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PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015)
Condição de Moradia: a inaudita altera parte1
Frederico Tavares de Oliveira2
Escola Superior de Propaganda e Marketing, São Paulo, SP, Brasil
Resumo
O trabalho trata de um fenômeno cultural, político e comunicacional representativo da
precária condição de moradia em São Paulo, um fenômeno que, do ponto de vista das
subjetividades em resistência, significa a ocupação do espaço urbano e a luta pelo
exercício do direito fundamental à moradia. Estas vozes subjetivas amiúde constituem
a inaudita altera parte da relação estabelecida com um tipo de imposição política do
discurso hegemônico do novo capitalismo, cujo vício é a indiferença; e daí que se possa
compreender a “oitiva da parte contrária” em fluxos ou projetos contra-hegemônicos,
seja na seara das imagens, seja na dos direitos fundamentais. Metodologicamente, o
estudo se posiciona na interface entre os estudos de comunicação e consumo, os
estudos culturais e a antropologia contemporânea, a fim de justificar a necessidade da
polifonia no texto e a sua reprodução dialógica na construção das interpretações do
fenômeno investigado.
Palavras-chave: condição de moradia; ocupação; estudos culturais; comunicação e
consumo; etnografia dos projetos.
Condições do novo capitalismo
Em outra ocasião, em Condição juvenil, mídia e consumo: subjetividades em
resistência (Oliveira, 2014)3, apontamos o investimento tanto de ordem capitalista
quanto teórica sobre a questão da subjetividade, a partir da sua configuração em
processos de resistência, mimetismos e mestiçagens, compreendendo aí a centralidade
1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Comunicação, Consumo e Novos Fluxos Políticos:
ativismos, cosmopolitismos, práticas contra-hegemônicas, do 5º Encontro de GTs - Comunicon,
realizado nos dias 5, 6 e 7 de outubro de 2015. 2 Doutorando do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da Escola
Superior de Propaganda e Marketing, ESPM; email: [email protected]. 3 Trabalho apresentado no mesmo GT, do 4º Encontro de GTs do Comunicon, 2014.
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dos processos de comunicação e as práticas de consumo dentro de uma noção de
práticas contra-hegemônicas.
Nosso radar epistêmico levava em conta os principais problemas-chave dos
estudos culturais ingleses – presentes também nos estudos culturais latino-americanos
–, uma vez que se nos mostravam um excelente dispositivo analítico para pensar no
projeto do sujeito discursivo, jovem e habitante da grande metrópole contemporânea;
projeto este que não só reconhecia o novo capitalismo em seus processos de
diferenciação, exclusão e dominação – seja a partir da letra da música que analisamos,
seja a partir das condições históricas e situacionais com que se construía o projeto
musical –, como também o enfrentava simbólica e mediaticamente, com uma visão de
mundo discriminadora do possível, do provável e até do perceptível, isto é, uma cultura
popular do jovem urbano.
Nas palavras de Sennett (2011, p. 150), que examina a passagem do capitalismo
social, então demarcado por um projeto comum e progressista, a esta nova etapa do seu
desenvolvimento, “a nova ordem institucional se exime de responsabilidade, tentando
apresentar sua própria indiferença como liberdade para os indivíduos ou grupos da
periferia”. De modo que, segundo o sociólogo e historiador, “o vício da política
derivado do novo capitalismo é a indiferença”. E será esta indiferença, em suas
múltiplas formas de diferenciação, exclusão e dominação, o motivo a ser enfrentado
pelos supostos grupos de periferia, ao assumirem certa ideia de centralidade e controle
do cosmopolita.
Estes fenômenos de apropriação autônoma, ativa e de resistência podem ser
compreendidos como “cosmopolitismo periférico” (Prysthon, 2002) e contra-
hegemônico, ou dentro dos denominados “imaginários diaspóricos, sinalizadores de
dinâmicas pós-periféricas, da circulação de fluxos” (Rocha et al., 2014, p. 1); uma
vez que sujeitos, que são atores sociais, se não chegam a reconher o motivo da
indiferença política do novo capitalismo, ao menos buscam “romper com aspectos de
distinção e exclusividade ligados ao consumo” (Ibid, p. 13), lançando mão de uma luta
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que se realiza tanto na seara das imagens, “da ordem das políticas de visibilidade”
(Rocha et al., 2014, p. 4), quanto na seara dos direitos fundamentais.
