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CONCEITUAÇÕES DE RAYMOND WILLIAMS SOBRE CULTURA COMO FUNDAMENTO PARA O CURRÍCULO COMUM Marta Coelho Castro Troquez* RESUMO: Este artigo objetiva discutir conceituações sobre cultura de Raymond Williams, fundamentadas no materialismo cultural, no sentido de apresentar algumas de suas contribuições para o debate travado no campo educacional, mais especificamente, no campo do currículo em torno da seleção de cultura a ser operada para as/nas transmissões culturais escolares. Para tal, primeiramente, apresenta desdobramentos de Williams sobre a evolução histórica do conceito de cultura para chegar à conceituação de cultura comum (ou em comum) relacionada à ideia de democracia/democratização do acesso aos bens culturais/democratização da cultura. Num segundo momento, discute, em diálogo com autores do campo da sociologia da educação e do currículo, a questão da seleção cultural a ser operada para a/na escolarização e apresenta tensões e/ou conflitos presentes no debate sobre a proposição de currículos diferenciados como alternativa ao currículo comum. As considerações do artigo apontam para a ideia básica de cultura comum defendida por Williams como fundamento para a defesa de um currículo comum. ABSTRACT: This study objectives to argue conceptualizations on culture of Raymond Williams, based on the cultural materialism, in the direction to present some of his contributions for the inserted debate in the educational field, more specifically, in the field of the curriculum around the election of culture to be operated for the/in the pertaining to school cultural transmissions. For such, firstly, it presents unfoldings of Williams on the historical evolution of the culture concept to arrive at the conceptualization of common culture (or in common) related to the democracy idea/democratization of the access to the cultural goods/ democratization of the culture. In a second moment, it argues, in dialogue with authors of the field of the sociology of the education and of the curriculum, the question of the cultural election to be operated for the/in the escolarization and presents tensions and/or conflicts inserted in the debate on the proposal of curricula differentiated as alternative to the common curriculum. The considerations of the article point to the basic idea of common culture defended by Williams as bedding for the defense of a common curriculum. PALAVRAS-CHAVE: Raymond Williams; cultura comum; currículo comum KEYWORDS: Raymond Williams; common culture; common curriculum NOTAS INTRODUTÓRIAS Raymond Williams (1921-1988), neto de agricultores, filho de trabalhador ferroviário, nasceu em uma comunidade rural

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CONCEITUAÇÕES DE RAYMOND WILLIAMS SOBRE CULTURA COMO FUNDAMENTO PARA O CURRÍCULO COMUM

Marta Coelho Castro Troquez*

RESUMO: Este artigo objetiva discutir conceituações sobre cultura de Raymond Williams, fundamentadas no materialismo cultural, no sentido de apresentar algumas de suas contribuições para o debate travado no campo educacional, mais especificamente, no campo do currículo em torno da seleção de cultura a ser operada para as/nas transmissões culturais escolares. Para tal, primeiramente, apresenta desdobramentos de Williams sobre a evolução histórica do conceito de cultura para chegar à conceituação de cultura comum (ou em comum) relacionada à ideia de democracia/democratização do acesso aos bens culturais/democratização da cultura. Num segundo momento, discute, em diálogo com autores do campo da sociologia da educação e do currículo, a questão da seleção cultural a ser operada para a/na escolarização e apresenta tensões e/ou conflitos presentes no debate sobre a proposição de currículos diferenciados como alternativa ao currículo comum. As considerações do artigo apontam para a ideia básica de cultura comum defendida por Williams como fundamento para a defesa de um currículo comum.

ABSTRACT: This study objectives to argue conceptualizations on culture of Raymond Williams, based on the cultural materialism, in the direction to present some of his contributions for the inserted debate in the educational field, more specifically, in the field of the curriculum around the election of culture to be operated for the/in the pertaining to school cultural transmissions. For such, firstly, it presents unfoldings of Williams on the historical evolution of the culture concept to arrive at the conceptualization of common culture (or in common) related to the democracy idea/democratization of the access to the cultural goods/ democratization of the culture. In a second moment, it argues, in dialogue with authors of the field of the sociology of the education and of the curriculum, the question of the cultural election to be operated for the/in the escolarization and presents tensions and/or conflicts inserted in the debate on the proposal of curricula differentiated as alternative to the common curriculum. The considerations of the article point to the basic idea of common culture defended by Williams as bedding for the defense of a common curriculum.

PALAVRAS-CHAVE: Raymond Williams; cultura comum; currículo comum

KEYWORDS: Raymond Williams; common culture; common curriculum

NOTAS INTRODUTÓRIAS

Raymond Williams (1921-1988), neto de agricultores, filho de trabalhador ferroviário, nasceu em uma comunidade rural localizada na fronteira entre Gales e a Inglaterra. Por um programa de bolsa de estudos, tornou-se aluno e, mais tarde, professor em Cambridge, tornou-se também militante engajado do movimento formado por intelectuais britânicos denominado New Left, o qual ajudou a fundar.

