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SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ NÚCLEO DE TEORIA E PESQUISA DO COMPORTAMENTO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEORIA E PESQUISA DO COMPORTAMENTO LABORATÓRIO DE ECOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO CONCEPÇÕES DE DESENVOLVIMENTO E PRÁTICAS DE CUIDADO À CRIANÇA EM AMBIENTE DE ABRIGO NA PERSPECTIVA DO NICHO DESENVOLVIMENTAL. LAIANE DA SILVA CORRÊA Belém-Pará 2011

CONCEPÇÕES DE DESENVOLVIMENTO E PRÁTICAS DE …ppgtpc.propesp.ufpa.br/ARQUIVOS/dissertacoes/Laiane Correa 2011.pdf · para a qualidade das interações e do cuidado oferecido à

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SERVIO PBLICO FEDERAL

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAR

NCLEO DE TEORIA E PESQUISA DO COMPORTAMENTO

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM TEORIA E PESQUISA DO COMPORTAMENTO

LABORATRIO DE ECOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO

CONCEPES DE DESENVOLVIMENTO E PRTICAS DE

CUIDADO CRIANA EM AMBIENTE DE ABRIGO NA

PERSPECTIVA DO NICHO DESENVOLVIMENTAL.

LAIANE DA SILVA CORRA

Belm-Par

2011

SERVIO PBLICO FEDERAL

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAR

NCLEO DE TEORIA E PESQUISA DO COMPORTAMENTO

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM TEORIA E PESQUISA DO COMPORTAMENTO

LABORATRIO DE ECOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO

CONCEPES DE DESENVOLVIMENTO E PRTICAS DE

CUIDADO CRIANA EM AMBIENTE DE ABRIGO NA

PERSPECTIVA DO NICHO DESENVOLVIMENTAL

LAIANE DA SILVA CORRA

Dissertao de Mestrado apresentado ao

Colegiado do Programa de PsGraduao em Teoria e Pesquisa do Comportamento,

da Universidade Federal do Par, como

parte dos requisitos para a obteno do

ttulo de Mestre em Teoria e Pesquisa do

Comportamento.

rea de concentrao: Ecoetologia

Orientadora: Prof. Dr. Llia Ida Chaves Cavalcante

Co-orientadora: Prof. Dr. Celina Maria Colino Magalhes

Belm-Par

2011

SERVIO PBLICO FEDERAL

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAR

NCLEO DE TEORIA E PESQUISA DO COMPORTAMENTO

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM TEORIA E PESQUISA DO COMPORTAMENTO

LABORATRIO DE ECOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO

DISSERTAO DE MESTRADO

Concepes de desenvolvimento e prticas de cuidado criana em ambiente de

abrigo na perspectiva do Nicho Desenvolvimental

Candidata: LAIANE DA SILVA CORRA

Data da Defesa: 28 de abril de 2011

Resultado:

Banca Examinadora:

Prof. Dr Llia Ida Chaves Cavalcante (UFPA), Orientadora

Prof. Dr. Celina Maria Colino Magalhes (UFPA), Co-Orientadora

Prof. Dr. Dbora Dalbosco Dell'Aglio (UFRGS), Membro

Prof. Dra. Solange Aparecida Serrano (UNAERP), Membro

A Flor que vem me lembrar

A Flor que quase igual

A Flor que muito pensa

A Flor que fecha o Sol

Parece a mesma flor

S muda o corao

Quando se unem so

A Flor que inspirou a cano

Bela Flor, pouco disse

Gmea Flor, que cresceu no Rio

(Bela Flor Maria Gad)

As nossas crianas... Nossas flores!

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais por estarem comigo antes e durante essa conquista e que estaro

ao meu lado em toda a minha trajetria enquanto filha, pessoa e profissional. Obrigada

pelo carinho, amor, ateno, colo e afeto... Muito Obrigada, amo vocs!

Ao meu av (in memorin), por me incentivar e acreditar que um dia eu ia chegar

l... Obrigada vozinho!

A todos os meus familiares que estiveram ao meu lado dando fora, incentivo e

apoio, especialmente s minhas irms, tias e tios... Obrigada!

Aos meus amigos que longe ou perto foram co-autores neste trabalho, que

compreenderam minhas faltas e ausncia... Obrigada gente!

Aos meus filhos de corao, minhas Belas Flores, Eduarda (afilhada) e Felipe,

que me fizeram sorrir e ser criana... Obrigada meus amores!

Ao Fbio, namorado, companheiro e amigo, que compreendeu minha ausncia e

me incentivou incondicionalmente... Obrigada amor!

A todos os integrantes do Laboratrio de Ecologia do Desenvolvimento (LED),

alunos e professores, que se tornaram a minha base de apoio... Obrigada grupo!

Aos meus pares, Ligia Negro e Mayara Sindeaux que alm de colegas de

mestrado, foram amigas, companheiras e tambm co-autoras deste trabalho... Obrigada

meninas!

Um agradecimento mais que especial a professora Dr. Celina Magalhes pela

oportunidade de insero no meio acadmico e cientfico, pelas orientaes e

ensinamentos na caminhada desde a graduao, por fazer de mim uma profissional em

constante desenvolvimento e por acreditar na minha competncia....Obrigada Celina!

professora Dr. Llia Cavalcante, minha orientadora, que oportunizou o

desenvolvimento desta pesquisa, pelas orientaes, supervises, confiana e dedicao

com que conduziu este trabalho. Obrigada por fazer de mim uma profissional

apaixonada pelo que faz e por acreditar que mesmo com dificuldades e tropeos agente

sempre chega onde deseja... Obrigada Llia!

Luciana Maciel, Silvia Martins, Rgine de Cssia e Luza Silva pelas

contribuies na coleta e andamento desta pesquisa. Ao Edson Junior pelas inmeras

conversas e trocas de experincias durante a espera de se fazer uma observao ou

entrevista no abrigo, esperas longas e prazerosas. Obrigada meninos, este trabalho

nosso!

Tamires Rufino, pela incansvel contribuio na coleta e desenvolvimento

desta dissertao, obrigada pelo apoio e ensinamentos trocados, assim como pela

amizade e companheirismo.

Ao Espao de Acolhimento Infantil pela oportunidade de execuo e realizao

deste estudo, aos funcionrios que me acolheram como parte integrante deste Nicho.

minha Bela Flor, Raquel, e as demais crianas do abrigo com quem aprendi

que um sorriso, um abrao e caminhar junto podem tornar o dia mais alegre. E que o

amanh reserva algo muito especial e bom, que colore e faz bem, como diz a cano.

O meu eterno agradecimento as EDUCADORAS do abrigo que se permitiram

ser observadas, por me acolher como um membro que tambm faz parte deste Nicho,

por oportunizar o meu crescimento enquanto pessoa, pesquisadora e profissional.

Obrigada pela confiana em compartilhar angstias, medos, receios, dvidas e alegrias,

por me fazer acreditar que mesmo frente s condies adversas possvel sim

proporcionar um ambiente de qualidade s nossas Belas Flores.

Ao Programa de Ps-Graduao em Teoria e Pesquisa do Comportamento e

todos os professores, por oportunizar mais esta etapa da minha carreira acadmica.

A CAPES, pela concesso da bolsa de mestrado, a qual possibilitou a realizao

deste trabalho.

Enfim, agradeo todos que de alguma forma contriburam na execuo deste

trabalho e que fazem parte como elementos fundamentais no meu Nicho de

Desenvolvimento. Muito Obrigada!

SUMRIO

RESUMO............................................................................................................................................. i

ABSTRACT......................................................................................................................................... ii

APRESENTAO............................................................................................................................ 01

Captulo 1. INTRODUO....................................................................................................... ......... 03

1.1. Cuidados primrios em contexto familiar e institucional: importncia e implicaes para o

desenvolvimento................................................................................................... ............................. 03

1.1.1. Cuidado familiar: o papel dos pais e das relaes iniciais na infncia........................... 03

1.1.2. Cuidado institucional: a figura do cuidador substituto e a convivncia em abrigo........ 06

1.2. O abrigo como Nicho Desenvolvimental: uma perspectiva ecolgica do desenvolvimento da

criana cuidada em instituio............................................................................................................ 13

1.2.1. O ambiente fsico e social.............................................................................................. 15

1.2.2. A psicologia dos cuidadores.......................................................................................... 17

1.2.3. As prticas de cuidado.................................................................................................... 27

1.3. O Nicho Desenvolvimental em estudo: a indissociabilidade entre ambiente, concepes e

prticas de cuidado............................................................................................................................. 32

OBJETIVOS................................................................................................................. ....................... 38

Geral........................................................................................................................................ 38

Especficos.................................................................................................................. ............. 38

Captulo 2. MTODO......................................................................................................................... 39

2.1. Participantes................................................................................................................ ............. 39

2.2. Caracterizao da Instituio................................................................................................... 39

2.3. Ambiente Fsico....................................................................................................................... 41

2.4. Instrumentos e Materiais.......................................................................................................... 47

2.4.1 Inventrio do Conhecimento de Desenvolvimento Infantil KIDI............................... 47

2.4.2. Registro de Memria...................................................................................................... 49

2.4.3. Folha de Registro Padronizada....................................................................................... 49

2.5. Procedimento............................................................................................................................ 49

2.5.1. Autorizao judicial e do Comit de tica para realizao do estudo na instituio..... 50

2.5.2. Reconhecimento do ambiente institucional e dos participantes..................................... 50

2.5.3. Perodo de habituao................................................................................................... .. 50

2.5.4. Coleta de dados............................................................................................................... 51

2.5.4.1. Adaptao e Aplicao do KIDI............................................................................ 51

2.5.4.2. Realizao das Sesses Observacionais................................................................ 51

2.6. Anlise dos Dados.................................................................................................................... 52

2.6.1. Anlise dos dados do KIDI......................................................................................... .... 52

2.6.2. Anlise dos dados observacionais................................................................................... 53

