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EM TORNO DO CONCEITO DE POLÍTICA SOCIAL: NOTAS INTRODUTÓRIAS Maria Lucia Teixeira Werneck Vianna Rio de Janeiro, dezembro de 2002 Política social é um conceito que a literatura especializada não define precisamente. De um ângulo bem geral, no âmbito das Ciências Sociais, a política social é entendida como modalidade de política pública e, pois, como ação de governo com objetivos específicos. A definição parece óbvia e um tanto vaga. No entanto, contem duas armadilhas que, se desativadas, minimizam a obviedade e permitem alcançar maior precisão conceitual. A primeira armadilha se encontra na expressão ações de governo. Trata-se de uma armadilha porque a expressão se torna vazia quando não vem acompanhada da indispensável qualificação: que governo? Ou seja, a política social, como qualquer política pública pode ser produzida sob distintas estruturas legais e institucionais, em distintos contextos, sistemas e regimes políticos, como resultante de pressões sociais mais ou menos organizadas e mais ou menos representativas da sociedade como um todo. Faz diferença, naturalmente, se determinada ação governamental é implementada por tecnocratas encapsulados em seus gabinetes, como acontece nas ditaduras, ou se é implementada com base em procedimentos democraticamente estabelecidos. Faz diferença, também, se determinada ação governamental é formulada sob influência única das elites dominantes ou se é formulada em instâncias abertas à influência de interesses diversificados. No resto da frase, com objetivos específicos está a segunda armadilha. Pois cabem, igualmente, perguntas que qualificam a locução: especificados por quem, em que esferas, com que legitimidade? De novo, faz imensa diferença se a demarcação dos objetivos de determinada ação governamental se dá em circunstâncias democráticas ou autoritárias, se leva em conta interesses amplos ou restritos da sociedade, etc. Assim, percebe-se que, mais do que conferir rigor absoluto ao conceito de política pública, é importante considerar seu caráter político 1 , e, portanto circunstancial, o que equivale a dizer historicamente inteligível. Como política pública, portanto, a política social deve ser entendida em sua dimensão política e histórica. E é contemplando estas dimensões, sempre articuladas, que se pode avançar um pouco mais na definição de política social e na identificação de seu objeto. 1 A língua inglesa exibe maior precisão terminológica ao distinguir policy (no plural, policies) - política no sentido de ação, de medida - de politics, política no sentido de fazer política. A afirmação "policies require politics", esclarecedora da natureza política da política pública, perde grande parte de seu sentido quando traduzida para o português (políticas requerem política). . 1

Conceito de Politica Social

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EM TORNO DO CONCEITO DE POLÍTICA SOCIAL: NOTAS INTRODUTÓRIAS

Maria Lucia Teixeira Werneck Vianna

Rio de Janeiro, dezembro de 2002 Política social é um conceito que a literatura especializada não define precisamente.

De um ângulo bem geral, no âmbito das Ciências Sociais, a política social é entendida como modalidade de política pública e, pois, como ação de governo com objetivos específicos. A definição parece óbvia e um tanto vaga. No entanto, contem duas armadilhas que, se desativadas, minimizam a obviedade e permitem alcançar maior precisão conceitual.

A primeira armadilha se encontra na expressão ações de governo. Trata-se de uma

armadilha porque a expressão se torna vazia quando não vem acompanhada da indispensável qualificação: que governo? Ou seja, a política social, como qualquer política pública pode ser produzida sob distintas estruturas legais e institucionais, em distintos contextos, sistemas e regimes políticos, como resultante de pressões sociais mais ou menos organizadas e mais ou menos representativas da sociedade como um todo. Faz diferença, naturalmente, se determinada ação governamental é implementada por tecnocratas encapsulados em seus gabinetes, como acontece nas ditaduras, ou se é implementada com base em procedimentos democraticamente estabelecidos. Faz diferença, também, se determinada ação governamental é formulada sob influência única das elites dominantes ou se é formulada em instâncias abertas à influência de interesses diversificados.