A fim de multiplicar o nosso olhar sobre as formas com que subjetividades
enfrentam certas condições hegemônicas do novo capitalismo, queremos agora tratar
de subjetividades, ou sensibilidades que, na fronteira com esta nova estrutura
hegemônica de sentimento de indiferenciação, lutam por melhores condições de
moradia e exercício de sua cidadania.
Entendemos que, com o trabalho de multiplicação destas sensibilidades de
fronteira, que tocam direitos fundamentais, possamos retomar uma característica
histórica chave dos estudos culturais, que, segundo Canclini, implica
fazer teoria sociocultural com suportes empíricos a fim de compreender
criticamente o devir capitalista. Não a afirmação de posições politicamente
corretas, mas sim a relação tensa entre um imaginário utópico, só em parte
político, e uma investigação intelectual e empírica que às vezes o acompanha
e às vezes o contradiz. [...] convém pôr o foco na tensão entre o que o
imaginário utópico e a investigação intelectual poderiam ser agora: por
exemplo, a tensão que se dá entre as promessas do cosmopolitismo global e a
perda de projetos nacionais. O que tem de novo este conflito? A que
disciplinas, ou a que conjunto de saberes não especificamente culturais, é
necessário vincular o estudo da cultura? (Canclini, 2009, p. 157-158, grifo do
autor).
A Comunicação, e particularmente os estudos que versam sobre a interface entre
comunicação e práticas de consumo, políticas de visibilidade e de subjetivação em
mobilizações, movimentos e coletivos, com sua produção imaginária e diaspórica, têm
avançado, tal como os estudos culturais avançaram, “graças à sua irreverência com os
fracionamentos exclusivos da propriedade intelectual, embora isto não tenha de ser
sinônimo de descuido científico” (Canclini, 2009, p. 153); nem de descuido político,
pois que, ao contrário, esses estudos têm considerado o político em suas expressões não
institucionais e cotidianas, articuladas a um “cosmopolitismo pós-moderno” (Prysthon,
2002) e vinculado ao desenvolvimento tecnológico da mídia e das novas formas de
comunicação e consumo; têm destacado que o conceito de cidadania é a outra face do
consumo, na medida em que o sujeito, por meio das práticas de comunicação e
consumo, produz sentido, ou consciência de que é sujeito de direitos; de que devem ser
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dadas a ele as condições de acesso ao próprio conhecimento de seus direitos, bem como
as garantias de que seja pleno o seu exercício, ou seja, de que sejam “adjudicadas ao
sujeito a garantia de que ele exerce ou exercerá seus direitos sempre que lhe convier”
(Baccega, 2010, p. 32). Porquanto os estudos de comunicação e consumo têm
compreendido disciplinas e grupos de pesquisa que sempre problematizam a
comunicação e o consumo na tensa relação entre as promessas do cosmopolitismo
global e a perda de projetos nacionais, refletindo sobre brechas identitárias que
convivem e se constituem, no cotidiano, com fraturas identitárias, atualizando-se e
atualizando “de modo exemplar a histórica aventura de normatização simbólica
assumida por setores burgueses” (Rocha et al., 2014, p. 4)4.