Como explicitado por Cevasco (1999, p. 76), a trajetória pessoal de Williams o levou à percepção de que “estudar a cultura pode ser a porta de entrada para uma crítica empenhada, que visa entender o funcionamento da sociedade com o objetivo de transformá-la”. Sob esta percepção, Williams adotou a posição teórica do materialismo cultural, o que justifica a centralidade da cultura como uma categoria teórica predominante em seus escritos.

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Cevasco (1999) procurou demonstrar, através de estudo aprofundado1, a relevância da obra de Williams para “uma crítica empenhada da cultura e, em especial, da literatura”. Na avaliação desta autora, a principal contribuição de Williams “se dá no desenvolvimento de uma teoria e de uma prática de análise que criam um novo parâmetro para pensar a questão crucial da cultura de um ponto de vista de esquerda” (CEVASCO, 2007, p. 10). Ainda conforme análises de Cevasco (1999, p. 5), Williams pode ser considerado um “pensador da cultura, crítico literário e socialista engajado na transformação do mundo social onde a teoria e a produção culturais encontram sua efetividade”. Contudo, a obra de Williams tem sido pouco lida, em sua totalidade, no Brasil.

No sentido de trazer para a arena educacional, mais especificamente, para o campo do currículo2, aspectos fundamentais da obra de Williams e de contribuir com o diálogo ou o debate entre as teorias (sociais) literárias e os processos de ensino, nos propomos, neste artigo, a partir das conceituações de Williams sobre cultura, discutir a questão das transmissões culturais escolares.

Não se trata de um estudo detalhado da obra deste autor consubstanciada pelo conjunto de todos (ou quase todos) os seus trabalhos, como o fez Cevasco (1999, 2001, 2008). E sim de pontuar a contribuição de seus desdobramentos sobre cultura para o campo dos estudos e práticas curriculares, especialmente, no que diz respeito à seleção de cultura destinada às transmissões culturais escolares. Aspecto de sua obra ainda não abordado com especificidade.

1. CULTURA EM WILLIAMS: UMA CULTURA COMUM

Na obra “Cultura e sociedade”, Williams (1969) procura estudar o desenvolvimento do conceito de cultura, através da análise e interpretação de uma série de textos significativos (teóricos, críticos e literários) produzidos na Grã-Bretanha no período que correspondeu aos anos de 1780 a 1950. Segundo este autor, “o conceito de cultura e a própria palavra, em seus usos gerais modernos, surgiram no pensamento inglês, no período comumente chamado da Revolução Industrial” (WILLIAMS, 1969, p. 11).

Numa perspectiva histórica, Williams faz um desvelamento do desenvolvimento e/ou evolução do conceito de cultura3 e, assim, estuda este conceito relacionando-o às transformações históricas ocorridas na sociedade4 proporcionadas pelas mudanças na indústria, na democracia, nas classes sociais e consequentemente nas produções culturais, como a arte, a literatura, a chamada “cultura de massa” e a “cultura popular”. Para o autor, estas modificações históricas e sociais, ocorridas num período marcado por profundas transformações na sociedade – a “Revolução Industrial” –, relacionam-se a “modificações mais amplas de vida e de pensamento”.

Dessa forma, as modificações na produção concreta da existência, tanto em termos econômicos quanto políticos, afetam a produção e a evolução de conceitos-chave para o estudo e a compreensão da sociedade e acarretam em modificações de linguagem. Assim, as transformações ocorridas no uso de palavras como indústria, democracia, classe e arte estão profundamente relacionadas às mudanças no entendimento de cultura.

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Embora a evolução do conceito de cultura estivesse articulada à ideia de indústria, para Williams, “o surgimento de cultura como uma abstração, como algo absoluto”, não foi uma simples resposta “à nova indústria” e/ou ao industrialismo: “foi, porém, resposta a novos desenvolvimentos políticos e sociais, isto é, à Democracia” 1969, p. 20). Para Williams:

A história da ideia de cultura é a história do modo por que reagimos em pensamento e em sentimento à mudança de condições por que passou a nossa vida. Chamamos cultura a nossa resposta aos acontecimentos que constituem o que viemos a definir como indústria e democracia e que determinaram a mudança das condições humanas. [...] A ideia de cultura é a resposta global que demos à grande mudança geral que ocorreu nas condições de nossa vida comum. (1969, p. 305).

Na mesma obra, Williams discute “a teoria da cultura como a teoria das relações entre os elementos de um sistema geral de vida”, enquanto “cultura em expansão” (p. 12). Para ele, a “afirmação crescente de um novo modo de vida”; entendido como “todo um modo de vida que não é apenas maneira de encarar a totalidade, mas ainda maneira de interpretar toda a experiência comum e, à luz dessa interpretação mudá-la”, vem mudar “ideias presentes nos significados iniciais da palavra cultura”. De modo que, “cultura significava um estado ou um hábito mental ou, ainda, um corpo de atividades intelectuais e morais; agora, significa também todo um modo de vida” (p. 20). As acepções iniciais e mais elitistas do termo como algo a ser cultivado (nas Artes, por exemplo) foram confrontadas com o significado de uma cultura comum ou ordinária.

