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27 2. Condições de existência do discurso musical A linguagem - a fala humana - é uma inesgotável riqueza de múltiplos valores. A linguagem é inseparável do homem e segue-o em todos os seus atos. A linguagem é o instrumento graças ao qual o homem modela seu pensamento, seus sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua vontade e seus atos, o instrumento graças ao qual ele influencia e é influenciado, a base última e mais profunda da sociedade humana. Mas é também o recurso último e indispensável do homem, seu refúgio nas horas solitárias em que o espírito luta com a existência, e quando o conflito se resolve no monólogo do poeta e na meditação do pensador. Louis Hjelmslev 2.1.Som, o elemento mínimo Em transmissão para a rádio BBC de Londres 3 , o maestro Lawrence Foster caminha em direção ao tablado posicionado à frente da orquestra. O público recebe-o com os protocolares aplausos; a peça a ser executada é 4'33'' (1952) de John Cage (1912-1992). Nada haveria de estranho se essa obra, em três movimentos, composta originalmente para piano, não se tratasse de um marco nas concepções sobre o fazer musical ocidental, justamente pela ausência de música ou, melhor dizendo, de sons produzidos pelos intérpretes em questão. Tal exemplo mostra-nos que a concepção sobre o que é música altera-se a cada época, lugar ou ponto de vista. É social, mas é também individual. Diante de uma proposta de semiótica musical, como a que aqui se apresenta, cabe-nos tentar definir os termos dessa sentença. Portanto, à frente da discussão teórica que evidentemente fundamentará esta tese, é preciso, como ponto de partida, circunscrever o que entendemos por música. 3 Arquivo de vídeo no CD anexo.

CondiçõEs de ExistêNcia

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    2. Condies(de(existncia(do(discurso(musical(

    A linguagem - a fala humana - uma inesgotvel riqueza de mltiplos valores. A linguagem inseparvel do

    homem e segue-o em todos os seus atos. A linguagem o instrumento graas ao qual o homem modela seu pensamento, seus sentimentos, suas emoes, seus

    esforos, sua vontade e seus atos, o instrumento graas ao qual ele influencia e influenciado, a base ltima e

    mais profunda da sociedade humana. Mas tambm o recurso ltimo e indispensvel do homem, seu refgio

    nas horas solitrias em que o esprito luta com a existncia, e quando o conflito se resolve no monlogo

    do poeta e na meditao do pensador. Louis Hjelmslev

    2.1. Som,(o(elemento(mnimo(Em transmisso para a rdio BBC de Londres3, o maestro Lawrence

    Foster caminha em direo ao tablado posicionado frente da orquestra. O

    pblico recebe-o com os protocolares aplausos; a pea a ser executada

    4'33'' (1952) de John Cage (1912-1992). Nada haveria de estranho se essa

    obra, em trs movimentos, composta originalmente para piano, no se

    tratasse de um marco nas concepes sobre o fazer musical ocidental,

    justamente pela ausncia de msica ou, melhor dizendo, de sons produzidos

    pelos intrpretes em questo. Tal exemplo mostra-nos que a concepo

    sobre o que msica altera-se a cada poca, lugar ou ponto de vista.

    social, mas tambm individual.

    Diante de uma proposta de semitica musical, como a que aqui se

    apresenta, cabe-nos tentar definir os termos dessa sentena. Portanto,

    frente da discusso terica que evidentemente fundamentar esta tese,

    preciso, como ponto de partida, circunscrever o que entendemos por msica.

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!3 Arquivo de vdeo no CD anexo.

  • ! 28!

    Para alm dos discursos dos compositores e das definies dos

    dicionrios, pois estes apenas delimitam a significao dos conceitos no seio

    de determinada cultura, enquanto aqueles, geralmente, elaboram suas

    posies a partir de uma perspectiva esttica, cabe-nos aqui observar o fato

    musical sob uma tica um pouco mais ampla. Em princpio, inspira-nos

    apenas a ideia de que o discurso musical, enquanto fato enunciado, carrega

    consigo um enunciador, o seu discurso e seu enunciatrio. Compreend-lo

    por meio de uma ou outra dessas categorias assimilar apenas parcialmente

    seu ambiente significativo.