Canclini explica que os melhores especialistas em estudos culturais – Raymond
Williams, Jean Franco e Beatriz Sarlo, com seus estudos sobre literatura e história
intelectual, David Morley e Jesús Martín-Barbero, com suas teses de que os meios de
comunicação só se decifram como parte das práticas culturais – levaram a sério um
campo do saber, “sentindo em algum momento um mal-estar parecido ao que hoje
experimentamos diante dos bairros cercados” (Canclini, 2009, p. 153-154). De modo
que, da presença desses estudos no campo da Comunicação, os lugares, situações que
ligam o indivíduo ao consumo e a uma rede mundial de informações (Prysthon, 2002),
passaram a ser compreendidos como os principais vetores de configuração da cultura,
mas também relacionados a compromissos ocultos com a economia e a reprodução de
uma política transnacional da indiferença; o que nos permitiu compreender que a
compressão do espaço em nome da redução do tempo de giro na condição pós-moderna
(Harvey, 2013) pressupunha sérias fraturas nesta mesma tópica sociocultural da
comunicação e do consumo, ou seja, fraturas no próprio funcionamento dos mercados
e nas condições de vida de determinados núcleos sociais, urbanos e sobretudo
periféricos.
4 As autoras tratam, em Imáginários de uma outra diáspora, de fenômenos como os rolezinhos e o funk
ostentação, sustentando a tese de que, em fenômenos como esses, sujeitos de ação e de discurso se
revelam capacitados a atuar em uma região de bordas, o que, segundo elas, não deixa de caracterizar o
próprio mundo do consumo e das mídias digitais.
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Com especial olhar sobre as fraturas do contexto paulistano, faremos da visão
terrificante das condições sociais de moradia nossa principal interrogação macro neste
artigo, a multiplicar no micro as miradas das subjetividades em processos de resistência
e luta por melhores e mais justas condições de vida na cidade. Antes de analisar um
caso específico e representativo desta condição cosmopolita e periférica de moradia, a
partir da ocupação, cabe localizar esta condição em contexto histórico de compressão
espaço-temporal em que o novo capitalismo passou a ser gerido por redes de
informação, não sem deixar marcas no solo propriamente geográfico e humano.
Condição de moradia: a compressão do espaço-tempo
Grosso modo, a intensificação da compressão do espaço-tempo no capitalismo
ocidental se deu a partir dos anos 1960, atingindo São Paulo em sua terceira etapa de
mundialização com atividades hegemônicas que passaram a utilizar da informação
como base principal do seu domínio. Segundo Milton Santos (2012), a primeira etapa
desta mundialização teria sido aquela com a qual a cidade passou do século XIX para
o século XX, baseando-se no comércio. A segunda seria aquela fundada na produção
industrial que se estendeu até os anos 1960, ao passo que a fase atual seria a da
metrópole global, sociedade da informação, do consumo, da tecnologia e do
cospomopolitismo, mas também de algumas fronteiras ou fraturas econômicas,
geográficas e sociais ainda muito presentes; e daí que pululem os fluxos de
comunicação e consumo chamados “pós-periféricos” (Rocha et al., 2014).
Com a tomada dos serviços públicos pelo privado, a grande precariedade dos
serviços e bens públicos ofertados acarretaram enormes dificuldades à população –
principalmente das camadas mais pobres. De modo que, ao concentrarmos nosso olhar
sobre os aspectos desta fraturada economia simbólica da cultura da cidade de São Paulo,
com destaque à questão das condições de moradia, inevitavelmente perceberemos que
o atual boom imobiliário que vive a cidade, com efeito de aumento do preço da moradia
e dos aluguéis, tem como conseqüência a “expulsão da população pobre para áreas mais
distantes, fora do município, além do aumento significativo das pessoas que estão
morando nas ruas sem qualquer alternativa de moradia” (Maricato et al., 2014). Em
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manifesto de urbanistas e professores em apoio à luta pela votação do novo Plano
Diretor da cidade, registra-se que, no município de São Paulo, “aproximadamente ¼ da
população mora ilegalmente em loteamentos clandestinos e favelas. Em alguns
municípios periféricos da região metropolitana essa proporção chega a 70% de
excluídos” (Maricato et al., 2014).
