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comunidade texto pintura Luiz Pacheco Cruzeiro Seixas PERVE GALERIA - Cópia demonstrativa - Uso Proibido

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texto pintura

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à memória de

Mário Cesariny de Vasconcelos

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Estendo o pé e toco com o calcanhar numa bochecha de carnemacia e morna; viro-me para o lado esquerdo, de costas paraa luz do candeeiro; e bafeja-me um hálito calmo e suave; façoum gesto ao acaso no escuro e a mão, involuntária tenaz dededos, pulso, sangue latejante, descai-me sobre um seio mornonu ou numa cabecita de bebé, com um tufo de penugem pretano cocuruto da careca, a moleirinha latejante; respiramos naboca uns dos outros, trocamos pernas e braços, bafos suor unscom os outros , uns pe l os outros , tão conchegados , tãoembrulhados e enleados num mesmo calor como se as nossasveias e artérias transportassem o mesmo sangue girando,palpitassem compassadamente silenciosamente duma igualvivificante seiva.

É um bicho poderoso, este, uma massa animal tentaculare voraz, adormecida agora, lançando em redor as suas pernase braços, como um polvo, digo: um polvo excêntrico, sem cabeçacentral , sem ordenação certa (natural) ; um grande corpodisforme, respirando por várias bocas, repousando (abandonado)e dormindo, suspirando, gemendo. Choramingando, às vezes.Não está todo à vista, mas metido nas roupas, ou furando aosbocados fora delas. Parece (acho eu, parece) uma explosão queatingiu um grupo de gente parada e, agora, o que está ali sãorestos de corpos mutilados: uma pernita de criança, um braçonu sozinho, um punho fechado (um adeus?... uma ameaça?...),um tronco mal coberto por uma camisa branca amarrotada.

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Ou seria, então, talvez, um desabamento súbito, uma avalanchede neve encardida, que nos cobriu a todos, ao acaso, aos bocados,e para ali ficámos, quietos e palpitando, à espera, quietos econfiantes, dum socorro improvável, cada vez mais (e as horaspassam!) improvável, incerto, aguardando a luz da manhã, quechega sempre, que acaba sempre por chegar, para vivos e mortos,calados ou palrantes, ladinos ou soterrados, os que já desistiramda madrugada e os que, ainda, contra qualquer lógica, contraqualquer quantidade de esperança, confiam ainda e esperam.

Somos cinco numa cama. Para a cabeceira, eu, a rapariga, obebé de dias; para os pés, o miúdo e a miúda mais pequena. Tococom o pé numa rosca de carne meiga e macia: é a pernita daLina, que dorme à minha frente. Apago a luz, cansado de lerparvoíces que só em português é possível ler, e viro-me para olado esquerdo: é um hálito levemente soprado, pedindo beijos noescuro que me embala até adormecer. Voltamo-nos, remexemos,tomados pelo medo de estarmos vivos, pela alegria dos sonhos,quem sabe!, e encontramos, chocamos carne, carne que não énossa, que é um exagero, um a-mais do nosso corpo, mas aqui,tão perto e tão quente, é como se fosse nossa carne também:agarrada (palpitante, latejando) pelos nossos dedos; calada(dormindo, confiante) encostada ao nosso suor.

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Agora, sentado aqui na cama e escrevendo incl inado para alâmpada do pequeno candeeiro em tulipa azul de vidro fosco, sintonos rins o rosto da Irene, a minha pequena deusa de tranças loiras,a sua mão, muito branca e esguia, pálida, quase morta, avançounuma aflição de afogado e veio agarrar-se a mim, junto à sebentasem linhas onde a esferográfica de tinta vermelha deixa riscos etraços, bolinhas abauladas dos OOO e outras argolas mais do alfabeto,um rasto leve de sangue a fingir, sangue inventado, transposto empalavras e sinais, quieto ali à vista, seco para sempre, moldado,concentrado numa raiva, sujo de palavras, desconforme, sabe-se láquando mentiroso ou verdadeiro, mas já descansando do seu apressadoinfatigável zeloso viajar pelo corpo. Sem a dignidade do sanguequente que gira pelas veias e artérias, ora escuro ora mais oxigenado,mas com a gravidade do que esguicha, raivoso, ou escorre, devagar,delicado, das feridas, sangue que vem lá de dentro do corpo com umaforça definida, uma coisa a dizer, um sintoma a revelar. Uma voz,se preferem.

