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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LÍNGUA E LITERATURA GREGA Conhecimento e memória no Teeteto de Platão Luciano Ferreira de Souza São Paulo 2016

Conhecimento e memória no Teeteto de Platão - teses.usp.br · pausa na argumentação criada por seus personagens, como se de alguma maneira o convidasse a fazer parte também do

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LNGUA E LITERATURA GREGA

    Conhecimento e memria no Teeteto de Plato

    Luciano Ferreira de Souza

    So Paulo

    2016

  • LUCIANO FERREIRA DE SOUZA

    Conhecimento e memria no Teeteto de Plato

    Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Letras Clssicas e Vernculas da Universidade de So Paulo como requisito para a obteno do ttulo de Doutor em Letras Clssicas. rea de concentrao: Lngua e Literatura Grega Orientador: Prof. Dr. Jos Antnio Alves Torrano

    So Paulo 2016

  • memria de minha me

  • Agradecimentos

    Eis o momento de recordar-me de todos aqueles que fizeram parte desta

    interminvel jornada. Citarei em primeiro lugar meu orientador, Jos Antonio Alves

    Torrano, por ter aceitado me orientar nesta pesquisa de doutorado, dando

    continuidade ao que desenvolvemos durante o mestrado, apesar da aparente

    excentricidade do tema abordado. Agradeo pelo incentivo em presena e

    distncia , pela leitura acurada deste trabalho, pelas crticas e sugestes. Agradeo

    pela amizade demonstrada nos momentos difceis e tambm pela alegria

    compartilhada pela concluso deste trabalho.

    professora Cristina Viano, chef de recherche no Centre Lon Robin, que

    to bem me acolheu na Universit Paris-Sorbonne Paris IV durante meu estgio

    doutoral. Alm das conversas produtivas sobre o Teeteto, meus sinceros

    agradecimentos por me ensinar como suportar o frio e os parisienses e, sobretudo,

    por tentar entender o verdadeiro significado da palavra saudade.

    Agradeo tambm aos outros membros do Lon, especialmente Jean-

    Baptiste Gourinat, diretor do centro de pesquisa.

    Aos pesquisadores e funcionrios da ENS (cole Normale Suprieure de

    Paris) e aos outros professores e doutorandos, agradeo pela acolhida, pelos

    seminrios realizados e pela oportunidade nica de convvio com renomados

    pesquisadores, amantes da Antiguidade Clssica.

    Aos professores Adriano Machado Ribeiro e Roberto Bolzani Filho, membros

    da banca de qualificao, pelas crticas, pelas sugestes e pelo incentivo num

    momento conturbado da pesquisa.

    Aos colegas parisienses, italianos, gregos, brasileiros e de outras

    nacionalidades, companheiros da Fondation Hellnique, da Cit Universitaire e de

    outros cantos de Paris, que acompanharam os sete meses passados longe de casa.

    A todos, mon immense merci pela curiosidade sobre a pesquisa e pela

    demonstrao de apreo pelo meu pas.

    Aos amigos brasileiros, uspianos e de longa data que c ficaram na

    expectativa de que a concluso desta tese atingisse o seu objetivo, Camila Zanon,

    Tiago Atorre, Lvia Oushiro, Uiran Gebara e Flvia Coimbra.

  • Aos amigos Leslie Neis, Drcio Ricca, Renata Albuquerque, Fernanda

    Fernandes e Toms Menk, pelos momentos de descontrao em Paris. Foi muito

    gratificante t-los encontrado por l.

    Ao Cristian Reichert e ao Lo, pela convivncia diria.

    minha famlia.

    E finalmente agradeo a CAPES, pela bolsa de doutorado oferecida durante

    os quatro anos de pesquisa desenvolvida na Universidade de So Paulo e pela

    bolsa do Programa de Doutorado Sanduche no Exterior (PDSE).

  • (...) havia vivido como quem sonha: olhava sem ver, ouvia sem ouvir, esquecia-se de tudo,

    de quase tudo. Ao cair, perdeu o conhecimento; quando o recobrou, o presente era quase

    intolervel de to rico e to ntido, e tambm as memrias mais antigas e mais triviais.

    Pouco depois averiguou que estava paraltico. Fato pouco o interessou. Pensou (sentiu) que

    a imobilidade era um preo mnimo. Agora a sua percepo e sua memria eram infalveis..

    Jorge Luis Borges, Funes, o memorioso.

  • Resumo

    Esta tese tem como objetivo oferecer uma interpretao da questo da memria no

    dilogo Teeteto de Plato. O enfoque especfico, todavia, no trata da discusso da

    reminiscncia, tema esperado quando se aborda o problema da memria na filosofia

    platnica. Minha proposta de leitura de parte de dois conceitos novos, um de carter

    literrio a memria dramtica e outro de carter filosfico a memria filosfica.

    O primeiro tem como objetivo analisar o jogo entre a lembrana e esquecimento

    apresentado como recurso literrio na construo do dilogo. O segundo, por sua

    vez, examina a memria como argumento explcito para a definio do tema

    principal do dilogo, o conhecimento. Por fim, apresento a traduo integral do

    dilogo Teeteto como complemento ao trabalho.

    Palavras-chave: Plato; Teeteto; Conhecimento; Memria; Traduo.