    Algumas questes prvias revelam-nos o problema: poderamos

    apontar uma definio estvel de msica? H um senso comum sobre esse

    conceito, atravessando as culturas e sobre seu oposto, ou seja, o que no

    msica?

    Podendo-se falar de senso comum, facilmente recorreramos s

    seguintes definies: "combinao harmoniosa e expressiva de sons" ou "a

    arte de se exprimir por meio de sons, seguindo regras variveis conforme a

    poca, a civilizao etc." (Houaiss online, 2014).

    O problema aqui, em nosso modo de ver, centra-se no

    estabelecimento das regras que inscrevem um dado discurso enquanto

    msica e, ento, novas questes emergem: (a) Se tais regras so variveis,

    seria possvel estabelecer um limite geral que regule e preveja todas as

    mltiplas variantes? (b) Existiria uma gramtica musical subjacente e regente

    das muitas gramticas musicais no seio das mais variadas culturas?

    Tais questionamentos encontram pertinncia diante do caos conceitual

    proveniente das inmeras estticas desconstrucionistas que se sucederam ao

    longo do sculo XX. Como aponta Ruwet:

    Il faut bien se dire que, pour des raison historiques qu'il ne m'appartient pas de discuter, nous vivons un ge o il est devenu possible pour n'importe qui, sans grand risque, de

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    baptiser n'importe quoi du nom de musique, de posie ou de peinture (Ruwet, 1975, p. 349). necessrio dizer que, por razes histricas que no me cabem discutir, vivemos numa era onde tornou-se possvel para qualquer um, sem grande risco, batizar qualquer coisa sob o nome de msica, de poesia ou de pintura.

    Em outra perspectiva, a de Jean Molino, imprescindvel, para a

    compreenso do que seja msica, a compreenso do fato musical:

    La musique est un fait social total dont la dfinition varie selon les poques et les cultures, et dont les traits caractristiques, puiss dans l'ensemble des phnomnes associs au fait musical (depuis les geste du chef d'orchestre jusqu' la salle de concert), se rpartissent entre les trois ples de la tripartition. (Molino, 1975, p. 37). A msica um fato social total na qual sua definio varia de acordo com as pocas e as culturas, e onde seus traos caractersticos, inseridos no conjunto de fenmenos associados ao fato musical (desde o gesto do maestro at a sala de concerto), se dividem entre os trs plos da tripartio.

    A perspectiva desse autor ser amplamente desenvolvida na obra de

    Jean-Jacques Nattiez, em que a compreenso do fato musical depende de

    ampla viso que tome em conta a fonte criadora, o discurso em si e sua

    recepo - a dita tripartio semiolgica. Na terminologia de Nattiez, trata-se

    dos nveis poitique, neutre e esthsique4. Dando-se um passo em direo a

    uma aproximao conceitual, talvez possamos associar tal perspectiva ao que

    chamamos de cena enunciativa, imprescindvel para a compreenso do

    discurso em sua totalidade; trataremos disso posteriormente, no captulo

    seis.

    Pode tambm parecer que essa falta de elementos mnimos

    necessrios instaurao de um discurso musical coloque-nos diante de um

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!4 Doravante, tratados por potico, neutro e estsico.

  • ! 30!

    objeto vazio, ou seja, se no podemos estabelecer as regras bsicas mnimas

    que regem o discurso, no haveria como pensar em uma gramtica ou uma

    semitica que se proponha estudar a construo do sentido em um ente

    inapreensvel em sua imanncia. Disso resulta a falsa impresso de que a

    msica uma linguagem desprovida de um plano de contedo e que, se

    comparada linguagem verbal, esta ltima possui referncias mais

    claramente ancoradas no mundo real. Expliquemos.

    Ora, tal forma de pensamento prega-nos uma armadilha. Ao tratarmos

    de uma linguagem que se expressa, sobretudo, em processos de criao

    artstica, natural que as regras que a regem sejam cada vez mais colocadas

    prova e que os contedos por ela expressos sejam de ordem sensvel,

    menos comprometidos com uma delimitada situao comunicativa. Por sua

    vez, a linguagem verbal comporta-se de maneira semelhante quando vista

    sob uma perspectiva potica. Assim tambm ocorre com o cinema, a pintura

    etc.

