Conceito de Ética Na Contemporaneidade Segundo Bauman

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    CONCEITO DE TICA NACONTEMPORANEIDADESEGUNDO BAUMANPAULO FERNANDO DA SILVA

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    CONCEITO DE TICA NA

    CONTEMPORANEIDADE

    SEGUNDOBAUMAN

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    Conselho Editorial Acadmico

    Responsvel pela publicao desta obra

    Prof. Dr. Reinaldo Sampaio Pereira

    ProfaDra Mariana Cludia Broens

    Prof Dr Ricardo Pereira Tassinari

    ProfaDraCllia Aparecida Martins

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    PAULO FERNANDO DA S ILVA

    CONCEITO DE TICA NACONTEMPORANEIDADE

    SEGUNDO BAUMAN

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    2013 Editora UNESP

    Cultura Acadmica

    Praa da S, 10801001-900 So Paulo SPTel.: (0xx11) 3242-7171Fax: (0xx11) [email protected]

    CIP Brasil. Catalogao na fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

    S582

    Silva, Paulo Fernando daConceito de tica na contemporaneidade segundo Bauman

    [recurso eletrnico] / Paulo Fernando da Silva. So Paulo : CulturaAcadmica, 2013.

    recurso digital : il.

    Formato: ePDFRequisitos do sistema: Adobe Acrobat ReaderModo de acesso: World Wide WebISBN 978-85-7983-427-1 (recurso eletrnico)

    1. tica. 2. Ideologia. 3. Livros eletrnicos. I. Ttulo.

    13-06383 CDD: 174 CDU: 174

    Este livro publicado pelo Programa de Publicaes Digitais da Pr-Reitoria de

    Ps-Graduao da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho (UNESP)

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    AGRADECIMENTOS

    Ao meu amigo, o professor Dr. Robespierre de Oliveira, peloauxlio, solicitude e, sobretudo, pela amizade demonstrada em v-rias oportunidade.;

    Ao camarada Pedro Leo da Costa Neto e sua esposa GrazynaCosta, pela amizade, pelo auxlio na bibliografia e pelas valiosascrticas.

    Aos professores Sinsio Ferraz Bueno e Ricardo Monteagudo.A todos os professores e funcionrios da UNESP Marlia.Aos meus amigos, principalmente ao meu amigo-irmo Ri-

    cardo Otaviano dos Santos e famlia.Sobretudo, minha famlia: Pedro (pai,in memoriam), Valdira

    (me), Simone (irm), Beto (irmo), Santinha (av). Aos meus so-brinhos e demais familiares.

    Muito obrigado!

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    SUMRIO

    Apresentao 9

    Introduo 13

    PARTE I: Das influncias recebidas

    1. Bauman e o perodo em Varsvia: professores ecamaradas 17

    2. Cultura: objeto e prxis 33

    PARTE II: Bauman: anlises e proposies ticas

    3. tica moderna e tica ps-moderna 49

    Concluso (no fim est o comeo) 113

    Referncias bibliogrficas 119

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    APRESENTAO

    Zygmunt Bauman um dos mais preeminentes socilogos efilsofos da atualidade. Muito debatida nos mais variados espaosacadmicos, sua obra tem ultrapassado inmeros limites do conhe-

    cimento tradicional e se consolida, cada vez mais, como referencialterico. Contudo, uma leitura superficial das suas proposiespode deixar de perceber algo de muito importante em sua obra:suas influncias e metodologia. O objetivo central deste lino apresentar o conceito de tica na contemporaneidade segundoBauman. Todavia, no podemos prescindir de uma leitura hist-rico-metodolgica de sua obra, principalmente do seu perodocomo estudante e professor na Universidade de Varsvia, sua con-vivncia com a intelligentsia polonesa e sua teoria social fundamen-tada na corrente marxista denominada ideologia-crtica. Muitoembora Bauman tenha paulatinamente se afastado do marxismoortodoxo e aderido a elementos de outras correntes filosficas, umaleitura ao mesmo tempo conceitual e metodolgica do seu percursointelectual culmina inegavelmente em uma melhor interpretao eanlise de sua obra.

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    INTRODUO

    Qualquer pesquisa que tenha como tema questes relacio-

    nadas ps-modernidade j em si complexa, devido tentativa decompreender minimamente as mudanas por que tem passado omundo de hoje sem a necessria distncia para a compreenso dotodo. Todas as cincias, principalmente as cincias humanas, tmrealizado importantes pesquisas visando diagnosticar a realidade epropor, de algum modo, respostas s novas necessidades. esse ca-minho, de modo geral, que nos propomos trilhar.

    Para apresentar o conceito de tica na contemporaneidade se-gundo Zygmunt Bauman, procuramos tratar dos temas e questesque entendemos os mais pertinentes ao desenvolvimento de talconceito. Muito embora Bauman tenha dedicado ao tema um livroem particular, tica ps-moderna (Bauman, 1997), entendemosque, mesmo que o autor no tenha a pretenso de construir umsistema, o conjunto de seu trabalho reflete um pouco a tentativade continuidade e/ou superao de teorias, o que exige uma leiturade sua obra a partir das suas influncias e de textos afins ao temacentral desta pesquisa.

    Entendemos como ponto fundamental compreenso da reali-dade atual o processo a partir do qual emergem referncias de va-

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    lores que regulam as relaes sociais. Este o ponto inicial da nossapesquisa: conceituar o elemento fundamental que especificamente

    fornece as referncias para o agir do sujeito moral (indivduo ou/esociedade). Partimos da tese de que o papel ativo da ideologia nasrelaes sociais constitui a conscincia da sociedade e que o sujeitomoral (seja no perodo moderno ou no perodo ps-moderno), des-titudo de autonomia, compelido por essa fora ideolgica, reproduzna vida cotidiana o mandamento da classe dominante. Essa ideo-logia a ideologia positivista, que visa prever e ordenar a sociedade

    segundo os interesses capitalistas. esta, como veremos, a propostainicial de Bauman, principalmente influenciado pelo perodo deestudos e docncia em Varsvia: diagnosticar a ideologia predomi-nante e causadora das referncias de valores praticados pelos su-jeitos. Isto porque os marxianos poloneses entenderam que, almde elementos histrico-materiais, existe um conjunto de valoresque visa, conjuntamente com tais elementos, reiterar o padro de

    comportamento da ideologia predominante.O recorte especfico que fazemos, justamente para que nossotema seja distinto de temas da Sociologia e de outras reas afins, pro-cura identificar o conceito de tica contempornea presente na obrade Bauman. Porm, tal conceito se caracteriza como uma teoria pro-positiva. H de se observar que esse autor, no decorrer de sua obra,entende que a realidade forjada pela teoria, pela determinao

    de teorias que servem ao poder, principalmente aqueles poderesligados ao interesse capitalista. Desse modo, nossa pesquisa noocorrer a partir da anlise das relaes sociais particulares de deter-minada sociedade, mas sim das teorias que moldaram (e moldam)a realidade dos perodos moderno e ps-moderno. Este o aspectoanaltico da obra de Bauman: atividade crtica contnua das ideolo-gias, sobre a base de suas razes histricas, e a anlise do papel dasideologias na vida social durante a histria. Entendemos que essainfluncia analtica ainda se encontra presente nos textos recentesde Bauman, mas perdeu-se, como veremos, nos textos propositivos,confundindo-se com aspectos da fenomenologia e de outras cor-rentes filosficas, como o kantismo.

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    O sistema de valores ou conjunto de valores que rege aao do sujeito moral, individual ou socialmente, provm de uma

    ideologia especfica e atende a determinados fins. A ideologia fun-damental torna-se a prpria cultura, que passou a ser entendidacomo sistema de ordem social de realizao das normas comparti-lhadas, internalizadas e mutuamente congruentes. Nesse sentido, acultura passa a ser a mediadora que assegura o encaixe dos sistemassociais com a personalidade, uma estao de servio do sistema so-cial que visa internalizar o processo de socializao, um conheci-

    mento desenvolvido segundo interesse ligado ao poder. a partir dacultura que emerge a referncia para o agir moral. Esse conjunto devalores objeto de estudo da Filosofia, sobretudo da tica. Visamosanalisar, segundo Bauman, qual o conjunto de valores (ideologia)que rege o comportamento dos sujeitos. Bauman procura as causase as distingue nos perodos moderno e ps-moderno. No segundomomento da sua obra, Bauman procura apresentar sua teoria pro-

    positiva. Procuraremos seguir a ordem sugerida por ele, a saber: noprimeiro momento,realiza-se uma crtica, a identificao e crtica daideologia, tanto sobre suas bases histricas como sobre o resultadoda ideologia na vida cotidiana das pessoas; no segundo momento, aatividade a proposio terica como resposta s necessidades, emespecial necessidade de alternativa, em face da ideologia domi-nante. Inerentemente, tentaremos demonstrar que o autor oscila,fundamentando-se em teorias diversas e, muitas vezes, incapazes deatingir o objetivo proposto.

    Desse modo, no primeiro captulo deste trabalho apresentamosas influncias que Bauman recebeu, especificamente durante a for-mao acadmica e a atuao como professor, ainda em Varsvia.Pretendemos problematizar se a influncia que ele recebeu no pri-meiro momento da sua vida intelectual condio necessria paraentender sua obra mais recente.

    No segundo captulo, apresentamos o conceito de cultura se-

    gundo Bauman, que tem dupla funo: ao mesmo tempo conceitoe categoria. Conceito enquanto objeto de anlise que possibilita iden-tificar a ideologia predominante nos valores sociais, e categoria en-

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    quanto prxis, pois a atividade essencialmente humana, que podeser reprodutora da ideologia dominante (passiva), ou revolucionria

    (ativa), pois a prxis de uma nova cultura capaz de modificar acultura dominante, o statu quo.No terceiro captulo nos propomos a apresentar a tica do tra-

    balho e a tica do consumo como atividades ideolgicas, respecti-vamente, moderna e ps-moderna.

    A Conculso apresenta a obra mais recente de Bauman e suaproposta tica ps-moderna.

    Visamos observar de modo mais dedicado as influncias queBauman recebeu do marxismo. Poderamos aprofundar mais taltema a partir de outros autores que de certo modo tambm influen-ciaram Bauman, a saber: Lvinas, Weber e Freud. Contudo, o ca-rter do nosso trabalho no comporta uma pesquisa dessa monta.Esperamos ter atingindo um resultado satisfatrio, uma vez que ograu de complexidade do tema, por se tratar de questes contem-

    porneas, exige novos enfoques.

