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52 Da representação à auto-apresentação da Mulher Negra na Literatura Brasileira Conceição Evaristo * olocada a questão da identidade e diferença no interior da lingua- gem, isto é como atos de criação lingüística, a litera- tura surge como um espaço privilegiado de produção e re- produção simbólica de sentidos. Partindo dessas primícias, pode ser observado que a literatura brasileira, desde a sua formação até a contemporaneidade, apresenta um discurso que insiste em pro- clamar, em instituir uma diferença negativa para a mulher negra. A representação lite- rária da mulher negra ainda surge ancorada nas imagens de seu passado escravo, de corpo-procriação e/ou corpo-objeto de prazer do macho senhor. Interessante observar que deter- minados estereótipos de negros/as, veiculados no discurso li- terário brasileiro, são encontrados desde o período da litera- tura colonial. Textos exemplares nesse sentido são os de Gregório de Matos [1623-1696], apelidado como “Boca do Inferno”, por suas críticas à colonização portuguesa. Entretanto, o poeta, como qualquer homem do Brasil Colônia, acostumado e com- prometido com a sociedade escravocrata, em versos como estes revelava o conceito da época que pairava sobre as mu- lheres escravas: “Jelu, vós sois a rainha das mulatas/ E sobre- tudo sois a deusa das p...,” [reticências no original]. É preciso ainda ressaltar que no final do mesmo poema aparece a expressão “cabrinha”, que pode ser remetida ao masculino “bode”, apelido dado aos homens mulatos, que C * Conceição Evaristo, doutoranda em Literatura Comparada, UFF, professora da rede municipal de ensino da cidade do Rio de Janeiro, escritora, ensaísta. Arquivo Pessoal

Conceição Evaristo - Escre(Vivência)

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Da representaçãoà auto-apresentaçãoda Mulher Negrana Literatura Brasileira

Conceição Evaristo*

olocada a questão daidentidade e diferençano interior da lingua-gem, isto é como atos

de criação lingüística, a litera-tura surge como um espaçoprivilegiado de produção e re-produção simbólica de sentidos.Partindo dessas primícias, pode serobservado que a literatura brasileira, desdea sua formação até a contemporaneidade,apresenta um discurso que insiste em pro-clamar, em instituir uma diferença negativapara a mulher negra. A representação lite-rária da mulher negra ainda surge ancorada nas imagens deseu passado escravo, de corpo-procriação e/ou corpo-objetode prazer do macho senhor. Interessante observar que deter-minados estereótipos de negros/as, veiculados no discurso li-terário brasileiro, são encontrados desde o período da litera-tura colonial.

Textos exemplares nesse sentido são os de Gregório deMatos [1623-1696], apelidado como “Boca do Inferno”, porsuas críticas à colonização portuguesa. Entretanto, o poeta,como qualquer homem do Brasil Colônia, acostumado e com-prometido com a sociedade escravocrata, em versos comoestes revelava o conceito da época que pairava sobre as mu-lheres escravas: “Jelu, vós sois a rainha das mulatas/ E sobre-tudo sois a deusa das p...,” [reticências no original].

É preciso ainda ressaltar que no final do mesmo poemaaparece a expressão “cabrinha”, que pode ser remetida aomasculino “bode”, apelido dado aos homens mulatos, que

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* Conceição Evaristo, doutoranda emLiteratura Comparada, UFF, professora

da rede municipal de ensino da cidade

do Rio de Janeiro, escritora, ensaísta.

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serviram também de debo-che para o poeta. Os versosfinais dizem: “Valha-te Deuspor cabrinha, /Valha-te Deuspor mulata; /E valha-meDeus a mim/Que me mato aguardar cabras”.

