrias, filolgicas, de divulgao etc., peridicos diversos at os boletins paroquiais (GRAMSCI, 2011b, 78-79)

    Assim, se dirige e se organiza um consentimento, que, das fraes da classe dominante, pode

    ser absorvido como ideologia pelas classes subalternas da se resulta certos valores e

    opinies como senso comum. Os dissensos tendem a ser ocultados ou simplificados nele.

    Nesse sentido, os meios de comunicao, que trabalham com o discurso e possuem

    tecnologias de alto poder de alcance, so instrumentos importantes para homogeneizar o

    pensamento e facilitar a hegemonia pelo consenso. Ou seja, o apelo para um debate poltico

    visto primeira vista pelos seguidores do senso comum como um convite a uma

    desinteressante pequena poltica, a qual seria uma reproduo de interesses individuais ou

    de pequenos grupos orientados para o eu-particular, e no uma discusso de reconhecida

    importncia orientada para o humano-genrico (HELLER, 2008). Os preconceitos

    disseminados pela mdia burguesa contribuem, portanto, para dificultar o avano das

    tentativas de setores oprimidos de adeso ideolgica na sociedade civil - tentativas que

    passam pela mediao dos veculos de comunicao alternativos. Assim, os preconceitos

    cumprem seu papel histrico de consolidar e manter a estabilidade e a coeso da integrao

    dada.

    1.2.2 GUERRA DE POSIES E O PAPEL DA COMUNICAO

    O pensamento gramsciano prope que a conquista do poder nas sociedades atuais feita

    gradualmente, sendo precedida por uma longa guerra pela hegemonia atravs das entidades

    da sociedade civil, j que o consenso necessrio. Para ele, essa disputa s cessaria a partir do

    momento em que houvesse uma reabsoro da sociedade poltica na sociedade civil,

    desaparecendo progressivamente os mecanismos de coero, o governo e as burocracias do

    Estado que passaria a ser tico: a sociedade regulada. O processo no qual isso ocorre

    categorizado por Gramsci como catarse: quando os interesses econmico-corporativos so

    superados por sujeitos polticos que se propem a defender interesses universais.

  • 23

    Pode-se empregar a expresso catarse para indicar a passagem do momento meramente econmico (ou egostico-passional) ao momento tico-poltico,

    isto , a elaborao superior da estrutura em superestrutura na conscincia

    dos homens. Isto significa, tambm, a passagem do objetivo ao subjetivo e da necessidade liberdade. A estrutura, fora exterior que esmaga o homem, assimilando-o e o tornando passivo, transforma-se em meio de

    liberdade, em instrumento para criar uma nova forma tico-poltica, em

    origem de novas iniciativas. (GRAMSCI, 2011a: 314-315)

    Para ele, a diviso entre governantes e governados at necessria em determinado nvel de

    desenvolvimento social, porm no como uma perptua diviso do gnero humano, mas

    apenas como um fato histrico, correspondente a certas condies (COUTINHO, 2007: 138).

    Gramsci tambm criticou a construo stalinista do socialismo, e toda a linha da Internacional

    Comunista de 1929 a 1943, que pressupe ser iminente o colapso do capitalismo e a crise para

    haver um ataque frontal e sangrento entre as classes sociais. Esse ataque o que Gramsci

    chama de Guerra de movimento. Ele no descarta essa possibilidade em alguns contextos,

    mas no caso do Estado ampliado das democracias, a disputa necessria tambm se faz na

    sociedade, e a essa disputa especfica se d o nome de Guerra de posio.

    Portanto, na Guerra de Posio que atravessa uma crise de hegemonia,

    preparando-a ou dando-lhe progressivamente soluo, no h lugar para a espera messinica do grande dia, para a passividade espontanesta que conta com desencadeamento de uma exploso de tipo catastrfico como

    condio para o assalto ao poder (COUTINHO, 2007: 155).