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    PARTE IDAS INFLUNCIAS RECEBIDAS

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    1BAUMAN E O PERODO EMVARSVIA:PROFESSORES E CAMARADAS

    Segundo Fernandes (1971), uma investigao do desenvolvi-mento intelectual no continente europeu deve considerar a exis-

    tncia de uma historiografia polonesa das ideias, principalmenteaquela por ele nomeada Crculo de Varsvia de Histria da Filo-sofia e do Pensamento Social (Fernandes, 1971, p.387).1Compu-nham o grupo jovens intelectuais que, como militantes,participaram da luta contra o nazismo e abriram caminho para oadvento do socialismo polons. Esse grupo participou entre 1956 e1958 do movimento po ltico de oposio ao regime Gomulka. Suagrande importncia na significativa contribuio da Polnia nocampo das ideias encontra-se no debate metodolgico e conceitualsobre o pensamento social contemporneo, agregando elementoshumanistas e buscando desenvolver pesquisas que atingiriamquestes subjacentes, uma crtica direta, naquele momento, aosmtodos biologistas e positivistas.

    1. Fernandes cita, como representantes do Crculo de Varsvia de Histria da Fi-losofia e do Pensamento Social, sobretudo os professores Baczko, Kolakowski,Pomian, Szacki, Walicki. Bauman no citado, porm entendemos que eletambm deve ser considerado um representante do desenvolvimento de umahistoriografia polonesa das ideias por ter participado, em geral, das mesmasatividades acadmicas e, qui, polticas, que os nomes citados por Fernandes.

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    O filsofo e fenomenlogo italiano Guido Neri (1980), emlivro dedicado a essa questo, enumera Kolakowski, Baczko, Brus

    e Bauman como as principais figuras da intelligentsia polonesa apartir de 1956.

    Todavia, importante partirmos da introduo do pensamentomarxista na Polnia, uma vez que Bauman, aps ingressar como es-tudante (1945-1948) na Universidade de Varsvia, recebeu forte in-fluncia do marxismo l adotado.

    Desse modo, pretendemos apresentar alguns aspectos impor-

    tantes da introduo do pensamento marxista na Polnia do ps--guerra, mais especificamente na Universidade de Varsvia, e como

    foi que se constituiu a chamada intelligentsia polonesa, qual Bauman

    foi ligado: os aspectos histricos e as principais figuras (professores)

    que configuraram a adoo do pensamento marxista (ou marxiano,

    como veremos) na Polnia. De forma concomitante, apresentaremos

    os fundamentos tericos e metodolgicos adotados em Varsvia e,

    consequentemente, pelo prprio Bauman.2Em muitos momentos,as abordagens podem se confundir, pois trataremos de elementoshistricos e terico-metodolgicos no mesmo texto. Contudo, a per-

    tinncia de tal abordagem ser mais bem compreendida no segundo

    captulo, pois partimos do pressuposto de que a obra atual de

    Bauman deve ser analisada levando em considerao a influncia e

    a metodologia recebidas ainda no perodo como estudante e, logo

    depois, como professor em Varsvia.

    2. Uma das principais obras de Bauman, que retrata bem o perodo de Varsvia, seu manual de Sociologia, traduzido como Por uma Sociologia crtica. Emboratenha sido escrito j em ingls (1976), retrata fielmente a influncia terico--metodolgica herdada do perodo que viveu em Varsvia.

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    Recepo do marxismo na Polnia

    Conforme Kolakowski (1976),3

    em sua obra Glwne Nurty Mar-kisizmu (As principais correntes do marxismo), que dedica um amploespao introduo do marxismo na Polnia, Kazimierz Kelles--Kraus, Stanislaw Brzozowski e Rosa Luxemburgo so destacadosrepresentantes desse processo.4No entanto, vamos nos ocupar, aqui,

    sobretudo do socilogo Krzywicki, tambm citado por Kolakowski,cuja influncia se estendeu praticamente por trs geraes da intelli-

    gentsia polonesa, inclusive aos j citados. Seu trabalho foi dedicado pesquisa acadmica, docncia e produo de artigos publicadosem peridicos acadmicos. Krzywicki ingressou na Universidade deVarsvia, em 1878, como estudante de Matemtica. Anteriormente,teve contato com os socialistas, sobretudo a vertente sansimoniana.

    3. Kolakowski foi um dos principais filsofos poloneses da segunda metade dosculo XX e tambm um destacado ativista poltico. Durante a sua vida passoupelas mais diferentes correntes tericas: de incio, marxista ortodoxo e cr-tico da Igreja e da filosofia catlica (perodo que vai do final dos anos 1940 atmeados dos anos 1950); em um segundo momento, torna-se filsofo marxistarevisionista e ativo crtico do marxismo oficial (de 1956 a 1968 segundo al-guns autores, nos ltimos anos no podia nem mais ser considerado marxista) e sua evoluo no pode dissociar-se das lutas polticas do perodo; por fim,no terceiro perodo, aps a sua expulso da Universidade de Varsvia, ocorrida

    em 1968, tornou-se um anticomunista militante. Um exemplo da sua relaocom o marxismo o livroAs principais correntes do marxismo, que em algunsmomentos peca por fortes simplificaes. Alis, segundo observam algunsanalistas, Kolakowski sempre teve uma forte propenso polmica e nemsempre a travou de forma equilibrada. A amplitude da sua obra (livros dedi-cados filosofia catlica, a Espinosa, ao positivismo, a Husserl, um conjuntode escritos dedicados a Marx e ao marxismo, alm de uma grande quantidadede textos publicados em peridicos) torna muito difcil uma avaliao geraldela. Na obra de Kolakowski so particularmente importantes seus escritosdedicados a Espinosa e s correntes religiosas na Holanda do sculo XVII(Swiadomosc religijna i wiez koscielna, traduzido para o francs como Chrtienssans glises, que talvez seja o seu principal livro).

    4. Para a anlise da introduo do marxismo na Polnia, consultar igualmente oartigo de Walicki (1984), no qual analisada a contribuio desses pensadorespara o desenvolvimento de uma tradio marxista na Polnia.

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    Durante os estudos em Varsvia leu O capital, tendo sido conven-

    cido por seus argumentos. Juntamente com Stanislaw Krusinski

    (1858-1886) e Bronislaw Bialobloki (1861-1888), fundou o primeirogrupo marxista polons e introduziu suas ideias no pblico leitor(Kolakowski, 1976, p.197). Na leitura de Kolakowski, percebe-seque h uma distino clara do marxismo adotado por Krzywicki,pois nem ele nem seus companheiros foram marxistas ortodoxos emsentido estrito (1977, p.197). Assim tambm, ressalta Kolakowski,Krzywicki desde cedo, porm s inicialmente, adotaria uma ten-

    dncia comum poca positivista e cientificista. Krzywicki eBialobloki morreram muito cedo, antes mesmo de exercerem al-guma influncia. Contudo, juntamente com Krzywicki, perten-ceram ao primeiro partido socialista polons, o Proletariat. Este foium grupo clandestino fundado em 1881 e que em 1885 foi dissol-vido pelas autoridades. Seus lderes foram enforcados, sendo eles osprimeiros mrtires do socialismo marxista polons.

    Krzywicki dedicou-se em 1883 a criticar, por meio de artigos, ateoria de Herbert Spencer e seus seguidores poloneses. Nesse mesmo

    ano, foi expulso da Universidade de Varsvia por participar de uma

    manifestao poltica. Estabeleceu-se em Leipzig, onde preparou a

    primeira publicao de O capital pelo grupo Krzywicki-Krusinski,

    trabalho que durou de 1884 a 1890. Estudou Antropologia, Socio-

    logia e Economia Poltica em Leipzig e, posteriormente, foi Sua,

    onde manteve contato com socialistas russos e alemes, incluindo

    Kautsky e Bernstein, e no incio de 1885 se instalou em Paris. Du-

    rante esse perodo, publicou vrios artigos sobre marxismo revolu-

    cionrio. Em 1888, voltou Polnia, cidade de Plock, e, mais tarde,

    a Varsvia, onde iniciou vrias atividades educacionais, legais e clan-

    destinas. Krzywicki manteve estreito contato com a Unio dos Tra-

    balhadores Poloneses em 1889, e com outros partidos socialistas da

    poca, porm no se filiou a nenhum deles. De 1890 a 1910, sua-

    vizou o tom de seus escritos polticos e passou a abordar em seus

    estudos o socialismo evolucionista. Permaneceu em Varsvia prati-

    camente desde esse perodo at a ocupao alem, quando ocorreu

    a sua morte.

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    Segundo Kolakowski,

    em sua crtica a Spencer e aos darwinistas sociais, Krzywicki afir-mava que os evolucionistas, ao construir modelos sociais segundo

    o modelo de um organismo vivo, estavam propagando de fato a

    ideologia da solidariedade de classe, propondo-se a pr fim luta

    de classes e fechando seus olhos para a dissoluo dos tradicionais

    vnculos de unio em sociedade marcada pelas contradies e pela

    competio. (1977, p.199)

    Krzywicki tambm mostrou forte oposio s ideias social-dar-winistas propugnadas pelos idelogos da escola de Manchester.Segundo sua tese, a concorrncia e o conflito social no podiam serconsiderados como casos particulares da luta biolgica pela sobre-vivncia dos mais aptos. Estes no esto determinados por leis

    biolgicas, mas sim pelo caos daproduo, que uma etapa do de-

    senvolvimento social e no uma lei da natureza. Nesse contexto, asobrevivncia seria um privilgio do mais apto, e no uma capaci-dade. Krzywicki tambm atacou o esprito de raa; ele dizia queno era [...] uma categoria biolgica, e sim um legado de certas con-dies histricas (1977, p.199). Dessa forma, afirmava que o ra-cismo no poderia explicar as mudanas das instituies sociais.

    Afirmou tambm que a ideia nacional na Europa era uma criaomercantil, para alm do Estado-nao, estimulando uma conscincia

    tnica. Seus principais ataques contra as teorias biolgicas foramcontra Lombroso e Gobineau. A teoria de ambos, segundo Krzy-

    wicki, est baseada numa posio de classe e no numa postura cien-

    tfica. Sobre Lombroso, dizia:

    O mdico italiano pensava que o crime se devia herana ou a

    traos antropolgicos inatos, quando, de fato, suas causas estavam

    nas condies sociais, na pobreza e na ignorncia. (Kolakowski,

    1977, p.200)

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    Confrontou-se tambm com as teorias anarquistas. Afirmavaque o anarquismo se diferenciava do socialismo pelos meios que

    utilizava, mas o fim era o mesmo. Os anarquistas acreditavam numconstante conflito entre indivduo e sociedade e consideravam a his-tria como um processo em que os seres humanos estavam cons-tantemente subjugados pelas instituies. Por essa razo, negavamparticipar de uma luta poltica que se supunham instituies en-quanto elemento de apoio transformao social. Por outro lado,os socialistas no entendiam o desenvolvimento social como uma

    patologia, mas um necessrio avano das foras dos seres humanossobre a autoridade coletiva e as foras da natureza. Conforme Kola-kowski, para Krzywicki, o anarquismo [...] era uma estril revoltade formas de produo pr-capitalistas, arruinadas pela progres-siva concentrao do capital (1977, p.200).