No resto da frase, com objetivos específicos está a segunda armadilha. Pois cabem,

igualmente, perguntas que qualificam a locução: especificados por quem, em que esferas, com que legitimidade? De novo, faz imensa diferença se a demarcação dos objetivos de determinada ação governamental se dá em circunstâncias democráticas ou autoritárias, se leva em conta interesses amplos ou restritos da sociedade, etc.

Assim, percebe-se que, mais do que conferir rigor absoluto ao conceito de política

pública, é importante considerar seu caráter político1, e, portanto circunstancial, o que equivale a dizer historicamente inteligível. Como política pública, portanto, a política social deve ser entendida em sua dimensão política e histórica. E é contemplando estas dimensões, sempre articuladas, que se pode avançar um pouco mais na definição de política social e na identificação de seu objeto.

1 A língua inglesa exibe maior precisão terminológica ao distinguir policy (no plural, policies) - política no sentido de ação, de medida - de politics, política no sentido de fazer política. A afirmação "policies require politics", esclarecedora da natureza política da política pública, perde grande parte de seu sentido quando traduzida para o português (políticas requerem política). .

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Um autor sempre citado quando se estuda política social, T. H. Marshall, em livro publicado em 1965 e reeditado seguidas vezes, em Londres, assinala aspectos cruciais para conceituar política social. "Política social é um termo que, embora amplamente usado não possui definição precisa. O significado que lhe é dado em contextos particulares é em grande medida matéria de conveniência ou convenção"2. Os referidos aspectos cruciais contidos no trecho são os seguintes: a) em contextos particulares, isto é distintos, significados também distintos são atribuídos ao termo política social; b) tais distintos significados decorrem de conveniência ou convenção, ou seja, são estabelecidos mediante escolhas e/ou acordos. O primeiro aspecto sugere, enfatizando a dimensão histórica3, que pode-se entender e praticar política social – que, como política pública é ação de governo – de diversos modos, dependendo, conforme mencionado acima, da natureza do Estado e dos processos decisórios em vigor. O segundo aspecto reitera a importância dos atores sociais e de sua capacidade de negociar politicamente suas posições na agenda pública.

Ora, as Ciências Sociais – que estudam as políticas sociais - configuram um campo

do conhecimento que incide sobre tal dinâmica e é por ela balizado. E que, portanto, se constróem e definem seus conceitos mediante mecanismos semelhantes. Assim, o entendimento de que política pública é ação governamental com objetivos específicos consiste numa convenção acadêmica. Assim, também, constitui convenção acadêmica, expressa pela literatura especializada, a idéia de política social é ação governamental com objetivos específicos relacionados com a proteção social.

Mais uma vez, se repõe o caráter aparentemente óbvio e vago da afirmação. Agora,

porém, considerando o que foi mencionado anteriormente, sabe-se que é possível e necessário qualificá-la mediante certas interrogações, que no caso são: a quem proteger? Como proteger? De que proteger? A argumentação desenvolvida até aqui permite perceber que as respostas dadas pelas nações a estas perguntas foram historicamente diversas e são ainda hoje diversas em função de suas estruturas político-institucionais, configurando modelos diferenciados de proteção social.

Um rápido olhar sobre a evolução da política social na Europa Ocidental ilustra o

ponto. Em linhas muitos gerais, pode-se destacar o peso das dimensões histórica e política na definição do objeto da política social identificando três grandes fases descritas sucintamente a seguir.