Isto que se poderia compreender sob o espectro da chamada “especulação
imobiliária” e informacional do espaço tópico e urbano, atua, dessa maneira, como uma
forma significativa de organização capitalista do atual regime de urbanização, aliando-
se ao fato de que “a prestação dos serviços públicos por empresas privadas traz uma
contradição insolúvel, já que sua finalidade última é o lucro, o que o torna incompatível
com a garantia de direitos” (Simpson; Menezes, 2014). Por esta razão macro,
sobretudo, e como veremos adiante, é que aproximadamente trinta famílias ocuparam
uma certa área da cidade de São Paulo, em outubro de 2014; fenômeno cultural, político
e comunicacional representativo da precária condição de moradia em São Paulo e que
interpretaremos neste artigo com vistas em processos de reconhecimento e luta pelo
exercício de direitos historicamente conquistados – a saber, um deles consagrado
internacionalmente como um direito fundamental, o direito à moradia, previsto na
Constituição Federal de 1988, sob o princípio da dignidade da pessoa humana e da
função social da propriedade.
Pensar na condição de moradia numa metrópole latinoamericana como São
Paulo (e no fenômeno de ocupação) à luz dos estudos culturais e dos estudos de
comunicação e consumo, encarando o que nesta explosiva expansão tecnológica e
econômica, de repertórios culturais e ofertas de consumo na cidade, significa a
crepitação das cidades e dos mercados, ou, como diria Bauman (2003; 2008), a
“sedimentação dos resíduos” e a constituição de “subclasses”, as táticas e os usos
cotidianos (Certeau, 2009), os fluxos pós-periféricos de enfrentamento de uma lógica
cultural da distinção e exclusão de certos grupos; este o nosso objetivo teórico mais
geral; propomos assim o desafio empírico de encarar o fato de que, em metrópoles
comunicacionais como a de São Paulo, famílias não têm onde morar, existe um mundo
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de habitações irregulares e/ou precárias, como favelas ou cortiços. E daí que tenhamos
optado por um caminho metodológico e de fundamentação etnográfica para pensar o
que ocorre com estas crepitações urbanas, quando efetivamente nos dirigimos às lascas
e fragmentos que normalmente são retomados por movimentos sociais e culturais
(Canclini, 2009); refletiremos sobre o momento em que, através dos próprios processos
de comunicação e consumo, nos vimos participar destes espaços de luta e negociação,
transformando-nos em coautores de algumas destas “lascas e fragmentos” de sentido
social. E é aqui que percebemos novamente com Canclini (2009, p. 160) que “os
estudos culturais podem ser agora tentativas de encontrar o sentido das inscrições
deixadas por estes fragmentos sobreviventes”, num tipo de disposição etnográfica do
pesquisador que esteja fortemente orientada pelas motivações subjetivas, ou formas de
participação política.
Como sugere o antropólogo Gilberto Velho ao campo da antropologia
contemporânea (1997), com a proposta de uma “etnografia das motivações”,
entendemos que o conjunto de nossos trabalhos neste GT deva realizar uma espécie de
“etnografia dos projetos”, cuja preocupação central consista em desnudar operações
comunicacionais de diversas naturezas, no que estas dizem respeito às fraturas e
contradições do meio em que são produzidas; operações que, reiteramos, consistem nas
próproas ações de sujeitos que procuram exercer suas escolhas diante das fronteiras
hegemônicas – materiais e simbólicas – que lhe são impostas, e assim reconhecidas e
enfrentadas em forma de comunicação, consumo e resistência.
Estas maneiras de se escolher dos sujeitos com quem estivemos durante a
ocupação constituem a base fundacional de um projeto de moradia de dimensão tática
(Certeau, 2009) e de enfrentamento da estratégica e precária condição de moradia em
São Paulo.
Por forte inspiração desses autores, dessas escolas e linhas de pensamento, mas
certamente por motivações próprias do nosso olhar de indignação diante de nossa
condição de moradia na cidade, examinamos, neste artigo, condições históricas e
situacionais de um projeto de moradia, cujas especificidades serão observadas a partir
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de dados secundários e contextuais, mas sobretudo a partir da maneira como
interagíamos com os ocupantes; da maneira como estes manifestavam e/ou explicavam
a sua ação, suas motivações e sentimentos; e da maneira como a Defensoria Pública do
Estado de São Paulo procurou evitar a reintegração de posse, ajuizada por espólio de
“iniciais” e de uma “Associação de Luta por Moradia” (ALM)5.