    Krzywicki foi contrrio aos movimentos de solidariedade, queacusava de pseudossocialismo cristo, pois combatiam o capita-

    lismo em nome das instituies feudais e buscavam uma soluoprocurando tutelar os trabalhadores e as ideologias democrticas,resultando, por fim, num sistema de classes baseado no conceito in-diferenciado de povo. O que tais democratas, na anlise de Krzy-wicki, procuravam fazer com o conceito de povo era, na verdade,uma combinao imperfeita dos mais variados estratos sociais, dearistocratas a artesos e pequenos comerciantes. No povo no

    eram includos, por exemplo, os camponeses, classe destinada aoostracismo mediante o progresso industrial. Segundo Kolakowski,at aqui, os pontos de vista de Krzywicki so do marxismo clssico.Ele defendia o proletariado como nica classe que pode, de fato, li-bertar a sociedade, isso por um progresso tcnico e no pela ressur-reio de um sistema precapitalista. Afirma que:

    Em todas as sociedades, desde as mais primitivas, a distribuio de

    bens, e portanto a diviso de classes, depende do modo de pro-

    duo. As condies econmicas explicam a gnese das ideolo-

    gias ou so a base das instituies polticas; as ideias morais e

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    polticas surgem em resposta s necessidades sociais como formas

    necessrias nas quais os homens concebem seus prprios interesses

    e so capazes de unir-se para defend-los. As ideias no so apenasum poderoso agente do desenvolvimento social seno uma con-

    dio necessria para a mudana institucional; no entanto, so se-

    cundrias no sentido de que surgem como articulao de interesses

    previamente desconhecidos, e s podem chegar a ser instrumentos

    de coeso social se j estiverem presentes as condies materiais

    necessrias para essa coeso, a saber, a comunidade de certos inte-

    resses e a divergncia de outros. (Kolakowski, 1977, p.201-2)

    No que diz respeito ideologia enquanto formadora do real,assim como vemos nessa citao, essa concepo ser mantida nosdemais marxistas que sofreram a influncia do professor polons,sobretudo, como veremos, o prprio Bauman. Essa concepoapresenta a manipulao da ideologia por meios econmicos, mas,

    tambm e em particular, a manipulao que reiterada pelosmeios ticos e polticos, devido compreenso da preexistncia deum conjunto de valores de ordem heternoma e alienante.5

    Segundo ainda Kolakowski, a revoluo foi tema quase ine-xistente na obra de Krzywicki. Contudo, ele adota a posio orto-doxa do marxismo sobre o tema. Isto , que

    a contradio entre o progresso tcnico e o sistema de propriedade

    privada levaria a uma abolio revolucionria do capitalismo. Essa

    crise no podia ser produzida artificialmente, devendo ser o resul-

    tado do amadurecimento espontneo do capitalismo. (Kolakowski,

    1977, p.202)

    Dessa forma, a tarefa dos socialistas seria organizar a cons-

    cincia de classe do proletariado e assumir o controle do processorevolucionrio no momento oportuno (Kolakowski, 1977, p.202).

    5. Consultar, sobre esse tema, os captulos 2 e 3.

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    Em outros escritos, como demonstra Kolakowski,6Krzywicki nose mostra to fiel ao ideal do marxismo ortodoxo no que tange

    revoluo. Krzywicki, tambm se mostra muito simptico ao co-munismo primitivo, distanciando-se, assim, do materialismo his-trico, tornando muito remota, de algum modo, a conciliao dotema com sua posterior produo.

    Krzywicki, acerca do materialismo histrico, considerou-o comocompletamente independente de qualquer ponto de vista filos-fico, materialista ou no (Kolakowski, 1977, p.203). Isto o dife-

    renciava de autores fenomenalistas, empiriocriticistas ou kantianos.Pois, segundo Krzywicki, apreendemos o mundo de forma hu-mana, fazendo distines e categorias que constituem instrumentosde predio, mas no realidades objetivas: criamos objetos a partirde impresses, distinguimos a fora da matria e impomos leis paraa natureza, seguindo o modelo da legislao humana (Kolakowski,1977, p.203). Assim, toda a evoluo do mundo de construes

    da mente, e a razo pela qual projetamos na realidade a exploraoque revela a sociedade atual dos homens formada por servos e nopor amos das mquinas que por eles foram criadas.

    Ainda tratando de elementos do materialismo histrico, paraKrzywicki o resultado do processo histrico no depende somentedas condies objetivas, depende tambm em grande parte dos cos-tumes, crenas, instituies, variaes locais de temperamento ou o

    que conhece como esprito de raa, que por sua vez resulta dosefeitos de longa durao do ambiente sobre a natureza humana(Kolakowski, 1977, p.206). Mais uma vez, percebemos aqui o trao

    6. No Estudo da evoluo social e no prefcio da traduo polonesa de A dou-trina econmica de Karl Marx, de Kautsky, a revoluo pode no ser obra nemdo proletariado, nem da burguesia. Os meios de produo poderiam estar su-bordinados ao Estado, o que consistiria num capitalismo de Estado. Os traba-lhadores se assentariam sobre a seguridade social e se introduziria a planificaoeconmica. Porm, o socialismo no seria implantado nessas condies, poiscontinuaria o trabalho assalariado e a produo fora do controle da classe tra-balhadora.

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    distintivo do pensamento marxista polons, em grande parte in-

    fluenciado por Krzywicki: o processo histrico se realiza de forma

    reiterada nos costumes, crenas e instituies, de modo a reforar aconscincia da sociedade por meio da ideologia, fundamento dos

    valores que regem as relaes entre os sujeitos.7

    Divergindo da tese ortodoxa, os estudos de Krzywicki sobre

    as sociedades primitivas o levaram concluso de que no existe

    uma lei universal, e que a servido8no foi uma etapa necessria em

    todos os casos; isso refora sua posio sobre o papel do desenvol-

    vimento dos valores enquanto determinante das relaes entre ossujeitos.

    Por fim, como afirma Kolakowski, Krzywicki, na difuso da

    teoria marxista, teve assim um papel ambguo [] a flexibilidade e o

    ecletismo de seu enfoque foi uma das razes pelas quais o marxismo

    polons deixou de assumir formas ortodoxas e tendeu a dissolver-se

    em uma tendncia geral racionalista ou historicista (1977, p.209).

    No podemos concordar com Kolakowski que a introduo eclticado marxismo por Krzywicki na Polnia tenha resultado necessaria-

    mente na impossibilidade de uma abordagem ortodoxa. Todavia,

    como veremos, Bauman adota tal linha heterodoxa e fundamenta

    sua anlise social na identificao da ideologia que fundamenta os

    valores e reitera as relaes de produo, caso especfico da socie-

    dade capitalista moderna.

    7. Nessa afirmao de Kolakowski sobre Krzywicki, podemos j observar o traodeterminante da corrente marxista denominada ideologia-crtica.

    8. Segundo Kolakowski, Krzywicki observava que a sociedade industrial, onde apessoa est submetida quase totalmente a vnculos reificados e a formas decooperao impessoais, acaba por ter sua criatividade sufocada pelo dinheiro.Dessa forma, o socialismo possibilitaria s pessoas a oportunidade de se rela-cionarem sem a intermediao necessria do capital e desenvolverem relaesespontneas e diretas.

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    A intelligentsiapolonesa e o marxismo

    Para entendermos a origem e o desenvolvimento do pensamentomarxista polons aps a Segunda Guerra Mundial (em particular nos

    anos 1945-1948) e especificamente o de Zygmunt Bauman, neces-srio, de incio, analisarmos as vicissitudes desse processo no pe-rodo. Leszek Kolakowski, na edio polonesa de seu livro As

    principais correntes do marxismo (1983, p.169ss.), nos oferece umaclassificao das diferentes fases do perodo: 1) os anos 1945-1949

    se caracterizar pela existncia de elementos de um pluralismo pol-tico e cultural que se restringiu gradualmente no decorrer do pe-rodo, e que se expressava no pensamento filosfico e social pelapresena de diferentes correntes e professores estranhos tradiomarxista nas diferentes instituies universitrias particularmentena Polnia e na Tchecoslovquia; 2) 1949-1954 se caracteriza pelaunificao do campo socialista, nos aspectos polticos e ideol-

    gicos e acompanhados de uma estalinizao da cultura, atravs dediferentes mtodos administrativos, entre os quais o afastamento e aproibio do ensino dos antigos professores; 3) 1955-1968, sob oefeito da desestalinizao surgem diferentes tendncias antiestali-nistas e revisionistas.

    Durante o primeiro perodo, ao lado do pensamento marxista,

    coexistem diferentes correntes tericas: a escola de Lgica de Lwow-

    -Varsvia, cujos principais representantes eram Tadeusz Kotarbinskie Kazimierz Ajdukiewicz; os cientistas sociais Stanislaw Ossowski e

    Maria Ossowska e representantes do pensamento marxista, Julian

    Hochfeld e Adam Schaff, entre outros.9Decisivos para a formao

    9. O marxismo polons tinha sua prpria tradio, independente da Rssia. Essatradio carecia de uma forma ortodoxa e de uma determinada ideologia departido; o marxismo era somente um trao a mais, e no muito importante dacena intelectual polonesa (Kolakowski, 1983, p.74). Sobre Hochfeld, Schaff eKolakowski, afirma Gianni Paganini, professor italiano de Filosofia, que omarxismo e a Filosofia Analtica, esta da escola de Lwow-Varsvia, caminhamjuntamente e desenvolvem, assim, a filosofia produzida na Polnia daquelapoca (Paganini, 1999).

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    intelectual de Zygmunt Bauman10foram Stanislaw Ossowski,11Maria

    Ossowska12e Julian Hochfeld.13

    Professores da Universidade de Varsvia tambm influenciarama obra de Bauman. Contudo, a influncia recebida, principalmentedos pensadores citados, apresenta-se de forma ntida na obra deBauman, sobretudo no que tange ao pensamento humanista, Fi-losofia e Sociologia da tica.