Ações governamentais com objetivos voltados para a proteção social começam a ser

produzidas contemporaneamente à consolidação dos modernos Estados nacionais, no Ocidente Europeu, lá pelos séculos XVI e XVII. É então que se institucionaliza o que Weber considera o núcleo definidor do Estado moderno: o monopólio da violência

2 Marshall, T.H. - Social Policy in the Twentieth Century, Hutchinson University Library, Londres, 1975, 4a edição. Há tradução em português, publicada por Zahar editores, com o título Política Social, em 1967. O trecho citado não consta da edição brasileira porque foi incluído, pelo autor, na introdução especialmente escrita para a 4a edição inglesa. 3 . Vale sublinhar que a dimensão histórica deve ser compreendida no tempo e no espaço, implicando elementos econômicos, sociais, políticos, culturais, tecnológicos, etc, que tanto diferenciam uma mesma sociedade em momentos que se sucedem historicamente como diferenciam as sociedades umas das outras, num mesmo momento, em função de condicionamentos históricos.

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legítima4, e que se fazem presentes as condições que tornam possíveis e necessárias ações governamentais naquele sentido. Num contexto de transição para o capitalismo, de expansão do comércio e de valorização das cidades, a pobreza se torna visível, incômoda, e passa a ser reconhecida como um risco social. A primeira fase da evolução da política social consistiu nas chamadas Leis dos Pobres, bastante disseminadas pelos países europeus, embora com diferenças marcantes entre eles.

As Leis dos Pobres eram ordenações de Estado que faziam compulsória a

“caridade”, implicando a criação de um fundo público – o imposto dos pobres, em geral recolhido pelas municipalidades – e que tinham por finalidade tirar os pobres das ruas5. Vigoraram em grande parte dos países europeus entre os séculos XVII e XIX, e a despeito de terem apresentado variações expressivas no decorrer deste período, se caracterizaram pela natureza caritativa, pela forma de assistência pública e pelo alvo a que se destinavam: a pobreza.

A pobreza, nesta fase, é o risco social predominante. O Estado age para proteger a

sociedade da ameaça representada pela pobreza (à qual se associam a indigência, a doença, o furto, a degradação dos costumes) e para proteger os pobres. Como mostra Polanyi, sem a “proteção” levada a efeito pelas Leis dos Pobres seguramente as sociedades européias não teriam resistido aos cataclismos sociais produzidos pelas mudanças operadas com a mercantilização da produção e o advento do capitalismo6. Quanto aos pobres, foram protegidos ora pela distribuição de alimentos, ora por meio de complementação salarial, ora através do recolhimento a asilos, ora mediante recrutamento para as manufaturas públicas.

Leis dos Pobres funcionaram, historicamente, em tempos de monarquia absoluta ou

governos oligárquicos. Já nos meados do século XIX, quando a produção industrial se expandia a largos passos, exigindo crescentemente mão-de obra disposta ao assalariamento, as elites dominantes, afinadas com os preceitos liberais, passaram a tecer severas críticas a esta forma de proteção social. A Economia Política, que consolidava seu estatuto de ciência nas obras de autores como David Ricardo, John Stuart Mill, Jeremy Benthan, Thomas Malthus e outros, vai destacar a impossibilidade de convivência entre a ordem capitalista, para a qual se concebia imprescindível a auto-regulação do mercado, e um sistema de salários subsidiados por fundos públicos7.

Em fins do século XIX, uma segunda fase da política social se inaugura. Seguros

sociais compulsórios, para fazer face a riscos sociais associados ao trabalho assalariado, despontam como o modelo dominante de proteção social. No novo cenário, de capitalismo 4 . Weber, Max – Economia e Sociedade. Weber se refere às capacidades que só o Estado legitimamente tem de exercer os poderes de dispor sobre a vida (prender, e, no limite, matar) e sobre os bens (tributar) dos cidadãos em circunscrição territorial reconhecida. 5 . O modelo mais conhecido são as Poor Laws inglesas. A primeira foi promulgada no reinado de Elizabeth I, em fins do século XVI. 6. Polanyi, Karl – A Grande Transformação, Campus, Rio de Janeiro, 1980. 7. A reforma da Poor Law inglesa, em 1834 é esclarecedora. Precedida de intenso debate dominado pela idéia de que o mercado, e não o Estado, é que devia cuidar dos pobres, aboliu a concessão de qualquer “assistência externa” (abonos salariais e distribuição de alimentos) e reintroduziu a experiência dos albergues sob novo formato, pelo qual ficava a critério do candidato (o pobre) pleitear o “ benefício” com o que, entretanto, perdia seu status de cidadão livre.