    Sua concepo de crise nessa situao de uma crise orgnica, que vai se instaurando na

    medida em que a dominao questionada discursivamente e o senso comum comea a dar

    lugar conscincia, sendo necessrio, a quem est no poder, um apelo mais drstico da

    coero. Isso explica por que, mesmo em regimes democrticos, h s vezes a impresso de

    haver mais controle que liberdade. Trazendo tais premissas para os exemplos mais prximos,

    temos j certa desconfiana do pblico telespectador brasileiro com relao s informaes

    que so veiculadas nos canais abertos (que emitem muito do senso comum), certa crise de

    representatividade que leva busca por outras informaes na Internet, disseminao de

    blogs, criao de mdias independentes. Esta crise tambm abrange os representantes polticos

    executivos e parlamentares. Uma das discusses que se tm feito, por exemplo, acerca da

    srie de manifestaes que ficou conhecida no Brasil como jornadas de junho (2013) de que

    tal crise de representatividade a permeou, e ao mesmo tempo em que o senso comum e a

    prpria mdia era questionada, a coero do Estado com seus aparatos militares aumentava

  • 24

    contra os manifestantes.

    Para resolver essa crise definitivamente, segundo Gramsci, preciso envolver cada vez a

    maior parcela da populao explorada na soluo de seus prprios problemas, lutando

    cotidianamente por conquistar espaos e posies de modo que a estrutura cada vez mais

    desigual das relaes materiais tambm se transforme.

    A guerra de posio exige enormes sacrifcios de massas imensas de populao; por isto, necessria uma concentrao inaudita da hegemonia e,

    portanto, uma forma de governo mais intervencionista, que mais abertamente tome a ofensiva contra os opositores e organize permanentemente a impossibilidade de desagregao interna: controles de todo tipo, polticos, administrativos, etc., reforo das posies hegemnicas do grupo dominante, etc. Tudo isto indica que se entrou numa fase

    culminante da situao poltico-histrica, porque na poltica a guerra de posio, uma vez vencida, definitivamente decisiva. (GRAMSCI, 2011b: 255)

    O trabalho de campo a ser visto mais adiante na Cidade de Deus demonstra que, com as

    ofensivas do Estado e sua nova poltica de segurana pblica (Unidades de Polcia

    Pacificadora) dentro das favelas, est cada vez mais arriscado abordar assuntos livremente na

    mdias comunitrias, e seus integrantes tm sido levados a medir palavras, enquanto os

    confrontos armados continuam, direitos humanos so feridos e moradores perdem suas vidas.

    Nesse sentido, os aparelhos privados de hegemonia da sociedade civil, uma vez que no so

    todos de domnio exclusivo das fraes de classe dominante, tambm tm o papel importante

    de desconstruir dada hegemonia, de promover uma real transformao. Na guerra de posio,

    os aparelhos reconhecidamente atuantes por uma transformao social ou revoluo so

    considerados (por leitores de Gramsci posteriormente) contra-hegemnicos. Vamos aqui nos

    aprofundar na questo dos meios de comunicao, que, quando apropriados pelas fraes de

    classe dominadas na medida em que ocupam espaos passam a ser potencialmente

    instrumentos transformadores e questionadores (e no mais geradores de consenso). Ainda

    ser visto nos prximos captulos os exemplos empricos na Cidade de Deus.

    1.3 GANHOS E PERDAS NO PROCESSO DE DEMOCRATIZAO DA MDIA

    Segundo a interpretao de Coutinho (2007), a conquista de espaos na guerra de posio a

  • 25

    capacidade de fazer poltica, e a democracia, ainda que com moldes liberais, j uma

    conquista que deve ser conservada e aprofundada ele fala da democratizao da economia

    em A Democracia Como Valor Universal (1979), ao que se pode acrescentar agora a

    democratizao da comunicao.

    A proliferao de movimentos de massa caracterstica da modernidade do sculo XX, com o

    fortalecimento e crescimento dos sindicatos, associaes profissionais, partidos polticos,

    comits de bairros e de empresas, etc. Tais fatos novos mecanismos atravs dos quais essas

    massas populares e em particular a classe operria se organizam de baixo para cima e

    constituem aquilo que poderamos chamar de sujeitos polticos coletivos (COUTINHO,

    1979: 37) j configuravam um processo de socializao da poltica, o que permite alguns

    ganhos sociais, mas tambm no deixa de garantir a prpria hegemonia, por vias democrticas

    e aparentemente apaziguadoras.