A cama é larga, de madeira, alta, gingona, parece uma jangada.Eu comparo-a a uma jangada, onde vamos nós cinco, cercados denoite, de ventos, de ondas caprichosas, perigos desconhecidos. É umaimagem literária, esta, da cama-jangada; a literatura, a quem muito,sofregamente lê , dá is to : comparações para tudo , referênc iasimprevistas, casos, tipos, situações paralelas que já houve ou foraminventadas, uma outra vida ou realidade como a nossa de todos osdias e que se infiltra no sangue, ferve na memória sem que a gentedê por isso. Não ajuda a viver, é certo, porque nada ajuda a viver;antes a figurar-se. Permite, talvez, uma certa coerência (interior).Não é importante, afinal - mas que será importante, afinal?

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Vamos na jangada. Já estamos tão habituados que nem reparamos(é mesmo assim!). Antes de nascer o bebé, o Paulo Eduardo, era pior:havia sempre o receio por esse desconhecido, cuja cara não víamos,escondida como estava na barrica barriga da mãe, e não sabíamos quemera e como era e o que queria. Talvez um inimigo. Talvez um diferentede nós. Talvez um descontente. Um intruso. Ele só dava sinais (aliás,incompreensíveis, para quem não tiver grande prática) através dumaspalpitações, remexidelas, cambalhotas, pontapés no escuro (longa noiteprimeira, o denso mar original), cabeçadas sob a pele de tambor esticadado odre materno. Mas apareceu e já estamos mais sossegados. Não é umestranho nem um inimigo. É um bebé, apenas um bebé. Um igual a tantos,ao que já fomos, e chora e borra e mija e mama como todos os bebés.Mama como quem está a puxar a vida do corpo da mãe, vida quente edocinha, tão fácil! tão gulosa!, para dentro dele. Caga e mija como quemri do mundo, do muito que nele há para a gente rir, misérias e tristezas,aleluias e horas de prazer, que tudo vale o mesmo e tudo é o mesmofumo e tem o mesmo fim. Chora como quem já sabe isso.

Dorme ao lado da mãe. Uma carinha de velho engelhada, o focinhitomoendo e remoendo, abanicando a chupeta, num tique de focinho decoelho. Este (o bebé) tem uma vantagem, um privilégio singular, o chamadodireito de opção: podia dormir no berço, se quisesse; um berço novinhoem folha, de vime seco, barato, sem luxos de colchoaria ou rendas finasou forros vistosos de chita, mas inda assim confortável e limpo, arejado,independente, com lençóis. E neste Inverno houve também noites em quea Lina podia escolher: se quisesse, dormia no chão dentro do gavetão ousapateira do guarda-vestidos, parecia um caixão aberto, com o anjinholá dentro, em cima de roupas velhas, um casaco e umas calças minhasjá intrajáveis.

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Desde que estamos aqui, estudámos, experimentámosvárias posições para nos ajeitarmos a dormir melhor: oratodos em fileira, ao lado uns dos outros, para a cabeceirada cama, ora distribuídos como agora, três para cima, doispara baixo, ou, então, com um dos miúdos (a Lina ou o Zé)atravessados a nossos pés. E havia, ainda, o problema dacolocação ou das vizinhanças: eu e a Irene num lado e osmiúdos noutro, ou nós no meio e eles um de cada lado, istocom insucessos, preferências, trambolhões cama abaixo,muitos pontapés, mijas, rixas, complicações de família,favorit ismos e c iumeiras e choros e berraria às vezes ,resolvidos em família entre risos e lágrimas, bofetões, beijos,descomposturas, carícias leves... Também na cama as posiçõesv a r i a v a m c o n f o r m e o f r i o o u o c a l o r , c o n f o r m e ,principalmente, o frio ou o calor que fazia na cama, poisos cobertores, às vezes, eram convocados (um, ou dois) àpressa, num afã de salvação pública (nossa) e seguiam comdestino incerto. Depois, não havia trapada pelas gavetasque chegasse para os substituir, e até jornais, são óptimos,ramalham duma mane i ra rangente , aprec iada pe l o svagabundos que têm sono e frio. A verdade é esta: o frio nãoentrava connosco!