Na mesma direção conceitual, em Cultura (1992), Williams enfatiza a dificuldade do termo cultura e destaca alguns aspectos da história e uso do termo o qual passou por significativas transformações (p. 10-12). Este autor defende uma forma de “convergência contemporânea” que “encara a cultura como o sistema de significações mediante o qual necessariamente (se bem que entre outros meios) uma dada ordem social é comunicada, reproduzida, vivenciada e estudada” (p. 13). Desta forma,

[...] há certa convergência prática entre (i) os sentidos antropológico e sociológico de cultura ‘como modo de vida global’ distinto, dentro do qual percebe-se, hoje, um ‘sistema de significações’ bem definido não só como essencial, mas como essencialmente envolvido em todas as formas de atividade social, e (ii) o sentido mais especializado, ainda que também mais comum, de cultura como ‘atividades artísticas e intelectuais’, embora estas, devido à ênfase em um sistema de significações geral, sejam agora definidas de maneira muito mais ampla, de modo a incluir não apenas as artes e as formas de produção intelectual tradicionais, mas também todas as ‘práticas significativas’ – desde a linguagem, passando pelas artes e filosofia, até o jornalismo, moda e publicidade – que agora constituem esse campo complexo e necessariamente extenso (WILLIAMS, 1992. Grifos do autor).

Neste entendimento, a compreensão do termo cultura adquire um caráter universal e abarca tanto as mais rudimentares manifestações “populares” quanto o que costumamos chamar de “alta cultura” ou “cultura erudita”. Desta forma, pode-se tratar de questões culturais tanto de “âmbito global”, como em áreas mais específicas/restritas, sem, contudo, estabelecer valorações e/ou hierarquias no sentido de considerar determinado tipo de cultura ou prática cultural superior ou inferior, sejam “as artes” ou as produções de pessoas comuns.

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Adotando a ideia de uma cultura ordinária, comum, cotidiana, destituída de valorações relativas a classes ou a inspirações especiais, assentada nas relações sociais e concretas vividas pelos indivíduos, Williams se nega a fazer distinções sobre “tipos” de cultura ou a relacionar passivamente os produtos culturais a determinado tipo específico de classe social.

Podemos subtrair das análises de Williams que o que tem sido chamado de “cultura erudita” ou “cultura de elite” esteve relacionado (e em grande medida ainda está) à produção artística e intelectual das classes mais favorecidas, da classe burguesa e a “cultura popular”, de certo modo, foi confundida com a “cultura de massa” produzida pela burguesia. Entretanto, Williams não só rejeita a atribuição unívoca de uma determinada cultura como “popular”, como também, rejeita a ideia de uma “cultura de massa” enquanto sinônimo de uma “cultura popular”, pois a cultura de massa surgiu em resposta à industrialização, ao avanço dos meios de comunicação e à transformação dos produtos culturais em mercadorias destinadas às massas, ao povo ou “populacho” (1969, p. 310-314).

Sobre a cultura popular, Williams observa que:

[...] a dinâmica real do processo sociocultural é mais notória nas transformações do ‘popular’, que caminharam não só ao longo de uma trajetória que vai das formas anteriores de cultura ‘folclórica’ até as novas formas parcialmente auto-organizadas de cultura popular urbana, mas ainda ao longo de uma trajetória de extensa – e maciçamente – produção de cultura ‘popular’ pelo mercado burguês e pelos sistemas educacional e político estatais. (1992, p. 226).

Williams problematiza os contrastes atribuídos à “cultura burguesa” e à cultura da “classe trabalhadora” ou “popular”. Desta forma, duvida da expressão “cultura burguesa” enquanto uma “expressão útil”. “O conjunto de trabalho intelectual e imaginativo que cada geração recebe como cultura tradicional é sempre e necessariamente algo mais do que o produto de uma só classe” (1969, p. 329).

Segundo ele, “não pode ser absoluto o contraste entre uma cultura minoritária e uma cultura popular” (1969, p. 330). Ainda, “uma classe social de modo algum é sempre culturalmente monolítica” (1992, p. 74). Assim, este autor defende um tipo de interação entre as produções das classes. Como coloca:

Estamos em condições, agora, de saber exatamente o que se entende por ‘cultura da classe trabalhadora’. Não é a arte proletária, nem um particular uso da língua, nem conselhos deliberativos; é, em vez disso, a básica ideia coletiva, e as instituições, costumes, hábitos de pensamento e intenções que dela procedem. Cultura burguesa, por sua vez, é a básica ideia individualista e as instituições, costumes, hábitos de pensamento e intenções que daí procedem. Em nossa cultura, como um todo, há ao mesmo tempo uma interação constante entre esses sistemas de vida e uma área que pode ser adequadamente descrita como comum ou como pressuposta a ambos. (1969, p. 335).