    O poema a seguir mostra-nos como as possibilidades das linguagens

    ampliam-se quando elas esto a servio de um processo de comunicao

    artstico:

  • ! 31!

    Fonte: Campos ([1953, data original] 2007, p. 75). Eis os Amantes.

    Nosso objetivo aqui no analisar o poema apresentado, mas, quem

    poderia negar que se trata de um objeto semitico de escopo verbal ou

    verbovocovisual? Certamente, a significao presente no poema contempla

    outros elementos que no puramente a significao das palavras e frases.

    Nesse sentido, h tempos a semitica deixou de ter como tarefa exclusiva o

    estudo de textos verbais cannicos, tendo em sua perspectiva atual o desafio

    das linguagens sincrticas, fluidas e de difcil sistematizao.

    Voltando ao poema, podemos supor que seu vnculo com o sistema

    verbal seja, no mnimo, a presena de palavras e caracteres fonticos que

    remetem a tal sistema. Agora, retomando a obra de John Cage, o que restou

    de msica se no h som?

  • ! 32!

    A execuo pblica de 4'33'' , segundo o prprio compositor, a busca

    do som do pblico, dos rudos da plateia, daquilo que se convencionou

    chamar de paisagem sonora, expresso cunhada pelo compositor Murray

    Schafer5 (2011). o que podemos constatar na fala de Nattiez:

    On pourrait s'attendre ce que le concept de musique contienne au moins la variable son. C'est elle que retrouve Cage dans sa pice 4'33''... de silence, o un pianiste approche et loigne les mains du clavier plusieurs reprises sans jamais faire entendre une seule note. La musique, alors, nous dit Cage, c'est le bruit fait pour les spectateurs. (Nattiez, 1987, p. 69) Ns poderamos esperar que o conceito de msica contempla, ao menos, a varivel som. Cage busca o som em sua pea 4'33''... de silncio, onde um pianista aproxima e distancia suas mos do teclado em frequntes repeties sem jamais produzir uma nica nota. A msica, ento, nos diz Cage, o rudo produzido pelo pblico.

    Como mostra a citao, a presena do som imprescindvel para o

    fato musical; no h msica sem som, e o exemplo-limite aqui apresentado,

    de uma msica que prope tal ausncia, deixa emergir os sons que esto do

    outro lado do palco, junto ao pblico. De uma ou outra forma, a msica

    prope um jogo sonoro e, nesse caso, o estudo da cena enunciativa seria

    uma premissa para a compreenso da significao musical.

    Outra questo poderia ainda ser posta: e havendo o absoluto silncio

    por parte da plateia, o que seria do discurso musical? Pois bem: sabe-se que

    o absoluto silncio no existe, pelo menos enquanto estamos vivos! Pessoas

    submetidas s chamadas cmaras anecoicas6 relatam que, aps alguns

    segundos, ouvem-se os prprios batimentos cardacos, a respirao e o rudo

    da corrente sangunea. Basta que se faa um teste para observarmos que,

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!5 O compositor canadense Murray Schafer um importante pesquisador sobre a paisagem sonora, inclusive, aplicando seus pensamentos educao musical. 6 Salas completamente isoladas de rudos e ondas eletromagnticas projetadas para testes acsticos.

  • ! 33!

    quanto mais mergulhamos no silncio, mais se manifestam os pequenos

    rudos de que at ento no nos dvamos conta. A obra de Cage nos faz

    refletir sobre isso tambm.