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Somos gente pura: os mais novos não sabem o que é a promiscuidade,a minha rapariga se v ir a palavra escrita deve achá- la muitocomprida e custosa de soletrar: pro-mis-cu-i-da-de (pelo método Joãode Deus, em tipos normandos e cinzentos às risquinhas, até faz malà vista!) . A promiscuidade: eu gosto . Porque me cheira a calorhumano, me sobe em gosto de carne à boca, me penetra e tranquiliza,me lembra - e por que não ?! - coisas muito importantes (para mim,libertino se o permitem) como mamas, barrigas, pele, virilhas, axilas,umbigos como conchas, orelhas e seu tenro trincar, suor, óleos docorpo, trepidações de bicharada. E a confusão dos corpos, quando sedevoram presos pelos sexos e as bocas. E as mãos, que agarram e aspernas, que enlaçam. Máquinas que nós somos, máquinas quaseperfeitas a bem dizer maravilhosas, inda que frágeis, como nãoadmirar as nossas peças, molas e válvulas e veias , todas e lasanimadas por um sopro que lhes parece alheio mas sai do seu própriomovimento, do arfar, dos uivos do animal, do desespero do anjocaído. E a par disso que é o trivial, que é o que cada um, tosco oualeijado, tem para dar e trocar, fatalidades, na sua mísera ouportentosa condição de bicho, a beleza, que é a surpresa, a harmoniadas formas, que é a excepção, a inteligência, que é a reminiscênciados deuses. Ao lado do bicho, natural e informe, a estátua - onde acarne se afeiçoou em linhas puras, sabe-se lá porquê, por quem epara que fim (sim, o fim sabemos e é o que irmana todos na caveiradesdentada horrível a rir -se muito da beleza e dos olhos que ag o z a v a m , d a e s t á t u a v i v a e d a s m ã o s q u e a p e r c o r r i a mdemoradamente, enlevadas).

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A curva flutuante de um seio de donzela, a provocação que é a ancado efebo ou da ninfa, tão parecidas que se confundem; a amplidão doolhar e os seus mistérios, esquivas e trocadilhos - íntima largueza doreino da alma que jamais encontrarás seu fundo, e a cor alacrearrebatada duma risada; os passos, o cetim da pele, o emaranhado dospêlos do púbis, e a alegria loira duma cabeleira solta, desmanchadanos abraços, saindo triunfal duma cama semidesfeita. A persuasão dafala, a fenda estreita que é a porta do paraíso e as outras mil maneirasde ver e gostar de ver um corpo ser nosso, subjugado por uma técnicaou o seu próprio desejo dissoluto; e tudo assoprado por dentro, tudorecheado de novas grutas ainda por explorar e que também jamais asconhecerás ou iluminarás todas, se elas a si mesmas se ignoram. Tudocativado por uma divindade que é o todo, que é o Corpo, em risos egritos, balbuceios de orgasmo e ranger de dentes; e a solidão dumalágrima lenta que desce a face no silêncio e na amargura; e o resfolegardo moribundo que já nada quer dos homens e com os homens, masostenta ainda na severidade da máscara, no desdém da boca desgarrada,uma altaneira nobreza; e a ferida do teu sexo aberta como uma novaúltima esperança de recomeçar tudo desde o princípio como se fora aprimeira vez a fuga para o sono e o sonho. Nem eu me atrevia a falar-vos disto, senhores; nem eu nunca me atreveria a repetir coisas tãovelhas, se não as visse serem atiradas para trás das costas, como sea enterrar em vida o corpo em cálculos e tristura os homens fossemmais livres e mais humanos.

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Ódio ao corpo, andam esses a dizer há dois mil anos, como se neste curtolapso de tempo da história do homem só devesse haver fantasmasdescarnados. Ódio ao corpo, o teu e o meu, disfarçado em tarefas vis eloas absurdas, cobardias pequeninas. Nada disso é gente e eu gosto deestar com gente (falo de corpos), um enchimento de gente à roda, compacta,onde recebemos e damos, estamos e lutamos, sofremos em comum egozamos. Onde tudo de nós é ampliado, revigorado, e medido pelo colectivo,pelos outros - espelho e limite, cadeia e espaço imenso, liberdade e nossaconquista.

