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1 CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA: POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS Karla Rossana Rodrigues de Souza Orientador(a): Telma Ferraz Leal RESUMO Este artigo trata das concepções de alfabetização presentes na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e na Política Nacional de Alfabetização (PNA). Busca-se nesta pesquisa identificar os pressupostos teóricos com base no mapeamento das abordagens de autores que tratam sobre alfabetização e letramento, a fim de analisar aproximações e distanciamentos entre os postulados teóricos que fundamentam tais documentos e as possíveis implicações didático-pedagógicas no processo de ensino do Sistema Alfabético de Escrita. Quanto aos procedimentos metodológicos, trata-se de uma pesquisa documental, de abordagem qualitativa, na perspectiva da Análise de Conteúdo (Bardin,1977). Os resultados obtidos apontam que predomina na BNCC a concepção de alfabetização na perspectiva do letramento, embora tal documento apresente truncamentos conceituais que sugerem oscilações teórico-metodológicas discutíveis. Quanto à PNA, identifica-se a predominância da abordagem de alfabetização como aprendizagem de um código, distanciando-se, portanto, da proposta pedagógica que perpassa a BNCC. Palavras-chaves: alfabetização, letramento, currículo, prática pedagógica. INTRODUÇÃO Este estudo investigou as possíveis implicações pedagógicas e procedimentais resultantes da nova política para o ensino da leitura e da escrita na alfabetização instituída pelo Governo Federal Política Nacional de Alfabetização (doravante PNA), traçando um paralelo com a Base Nacional Comum Curricular (doravante BNCC), contribuindo para o avanço das pesquisas no campo educacional, com ênfase na alfabetização. A presente pesquisa, portanto, se justifica pela necessidade de se discutir os rumos das políticas educacionais de alfabetização, que dividem opiniões de especialistas, teóricos e docentes. O interesse em pesquisar a BNCC e a PNA, quanto ao processo de alfabetização, surgiu quando a pesquisadora deparou-se com a publicação e a divulgação de tais documentos norteadores em uma conjuntura sociopolítica polarizada e maniqueísta. Neste sentido, enquanto concluinte do curso de Licenciatura Plena em Pedagogia e estudante de uma instituição pública de Ensino Superior, reconheceu a relevância de se debruçar sobre esses documentos, no tocante à problemática da alfabetização e do letramento em uma sociedade tão desigual e excludente como a brasileira.

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CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO NA BNCC E NA PNA: POSSÍVEIS

IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS

Karla Rossana Rodrigues de Souza

Orientador(a): Telma Ferraz Leal

RESUMO

Este artigo trata das concepções de alfabetização presentes na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e na Política Nacional de Alfabetização (PNA). Busca-se nesta pesquisa identificar os pressupostos teóricos com base no mapeamento das abordagens de autores que tratam sobre alfabetização e letramento, a fim de analisar aproximações e distanciamentos entre os postulados teóricos que fundamentam tais documentos e as possíveis implicações didático-pedagógicas no processo de ensino do Sistema Alfabético de Escrita. Quanto aos procedimentos metodológicos, trata-se de uma pesquisa documental, de abordagem qualitativa, na perspectiva da Análise de Conteúdo (Bardin,1977). Os resultados obtidos apontam que predomina na BNCC a concepção de alfabetização na perspectiva do letramento, embora tal documento apresente truncamentos conceituais que sugerem oscilações teórico-metodológicas discutíveis. Quanto à PNA, identifica-se a predominância da abordagem de alfabetização como aprendizagem de um código, distanciando-se, portanto, da proposta pedagógica que perpassa a BNCC.

Palavras-chaves: alfabetização, letramento, currículo, prática pedagógica.

INTRODUÇÃO

Este estudo investigou as possíveis implicações pedagógicas e procedimentais

resultantes da nova política para o ensino da leitura e da escrita na alfabetização

instituída pelo Governo Federal – Política Nacional de Alfabetização (doravante PNA),

traçando um paralelo com a Base Nacional Comum Curricular (doravante BNCC),

contribuindo para o avanço das pesquisas no campo educacional, com ênfase na

alfabetização. A presente pesquisa, portanto, se justifica pela necessidade de se

discutir os rumos das políticas educacionais de alfabetização, que dividem opiniões

de especialistas, teóricos e docentes.

O interesse em pesquisar a BNCC e a PNA, quanto ao processo de

alfabetização, surgiu quando a pesquisadora deparou-se com a publicação e a

divulgação de tais documentos norteadores em uma conjuntura sociopolítica

polarizada e maniqueísta. Neste sentido, enquanto concluinte do curso de

Licenciatura Plena em Pedagogia e estudante de uma instituição pública de Ensino

Superior, reconheceu a relevância de se debruçar sobre esses documentos, no

tocante à problemática da alfabetização e do letramento em uma sociedade tão

desigual e excludente como a brasileira.

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Assim, inicialmente foi feito um levantamento bibliográfico no banco de dados

da CAPES, no Catálogo de Teses e Dissertações. Ao usar o descritor “Política

Nacional de Alfabetização” (PNA) foram encontrados três trabalhos. Apenas um

tratava da PNA do Ministério da Educação lançada em 2019. Na pesquisa identificada

(BUOGO, 2020) foram comparadas quatro políticas educacionais (Diretrizes

Curriculares Nacionais, Base Nacional Comum Curricular, Política Nacional de

Alfabetização (PNA) e Currículo do Território Catarinense). Os resultados expostos

foram que as DCNs, a BNCC e o Currículo do Território Catarinense possibilitam

práticas pedagógicas educomunicativas. Quanto à PNA, a conclusão é que:

a Política Nacional de Alfabetização impossibilita práticas pedagógicas educomunicativas, visto que, das políticas educacionais, é a única em que não houve participação popular na sua elaboração, sendo produzida em gabinete e instituída por meio de decreto. Além disso, prescreve como, quando e o que deve ser trabalhado no processo de alfabetização, desconsiderando o contexto em que vivemos e que a educação é composta por sujeitos ativos, críticos e reflexivos. (p. 114)

Ao utilizar o descritor “alfabetização PNA” conjugados não foi encontrado

nenhum trabalho. Com o descritor “BNCC” foram encontrados 852 trabalhos e “Base

Nacional Comum Curricular”, 836. No entanto, ao conjugarmos os termos

“alfabetização BNCC” e “alfabetização Base Nacional Comum Curricular” não foi

identificado nenhum trabalho.

A PNA, como já foi dito anteriormente, corresponde à atual política nacional de

alfabetização, que é retratada pelo Governo Federal como uma série de ações e

propostas pedagógicas para a formação e prática de professores alfabetizadores.

Para sua divulgação, foi lançado no site do Ministério da Educação (MEC) um caderno

de apresentação com detalhamento da proposta e transcrição do decreto nº

9.765/2019, que a instituiu.

Quanto à BNCC, pode-se compreendê-la como um documento oficial de

caráter norteador e prescritivo, que, segundo seus defensores, contém as

aprendizagens essenciais para todos os estudantes brasileiros. Para esta pesquisa,

foram relevantes seus postulados teóricos e a concepção de alfabetização

predominante em tal documento.

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Partindo disso, tem-se as seguintes questões norteadoras: quais são as

concepções de alfabetização presentes na BNCC e na PNA e quais são os possíveis

desdobramentos didático-pedagógicos?