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industrial consolidado, aparecem novos atores – sindicatos, partidos políticos – e arranjos institucionais capazes de incluir, na agenda pública, demandas de setores emergentes no mundo do trabalho.

Para a sociedade, mais que a pobreza, a ameaça agora está na recusa ao

assalariamento. Recusa que se expressa passivamente no absenteísmo (em razão de doença, de acidente, de maternidade, ou sem razão nenhuma) e ativamente, de forma anárquica como nos ataques e quebradeiras promovidos por trabalhadores ingleses em várias ocasiões, ou de forma organizada pelos sindicatos operários, crescentemente contestadores do próprio sistema capitalista. Para os trabalhadores, gradativamente se definem os riscos a que estão submetidos pela estrutura produtiva industrial: o acidente de trabalho, a cessação da capacidade laborativa, a doença, impedem temporária ou permanentemente o auto-sustento via mercado, única alternativa disponível8.

O primeiro seguro social de que se tem notícia foi instituído por Bismarck, na

Alemanha, nos anos 1880. Não resultou do jogo parlamentar, como ocorreu na Dinamarca e na Suécia, na década seguinte, na Inglaterra, no início do século XX, e em outros países na mesma época. Mas foi uma opção claramente política, ainda que autoritária. A política social de Bismarck tinha por objetivo o enfrentamento do movimento operário e conformava uma proposta intencional de organização do universo do trabalho – o corporativismo submetido ao Estado – e de controle social. Buscava conter o avanço da social-democracia e, assim trocou benefícios (a cobertura dos riscos, para os assalariados, decorrentes de doenças, acidentes de trabalho e incapacidade laborativa devida à idade) pelo cerceamento da atividade sindical. Os propósitos e os efeitos da legislação social bismarckiana foram, de fato, muito mais políticos do que sociais. Os problemas de maior urgência para os assalariados alemães, naquela oportunidade (inspeção das condições de trabalho, regulamentação da jornada de trabalho, fiscalização dos contratos de trabalho), não foram tocados. Bismarck compartilhava com os liberais (e com os empresários) a firme opinião de que qualquer interferência nos negócios privados seria nociva ao sistema. Mas, reprimindo reivindicações mais vigorosas, por um lado, e, por outro, oferecendo concessões em termos de política social, infringiu uma derrota ao movimento sindical e consolidou o recém-unificado Reich.

De todo modo, o modelo adotado por Bismarck, o seguro social, difundiu-se

rapidamente pela Europa. Na medida em que a democracia avançava, com a ampliação do direito ao voto, a legalização das centrais sindicais e a chegada dos partidos trabalhistas e social-democratas ao Parlamento, os seguros passaram a cobrir parcelas cada vez mais significativas de trabalhadores. A forma seguro, implicando um contrato entre partes (sendo o Estado, na grande maioria dos casos, uma destas partes), retirava da política social seu

8 . A industrialização enfraquece substancialmente as redes tradicionais de proteção, como a família, a igreja, a comunidade, na medida em que a todos – homens, mulheres, crianças – recruta para o trabalho na fábrica. Os idosos, que na produção artesanal eram figuras importantes, porque detinham o saber sobre o processo de trabalho como um todo, são descartados, pois a produção industrial fragmenta o processo de trabalho e passa a requer habilidades manuais mais juvenis. Os riscos relativos à saúde se agravam com as condições de trabalho nas fábricas e com as condições de vida decorrentes da urbanização acelerada.