Uma leitura mais pro-funda da literatura brasilei-ra, em suas diversas épocase gêneros, nos revela umaimagem deturpada da mu-lher negra. Um aspecto aobservar é a ausência de re-presentação da mulher ne-gra como mãe, matriz deuma família negra, perfil de-lineado para as mulheresbrancas em geral. Mata-seno discurso literário a proleda mulher negra. Quanto àmãe-preta, aquela que cau-sa comiseração ao poeta,cuida dos filhos dos brancosem detrimento dos seus. Naficção, quase sempre, asmulheres negras surgemcomo infecundas e por tan-to perigosas. Aparecem ca-racterizadas por uma ani-malidade como a de Berto-leza que morre focinhando,por uma sexualidade peri-gosa como a de Rita Baiana,que macula a família portu-guesa, ambas personagens deO Cortiço, (1890) de Aloísiode Azevedo, ou por uma in-gênua conduta sexual deGabriela, Gabriela, Cravo eCanela, (1958) de Jorge Ama-do, mulher-natureza, inca-paz de entender e atenderdeterminadas normas soci-ais. Embora, a representa-ção materna em muitos tex-tos literários possa desagra-dar também às mulheresbrancas em geral, o que sepretende argumentar aquié: qual seria o significado danão representação materna

para a mulher negra na lite-ratura brasileira? Estaria odiscurso literário, como ohistórico, procurando apa-gar os sentidos de uma ma-triz africana na sociedadebrasileira? Teria a literaturaa tendência em ignorar opapel da mulher negra naformação da cultura nacio-nal? Nesse sentido, é inte-ressante acompanhar as re-flexões de José MaurícioGomes de Almeida (2001)sobre o indianismo român-tico e a construção dos mi-tos de identidade nacionalpara os brasileiros.

Santos observa que asobras fundamentais do ro-mantismo brasileiro, O Gua-rani (1857) e Iracema (1865),de José de Alencar, afirmamuma origem mestiça para opovo brasileiro. Na primei-ra, da fusão do casal Peri/Ceci, o índio simbolizandoo espaço americano e Cecio universo europeu, surgeum novo homem, o brasilei-ro. Na segunda, Iracema, amulher da terra, se entre-ga ao herói português,também aí, busca-se consa-grar o caráter mestiço dasociedade brasileira, nasceo primeiro cearense, frutodo colonizador com a mu-lher da terra.(p.95).

S ignif icat i -vo, sob o as-pecto den e g a ç ã ouma per-s o n a g e mc e n t r a lque pu-desse sernegra, é oromanceabolicio-nista, A

Escrava Isaura (1875) de Ber-nardo Guimarães. A tramaficcional não traz uma he-roína negra. Na narrativa,a senhora elogia a tez clarada escrava e mais, parece fe-licitar a moça por ter tãopouco “sangue africano”,dizendo-lhe: “És formosa etens uma cor linda, que nin-guém dirá que gira em tuasveias uma só gota de sangueafricano” (A escrava Isaura,Guimarães, 1976, p.29,31).Conclui-se então, que mes-mo sendo a heroína uma es-crava, a personagem foi con-cebida se distanciando omais possível dos caracteresde uma mulher de ascen-dência negro-africana.

Diante do romance deGuimarães e de tantas ou-tras obras da literatura bra-sileira, concordamos comSueli Carneiro, (2003, p.50)que ao analisar a questão degênero e raça vivida pelas

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uma fala literária construídanas instâncias culturais dopoder. Nesse sentido, os tex-tos das escritoras afro-des-cendentes se inscrevem noproposto por Homi Bhabha(1998, p.321) acerca da poe-sia do colonizado. Para ele, odiscurso poético do coloniza-do, não só encena o “direitode significar ”, como tam-bém questiona o direito denomeação que é exercido pelocolonizador sobre o própriocolonizado e seu mundo.

Pode-se concluir que naescre(vivência) das mulhe-res negras, encontramos odesenho de novos perfis naliteratura brasileira, tantodo ponto de vista do con-teúdo, como no da autoria.Uma inovação literária se dáprofundamente marcadapelo lugar sócio-cultural emque essas escritoras se colo-cam para produzir suas es-critas. Da condição femini-na e negra, nasce a inspira-ção para esses textos a se-guir:

mulheres negras, diz que “asmulheres negras fazem par-te de um contingente de mu-lheres [...] que são retratadascomo antimusas da socieda-de brasileira, porque o mode-lo estético de mulher é a mu-lher branca”.

Entretanto, se a literatu-ra constrói as personagensfemininas negras sempre des-garradas de seu núcleo de pa-rentesco, é preciso observarque a família representoupara a mulher negra uma dasmaiores formas de resistênciae de sobrevivência. Como he-roínas do cotidiano desenvol-vem suas batalhas longe dequalquer clamor de glórias.Mães reais e/ou simbólicas,como as das Casas de Axé,foram e são elas, muitas ve-zes sozinhas, as grandes res-ponsáveis não só pela subsis-tência do grupo, assim comopela manutenção da memó-ria cultural no interior domesmo.