Isto posto, o objetivo geral da pesquisa, portanto, foi identificar as concepções

de alfabetização subjacentes na PNA e na BNCC, analisando os possíveis

desdobramentos para as práticas pedagógicas.

Já os objetivos específicos corresponderam às seguintes ações:

1. Identificar os pressupostos teóricos sobre alfabetização subjacentes à BNCC e à

PNA, indicando possíveis aproximações e distanciamentos entre os documentos;

2. Mapear posições teóricas de autores que tratam sobre alfabetização, analisando

aproximações e distanciamentos dos pressupostos defendidos na BNCC e na PNA,

pontuando os principais argumentos a favor ou contra tais políticas;

3. Analisar possíveis impactos da BNCC e da PNA para a prática docente nas escolas.

Logo, neste artigo serão discutidos inicialmente os conceitos de alfabetização

e letramento, além de se destacar a possível dicotomia ideológica entre os termos

letramento e literacia.

Além disso, serão apresentados e discutidos os postulados teóricos da PNA,

com ênfase na Ciência Cognitiva da Leitura, e da BNCC, desenvolvendo, dessa forma,

uma análise comparativa dos dois documentos, enfatizando as concepções de

alfabetização presentes em cada um. Será apresentada ainda uma discussão acerca

das relações entre currículo e alfabetização, considerando seus desdobramentos na

prática docente.

Assim, serão ampliadas e discutidas as análises comparativas entre a BNCC e

a PNA com o propósito de se discutir as dimensões curriculares da alfabetização no

Brasil, bem como as políticas educacionais nacionais de alfabetização. Trata-se, logo,

de uma pesquisa documental, de abordagem qualitativa, na perspectiva da Análise de

Conteúdo (Bardin,1977). No tópico a seguir, tais procedimentos e fundamentos

metodológicos serão aprofundados.

METODOLOGIA

A presente pesquisa foi de abordagem qualitativa, do tipo documental, de viés

analítico e interpretativo de dois documentos oficiais: Base Nacional Curricular

Comum - BNCC – e Política Nacional de Alfabetização - PNA, que serão comparados

quanto às concepções sobre alfabetização.

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Trata-se, logo, de uma análise comparativa das características e pressupostos

teóricos de dois distintos documentos oficiais e norteadores de nível nacional e que

se reverberam nos demais documentos oficiais e curriculares estaduais e municipais.

O presente estudo foi pautado nos moldes da Análise de Conteúdo, conforme

os postulados de Bardin (1977), que correspondem a procedimentos metodológicos

para interpretação dos dados coletados em cada documento investigado. Assim, as

etapas para sua execução compreenderam as seguintes ações:

a) Leitura flutuante dos documentos em estudo, para apropriação e contorno de suas

unidades de sentido (pré - análise);

b) Definição das unidades de registro, podendo ser constituídas por palavras, conjunto

de palavras ou temas (exploração do material);

c) Categorização;

d) Tratamento dos resultados (inferência e interpretação).

Sendo assim, a unidade de registro desta pesquisa foi a temática e as

concepções de alfabetização nos documentos pontuados identificadas a partir do

mapeamento dos princípios referentes a cada forma de se conceber o processo de

aprendizagem da leitura e da escrita.

Sobre a pesquisa qualitativa, segundo Moreira (2002), trata-se de um estudo

que tem a interpretação como foco, por isso apresenta certa subjetividade e

flexibilidade, não envolvendo dados engessados. Busca-se, por meio dela,

compreender a situação-problema em análise.

Quanto à pesquisa documental, para Silva et al. (2009):

(...) enquanto método de investigação da realidade social, não traz uma única concepção filosófica de pesquisa, pode ser utilizada tanto nas abordagens de natureza positivista como também naquelas de caráter compreensivo, com enfoque mais crítico. Essa característica toma corpo de acordo com o referencial teórico que nutre o pensamento do pesquisador, pois não só os documentos escolhidos, mas a análise deles deve responder às questões da pesquisa, exigindo do pesquisador uma capacidade reflexiva e criativa não só na forma como compreende o problema, mas nas relações que consegue estabelecer entre este e seu contexto, no modo como elabora suas conclusões e como as comunica. Todo este percurso está marcado pela concepção epistemológica a qual se filia o investigador. (SILVA et al., 2009, p. 4556)

Isto posto, tem-se aqui uma abordagem crítica de documentos oficiais, partindo

de um viés compreensivo e descritivo, inter-relacionando os documentos em questão

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com o contexto histórico-social em que se inserem, tornando o presente estudo mais

amplo e significativo.

Assim, foi feito um levantamento analítico e interpretativo dos dados

investigados, à luz dos principais autores da área, a fim de nortear a presente

pesquisa.

Sobre as relações entre análise documental e a Análise de Conteúdo, Ludke e

André (1986), destacam o seguinte:

Selecionados os documentos, o pesquisador procederá à análise propriamente dita dos dados. Para isso ele recorre geralmente à metodologia de análise de conteúdo, que é definida por Krippendorff (1980) como “uma técnica de pesquisa para fazer inferências válidas e replicáveis dos dados para o seu contexto” (p. 21). Explicitando melhor sua definição o autor afirma que a análise de conteúdo pode caracterizar-se como um método de investigação do conteúdo simbólico das mensagens. Essas mensagens, diz ele, podem ser abordadas de diferentes formas e sob inúmeros ângulos. (LUDKE; ANDRÉ, 1986, p. 41)

Desse modo, foi feita uma análise de todo o texto dos documentos da BNCC e

da PNA, com ênfase na abordagem da temática acerca dos conceitos de alfabetização

e letramento presentes em tais documentos.

Sobre a PNA, tem-se que foi lançado no site do MEC um caderno com suas

características gerais e fundamentação teórica, que, segundo seus organizadores,

correspondem aos estudos que apresentam a alfabetização com “evidências

científicas”. Tal caderno possui 56 páginas e está organizado em três capítulos

teóricos, tais quais: contextualização; alfabetização, literacia e numeracia; e política

nacional de alfabetização. Por fim, tem-se as referências e o decreto que a instituiu.

Quanto à BNCC, a sua versão final foi homologada em dezembro de 2017 e

possui 600 páginas. Encontra-se a seguinte estrutura: inicialmente há os textos

introdutórios acerca de cada etapa de ensino da Educação Básica, seguidos da

apresentação das Competências Gerais. Logo mais encontram-se as Competências

Específicas de cada área do conhecimento e de cada componente curricular, com

suas especificidades para cada etapa da escolarização. Encontram-se ainda as

Habilidades que deverão ser desenvolvidas no decorrer da Educação Básica. Está

organizada em cinco capítulos. Entretanto, na presente pesquisa serão priorizados os

capítulos que tratam da Ed. Infantil e do Ensino Fundamental, com ênfase nos Anos

Iniciais e no componente curricular Língua Portuguesa.

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REFERENCIAL TEÓRICO

As políticas educacionais, tema desta pesquisa, correspondem às diversas

ações públicas e sociais voltadas para os diferentes níveis e modalidades da

educação; não são neutras e evidenciam a noção de educação e aprendizagem

predominantes no momento de sua execução, assim como as concepções sobre

ensino de Língua Portuguesa e, consequentemente, alfabetização, considerando-se

que há diferentes concepções de alfabetização.