    Importante tambm apresentar, mesmo que brevemente, a bio-grafia de Bauman e, desse modo, identificar melhor sua trajetria

    poltico-acadmica:

    1925: nasce Zygmunt Bauman, de uma famlia judia, na cidade de

    Poznn, Polnia;

    10. Bauman refere-se s influncias exercidas em sua formao intelectual no livroBauman sobre Bauman. Refere-se igualmente influncia de Hochfeld no seu

    pensamento em um artigo no qual ele observa: o quanto devo a Julian Hoch-feld me conscientizei apenas gradualmente, com o decorrer do tempo. Afinal,Hochfeld foi um fenmeno excepcional, na cincia e na poltica. [...] escapafacilmente s divises e s definies cientficas (Bauman, 1992, p.15).

    11. Stanislaw Ossowski (1897-1963), professor da Universidade de Lodz (1945-1947) e da Universidade de Varsvia (1947-1953), foi um destacado socilogopolons. Defensor de uma Sociologia humanista e antinaturalista, diferenciavaas cincias naturais das cincias sociais e exerceu uma forte influncia sobre ossocilogos poloneses, em particular sobre Zygmunt Bauman, Jerzy Szacki e

    Edmund Mokrzycki. Em 1957, foi um dos criadores da Associao Polonesade Sociologia e, no perodo 1959-1962, presidente da Associao Internacionalde Sociologia. Sua obra principal Estrutura da classe na conscincia social(Smola, 2001, p.128ss).

    12. Maria Ossowska (1896-1974) foi aluna de Tadeuz Kotarbinski, professora deSociologia, Filosofia Social e tica na Universidade de Lodz (1945-1948) e, apartir de 1948, professora da Universidade de Varsvia (Smola, 2001, p.128ss)

    13. Julian Hochfeld (1911-1966). Foi um dos maiores socilogos marxistas polo-neses. Responsvel pela formao dos j citados anteriormente (ZygmuntBauman, Jerzy Szacki e Edmund Mokrzycki), foi professor da Escola Centralde Planificao e Estatstica e chefe do Departamento de Materialismo Hist-rico da Universidade de Varsvia a partir de 1951. Dedicou um conjunto detrabalhos ao marxismo e tradio marxista. Foi tambm deputado no Parla-mento e trabalhou no Departamento de Cincias Sociais na Unesco em Paris(Jasinska-Kania, Wesolowski, Wiatr, 1992, p.9ss.)

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    1939: visando escapar da invaso nazista, em setembro desse

    ano Bauman e sua famlia mudam-se para a Unio Sovitica; ainda

    na URSS, Bauman junta-se ao exrcito e luta na frente russa;1950: inicia a carreira acadmica e torna-se professor em Var-

    svia, Polnia;

    1968: exila-se devido campanha antissemita promovida

    pelas autoridades comunistas em 1968;

    1971: torna-se professor na Universidade de Leeds, Ingla-

    terra;

    1990: Bauman aposenta-se como professor em Leeds ededica-se publicao de sua obra.

    O Crculo de Varsvia de Histria da Filosofia edo Pensamento Social: a ideologia-crtica

    Como vimos, podemos afirmar que o marxismo na Polnia foiparticular, sobretudo pela importncia de Krzywicki, pelos emba-tes com as escolas de Lwow, a fenomenologia de Ingarden,14bemcomo pelos desenvolvimento de uma filosofia crist. Durante o se-gundo perodo, a tentativa de implantar o socialismo na Universi-dade e na sociedade foi marcada por uma forte ofensiva ideolgica epoltica, acompanhada de uma srie de medidas coercitivas, queincluam a proibio de que os antigos professores ensinassem naUniversidade. Esses professores foram substitudos por jovens in-telectuais, incluindo Kolakowski e Bauman. Entretanto, esse pe-rodo vai acabar com a morte de Stlin e com a desestalinizao aps1956. Como sabemos, o ano de 1956 foi marcado por inmeros fa-tos, inclusive a volta de Gomulka ao poder e a revolta hngara. Esse o terceiro perodo, citado por Kolakowski, que ecoar nas vriasfilosofias, principalmente marxistas. As consequncias desses acon-tecimentos na Filosofia e a especificidade desse perodo foram ob-

    14. Sobre a escola de Lwow e a fenomenologia de Ingarden, consultar Paganini(1999, p.480).

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    jeto de investigao por Gyrgy Markus (1974, p.113-29), filsofoda escola de Lukcs, e pelo filsofo polons das cincias Wladyslaw

    Krajewski.Gyrgy Markus, em sua anlise sobre as diferentes correntesdo marxismo na Europa oriental, identificou a existncia de quatrodiferentes correntes:

    1) A tendncia extensional, que poderia ser considerada acorrente filosfica oficial, fortemente marcada pelas elaboraesde Engels e Lnin, concepo esta que, como observa Markus, se

    aplica ao conjuntoda realidade, ou seja, natureza, sociedade e aopensamento (ibidem). As crticas a essa corrente daro lugar aoaparecimento de um conjunto de novas correntes.

    2) Tendncia cientificista, que privilegiaria a relao da Fi-losofia com as cincias naturais e empricas.

    3) Tendncia ideologia-crtica, que entenderia a Filosofiacomo uma viso de mundo e influenciaria as relaes prticas.

    4) Tendncia ontologia social, identificada principalmentecom a obra de Lukcs.A segunda classificao refere-se propriamente situao filo-

    sfica na Polnia. Wladyslaw Krajewski analisar a constituio deduas distintas correntes filosficas, em resposta crise da Filosofiaoficial, ou seja, as correntes dos filsofos cientficos (scientific philo-sophers) e dos filsofos antropolgicos (anthropological philosophers).

    A corrente dos filsofos cientficos se aproximava da tradio posi-tivista e privilegiava o desenvolvimento do materialismo dialtico, ea corrente dos filsofos antropolgicos privilegiava o desenvolvi-mento do materialismo histrico (Krajewski, 1966, p.XIV-XIX).

    O Crculo de Varsvia de Histria da Filosofia e do PensamentoSocial, e a Sociologia de Zygmunt Bauman,15 como no difcilidentificar, pertenceriam tendncia ideologia-crtica e cor-

    15. Nesse cenrio se constituir igualmente o marxismo acadmico Hochfeld,Bauman da Sociologia na Polnia. Consultar sobre essa questo o artigo dosocilogo polons Edmund Mokrzycki (1992, p.117ss.).

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    rente dos filsofos antropolgicos, conforme as classificaes apre-sentadas, respectivamente, por Markus e Krajewski.

    A concepo de cultura16

    de Bauman (na nossa leitura) parte daclassificao que Markus prope. Nesse caso, Bauman pertence tendncia chamada ideologia-crtica, que tem como ponto de par-tida a crtica marxiana das ideologias e declara que, em princpio, aFilosofia uma viso de mundo que influencia as relaes prticascom a realidade (Markus, 1974, p.120-1). Supem-se relaes nopuramente tcnicas, mas um sistema de valores.17Nessa perspec-

    tiva, a autonomia da Filosofia seria apenas aparente; sua formatradicional consistiria em atribuir valor universal a instituies im-postas pela ordem social existente. Nesse sentido, a Filosofia seriauma ideologia completada na falsa conscincia, visando apagar ascontradies resultantes das necessidades exprimidas pelas classesantagnicas. Nesse quadro terico, a perspectiva marxista pode, porsua vez, estar isenta de qualquer ideologia. A resposta, segundo

    Markus, fornecida pela prpria definio que damos de teoriamarxista como atividade crtica contnua das ideologias sobre a basede suas razes histricas qual se acrescenta uma anlise do papeldas ideologias na vida social durante a histria.

    A fonte das referncias para as relaes sociais no nasce so-mente das relaes produtivas. Tais relaes foram necessaria-mente determinadas normas de relaes sociais entre os indivduos.Todavia, importante frisar que o sistema ou conjunto de valoresestabelecido por determinada sociedade funciona no s como refe-rncia externa normativa, seja legal ou moral, como age de modo areiterar as relaes j determinadas pela produo. A autonomiacultural de determinada sociedade aparente. A relao de pro-duo est totalmente presente na formao da personalidade dossujeitos e, reiterada pelos valores (referncias ticas), colabora para a

    16. Esse tema ser tratado no captulo 2.17. O conceito de sistema de valores, como veremos, diz respeito prpria cul-

    tura que determinada sociedade elabora visando referenciar suas relaes so-ciais. Ver captulo 2.

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    fixao de uma conscincia social que visa aparentemente a eliminara oposio de classes e estabelecer ainda mais a ordem vigente, vi-

    sando conformao dos sujeitos ao dever ser. a partir dessa concepo e anlise da cultura enquanto sis-tema de valores (a cultura pode ser compreendida como a totali-dade da criao humana, incluindo, sobretudo, o sistema de valoresque visa definir as relaes sociais) que se constri numa determi-nada sociedade que vamos questionar se a leitura da obra do se-gundo Bauman deve ser feita com a lente das influncias marxianas

    e a metodologia da obra do primeiro Bauman.18

    Bauman recorre ideologia-crtica sobretudo no que tange anlise que ele realiza das influncias ideolgicas na tica modernae ps-moderna e seus desdobramentos na moralidade nos respec-tivos perodos. Como visto, o sistema de valores de determinadasociedade resultado da ideologia subjacente, que visa necessaria-mente atender aos interesses da classe dominante.

    18. Entendemos necessrio periodizar a obra de Bauman em duas partes: o pe-rodo inicial, o qual chamaremos de primeiro Bauman, compreende os anosde sua formao e militncia poltica, bem como sua obra e docncia na Uni-versidade de Varsvia. Nesse perodo, nosso autor escreve em polons. Refe-rimo-nos ao perodo de 1945 a 1968, quando da sua expulso da Universidadede Varsvia. A fase posterior, que nomearemos de segundo Bauman, com-preende seu ingresso na Universidade de Leeds, Inglaterra, em 1972, e quandosua obra passa a ser escrita em lngua inglesa.

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    2CULTURA: OBJETO E PRXIS

    Apresentamos neste captulo uma anlise do conceito de cul-tura desenvolvido por Bauman, em particular de sua obra publi-cada originalmente em 1973, La cultura como prxis (Bauman,

    2002, p.316). Primeiramente, o autor realiza uma apreciao cr-tica sobre o conceito de cultura, em geral utilizado como objeto deanlise para se compreender o funcionamento da sociedade. Emseguida, Bauman expe sua particular concepo sobre a cultura e,em muitos elementos influenciado por Marx, concebe-a enquanto

    prxislibertadora. O interesse que temos na apresentao de ambasas concepes de cultura segundo Bauman reside no fato de ser acultura a atividade humana geradora de valores que se tornam re-ferncias ao comportamento dos sujeitos. Contudo, subjacente sformas de conceber a cultura, pode ser encontrada a ideologia quea determina. No primeiro caso, a ideologia serve ordem domi-nante; no segundo, a mesma cultura que pode ser serva e confi-gurar o comportamento visando dominao dos sujeitos por umaclasse dominante pode tornar-se prxis libertadora, pois podersubstituir as referncias de comportamento impostas pela classedominante.