Captulo 3. CONHECIMENTOS E CONCEPES SOBRE DESENVOLVIMENTO INFANTIL

ENTRE EDUCADORES DE ABRIGO......................................................................... 57

Captulo 4. ROTINAS E PRTICAS DE CUIDADO EM AMBIENTE DE ABRIGO.................. 77

4.1. Descrio da Rotina Institucional: o dia-a-dia de trabalho das educadoras............................ 77

4.2. Descrio da Rotina das Prticas: situaes caractersticas do cuidado e promotoras de

desenvolvimento.......................................................................................................................... 84

4.2.1. Rotina das prticas de brincadeira................................................................................. 86

4.2.2. Rotina das prticas de alimentao............................................................................... 88

4.2.3. Rotina das prticas de sono........................................................................................... 89

4.2.4. Rotina das prticas de banho......................................................................................... 90

4.3. Descrio das Prticas na Rotina Institucional: anlise comparativa entre dois grupos de

educadoras............................................................................................................ ............................. 93

4.3.1. Prticas de cuidado na brincadeira................................................................................ 94

4.3.2. Prticas de cuidado na alimentao............................................................................... 106

4.3.3. Prticas de cuidado no sono.......................................................................................... 116

4.3.4. Prticas de cuidado no banho. ...................................................................................... 124

CONSIDERAES FINAIS............................................................................................................ 134

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS............................................................................................... 141

ANEXOS............................................................................................................................................ 150

ANEXO 1 - Inventrio do Conhecimento de Desenvolvimento Infantil KIDI......................... 151

ANEXO 2 Folha de Registro Padronizada dos Dados Observacionais.................................... 159

ANEXO 3 Autorizao da 1 Vara da Infncia e Juventude da Comarca da Capital............... 160

ANEXO 4 Autorizao do Comit de tica em Pesquisa em Seres Humanos do Instituto de

Cincias da Sade da Universidade Federal do Par....................................................................... 161

ANEXO 5 Termo de Consentimento Livre e Esclarecido......................................................... 162

i

Corra, L. S. (2011). Concepes de desenvolvimento e prticas de cuidado criana

em ambiente de abrigo na perspectiva do Nicho Desenvolvimental. Dissertao de

Mestrado. Programa de Ps-Graduao em Teoria e Pesquisa do Comportamento.

Belm-Pa: Universidade Federal do Par, 172 pginas.

RESUMO

H tempos a psicologia tem se ocupado de pesquisas com foco no cuidado institucional.

Este interesse fez aflorar no campo cientfico a necessidade de se estudar os ambientes

coletivos de cuidado da criana na perspectiva do Nicho Desenvolvimental, onde o

ambiente fsico e social, as prticas de cuidado comumente adotadas na rotina

institucional, alm da psicologia dos que cuidam so subsistemas que devem ser

entendidos de forma integrada e indissocivel. Este estudo teve como objetivo

investigar, assim, aspectos do ambiente fsico e social, conhecimentos e concepes

sobre desenvolvimento infantil, rotinas e prticas de cuidado presentes entre educadores

de uma instituio de acolhimento infantil. Fizeram parte do estudo 100 educadores

(95% da populao) responsveis pelo cuidado dirio a crianas encaminhadas a um

espao de acolhimento infantil. Os educadores responderam ao Knowledge of Infant

Development Inventory (KIDI), instrumento composto por 75 questes, dividido em

quatro categorias: prticas de cuidado, sade e segurana, normas e aquisies e

princpios do desenvolvimento. Deste universo, foram selecionados 10 educadores, que

compuseram as sesses observacionais, com destaque para as rotinas de cuidado na

instituio, sendo que o critrio principal para essa escolha foi seleo com base no

desempenho obtido no KIDI. Das sesses observacionais foram selecionados momentos

em que cada educador esteve envolvido com situaes de banho, alimentao, sono e

brincadeira. A partir destes relatos foram extrados episdios que ilustram prticas de

cuidado e atividades de rotina na instituio. Os resultados mostram que entre estes

profissionais a maioria mulher (99%), com mais de 35 anos, possui filhos, completou

o ensino mdio e tem mais de 24 meses de experincia como educador. No que

concerne ao resultado da aplicao do instrumento, v-se que 66% dos educadores

acertaram em mdia 66 questes. Deste modo, apresentaram desempenho superior a

50% de acerto em todas as categorias avaliadas pelo instrumento, entretanto os

melhores resultados foram obtidos em assertivas relacionadas s prticas de cuidado

(80%) e princpios do desenvolvimento (68%). A escolaridade se apresentou como

varivel significativa no nvel de conhecimento. No que se refere rotina institucional

verifica-se que o espao conta com um conjunto de normas e regras que so seguidas

pelos educadores e crianas, em horrios e locais determinados. Observou-se ainda que

o conhecimento sobre desenvolvimento infantil se apresenta como varivel relevante

para a qualidade das interaes e do cuidado oferecido criana, especialmente nas

situaes de brincadeira e sono. Identificou-se que os educadores alteram a rotina,

modificam o ambiente fsico e social e adaptam suas prticas de acordo com a demanda

e estrutura da situao, visando promover o seu bem estar, mas tambm o da criana,

dando-lhe possibilidade de alterar o ambiente de acordo com seus interesses. Alm de

proporcionar criana experincias que resgatam a comunidade cultural ao qual fazem

parte. A partir dos resultados encontrados neste estudo, verifica-se o quanto se faz

importante conhecer estes espaos enquanto um Nicho de Desenvolvimento que guarda

mtua relao entre ambiente, prticas e a psicologia dos cuidadores, e que, portanto

devem ser entendidos nas suas diversas dimenses.

Palavras-chave: acolhimento institucional, concepes sobre desenvolvimento, prticas

de cuidado, educadores-crianas.

ii

Corra, L. S. (2011). Development concepts and practices in children care environment

under the perspective of the Developmental Niche. Dissertao de Mestrado. Programa

de Ps-Graduao em Teoria e Pesquisa do Comportamento. Belm-Pa: Universidade

Federal do Par, 172 pginas.

ABSTRACT

Psychology has engaged in researches with target in institutional care. This interest

makes growing in the scientific field necessity of studies to take care about collective

environments whereas Developmental of Niche, where the social and physical

environment, care practices that are often used in daily routines, besides who use

psychology for taking care should be understood from integrated and close way. This

study has for the purpose of investigating social and physical environment aspects,

knowledge and concepts about infant development, routines and care practices present

among educators in institution for children. This study is compound for 100 educators (95% of the population) who are responsible for children daily care of the children

referred to a child care space.The educators answered through an individual interview

based and structured in Knowledge of Infant Development Inventory (KIDI), instrument

consists of 75 questions, divided into four categories: care practices, health and safety,

rules and acquisitions, and principles of development. In this sample, 10 educators were

selected and they compound the observation sessions, having importance for care

routines at institution, and main criterion about this choice was a selection based in the

performance obtained by KIDI. Of all observational sessions were selected moments

that each educator got involved in situations like baths, food, sleep and plays. Those

situations were extracted episodes that show care practices and routine activities. The

results showed the most of professionals are women (99%), more than 35 years old, and

they have kids and high school finished, and also more than 24 months of experience

like educator. The results of instrument application showed 66% of educators got about

66 questions right. Thus, outperformed the 50% of performance at all categories

analyzed by instrument, however the best results were extracted in statements related to

care practices (80%) and principles of development (68%). The scholar level has not

showed like an important variable. In institutional routine was checked the institucional

care counts on rules collection that are followed by educators and children, with

schedules and determinate places. It was noticed that knowledge about infant

development is a relevant variable for quality of interactions and cares offered to child.

Could be identified educators change routine, change the social and physical

environment and adapt their practices following the demand and structure of situation,

looking for to promote their well-being, and especially children well-being, give them

possibilities to chance their environment and make individual choices in agreement with

their own necessities. Besides is offered to institucional care children many experiences

can rescue children to their cultural community, especially in situations of play and

sleep. The results found in this study show how are important knowing about

institucional care like spaces as a Development of Niche. It keeps a mutual relation with

environment, practices and psychology of educators. This way it can be put in debate

the importance to understand about institutional care in many points of view, and

therefore must be understood in its various dimensions.

Key-words: institucional care, conceptions of development, care practices, educators-

child.

1

APRESENTAO

Investigaes sobre as diferentes formas de cuidado criana em seus primeiros

anos de vida tm ensejado inmeras publicaes na rea do desenvolvimento infantil.

Atualmente, muitos so os livros e as revistas que procuram mostrar como lidar com os

bebs e quais as formas mais saudveis de cuidar e educar os filhos, orientando os pais e

demais cuidadores na adoo de medidas que promovam o desenvolvimento saudvel e

integral da criana.

ampla a discusso em torno da importncia para o desenvolvimento da

estruturao de ambientes especializados, da informao dos cuidadores, da orientao

adequada de suas prticas e condutas no trato com a criana, alm de processos

cognitivos, perceptuais, motor e fsico que caracterizam os primeiros anos de vida

(Goldschmied & Jackson, 2006).

Em muitos casos, essa discusso tem sido ancorada em estudos que expem

concepes e exemplos de prticas que reproduzem o senso comum, conforme apontam

Seild-de-Moura e Ribas (2004). Quando se discute a importncia dos cuidados

primrios e as estratgias adequadas para o atendimento s necessidades da criana,

geralmente so deixados de lado diversos elementos que fazem parte desse processo,

prevalecendo na literatura de divulgao e outros meios de informao uma viso

superficial e descontextualizada desses conhecimentos e prticas, assim como suas

implicaes para o desenvolvimento infantil. Isso representa um conjunto de prticas

que dependem de variaes do contexto social e cultural de cada cuidador.

Os cuidados primrios tm sido compartilhados por vrios adultos (Rogoff,

2005) que trazem consigo uma gama de conhecimentos adquiridos do senso comum, da

sua histria de vida familiar e profissional. Esta ateno comumente envolve de modo

especial os pais e/ou demais membros da famlia, mas tambm outras pessoas presentes

na sua rede social de apoio, a exemplo de profissionais em instituies de cuidado

coletivo, como creches e abrigos. Nesse sentido, pode-se supor que as crianas esto

submetidas influncia de tantas modalidades de cuidados primrios quantas so as

pessoas e as instituies que delas se ocupam ao longo do dia. Este fato, em particular,

torna ainda mais complexo o debate em torno dessa questo.