    Portanto, a prpria reproduo capitalista enquanto fenmeno social global que impe essa crescente socializao da poltica, ou seja, a ampliao do

    nmero de pessoas e de grupos empenhados politicamente na defesa dos

    seus interesses especficos (COUTINHO, 1979: 37).

    Essa ideia de democracia est intimamente ligada participao popular. medida que a

    sociedade vai se democratizando, os movimentos de massa, as empresas e outras entidades da

    sociedade civil ou seja, os aparelhos privados de hegemonia vo ganhando mais poder.

    1.3.1 AVANOS NOS DIREITOS SOCIAIS: MARCO CIVIL DA INTERNET E LEI DA RADCOM

    A ampliao dos espaos no mbito do Estado so conquistas populares que, segundo

    Peruzzo, se do pelos movimentos sociais a partir do momento em que eles deixam de se

    antagonizar radicalmente ao poder pblico, no final dos anos 1980. Isso se d num processo

    de conscientizao e organizao em torno das noes de direitos sociais:

    A satisfao de certas necessidades passa de sua apreenso enquanto direitos

    individuais para sua compreenso como direitos da pessoa humana e de todos que esto na mesma situao. Por exemplo, a noo de direito ao

    atendimento mdico conduz de direito sade e, da, de direito ao posto

    de sade. As reivindicaes incorporam ento o conceito de direito:

    moradia, terra, escola, vida, enfim. (PERUZZO, 1998: 61-62)

  • 26

    Na esfera do poder pblico (em especial, o legislativo), pode-se visualizar bem a Guerra de

    Posio entre os grandes conglomerados de empresas e os ativistas pela democratizao da

    comunicao. Na Constituio Federal, foram estabelecidos princpios que se relacionam

    comunicao, mas que se limitam formalidade, estando num primeiro momento distantes,

    portanto, da prxis. O direito liberdade de opinio e expresso, por exemplo, no diz

    respeito somente ao emissor no processo comunicacional: Qualquer cidado possui tanto o

    direito ao acesso informao quanto ao de emitir sua prpria mensagem (Constituio

    Federal, artigo 220). Porm, ao se tratar da Comunicao Social, a emisso apenas o

    privilgio de alguns grupos poderosos na sociedade, cabendo s massas apenas o papel de

    receptor. Dnis de Moraes j nos elucidou alguns dados sobre essa questo:

    Segundo relatrio divulgado em agosto de 2007 pela Article 19, organizao

    no-governamental voltada liberdade de expresso, aguda a concentrao da televiso aberta no Brasil: Seis empresas de mdia controlam o mercado de TV no Brasil, um mercado que gira mais de US$ 3 bilhes por ano. A

    Rede Globo detm aproximadamente metade deste mercado, num total de

    US$ 1,59 bilho. Estas seis principais empresas de mdia controlam, em conjunto com seus 138 grupos afiliados, um total de 668 veculos miditicos

    (TVs, rdios e jornais) e 92% da audincia televisiva; a Globo, sozinha,

    detm 54% da audincia da TV2. (MORAES, 2009: 112-113)

    Porm, h algumas mudanas em curso na legislao que merecem ser analisadas, j que

    representam o processo de democratizao, ou de socializao da poltica. Aqui sero dados

    dois exemplos.

    Em 1998 foi aprovada e publicada no Dirio Oficial da Unio uma lei que possibilitava que

    rdios comunitrias existissem de forma legal (Lei n 9.612). So regras especficas para o

    servio de radiodifuso comunitria, diferenciando-o, portanto, daquele prestado pelas

    grandes empresas de comunicao, a radiodifuso comercial. Isto, porm, teria sido uma

    vitria do movimento, se a lei no trouxesse mais entraves atuao das rdios.