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    A cultura enquanto objeto

    Segundo Bauman, a abordagem da cultura, seja ela sociolgicaou filosfica, terminou por maltratar o prprio conceito. Houve umreducionismo do conceito de cultura atividade dos intelectuais,como as belas artes, as letras, o cio etc. No obstante, houvetambm a introduo da cultura como tema de estudos e pesquisasdesenvolvidos por socilogos da antropologia cultural estaduni-dense. Como afirma Bauman, tal conceito foi adotado por estes para

    expressar a premissa terica e metodolgica que entende a ordemsocial como sistema, sobretudo como a realizao de normas com-partilhadas, internalizadas e mutuamente congruentes. Esses soci-logos estudaram os mesmos elementos que seus colegas britnicos,contudo, estes procuraram denominar a cultura como estruturasocial. Enquanto os primeiros procuraram observar o plano dasnormas, os segundos dedicaram-se a observar o plano dos atores.

    Em ambos os casos, afirma Bauman, o estudo da condio culturalpossibilitou qualific-la como objeto apto identificao das leis dopensamento e da ao humanas que explicariam a uniformidade toonipresente na civilizao, bem como as etapas do desenvolvimentoe evoluo enquanto resultado de uma histria previamente iden-tificada (Bauman, 2002, p.316). Desse modo, a cultura tornou-seexibio da regularidade social que permitia a anlise mediante m-

    todos da cincia. No obstante as inmeras orientaes normativase metodolgicas de anlise, a cultura ganhou statusde entidade or-denada que se manifesta sistematicamente, de modo que pde serentendida como realidade que precede a ao. Nesse quadro terico,a cultura pode ser definida como interconexo de elementos da vidahumana, um sistema social. Ela no se torna indicativo de que oser humano se contempla ao mesmo tempo como escravo e amo de

    suas prprias criaes, pois, muito embora o ser humano tenha a pe-culiar habilidade de criar seu prprio mundo, isso no garante aapropriao e/ou gozo devidos ao exerccio criativo dos elementosque estabelecem suas prprias relaes e satisfaes, sejam elas de

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    sobrevivncia ou no. Resta, no caso de tais intrpretes da cultura,observar o que a criao humana revela de mecanismos que podem

    ser compreendidos e apreendidos, de modo que o determinismo daconduta possa ser conhecido, julgado e redirecionado.

    Outro importante elemento fixado no conceito de cultura dizrespeito sua oposio em relao natureza. A natureza pertence ordem gentica, biolgica, e a cultura e sua representao habi-tual contrapem-se totalmente a uma pretensa ordem natural davida humana. Enquanto criao humana, a cultura condensa em si

    o fundamento das aes humanas, uma vez que por meio da ativi-dade cultural so aliceradas as referncias sociais bsicas ao com-portamento humano. Parafraseando Comte, Bauman (2002, p.320)cita sua clebre frase saber para prever, prever para poder, que,na opinio do nosso autor, longe de ser um pronunciamento parti-drio de alguma escola filosfica em particular, reflete fielmentea atitude da classe dominante na aurora da cincia como tal, e que

    continua at hoje impregnando a atividade cientfica. A abordagempositivista da cultura torna o prprio positivismo uma atitude nor-mativa em termos sociais, e muitas vezes at mais que isso, um atode f propriamente, pois a crena que se depositou na infalibili-dade da previso cientfica por fim tornou-a uma espcie de reli-gio dos cientistas modernos.

    Torna-se possvel defender a suposio de que o positivismo a

    conscincia da sociedade alienada. De fato, pode ser observada umacoerncia entre o tipo de vida gerada pela sociedade baseada em pre-missas positivistas e a crena nas probabilidades de eliminao dasdiferenas (entendidas como problemas). A sociedade alienada dis-tingue a esfera pblica da esfera privada. Afirma Bauman que amesma vida privada emerge dessa separao:

    o fenmeno chamado sociedade se divide em duas metades, quealimentam a brecha que as separa, prosperam na incurabilidade

    da ferida e recolhem em cada uma delas os significados gerados

    espontaneamente em seu seio.(Bauman, 2002, p.323)

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    Segundo Bauman, a primeira metade da esfera privada a capa-cidade de trabalho das pessoas; a segunda a satisfao de suas ne-

    cessidades nicas. Em outras palavras, a separao da criao edo controle, o corao da alienao, [que] subjaz na base da rea-lidade social e na imagem mental da sociedade(Bauman, 2002,p.324). Por outro lado, o ato criativo a nica maneira que o homemdispe para controlar sua existncia no mundo, caminho para esta-belecer o processo duplo de assimilao e acomodao. Se o controleencontra-se separado do ato criativo e se transfere esfera do trans-

    cendental, assim diz Bauman, o trabalho1

    humano se apresenta aoprprio sujeito como um ato totalmente vazio de seu significadooriginal e inato (Bauman, 2002, p.324). Nesse contexto, a prpriasubjetividade deixa de ter sentido, desaparecem os significados b-vios e a esfera transcendental, ou seja, a sociedade converte-se emcabine de controle. Assim, o sujeito torna-se objeto de controle dasociedade e ele mesmo se apropria de sua subjetividade ilusria re-

    conhecendo, assim, a inquestionvel autoridade do pblico. Se-gundo Bauman, a filosofia do positivismo reflete fielmente essarealidade do alienado mundo dos humanos(2002, p.324). E con-tinua:

    A estreita harmonia entre a viso positivista do aspecto cognitivo

    da relao do homem com o mundo e a realidade alienada de seu

    aspecto prtico constitui provavelmente a causa mais importante

    da surpreendente vitalidade e da impressionante contundncia da

    argumentao positivista. (2002, p.325)

    Contudo, salienta Bauman, o positivismo mais que uma filo-sofia dos filsofos profissionais ou mesmo uma prxis dos cient-ficos professores. Diz ele: suas razes epistemolgicas, assim comosuas origens axiolgicas esto intimamente entrelaadas com a texturado processo vital humano em uma sociedade alienada (Bauman,

    1. Trataremos essa questo mais detalhadamente no captulo 3.

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    2002, p.325), reduzindo a multifacetada relao do sujeito com seumundo (alienado) a sua plataforma cognitiva. Essa relao cogni-

    tiva o que conforma a mente obviedade do sentido comum po-sitivista, a saber: que a relao entre o indivduo e o mundo umarelao essencialmente cognitiva, enfim explicitada na tentativasempre contnua de, por meio da identificao das leis da socie-dade, estabelecer o reino do dever ser. Marx e Engels, citados porBauman, j contestaram tal enfoque quando das discusses sobreos textos de Bruno Bauer:

    as ideias nunca levam para alm da situao estabelecida, apenas

    levam para alm das ideias de uma situao estabelecida. As ideias

    no podem conseguir absolutamente nada. Para converter-se em

    reais, as ideias necessitam dos homens, que aplicam uma fora

    prtica. (Bauman, 2002, p.328)2

    Em outros termos, o prprio Marx definiu essa revoluo quepode acontecer mediante o empenho dos homens como a coinci-dncia das circunstncias em mudana e da atividade humana oumudana prpria (Bauman, 2002, p.328).3

    Contudo, a esperana de restaurar a perdida dignidade (como

    diz Bauman, se que alguma vez ela existiu) da atual, mutilada e

    intimidada subjetividade improvvel e ftil. Naturalmente, no

    eram a filosofia de Comte nem os princpios metodolgicos de

    Durkheim que subordinavam o mundo subjetivo do indivduo ao

    despotismo da sociedade objetiva. E no provvel, pois, que a

    estigmatizao e a ridicularizao pblicas de Comte e Durkheim

    faam desaparecer tal tirania (Bauman, 2002, p.329). So teorias

    de subjugao do sujeito ao objetivismo destitudo de ato criativo

    e, portanto, neutralizante da autonomia do indivduo, caracters-

    2. Texto citado por Bauman extrado da traduo inglesa de Marx e Engels de Asagrada famlia.

    3. Citado por Bauman da traduo em ingls de A ideologia alem, de Marx eEngels.

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    ticas da sociedade moderna alienada, constituda sobre valores he-ternomos e fantsticos, previsveis, pois se do a conhecer nas

    normas sociais (sistema de valores). Contudo, a pretensa neutrali-dade positivista no que tange aos valores mostra-se ilusria, pois aprpria condio objetivante da sociedade alienada caracteriza opreestabelecimento de valores a serem reproduzidos pelos mem-bros da sociedade. O Wertfreisoa como uma falcia, o fundamentode f positivista necessariamente constitudo de valorao, talfato j caracterstico na definio a priori que nega a liberdade de

    escolherquaisquer caminhos, ratificando o rumo ordem e ao pro-gresso. Bauman, citando Gramsci, afirma que as leis naturais daeconomia, por exemplo, funcionam segundo o modo como asmassas humanas se comportam, isto definido conforme sua rotinaordinria, montona e superficial na sociedade alienada. A cinciapositivista consegue descrever o real, sua iseno em termos de va-lores aparente. H, nesse caso, um processo de conformao do

    sujeito ao dever ser. Por sorte, como o prprio Bauman diz, acincia positiva no a nica possibilidade de conhecimento queos humanos necessitam e/ou podem criar. A apropriao das di-versas cincias ou escolas filosficas do conceito de cultura o re-duziu ao interpret-lo unicamente pelo aspecto institucionalizadoou institucionalizante, rotineiro e prescritivo da conduta humana.Essa abordagem do conceito de cultura uma viso utilitria e ex-tremamente tcnica que gerou a sociedade alienada:

    ningum pode alcanar seus fins a menos que se submeta autori-

    dade do real; ento ser capaz de control-lo [...] [nesse contexto]

    a cultura uma adaptao dura e inflexvel realidade que s se

    faz utilizvel caso esse indivduo se adapte a ela. (Bauman, 2002,

    p.332)

    A sociedade alienada a sociedade capitalista que se vale dautilizao da cultura enquanto fonte dos valores que regem as rela-es e o comportamento entre/dos sujeitos. Essa internalizao dasreferncias visa reiterar o objetivo da lgica de produo: a cultura

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    enquanto objeto pode ser conhecida pela classe dominante e mani-pulada (caractersticas prprias do positivismo) visando ordenar a

    vida dos sujeitos e conform-los aos interesses dominantes. Nessecaso, a cultura mero objeto e oportunidade de controle social.