Neste estudo, pretende-se discutir a importncia dos cuidados primrios em

contextos onde a ateno no perodo inicial do desenvolvimento dada por instituies

e cuidadores profissionais em substituio famlia. E mais detidamente ampliar o foco

2

das anlises em torno dos elementos que constituem o Nicho Desenvolvimental da

criana em instituio de acolhimento, destacando o valor do ambiente, da psicologia e

das rotinas e prticas de cuidado para o desenvolvimento. A pesquisa se pauta pelo

desafio de investigar aspectos envolvidos na qualidade dessa modalidade de cuidado de

modo a discutir possveis implicaes de aspectos do ambiente fsico e social, das

concepes sobre desenvolvimento e de prticas adotadas pelos cuidadores, para o

desenvolvimento infantil.

Este estudo se prope, assim, investigar aspectos que constituem o Nicho

Desenvolvimental de crianas cuidadas em instituio de acolhimento, tendo como

referencial terico as contribuies apresentada por Harkness e Super (1992, 1994,

1996, 2005). Para tanto, sero apresentados questes mais gerais que envolvem o

cuidado oferecido pela famlia e em instituies que se ocupam de crianas em situao

de vulnerabilidade. Em seguida, sero resgatados os trs elementos constituintes deste

modelo terico e a importncia destes para o desenvolvimento de crianas que vivem

nessas instituies. E por fim, apresenta o espao de acolhimento infantil enquanto

Nicho de Desenvolvimento a partir de dados sobre o ambiente, os conhecimentos e as

prticas dos cuidadores como elementos inter-relacionados e indissociveis.

3

Captulo 1. INTRODUO

1.1. Cuidados primrios em contexto familiar e institucional: importncia e

implicaes para o desenvolvimento.

Os cuidados primrios tm sido associados ao momento em que se estabelecem

interaes cuidador-beb que so cruciais ao desenvolvimento infantil. Para Keller

(2007), trata-se efetivamente de um sistema de cuidados primrios que visa prover o

beb de alimento, abrigo e condies de higiene, tendo como principal funo assegurar

a sobrevivncia e minimizar o desconforto. nesse contexto relacional que os bebs

podem experimentar a segurana e a confiana no contato com o outro.

Vrios outros autores (Bronfrenbrenner, 1996; Harkness & Super, 1992, 1996;

Rogoff, 2005; Super & Harkness, 1999) tm destacado a influncia do cuidador e suas

prticas na fase inicial do desenvolvimento, qualquer que seja o ambiente fsico e social

onde a criana esteja com ele em interao.

Como trao comum a diferentes comunidades culturais e suas formas

particulares de conceber e realizar os cuidados primrios tem-se a primazia da famlia

no cumprimento de rotinas que buscam assegurar a sobrevivncia da criana e sua

insero na sociedade. Como contexto primeiro com a qual o indivduo se relaciona e

porta de entrada para o mundo social, a famlia tem sido historicamente a principal

responsvel pelos cuidados iniciais criana.

1.1.1. Cuidado familiar: o papel dos pais e as relaes iniciais na infncia.

Os bebs humanos, em comparao com outras espcies, possuem um longo

perodo gestacional e maturao lenta. O que se observa que so bebs indefesos e

pouco desenvolvidos, que necessitam de ateno e cuidado por parte do outro, pois no

tm estrutura e condies de sobreviver sozinhos (Carvalho, 1987, 1988). Este perodo

inicial de necessidade de cuidado e ateno fundamental no processo de adaptao do

indivduo no ambiente social que constitui o seu Nicho de Desenvolvimento (Harkness

& Super, 1992). Por essa razo, os adultos visam garantir a sobrevivncia e o

desenvolvimento satisfatrio do beb, preocupando-se com a constituio de um

ambiente de cuidado voltado para atender as suas demandas nesse momento decisivo,

4

alm de funcionarem como modelo de ao e referncia para as crianas (Brazelton &

Sparrow, 2003).

Ao proverem contingncias para a sobrevivncia do beb, os cuidadores

despendem um alto custo fsico e psicolgico, sendo que todo o investimento parental, o

envolvimento e a constante ateno oferecida pelo adulto se prolongam por anos,

compreendendo todo o curso do desenvolvimento (Vieira & Prado, 2004). vlido

ressaltar que o investimento feito pelos cuidadores no se limita a atividades voltadas

para a satisfao de necessidades fsicas. Estas relaes iniciais envolvem tambm a

construo e a evoluo de habilidades fsicas, sociais e culturais. Para Keller (2007) a

base do desenvolvimento psicolgico se forma neste perodo inicial proporcionado pelo

investimento parental.

Carvalho (1987, 1988), Ribas e Seidl de Moura (2004) e Vieira e Prado (2004)

consideram que as caractersticas do beb humano, como a dependncia fsica e o longo

perodo de imaturidade, geram uma tendncia ao estabelecimento de relaes

privilegiadas com um ou poucos adultos individualmente. Antes mesmo do nascimento,

percebe-se o envolvimento e a importncia do cuidador para o beb, principalmente da

figura materna. Ainda no perodo embrionrio, h evidncias de uma comunicao

direta entre me-beb.

Para Vieira e Prado (2004), o comportamento parental ativado durante a

gestao e se intensifica aps o nascimento da criana. Entretanto, as condies

necessrias para a manuteno deste vnculo ponto de discusso. Esses autores

acrescentam que a proximidade entre me e beb se configura como elemento crtico

para a responsividade materna. Estas interaes primrias so elementos fundamentais

para o desenvolvimento do indivduo e para a construo e manuteno do apego. O

estabelecimento de relaes afetuosas por parte do cuidador base para um crescimento

intelectual e social saudvel da criana, o que afirma Brazelton e Greenspan (2002).

De acordo com Carvalho (1987) a relao inicial que o beb mantm com

figuras especficas, especialmente com a me, exerce ainda a funo de mediador

primrio da insero do beb no mundo social e cultural. Por sua vez, Berger e

Luckmann (1979) situam essa discusso no contexto do que denominam de socializao

primria. Afirmam que essa justamente a primeira experincia de socializao que o

indivduo vive durante a infncia, no sentido que possibilita o seu reconhecimento como

membro da sociedade. Assim, a criana conta e necessita do outro para se inserir no

5

mundo social. E a famlia, especialmente os pais, exerce um papel chave nesse processo

como um todo.

Dados da literatura mostram que o papel do cuidador e as diferentes formas de

ateno criana podem variar amplamente, dependendo do contexto e da cultura em

que as pessoas envolvidas esto inseridas (Harkness & Super, 1992, 1996; Rogoff,

2005; Super & Harkness, 1999). As diferentes formas de cuidado so pontos de

investigao tambm nos trabalhos de Keller (2007). A autora destaca que as prticas de

cuidado adotadas pelos cuidadores podem assumir funes diversas, dependendo da

situao e do grupo social no qual estejam inseridos. Nesse sentido, o foco das anlises

em sua teoria so os sistemas parentais, as formas diferenciadas de cuidado criana,

privilegiando a entrevista e a observao das interaes entre cuidador e criana em

ambiente familiar.

Outro terico do desenvolvimento que discute os efeitos das interaes primrias

e da vida em famlia para o desenvolvimento da criana Bowlby (2002). Para esse

autor, a estimulao e o fornecimento de uma base segura pelos pais ou cuidadores no

ambiente familiar, propicia criana o estabelecimento de vnculos afetivos saudveis.

Nesse sentido, o cuidado em famlia e as interaes que este oferece criana nos

primeiros anos de vida, exercem papel decisivo em seu desenvolvimento.

Piccinini, Frizzo e Marin (2007) pontuam que investigar as interaes dos pais

com o beb envolve a identificao do comportamento infantil e dos pais, com nfase

para aspectos da sensibilidade, estimulao cognitiva e afeto. Para esses autores,

pesquisas que tomam por base a anlise dessas estruturas trazem importantes

contribuies para o entendimento das interaes me-beb. Alm deles, vrios outros

pesquisadores tm investigado estas interaes em fases iniciais e distintos momentos

do desenvolvimento do beb, enfatizando as relaes primrias como questes

fundamentais para a produo e a difuso de conhecimentos acerca do desenvolvimento

infantil (Ribas & Seidl de Moura, 1999; Seidl de Moura, Ribas, Seabra, Pessa,

Nogueira, Mendes, Rocha & Vicente, 2008).

A partir do exposto verifica-se a importncia que os autores ora apresentados

do figura dos cuidadores e das interaes iniciais no contexto familiar. Harkness e

Super (1992, 1996) quando discutem a noo de Nicho Desenvolvimental, destacam

tambm o valor dos cuidadores primrios para o estudo do desenvolvimento infantil,

especialmente de suas prticas e crenas, bem como do ambiente fsico e social em que

6

esto inseridos. Entendem, assim, que no se pode negar a importncia dessas pessoas e

de suas prticas quando se estuda o tema de maneira consistente.

Diante da importncia que o cuidador exerce no processo desenvolvimental,

considera-se que, em condies normais, a famlia apresentada como protagonista da

principal modalidade de cuidado criana pequena. Entretanto, ao longo dos tempos os

cuidados primrios, por razes diversas, foram tomando formas diferenciadas, onde se

observa que, alm da famlia, outras instituies passaram a exercer funo de prover

assistncia s crianas nos perodos iniciais da vida. Entre as instituies que foram

organizadas para atender necessidade de cuidados especiais na chamada primeira

infncia, tm-se as creches e os abrigos.

valido, portanto, conhecer um pouco mais acerca da importncia e do papel

desempenhado por essas instituies. A sesso que se segue aborda a questo dos

ambientes coletivos de cuidado, especialmente o abrigo, destacando a polmica em

torno dos efeitos que este tipo de ambiente e modalidade de cuidado coloca ao

desenvolvimento da criana.