A seguir, apontaremos algumas operações metodológicas e contribuições da
antropologia contemporânea que serão incorporadas em nossa interpretação do
fenômeno investigado.
Operações metodológicas e contribuições da antropologia
Em texto sobre “a globalização da antropologia depois do pós-modernismo”,
Canclini (2009) nos esclarece quanto ao surgimento, no âmbito dos livros de
antropologia, de um gênero literário-científico que viria a ser rotulado como “realismo
etnográfico”, mas cuja virtude logo cairia por terra quando autores como Georges E.
Marcus e Dick Cushman sustentaram que este suposto realismo etnográfico era uma
ficção, uma vez que seus autores dispunham os dados para apenas conferir aparência
de objetividade a “um sentido social que já estaria formado e só seria visível para esse
sujeito excepcional, de uma cultura diferente – o antropólogo –, treinado para perceber
o sentido global e profundo que se ocultaria aos autores” (Canclini, 2009, p.133).
Suturava-se assim, na formulação da ideia hegemônica de que só um sujeito como o
antropólogo seria capaz de realizar uma observação axiologicamente neutra de outras
culturas, como se isso fosse “real”, o caráter fragmentado e incoerente que a experiência
de campo costuma ter; cancelava-se o próprio processo de diálogo e negociação com
os informantes num tipo de “monólogo despersonalizado de quem descrevia estruturas
sociais” (Canclini, 2009, p. 133).
Destarte, seguiu-se na antropologia uma espécie de vocação persuasiva e
exaustiva dos relatos de campo, resultando em uma condição de simulacro
5 Os nomes de “autores” e “réus” neste artigo são fictícios, bem como os de outras instituições,
lugares e sujeitos remetidos com aspas. A fim de preservar as identidades dos sujeitos em
questão, omitiremos também, nas referências bibliográficas, o texto legal de onde extraímos
algumas argumentações do Defensor Público do Estado de São Paulo.
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ensimesmada no relato descritivo e pretensamente neutro. É diante deste quadro recente
da tradição da pesquisa antropológica e etnográfica, e a fim de recuperar a autoridade
do autor e a natureza do trabalho de pesquisa que se constrói com o objeto empírico,
que Canclini propõe pelo menos três operações metodológicas que seguiremos neste
trabalho em duas partes complementares; sendo que nestas duas partes
operacionalizaremos sob a lógica da terceira operação ora listada.
Vamos assim procurar:
a) incluir na exposição das investigações a problematização das interações
culturais [...] com o grupo estudado; b) suspender a pretensão de abarcar a
totalidade da sociedade examinada e prestar especial atenção às fraturas, às
contradições, aos aspectos inexplicados, às mútiplas perspectivas sobre os
fatos; c) recriar esta multiplicidade no texto, oferecendo a pluralidade de vozes
das manifestações encontradas, transcrevendo diálogos ou reproduzindo o
caráter dialógico da construção de interpretações. Em vez do autor monológico,
autoritário, busca-se a polifonia, a autoria dispersa (Canclini, 2009, p. 133).
Como dissemos, as sessões subsequentes serão escritas conforme esta terceira
operação listada por Canclini, de modo que o texto assumirá um tom de voz mais
narrativo e polifônico na representação das fraturas e contradições encontradas no
trabalho com o grupo de ocupantes; no trato com as suas (e as nossas) motivações e
frustrações apreendidas em seu projeto de moradia.
A problematização das interações culturais com o grupo estudado
Outubro de 2014. Nós é que fomos procurados por uma das ocupantes.