    A lei s permite que exista uma rdio comunitria por bairro e que alcance uma rea limitada

    por um raio igual ou inferior a mil metros a partir da antena transmissora. Na prtica, isso

    significa que um bairro como o de Jacarepagu, de grande extenso territorial localizado na

    Zona Oeste do Rio de Janeiro, s pode ter uma rdio comunitria. A Cidade de Deus, com

    2 Disponvel em: Acesso

    em: 15/04/2014.

  • 27

    seus 65 mil moradores e vrias subdivises, se encontra em Jacarepagu. Uma rdio com

    alcance de um quilmetro de raio dentro da CDD no conseguiria atingir todo o territrio da

    favela. Aqui se nota o discurso tcnico, como visto no primeiro item, se sobrepondo

    necessidade cotidiana. Alis, os moradores j relataram existir uma rdio comunitria

    aprovada no bairro vizinho de Curicica, comandada por um miliciano, razo pela qual foram

    informados no poderem criar sua prpria rdio.

    Tambm punvel com multa a publicidade comercial: apenas a notificao de apoio cultural

    pode ser inserida na rdio, sem nenhuma especificidade sobre a atividade do anunciante, qual

    o servio ou sua localizao. Isso dificulta ainda mais o sustento do veculo, que poderia

    utilizar-se do comrcio local, contribuindo para a valorizao deste. Na prtica, so doaes e

    trabalho voluntrio que cobrem os custos e demandas do veculo.

    Para que a rdio atenda aos requisitos para pedir sua outorga, tambm necessrio que haja

    cinco CNPJs de entidades sem fins lucrativos na comunidade, o que muitas vezes no

    possvel. Alm disso, a lei determina que as rdios comunitrias funcionem em um nico e

    especfico canal na faixa de frequncias, de potncia limitada a um mximo de 25 watts ERP

    (effective radiated power)3 e altura do sistema irradiante no superior a trinta metros. Caso as

    ondas da rdio RadCom criem qualquer interferncia de modo levemente perceptvel nas

    rdios comerciais, ela pode ser fechada pela Anatel. No entanto, a lei afirma que nada ser

    feito caso as ondas de uma rdio comercial interfiram na rdio comunitria:

    As emissoras do Servio de Radiodifuso Comunitria operaro sem direito

    a proteo contra eventuais interferncias causadas por emissoras de

    quaisquer Servios de Telecomunicaes e Radiodifuso regularmente instaladas, condies estas que constaro do seu certificado de licena de

    funcionamento. (Lei n 9.612, art. 22)

    Com essas caractersticas, cabe questionar se a legislao veio para reconhecer ou dificultar a

    atuao das rdios comunitrias. Ao contrrio do que se esperava de uma lei reguladora, ela

    dificulta ainda mais o acesso ao direito de comunicar.

    Outro exemplo mais recente a tramitao do Marco Civil da Internet (PL 2126/2011)4,

    projeto de lei construdo coletivamente por diversos setores da sociedade. Aps trs anos de

    3 Essas so medidas utilizadas para calcular a potncia das ondas de rdio emitidas.

    4 Disponvel em: Acesso em: 15/04/2014.

  • 28

    debates e peties on-line, o projeto de iniciativa popular foi aprovado na Cmara dos

    Deputados em 25 de maro de 2014, passando a ser submetido ao Senado Federal sob o

    nmero PLC 21 de 2014 sendo aprovado, ento, no dia 22 de abril pelo Senado e

    sancionado no mesmo dia pela Presidenta Dilma Rousseff durante o evento NET Mundial5.

    A justificativa de tal regulao se deu pela premissa de que a internet um meio democrtico

    de circulao de informao e de liberdade de expresso, o oposto do que se tornaram outros

    veculos, como os de radiodifuso. A neutralidade da rede e a privacidade dos usurios se

    configuraram, dessa forma, como grandes pontos de discusso, gerando conflito entre alguns

    setores da sociedade civil e as empresas de telecomunicaes.