1.1.2. Cuidado institucional: aspectos histricos, a figura do cuidador

substituto e a convivncia em abrigo

De acordo com Bronfenbrenner (1996), alm do ambiente familiar, a instituio

de acolhimento infantil serve como um contexto abrangente para o desenvolvimento

humano nos primeiros anos de vida. Nesse sentido, o autor destaca que estudos

realizados neste meio possibilitam investigaes sobre o impacto de um ambiente

primrio diferenciado sobre o processo desenvolvimental.

Em termos comparativos, o autor reala ntidas diferenas no tipo de cuidado

oferecido em famlia e na instituio. No primeiro caso, identifica a famlia como uma

estrutura informal, cujas cuidadoras so amadoras, j o abrigo caracterizado por ele

como formal e com o estabelecimento de uma funo profissional por parte de quem

cuida. Outra diferena marcante apontada em seu trabalho a proporo adulto/criana,

visto que, em casa, so os pais lidando com poucas crianas e de idades diferenciadas, e

no abrigo, so diversos cuidadores trabalhando em esquema de turnos, com vrias

crianas e em grande parte da mesma idade. Diante do exposto, admite-se claramente a

diferena existente entre os dois contextos, bem como a importncia e as implicaes de

cada um para o desenvolvimento infantil.

7

Rizzini e Pilotti (2009) mostram que, no Brasil, a responsabilidade em assistir

estas crianas envolveu distintos setores da sociedade, em especial as instituies que

desenvolviam aes de cunho caritativo-religioso ou mesmo filantrpicas. Um destes

setores era a Igreja, atravs do trabalho dos jesutas voltado evangelizao. Nas

instituies criadas e mantidas por essa ordem religiosa, o cuidado s crianas estava

direcionado disciplinarizao desse segmento social, aos ensinamentos de normas e

costumes cristos, dentre outros objetivos. At meados do sculo XVIII, os jesutas

eram considerados os principais agentes educacionais. Outro setor que tambm deteve o

cuidado s crianas foram os senhores de engenho, visto que eram os donos dos

escravos e mantinham o poder e a tutela dos mesmos e de seus filhos, pois eram

elementos importantes para a economia da poca. Em 1521, as Cmaras Municipais

ficaram encarregadas do cuidado a estas crianas, em parceria com a Santa Casa de

Misericrdia (Rizzini & Rizzini, 2004).

Filhos nascidos fora do casamento e a condio de pobreza eram os principais

motivos para o abandono, sendo as crianas muitas vezes deixadas pelos pais em

logradouros pblicos, na porta de igrejas e casas. Diante dessas condies, em 1726, a

Santa Casa de Misericrdia implanta a Roda dos Expostos no Brasil. Surge no perodo

colonial, criada com recursos advindos de doaes da nobreza. As primeiras cidades a

implantar a Roda foi Salvador, Rio de Janeiro e Recife. O sistema era composto por um

cilindro giratrio disposto na parede e onde a criana era deixada, permitindo que a

identidade de quem a entregou no fosse descoberta. Esta modalidade de atendimento

surgiu na busca de oferecer condies de sobrevivncia s crianas ditas rejeitadas,

posto que a estrutura do sistema garantia o anonimato sobre a origem das crianas e de

quem as deixou, preservando a honra e a imagem da famlia (Rizzini & Rizzini, 2004).

No decorrer da histria, os abrigos passam a exercer o papel de guardies e

provedores dos cuidados necessrios s crianas em situao de desamparo social e

familiar. Rizzini e Pilotti (2009) destacam que a prtica do recolhimento de crianas

ditas sem famlia, possibilitou a construo de uma cultura institucional, cuja funo

principal era prover prticas de assistncia a menores em situao de abandono.

Diante das inmeras mudanas ocorridas no Brasil desde o perodo colonial,

passando pelo perodo imperial e republicano at os dias atuais, a assistncia infncia

desvalida sofreu mudanas gradativas. Um grande marco nessas mudanas se d em

meados da dcada de 1980, visto que, nesse perodo, a cultura institucional passa a ser

8

questionada em termos da qualidade do atendimento s crianas. (Rizzini & Rizzini,

2004; Rizzini & Pilotti, 2009)

A partir de 1990, com a aprovao do Estatuto da Criana e do Adolescente

(ECA), reafirma-se o interesse superior da criana, como um princpio que deve orientar

a poltica de proteo especial nas situaes em que h riscos para o desenvolvimento

infantil. De acordo com essa legislao, o abrigo surge como uma medida de proteo

criana que teve seus direitos violados, conforme aponta o Artigo 7 do ECA (1990), que

toda criana e adolescente tm direito vida e sade, mediante a efetivao de

polticas sociais pblicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e

harmonioso, em condies dignas de existncia.

Da implementao do ECA at hoje passaram-se 20 anos e ainda se observa que

as mudanas ocorrem de forma lenta e gradual. No que se refere produo acadmica,

v-se alguns avanos considerveis, especialmente no mbito nacional, como os

trabalhos desenvolvidos por Alexandre e Vieira (2004), Cavalcante, Magalhes e Pontes

(2007, 2009), Martins e Szymanski (2004) e Siqueira e DellAglio (2006). Todavia, o

foco particularmente centrado nos efeitos da institucionalizao e das relaes

criana-criana. Em menor proporo esto os trabalhos que focalizam a figura do

educador como agente importante no processo desenvolvimental da criana que vive

nesses espaos (Marques, 2006; Mor &Sperancetta, 2010).

Para Bronfenbrenner (1996), os trabalhos na rea tendem a se debruar sobre os

efeitos psicolgicos para a pessoa que vive nesses ambientes, sem uma preocupao

com os elementos constituintes do ambiente imediato, envolvendo as atividades

desenvolvidas no cotidiano, os papis desempenhados e as relaes estabelecidas entre

cuidador-criana e criana-criana, no contexto em que esto inseridos. Em

levantamento feito por Cavalcante (2008), verifica-se que grande parte dos estudos na

rea ressalta os prejuzos da convivncia prolongada nesse tipo de ambiente.

Os efeitos da institucionalizao na infncia so abordados em estudo

longitudinal realizado por OConnor, Rutter, Beckett, Keaveney, Kreppner (2000).

Nele, os autores avaliaram os efeitos da privao sobre o desenvolvimento inicial.

Tomaram parte do estudo trs grupos de crianas, sendo estas adotadas por famlias

residentes no Reino Unido. No primeiro grupo reuniram 111 crianas entre 0 e 24 meses

de idade, com histrico de privao de ordem material e emocional. Aproximadamente

51% das crianas eram do sexo masculino. O segundo grupo abrangeu 48 crianas

romenas que foram adotadas por famlias oriundas do Reino Unido, com idades entre 24

9

e 42 meses, sendo 65% do sexo feminino. E o terceiro grupo era composto por 52

crianas, nascidas no Reino Unido, sem qualquer experincia anterior de privao.

Avaliou-se o desenvolvimento global das crianas comparando os trs grupos, tais

como: a) medidas antropomrficas; b) avaliao da percepo, memria, expresso

verbal e quantitativa; c) aspectos ligados a alteraes nos comportamentos sociais,

linguagem, psicomotricidade fina e grossa; d) percepo dos pais adotivos quanto ao

aparecimento de problemas comportamentais na fase pr-escolar, a freqncia s aulas e

o tipo de instituio de ensino que a criana estudava (pblica ou privada).

Entre outros resultados, o trabalho revelou que as crianas expostas

precocemente privao severa podem apresentar dficits cognitivos elevados quando

comparadas a outras que no tiveram a mesma experincia. Para estes autores, estudar

os efeitos da privao para o desenvolvimento infantil abrange questes fundamentais,

como o destaque aos perodos crticos do desenvolvimento, as bases da resilincia

infantil em contextos adversos e os fatores de risco envolvidos no processo.

Ainda sobre os efeitos da privao Beckett, Maughan, Rutter, Castle, Colvert,

Groothues, Kreppner, Stevens, OConnor e SonugaBarke (2006) investigaram crianas

com histrico de privao severa na infncia e que foram adotadas. Avaliou-se a

gravidade e a persistncia dos efeitos da privao precoce sobre o desenvolvimento

cognitivo de adolescentes que foram cuidados em ambiente familiar aps os seis meses

de idade ou no segundo ano de vida. Os resultados identificam que os efeitos da

privao persistiram at os 11 anos de idade. Verificaram tambm que entre as crianas

que foram adotadas aps os seis meses de vida apresentaram nveis cognitivos inferiores

quando comparados com as que foram adotadas antes dos seis meses.

Entre os efeitos da privao familiar alm dos aspectos cognitivos e

neurolgicos, problemas de ordem afetiva, especialmente no que se refere construo

de laos afetivos, tambm so questes amplamente discutidas quando se investiga o

assunto. De acordo com Bowlby (2006b), a criana quando separada da famlia nos

primeiros anos de vida tem seus vnculos e laos afetivos comprometidos e isso tem

implicaes para a sua sade mental. Em outro trabalho Bowlby (2002) d nfase

relao cuidador-criana, destacando que a quebra deste lao e a possibilidade de no

ter alternativa de cuidado, pode ser decisiva, especialmente nos nove primeiros meses

de vida. Para esse autor, os efeitos da privao materna podem exercer influncia no

desenvolvimento da personalidade e da capacidade de estabelecer relaes com outras

pessoas. Entretanto, considera que quando se estuda esses efeitos, aspectos como a

10

idade com que a criana perde o vnculo com o cuidador, o tempo e o grau da privao,

bem como fatores hereditrios devem ser elementos de investigao. Ao que

Bronfenbrenner (1996) acrescenta: o rompimento do vnculo afetivo tende a ser mais

intenso na segunda metade do primeiro ano de vida, visto que, neste perodo que se

intensificam as relaes de apego com uma figura de referncia especfica.

De todo modo, tais autores conferem destaque suposio de que prejuzos

comumente associados ao convvio prolongado em ambiente institucional podem no

ser decorrentes apenas da privao da convivncia em famlia, mas existem outros

fatores que so considerados fundamentais para produzir efeitos negativos ao

desenvolvimento da pessoa, tais como interaes limitadas entre cuidador-criana e um

ambiente pobre em estimulao. A pobreza relacional pode trazer grandes prejuzos ao

desenvolvimento da criana (Yunes, Miranda & Cuello, 2004).