Nesta perspectiva, no presente estudo foram discutidas as questões

pontuadas anteriormente, à luz dos postulados teóricos de diversos autores dos

campos da alfabetização e do letramento, além das Neurociências, para que as

reflexões aqui propostas em torno da análise dos documentos em destaque sejam

amplas e abrangentes.

Desse modo, este artigo se organiza em dois tópicos de análise: Currículo e

Alfabetização e Concepções de Alfabetização. Tal organização se justifica pela

necessidade de se discutir a temática proposta através desses dois âmbitos que

dialogam e se articulam, tornando a análise mais reflexiva.

Assim, inicia-se a discussão com a abordagem da relação entre currículo e

alfabetização no tópico a seguir.

1. Currículo e Alfabetização

A palavra curriculum é de origem latina e significa curso ou percurso,

contemplando o modo de fazer e conceber algo. Logo, pode-se compreender currículo

como uma trajetória, um caminho para se atingir determinado objetivo. No contexto

atual, vem sendo usado como um conjunto de ações efetivamente vivenciadas para o

ensino escolar. Em sentido restrito, é utilizado para fazer referência ao documento

curricular, que é um texto, um discurso, um registro do que se propõe para unidade

educativa ou um sistema educacional.

Silva (2005) alerta que, não se pode desassociar o currículo das relações

sociais de poder, ou seja, não é pertinente desconsiderar a hegemonia dos valores

ideológicos do grupo dominante que perpassam os textos curriculares.

Então, ao se refletir acerca das concepções de currículo, põe-se em evidência

os diferentes conflitos e as constantes negociações que as muitas dimensões de

currículo contêm.

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Desse modo, corroboramos com Moreira e Candau (2007), que entendem o

currículo como:

experiências escolares que se desdobram em torno do conhecimento, em meio a relações sociais, e que contribuem para a construção das identidades de nossos/as estudantes. Currículo associa-se, assim, ao conjunto de esforços pedagógicos desenvolvidos com intenções educativas. Por esse motivo, a palavra tem sido usada para todo e qualquer espaço organizado para afetar e educar pessoas, o que explica o uso de expressões como o currículo da mídia, o currículo da prisão etc. Nós, contudo, estamos empregando a palavra currículo apenas para nos referirmos às atividades organizadas por instituições escolares. (MOREIRA; CANDAU, 2007, p. 18)

Nesse sentido, compreende-se o currículo, nesta pesquisa, como o elemento

que propicia a construção de sentidos e significados no processo de ensino-

aprendizagem. Nesse contexto, não se pode conceber currículo como uma listagem

de saberes e prescrições vazias, mas sim como um norte para a execução de um

projeto pedagógico plural e em permanente mudança, responsável ainda pela

construção das identidades e representatividades nos processos pedagógicos.

É preciso ressaltar também que nenhum documento curricular é neutro. Tem-

se, segundo Mesquita, Sá e Leal (2013), que os documentos curriculares podem ser

vistos como espaços de disputa entre as diversas e divergentes concepções de

educação e, por conseguinte, de alfabetização.

Assim, conforme pontuam Mesquita, Sá e Leal (2013), quanto aos documentos

curriculares e as instituições de ensino:

os sujeitos têm que ir negociando/disputando os princípios norteadores do currículo no sentido de articular os direitos de aprendizagem às premências de seus projetos formativos. É importante não naturalizar a escola, tal como ela se apresenta em sua generalidade, como palco daquela “negociação”. Há, como temos argumentado, que se notar a necessidade de se construir estruturas curriculares diferenciadas, que possam ser alteradas de escola para escola e numa mesma escola ao longo do tempo. (MESQUITA; SÁ; LEAL, 2013, p. 13)

Nessa perspectiva, pode-se considerar que o currículo não se resume ao texto

documental prescritivo, nem a particularidades cotidianas de uma instituição de

ensino. Embora, por sua vez, ratifica-se a relevância dos postulados presentes nos

documentos curriculares oficiais para garantir, minimamente, algumas prescrições

comuns quanto ao que deve ser ensinado. Entretanto, sabe-se que há singularidades

quanto às concepções dos objetos de aprendizagem e pressupostos pedagógicos que

não podem ser ignoradas.

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Sobre a BNCC e a PNA, de fato não são propriamente documentos

curriculares, entretanto, compreendem instâncias norteadoras que indicam

tendências metodológicas acerca do processo de ensino-aprendizagem. Nesse

contexto, Estados e Municípios que aderirem aos programas e projetos pautados em

tal política terão que incluir em seus documentos curriculares as orientações teórico-

metodológicas articuladas aos postulados ali presentes, o que demandará

reformulações e alterações tanto na dinâmica da sala de aula quanto no documento

curricular local.

Quanto às diferentes formas de conceber o processo de alfabetização, no

tópico a seguinte serão discutidas.

2. Concepções de Alfabetização

Para Silva, Arruda e Leal (2013) atualmente no Brasil há três formas de

conceber o processo de alfabetização: alfabetização como ensino de um código;

alfabetização por imersão nas práticas de letramento; e alfabetização na perspectiva

do letramento.

Pode-se afirmar que essas concepções distintas de alfabetização sofreram

mudanças ao longo do tempo e que algumas concepções são mais abrangentes que

outras, desdobrando-se em diversas proposições de natureza didático-pedagógica.

Por esse motivo, cada tendência citada será apresentada em tópico específico.

Ainda sobre as diversas concepções de alfabetização, é pertinente evidenciar

que tais concepções divergem em muitas facetas, contudo, destacam-se suas

discrepâncias principalmente quanto à escolha das metodologias de ensino, que, por

sua vez, reverbera-se nas práticas pedagógicas.

Tradicionalmente, essa questão dos métodos de alfabetização envolve a

discussão acerca das melhores estratégias de ensino, definindo o que seria o método

ideal. Assim, há muito que adeptos dos métodos sintéticos se confrontam com os

defensores dos métodos analíticos, caracterizando um intenso debate.

Neste estudo, em função dos objetivos pretendidos, serão discutidas as

concepções de alfabetização pontuadas por Silva, Arruda e Leal (2013), evidenciando

o contraponto existente entre a proposta de aprendizagem do código com a proposta

de alfabetizar letrando, isto é, com ênfase na aprendizagem concomitante da lógica

de funcionamento do sistema notacional de escrita e das práticas sociais de leitura e

escrita.

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Neste sentido, nos subtópicos a seguir, serão tratadas as três principais formas

coexistentes de compreender o processo de alfabetização atualmente, considerando

os teóricos envolvidos em cada uma, as implicações teórico-metodológicas e seus

pontos de conflitos e disputas.

2.1 Alfabetização como aprendizagem de um código

Para Macedo, Almeida e Tibúrcio (2017), nesta perspectiva de ensino “a escrita

é vista como um código de transcrição das unidades sonoras em unidades gráficas.”

(MACEDO; ALMEIDA; TIBÚRCIO, 2017, p. 227). Desse modo, nesta concepção, a

língua é compreendida como um código e as práticas de leitura e escrita são reduzidas

a ações de codificar e decodificar, corroborando para a ocorrência de um processo de

ensino-aprendizagem mecânico, repetitivo e descontextualizado.