Sob esta perspectiva, Williams chama a atenção ao aspecto interativo e comum da produção cultural. O que nos leva a considerar a possibilidade de “partilhas” culturais

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entre indivíduos de classes ou grupos sociais diferentes e a questionar as dicotomias absolutas entre, sobretudo, cultura erudita e cultura popular.

A cultura, em Williams é, portanto, entendida enquanto processo, produção e produto da sociedade, “como um sistema de significações realizado” (1992, p. 206) e, enquanto tradição, “como conjunto de trabalho intelectual e imaginativo” (1969, p. 329) determinada pela vida material e referenciada enquanto uma cultura ordinária, destituída de valorações e/ou hierarquias. Sob este entendimento, cultura “é tudo o que constitui a maneira de viver de uma sociedade” (CEVASCO, 2008, p. 51) e sua natureza está comprometida tanto com o que se entende por “tradição” ou herança cultural da humanidade quanto com os processos criativos da vida ordinária de pessoas comuns5.

A acepção de Williams pressupõe a ideia de democratização da cultura (tomada num sentido universal), sob a qual o acesso aos produtos culturais da humanidade não deve ser privilégio de alguns, nem sua produção está relacionada a atributos especiais ou a uma “iluminação do espírito”: a cultura é ordinária/comum e é produzida socialmente. E deve ser uma cultura participativa, em comum, partilhada por todos.

Sob esta perspectiva, “os recursos da humanidade são considerados comuns e o direito de acesso a eles não passa pela classe social, mas pela sua abolição e sua dissolução em humanidade comum” (CEVASCO, 2008, p. 52). Isto implica em uma educação com perspectivas emancipatórias que objetive a construção de uma sociedade mais democrática e participativa.

A ideia de uma cultura em comum em Williams relaciona a verdadeira democracia à possibilidade de viabilizar o acesso a “todas as formas” de cultura a todas as pessoas e, neste sentido, reivindica uma prática política emancipatória no sentido de: “dar a todos livre acesso a tudo que se fez e se construiu no passado” (1969, p. 327). Para ele:

Uma cultura comum não é, em nenhum nível, uma cultura igual. Mas pressupõe, sempre, a igualdade do ser, sem a qual a experiência comum não pode ser valorizada. Uma cultura comum não pode opor restrições absolutas ao acesso a qualquer das suas atividades: este é o sentido real do princípio de igualdade de oportunidades. (1969, p. 326).

O princípio de igualdade de oportunidades relacionado à garantia do acesso e da aquisição de bens culturais necessários à convivência democrática, ao exercício pleno da cidadania encontrou eco e tornou-se uma das questões centrais postas pelas discussões e/ou estudos curriculares, especialmente na perspectiva das teorias críticas de currículo (SILVA, 2005; SOARES, 1987). Tais teorias são caracterizadas por um “olhar crítico e ‘desconstrutor’” que colocam sobre os conteúdos culturais (conhecimentos, valores simbólicos) veiculados pelo currículo (FORQUIN, 1993, p. 77).

Sob esta perspectiva, a seguir, procuramos dialogar com autores do campo da sociologia da educação e/ou do currículo cujos desdobramentos teóricos ou estão fundamentados na proposição de Williams em torno da democratização da cultura tomada em seu sentido universal, como é o caso de Forquin (1993), ou traduzem “ecos” desta proposição (GIMENO SACRISTÁN, 2002; GRIGNON, 2005).

2. TRANSMISSÕES CULTURAIS ESCOLARES: A DEFESA DO CURRÍCULO COMUM

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Fundamentado em Williams, Forquin (1993) apresenta alguns esclarecimentos do termo cultura evidenciando tensões e conflitos semânticos em torno dos seus usos, especialmente no que diz respeito às apropriações deste termo no campo educacional. Entre os empregos do termo destaca o sentido/conceito etnológico/antropológico (objetivo, descritivo, científico) e o conceito universalista. Pelo conceito etnológico desenvolvido nas ciências sociais “a cultura é considerada como o conjunto dos traços característicos do modo de vida de uma sociedade, de uma comunidade ou de um grupo” (FORQUIN, 1993, p. 11).

Já no conceito ou sentido universalista a cultura é entendida enquanto “mundo humanamente construído, mundo das instituições e dos signos no qual, desde a origem, se banha todo indivíduo humano tão somente por ser humano, e que constitui como que sua segunda matriz” (p. 168). É por meio deste último conceito que, de acordo com Forquin, deve-se justificar a educação e, mais especificamente, o currículo escolar entendido como “seleção de cultura”. Segundo ele, “não se poderia justificar a educação, fundamentar o currículo, a partir unicamente do conceito sociológico ou etnológico” (p. 168).