A literatura destaca que alm da quebra dos vnculos familiares, outros

elementos exercem impactos decisivos no processo de desenvolvimento das crianas

que vivem em abrigo. Em relao aos efeitos da vida institucional unnime na

literatura a noo de que a criana, quando separada da famlia por qualquer motivo,

necessita de cuidado diferenciado e ateno especial, pois a quebra deste vnculo pode

trazer inmeras conseqncias para o seu desenvolvimento. Neste sentido, as

instituies de abrigo assumem um papel central no processo desenvolvimental da

criana e adolescentes que vivem nesses espaos. (Siqueira & DellAglio, 2006).

Investigaes com foco na qualidade do ambiente para o desenvolvimento

saudvel das crianas que vivem nessas instituies tm ensejado diversas pesquisas

(Alexandre & Vieira, 2004; Cavalcante, 2008).

Alexandre e Vieira (2004) investigaram relaes de apego entre crianas que

vivem em situao de abrigo. Participaram do estudo 14 crianas, entre trs e nove anos

de idade. Utilizou-se para a coleta de dados a tcnica do sujeito focal e de registro de

comportamento. Os autores consideraram categorias de comportamento consideradas

como indicadores de apego, a saber: comportamento fsico, olhar, rir, aproximar, falar e

estender o brao. Os resultados mostram que as crianas mantm relaes afetivas umas

com as outras. Os irmos mais velhos mostraram-se responsivos s solicitaes de afeto

e cuidado em relao aos irmos mais novos. Com relao ao gnero foi registrada

interao significativa entre as meninas mais velhas com os meninos mais novos; no

que se refere brincadeira social, identificou-se esta como uma situao favorvel ao

estabelecimento das interaes afetivas. Os autores concluem que em funo da falta de

11

um adulto significativo, as crianas institucionalizadas tendem a formar relaes de

apego umas com as outras e com os profissionais que delas cuidam.

No que concerne a influncia do ambiente e das prticas adotadas pelos

cuidadores, destaca-se o trabalho de Motta, Falcone, Clark e Manhes (2006). A

pesquisa investigou a relao existente entre prticas educativas e os nveis de empatia

com 77 crianas, sendo oito vivem em um abrigo de longa permanncia, 29 estavam em

abrigo de curta permanncia, e 40 residiam com a famlia. O dado foi coletado por meio

da Escala de Empatia para Crianas e Adolescentes, entrevista baseada em cena de

vdeo que visavam eliciar sentimentos de raiva, tristeza, alegria e medo, assim como

foram realizadas entrevistas com as crianas no que se refere s prticas educativas

oferecidas pelos cuidadores. Em relao s prticas, as respostas das crianas foram

classificadas em positivas e negativas. Os resultados apontam que as crianas que

viviam com a famlia mostraram-se mais hbeis do que as crianas dos abrigos em

identificar a emoo apresentada nos vdeos. As prticas dos cuidadores familiares

foram indicadas como mais positivas entre as crianas que moravam em lares. De um

modo geral, consideram que crianas educadas no lar familiar revelam ser mais

empticas. Ressaltam ainda que os cuidadores familiares so descritos como mais

calorosos, menos punitivos e mais interessados nas atividades desempenhadas pelas

crianas. E por fim, concluem que sensibilidade, afetividade e responsividade dos

cuidadores podem favorecer o desenvolvimento do comportamento emptico das

crianas, da mesma forma que a empatia favorea as prticas positivas. Esses achados

trazem uma discusso em termos da influncia do ambiente institucional e da figura do

cuidador no processo de desenvolvimento infantil, especialmente da empatia.

Em se tratando de aspectos do ambiente e das prticas de cuidado, influenciando

no comportamento e desenvolvimento de crianas em contexto institucional, Cavalcante

(2008) investigou crianas de zero a seis anos de idade em um abrigo pblico na cidade

de Belm, estado do Par, analisou a dimenso ecolgica do cuidado institucional a

partir da percepo da dinmica interacional entre subsistemas que constituem o abrigo

como contexto de desenvolvimento humano. Para isso, contemplou o ambiente fsico e

social, a psicologia e a prtica dos cuidadores, bem como analisou fatores contextuais

que influenciam a configurao de padres de interao pr-social e a emergncia de

comportamentos de cuidado entre os pares. Os dados foram coletados por meio de

consulta a fontes documentais, aplicao de escala de avaliao de ambiente

(ITERS/Infant Toddler Environment Rating Scale), entrevista semiestruturada com os

12

funcionrios da instituio e observao do comportamento das crianas. Participaram

do estudo 287 crianas acolhidas entre os anos de 2004 e 2005, 102 educadores e outros

funcionrios do abrigo (19), bem como 10 sujeitos focais entre um ano e 11 meses e trs

anos e trs meses de idade.

Os resultados do estudo indicam que 9,4% das crianas viviam no abrigo de um

a seis anos e mais de um tero teria sido encaminhadas instituio com menos de um

ano de idade. No que concerne ao universo de educadoras, 45,09% considerava que suas

expectativas iniciais com o trabalho no abrigo no haviam sido realizadas, uma vez que

pouca ou nenhuma orientao lhes fora dada quando do seu ingresso na instituio e

permaneciam sem superviso e apoio institucional s atividades dirias aps o primeiro

ano. Em termos da avaliao do ambiente, os elementos contextuais capazes de

proporcionar cuidado estruturante e estvel criana no estavam sendo assegurados

pela instituio. No que se refere aos comportamentos observados a partir das interaes

dos sujeitos focais com seus parceiros, verifica-se que a freqncia com que os

comportamentos foram emitidos e a quem eles foram dirigidos sofreram forte influncia

de variveis como sexo, idade, tempo de permanncia, relao de parentesco e o

ambiente onde foram gerados.

Dentre as principais questes apontadas pela autora, ressalta-se a importncia de

se investigar traos da psicologia dos educadores que das crianas cuidam e os aspectos

do ambiente de trabalho considerados satisfatrios para que a relao entre cuidador-

criana possa se desenvolver de forma adequada, visto que a satisfao profissional est

diretamente ligada qualidade do trabalho desenvolvido.

Dessa maneira, avaliar instituies de acolhimento como ambientes coletivos de

cuidado criana em situao de vulnerabilidade social, significa analisar os diversos

elementos envolvidos na estruturao desse ambiente especializado, assim como em que

medida as instituies observam concretamente os preceitos legais que orientam o

cumprimento dessa modalidade de atendimento social. no mbito dessa discusso

que se identifica ser fundamental conhecer os elementos que fazem parte do contexto da

criana que vive em instituies de acolhimento. Isso mostra o quanto se faz oportuno o

estudo do abrigo enquanto Nicho Desenvolvimental, com destaque, neste trabalho, s

caractersticas do seu ambiente fsico e social da criana, conhecimentos, concepes e

prticas dos cuidadores.

13

1.2. O abrigo como Nicho Desenvolvimental: uma perspectiva ecolgica do

desenvolvimento da criana cuidada em instituio

Olhar o abrigo como um contexto de desenvolvimento significa compreender

que as crianas e adolescentes que l vivem so pessoas em desenvolvimento, sendo que

esse processo se d sempre em contexto (Bronfenbrenner, 1996). Nesse sentido,

compreende-se que a instituio de abrigo pode e deve ser estudada como um ambiente

ecolgico. Para tanto, toma-se como referncia, em particular, a noo de Nicho

Desenvolvimental proposto por Harkness e Super (1992, 1994), visando conhecer

caractersticas peculiares aos subsistemas que constituem o abrigo como ambiente

primrio e ecolgico dessa criana.

Esta surge da tentativa de pesquisadores integrarem aspectos da psicologia do

desenvolvimento e da antropologia, visto que, a primeira, tradicionalmente, tendia a

estudar a criana fora do contexto, j a segunda enfatizava o contexto em si e o outro

socializado. Assim, a juno destas duas perspectivas tericas se constri de forma a

olhar criana em seu contexto a partir de uma nica anlise (Harkness & Super, 1992).

A proposta do modelo do Nicho de Desenvolvimento compreende, portanto, interfaces

entre a criana e a cultura.

A discusso sobre a constituio do Nicho Desenvolvimental aqui apresentada

est baseada na literatura prpria da psicologia transcultural representada por Super

(1990) e na perspectiva ecolgica de Bronfenbrenner (1996). De acordo com Super e

Harkness (1999) o eixo central do estudo a criana enquanto indivduo e, s com base

nesse pressuposto, possvel olhar para fora da criana, para o seu mundo cotidiano.

Destacam ainda que, embora essa abordagem analise o Nicho para um indivduo

especfico, sua aplicao envolve uma descrio generalizada dos padres recorrentes

de uma criana em uma comunidade cultural.

Para Harkness e Super (1992, 1994, 1996, 2005) e Super e Harkness (1999), o

contexto da criana visto como um Nicho Desenvolvimental, analisando suas

estruturas culturais. A noo de Nicho apresentada a partir de trs componentes: 1) o

contexto fsico e social no qual a criana vive; 2) os costumes cultural e historicamente

estabelecidos relacionados aos cuidados e criao das crianas; e 3) a psicologia dos que

cuidam.

O ambiente compreendido por Super e Harkness (1999) a partir das

configuraes fsicas e sociais da vida diria da criana. Os objetos e pessoas ao seu

14

redor exercem um papel significativo ao seu desenvolvimento, bem como os tipos ou as

interaes que possam ocorrer. Os costumes culturais envolvem as prticas de cuidado

oferecidas s crianas pelos que delas cuidam. Referem-se, pois, a tcnicas de proteo,

ensino e de socializao usadas por membros daquele contexto, na medida em que

tendem a estar integradas comunidade cultural que os cuidadores a tomam como

bvias, comuns, como uma forma natural de agir, sem precisar contest-las, visto que

esto arraigadas vida cotidiana. Desse modo, os costumes incluem as rotinas de

cuidados dirios, ensino de determinadas atividade ditas apropriadas de acordo com a

idade, que proporcionam a prtica ou a preparao para a vida adulta, os ritos de

passagem, dentre outros. A psicologia dos cuidadores, por sua vez, engloba crenas,

valores e suas etnoteorias acerca da infncia, do desenvolvimento e da educao. Este

subsistema organiza no apenas o comportamento dos cuidadores em relao s

crianas, mas tambm muitas decises maiores, como as configuraes que so mais

adequadas para crianas de certa idade ou sexo. Para esses autores, o estudo das

etnoteorias parentais implica em investigar as necessidades das crianas e a natureza do

desenvolvimento, mas tambm a adequao de prticas e metas de socializao

especficas que visam o desenvolvimento saudvel da criana a partir da cultural da qual

faz parte.