Se há uma literatura quenos invibiliza ou nos ficcio-naliza a partir de estereóti-pos vários, há um outro dis-curso literário que pretenderasurar modos consagradosde representação da mulhernegra na literatura. Asse-nhoreando-se “da pena”,objeto representativo dopoder falo-cêntrico branco,as escritoras negras buscaminscrever no corpus literá-rio brasileiro imagens deuma auto-representação. Cri-am, então, uma literaturaem que o corpo-mulher-negradeixa de ser o corpo do “ou-tro” como objeto a ser des-crito, para se impor comosujeito-mulher-negra que sedescreve, a partir de umasubjetividade própria expe-

rimentada como mulhernegra na sociedade brasilei-ra. Pode-se dizer que o fa-zer literário das mulheresnegras, para além de umsentido estético, busca se-mantizar um outro movi-mento, ou melhor, se inscre-ve no movimento a queabriga todas as nossas lutas.Toma-se o lugar da escrita,como direito, assim como setoma o lugar da vida.

Nesse sentido, váriostextos se tornam exempla-res, como os de: Geni Gui-marães, Esmeralda Ribeiro,Miriam Alves, Lia Vieira,Celinha, Roseli Nascimento,Ana Cruz, Mãe Beata de Ie-monjá dentre outras. Háainda que se recordar daprimeira romancista abolici-onista brasileira, Maria Fir-mina dos Reis, com a publi-cação de Úrsula, em 1859.Não se pode esquecer, ja-mais, o movimento executa-do pelas mãos catadoras depapel, as de Carolina Mariade Jesus que, audaciosa-mente reciclando a mi-séria de seu coditiano,inventaram para sium desconcertantepapel de escritora. Ca-rolina escrevendoobras como: O quartode Despejo, O Diário deBitita, Pedaços deFome, apresentouuma escrita que paramuitos veio macularuma pretensa e desejo-sa assepsia da literatu-ra brasileira.

Essas escritorasbuscam produzirum discurso li-terário pró-prio, uma con-tra-voz à

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PassadoHistóricoSonia fátima

Do açoiteda mulata eróticada negra boa de eitoe de cama

(nenhum registro)

In Cadernos Negros –Os Melhores Poemas, p. 118.

AméricaEsmeralda Ribeiro

América do Sul, Rhythm and blues,Chicago, África do Sul, Capitalismopobreza, lixo, vício, ismos

AMÉRICAna terceira margemsou azule me sinto só

mas eu sei quem sou:samba, rap, capoeira, bluee tenho soul

In International Dimensions ofBlack Women’s Writing, Vol. 1, p. 203

Coração TiçãoAna Cruz

Quero me lambuzar nos mares negrospara não me perder,conseguir chegar ao meu destino.

Não quero ser parda, mulataSou afro-brasileira-mineira.Bisnetade uma princesa de Benguela.

Não serei refém de valoresque não me pertencem.Quero sentir sempre meu coraçãocomo um tição.

Não vou deixar que o mitodo fogo entre as pernas iluda e desviehomens e mulheresdaqui por diante.

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In E...FEITO DE LUZ, p. 31

ÙRSULA[fragmentos] Maria Firmina dos Reis

A africana limpou o rosto com as mãos, e um momento depoisexclamou:

– Sim, para que estas lágrimas?!... Dizem bem! Elas são inú-teis, meu Deus; mas é um tributo de saudade [...] Liberdade! Liber-dade... ah! eu a gozei na minha mocidade! – continuou Susana comamargura. – Túlio, meu filho, ninguém a gozou mais ampla, nãohouve mulher alguma mais ditosa do que eu. Tranqüila no seio dafelicidade, via despontar o sol rutilante e ardente do meu país, [...]e ai com minhas jovens companheiras, brincando alegre, com o sor-riso nos lábios, a paz no coração [...] Ah! meu filho! Mais tardederam-me em matrimônio a um homem, que amei como a luz demeus olhos e como penhor dessa união veio uma filha querida [...] Eesse país de minhas afeições e esse esposo querido, essa filha tãoextremamente amada, ah Túlio! tudo me obrigaram os bárbaros adeixar! Oh! tudo, tudo até a própria liberdade.