Cá em casa a nossa cama é a nossa liberdade imediata. Tem os nomesque quiserem. É a cama do pai de família, austero e mandão, ou dodorminhoco pesado quando regressa embriagado para casa. É a cama dolibertino. É o leito (suponhamos) Luís -Qualquer-Coisa, XV ou XVI , domilionário, porque nela somos reis e milionários de ternura e de abraços,de palavras ciciadas; e é o catre sem lençóis, fracas mantas, e maucheiro, do maltês que não sabe para onde o destino o manda (e somosisto, e que de longes terras viemos! quantos naufrágios! quanta coisafomos largando para facilitar a marcha até aqui), a enxerga do pedinte(e nós o somos também: porque temos falta de tudo e porque acordamosde manhã sem uma bucha de pão para dar às crianças e sem saber aindaonde o ir buscar). Podia ser (dava para) um bom título de uma comédiapicante, bulevardesca; UMA CAMA PARA CINCO; idem para um filme neo-realista, onde nem cama houvesse, só umas palhas podres e mijadas, comgaibéus ensonados, embrutecidos do calor e do vinho, fedor de pés, talvezum harmónio desafiando as cigarras e os grilos na cálida noite da planíciealentejana. Uma cama para cinco, em herança, constituía um demoradocaso de partilhas. Nós dormimos. Ás vezes, muitas vezes, beijos e abraços.

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Ás vezes, palavras duras, definitivas, a luta dos indivíduos (amorte ou a v ida) , e chacotas pelos fracassos de cada um, earremessos de mau génio, e vampirismo, pois então. Somos puros.E que falta nos fazem lençóis, fronhas, almofadas? Os cobertores,quando os há, estão enegrecidos e com manchas, cheiram ao chichidas criancinhas, quando não a coisas que eu não digo. Mas abrindoa janela, que contraste de perfumes com o ar lavado que vem dosmontes da Serra de São Luís! com a florescência das árvores naAvenida! E deixem-me que lhes diga: se é precisa a maior vigilânciacom as maganas das l êndeas e as br inca lhonas pu lgui tas(especialmente daquelas pequeninas, estilo terroristas, são mesmouns amores!) , a graça que tem a Irene na caça à bicharada,desporto conceituado nas brenhas beirãs onde a fui escolher, ecomo se alegra dizendo era uma verdadeira toira!» ou esta tinhao rabo branco, eram duas às cavalitas, o que só demonstra quena classe agrária, enquanto não chega o dia do tractor e daReforma, a educação feminina quedou nessas prendas doméstico--venatórias do olho atento, dedos que nem setas, unhas comoguilhotinas...

Em toda a cidade que dorme e respira, eu luto com a dispneiae escrevo. Em toda a cidade que repousa e se esquece, na Avenidados Combatentes eu debato-me contra a morte e escrevo diante daminha pequena tribo que dorme.

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A tribo dorme: a Lina mostra um punho fechado (ideias avançadas terá amocinha?); o rapaz está de costas e quase destapado (parece um Cupidocansado; na larga queixada, porém, uma expressão terrena, máscula - acara camponesa e rude do avô Matias); o bebé ressona ou balbucia qualqueruma esperança que só ele entende. Ela, a Irene, a minha pequena deusa detranças loiras, encosta-se a mim e calada cálida repousa cansada. Sou umdeus grego! Fauno serôdio, Pan sem flauta, Orfeu decaído de quantasdesilusões e frios cinismos, um Vulcano cornudo às ordens de Vocências,do meu espaldar senhorial contemplo o rebanho provisório que inventei,patriarca e profeta do meu próprio futuro. E receio, oh como receio, queos deuses a valer me castiguem! E desejo, oh como desejo, que chegue amanhã e eu esteja respirando ainda pelos foles dos pulmões que o enfizemavai dilatando minguando a elasticidade; que o meu coração eia! sus! bataainda quando, num quintal que não sei, perto, o galo canta.

Quando a dor no peito me oprime, corre o ombro, o braço esquerdo,surge nas costas, tumifica a carótida e dá-lhe um calor que não gosto;quando a respiração se acelera em busca duma lufada que a renasça, omedo da morte afinal se escancara (medo-mor, tamanha injustiça, torpezainfinita), aperto a mão da Irene, a sua mão débil e branca. Quero acordá--la. E digo: “não me deixes morrer, não deixes...” Penso para comigo, repitopara me convencer: “ esta pequena mão, âncora de carne em vida, estasamarras suas veias artérias palpitantes, este peso dum corpo e este calor,não me deixarão partir ainda...”»E aperto-lhe a mão com força, e acabo àsvezes por adormecer assim, quase confiante, agarrado à sua vida. Ah, sãoas mulheres que nos prendem à terra, a velha terra-mãe, eu sei, eu sei!São elas que nos salvam do silêncio implacável, do esquecimento definitivo,elas que nos transportam ao futuro, à imortalidade na espécie (nem teremosoutra) pelo fruto bendito do seu ventre (eu sei, eu sei...).