Em termos de representao estrutural do modelo, os subsistemas estariam

envolvendo o indivduo que se encontra no centro do Nicho Desenvolvimental. Todas

essas dimenses apresentadas pelos autores exerceriam influncia entre si e se

articulariam no tempo, uma vez que o indivduo se adapta ao meio e este ao indivduo,

caracterizando um sistema dinmico e em constante evoluo. Este estudo se props,

assim, a pensar o desenvolvimento da criana abrigada a partir de caractersticas do

ambiente fsico e social em que vive, das prticas de cuidado adotadas pelos educadores

e suas concepes ou etnoteorias que compem a chamada psicologia dos cuidadores.

Nesta perspectiva, compreende cada um dos elementos acima apontados como um

sistema inter-relacionado, onde as crenas influenciam as prticas e vice-versa, e ambos

transformam e so transformados pelo ambiente fsico e social.

Para balizar a discusso aqui apresentada, sero apresentados os trs subsistemas

que compem a estrutura do Nicho Desenvolvimental e as implicaes de cada uma

destas estruturas para o desenvolvimento infantil, especialmente no caso de crianas que

vivem em ambiente institucional.

15

1.2.1. O ambiente fsico e social

Esta sesso tem por objetivo apresentar estudos que procuram discutir a

importncia das caractersticas do ambiente fsico e social para o desenvolvimento

infantil, sobretudo em instituies de abrigo.

no mbito desta discusso que se prope descrever e analisar as caractersticas

ambientais presentes em diversos contextos de desenvolvimento que tm motivado

importantes pesquisas na atualidade. Super (1976) investigou aspectos relacionados com

a precocidade de crianas africanas em relao ao seu desenvolvimento motor. Para

tanto, participaram da pesquisa 64 bebs e suas famlias, oriundos de uma comunidade

rural do Qunia. Verificou-se que os bebs quenianos adquiriram mais cedo habilidades

motoras como sentar e andar, quando comparados com os padres americanos.

Identificou tambm que estas habilidades eram ensinadas especificamente pelos

cuidadores e praticadas no decurso das suas rotinas dirias. Desse modo, o autor destaca

que o padro especfico do desenvolvimento motor nessa comunidade deve ser

entendido no contexto do ambiente fsico e social das crianas. As influncias podem

ser agrupadas sob a forma de ensino especfico de determinadas habilidades pelos pais

ou como os efeitos das prticas adotadas na vida diria. O estudo mostrou que 80% das

mes quenianas ensinavam seus bebs a sentar, levantar e andar, o que pode explicar o

fato de que, neles, tais habilidades esto mais avanadas do que nas americanas. O

estudo identifica o quanto aspectos do ambiente fsico e social podem estar relacionados

a determinadas questes do desenvolvimento. Constata-se, tambm, a relevncia que as

prticas adotadas pelos cuidadores exercem sobre este processo. No mbito dessa

discusso, o ambiente familiar, nas mais diversas culturas, amplamente discutido

tambm na literatura por Keller (2007) e Rogoff (2005).

Entretanto, em contextos institucionais especficos, investigaes que tratam da

influncia do ambiente sobre o desenvolvimento infantil so questes pouco presentes

na literatura. Dessa maneira, estudos que concebem as instituies de abrigo como

ambiente coletivo de cuidado so ainda mais raros, especialmente as que lidam com

crianas de zero a seis anos.

Diante da escassez de dados na literatura que se propem a avaliar aspectos da

qualidade do ambiente fsico e social das instituies, verificase que estudos sobre

creches tm oferecido materiais e anlises que podem subsidiar esse debate. Vale

destacar que apesar das diferenas existentes entre esses dois ambientes, ambos so

16

configurados por estrutura no-familiar e se caracterizam pela convivncia intensa entre

coetneos, alm de completa ausncia de espao individualizado, conforme aponta

Cavalcante (2008).

Souza e CamposdeCarvalho (2005) avaliaram instituies dedicadas ao

cuidado dirio de crianas de 0 a 30 meses de idade por meio da Infant/Toddler

Environment Rating Scale (ITERS). Para as autoras o instrumento engloba uma viso

ampla de ambiente, visto que inclui a dimenso fsica do espao, as inter-relaes

possveis entre adulto-criana, a estrutura do programa e as necessidades da equipe.

Neste sentido, ultrapassa a descrio de elementos estruturais e objetos/equipamentos

disponveis.

Em pesquisa desenvolvida por Cavalcante (2008) em abrigo infantil para

crianas, a autora avaliou a partir da aplicao da ITERS, aspectos relativos ao espao

fsico, s rotinas de trabalho, s interaes adultocriana e criana-criana em dois

dormitrios da instituio. De um modo geral, os dados mostram que os elementos

relacionados ao cumprimento de prticas direcionadas ao oferecimento de cuidado

estruturado e estvel criana foram considerados inadequados Assim como no

atendem de forma satisfatria a faixa de idade em questo.

A partir dos resultados encontrados por Cavalcante (2008), nota-se que mesmo

diante de leis e normas que devem orientar o atendimento a crianas e adolescentes em

instituies de abrigo, alguns elementos que compem a qualidade do ambiente esto

sendo negligenciados. Para a autora, estes ambientes devem ser estudados enquanto

contexto de desenvolvimento, considerando-se tanto aspectos da criana quanto dos

cuidadores e do ambiente. E ressalta que o abrigo pode e deve ser concebido como

contexto de desenvolvimento para a criana abrigada, visto que materializa as

condies reais onde realiza o seu viver e desenvolve competncias decisivas para a

formao de personalidade e sociabilidade prprias (p.41).

A partir do exposto, compreender o processo desenvolvimental considerando os

contextos fsico, social, histrico e cultural do indivduo uma questo que merece

ateno especial nos estudos que se propem investigar o desenvolvimento infantil.

Contudo, frente ao ambiente institucional, outro elemento tambm se configura

enquanto contexto ecolgico: as concepes dos cuidadores. Assim, o prximo tpico

traz a discusso a cerca da importncia de se conhecer o papel desses profissionais e

como as suas ideias se estruturam enquanto um dos subsistemas que compe o Nicho de

Desenvolvimento.

17

1.2.2. A psicologia dos cuidadores

Pesquisas que investigam crenas, concepes, ideias, valores e conhecimentos

parentais tm despertado o interesse de pesquisadores brasileiros do desenvolvimento

infantil (Lordelo, Fonseca & Arajo, 2000; Melchiori & Biasoli-Alves, 2001; Ribas,

Seidl de Moura & Bornstein, 2007; Seidl de Moura, Ribas, Piccinini, Bastos,

Magalhes, Vieira, Salomo, Silva & Silva, 2004; Silva, Vieira, Seidl de Moura &

Ribas, 2005).

No geral, os estudos relacionados acima foram inspirados ou esto em fina

sintonia com outros que despontaram no cenrio internacional nas ltimas dcadas,

como os trabalhos de Goodnow (1988), Harkness e Super (1992, 1994, 1996), Miller

(1988), Pascaul, Schulthess, Galperin e Bornstein (1995), Super e Harkness (1999),

dentre outros.

Entretanto, em que pese os inmeros trabalhos sobre o tema observa-se que h

ainda certa divergncia no uso dos termos, levando os autores a empregarem vrias

definies para estudar o assunto em tela. Harkness e Super (1996) utilizam o termo

sistemas de crenas ou etnoteorias parentais, destacando seu significado como ideias

relacionadas s atividades dirias e julgamentos, escolhas e decises adotadas pelos

pais, sendo estes aspectos norteadores de seus comportamentos. Acrescentam que os

valores esto implcitos nas metas, j os objetivos e as prticas nas aes. Incorporam

um conjunto estruturado de valores que vo guiar e estruturar a vida da criana e da

famlia, considerando-os frutos de experincias individuais enquanto pais e adquiridas

culturalmente por geraes. Tais valores so produto, assim, de diferentes formas de

cuidar e educar os filhos, experimentadas ao longo da vida. Para esses autores, tanto as

crenas quanto as prticas, assim como a estruturao do cuidado infncia nos seis

primeiros anos, esto intimamente ligados cultura e ao contexto de desenvolvimento

da criana.

Goodnoow (1988) destaca que, no estudo do desenvolvimento infantil,

considerar apenas o comportamento ou a prtica dos pais como elementos decisivos ao

desenvolvimento, colocam ao pesquisador o risco de deixar de lado pontos

fundamentais quando relacionados ao cuidado e criao dos filhos. Isso porque os pais

so pessoas que vivem em uma cultura, onde interpretam eventos, constroem e

compartilham ideias e valores, que acabam por influenciar suas aes e prticas. Nesse

sentido, ideias, valores e crenas, assim como comportamentos e prticas no podem ser

18

entendidos como esferas opostas, mas sim pontos que se complementam e caminham

juntos.

O estudo sobre crenas vm possibilitar um entendimento maior sobre como se

do as relaes. Goodnoow (1988) emprega o termo ideias, destacando ser esta uma

nomenclatura mais adequada do que crenas, visto que marcada pela noo de

convico e certeza, como um conhecimento e um valor esttico, construdo e acabado.

Considera que as ideias so passveis de mudana em funo dos indivduos serem

altamente sensveis a novas informaes, ajustando noes e conceitos a fim de sanar

conflitos de diversas ordens.

Miller (1988) destaca que os estudos sobre crenas parentais envolvem quatro

nveis de investigaes: as crenas que os pais possuem acerca das crianas; a origem

das crenas parentais; a relao entre as crenas e os comportamentos dos pais; e por

fim, a correlao entre crenas parentais e desenvolvimento infantil.