    A cultura enquanto prxis

    A premissa que trata a sociedade unicamente como meio ne-

    cessrio para a sobrevivncia humana questionada por Habermas(1982, p.288ss.) e aceita, nesses termos, pelo prprio Bauman, queo cita:

    A sociedade no unicamente um sistema de autopreservao.

    Uma tentadora fora natural, presente no indivduo como libido,

    se separa do sistema de conduta de autopreservao e reclama in-

    sistentemente sua realizao utpica. [...] O que pode parecer purasobrevivncia sempre, em suas razes, um fenmeno histrico.

    Portanto, est sujeita ao critrio do que a sociedade pretende como

    vida boa para si mesma. (Bauman, 2002, p.333)

    A atividade humana supera a prpria lgica de sobrevivnciato utilizada como premissa do pensamento social de cunho positi-vista. Bauman se vale de um conhecido texto de Marx para melhorexpor tal questo:

    [] O animal apenas modela as coisas segundo os critrios e ne-

    cessidades da espcie qual pertence, ao passo que o homem sabe

    como aplicar os princpios inerentes ao objeto em questo: assim, o

    o homem modela as coisas segundo as leis da beleza. [...] Desse

    modo, no trabalho sobre o mundo objetivo que o homem se

    afirma um ser de uma espcie. Essa produo sua vida de espcie

    ativa. Com ela, a natureza aparece como seu trabalho e sua reali-

    dade. O objeto do trabalho , portanto, a objetivao da vida da

    espcie do homem, j que o duplica no apenas intelectualmente,

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    em sua mente, mas tambm ativamente, na realidade, com o que

    pode contemplar sua imagem no mundo que criou. (Bauman,

    2002, p.333-4)

    O maior grau de criatividade que o ser humano pode alcanarse d quando ele se encontra em estado de liberdade, livre de neces-sidades imediatas para assegurar os meios de sobrevivncia, livreda penosa presso de suas necessidades psicolgicas. Com Bauman,

    podemos afirmar que a ordem das coisas exatamente o contrrio

    daquilo que implica a identificao e a sobrevivncia enquantoadaptao a algum tipo de lgica social imposta.Somente as motivaes de crescimento, como a cultura, so

    verdadeira e especificamente humanas. A humanidade o nicoprojeto conhecido que trata de elevar-se acima da mera existncia,transcendendo o reino do determinismo, subordinando o ao deveser (Bauman, 2002, p.335). E conceitua Bauman: a cultura, que

    sinnimo de existncia humana especfica, um ousado movi-mento em busca da liberdade, para libertar-se da necessidade epara libertar-se para a criao. Parafraseando Santayana, uma facacujo fio aperta sempre contra o futuro (Bauman, 2002, p.335).Nesses termos, Bauman inaugura um conceito de cultura que se ca-racteriza pela prxis. Tal prxis principalmente libertadora de umalgica social do tipo previsvel, desenvolvida pelas anlises positi-vistas e governos legalistas. Nos termos de Bauman, a cultura cons-titui a experincia humana no sentido que constantemente colocaem xeque a discordncia entre o real e o ideal. A cultura, de talmodo, questiona as limitaes e imperfeies e invariavelmentefunde conhecimento e interesse: ou melhor, pode-se dizer que acultura um modo da prxis humana no qual o conhecimento e ointeresse formam uma unidade (Bauman, 2002, p.336). Todavia,o carter incompleto, inacabado e imperfeito do real, sua efemeri-dade e sua fragilidade, subjazem no conceito de cultura do mesmomodo que a autoridade suprema do real respalda a cincia positiva.

    Para Bauman, a inteno de se construir uma sociedade socia-lista, em ltima instncia, constitui-se em um esforo de emancipar

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    a natureza humana, mutilada e humilhada, da sociedade de classes.Atualmente, podemos afirmar que o capitalismo, na avaliao do

    autor, adquiriu um fundamento cultural. Isto significa que os ideaisde uma vida boa, ou de bem-estar, fins aceitveis da ao moral dossujeitos, acabaram por se tornar desejos percebidos como o reflexodas necessidades sugeridas pela lgica capitalista, sobretudo as deconsumo. Isto significa tambm que mesmo que sejam mudadas al-gumas ou at todas as estruturas do Estado, na viso de Bauman,dificilmente os costumes ou as relaes entre os indivduos sero

    modificadas. As satisfaes da fantasia, poderosa arma capitalistaem tempos atuais propugnada principalmente pelo marketing, criauma realidade totalmente acima da verdadeira e apresenta as neces-sidades reais como aquelas que devem ser satisfeitas com deter-minado produto venda na vitrine das lojas ou nos sitesde compras.Muitas vezes, determinado produto apresentado como necessrioaos sujeitos adentram at seuforo ntimo, com a promessa de satis-

    fazer questes tais como o sentido da vida ou crises existenciais,como se sua mera aquisio permitisse ao sujeito o alcance da feli-cidade, sua emancipao verdadeira. Nesse contexto, afirma

    Bauman referindo-se a Lukcs, o grande fracasso socialista foi naverdade sua incapacidade de gerar uma cultura alternativa ao mo-

    delo capitalista, especialmente no nosso caso atual, ao modelo

    consumista. Todavia, sua concepo marxista substancialmente

    alterada, passando a tratar as questes oriundas da desigualdade declasses a partir dos resultados desta, apontando como causa apenasas relaes de valores, afastando-se, paulatinamente, da luta do ma-terialismo histrico.

    Desse modo, como afirma Bauman, se se visa atacar os modosde relao capitalistas, o primeiro passo atingir aquilo que a rei-tera, ou seja, a cultura capitalista. Contudo, a cultura capitalistademonstra uma forte hegemonia e uma enorme capacidade de so-brevivncia que, na opinio de Bauman, Marx no pde alcanarcompletamente. Visando justificar sua afirmao, Bauman diz queGramsci expe melhor tal questo, pois entende que o grande su-cesso do ideal capitalista resistiu mesmo num Estado socialista e o

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    que continuou a existir (cita a experincia sovitica) foi a concepofundamental de produo e produtividade como dimenso neces-

    sria ao desenvolvimento humano. Essa realidade, muitas vezes, foipraticada dentro de Estados socialistas, malogrando assim a neces-sria mudana que deve ocorrer tambm na cultura de determinadopovo. Assim, na viso de Bauman, as medidas de Estado socialistasforam assimiladas e domesticadas pela cultura capitalista. Con-

    tribui-se para a expanso de uma cultura que contempla a produonecessariamente como fonte do progresso e o consumo como co-

    roao desse ciclo; o socialismo seguiu mostrando os dentes, maso capitalismo, em suas formulaes mais poderosas, se tornou maisimune s suas mordidas (Bauman, 2002, p.102). claro que amemria do socialismo como um projeto cultural genuinamenteoposto cultura dominante do capitalismo segue viva (Bauman,2002, p.102), contudo, a tradio do desafio cultural do socialismofoi desterrada do campo de luta e se refugiou, como diz Bauman, em

    uma crtica cultural em grande medida intelectual. A isso Baumanchama de divrcio do desafio cultural de uma poltica socialista,evento que classifica como a crise atual do socialismo.

    Caso entendamos o socialismo como proclamao e emanci-pao do homem das necessidades que lhe so impostas pela lgicade acumulao de riqueza como norma e guia dos padres de rela-cionamento humanos, o socialismo a possibilidade de a socie-dade colocar um freio na produtividade crescente, e no o contrrio.A incapacidade do capitalismo de constituir definitivamente umlegado em favor das necessidades humanas de liberdade evi-dente. Do ponto de vista cultural, por exemplo, a experincia daescassez um produto colateral da aquisio de objetos que so con-siderados o nico modo de autorrealizao do sujeito e sua nicacompensao pelas humilhaes de uma posio social degradadasustentada pela cultura burguesa. Portanto, na avaliao do pr-prio Bauman, o futuro do socialismo se decidir no campo da cul-tura. Tomar conscincia dessa realidade no tarefa fcil. A teseprincipal da crtica socialista era que o capitalismo no foi capaz decumprir sua promessa: progresso tecnolgico, governo com bases

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    racionais e a garantia de direitos do indivduo. Por outro lado, acultura burguesa, em certo sentido, proporcionava uma base firme

    e uma razo convincente para o socialismo (Bauman, 2002,p.105). Contudo, mesmo sendo a cultura o elemento que reitera aexplorao capitalista, sem a modificao da realidade materialtorna-se impossvel propor uma nova realidade cultural-ideolgicaque modifique totalmente os modos de vida capitalistas.

    Na concepo de Bauman, h uma crise sem precedentes docapitalismo. H um sentimento de perplexidade diante das cres-

    centes crises, cclicas alis, e nenhum sinal de luzes que venhamapresentar solues. Citando Normam Birnbaum, diz Bauman: oque enfrentamos uma situao de genuna indeterminao hist-rica (Bauman, 2002, p.106). De fato, todas as situaes histricasso indeterminadas. Variam apenas a partir de que grau seus atores,em primeiro lugar, consideram o statu quocomo problemtico e, emsegundo lugar, se esto decididos a mudar a situao para determi-

    nada direo. A experincia de indeterminao um atributo dessesatores pensantes, resultando, todavia, da experincia da primeira eda ausncia da segunda: os produtores de utopias esto ficando sem

    ideias (Bauman, 2002, p.106). O brilho e eficincia das ideias em

    nossa poca diminuram em muito. Porm, como afirma o prprio

    Bauman, as ideias novas e ainda no ensaiadas esto escasseando,

    no porque nossa poca seja menos rica em mentes perceptivas e in-

    telectos inventivos que a que se seguiu Revoluo Francesa, e sim

    porque a tarefa de nossos contemporneos incomparavelmente

    mais complexa (Bauman, 2002, p.107). Os valores propugnados no

    perodo moderno j no existem ou tornaram-se anacrnicos. A ta-

    refa dos produtores de utopias, como afirma nosso autor, de criar

    uma nova cultura, em vez de criticar, desafiar e corrigir a que j

    existe. Disso decorre o sentimento de indeterminao (Bauman,

    2002, p.107). A crise por que passa o capitalismo e a crise por que

    passa a proposta moderna de valores, enquanto substrato referencial

    s relaes dos sujeitos, como pudemos ver, so oportunidades caras

    no atual momento, segundo a concepo de Bauman, ao estabeleci-

    mento de uma nova ordem cultural que venha aproveitar a oportu-

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    nidade de crise por que passa o capitalismo e, por fim, corrigiraquilo que est a. As normas culturais do capitalismo foram mais

    bem elaboradas que as socialistas e no visaram propriamente aopadro rotineiro da vida das pessoas no sentido de fornecer-lhesum conjunto de artigos deontolgicos; apresentaram-se enquantopossibilidades de vivncias reais qualitativamente superiores dosocialismo real (sobretudo o sovitico, ao qual Bauman se remetecomparativamente) e, por fim, tais normas culturais tornaram-se oporta-voz monoplico da realidade, o realismo e a racionalidade

    (Bauman, 2002, p.107). Desse modo, a afirmao de Bauman parteda tese de que a utopia socialista no deve argumentar contra o ca-pitalismo com a tese de como o amanh poder ser, mas sim, e pri-meiramente, demonstrar que o amanh deve e pode ser diferente. necessrio entender que as ideias de uma cultura socialista no en-contram assento dentro da realidade ordinria. Mas podemos cla-ramente perceber que alcanar alguma nova cultura em territrio

    capitalista algo muito mais difcil que propor mudanas mate-riais. Segundo Bauman, o pensamento marxista da era industrialevolui nos dias atuais, uma boa expresso dessa adequao s novasrealidades podendo ser encontrada nas palavras de Marcuse, queBauman cita e aqui reproduzimos:

    O que est em jogo na revoluo socialista no apenas o grau de

    satisfao que pode ser alcanado no universo de necessidadesexistente [...] A revoluo implica uma transformao radical das

    necessidades e das aspiraes em si mesmas, tanto culturais como

    materiais, de conscincia e de sensibilidade, de trabalho e de cio.