Logo, os métodos de ensino referentes a essa perspectiva (sintéticos, analíticos

e sintético-analíticos), apesar de possuírem características específicas, em geral não

abordam textos reais, que circulam nos diversos campos e esferas sociais de

interação, partem das unidades menores (fonemas, letras, sílabas) para

posteriormente trabalhar com as unidades maiores (palavras, frases, textos),

fragmentando o aprendizado e dificultando a apropriação do funcionamento do

Sistema Alfabético de Escrita.

Silva, Arruda e Leal (2013) citam como métodos sintéticos os alfabéticos,

silábicos e os fônicos, uma vez que apresentam procedimentos de ensino que seguem

uma sequência do mais elementar ao mais significativo por meio de etapas fixas,

desconsiderando a possibilidade de abordagem textual simultaneamente ao trabalho

com as unidades menores.

Quanto aos métodos analíticos, tem-se que ganharam destaque no final do

século XX e se baseiam nos postulados da Psicologia Genética. Para os apoiadores

de tal método, as propostas de ensino dos métodos sintéticos são repetitivas e

mecânicas, desfavorecendo a aprendizagem significativa dos alunos. Sendo assim, a

abordagem analítica, por sua vez, propõe que o ensino ocorra a partir do todo, do

nível macro (palavras, frases, textos) para em seguida contemplar as unidades

menores (letras e sílabas). Contudo, os métodos analíticos também podem apresentar

atividades monótonas e improdutivas, já que também recorrem a práticas de

memorização, sejam de palavras, sejam de pequenos textos ou ainda pseudotextos.

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Além dos métodos sintéticos e analíticos, há também os métodos analítico-

sintéticos, que sugerem uma junção da abordagem global, macro com o ensino das

unidades menores, ou seja, o estudante entra em contado com palavras, sentenças

ou pequenos textos ao mesmo tempo em que analisa suas partes constituintes,

constituindo-se processos de fragmentação e decomposição.

Em resumo, embora se encontrem divergências entre os três métodos aqui

descritos, sabe-se que em todos eles a alfabetização é concebida como a

aprendizagem de um código.

Nesta perspectiva de alfabetização, a repetição e a memorização norteiam as

práticas didático-pedagógicas em sala de aula, tendo muitas vezes o uso de textos

cartilhados e pseudotextos, desarticulando a aprendizagem da leitura e da escrita dos

seus usos cotidianos.

Conforme pontua Silva (2016):

Nessa abordagem, acredita-se que se o aluno aprender a técnica da escrita (compreendida como um código) se alfabetizará. Há um desprezo pelo “erro” de modo que não há reflexão e compreensão da escrita “genuína” dos alunos. Tais métodos propõem um trabalho a partir de sons e letras isoladas; de padrões mais fáceis (regulares) para os mais difíceis (irregulares). (SILVA, 2016, p. 51)

Dentre os métodos tradicionais, um dos mais vivenciados no contexto atual é o

método fônico. Silva (2016) aponta que nessa abordagem o docente é concebido

como um instrutor que treinará os estudantes na tentativa de desenvolver habilidades

fonológicas por meio de exercícios mecânicos de identificação de sons e similares.

Outro aspecto importante destacado por Silva (2016) é que nessa abordagem

de ensino espera-se que o aluno chegue à escola apto, pronto para se apropriar do

código escrito. Dessa forma, busca-se nessa concepção de alfabetização o alcance

de um modelo, a padronização da aprendizagem, reduzindo o processo de

alfabetização.

Segundo Leal et al (2013), em tais métodos:

a unidade inicial de ensino, nessa abordagem, não é a letra ou a sílaba, mas, sim as unidades sonoras mínimas – os fonemas. Nos métodos fônicos parte-se do pressuposto de que cada letra dispõe de certa autonomia fonética e se baseia nas instituições fonéticas da criança, e em sua capacidade de imitação de sons específicos. Basicamente, trata-se de fazer segmentar os fonemas, além de outras atividades de reflexão fonológica, seguida da aprendizagem das letras que representam tais fonemas. (LEAL ET AL, 2013, p. 77-78)

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Assim como os outros métodos tradicionais, na abordagem fônica tem-se a

concepção da língua escrita como um código, distanciando-se da proposta de reflexão

em prol dos usos sociais da língua.

Isto posto, é necessário pontuar que tais métodos não favorecem o

protagonismo da criança no processo de apropriação da língua escrita nem a sua

capacidade de refletir acerca das propriedades e dos princípios do Sistema de Escrita

Alfabética, visto que, seus pilares são basicamente a instrução fonética sistemática e

o desenvolvimento da consciência fonêmica, sem considerar a compreensão do

funcionamento conceitual das relações letra-som (consciência fonológica) em prol da

abordagem textual-discursiva e dos usos sociais da linguagem.

No contexto atual, pode-se citar como referência do método fônico a proposta

da professora Leonor Scliar-Cabral, o Sistema Scliar-Cabral de Alfabetização (SSC),

que prioriza, entre outros aspectos, a manipulação dos fonemas e o desenvolvimento

das consciências fonológica e fonêmica no processo de alfabetização. Outro

representante atual dessa abordagem é João Batista Araújo e Oliveira, o presidente

do Instituto Alfa e Beto. É doutor em Pesquisa Educacional pela Florida State

University e autor de livros didáticos fundamentados nos postulados do método fônico.

Quanto aos aspectos sociais da linguagem, tem-se no subtópico a seguir

maiores reflexões, ao se tratar de uma perspectiva de alfabetização que vai na direção

oposta à concepção de alfabetização como aprendizado de um código.

2.2 Alfabetização por imersão em práticas e eventos de letramento

É importante destacar que o conceito de letramento provocou mudanças nos

modos de conceber a alfabetização, visto que pôs em destaque outras dimensões do

processo de alfabetização como a ressignificação das práticas de leitura e escrita na

escola. Nessa abordagem, leva-se em consideração também o ensino da leitura e da

escrita no contexto social, priorizando os usos sociais da linguagem.

No glossário do CEALE, Street e Castanheira (2014) definem eventos de

letramento como as ações que envolvem leitura e escrita mais observáveis e situadas,

já as práticas de letramento não se referem ao contexto imediato em que os eventos

ocorrem, contemplando uma significação mais ampla, institucionalizada e cultural.

Para Kleiman (2005), o letramento abarca tudo que envolve o uso da escrita,

incluindo as práticas escolares mais próximas dos métodos tradicionais de

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alfabetização. A autora defende uma concepção ampliada de letramento, ao defender

que se refere a todos os aspectos histórico-sociais dos usos e papéis da escrita,

incluindo tanto as práticas de decodificação e identificação dos componentes de uma

palavra, por exemplo, quanto as práticas de leitura e produção de textos de diferentes

gêneros.

As discussões sobre letramento e seus impactos sobre o ensino da Língua

provocaram mudanças nos modos de conceber a alfabetização, o que deu origem a

propostas que temos denominado de “alfabetização na perspectiva do letramento” e

“alfabetização por imersão”. Sobre essa última forma de conceber a alfabetização –

alfabetização por imersão-, Silva (2016) apresenta a proposta da professora Cecília

Goulart, que questiona a necessidade de sistematizar a aprendizagem da escrita e

prioriza a imersão da criança no universo da leitura sem a abordagem das relações

entre unidade sonora e unidade gráfica de forma explícita

Assim, de acordo com Silva (2016), para Goulart “a inserção da criança ao

mundo letrado leva à construção gradativa de sentidos sobre a leitura e a escrita até

que esta se aproprie do sistema notacional.” (SILVA, 2016, p. 55).