Uma de nossas colegas de pesquisa, assistente social e pesquisadora em Serviço
Social, mantinha relações amistosas com “Joana”, usuária de um serviço sócio-
assistencial, o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) do território da
Cidade Ademar, onde uma e outra, assistente e assistida, se deram a conhecer. Ao
telefone, Joana dizia que, junto de umas trinta famílias, havia ocupado um terreno no
bairro “Jardim X”, Zona Sul da cidade, e que, na condição de uma das líderes do grupo,
diante das pressões sofridas por forte vigilância no local, se sentia preocupada e “sem
saber o que fazer”. A fim de nos fortalecermos e nos esclarecermos do caso junto com
o grupo, logo promovemos uma aproximação com um representante do Movimento dos
Trabalhadores Sem Teto (MTST), com quem realizamos algumas visitas de campo no
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lugar ocupado; e aqui nos dávamos conta de que nos dirigíamos às tais lascas e
fragmentos que são retomados por movimentos sociais e culturais; às fraturas, às
contradições, aos aspectos inexplicados e às mútiplas perspectivas sobre os fatos...
Novembro de 2014. Ali fomos recebidos com expectativa pelos ocupantes, um
tipo de acolhida mais ou menos fundada na figura heróica e mitológica do Salvador;
mais por causa da própria condição desses sujeitos, que, embora “sujeitos de ação e de
discurso capacitados a atuar em uma região de bordas” (Rocha et. al, 2014, p. 1), se
sentiam extremamente ameaçados por seguranças armados e contratados para uma
vigilância permanente no local. O arquétipo do Salvador, em verdade, espelhava-se em
nossa real disposição dialógica e cidadã, também arquetípica, mas de simples aliança
na luta pela complexa e complicada causa dos ocupantes, que estavam sendo
constrangidos sob várias formas mais imediatas; inclusive por terem fechado a
passagem que ligava o terreno à rua, de modo que o acesso que lhes restou (figura 1)
era ainda mais improvisado e difícil para a circulação do dia a dia, difícil para o
transporte de materiais e mobiliário. Segundo Joana, a violência era ainda maior:
[...] O segurança, dentro da viatura, coagindo os menino lá no muro. Chegou
pros menino e falou – o “seu João”, muito conhecido aqui, né –, chegou pro
seu João e perguntou pra eles, né, por que eles estavam entrando com material
ainda, se a gente já tinha recebido o comunicado pra gente desocupar. Aí o seu
João falou: “não, a gente sabe que essa área [figura 2] é da prefeitura; a gente
vai lutar”. Aí ele falou: “Pois, então, vocês estão com o papel na mão, a gente
tem todo o direito de entrar aí agora, e o primeiro que a gente vai pegar é o
senhor. Eu vou acabar com o senhor na borrachada”. Aí ele pegou e mandou
eles descerem de volta, não deixaram eles entrar com as telha, que era pra esse
barraco aqui, e o outro lá do fundo [...] Aí tem umas telha ali no fundo, que
esse segurança chutou. As telha que tava na parede tá todas quebrada. Todas.
Em outra visita de campo, já em dezembro do mesmo ano, Joana relata uma
situação em que a violência efetivamente toma “corpo”, e em que os dispositivos de
comunicação e consumo atuam como importante instrumento de luta e resistência:
Na quinta ou na sexta, a minha mãe foi lá pra dentro pra ver como é que eu
tava. Aí na hora que minha mãe foi sair, eles não deixaram minha mãe sair, né.
Não queria deixar minha mãe sair, não queria deixar minha mãe sair... Por que
eles não deixavam? Porque tinha um rapaz do lado de fora, que queria entrar,
aí eles disseram que não podia, aí ele começou a filmar. E a gravar. E eles
pegaram o rapaz, mas bateram, mas bateram de arrancar sangue.
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Figuras 1 e 2: Acesso e área ocupada
A “Associação de Moradores”, vizinha da ocupação, ainda ajudava os
ocupantes com acesso ao consumo de água e uso do banheiro. Mas as famílias
costumavam usar casas de parentes e amigos; estes que, por sua vez, também
pressionados pelos altos preços dos aluguéis na região, não sabiam se se mudavam ou
não para a ocupação.
Já os ocupantes, certos de que, diante das opções colocadas pelo representante
do MTST – entre permanecer no local e lutar por ele, ou lutar por moradia em qualquer
outro lugar – iriam permanecer e lutar pela área, acionaram a Defensoria Pública do
Estado de São Paulo (com o madado de reintegração de posse em mãos).