    Essa transformao aparece na luta contra a transformao do tra-

    balho, contra a primazia e a multiplicao de atos estpidos e de

    mercadorias estpidas, contra o indivduo burgus ganancioso,

    contra a servido disfarada de tecnologia, contra a precariedadedisfarada de vida boa, contra a contaminao como uma forma

    de vida.(Bauman, 2002, p.110)

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    No captulo seguinte, procuramos problematizar se Baumanfundamenta sua tica ps-moderna em elementos derivados do

    materialismo, tais como a concepo de cultura exposta que con-forma o comportamento dos sujeitos. Porm, como veremos a se-guir, mesmo utilizando-se da teoria marxista herdada de Varsvia(ideologia-crtica), Bauman, que realiza bem o papel de analista darealidade social moderna e ps-moderna, peca quando o assunto fundamentar uma nova cultura capaz de prxis libertadora da l-gica de consumo da sociedade hodierna.

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    PARTEIIBAUMAN: ANLISES E

    PROPOSIES TICAS

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    3TICA MODERNA E TICAPS-MODERNA

    Bauman considera que as transformaes que possibilitaram aperspectiva ps-moderna da tica podem ou podero introduzir

    uma concepo de moralidade bem diversa da ortodoxa. Morali-dade para Bauman a prtica dos preceitos ou referncias ticas. Amoralidade moderna (tica ortodoxa), de matriz kantiana, qualBauman se remete de forma crtica, est baseada no carter emi-nentemente heternomo da vida moral. Em outras palavras, a mo-ralidade tornou-se referenciada por elementos exteriores ao sujeitomoral (ironicamente, em tempos de proclamao da autonomia eliberdade do indivduo, caracterstica tambm principal do idealiluminista e, portanto, moderno) . A referncia bsica para a aomoral, por sua vez, baseada em princpios majoritariamente ad-vindos da concepo de direito natural racional, ao invs de pro-clamar e reafirmar a autonomia do indivduo em relao s normasde instituies, reforou ainda mais sua dependncia de parme-tros externos e oriundos de outras fontes, impossibilitando a re-flexo e deciso prprias do sujeito moral.

    A modernidade uma formao social que se iniciou no sculoXVIII e se consolidou de modo mais amplo no sculo XIX. A ps--modernidade, por outro lado, no um mutante contaminado damodernidade, muito menos uma modernidade em estado de co-

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    lapso, ou um caso de modernidade em crise. Uma teoria da ps--modernidade, ento, no pode ser uma teoria da modernidade

    modificada. O conceito de ps-modernidade, para Bauman, serefere s condies sociais que apareceram nos pases europeus dosculo XX, principalmente nos anos imediatos ao ps-guerra. Otermo d a ideia de ruptura e continuidade concomitantes e, se-gundo Bauman, essa caracterstica responde melhor s complexasrelaes, tanto as novas como as mais antigas. Para se construiruma teoria da ps-modernidade necessrio um espao cogni-

    tivo ordenado, um conjunto de premissas diferentes e, claro,novas exigncias de linguagem. Essa teoria, afirma Bauman, serrelevante na medida em que se libere de conceitos e problemas gerados

    pelo discurso da modernidade (Bauman, 2002, p.83).Sobre as influncias na ps-modernidade, Bauman salienta

    que esta deve se livrar da metfora de progresso que saturou todasas teorias da sociedade moderna, tornando-as competitivas (as

    teorias) entre si. A condio ps-moderna constitui-se sem umitinerrio preconcebido, aplica-se, de modo anlogo, metforado movimento browniano:1nenhum estado temporal resulta neces-sariamente de um anterior, nem causa suficiente do estado pos-terior. A condio ps-moderna, segundo o prprio Bauman, no determinada e no determinante. Libera com o tempo: diminuia influncia limitadora do passado e protege eficazmente o futuro

    da colonizao (Bauman, 2002, p.84). Sugere ainda nosso autorque as teorias da ps-modernidade se libertem da ideia desistema (ele faz uma autocrtica por tratar no mesmo texto dotema sociedade), pois no h, no seu ver, uma totalidade sobe-rana. Sugere, ainda, que a categoria sociedadeseja substituda pelacategoria socialidade, pois, segundo ele, esta se adapta melhor

    1. Foi identificado pelo bilogo estadunidense Robert Brown. Sua teoria se ba-seia na concepo de foras desproporcionais exercidas sobre as molculas, re-sultando em um movimento aleatrio. Alguns tericos baseiam-se nessaconcepo de movimento, principalmente os ligados teoria do caos.

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    modalidade processual da realidade social e ao jogo dialtico entrecasualidade e regularidade, considerando as estruturas como reali-

    zaes emergentes.Neste primeiro momento, vamos apresentar a anlise da tica

    moderna segundo Bauman e, posteriormente, sua concepo detica do trabalho enquanto exemplo concreto da moralidade mo-derna. Neste ponto possvel perceber a relao entre refernciasexternas (heternomas) e seu papel de reiterar as relaes segundo aordem de interesse da classe dominante. Em seguida, apresentamos

    a concepo de tica ps-moderna de Bauman. Ele parte de umaanlise da moralidade ps-moderna e aponta que as refernciasmodernas j no so mais as nicas e verdadeiras. Sugerimos que huma cacofonia de referncias ao do sujeito. Como prtica demoral ps-moderna, apresentamos sua anlise da tica enquantoatividade de consumo (tambm sugerida por Bauman). Durante otexto apresentada a anlise de Bauman sobre a falta de referncias

    verdadeiras (modernas). Para o autor, o perodo ps-moderno a grande oportunidade da tica: revisar suas bases ideolgicas eproporcionar maior autonomia ao sujeito. Podemos observar certodualismo na apresentao que Bauman faz da tica moderna e datica ps-moderna, porm com algo em comum. A primeira car-rega em si a rigidez, a totalidade e o adestramento; a ps-moderni-dade, por sua vez, se assenta sobre a fluidez2e a falta de referncias

    absolutas; no entanto, ambas mantm o carter de controle social.Procuraremos, ao final do captulo, melhor referenciar tal questo.

    2. Bauman, em obras posteriores tica ps-moderna, procurando se diferenciare evidenciar sua crtica aos pensadores da dita ps-modernidade, sobretudoaos franceses, prope a expresso modernidade lquida em substituio aotermo ps-modernidade.

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    tica moderna

    Para Bauman, todo o perodo moderno constituiu-se em umaforma bem peculiar de fundamentao da moralidade e da vidamoral, em termos ocidentais, que, por fim, tornou-se realidade apartir da negao daquele que em tese foi o ideal: a partir de princ-pios, os Estados-nao e, por fim, a ao individual, tornou-se refe-renciada por orientaes heternomas, muitas vezes codificadas. Aconfuso gerada por essa externalidade visando reproduo na

    ao dos sujeitos contribuiu, em muito, para se conceber que a aomoral fosse prescrita ou referendada por alguma autoridade nessecampo. Mesmo que no interior das teses modernas haja coernciaterica, na prtica, a efetivao dessas teorias tornou-se ferramentapropcia fundamentao de uma nova autoridade que substituiu(em relao autoridade religiosa medieval) as figuras anteriorespor novas, mantendo os mesmos papis. Respaldados pela autori-

    dade e coercitividade3

    oficiais do aparelhamento do Estaddo, a fi-gura do legislador principalmente nos pases que o adotaram comofonte do ddireito material tornou-se, aos poucos, a referncia nos para as relaes jurdicas, mas, tambm, para as relaes sociais

    3 Ao comentar o livro de Freud O mal-estar na civilizao, de 1930, Baumansalienta que sabemos, agora, que era a histria da modernidade que o livro

    contava (1998b, p.7). e, esta, pode ser entendida a partir da seguinte men-sagem: Voc ganha alguma coisa mas, habitualmente, perde em troca algumacoisa (1998b, p.7). Civilizao, Cultura e Modernidade, para Bauman, soequivalentes e o termo civilizao moderna, por essa razo, um pleonasmo(1998b, p.7). Segundo sua definio, a Modernidade pode ser definida em trstermos: beleza( essa coisa intil que esperamos ser valorizada pela civili-zao), limpeza (a sujeira de qualquer espcie parece-nos incompatvel com acivilizao) e ordem (a Ordem uma espcie de compulso repetio que,quando um regulamento foi definitivamente estabelecido, decide quando,onde e como uma coisa deve ser feita, de modo que em toda circunstncia se-melhante no haja hesitao ou indeciso). (Bauman, 1998b, p.8). Assim, paraa Modernidade, no h nada que predisponha o homem naturalmente pre-servar a beleza, conservar-se limpo e observar a rotina chamada ordem. Destaforma, re-afirma Bauman aquilo que Freud j denunciou: a civilizao seconstri sobre uma renuncia ao instinto (1998b, p.8)

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    no jurdicas, nivelando para baixo a compreenso e, qui, a pr-pria conscincia social daquilo que o padro mnimo de tica. Em

    outras palavras, podemos afirmar que a concepo moderna de ticatornou possvel uma moralidade que, ao invs de praticar aquilo quefoi propugnado na aurora do perodo moderno (a autonomia dos in-divduos que, baseados em elementos racionais e, sobretudo, intr-pretes de princpios naturais, comuns a todos os homens, pudessemdesenvolver-se rumo liberdade de relaes fundamentadas eminstituies de autoridade), assimilou um padro tico que se ba-

    seou nas novas instituies modernas, criando uma tica que foiconfundida com o prprio direito material, tornando-a uma ticabaseada nas leis efetivadas pelo Estado, nivelando para baixo as re-laes morais, fundamentadas apenas em princpios referenciadosnaquilo que permitido ou no permitido.