    Nos termos de privacidade de servios pretensamente gratuitos, como o Google e o Facebook,

    as informaes pessoais dos internautas so colocadas como produtos a serem

    mercantilizados, vendidos a empresas que se baseiam em padres de consumo para

    desenvolverem suas mercadorias. Com a aprovao do Marco Civil, especialmente do art.7,

    que define que fotos e textos que foram excludos pelos usurios sejam efetivamente

    apagados, a privacidade tende a ser mais respeitada. Porm, no art. 15, que gerou mais

    polmicas, havia na redao original a permisso a autoridades judicirias e administrativas

    a requisitar as informaes de acesso do usurio que, pelo projeto, deveriam ser guardadas por

    at seis meses o que, aps campanhas em prol do veto do artigo, foi alterado para apenas

    delegados de polcia e o Ministrio Pblico. Alm disso, o projeto de lei define que os dados

    s podero ser vendidos com a expressa autorizao dos usurios.

    A partir dessas informaes, se transparece o movimento ondulatrio das conquistas

    histricas, com avanos e retrocessos para os setores populares da sociedade civil. Quanto

    maior o nvel de socializao da poltica, menos linear e mais contraditrio se torna esse

    processo j que o esforo pelo consenso e a coero operam juntos, pondo em maior ou

    menor risco a hegemonia j instituda.

    5 Disponvel em: Acesso em: 15/04/2014.

  • 29

    1.3.2 A COERO DO ESTADO: HERANAS DA DITADURA?

    Enquanto a democratizao da comunicao vem ganhando espao dentro dos fruns e das

    tentativas de regulamentao das mdias, a hegemonia dos meios de comunicao de grande

    circulao ainda mantida pelas formas de burocracia e coero do Estado. Na sociedade

    civil, j se vislumbra crises de representao que colocam em xeque o consenso, o que

    reafirma ainda mais a necessidade de se tornar mais incisivo o apelo coero. Algumas leis

    ainda mantidas desde o regime militar e algumas aes de rgos do Estado legitimam essa

    dominao.

    De acordo com o que define o Cdigo Brasileiro de Telecomunicaes (Lei n 4.117) de 1962

    e alterado em 1967, qualquer organizao que pretenda administrar uma frequncia de rdio

    (radiodifuso de som) ou de televiso (radiodifuso de som e imagem) precisa possuir uma

    autorizao do Estado. A concesso dessas frequncias no depende de edital pblico e no

    transparente: a responsabilidade pelo gerenciamento do espectro de radiodifuso no pas

    atribuda Agncia Nacional de Telecomunicaes (Anatel). Ela , portanto, responsvel por

    selecionar quem deve ou no ter o poder de administrar um meio de comunicao utilizando a

    radiodifuso. As concesses tm validade de 10 (rdio) e 15 (TV) anos, renovveis.

    H consideraes sobre o risco de formao de monoplio ou oligoplio dos meios. O decreto

    n 236, de 1967, impede, em teoria, que haja demasiada concentrao de veculos de

    comunicao no pas, determinando que uma mesma entidade tenha permisso para

    administrar, no mximo: (a) dez estaes de rdio, quando locais; (b) seis estaes de rdio,

    sendo at duas por estado, quando regionais; (c) quatro estaes de rdio, quando nacionais.

    No so computadas, no entanto, as estaes retransmissoras de contedo: como exemplo, a

    TV Oeste, no oeste da Bahia, ou a TV Amap, que retransmitem os principais programas

    nacionais da Rede Globo, enquanto nos programas locais, fazem sua prpria cobertura. Com

    essa falta de controle sobre as retransmisses, observa-se que uma mesma empresa pode deter

    grande nmero de emissoras retransmitindo seu contedo com facilidade, como o caso da

    Globo, que, contando com as afiliadas, possui 227 veculos. E, em um pas em que seis

    empresas controlam 668 veculos, e 92% da audincia televisiva, como j foi visto acima em

    Moraes, pode-se observar que no h um real impedimento formao de oligoplio.