Silva, Arruda e Leal (2013) indicam que nessa abordagem são propostas

variadas atividades de leitura e escrita, todavia, sem prever objetivos de

aprendizagem e estratégias metodológicas mais específicas para a aprendizagem do

Sistema Alfabético de Escrita. Ou seja, os adeptos de tal abordagem defendem que a

apropriação das propriedades do sistema de escrita será decorrente da inserção das

crianças em práticas e eventos de letramento, sem a necessidade de uma abordagem

mais efetiva das regularidades e irregularidades da língua escrita.

De fato, a participação ativa da criança em práticas sociais de leitura e escrita

favorece o seu desenvolvimento linguístico, no entanto, como asseguram Silva (2016)

e Morais (2012), há propriedades e convenções no Sistema Alfabético de Escrita que

não são compreendidas facilmente, exigindo que os estudantes tenham momentos de

reflexão acerca do funcionamento do sistema de escrita, das suas representações,

para que desenvolvam a consciência fonológica simultaneamente ao entendimento

das funções sociais da escrita.

Frade (2005) propõe a seguinte reflexão:

O trabalho de alfabetização hoje denominado de imersão segue um princípio parecido com o do método natural, privilegiando a escrita e a leitura quando essas se fazem necessárias nas situações de uso. As atividades de

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alfabetização são aquelas em que são necessárias ações autênticas em torno dos atos de ler e escrever, porque se acredita que as crianças aprendem a ler e a escrever lendo e escrevendo textos, em situações de uso da escrita, sem muita diretividade. Um risco que se corre, quando os professores não fazem intervenções pertinentes no processo de uso -- para informar e apresentar situações problema centradas na análise do sistema de escrita – é que se caia num espontaneísmo que prejudica a função inalienável da escola: a de ensinar. (FRADE, 2005, p. 39)

Logo, os impactos didático-pedagógicos atrelados a essa perspectiva de

alfabetização, como pontuou a autora acima citada, podem desencadear o improviso

e o espontaneísmo que se distanciam do papel social da instituição escolar.

Assim, o subtópico a seguir propõe discutir a concepção de alfabetização que

se distancia da polarização presente nas duas perspectivas aqui já descritas e ressalta

aspectos relevantes e que devem ser postos em destaque sem extremismos.

2.3 Alfabetização na perspectiva do letramento

Para Soares (1998, 2004, 2015, 2016 e 2020), é pertinente destacar que, no

trabalho docente, o aprendizado da língua escrita tenha amplitude, ou seja, que o

processo de alfabetização esteja integrado ao desenvolvimento das competências e

habilidades textuais-discursivas dos estudantes. Para a autora, desarticular os dois

processos, alfabetização e letramento, resulta em uma concepção distorcida e

reducionista da natureza da linguagem.

Segundo Albuquerque e Santos (2007), alfabetizar letrando consiste em

propiciar aos estudantes situações de aprendizagem significativas e reflexivas acerca

das propriedades do Sistema Alfabético de Escrita ao mesmo tempo em que

proporciona o contato com os mais diversos gêneros textuais em práticas de leitura e

escrita que reiteram os usos sociais da linguagem.

Assim, o docente pode e deve aplicar em sala de aula atividades que promovam

o desenvolvimento das habilidades de reflexão acerca das partes sonoras das

palavras, sem que isso se configure em treinamento de articulação de fonemas

isoladamente.

Morais (2014), no glossário do CEALE, ao descrever o verbete Apropriação do

sistema de escrita alfabética, afirmou que o ensino sistemático das correspondências

letra-som é essencial para que a criança adquira autonomia para leitura e escrita,

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desde que participe também de práticas letradas com os diversos gêneros textuais

que circulam socialmente.

Sobre tal questão, Silva, Arruda e Leal (2013) pontuam que:

Como resultado dos estudos do letramento, tem-se assumido que, desde o início da escolarização, é preciso inserir os estudantes em situações em que eles tenham que interagir por meio de textos autênticos, entrando em contado com os diferentes usos sociais da escrita. No entanto, muitos debates têm sido travados no tocante à necessidade, ou não, de abordar a aprendizagem do sistema alfabético de escrita por meio de atividades específicas de apropriação desse sistema. (SILVA; ARRUDA; LEAL, 2013, p. 251)

Quando as autoras acima pontuam no “início da escolarização”, pode-se

pensar na primeira etapa da Educação Básica: a Educação Infantil. Sendo assim, é

válido se discutir práticas pedagógicas de leitura e escrita desde essa etapa da

escolarização, para que a criança entenda a especificidade da língua escrita

construindo e reconstruindo os sentidos em situações de contato com textos reais.

Isto posto, considerar os processos de alfabetização e letramento como

fenômenos historicamente situados, culturais, mas também cognitivos, distancia-se

das práticas de uso do texto como pretexto para a abordagem fragmentada e acrítica

da linguagem, não se tratando mais de um processo mecânico e vazio de

memorização.

Desse modo, nessa perspectiva de alfabetização, segundo Macedo, Almeida e

Tibúrcio (2017), é imprescindível que o professor adquira conhecimentos teóricos

acerca da escrita e da oralidade, das possibilidades de apropriação do Sistema

Alfabético de Escrita pelas crianças e da relação entre alfabetização e letramento.

É relevante pontuar que, nesta concepção, o estudante se encontra no centro

do processo de ensino-aprendizagem, apropriando-se dos princípios e das

convenções do sistema de escrita de forma articulada com o trabalho com gêneros

textuais. Então, tem-se: o protagonismo dos alunos, a linguagem como o lugar da

interação e a mediação do docente favorecendo a aprendizagem da língua escrita.

Outro aspecto relevante refere-se ao fato de a alfabetização não se resumir à

aprendizagem e apropriação das regularidades do Sistema de Escrita Alfabética, ou

seja, o processo de alfabetização é amplo e multifacetado, abrangendo também

outras dimensões, como enumera Leal et al (2013):

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os princípios de um currículo inclusivo no ciclo de alfabetização englobam a definição de alguns conhecimentos e habilidades a serem apropriados por todos os estudantes, respeitando-se as singularidades, diferenças individuais e de grupos sociais. Dessa forma, quatro dimensões importantes do processo de alfabetização podem ser salientadas: (1) Apropriação do Sistema de Escrita Alfabética; (2) Desenvolvimento de habilidades/capacidades de produção e compreensão de textos orais e escritos: (3) Inserção em práticas sociais diversas, com base no trabalho de produção, compreensão e reflexão sobre gêneros textuais variados; (4) Reflexão sobre temáticas relevantes por meio dos textos. (LEAL ET AL, 2013, p. 74)

Com isso, conceber a alfabetização como o processo de compreensão das

propriedades do Sistema Alfabético de Escrita articulado à abordagem das práticas

sociais de leitura e escrita consiste em evidenciar as muitas facetas e dimensões

presentes em tal processo, acentuando a heterogeneidade, o dinamismo e a

amplitude da aprendizagem da língua escrita.