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Mas a minha força é grande. Respiro ao mesmo tempo por cincopulmões; quatro corações jovens (certeiros e cheios) com muitos anosde corda para badalar, batem ao lado do meu e dão- lhe ânimo ecompanhia, eia! sus! avante! para mais uma jornada. Um grito, umriso, um gemido, um bafo abafado na roupa, uma conversa entarameladaque tento perceber do Luís José que se julga (calculo) a brincar narua com a malta, felizardo ou infeliz, o pátio de recreio dele é umacidade inteira - eu olho, comparo, medito, aflijo-me, respiro pior tomoaminofi l ina respiro melhor, duvido, estremeço, dão-me arrepios eaposto: no futuro, amigos, no futuro que são eles. E deito contas,arrelio-me, barafusto, dou bofetões, pontapés (de que logo me arrependo,mas a biqueira do sapato já encontrou um rabo), procuro criar umtanto de ordem na desordem, porque não se pode viver no caos, semuma saída para o transcendente, o Supremo Bem que me preocupa sãoeles, os bambinos, a minha imortalidade, frágil, incerta, tão precisadapor ora de mim e eu tão atormentado e cansado, gasto, velho por dentroe por fora (um velhote), mas orgulhoso dela, mas apostando neles tudoquanto posso, tudo quanto tenho, a minha imortalidade serão talvezeles e mais nada, talvez estes, aqui apertados nesta cama gingona,encalorados ou friorentos mas felizes, pedindo pão a rir, inocentesmas felizes porque a miséria ainda os não roeu na alma, a minhaimortalidade tão pequenina e discreta, serena dormindo agora. Trêssetas apontadas: aonde? e até quando? e contra mim ou não, e porquê?mistérios esses que nem o Filósofo Maldonado Gonelha, de Setúbal, serácapaz de expl icar. Alvo incerto como a nossa trajectória, e tudoestremecente de vida, ondulante e diversa.

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Sei (e não me esqueço) que eles, fora de mim, pedaços de mimrepartido, têm corda própria e seguirão seus rumos por esse mundo,cada vez mais distantes e dispersos, indiferentes à origem, cadavez sabendo menos de mim, comigo vivo ou morto. É a Lei. A flornão pergunta à abelha para que lhe rouba o pólen. A sementesurgindo lentamente da terra - quem lhe encomendou o sermão?pensará no futuro? ou o futuro é ela que al i está a crescer?Turbilhão da Natureza no seu perpétuo móvel (móbil). Caos medonho,mas é aí que estamos. Sei tudo isso. Sei que partirão um dia oume deixarão partir, sem cuidados, sem remorsos nenhuns, talvezcom alegria até. Sinto obscuramente, porém com que certeza, quesou o elo duma cadeia eterna, a começar sabe-se lá onde ou quando,a findar talvez nunca mais, e que não a traí; submisso à Lei. Alegree cheio de pavor. Tocando com as mãos, tão perto! a carne que mecontinua.

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O Luís José tem nos olhos castanhos a mesma doçura dos olhos deminha Mãe e é aí que ela está ainda viva; uma covinha na faceesquerda da Lina, é minha; o Paulocas reabre um silêncio que meuPai mantém fechado num coval do cemitério de Bucelas. Submissoà Lei : olhando-me na pequenez e no que tem afinal de cómico arábula que represento nesta vida e não desesperando de todo emtodo do personagem. Tão rápido tudo e hesitante! Mas aqui, agorano momento em que escrevo (e tudo está certo e tudo permaneceráassim, porque o escrevo) antes da luz da manhã, enquanto osoutros o não sabem e não o podem portanto destruir, nestes diastão tão iguais, sou eu o guia e o inventor. Eu, o prudente pastordo meu rebanho. Eu, o chefe . Eu, o sábio . Eu, o Pai . É a Le i .