Para Forquin (1993, p. 10-13), a “justificação cultural” da escola diz respeito à sua “função de transmissão cultural”. Desta forma, para ele, “o que justifica fundamentalmente e sempre, o empreendimento educativo é a responsabilidade de ter que transmitir e perpetuar a experiência humana considerada como cultura”. Este sentido está fundamentado na ideia da “cultura comum” desenvolvida por Williams (1969).

Ao discorrer sobre escola, cultura e sociedade na Grã-Bretanha, Forquin (1993) discute posturas que buscaram interrogar sobre a qualidade da cultura e sobre os fundamentos e as implicações das transmissões escolares. As elaborações teóricas acabaram implicando em posicionamentos radicalmente opostos no que diz respeito à defesa de um currículo comum6 em contraponto à de currículos diferenciados.

Cumpre destacar que o estabelecimento de uma base comum ou de um currículo comum não significa que todos os currículos, concebidos enquanto seleção cultural de/para a uma determinada “série”, devam ser idênticos, mas que devem constar de um rol de conteúdos de ensino comuns a todos os estudantes do mesmo nível de escolaridade, ou faixa etária.

Forquin analisa diferentes argumentos defendidos, nos anos 1960, por três teóricos em torno da questão: Williams, Bantock e Paul Hirst (FORQUIN, 1993, p. 164), como segue:

Williams, fundamentado na sua conceituação de cultura comum, “inscreve sua reflexão na perspectiva de uma transformação socialista da sociedade, que supõe o acesso de todos aos elementos fundamentais da cultura humana pela via de um currículo de estudos gerais” comum para todos.

Bantock, baseado em uma concepção pessimista da capacidade de filhos das classes operárias (teoria do déficit) em progredir na escolarização obrigatória, defendia “um dualismo escolar radical” em que o que se considerava de “alta cultura letrada” deveria

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ser reservado a uma elite e os menos dotados, ou menos motivados, deveriam ser isolados “em currículos nos quais a educação corporal e emocional predomina sobre a educação intelectual”.

Paul Hirst, inspirado nas contribuições da filosofia analítica, defendia um currículo de caráter intemporal, centrado na “exigência racionalista de um acesso de todos aos diferentes tipos de pensamento conceptual correspondendo às formas fundamentais do conhecimento”.

Das três, a acepção mais favorável ao desenvolvimento de uma educação para a democracia é a de Williams. Nas considerações de Forquin (p. 53), “o currículo comum enaltecido por Williams constitui uma alternativa evidentemente mais aceitável, mesmo que ela nem sempre seja fácil de executar na prática”. Por outro lado, o currículo dual proposto por Bantock se mostra extremamente discriminatório e o currículo comum liberal de Paul Hirst onde a formação intelectual é tomada como um fim em si mesmo é, no mínimo, limitador e acrítico no sentido em que reduz os objetivos da escolarização ao desenvolvimento do pensamento conceitual.

Os argumentos de Forquin em defesa de um currículo comum que possibilite o acesso a todos os educandos a um “rol” comum de conhecimentos ou conteúdos culturais são desenvolvidos a partir do contexto de países europeus, especialmente na Grã-Bretanha a partir dos anos 1970, em que o número de pessoas de origem não europeia cresceu rapidamente. O que trouxe para as escolas europeias o desafio de “lidar” com a diversidade cultural, especialmente, com “a questão das disparidades inter-étnicas, ou etnoculturais”, somadas às já existentes “disparidades culturais ou ‘subculturais’ entre as classes sociais” (FORQUIN, 1993, p. 137).

Cabe ressaltar que a defesa por currículos diferenciados adaptados às necessidades ou interesses de grupos específicos não é nova, nem se restringe à realidade dos países europeus. No contexto dos anos 1960-1970, em que as diferenças dos indivíduos (filhos da classe operária) provocadas pelas desigualdades sociais estavam sendo interpretadas como deficiências, pois resultavam em fracasso escolar, surgiram defensores de um currículo comum “individualizado” ou adaptado no sentido de possibilitar uma educação “compensatória” e, assim, garantir o acesso aos conhecimentos do currículo comum a todos os estudantes.

Entretanto, com a ruptura conceitual provocada nos anos de 1970 pela “nova sociologia da educação” inglesa e com o surgimento da “crítica de esquerda” em torno da relação currículo, cultura e classes sociais, a situação das crianças passou a ser interpretada em termos de conflito cultural ou de alienação e o currículo comum passou a ser questionado. De acordo com Forquin,

Esta crítica ‘de esquerda’ parece se articular ao redor de dois tipos de argumentações: uma que se chamará ‘obreirista’ e que põe a ênfase na necessidade de o mundo trabalhador defender sua identidade cultural, ao mesmo tempo que seus interesses materiais de classe, face às ações ideológica e política, das quais o currículo comum seria um instrumento privilegiado; outra, que se chamará ‘comunitarista’ e que, referindo-se também mais freqüentemente aos interesses sociais de grupos mais desfavorecidos, opõe sobretudo à cultura escolar tradicional uma exigência de pertinência, de realismo, de enraizamento e de convivialidade, que leva a

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fazer da comunidade local o contexto, o suporte, o objeto e o beneficiário principal do ensino dado aos alunos. (FORQUIN, 1993, p. 128).