    2.2. Intencionalidade7(musical(Nesta tese, no nos ocuparemos da msica apenas como um

    fenmeno acstico. O mero rudo numa sala de espetculos em Cage, a

    paisagem sonora da cidade ou do campo em Schafer e uma locuo

    futebolstica em Hermeto Pascoal8 s se tornam msica, quando h um ato

    de enunciao que o converteu como tal. Semelhantemente linguagem

    verbal, faz-se necessrio um ato de fala intencionalmente realizado para que

    a linguagem assuma seu estatuto lingustico. Isso nos mostra Benveniste:

    La enunciacin es este poner a funcionar la lengua por un acto individual de utilizacin. El discurso - se dir - que es producido cada vez que se habla, esa manifestacin de la enunciacin, no es sencillamente el habla? Hay que atender a la condicin especfica de la enunciacin: es el acto mismo de producir un enunciado y no el texto del enunciado lo que es nuestro objeto (...) La relacin entre el locutor y la lengua determina los caracteres lingsticos de la enunciacin. Debe considerrsela como hecho del locutor, que toma la lengua por instrumento, y en los caracteres lingsticos que marcan esta relacin. (Benveniste, 1999, p. 83). A enunciao este por a funcionar a lngua por um ato individual de utilizao. O discurso - se dir - que produzido a cada vez que se fala, essa manifestao da enunciao, no simplesmente o falar? Deve-se entender a condio especfica da enunciao: o prprio ato de produzir um enunciado e no o texto do enunciado que nosso objeto (...) A relao entre o enunciador e a lngua determina os traos lingusticos da enunciao. Deve-se consider-la como um ato do

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!7 Semioticamente, Intencionalidade distingue-se de Inteno (Greimas; Courts, 2008, p. 267). 8 Arquivo de vdeo no CD anexo.

  • ! 34!

    enunciador, que toma a lngua por instrumento, e nos traos lingusticos que marcam essa relao.

    Vemos claramente que por trs de um discurso encontramos um

    aparato enunciativo. Esse aparato enunciativo no se configura para fora do

    texto se entendermos que o fato musical um amplo texto que comporta

    uma cena enunciativa ou, em outras palavras, os nveis potico, neutro e

    estsico9.

    Dessa forma, em nossas anlises, trataremos do discurso musical como

    um evento lingustico amplo, delimitado por um ato realizador ou recriador

    do compositor, arranjador e do intrprete bem como um objeto musical

    sonoro analisvel por meio de um registro impresso ou fonogrfico que

    produz efeitos de sentido perceptveis por um enunciatrio participante

    desse sistema e, portanto, em comunho com o sistema lingustico em

    questo. No captulo 4, em que discutiremos o modelo tripartite de Nattiez10,

    e no captulo 6 sobre a actancializao da cena enunciativa, propomos-nos

    discorrer mais pormenorizadamente sobre essas questes.

    Isso explica, ento, como possvel que obras musicais quase

    esvaziadas de construo harmnica, meldica ou rtmica possam alcanar

    tanta importncia no cnone musical. Para o texto significativo, ou seja, para

    o fato musical amplo, no apenas o artesanato sonoro que atribui

    relevncia obra. Desconsiderar tal premissa pode inviabilizar a percepo

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!9 Como veremos nesta tese, o nvel potico refere-se ao nvel de criao da obra musical, o estsico trata de sua recepo e de sua percepo, enquanto o nvel neutro nada mais que o prprio discurso musical imanente. 10 Nattiez apresenta os conceitos de Fato Musical e Modelo tripartite em sua obra de 1977 Fondements d'une smiologie de la musique. O autor rende os devidos crditos Jean Molino como criador da teoria (MOLINO, 1975), porm, somente em Nattiez que podemos encontrar o desenvolvimento e aplicao de tais princpios. Por essa razo, em nosso trabalho, deve-se considerar sempre uma meno indireta Molino quando nos referirmos ao modelo tripartite e ao fato musical.

  • ! 35!

    do sentido em peas cuja cena enunciativa se sobressai ao discurso musical

    imanente, perdendo-se de vista os efeitos de sentido objetivados pelo

    discurso amplo. guisa de exemplo, lembremo-nos da simplicidade

    harmnica presente na cano Pra no dizer que no falei das flores de

    Geraldo Vandr, em que se retira o foco do discurso sobre os sons e se

    concentra no discurso das palavras; trata-se de uma estratgia comum nos

    discursos musicais que demandam engajamento poltico ou profisso de f,

    uma astcia enunciativa como tantas outras dos discursos verbais.

    !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!