[2004, p.115]

Quarto de Despejo[fragmentos] Maria Carolina de Jesus

8 de dezembro ... De manhã o padre veio dizer a missa.Ontem êle veio com o carro capela e disse aos favelados que êlesprecisavam ter filhos. Penso: porque há de ser o pobre quem háde ter filhos – se filhos de pobre tem que ser operário? [...]

Quando o carro capela vem na favela surge vários deba-tes sobre a religião. As mulheres dizia que o padre disse-lhesque podem ter filhos e quando precisar de pão podem ir buscarna igreja.

Para o senhor vigário, os filhos de pobre criam só compão. Não vestem e não calçam.

[1962, P. 120]

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A Cor da Ternura[fragmentos] Geni Guimarães

Minha mãe sentava-se numa cadeira, tirava oavental e eu ia. Colocava-me entre suas pernas, en-fiava as mãos no decote de seu vestido, arrancavadele os seios e mamava em pé.

Ela aproveitava o tempo, catando piolhos daminha cabeça ou trançando-me os cabelos. Conver-sávamos, às vezes:

– Mãe, a senhora gosta de mim?– Ué, claro que gosto, filha.– Que tamanho? – perguntava eu.Ela então soltava a minha cabeça, estendia os

braços e respondia sorrindo:– Assim.– Eu voltava ao peito, fechava os olhos e ma-

mava feliz.(...).– Eu interrompia as perguntas da brincadeira

para saber coisas além dela. Uma vez foi assim:– Quem fez o fogo e a água? (...)– Mãe, se chover água de Deus, será que sai a

minha tinta?Credo-em-cruz! Tinta de gente não sai. Se saís-

se, mas se saísse mesmo, sabe o que ia acontecer? –Pegou-me e, fazendo-me cócegas na barriga, foi di-zendo: - Você ficava branca e eu preta, você ficava

branca e eu preta, você branca e eu preta...Repentinamente paramos o riso e a brincadei-

ra. Pairou entre nós um silêncio esquisito.Achei que ela estava triste, então falei:– Mentira, boba. Vou ficar com esta tinta mes-

mo. Acha que eu ia deixar você sozinha? Eu não.Nunca, nunquinha mesmo, tá?

Pp. 9, 10

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

AMADO, Jorge.Gabriela, Cravo e Canela, SãoPaulo, Martins Editora, s/d.

ALMEIDA, José Maurício Gomes de. “Litera-tura e Mestiçagem” in Outros e Outras naLiteratura Brasileira, org.Wellington de Al-meida Santos, Rio de Janeiro, EditoraCaetés, 2001.

AZEVEDO, Aloísio. O Cortiço, São Paulo, Áti-ca, 1975.

BHABHA, Homi K. O Local da Cultura, Trd.De Myriam Ávila et al. Belo Horizonte,Editora UFMG, 1998.

CARNEIRO, Sueli. “Enegrecer o Feminismo:A situação da mulher negra na AméricaLatina a partir de uma perspectiva de gê-nero” in Racismos Contemporâneos, org:Ashsoka /Takano Ed, Cidadania, Rio deJaneiro, 2003.

CRUZ, Ana. ... E feito luz, Niterói, Ikenga Edi-torial, s/d.

FÁTIMA, Sônia. In Cadernos Negros-Os me-lhores poemas, org: Quilombhoje,SãoPaulo, 1998.

GUIMARÃES, Bernardo. A Escrava Isaura, Riode Janeiro, Nova Aguillar, 1976.

GUIMARÃES, Geni Mariano. A Cor da Ternu-ra, São Paulo, FTD, 1998.

JESUS, Maria Carolina. Quarto de Despejo,Oficinas Gráficas da L. Francisco Alves,Edição Popular, São Paulo, 1962.

MATOS, Gregório de. Obras Completas deGregório de Matos, Coleção “Os Baia-nos”, Salvador, Edição Universitária, s/d.

REIS, Maria Firmina dos. Úrsula, Editora Mu-lheres, Santa Catarina, 2004.

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