Estas críticas da esquerda britânica podem ser facilmente relacionadas às críticas feitas no Brasil, quase à mesma época, à educação de indivíduos menos favorecidos provenientes de meios populares (SOARES, 1987), de grupos específicos e/ou minoritários como no caso de indígenas, de comunidades do campo e quilombolas. Tais críticas resultaram em reivindicações por processos de educação diferenciada e comunitária desenvolvida através de currículos locais. Este enfoque (comunitário) foi fortemente defendido no Brasil, especialmente no caso da educação escolar indígena a qual era considerada etnocêntrica e integradora (FERREIRA, 2001).

Contudo, a proposição de currículos diferenciados de enfoque comunitário pode ser questionada. De acordo com Forquin (1993), “um tal projeto de especificação do currículo em função do pertencimento social de seus destinatários provoca interrogações e objeções de ordens diversas” (p. 129).

Segundo as críticas e/ou objeções apresentadas por Forquin a enfoques comunitaristas e separatistas, o currículo específico, ligado à experiência e a interesses comunitários, seria reducionista, caracterizado por um tipo de “radicalismo populista”, poderia ser gerador de “regressão cultural” e, assim, não possibilitaria “ir do conhecido ao desconhecido”, mas apenas tornaria o “conhecido mais conhecível”.

À estas críticas e/ou objeções é possível associar as considerações de Grignon (2005) sobre práticas escolares separatistas voltadas a grupos “populares” subalternizados, que, segundo ele, caracterizam uma “pedagogia populista”. Para este autor,

Uma pedagogia populista corre o risco de encerrar as crianças provenientes das classes dominadas em sua cultura de origem, em sua ‘identidade’, em suas ‘raízes’, e negar-lhes o acesso à cultura culta, à cultura teórica, aos saberes de alcance geral e universal. Sob o pretexto de e reabilitar o ‘concreto’, o ‘local’, termina-se por retornar aos lugares-comuns mais conservadores, por exemplo, ao preconceito segundo o qual o pensamento abstrato é um privilégio da elite, e o bom sentido prático, pelo contrário, o patrimônio da massa. [...] A preocupação justificada por respeitar, defender e restaurar as identidades culturais dominadas populares, regionais, locais, étnicas, pode levar a retroceder para além do ideal filantrópico (que triunfou na França nos anos 1880) e a renovar a antiga atitude segregacionista das classes dominantes. Acondicionar nichos culturais de convivialidade separados, os quais têm muitas possibilidades de desempenhar uma função de gueto, pode ser uma maneira de segregar e excluir as novas ‘classes perigosas’ da sociedade e da civilização. (GRIGNON, 2005, p. 188).

Sob esta mesma perspectiva, Gimeno Sacristán (2002), no contexto da sociedade atual, marcada pelo crescente processo de globalização econômica e cultural, e pelas demandas educativas da diversidade de culturas, defende a construção e efetivação de um “currículo comum não-localista”. Segundo esse autor:

As reações ‘globofóbicas’, que veem ameaçada a integridade das culturas, negam ou limitam o alcance desse currículo. O cosmopolitismo, em algum grau é necessário, é inimigo do comunitarismo educativo, que entende a

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educação como mecanismo de manutenção da cultura ‘própria’. (GIMENO SACRISTÁN, 2002, p. 94).

Em Gimeno Sacristán (2002) encontramos “ecos” das conceituações de Williams na defesa de uma educação que se paute pelo direito do cidadão “à” cultura (do tipo universal) em contraposição ao direito “da” cultura. Esse autor propõe uma educação pautada por uma seleção de conteúdos universais que responda às condições globalizadas do mundo atual e que permita um maior entendimento deste mundo no sentido de instrumentalizar os indivíduos para a ação política na direção da transformação social favorável ao exercício (pleno) da cidadania democrática.

Porquanto, “os cidadãos conscientes, críticos e ativos participantes na sociedade atual necessitam de certo nível educativo para decodificar o mundo que tem diante de si e adotar posições inteligentes em cada momento” (GIMENO SACRISTÁN, 2002, p. 153).

Essa justificação da educação está fundamentada no conceito universalista de cultura:

Ensinar supõe querer fazer alguém aceder a um grau ou a uma forma de desenvolvimento intelectual e pessoal que se considera desejável. Isto não pode ser feito sem se apoiar sobre os conteúdos, sem extrair da totalidade da cultura – no sentido objetivo do termo, [...] – certos elementos que se consideram como mais essenciais, ou mais intimamente apropriados a este projeto. Educar, ensinar, é colocar alguém em presença de certos elementos da cultura a fim de que ele deles se nutra, que ele os incorpore à sua substância, que ele construa sua identidade intelectual e pessoal em função deles. Ora, um tal projeto repousa necessariamente, num momento ou noutro sobre uma concepção seletiva e normativa de cultura. (FORQUIN, 1993, p. 168).