Em suma, para Leal et al (2015), a alfabetização na perspectiva do letramento:

contempla diferentes dimensões do trabalho pedagógico, incluindo a apropriação do sistema de escrita alfabética e a inserção dos aprendizes, muito precocemente, em práticas de leitura e escrita miméticas às que ocorrem em espaços não escolares. (LEAL ET AL, 2015, p. 4)

Neste sentido, essa forma de conceber o processo de alfabetização contempla

práticas de ensino voltadas para a compreensão do funcionamento do sistema de

escrita ao mesmo tempo em que propicia a imersão dos estudantes em práticas e

eventos de letramento.

ANÁLISE DE DADOS E RESULTADOS

Antes de apresentar os resultados, é importante retomar os objetivos do

presente estudo e sintetizar os procedimentos metodológicos escolhidos para a

análise dos dados. Como anunciado anteriormente, o objetivo geral compreendeu a

identificação das concepções de alfabetização predominantes na PNA e na BNCC,

considerando os possíveis desdobramentos para as práticas pedagógicas.

Partindo disso, os dados foram analisados conforme os moldes da Análise de

Conteúdo, fundamentada nos postulados de Bardin (1977), consistindo primeiramente

na leitura geral dos documentos para compreensão de seus propósitos e

reconhecimento amplo acerca da concepção de alfabetização predominante. Em

seguida, foram construídas categorias de análise dialogando com os teóricos

consultados. Além disso, foram listados os principais pressupostos e princípios que

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caracterizam cada concepção de alfabetização, levando à realização de uma nova

leitura dos dois documentos, dessa vez com o intuito de identificar em cada um quais

elementos evidenciam as formas de conceber o processo de alfabetização. Para

tanto, foram localizados trechos dos textos de cada documento e agrupados em um

quadro de análise para, por fim, facilitar a releitura aprofundada e a interpretação dos

dados encontrados.

Assim, o estudo dos dois documentos evidenciou que a PNA tem como base a

alfabetização como código e a BNCC tem a predominância da alfabetização na

perspectiva do letramento. O quadro abaixo sintetiza os aspectos evidenciados na

análise documental aqui apresentada, expondo os pressupostos que fundamentam

cada abordagem dessa, com a marcação de quais estão presentes em cada

documento:

Princípios predominantes da concepção de alfabetização como aprendizagem de um código

PNA BNCC Princípios predominantes da concepção de alfabetização na perspectiva do letramento

PNA BNCC

Alfabetização como aprendizagem das relações letra-som.

X -- Alfabetização como aprendizagem da leitura e escrita, contemplando o domínio do sistema de escrita e habilidades de leitura e produção de textos.

-- X

Defesa da prontidão para alfabetização.

X -- Defesa da inserção precoce dos estudantes em práticas de letramento

-- X

Proposições de padronização da ação didática, com uniformização de procedimentos.

X -- Ensino organizado para atendimento à heterogeneidade dos alunos, com diversificação de atividades e modos de mediação.

-- --

Ensino sistemático, organizado como sequência delimitada por etapas fixas: partindo das unidades menores para as maiores.

X -- Simultaneidade entre o ensino do Sistema Alfabético de Escrita e práticas de leitura e produção de textos autênticos.

-- X

Ênfase no treino da consciência fonológica e consciência fonêmica.

X X Ênfase em dimensões conceituais de compreensão do funcionamento do SEA

-- X

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Unidades linguísticas de partida: letra, fonema

X -- Unidades linguísticas simultâneas: texto, palavra, sílaba, letra, fonema.

-- X

Ensino explícito das associações entre letras e fonemas.

X

-- Orientações para condução de ensino problematizador.

-- --

Ênfase na memorização e no treino.

X -- Ênfase em objetivos de aprendizagem conceituais sobre o Sistema Alfabético de Escrita

-- X

Uso de textos criados ou adaptados para alfabetização, com controle das palavras e do tamanho.

X -- Uso de textos autênticos, de diferentes gêneros

-- X

Ênfase na aprendizagem das capacidades de decodificar e codificar.

X X Concepção de currículo integral, contemplando produção e compreensão de textos orais e escritos e outros componentes curriculares.

-- X

Ênfase na participação das crianças em práticas e eventos de leitura e escrita.

-- X

Ênfase na fluência de leitura tida como velocidade de leitura.

X -- Concepção ampliada de leitura, com ênfase na compreensão de textos.

-- X

Ênfase no ensino precoce de produção de textos, considerando objetivos de aprendizagem variados, sobretudo aspectos metacognitivos

-- --

-- Concepção de aprendiz como ativo no processo de aprendizagem.

-- X

Concepção de professor como executor de atividades previamente formuladas e aprendizagem como aquisição de conhecimentos.

X -- Concepção de professor como profissional responsável pela mediação da aprendizagem, tida como apropriação de conhecimentos.

-- X

Ênfase no controle do trabalho do professor.

X -- Ênfase na autonomia do professor e do direito à formação continuada.

-- --

Conforme retrata o quadro acima, tem-se na PNA a predominância dos

princípios da abordagem de alfabetização como a aprendizagem de um código e na

BNCC a predominância da concepção de alfabetização na perspectiva do letramento,

embora possam ser identificadas algumas oscilações nesse segundo documento.

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Para aprofundamento das reflexões, nos tópicos abaixo serão discutidos os

aspectos e as especificidades de cada documento.

1. Concepção de alfabetização na PNA

Sobre a PNA, identificou-se a redução do aprendizado da escrita a mecanismos

de codificação e decodificação com a associação entre letras e sons, de modo que o

ensino de tal associação seja explícito e predominante, em detrimento ao ensino

centrado na abordagem textual, configurando a abordagem de alfabetização como

aprendizagem de um código. Para constatar esses aspectos, pode-se observar os

princípios e os trechos a seguir:

a) ensino explícito das associações entre letras e fonemas; ênfase na aprendizagem

das capacidades de decodificar, codificar e memorizar; e controle das palavras e

textos a serem lidos assim como do tempo de leitura:

Do ponto de vista operacional, alfabetizar é: no primeiro ano do ensino fundamental, ensinar explicitamente o princípio alfabético e as regras de decodificação e de codificação que concretizam o princípio alfabético na variante escrita da língua para habilitar crianças à leitura e soletração de palavras escritas à razão de 60 a 80 palavras por minuto com tolerância de no máximo 5% de erro na leitura. (BRASIL, 2019, p. 18)

b) defesa de um ensino sistemático, organizado como sequência delimitada por

etapas fixas, partindo das unidades menores para as maiores e tendo a letra, o fonema

ou a sílaba como as unidades linguísticas de destaque:

Os leitores iniciantes, para serem bem-sucedidos, devem aprender de início como funciona o sistema alfabético de escrita: as formas, os sons e o nome das letras, como as letras representam sons separados nas palavras e como dividir as palavras faladas nos menores sons representados pelas letras. (BRASIL, 2019, p. 26)

c) defesa da prontidão para alfabetização:

Prontidão para leitura: geralmente uma combinação de conhecimento alfabético, conceitos sobre a escrita, vocabulário, memória e consciência fonológica. (...) O ensino do conhecimento fônico se mostra eficaz quando é explícito e sistemático (com plano de ensino que contemple um conjunto selecionado de relações fonema-grafema, organizadas em sequência lógica). (BRASIL, 2019, p. 31-33)

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d) ênfase no ensino do desenvolvimento da consciência fonológica e consciência

fonêmica:

O ensino do conhecimento fônico se mostra eficaz quando é explícito e sistemático (com plano de ensino que contemple um conjunto selecionado de relações fonema-grafema, organizadas em sequência lógica). (BRASIL, 2019, p. 33)

Vale ressaltar também que tal documento está referendado por um quadro de

agentes composto por, entre outros nomes, Carlos Nadalim, Secretário de

Alfabetização; João Batista Araújo e Oliveira, presidente do Instituto Alfa e Beto; Roger

Beard, professor do Instituto de Educação da University College London; Luiz Carlos

Faria da Silva,; doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas e

professor adjunto da Universidade Estadual de Maringá; Elizeu Coutinho de Macedo,

doutor em Psicologia Experimental pela Universidade de São Paulo, além de outros

teóricos e docentes nacionais e estrangeiros, que foram selecionados para propor

uma política de alfabetização nos moldes que tais grupos almejavam. Muitos desses

autores pautam-se nos postulados da Psicolinguística e das Neurociências,

compondo o arcabouço teórico que ilustraria a proposta de “alfabetização baseada

em evidências científicas”, difundida pelos idealizadores da PNA.

Logo, observa-se que conceber a alfabetização como um processo conceitual

e contínuo, desenvolvido de forma simultânea dentro e fora da instituição de ensino e

indissociável das práticas e eventos de letramento se distancia do proposto no

documento em análise: ““A PNA, com base na ciência cognitiva da leitura, define

alfabetização como o ensino das habilidades de leitura e de escrita em um sistema

alfabético.” (BRASIL, 2019, p. 18)

Todavia, segundo o MEC, a PNA surgiu com a finalidade de melhorar a

qualidade da alfabetização no país, combatendo o analfabetismo absoluto e funcional,

entretanto, como assegura Micarello (2019), ao indicar um único método para

alfabetizar os estudantes, o método fônico, tal política exclui a produção científica

acumulada no Brasil ao longo dos anos e negligencia a diversidade brasileira. Mendes

e Gomes (2019) também questionam a supervalorização de apenas um método no

texto da PNA, defendendo que não se pode garantir igualdade de oportunidades

educacionais, tampouco equidade, se reduzir a problemática da alfabetização no país

a questões de métodos.

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Outros pontos negativos acerca de tal documento envolvem o fato de essa

política se caracterizar por apresentar diretrizes e orientações acerca do processo de

alfabetização no país norteadas por uma perspectiva reducionista, fundamentada em

uma única vertente científica e em uma visão positivista de ciência, desconsiderando

a amplitude dos estudos já consagrados na área veiculados e priorizando apenas os

argumentos dos teóricos pautados em sua concepção de estudo científico.

Além disso, tem-se também que os componentes do processo de alfabetização

seriam: instrução fonêmica sistemática, consciência fonêmica, fluência de leitura oral,

ensino de vocabulário, compreensão textual e produção textual. Todavia, ao pontuar

o processo de alfabetização desse modo, observa-se uma tentativa de controlar ou

direcionar a atuação do professor, pondo em evidência a figura docente e indicando

uma concepção de aluno como “receptor de instruções”, favorecendo a pedagogia

transmissivista e a ideia de aprendizagem como aquisição de conhecimento. Vale

reiterar que os componentes da compreensão e produção textual não se configuram

como abordagens centradas na leitura e produção de diversos gêneros textuais orais

e escritos, pois a PNA prioriza uma sequência delimitada (e limitadora) de ensino:

fonema, letra, palavra, frase e texto, sendo este último em geral pseudotextos, ou seja,

textos artificiais criados especificamente para o ensino das relações entre letra e som.

Por sua vez, não se pode desconsiderar que o estudo do funcionamento

cerebral pode sim contribuir para o avanço das pesquisas na área da Educação, no

entanto, não pode ser considerado a única corrente ou linha de pesquisa válida, uma

vez que, o aspecto cognitivo não se sobressai ao social e vice-versa.

Assim, sobre essa questão, Monteiro (2019) declara que:

A PNA está fundamentada teoricamente nas ciências cognitivas, com ênfase na Ciência Cognitiva da Leitura, para fomentar a prática de ensino da língua escrita. Essa área do conhecimento é uma importante referência para o encaminhamento das práticas pedagógicas na fase inicial da aprendizagem da língua escrita. No entanto, partimos do pressuposto de que a ação pedagógica não pode ser promovida a partir de um único referencial teórico, como também os seus resultados não podem ser assim analisados. (MONTEIRO, 2019, p. 41)

Por fim, o fato de não apresentar a nomenclatura letramento, substituindo-a

pelo termo literacia conota, segundo Bunzen (2019), um silenciamento impositivo e

autoritário, corroborando para uma estratégia discursiva na realidade de apagamento

de tudo que já se publicou acerca da relação entre alfabetização e letramento no país.

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2. Concepção de alfabetização na BNCC

Quanto à BNCC, há predominância de princípios relativos à abordagem da

alfabetização na perspectiva do letramento, tal como evidenciado no quadro

anteriormente exposto, havendo, no entanto, algumas oscilações sobretudo em

relação a aspetos não contemplados, como a explicitação da necessidade de ajustar

o ensino à heterogeneidade das turmas, à necessidade de favorecer a aprendizagem

de produção de textos escritos contemplando a complexidade desse processo e a

importância do desenvolvimento de habilidades metacognitivas, as orientações de

condução de um ensino problematizar acerca do funcionamento do Sistema Alfabético

de Escrita e das aprendizagens acerca da oralidade, leitura e produção de textos,

assim como a defesa da autonomia do professor e do direito à formação continuada.

Apesar dessas lacunas, como foi dito, são mais frequentes no documento os

princípios pertinentes à abordagem da alfabetização na perspectiva do letramento.

Primeiramente, faz-se necessário considerar que essas flutuações retratam

uma concepção de alfabetização como um processo complexo e heterogêneo,

corroborando o caráter multifacetado e multidimensional desse processo de

aprendizagem.

Contudo, é relevante destacar que tal característica poderá comprometer tanto

a elaboração dos currículos estaduais ou municipais como a criação de estratégias

didático-pedagógicas, uma vez que as prescrições ali contidas oscilam de maneira tal

que, se distorcidas, poderão desfavorecer as práticas em sala de aula, possibilitando

avanços, mas também, retrocessos. Como destaca Morais (2019), a redução do ciclo

inicial de alfabetização para dois anos, por exemplo, pode indicar um possível

retrocesso.

Outro ponto relevante acerca da BNCC é o apagamento das vozes de autores

e pesquisadores em prol de uma pluralidade de conceitos e abordagens que, de certo

modo, compromete também a consistência do documento, embora seja plausível

justificar essa característica considerando o teor legal e normativo da BNCC.