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E enquanto dormem a meu lado, eu olho-os e descrevo-os paraos fazer mais meus, para que mos vejam como eu quero. Olho-ose estou v ivo . A Irene , dormindo enleada em mim, quieta eentorpecida, a trança meio desfeita como uma auréola, quieta eestranha, sonha talvez. Quem pode saber o que sonham mulheres?Rodeados de sombras e cantos matinais da pardalada, folgandonas árvores da Avenida, chegamos lentamente a um novo dia. Osdois garotos, daqui a nada, vão crescer das roupas, desenroscar-se com olhos apatetados de sono. A Irene boceja, meio a dormirencosta o bico da mama à boquita do filho e dá-Ihe do seu sangue,um maná de ternura, e olha-o, e pensa. Quem poderá saber o quepensa uma mãe olhando o filho?

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Tenho pena, ah como eu tenho pena!... dos que precisamde inv en tar c o ragem para um novo d ia , c e r te zascertezinhas, obediência a religião ou partido ou rotinas,de inventar-se comodidades necessidades ou i lusóriasvaidades de levar melhor vidinha (ceguetas todos eles aoslimites da humana criatura que é para todos e de repenteo coveiro) , razões para estar e lutar além destas, tãos imples af inal e mister iosas sempre , tão naturais eprimitivas: uma rapariga nossa que amamenta o filho,duas crianças que pedem pão e olham para ti.

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Não sei nada. Duvido de tudo. Desci ao fundo dos fundos,lá onde se confunde a lama com o sangue, as fezes, o pus, ovómito; fui até às entranhas da Besta e não me arrependo.Nada sei do futuro, e o passado quase esqueci. Li muito e foipior . Conheci gente variada nesta Viagem. Pobre gente :estúpidos de medo, doidos espertalhões, toscos patarecos,foliões e parasitas da Vida, parasitas (os mais criminosos,estes) chulos do próprio talento desperdiçando tudo: as horasdo relógio deles e dos outros, e os defeitos de todos, que tudotem seu calor e seu exemplo; ou frustrados falhados tentandoarrastar os mais para o poço onde se deixaram cair porimpotência de criar, lazeira ou cobardia (mas o coveiro nadaperdoa). Cadáveres adiados fedorentos viciosos de manhas emuito mal mascarados. Uma caca a respirar.

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Ora deixem-me que lhes diga: um cadáver não nunca temterá razão, mesmo que a t ivesse t ido antes. Um estúpidoum cobardola é para rir e chorar, porque a estupidez e omedo não têm medida. Um patareco, dá-se- lhe um pontapéno cu, um parasita esborracha-se por nojo e a um fol iãofazemos notar que não lhe achamos graça nenhuma. E fugidos frustrados e falhados que é a malta mais tratante ecastradora que existe. Mas um bebé! uma rapariga com of i lho ao co lo ! os bambinos em vo l ta ! são os b ichos maisexigentes e precisados de tudo. E há que lhes dar tudo. Eis,Senhores, porque saúdo a manhã e faço gosto em a ver indauma vez, e is porque a pardalada me incita. E no r iso domeu Paulocas uma leve ironia contente me desperta, babadaem leite e ternura. Somos puros. Sabemos e cumprimos. Bem-aventurados somos e vós, também,

S E S A B E I S E S TA S C O I S A S , B E M - AV E N T U R A D O S S E R E I S ,

SE AS PRATICARDES.

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. 1“A s s im f i cámos a sab e r que o d e s e r t osabe e s c r e v e r l e r e c on ta r ”T êmpera e c o l agem s ob r e pape l1 7 x 1 2 cm1 9 70

. 3S em T i tu l oT êmpera s o b r e pape l1 5 , 5 x 1 2 cmnão da tada

. 5S em t í tu l oT êmpera e t i n ta da ch ina s o b r e pape l2 6 , 5 x 2 1 cmnão da tada

. 6S em t í tu l oT êmpera , c o l agem e o cu l t a ção s o b r e pape l2 8x 1 8 cmnão da tada

. 9S em t í tu l oG ra f i te e t i n ta da ch ina s o b r e pape l2 9 , 5 x 20 , 5 cm1 9 5 7

. 1 1S em t í tu l oT in ta da ch ina s o b r e pape l1 9 x 1 4 cm1 9 5 5

. 1 3S em t í tu l oT êmpera e c o l agem s ob r e pape l4 1 , 3 x3 2 cmnão da tada

. 1 5S em t í tu l oT êmpera e t i n ta da ch ina s o b r e pape l20 ,4x 1 4 , 5 cmnão da tada

. 1 7S em t í tu l oT êmpera e cane ta s o b r e pape l2 6x 20 cm1 9 54

. 1 8S em t í tu l oÓ l e o s o b r e e s te i ra d e f i b ra s na tura i s5 9x 64 cm1 9 53