As considerações até aqui tecidas, propiciam terreno fértil para o questionamento da ideia de um currículo diferenciado/específico em confronto com um currículo “comum” de inspiração universalista que possibilite a todos os indivíduos acessarem todos os conhecimentos considerados “válidos”. “Oferecer currículos diferenciados para populações distintas em uma mesma faixa etária é ofertar caminhos diferentes e, com muita probabilidade, desiguais” (GIMENO SACRISTÁN, 2002, p. 260).

As tensões e/ou conflitos advindos da relação entre cultura, currículo e sociedade no estabelecimento de processos de seleção cultural no que diz respeito às transmissões escolares comungam da responsabilidade do Estado supondo, entre outras questões,

[...] o acesso de todos a um núcleo comum de experiências cognitivas e de referências culturais, o qual, numa sociedade moderna pode [...] parecer como inseparável da própria noção de ‘cidadania’. Este núcleo comum de conteúdos pedagógicos e culturais [...] não exclui a existência de diferenças no interior da sociedade, mas é justamente aquilo a partir do qual se torna possível dimensionar estas diferenças, aquilo que permite ao mesmo tempo o reconhecimento de diferenças e o exercício de solidariedades. (GIMENO SACRISTÁN, 2002, p. 133, grifo nosso).

Sob esta perspectiva é possível fazer a defesa de um “currículo comum pluralista” como instrumento de justiça baseado no princípio de igualdade e no reconhecimento/respeito

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às diferenças (individuais e étnicas) e compatível com a noção de cidadania democrática.

A liberdade dos sujeitos, o reconhecimento de suas diferenças e o direito à sua auto-realização devem ser compatíveis com as demandas de equidade e justiça que necessitam, por sua parte, de um currículo comum desenvolvido através de pedagogias diferenciadoras. (GIMENO SACRISTÁN, 2002, p. 261).

O princípio de igualdade de oportunidades em Gimeno Sacristán é relacionado à ideia de equidade e justiça na defesa de um currículo comum pluralista que valorize a diversidade e aponte para a “formação” do indivíduo enquanto cidadão de direitos, “cosmopolita”7, capaz de “ir além”, intervir na ordem das coisas. E, assim, “pensar em um equilíbrio entre o que está próximo aos sujeitos e o que é distante, mas os afeta; entre o próprio e o alheio que os contamina inevitavelmente” (GIMENO SACRISTÁN, 2002, p. 94).

Evidencia-se, assim, a tensão entre o que é diverso/diferente/específico e o que é universal. “É, na verdade, através do conflito da universalidade e do diferencialismo, a definição mesma do homem e da cultura que está em questão” (FORQUIN, 1993, p. 142). Dessa forma, é possível pensar a cultura no singular e no absoluto enquanto um “domínio específico da atividade humana”, enquanto “todo o modo de vida de um povo”, ou enquanto “tudo o que constitui a maneira de viver de uma sociedade”; por outro lado é possível entender por cultura o caráter distintivo de uma determinada comunidade ou grupo específico.

Assim como não se pode estabelecer uma fronteira entre cultura erudita e cultura popular, também é preciso reconhecer que entre universalismo e diferencialismo a fronteira não pode ser tão claramente traçada nem se pode estabelecer um maniqueísmo absoluto. Contudo, a ideia básica defendida por Williams de possibilitar a todos os indivíduos (ou grupos) o acesso à (toda) cultura comum pressupõe a proposição de um currículo comum que viabilize o acesso aos bens culturais considerados válidos ou importantes em determinado momento histórico a todos os indivíduos, sem distinção de classe social ou grupo específico.

A verdadeira democracia a ser construída, no sentido de garantir o acesso de todos aos bens culturais da humanidade e à participação política de grupos específicos e dos indivíduos nas decisões que afetam seus destinos e/ou seu “bem estar” social, deve fazer parte de um projeto amplo de educação numa perspectiva crítica, especialmente no que concerne à questão das transmissões culturais escolares. Nesta direção, a abordagem desejável é a que persegue a ideia de construção de currículos que objetivem contribuir para a emancipação cultural dos indivíduos, que esteja a serviço de mudanças sociais: um currículo comum.

NOTAS FINAIS

Neste artigo procuramos evidenciar que Williams (1969, 1992, entre outras obras), a partir de uma perspectiva histórica e sociológica, ocupou-se da evolução e/ou desenvolvimento do conceito de cultura em um contexto histórico e cultural específico para enunciar sua perspectiva materialista da cultura, cuja premissa básica repousa

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numa ideia de democratização cultural em que a cultura é de todos e, portanto, deve ser partilhada sem distinção de classes ou grupos sociais: deve ser cultura em comum.