Figura 3: Momento em que ocupantes decidem lutar pela área
Fraturas, contradições e aspectos inexplicados
Ao tratar “da legitimidade ativa e do interesse de agir: área ocupada pelos réus
e direitos da ‘ALM’”, o defensor público destaca o cerne da questão:
[...] a área ocupada pelos réus não está compreendida pela propriedade dos
autores. A ocupação não ocorreu de solapo: os ocupantes procuraram, antes de
tomar tal medida, diversas outras opções para exercer o seu direito fundamental
à moradia. O abandono da política habitacional pelo Estado, todavia, não lhes
deixou opção senão promover a ocupação. Decididos a respeito da ocupação,
então o movimento procurou área para ocupar que estivesse abandonada e não
fosse de propriedade privada. Em diligências, obtiveram a informação de que
parte da área situada na Rua “X” s/n, não teria proprietário registral. Por isso,
decidiram que esse seria o local da ocupação, na expectativa de que, caso
interpelados pelo Estado para desocupá-la no futuro, pudessem negociar a
obtenção de alternativa habitacional factível.
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Ora, temos aí uma argumentação que não escapa em nada dos problemas-chave
dos estudos culturais que se construíram ao longo de suas fases, objetos distintos e
questões predominantes: o sujeito e sua ação num determinado marco histórico; o
reconhecimento de processos de diferenciação, exclusão e dominação; e a centralidade
da comunicação – enquanto espaço de negociação e conflito, articulação entre
produtores, textos e receptores situados numa determinada formação social – na
configuração destes processos e na “resolução” de suas contradições (Escostesguy
(2014). Essas contradições, que facilmente podem ser localizadas em uma situação
como essa, remontam a contradições históricas em que os próprios programas sociais,
que deveriam resolvê-las, acabam por intensificar. Pesquisadores do Instituto Brasileiro
de Análises Sociais e Econômicas (IBASE) apontam que, nos últimos anos,
temos visto a opção por investimentos que visam ao crescimento econômico e
ao mesmo tempo acabam por gerar mais exclusão. Exemplos dessas
contradições aparecem no próprio Minha Casa Minha Vida, programa
habitacional regressivo que deixa predominantemente nas mãos das grandes
empreiteiras a construção de milhões de unidades habitacionais e coloca por
terra preceitos básicos, como a localização adequada em áreas com
infraestrutura, saneamento ambiental, transporte coletivo, equipamentos,
serviços urbanos e sociais, inviabilizando ainda mais o acesso a oportunidades
de desenvolvimento social e econômico para moradores que já eram pobres,
repetindo erros do passado de forma ainda mais perversa (Simpson; Menezes,
2014).
Em nota pública da Rede Cidade e Moradia (2014), destaca-se que
O Programa se apresenta, enfim, como solução única e pouco integrada aos
desafios das cidades brasileiras para enfrentamento de complexo “problema
habitacional”, baseado numa produção padronizada e em larga escala,
desarticulada das realidades locais, mal inserida e isolada da cidade, a partir de
um modelo de propriedade privada condominial.
Dessas considerações, interessa-nos perceber um contexto sociocultural amplo
e de relação contraditória entre os projetos nacionais e as promessas do novo
capitalismo – ou do cosmopolitismo global a ele associado –, e o tema das fraturas e
contradições do tecido social e urbano que também estão presentes na argumentação da
Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Na parte que trata “da concessão da liminar
inaudita altera parte em prejuízo ao contraditório e ao direito fundamental à moradia
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dos ocupantes: interpretação conforme a constituição do artigo 928 do código de
processo civil”, a Defensoria avalia a oportunidade da concessão da liminar sem a oitiva
da parte contrária:
O juízo concedeu, inaudita altera parte, a liminar pleiteada para determinar a
imediata desocupação do terreno objeto do litígio pelos réus. Assim o fez com
fundamento no artigo 928 do Código de Processo Civil. [...] Não se pode
olvidar, todavia, que o Código do Processo Civil foi promulgado em 1973.