    A rejeio dos filsofos modernos a qualquer fundamento me-tafsico e a insistente tentativa de levar o sujeito esclarecido li-

    berdade e autonomia previu, num primeiro momento, de acordocom Bauman, uma eliminao das diferenas e sua unificao pelarazo. Kant foi figura-chave nesse processo, pois a tica no era maisuma resposta a determinadas situaes particulares, mas sim umaquesto de agir em conformidade com a lei, com os resumos univer-sais. Kant elaborou uma teoria de noo autnoma do agente moral.Essa questo no estava ligada obedincia a qualquer lei e, comcerteza, no s leis da religio ou tradio , sendo uma questo deobedincia lei moral que o agente havia formulado usando sua ra-cionalidade, livre e autnoma. Para os modernos, o sujeito moralera livre no sentido de que ele no era governado pela religio, tra-dio ou pela natureza humana, mas por uma lei universal que elemesmo havia formulado por meio da sua capacidade racional. DizBauman: o homem universal, reduzido s aos ossos da naturezahumana, devia ser [...] um eu no-sobrecarregado (1997, p.49).Devia elevar-se das razes e lealdades comunais; de erguer-se, porassim dizer, a plano mais elevado e ter da viso dilatada, imparciale crtica das exigncias e presses comunais (1997, p.49). Esse euno-sobrecarregado, diz Bauman, presumia certa autonomia em

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    relao a sua comunidade local, aos costumes muitas vezes ditadospor lderes religiosos ou comunitrios, uma verdadeira emancipao

    dos costumes locais visando prtica das aspiraes universalistasinerentes racionalidade, sua verdadeira natureza.Outra caracterstica importante a ser frisada na crtica desen-

    volvida por Bauman a caracterstica teleolgica da modernidadee seus impactos na ao moral do sujeito. Para Bauman, a alteri-dade foi temporalizada de maneira caracterstica da ideia de pro-gresso: o tempo significaria hierarquia mais tarde identificava-se

    com o melhor, e mau com o fora de moda ou ainda no desen-volvido adequadamente (1997, p.48). A confiana nas capaci-dades milagrosas e curativas do tempo e especialmente sua parteainda no realizada, parte que se podia fantasiar livremente, e lheatribuir poderes mgicos sem medo do teste emprico veio final-mente a ser o trao saliente da Mentalidade Moderna (Bauman,1997, p.53). Essa alteridade, afirma Bauman, sobretudo a tica

    (pois agora estabelecida por cdigos legais), aliada viso teleol-gica da modernidade, acabou por auxiliar na manuteno de umEstado (consequentemente de um poder) que pde a todo mo-mento prorrogar suas obrigaes com a desculpa implcita de me-lhoria com o passar do tempo:

    o sonho da universalidade como destino ltimo da espcie humana

    e a determinao de realiz-lo, tomou refgio no conceito proces-

    sual de universalizao. A ele estava seguro enquanto se podia

    crer razoavelmente que o processo de universalizao acontece, que

    se pode visualizar com credibilidade a marcha do tempo como

    incoercvel e que ela levar ao progressivo desgaste, e eventual-

    mente extino, das atuais diferenas. (Bauman, 1997, p.53)

    A crena, parafraseando Bauman, em uma moralidade quepode a cada dia elevar-se em seus propsitos e aes tornou a auto-ridade do Estado ainda mais justificada e at desejvel, pois garan-tiria a segurana e o direito de propriedade, alm de outros valoresoutrora negados e que com o advento do Estado moderno passam a

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    integrar a agenda poltica das naes. Porm, como se observou,a proposta moderna de autonomia do indivduo viu-se concreta-

    mente realizada na heteronomia do poder legislador do Estado, epossvel, agora, graas s condies ambientais proporcionadaspelo Estado e por meio da garantia inconteste de sua legislao.

    A modernidade o que uma obsessiva marcha adiante no porque queira mais, mas porque nunca consegue o bastante;no porque se torna mais ambiciosa e aventureira, mas porquesuas aventuras so mais amargas e suas ambies frustradas. A

    marcha deve seguir adiante porque qualquer ponto de chegada nopassa de uma estao temporria. Nenhum lugar privilegiado,nenhum melhor do que outro, como tambm a partir de nenhumlugar o horizonte mais prximo do que de qualquer outro. porisso que a agitao e perturbao so vividas como uma marcha emfrente; por isso, com efeito, que o movimento browniano pareceadquirir verso e reverso e a inquietude uma direo: trata-se de re-

    sduos de combustveis queimados e fuligem de chamas extintasque marcam as trajetrias do progresso (Bauman, 1999, p.18). Asaes polticas podiam ser prorrogadas e assim mantinham (no smantinham, mas incentivavam) seus membros aderindo aindamais ao projeto de resoluo de problemas e conquista utpica:Da crena de que h um fim do caminho em que andamos, umtlosalcanvel de mudana histrica, um Estado de perfeio a seratingido amanh, no prximo ano ou no prximo milnio, algumtipo de sociedade boa... da ordem perfeita em que tudo colocadono lugar certo [...] do completo domnio sobre o futuro (Bauman,1997, p.53). Infelizmente, no foi desta forma a realizao efetivade tal sociedade, a determinao das teorias modernas. Com cer-teza, devemos ainda render louros s conquistas que so herana damodernidade, contudo, como o prprio Bauman diz, o pensa-mento e a prtica morais da modernidade estavam animados pelacrena na possibilidade de um cdigo tico no ambivalente e noaportico. Talvez ainda no se tenha encontrado esse cdigo. Mascom certeza ele est espera na virada da esquina. Ou na virada daprxima (Bauman, 1997, p.15).

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    Bauman no discute os problemas internos das teorias desen-volvidas durante o perodo moderno, nem mesmo a coerncia das

    teses da racionalidade como fundamento que desenvolve no sujeitouma ao autnoma no seu agir moral. Tambm no desenvolveuma crtica acerca das questes epistemolgicas sobre a morali-dade. Ele no dedica seu estudo a problemas como: O que a mo-ralidade? O que a prtica moral? O que o homem moral? Emsuma, Bauman no se preocupa em discutir estritamente a razomoderna e as questes de conhecimento ligadas ao tema. De forma

    particular, ele procura identificar qual o resultado da concepomoderna de tica na vida efetiva das pessoas. Aplica questes filo-sficas (no caso o conceito de tica, por exemplo) a situaes socio-lgicas. E, a partir disso, desenvolve uma crtica sobre as concepesde tica moderna e ps-moderna. Ou seja, utiliza-se da Filosofiacomo crtica social.

    Primeiramente, Bauman identifica que na modernidade, mesmo

    sendo a autonomia e a liberdade bandeiras gmeas nascidas da ra-cionalidade, no foi confiada ao sujeito a responsabilidade totalde seus atos. Os pensadores modernos sempre viram com descon-fiana uma moralidade provinda dos instintos e toda a sua inves-tida se constituiu em uma grande empresa para forjar a naturezahumana aos moldes da elite ilustrada. Disse DAlembert: a mul-tido era ignorante e estupidificada [...] incapaz de ao forte e ge-nerosa (apud Bauman, 1997, p.34). Teoricamente, como afirmaBauman, Kant vai ser o grande responsvel por desenvolver namentalidade moderna a atitude moral conforme prescries uni-versais. O enquadramento kantiano da tica como lei teve grandeimpacto sobre a realidade social no perodo moderno. Dessa forma,a tica moderna era uma tica-lei. Essa lei libertaria o indivduode toda forma de instinto e tradio e o levaria autonomia de pr-ticas ticas universais. Contudo, na viso de Bauman, a prtica deprescries do tipo universal no realiza o indivduo enquanto serautnomo.

    Esse alicerce tornou-se a caracterstica bsica dos modernos:por meio da razo, renunciariam a toda forma instintiva de com-

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    portamento e, como homens e mulheres esclarecidos, progrediriamcada vez mais rumo plena liberdade. Diz Bauman:

    Kant, Descartes e Locke (como Francis Bacon antes deles) foram

    todos movidos pelo sonho de uma humanidade magistral (quer

    dizer coletivamente livre de restries) nica condio na qual,

    acreditavam, a dignidade humana pode ser respeitada e preser-

    vada. A soberania da pessoa humana era a preocupao declarada

    e subjetivamente autntica desses filsofos; foi em nome dessa so-

    berania que eles quiseram elevar a razo ao cargo de suprema le-gisladora. E, no entanto, havia certa [...] afinidade eletiva entre

    a estratgia da razo legislativa e a prtica do poder estatal empe-

    nhado em impor a ordem desejada sobre a realidade rebelde.

    (Bauman, 1999, p.35)

    Para Bauman, na modernidade, a fundamentao dos valores

    baseou-se na crena na racionalidade, na cientificidade, nos valoresde liberdade que foram assumidos e postulados pelo Estado mo-derno. Com isso, exigiu-se somente reconhecer como morais asnormas que passam pelo teste de certos princpios universais, ex-tratemporais e extraterritoriais [...] sobretudo a rejeio das preten-ses comunais, ligadas a tempo e territrio (Bauman, 1997, p.50).A universalizao e fundamentao da tica (a primeira produzidapelos filsofos e a segunda pelos legisladores, agregados ao poderdo Estado), mesmo sem terem objetivamente um contrato de coo-perao ou complementariedade, trabalharam conjuntamente fir-mando a heteronomia da moral. Se Kant introduziu a ideia de ticacomo lei, na Sociologia, Durkheim em particular quem vai pro-mover outra ideia principal da tica moderna: que a moral umaconstruo social, assinala Bauman. Assim, de acordo com Dur-kheim, o homem natural tem capacidade tica, porm, somentepelos esforos de socializao promovidos pela sociedade quepouco a pouco ele vai se transformando em um ser social, logotico. Essa concepo, conforme Bauman, remonta a ThomasHobbes e sua famosa formulao do estado de natureza. No es-

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    tado de natureza de Hobbes, o homem um ser egosta e amoralque s persegue seus prprios interesses. Dessa forma, tal estado

    assume a forma de uma guerra em potencial de todos contra todos,o famoso bellum omnium contra omnes. Aqui, o ponto nevrlgico detal concepo que o homem somente se torna moral no momentoem que deixa o es