Sob esta perspectiva, de democratização de acesso a todos os indivíduos aos bens culturais da humanidade e, mais especificamente, aos conhecimentos ou saberes historicamente produzidos, uma “cultura em comum” ainda não existe. Isto implica em uma educação com perspectivas emancipatórias que objetive a construção de uma sociedade mais democrática, mais participativa. A educação pode contribuir para esse processo de mudança e, nesse sentido, a ideia de um currículo comum, também defendido por Williams torna-se fundamental.

1* Marta Coelho Castro Troquez, mestre em História pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), linha de pesquisa: Escola, Cultura e Disciplinas Escolares, atua como Técnica em Assuntos Educacionais na UFGD, onde participa de projetos de pesquisa na área da Educação e da História Indígena. E-mail: [email protected].

? Trata-se de trabalho para concurso de livre-docência (1999) no qual discute a obra do autor. Nas páginas 192 a 201, traz uma relação de inúmeros trabalhos bibliográficos de Williams produzidos entre os anos de 1950 a 1989 e de trabalhos de outros autores sobre esse autor produzidos a partir dos anos de 1950 ao ano de 1999.2 No sentido desenvolvido por Bourdieu, concebemos campo como um espaço social específico onde determinado tipo de bem (material ou simbólico) é produzido, consumido e classificado. (BOURDIEU, 1997). Os estudos do campo do currículo são identificados por “temáticas relacionadas centralmente com a seleção, organização e distribuição dos conteúdos de ensino, entendendo-se tais conteúdos não apenas como conceitos, mas como saberes, práticas, habilidades, visões de mundo e valores produzidos na cultura escolar” (LOPES; et. al., 2007, p. 35). Para maiores informações sobre o campo do currículo, ver também Moreira (2001; 2002).3 Para um maior detalhamento deste conceito em Williams consultar também “cultura” em sua obra palavras-chave (2007, p. 117-124).4 Para Williams (2007, p. 379), “[...] a palavra sociedade é clara em dois sentidos principais: como termo mais geral para o corpo de instituições e relações no qual vive um grupo relativamente grande de pessoas; e como o termo mais abstrato para a condição na qual se formam essas instituições e relações”. Como colocado por SILVA e SILVA (2006, p. 383), “a sociedade existe nas relações concretas entre os grupos sociais” no processo da produção material da existência.5 A ideia de uma cultura ordinária encontra-se, também, estabelecida nas análises das “práticas ordinárias” e/ou cotidianas (falar, ler, circular, fazer compras, cozinhar, ocupar o espaço etc.) analisadas por Certeau (2005); Certeau, Giard e Mayol (2005). 6 A idéia de um currículo [mínimo] comum, no Brasil, ganhou estatuto legal a partir da Constituição Federal de 1988 que determina a fixação de “conteúdos mínimos para o ensino fundamental” (BRASIL, 1988, Art. 210, § 1º) e foi reforçada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional que orienta para o estabelecimento de um currículo comum nacional para o ensino fundamental e médio e “uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela” (BRASIL, 1996, Art. 26). No caso específico da educação escolar indígena no Brasil, fica “assegurada às comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem” (BRASIL, 1988, Art. 210, § 2º; BRASIL, 1996, Art. 32, § 3º). 7 Segundo ele, a abertura a novas possibilidades e o estímulo a um certo cosmopolitismo que supõe a convivência dos indivíduos são duas boas precauções contra fundamentalismos e particularismos multiculturais, localistas e sem grandes aspirações. Desta forma: “O cosmopolitismo significa a virtualidade de que um indivíduo possa viver em um mesmo mundo onde outros diferentes como Le também o fazem. O cosmopolita é a pessoa que considera todos os lugares do mundo como sua pátria porque se adapta com facilidade a diversos ambientes. É um ser dotado de competências culturais múltiplas que transita de uns espaços culturais para outros sem problemas.” (GIMENO SACRISTÁN, 2002, p. 79).

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Procuramos, ainda, apresentar como a teoria de Williams vem sendo apropriada ou encontra ecos no campo educacional como fundamento da defesa do currículo comum. Entretanto, cabe destacar que a contribuição de Raymond Williams vai mais além. Williams enfatiza a “distinção da cultura”, seja no sentido amplo ou mais restrito, “como um sistema de significações realizado” pretendendo que, “não só abra espaço para o estudo de instituições, práticas e obras, manifestamente significativas, mas que, por meio dessa ênfase, estimule o estudo das relações entre essas e outras instituições, práticas e obras” (1992, p. 207). A compreensão de uma cultura em comum, ordinária, pode iluminar outros estudos e pesquisas e contribuir para a realização de práticas sociais emancipatórias, sobretudo no que diz respeito à proposição de políticas culturais que garantam a democratização do acesso aos bens culturais da humanidade.

REFERÊNCIAS

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