Divergncias sobre o uso do termo so explcitas, em contrapartida, se destaca

notvel consenso de alguns autores a respeito da relao entre crenas e prticas. So

vrios os que consideram que quando se estuda desenvolvimento infantil se faz

necessrio pensar em prticas e crenas, valores e atitudes, reconhecendo-os como

aspectos inseparveis, sendo estes influenciados e influenciadores do contexto fsico e

social em que os indivduos esto inseridos (Goodnoow, 1988; Harkness & Super 1992;

Miller, 1988; Ribas, Seidl de Moura & Bornstein, 2007; Seidl de Moura, Ribas,

Piccinini, Bastos, Magalhes, Vieira, Salomo, Silva & Silva, 2004; Silva, Vieira, Seidl

de Moura & Ribas, 2005)

Em pesquisa nos peridicos cientficos nacionais e internacionais identificou-se

que o tema amplamente discutido, seja com a abordagem de crenas e prticas de

mes e pais, seja pela avaliao do desempenho de cuidadores na criao dos filhos,

alm da ntida influncia de variveis scio-demogrficas no conhecimento acerca do

desenvolvimento infantil, entre outros temas.

Pascaul, Schulthess, Galperin e Bornstein (1995) investigaram as ideias de mes

argentinas sobre seus filhos. O estudo comparou mes pertencentes a nveis scio-

econmicos distintos e local de residncia (urbano e rural). Os resultados apontam para

diferenas significativas entre as ideias que as cuidadoras possuem da sua prpria

conduta e de seus esposos, principalmente na dimenso social e educativa. Identificam a

influncia do nvel scio-econmico, da idade das mes e do lugar de moradia na

formulao das suas ideias sobre desenvolvimento.

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Piavanotti (2007) estudou as metas de socializao infantil e crenas sobre prticas

de cuidado parental, entre mes catarinenses. Participaram 50 mes com um filho de zero a

trs anos. Para a coleta de dados foram utilizados questionrio socioeconmico, entrevista

semi-estruturada e escala de crenas sobre prticas parentais. A anlise dos dados mostrou

que, apesar da diferena de escolaridade entre as participantes, no houve diferena

significativa entre as metas de socializao infantil, por elas esboadas. Por outro lado, a

escolaridade da me est relacionada com a valorizao de prticas de cuidado parental. O

autor destaca que o comportamento parental se assemelha em diferentes culturas no que se

refere sua funo, devido adaptabilidade em termos evolucionistas. O comportamento

parental varia em sua forma de expresso em virtude das particularidades do contexto no

qual se manifesta. Conclui que a partir desse sistema multidimensional de metas de

socializao e crenas sobre prticas de cuidado no qual a escolaridade parece ter um papel

especfico de atuao, as mes estabelecem a dinmica relacional com suas crianas, tendo

a tarefa de decidir o melhor caminho para garantir o desenvolvimento satisfatrio de seus

descendentes.

Suizzo (2002) investigou os modelos culturais e as crenas sobre criao de filhos

entre pais e mes parisienses. A autora baseou-se em trs questes principais no seu

estudo, a saber: (1) Que prticas de criao os pais parisienses mais valorizam e quais

consideram menos importante?; (2) Existem dimenses bsicas dessas crenas que

constituem um modelo cultural de parentagem dos pais? E se existem, quais crenas

parentais esto associadas a que modelo?; (3) Os modelos culturais de parentagem variam

de acordo com as caractersticas scio-demogrficas, como nvel educacional, idade e

gnero dos pais. Participaram da pesquisa 278 mes e 177 pais da regio metropolitana de

Paris. Para a coleta de dados, utilizou-se o Questionrio de Crenas e Ideias sobre

Crianas e Bebs, o qual composto por duas sesses de 25 itens cada, sendo a primeira

referente a prticas de cuidado com crianas com at um ano e a segunda envolvendo

prticas de cuidado com crianas entre um e trs anos de idade. Os resultados mostram que

as prticas mais valorizadas incluem estimulao cognitiva, higiene bsica, proximidade

interpessoal, promoo da individualidade e comportamentos associados com a

socializao para interao pblica. Entre as prticas pouco valorizadas pelos pais

franceses, destaca-se a atitude de deixar seus bebs sozinhos em casa e de dormir junto

com a criana.

Em termos de modelos culturais de parentagem, identificou-se a partir da anlise

dos dados trs modelos bem definidos: (1) estimular a criana, que envolve prticas

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dirigidas exposio da criana a diferentes estmulos; (2) apresentao apropriada,

relacionado a prticas que garantem que a criana aparecer bem comportada e limpa,

caracterizadas por aes de higiene e regras de socializao; (3) responsividade e

vnculo, associada a prticas voltadas para o atendimento das necessidades da criana,

englobando crenas relacionadas alimentao da criana, no deixar a criana chorar, ou

determinar os horrios de se alimentar e dormir, entre outras. Na dimenso apresentao

os pais religiosos obtiveram escores mais altos do que os pais no religiosos. O nvel de

escolaridade foi negativamente associado a prticas voltadas para a estimulao e

apresentao, indicando que esses modelos de parentagem foram mais valorizados por

pais com maior escolarizao. No fator responsabilidade no se obteve correlao

significante com escolarizao, nem com renda. Os dados sugerem que o nmero de filhos

e nvel educacional estiveram associados estimulao da criana. As mes valorizam

mais a responsividade s necessidades da criana e a manuteno de uma relao prxima

do que os pais, assim como os pais mais velhos se comparados com pais mais novos. Em

relao apresentao apropriada em pblico, os pais religiosos a valorizam mais, tal qual

os pais mais jovens. Ao passo que os pais de escolaridade elevada lhes atriburam menor

importncia quando foram entrevistados.

Estudos realizados pelo Grupo de Pesquisa Interao Social e Desenvolvimento,

coordenado pela professora Maria Lucia Seidl de Moura, na mesma direo dos estudos

apresentados, investigam concepes de desenvolvimento usando o KIDI. O instrumento

foi originalmente publicado por Macphee (1981), sendo traduzido e adaptado por Ribas,

Seidl de Moura, Gomes e Soares (2000). Este inventrio pode ser usado como um

indicador ou uma ferramenta de diagnstico para os cuidadores e ultilizado tambm para

avaliar os programas de educao dos mesmos. Tem como base terica que o

conhecimento dos cuidadores sobre desenvolvimento infantil pode influenciar o

comportamento e as prticas parentais de educao das crianas, o que guarda semelhana

com a proposta do modelo de Nicho Desenvolvimental apresentada como norte terico

desta pesquisa. O KIDI um instrumento de 75 itens, que foi desenhado para obter

informaes completas sobre o conhecimento dos cuidadores sobre prticas parentais,

processos de desenvolvimento infantil, e normas de comportamento, envolvendo aspectos

gerais do comportamento das crianas na promoo de sade, situaes de sono, banho e

alimentao. De um modo geral o instrumento tem sido usado como uma importante

ferramenta para aferir conhecimento de cuidadores sobre desenvolvimento infantil

abrangendo diversas esferas envolvidas na rotina diria de cuidados criana.

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Seidl de Moura, Ribas, Piccinini, Bastos, Magalhes, Vieira, Salomo, Silva e

Silva (2004) investigaram conhecimentos sobre desenvolvimento infantil de mes,

relacionando-os ao nvel scio-econmico das famlias, idade e escolaridade das mes,

idade e sexo dos bebs e aspectos culturais do contexto envolvido. Participaram do

estudo 405 mes primparas de seis regies brasileiras, com mdia de idade de 26 anos e

filhos com at um ano de idade. Para a avaliao do conhecimento acerca do

desenvolvimento infantil foi utilizado o Inventrio do Conhecimento do

Desenvolvimento Infantil (KIDI), alm de aspectos como educao, ocupao e nvel

scio-econmico.

O estudo mostrou que mais de 50% das mes possuam uma ocupao profissional,

oscilando de inferior at de superior prestgio social. Verificou-se um alto ndice de

correlao entre o nvel de escolaridade das mes e o conhecimento que estas possuem a

cerca do desenvolvimento infantil. Em relao ocupao das genitoras no se obteve uma

correlao significativa com o conhecimento sobre desenvolvimento. Tanto a escolaridade

materna quanto o local de residncia das mes, neste caso, situada no centro urbano,

tiveram impacto significativo sobre o resultado do KIDI. Em cinco das cidades

investigadas, foi percebido efeito significativo da varivel idade dos bebs e escolaridade

das mes, apenas em Porto Alegre no se fez sentir essa influncia nitidamente. Nesse

sentido, o estudo mostra que aspectos como escolaridade, local de residncia das mes e

idade dos bebs parecem fundamentais quando se investiga cognies parentais e

conhecimento sobre desenvolvimento infantil.

O KIDI tambm foi aplicado em estudo desenvolvido por Silva, Vieira, Seidl de

Moura e Ribas (2005), onde identificaram as concepes de 109 mes primparas sobre o

processo de desenvolvimento infantil de seu filho, analisando a influncia de variveis

scio-demogrficas no conhecimento sobre desenvolvimento. Foi utilizado o KIDI para

aferir o conhecimento das entrevistadas acerca do tema, bem como aspectos como

educao, ocupao e nvel scio-econmico. Dentre os principais resultados do estudo,

identificou-se que a idade das mes variou de 18 a 46 anos, com filhos de 1 a 12 meses e

pais com idade de 18 a 51 anos. A maioria (42%) possua o ensino superior completo ou

incompleto, e mais de 60% possuam atividade remunerada. Em relao ao perfil dos pais,

constatou-se que a maior parte (38%) tinha o ensino mdio completo ou incompleto, sendo

que a escolaridade e o nvel de ocupao das mes foram superiores ao dos pais.

Identificou-se tambm que quanto maior a idade da me mais elevada tende a ser o seu

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grau de instruo, alm de que quanto maior o grau de escolaridade melhor a sua posio

no mercado de trabalho.