. 2 1S em T í tu l oT êmpera e t i n ta da ch ina s o b r e pape l2 3 , 5 x3 7 , 5 cmnão da tada

. 2 3“ C omo à s s e te h o ra s e ram a inda duas h o ra so amor f o i d e v o l v i d o à p r o c edênc i a ”G ra f i te e cane ta2 7 ,4 x 2 1 , 3 cm1 9 68

. 2 5“ . . . na s c en te da s pa la v ra s e da p o e s i a ”T êmpera e t i n ta da ch ina s o b r e pape l2 5 , 5 x 1 6 cmnão da tada

. 2 6" L á onde o n eg r o s émen d o mundo s e g e rano ma i s p r o fundo d o s vu l c õ e s "T é cn i ca m i s ta s o b r e pape l2 4x 1 6 , 5 cmnão da tada

. 2 9“ Po r t oda a par te há s onho sque empurram ou t r o s s onho s para o ab i smo ”Gra f i te , t i n ta da ch ina e t êmpera s o b r e pape l2 8 , 5 x 2 1 cm2006

. 3 0S em t í tu l oT êmpera e c o l agem s ob r e pape l2 7 x3 5 cmnão da tada

. 3 3S em T í tu l oT in ta da ch ina e ca r vão s o b r e pape l2 6x 20 , 5 cmnão da tada

. 3 5S em t í tu l oT in ta da ch ina s o b r e pape l2 8x2 1 , 5 cm1 9 5 5

R e f e r ê n c i a s t é c n i c a s d a s o b r a s o r i g i n a i s d e A r t u r d o C r u z e i r o S e i x a sr e p r o d u z i d a s e m s e r i g r a f i a n e s t e l i v r o :

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roib

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O l i v r o ´ ´ c o m u n i d a d e ` ` , c o m t e x t o d a a u t o r i ad e L u í z P a c h e c o e c o m p i n t u r a s d a a u t o r i a

d e C r u z e i r o S e i x a s ,é e d i t a d o , n o a n o d e 2 0 0 7 , p o r P e r v e G l o b a l - L d a ,

e m p r e s a s i t u a d a n a R u a d a s E s c o l a s G e r a i s , n . 1 9 , e m L i s b o a .F o i i m p r e s s o i n t e g r a l m e n t e e m s e r i g r a f i a p e l o A t e l i e r

d e S e r i g r a f i a A r t í s t i c a A n t ó n i o M o r e i r ae t e v e u m a t i r a g e m d e 4 1 0 e x e m p l a r e s n u m e r a d o s

e a s s i n a d o s p e l o s a u t o r e s n a c o n t r a c a p a ,s e n d o 3 5 0 n u m e r a d o s d e 1 / 3 5 0 a 3 5 0 / 3 5 0 ,

2 5 PA ( p r o v a s d e a r t i s t a ) n u m e r a d o s d e I / X X a X X / X X ,2 5 H C ( h o r s c o m m e r c e ) n u m e r a d o s d e 1 / 2 0 a 2 0 / 2 0 ,

1 0 P E ( p r o v a s d e e n s a i o ) n u m e r a d a s d e 1 / 1 0 a 1 0 / 1 0 .É c o m p o s t o p o r 1 8 f o l h a s , i m p r e s s a s f r e n t e - e - v e r s o , d e t e x t o

e d e p i n t u r a s , r e s p e c t i v a m e n t e .D e q u a t r o p i n t u r a s d o l i v r o ,

f o r a m r e a l i z a d a s q u a t r o e d i ç õ e s d e 1 2 5 e x e m p l a r e s c a d a u m a ,a s s i n a d a s p e l o a u t o r , s e n d o 1 0 0 n u m e r a d o s d e 1 / 1 0 0 a 1 0 0 / 1 0 0 ,

1 0 PA ( p r o v a s d e a r t i s t a ) n u m e r a d o s d e I / X a X / X ,1 0 H C ( h o r s c o m m e r c e ) n u m e r a d o s d e 1 / 1 0 a 1 0 / 1 0 ,5 P E ( p r o v a s d e e n s a i o ) n u m e r a d o s d e 1 / 5 a 5 / 5 .

A e s t e e x e m p l a r c o u b e o n ú m e r o : /

L i s b o a , J u l h o d e 2 0 0 7

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