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caráter meramente assistencialista9. Por sua natureza meritocrática – faz jus a um certo benefício aquele que por sua inserção na estrutura ocupacional efetuou preteritamente a contribuição correspondente – o seguro social destituía a política social de estigma. Deslocando seu alvo principal, da pobreza para o trabalho assalariado, a política social ganha papel pró-ativo no sistema: assegura direitos sociais aos que dele participam, hierarquiza o universo dos merecedores de tais direitos segundo as suas (dele) conveniências, e provê mecanismos de controle sobre os que dele se afastam.

A crise dos anos 20, transformações ocorridas no padrão de produção capitalista, a

vitória do socialismo na URSS, a valorização do planejamento na própria teoria econômica, e duas guerras mundiais compõem o pano de fundo de um novo contexto, no qual emerge a terceira fase da política social no Ocidente desenvolvido. Nesta fase, a idéia de seguro é substituída pela de seguridade social, a natureza da política passa a ser universalista e seu alvo, a cidadania. Sistemas públicos, estatais ou estatalmente regulados, se tornam os produtores de políticas destinadas a garantir amplos direitos sociais a todos os cidadãos, configurando o que se convencionou chamar Estados de bem-estar social.

Após a II guerra mundial, praticamente todos os países desenvolvidos realizaram

reformas em seus sistemas em seus sistemas de proteção social. O marco reformista foi o relatório Beveridge apresentado ao parlamento inglês em 1942 e transformado em lei em 1946. A proposta estava fundamentada em dois grandes princípios, identificados com a nova concepção de proteção social. O princípio da unidade tinha por metas a unificação das múltiplas instâncias de gestão dos seguros sociais existentes e a homogeneização das prestações básicas. Universalidade, o outro grande princípio, dizia respeito à cobertura – todos os indivíduos – e aos escopos da proteção (todas as necessidades essenciais)10.

Pode-se afirmar, assim, que introjeta-se na cultura política ocidental do pós-guerra

uma concepção de cidadania como trajetória cumulativa de direitos: direitos civis (as liberdades individuais), direitos políticos e direitos sociais, estes últimos significando, na acepção de Marshall, “tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança, ao direito de participar, por completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade”11. Concepção que está presente na Declaração Universal dos Direitos Humanos aprovada pela ONU em 1948 e em diversas convenções da OIT.

O contexto econômico no qual se edificaram os sistemas de bem-estar foi, de certo,

favorável à ampliação dos direitos substantivos, que exigem não só normatividade como recursos para seu financiamento. O crescimento da produção, a industrialização em larga escala, o consumo de massa, asseguravam o pleno emprego e contribuíam para uma maior homogeneidade social. Mas é sobretudo pela ótica da política que se explica o sucesso desta concepção de proteção social. As instituições de representação – os partidos políticos, 9 . O que não quer dizer que políticas assistencialistas tenham desaparecido. A Lei dos Pobres, na Inglaterra, por exemplo, só foi abolida nos anos 40. 10 .Estes princípios influenciaram as reformas de outros países. Na Alemanha, por exemplo, orientaram o debate que precedeu a Carta Constitucional de Bonn, em 1949. Na França, inspiraram a proposta de lei enviada por De Gaulle à Assembléia Nacional solicitando a reorganização da seguridade social em 1947. 11 . Marshall, T. H. - Cidadania, Classe Social e Status, Rio de Janeio, Zahar, 1967.

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os sistemas eleitorais, o Parlamento – se tornaram mais inclusivas; novos espaços de negociação surgiram (câmaras consultivas ou deliberativas formadas por representantes de trabalhadores, empresários, produtores agrícolas e técnicos governamentais para estabelecer diretrizes macroeconômicas); a democracia, enfim, expandiu-se. Por sua vez, a organização política dos atores sociais se fortaleceu. Identidades coletivas coesas, com alto poder de agregação e alta representatividade adotaram estratégias de concertação, ou seja, acordos, que permitiram aumentos substanciais na tributação (principalmente do capital) e provimento de benefícios generosos à maioria da população.