No que concerne aferio do conhecimento sobre desenvolvimento, o menor

ndice de acertos foi obtido na subescala princpios e o maior ndice esteve associado

categoria sade. Em termos gerais, as entrevistadas obtiveram uma mdia de 58% de

acertos. Identificou-se que quanto maior o prestgio social de ocupao das mes maior o

seu conhecimento relacionado ao cuidado parental, bem como quanto maior o grau de

escolaridade maior o conhecimento sobre cuidado parental e normas. No foram

apuradas diferenas no nvel de conhecimento de mes de meninas quando comparadas s

mes de meninos.

A partir dos dados descritos acima, ressalta-se a importncia do contexto scio-

econmico e cultural na expresso do conhecimento que mes possuem a respeito do

desenvolvimento infantil, alm do uso de instrumentos que visem aferir conhecimentos,

apresentam-se como de grande relevncia no sistema de crenas. As diferenas sociais e

culturais tm se revelado variveis relevantes sobre as cognies, visto que o nvel

econmico e a escolaridade alta podem conferir ao cuidador outro patamar de

compreenso para lidar com a criana que est sob os seus cuidados. Estudos tm

revelado que quanto maior o nvel-scio econmico e a escolaridade maior tende a ser o

conhecimento sobre desenvolvimento infantil (Pascaul, Schulthess, Galperin &

Bornstein, 1995; Ribas, Seidl de Moura & Bornstein, 2007; Seidl de Moura et al.,

2004).

Ribas, Seidl de Moura e Bornstein (2007) estudaram cognies maternas acerca

de temas relacionados ao desenvolvimento humano e maternidade com 66 mes

primparas cariocas. Para avaliar o conhecimento das mes a cerca do desenvolvimento

infantil foi utilizado o KIDI. Na avaliao do modo como definem ou representam o

papel parental foi empregada a verso em portugus do instrumento de avaliao da

Autopercepo do Papel Parental (Self-Perception of Parental Role Instrument -

SPPR). Este instrumento tem como objetivo avaliar aspectos do desempenho das mes

relacionados competncia, satisfao, investimento e integrao com outros papis

sociais de adultos. Foram investigadas igualmente as atribuies, o fracasso e o sucesso

do comportamento parental em atividades de criao dos filhos, empregando o

Questionrio sobre Atribuies Parentais (PAQ). Os dados sugerem que as mes

apresentam um nvel razovel de conhecimento do desenvolvimento infantil. Mostraram

que quanto maior a escolaridade e o status socioeconmico maior o conhecimento do

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desenvolvimento infantil. Associado a isso, investigou-se outros aspectos interessantes

utilizando-se a Escala de Desejabilidade Social de Marlowe-Crowne (Marlowe-Crowne

Social Desirability Scale, MC-SDS), caracterizada por 33 afirmaes para avaliar a

tendncia do participante a responder questionrios de forma socialmente aceitvel. E

por fim, analisou-se a influncia de variveis como escolaridade, status ocupacional e

scio-econmico.

Dentre os principais resultados, constatou-se que as mes acertaram em mdia

60% das questes contidas no KIDI, representando um nvel considerado razovel de

conhecimento a cerca do desenvolvimento infantil. As percepes foram

significativamente menos positivas quando comparadas com mes norte-americanas,

exceto em relao percepo do prprio investimento. No geral, avaliaram as causas

externas como mais importantes que as internas em termos de fracasso e sucesso nas

atividades. Em relao s variveis escolaridade e status scio-econmico no perfil das

mes, verificou-se uma correlao positiva com o conhecimento sobre

desenvolvimento, ou seja, quanto maior a escolaridade e o status scio-econmico das

cuidadoras maior tende a ser seu conhecimento a respeito do desenvolvimento infantil.

Pelo exposto, os estudos que usaram o KIDI para investigar concepes de

cuidadores vm mostrar a importncia apresentada na literatura das cognies parentais

para a compreenso da psicologia dos cuidadores, bem como as trajetrias construdas

pelo desenvolvimento infantil. Estes trabalhos consideram evidente a influncia de

variveis scio-demogrficas sobre o nvel de conhecimento acerca do desenvolvimento

infantil. Nesse sentido, entende-se que essas variveis devem ser pontos de investigao

quando se estuda o assunto, buscando identificar o seu nvel de influncia sobre as

crenas e as prticas adotadas pelos cuidadores em dado contexto de pesquisa.

Os estudos ora apresentados ilustram claramente o que a literatura,

especialmente a brasileira, vem discutindo sobre a presena das crenas parentais nas

trajetrias desenvolvimentais. No que concerne a esta questo, vlido ressaltar que a

ateno s necessidades bsicas da criana tem sido oferecida tambm por outros

cuidadores que no a me. Nesse sentido, a rede de apoio que a famlia recebe tem

aparecido como recurso na criao e desenvolvimento da criana. Harkness e Super

(1992) em estudo feito em uma comunidade rural do Qunia constataram que o cuidado

compartilhado oferecido ao beb favorecia a continuidade de crenas relacionadas

maternidade e ao cuidado infantil. Este resultado mostra a importncia dessa rede de

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apoio na transmisso e na manuteno de crenas no ambiente intrafamiliar por

geraes, alm da reproduo de prticas de cuidado valorizadas naquele meio.

Diante das diversas mudanas ocorridas nas sociedades urbanas e

industrializadas, a mulher deixa de ser cuidadora exclusiva do beb para assumir outros

papis. E para exerc-los, passa a delegar ao outro o cuidado e criao dos filhos.

Entretanto, percebe-se que no somente a famlia estendida que exerce essa funo.

Neste momento, as creches aparecem como forma alternativa de assegurar o cuidado

aos filhos para um contingente cada vez maior de mulheres. Frente a esta questo surge

entre os pesquisadores o interesse em estudar estes espaos (Rossetti-Ferreira, Amorim

& Vitria, 1994) enquanto contextos de desenvolvimento, assim como investigar os

profissionais que l trabalham, suas crenas, valores, concepes, satisfaes,

insatisfaes e as prticas adotadas nas interaes com as crianas que fazem uso deste

ambiente coletivo de cuidado.

Em estudos que trabalham o universo extrafamiliar tm sido realada a presena

da mulher quando se investiga os profissionais responsveis pelo cuidado e ateno a

criana. O universo feminino tem sido marcado por esse tipo de funo social e

modalidade de cuidado, conforme apontam estudos realizadas por Cavalcante (2008),

Cerisara (1996), Gatti e Barretto (2009) e Ongari e Molina (2003). A mulher tem

tambm se destacado quanto escolaridade e posies no mercado de trabalho,

conforme aponta dados do IBGE (2008, 2010) e PNAD (2009).

Estudos que tomam como referncia o ambiente extrafamiliar de cuidado e

ateno criana, marcado pela presena da figura feminina na prestao dos cuidados

primrios, tm realado a pertinncia de tais tendncias sociais. Melchiori e Biasoli-

Alves (2001) investigaram o julgamento de 21 educadoras de creche relacionado s

causas e/ou influncias sobre o temperamento e desempenho de bebs. A partir do relato

das participantes foram destacadas trs categorias de anlise, a saber: inatista,

ambientalista, e interacionista. Identificou-se que as educadoras destacam a me como a

principal fonte de influncia no temperamento dos bebs, delegando a si mesmas um

papel inferior nesse processo. Alm disso, destacam que outras pessoas exercem

influncia sobre o comportamento da criana, como os pares, irmos, pais, avs, dentre

outros.

Outra questo discutida na pesquisa o tipo de influncia exercida pelos

cuidadores, definindo-se como positiva ou negativa. Tanto no aspecto temperamento

quanto no desempenho dos bebs, as educadoras avaliam que a sua conduta enquanto

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profissional exerce influncia sempre ou quase sempre positiva, tal qual a atitude do pai,

dos irmos e dos pares. J a me percebida pela educadora como figura no meio

familiar que exerce tanto influncia positiva quanto negativa.

Verssimo (2001) analisou as representaes acerca do cuidado da criana entre

profissionais que atuam em creche a partir da perspectiva terica das representaes

sociais de Moscovici (1978). Os dados foram coletados com sete coordenadoras e nove

educadoras de trs creches. Com as primeiras, a investigao se deu por meio de

entrevistas individuais semi-estruturadas, j com as segundas foi realizada uma oficina

pedaggica a partir de quatro encontros, enfatizando o que pensam, sentem e fazem em

relao ao cuidado da criana. A partir da anlise de contedo, identificou-se que as

coordenadoras definem o cuidado como as aes realizadas para atender as

necessidades fsicas e emocionais da criana, assim como estabelecer vnculo afetivo.

As educadoras destacam que cuidar prover o bem estar da criana, oferecendo

condies de alimentao, higiene, descanso e segurana fsica, considerando-o como

uma etapa preliminar das atividades pedaggicas, que permite criana sentir-se

disposta a aprender. Ambos os grupos consideram o cuidado profissional diferente do

cuidado familiar, visto que o primeiro se fundamenta em princpios cientficos e rotinas

institucionais.

Nota-se que entre os diversos fatores envolvidos nas crenas dos diferentes

cuidadores, a influncia dos aspectos scio-demogrficos e a escolarizao dos agentes

do cuidado nas diferentes formas de pensar e conceber o desenvolvimento e a infncia.

Outro ponto que vale ressaltar a questo do cuidado compartilhado e as diversas

formas alternativas de atender as necessidades bsicas da criana. Entre os ambientes

coletivos de cuidado, os abrigos surgem como uma modalidade alternativa

convivncia em famlia e guardam a herana histrica dos antigos orfanatos e internatos

para crianas e jovens pobres e abandonados. Assim, na atualidade, o abrigo se torna

um contexto de estudo diferenciado, visto que, nestes ambientes, encontram-se crianas

que experimentam quebra dos vnculos afetivos familiares e esto privadas do convvio

com a me e com os pais. Ademais, como se procurou mostrar, os abrigos so pouco

investigados, especialmente quando se trata de concepes sobre desenvolvimento

infantil de seus agentes.

Marques (2006) investigou a percepo dos cuidadores sociais com relao ao

crescimento e desenvolvimento infantil e o