Vigia, à época, a Constituição de 1967, reformada pela Emenda Constitucional
nº 01, outorgada em 1969. À época, a proteção a direitos fundamentais não era
prioridade no ordenamento jurídico brasileiro. [...] É dizer: em casos em que
uma pessoa tem a sua moradia turbada ou esbulhada por outrem, é possível a
sua manutenção ou reintegração liminar, quiçá até inaudita altera parte: por
trás de ambas pretensões há direitos da mesma magnitude – direito fundamental
à moradia – e é manifesta a urgência na retomada do lar pelo autor. No caso
em tela, todavia, os autores não moram no local objeto da invasão. Não há,
portanto, colidência direta entre direitos fundamentais de igual peso. [...] Ainda
é de se considerar que a ordem determinou a retirada imediata de centenas de
pessoas – dentre as quais idosos, crianças e portadores de deficiência. Nesses
casos, a cautela sugere que os ocupantes sejam sempre ouvidos, ainda que em
audiência de justificação a ser marcada com urgência possível. [...] Em suma:
embora haja previsão legal de concessão da liminar sem a oitiva da parte
contrária, a sua interpretação à luz do princípio da dignidade da pessoa humana
sugere que, nos casos em que não reste claro se há urgência na medida e em
que o cumprimento da ordem desaloje centenas de pessoas, o magistrado evite
retirar pessoas da sua moradia sem que elas tenham sequer a possibilidade de
se manifestar a respeito da pretensão.
No entanto, assim ocorreu: a imediata desocupação do terreno, sem que as
dezenas de famílias pudessem se “comunicar” a respeito da “pretensão”; elas foram
desalojadas de suas casas às pressas, abordadas pela Polícia Militar às quatro horas da
manhã, sem tempo para retirar tudo aquilo que lhes pertencia – e sem as condições
demandadas pela Defensoria, conforme explicitado em processo judicial, caso fosse
realizada a remoção.
Nem mesmo animais de estimação sobreviveram à destruição dos tratores.
Ao voltarmos ao local para ver de perto o ocorrido, Joana lamenta enquanto nos
mostra ruínas; os bens de consumo que antes faziam parte do cotidiano das pessoas e
que ficaram para trás: “O que até ontem eram casas, a gente vê desse jeito assim, ó...
Olha o sofá da Lena, ficou, judiação. A casa do Luís...” (figura 4): “Meio complicado
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de voltar, né...”. “Aqui foi onde mataram o gatinho dela [fazia referência a uma senhora
idosa]. Ali, ó, tá vendo, não deu tempo de tirar muita coisa dela, ó... Ó, a cama dela tá
aqui, a cama do filho dela tá aqui, roupa do Danilo, ó, chinelo dela” (figura 5).
Figuras 4 e 5: Momento em que voltamos com Joana ao local da ocupação
Nas figuras de 6 a 8, podemos ver registros, feitos pelos próprios ocupantes, de
como estavam sendo construídas as suas moradias; de como as ocupavam.
Figuras 6, 7 e 8: Moradia dos ocupantes
É de se constatar um retrato ultrapassado e em ruínas. Pois que motivações,
desejos e direitos que deveriam proteger a dignidade humana foram feridos; casas
destruídas; o dia a dia de um projeto de moradia devastado.
Considerações finais
Tentamos compreender neste artigo um fenômeno de ocupação por moradia em
São Paulo que se remete aos ecos e fragmentos de subjetividades em resistência; vozes
ou relatos de uma inaudita altera parte, historicamente silenciada por esta práxis
política da indiferença do novo capitalismo.
Entendemos que os ecos e fragmentos desta resistência cosmopolita e
potencialmente pós-periférica podem ser observados nos projetos de subjetivação que
normalmente evidenciam as contradições deste mesmo capitalismo subjetivista.
Compreender estes projetos em suas múltiplas e complexas trajetórias de
sentido talvez seja uma forma de pensar caminhos possíveis e descaminhos evitáveis
para o devir capitalista e o devir das políticas sociais; sem dúvida, um desafio
metodológico e epistemológico que aqui nos colocamos.
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