A estrutura de benefícios que o Estado de bem-estar vai oferecer, variável de país

para país, subentende uma noção alargada dos riscos sociais. Para os indivíduos, ultrapassando os círculos danosos relacionados com a pobreza e com o assalariamento, mantêm-se os riscos do acidente de trabalho, cujo conceito incorpora o trajeto e as consequências, e da cessação temporária ou permanente da capacidade laborativa (assalariada ou não), reverte-se o eixo do risco da doença, privilegiando-se a saúde12, legitima-se o risco do desemprego e assume-se, também como social – isto é, involuntário, e portanto de responsabilidade da nação – o risco a que estão submetidas famílias numerosas com renda insuficiente para viver condignamente. Para a sociedade, mais que a pobreza, mais que a recusa à disciplina do assalariamento, reconhece-se como ameaça a não-integração13. Como observa Esping-Andersen, o Welfare State construído no pós-guerra é, acima de tudo, um projeto de integração nacional14. A integração torna-se necessária do ponto de vista econômico: os indivíduos devem integrar-se no mundo da produção e do consumo de massa, sujeitando-se a desempenhar tarefas extremamente fragmentadas na produção (como Carlitos, no filme de Chaplin, Tempos Modernos). E torna-se, também, indispensável no campo da política: há que aceitar as regras do jogo político num cenário em que a política se mercadoriza, passando a ser predominantemente uma arena de negociação e troca , e o mercado se politiza, pela intervenção do Estado, regulando e/ou produzindo bens e serviços.

As três fases acima apresentadas mostram, esquematicamente, e como tendências

gerais, a evolução histórica da política social. Todavia, podem também ser traduzidas como concepções de política social, afirmadas em contextos distintos. Como concepções, apontam a dimensão política da política social e embasam classificações – ou modelos – de proteção social. A conhecida tipologia que distingue os Welfare States residual ou liberal, meritocrático ou corporativo, e social-semocrata ou institucional-redistributivo15 descortina o papel dos atores políticos na adoção de um ou outro modelo . 12 . Muitos países adotaram sistemas nacionais de saúde, universais e gratuitos. Nos que preservaram a fórmula dos seguros, como a Alemanha, os seguros-saúde, que passam a incluir outros segmentos sociais não enquadrados em categorias ocupacionais, substituíram os seguros-doença. 13 . Para o que contribui pesadamente as lembranças do nazi-fascismo e da guerra, situações nas quais a desintegração da sociedade se torna iminente. 14 . Esping-Andersen, Ghosta – “O Futuro do Wefare State na Nova Ordem Mundial”, em Lua Nova n. 33, São Paulo, 1994. 15 . A tipologia clássica é de Titmuss e está em seu Essays on the Welfare State, de 1958. Ugo Ascoli em 1984 (em Welfare State all´Italiana, ed. Laterza, Roma) e Ghosta Esping-Andersen em 1987(em “Power and Distributional Regimes”, publicado em Politics and Society, vol. 14, n.2), entre outros, partiram da classificação de Titmuss, introduzindo pequenos acréscimos e aprofundando os critérios de distinção dos modelos.

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No modelo liberal ou residual, o Estado somente intervém quando o mercado impõe

demasiadas penas a determinados segmentos sociais e onde os canais “naturais” de satisfação das necessidades – o esforço individual, a família, o mercado, as redes comunitárias – revelam-se insuficientes. Nesta concepção, o mercado funciona como o espaço da distribuição, do que resulta a prevalência de esquemas privados e ocupacionais de seguro social, não apenas sancionados como favorecidos pelos sindicatos. Guarda semelhança, sob versão atualizada, com a primeira fase histórica da política social16 e se tornou dominante em países como os EUA e, até certo ponto Austrália, Canadá e Suíça, onde a organização dos atores sociais é fragmentada, pluralista, e, embora pujante, não se traduz como força política, não se reconhece necessariamente em partidos políticos, e não expressa, no cenário politico-institucional, a presença de identidades coletivas fortes.