Em suma, há oscilações, mas há princípios que aproximam o documento de

perspectivas contrárias à abordagem da alfabetização como um código. Encontra-se

na BNCC, por exemplo, que o letramento é condição para o processo de alfabetização

e vice-versa, conforme se observa nos trechos a seguir, considerando os princípios

de tal perspectiva:

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a) ensino centrado no texto, com a defesa do uso de textos autênticos de diferentes

gênero e simultaneidade entre o ensino do sistema de escrita e práticas de leitura e

produção de textos autênticos :

...assume a centralidade do texto como unidade de trabalho e as perspectivas enunciativo-discursivas na abordagem, de forma a sempre relacionar os textos a seus contextos de produção e o desenvolvimento de habilidades ao uso significativo da linguagem em atividades de leitura, escuta e produção de textos em várias mídias e semioses. (BRASIL, 2018, p. 67) ...o conhecimento metalinguístico e semiótico em jogo – conhecimento sobre os gêneros, as configurações textuais e os demais níveis de análise linguística e semiótica – deve poder ser revertido para situações significativas de uso e de análise para o uso. (BRASIL, 2018, p. 85)

b) ênfase em dimensões conceituais de compreensão do funcionamento do SEA;

concepção de professor como mediador e de aprendiz como sujeito ativo no processo

de aprendizagem (aprendizagem enquanto construção do conhecimento):

...construir o conhecimento do alfabeto da língua em questão(...)a criança está relacionando com as letras não propriamente os fonemas (entidades abstratas da língua), mas fones e alofones de sua variedade linguística (entidades concretas da fala). (BRASIL, 2018, p. 91)

c) alfabetização como domínio do sistema de escrita e como um processo de

desenvolvimento de habilidades linguísticas que ocorre por meio da inserção dos

estudantes em práticas de letramento:

...a fim de garantir amplas oportunidades para que os alunos se apropriem do

sistema de escrita alfabética de modo articulado ao desenvolvimento de

outras habilidades de leitura e de escrita e ao seu envolvimento em práticas

diversificadas de letramentos. (BRASIL, 2018, p. 59)

d) conceito amplo de leitura:

Leitura no contexto da BNCC é tomada em um sentido mais amplo, dizendo

respeito não somente ao texto escrito, mas também a imagens estáticas (foto,

pintura, desenho, esquema, gráfico, diagrama) ou em movimento (filmes,

vídeos etc.) e ao som (música), que acompanha e cossignifica em muitos

gêneros digitais. (BRASIL, 2018, p. 72)

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Nesse sentido, apesar de suas limitações e inconsistências, inclusive por

configurar o processo de alfabetização ainda de forma linear, marcando o seu início

com o ensino das letras, a BNCC tem pontos positivos a se destacar e representa um

certo avanço para a educação no país, pois ao mesmo tempo em que a alfabetização

é concebida como o domínio do Sistema de Escrita Alfabética, partindo do

desenvolvimento de habilidades e competências linguísticas, busca-se não

desconsiderar o uso de diferentes tipos e gêneros textuais em sala de aula, além de

tratar a leitura de forma ampla e enfatizar a construção dos conhecimentos acerca da

escrita, partindo do pressuposto de que as crianças são seres ativos nesse processo.

3. Possíveis impactos no trabalho docente

Quanto aos possíveis impactos sobre as práticas didático-pedagógicas, é

pertinente evidenciar que as propostas teórico-metodológicas presente na PNA e na

BNCC não dialogam harmonicamente, pondo em destaque conceitos e ações

conflitantes. Se na PNA a criança é vista como se fosse uma folha de papel em branco

ou uma tábula rasa, por isso caberia ao adulto transmitir explicitamente a equivalência

entre grafemas e fonemas, na BNCC, por outro lado, encontra-se uma visão de

criança como um ser em formação, mas que deve ser protagonista nesse processo,

tendo como prioridade práticas pedagógicas que favoreçam a sua socialização,

autonomia e o desenvolvimento da linguagem. Apesar disso, não há uma defesa

explícita da autonomia do professor e do seu direito a uma formação continuada

problematizadora que respeite seus percursos formativos.

Compreende-se, logo, que a proposta didático-pedagógica contida na PNA

diverge e contrapõe-se ao recomendado pela BNCC, embora a Base esteja longe de

se configurar um documento norteador ideal, como já foi discutido aqui.

Vale destacar que compreender a natureza da escrita, seus papéis sociais e

suas distintas possibilidades de usos e funções é essencial para obter êxito no

processo de alfabetização. Contudo, priorizar o treinamento fonético em detrimento

da abordagem de problematização do funcionamento do Sistema Alfabético de Escrita

e da reflexão sistemática sobre as práticas de linguagem e sobre os gêneros textuais

diversos poderá não favorecer a realização de experiências exitosas nas salas de aula

de alfabetização, como defendem muitos teóricos pontuados nesta pesquisa.

CONCLUSÃO

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Este estudo evidenciou as concepções de alfabetização apresentadas na

BNCC e na PNA, considerando suas relações com as práticas e os eventos de

letramento, além de pontuar as possíveis práticas didático-pedagógicas decorrentes

das prescrições e recomendações presentes em tais documentos oficiais.

Logo, identificar os problemas de aprendizagem relativos à leitura e à escrita

em turmas de alfabetização exige a busca de soluções oriundas de diversos debates

multidisciplinares, evitando a unilateralidade, a imposição e o autoritarismo. Destarte,

observa-se que a proposta teórico-metodológica defendida na e pela PNA opõe-se

sobremaneira a essa visão de aprofundamento científico e sugere uma padronização

das práticas de ensino do Sistema Alfabético de Escrita, desconsiderando a criança

aprendiz e sua evolução individual.

Sobre esta questão, Morais (2019) afirmou o seguinte:

Como acabamos de justificar, as evidências de nossas pesquisas mostram que, do ponto de vista teórico, a perspectiva assumida pela PNA é muito inadequada, porque desconsidera o modo como a criança funciona, não leva em conta como suas concepções evoluem. Do ponto de vista didático, ela é desastrosa por diversos motivos. Além de praticar um ensino padronizado, que ignora o que a criança pensa e que não enfrenta a diversidade de conhecimentos dos alfabetizandos que estão numa mesma sala de aula. (MORAIS, 2019, p. 73)

Isto posto, articuladas às concepções de alfabetização e de criança estão as

concepções de língua/linguagem nos documentos em análise: na BNCC a língua é

um fenômeno cultural, historicamente construído, dinâmico e submetido à situação

comunicativa, já na PNA a língua é tratada como um código que deve ser aprendido

para os indivíduos se comunicarem entre si.

Assim, a partir do presente estudo, pode-se afirmar que o conceito de

alfabetização não é homogêneo, inclusive em se tratando de documentos prescritivos,

uma vez que o currículo em geral é um espaço de disputas e tensionamentos. Sendo

assim, parafraseando Cagliari (2010), apesar das prescrições, se o docente se

debruçar sobre a realidade de cada estudante, acompanhando o desenvolvimento de

suas hipóteses e aprendizagens acerca da linguagem, encontrará as melhores

estratégias e métodos de ensino porque buscará os caminhos mais adequados para

a sua turma, sem desconsiderar a heterogeneidade e as peculiaridades de cada caso,

sem priorizar modelos e propostas preestabelecidas.

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Portanto, as discussões aqui postas não invalidam os estudos das

Neurociências, das Ciências Cognitivas e suas relações com o campo educação,

porém, reiteram que não se pode afirmar que somente as descobertas de tais ciências

se configuram como únicas “evidências científicas” consideráveis, sendo esta uma

das problemáticas da PNA.

Por fim, além disso, confirma-se a importância de se discutir democraticamente

currículos e políticas públicas educacionais, principalmente no tocante ao processo

de alfabetização e letramento, reconhecendo a indissociável relação entre linguagem,

sociedade e escola.

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