  • 30

    O Brasil tambm assinou tratados internacionais dentro de parmetros nos quais nossos

    legisladores deveriam apoiar-se, mas e por diversas vezes os organismos internacionais j

    denunciaram o no cumprimento desses acordos. O Cdigo de Telecomunicaes nunca foi

    reformulado, e mesmo as novas leis, como a das Rdios Comunitrias, que esto submetidas a

    esse Cdigo, no seguem os padres propostos. A Conveno Americana de Direitos

    Humanos, ou Pacto de San Jos, assinada em 1969, conta com uma Relatoria Especial para a

    Liberdade de Expresso. Essa relatoria apontou a necessidade de se garantir pluralidade nos

    servios de comunicao, sendo uma parte dela referente regulao da radiodifuso e ao

    servio de comunicao comunitria.

    Entre os parmetros, consta que, nos pedidos de outorga, os critrios de avaliao no devem

    se centrar prioritariamente no aspecto econmico. Porm, no Brasil, as condies financeiras

    do proponente apresentadas em tais pedidos sempre levam vantagem nas avaliaes da

    Anatel. Quanto maior o poder econmico ou poltico do grupo em questo, maior

    probabilidade de manter a concesso. De acordo com Peruzzo, isso ocorre tambm nas

    concesses das rdios comunitrias:

    Acrescenta-se ainda a existncia de outras contradies no processo de

    legalizao, pois o governo, com frequncia, autoriza o funcionamento de emissoras comunitrias ligadas a pessoas, igrejas ou a polticos em

    detrimento de associaes comprovadamente constitudas com base em

    entidades de cunho organizativo-comunitrio local, conforme exige a lei.

    (PERUZZO, 2006b: 04)

    Isso se confirma inclusive no territrio da Cidade de Deus: em reunio com alguns moradores

    para discutir as metas de Comunicao e Cultura do Plano de Desenvolvimento Local6, eles

    afirmaram que no seria possvel atingir a que correspondia criao de uma rdio

    comunitria, pois j existiria a Rdio Curicica nas proximidades do bairro de Jacarepagu,

    outorgada como RdCom pela Lei 9.612, mas que, segundo eles, seria comandada por um

    policial envolvido com a prtica ilegal de milcia. Segundo a legislao, no pode haver

    legalmente duas rdios comunitrias no mesmo bairro.

    Na parte da relatoria da Comisin Interamericana de Derechos Humanos (CIDH) intitulada Sobre

    los medios comunitarios de radiodifusin, tambm est indicada a possibilidade de utilizao

    de publicidade para o sustento dos veculos comunitrios, o que j foi visto que no

    6 Disponvel em: Acesso em: 15/04/2014.

  • 31

    permitido na Lei n 9.612.

    La Relatora Especial sostuvo que la normativa sobre radiodifusin

    comunitaria debe reconocer las caractersticas especiales de estos medios y contener, como mnimo, los siguientes elementos: (a) la existencia de

    procedimientos sencillos para la obtencin de licencias; (b) la no exigencia

    de requisitos tecnolgicos severos que les impida, en la prctica, siquiera que puedan plantear al Estado una solicitud de espacio; y (c) la posibilidad

    de que utilicen publicidad como medio de financiarse. (CIDH, 2010)7

    A AMARC (Associao Mundial de Rdios Comunitrias), por sua vez, baseia-se tambm no

    Direito Humano Liberdade de Expresso, e publicou em 2009 o documento Princpios para

    um marco regulatrio democrtico sobre rdio e TV comunitria, apresentando 14 pontos

    para articular um programa de legislao.

    O trabalho mapeou experincias de regulamentos bem encaminhados em outros pases, em

    uma anlise comparada efetuada por diversos especialistas. Os princpios expostos na

    publicao abordam desde o reconhecimento e definio de rdios e TVs comunitrias at seu

    financiamento e polticas pblicas de incentivo. A Associao defende que seja feito um

    marco regulatrio que reconhea trs diferentes modalidades de radiodifuso: pblico/estatal,

    comercial e social/sem fins lucrativos (Amarc, 2009: 02) - neste ltimo onde se incluem os

    meios propriamente comunitrios. Tambm h a considerao do Acesso Universal, que se

    contrape s limitaes da atual legislao brasileira:

    06. Acesso universal: Todas as comu