O modelo meritocrático ou corporativo, também cunhado de conservador, se

caracteriza por vincular estreitamente a ação “protetora” do Estado ao desempenho dos grupos protegidos. Quem merece, ou seja, quem contribui para a riqueza nacional e/ou consegue inserção no cenário social legítimo, tem direito a benefícios, diferenciados conforme o trabalho, o status ocupacional, a capacidade de pressão, etc. Prepondera na Europa continental (Alemanha, Áustria, França, Itália) como resultante de vigorosa tradição corporativista – centrais sindicais de peso, organizações agregadoras de interesses – e representação política e partidária dos atores sociais.

A modalidade institucional-redistributiva de proteção social se abriga sob o padrão

social-democrata de Welfare State. Ao Estado compete a produção e a distribuição de bens e serviços “extramercado”, em grande parte financiados por impostos gerais e dirigidos a todos os cidadãos. Predomina nos países escandinavos, onde, também, o corporativismo (ou neocorporativismo) se enraízou, proporcionando a base para acordos de largo alcance e longa duração.

A identificação de tipos de Estado de bem-estar, e, particularmente, dos

condicionantes políticos e institucionais que redundaram em maior ou menor inclusividade dos sistemas de proteção social e, pois, em maior ou menor apoio político aos mesmos, no período de sua expansão, tem sido importante, ademais, para explicar porque diferentes reações nacionais vem sendo afirmadas diante das atuais adversidades. Embora não constitua objeto destas notas enveredar pelo tema “crise do Estado de bem-estar”, hoje tão em voga, ou pelo seu imediato corolário – o tema “respostas à crise”, muito menos em voga17 - cabe, à guisa de conclusão, transcrever palavras de um autor que vem estudando exaustivamente as transformações recentes ocorridas no âmbito das políticas sociais,

16 . É interessante assinalar que a própria noção de welfare, nos EUA, tem sentido pejorativo, pois se associa à dependência da assistência pública, denotando, segundo as normas tradicionais da ética do trabalho, fracasso no mercado. O termo seguridade social é bastante popularizado naquele país, não só para designar o seguro social obrigatório como englobando os benefícios seletivos para a população de baixa renda (food-stamps, abrigos para os homeless, auxílios para crianças pobres), mas o significado atribuído ao termo se afasta inteiramente da concepção forjada na Europa no pós-guerra. 17 . A respeito, ver a coletânea organizada por GERSCHMAN, Silvia e WERNECK VIANNA, Maria Lucia, A Miragem da Pós-Modernidade (Ed. Fiocruz, Rio de Janeiro, 1998) na qual se encontram artigos e bibliografia sobre o assunto.

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palavras que corroboram o entendimento de que a dimensão política é fundamental no exame das políticas públicas.

“Com exceção de alguns casos, o quadro dominante, com respeito ao

Welfare State, é o de uma ´paisagem congelada`. A resistência à mudança é esperada: políticas estabelecidas há muito tempo se institucionalizam e criam grupos interessados na sua perpetuação. Assim, sistemas de seguridade social não se prestam facilmente a reformas radicais, e, quando estas se realizam, tendem a ser negociadas e consensuais. A Europa Continental é o caso mais claro de impasse, enquanto a Austrália e a Escandinávia representam a mudança por meio de negociação. No outro extremo, no Chile e nos antigos países comunistas, mudanças de grande escala ocorreram contra o pano de fundo do colapso ou da destruição da estrutura organizacional existente. Entre esses dois polos estão os países que, como a Grã-Bretanha ou os Estados Unidos, passaram por uma depreciação mais gradual, simultânea ao enfraquecimento do sindicalismo”18 .

18 . ESPING-ANDERSEN, Ghosta - “O Futuro do Welfare State na Nova Ordem Mundial”, em Lua Nova n.35, São Paulo, 1995.

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