  • Abstract

    This thesis aims to offer an interpretation of the issue of memory in the Theaetetus

    Plato's dialogue. The specific focus, however, is not about the discussion of

    reminiscence, expected issue when addressing the problem of memory in Platonic

    philosophy. My proposal for reading parts of two new concepts, one of a literary

    nature - the dramatic memory - and another philosophical nature - the philosophical

    memory. The first aims to analyze the interplay between remembering and forgetting

    presented as literary resource in the construction of the dialogue. The second, in

    turn, examines the memory as an explicit argument for the main theme of the

    definition of dialogue, the knowledge. Finally, I present the full translation of the

    dialogue Theaetetus as a complement to work.

    Key-words: Plato, Theaetetus, Knowledge, Memory; Translation

  • Sumrio Resumo ................................................................................................................................. 7

    Abstract ................................................................................................................................. 8

    INTRODUO ..................................................................................................................... 10

    O Teeteto sob a luz da memria dramtica ......................................................................... 10

    Parte I: NARRATIVA E MEMRIA ....................................................................................... 14

    O prlogo do Teeteto e a construo de um dilogo memorvel ......................................... 15

    PARTE II: ASTHESIS: CONHECIMENTO, SENSAO E MEMRIA. .............................. 23

    As memrias de Scrates e Teodoro ................................................................................... 24

    As primeiras assimilaes de por Teeteto ............................................................. 26

    O conhecimento uma tcnica? .......................................................................................... 29

    A memria de Teeteto: um exemplo matemtico ................................................................. 31

    A maiutica socrtica ........................................................................................................... 33

    CONHECIMENTO SENSAO? ..................................................................................... 39

    Sensao e Protgoras ....................................................................................................... 39

    Sensao e Herclito ........................................................................................................... 43

    Anfidromia ........................................................................................................................... 46

    A apario de Protgoras .................................................................................................... 48

    Sensao e memria ........................................................................................................... 49

    A presena do ausente: a defesa de Protgoras ................................................................. 51

    Interldio: a digresso filosfica ........................................................................................... 54

    Retorno a Protgoras ........................................................................................................... 58

    Retorno a Herclito .............................................................................................................. 58

    Parte III: DXA: CONHECIMENTO, OPINIO E MEMRIA ............................................... 62

    Opinio e memria dramtica .............................................................................................. 63

    Conhecimento opinio verdadeira? ................................................................................... 65

    O saber e o no saber na opinio ........................................................................................ 66

    O ser e o no ser na opinio ................................................................................................ 67

    Allodoxia, ou outra opinio ................................................................................................ 67

  • O bloco de cera e a memria ............................................................................................... 70

    Opinio falsa e memria ...................................................................................................... 73

    O Avirio e a memria ......................................................................................................... 78

    Conhecimento no opinio verdadeira .............................................................................. 85

    Parte IV: LGOS: CONHECIMENTO, EXPLICAO E MEMRIA. ................................... 86

    Conhecimento opinio verdadeira acompanhada de ? ............................................ 87

    O sonho de Scrates e a memria dramtica ...................................................................... 87

    Os sentidos de e a memria dramtica...................................................................... 92

    O como discurso. ....................................................................................................... 93

    O como enumerao das partes ................................................................................ 95

    O como sinal distintivo e a memria .......................................................................... 99

    Conhecimento no opinio verdadeira acompanhada de . .................................... 102

    Concluso.......................................................................................................................... 103

    Parte V: TRADUO: TEETETO....................................................................................... 105

    Bibliografia ......................................................................................................................... 193

  • 10

    INTRODUO

    O Teeteto sob a luz da memria dramtica

    O Teeteto no trata da memria. Esta afirmao, embora contradiga o ttulo

    deste trabalho, tem algum fundamento. Quando se aborda a questo da memria

    em Plato se constata, por um lado, que h um nmero relativamente restrito de

    obras consagradas questo e, por outro lado, que h uma gama muito grande de

    perspectivas nas quais ela abordada. No entanto, parece que existem alguns

    fatores que tornam o estudo da memria em Plato uma tarefa particularmente difcil

    e que determina esta diversidade de abordagens. O estudo da memria na filosofia

    platnica tradicionalmente considerado como profundamente ligado teoria da

    anamnese, ou ascese deste conceito num plano inteligvel. Alm desta teoria,

    existem tentativas de dar conta de outro estatuto que pode ser atribudo memria

    em particular, num plano sensvel. Por este vis, entre o inteligvel e o sensvel, os

    textos platnicos que abordam a memria colocam a questo de um modo diferente,

    por serem necessariamente heterogneos em seu sujeito (a descoberta da virtude

    no Mnon, a natureza da alma Fedro, o destino da alma no Fdon, a investigao

    sobre o prazer no Filebo e a tentativa de definir conhecimento no Teeteto).

    Ademais, no existe em Plato um dilogo consagrado em sua totalidade

    memria, no existe uma discusso acerca de sua essncia, no se procura

    responder questo o que a memria? Como foi dito, se tal questo colocada

    por Plato, ela se insere apenas em passagens inscritas em contextos que abordam

    uma questo tica, poltica ou metafsica precisa. Em face desta diversidade de

    textos e contextos, parece ser extremamente difcil propor uma base interpretativa

    global. No se estranha, no entanto, que os poucos pesquisadores que estudam a

    memria nos dilogos platnicos cheguem muitas vezes concluso de que se

    trata, na realidade, de um ornamento literrio ou uma metfora, isto , de recursos

    usados na argumentao de um problema maior. Por no preencher as condies

    objetivas tidas como centrais, o estatuto da memria muitas vezes simplificado em

  • 11

    funo de outros argumentos explcitos e tematizados nos dilogos, como se a

    memria estivesse aparentemente fora do campo de interesse de Plato.

    Certamente, as tentativas de elucidao da noo problemtica da memria

    nos conduzem mais a novas perguntas do que a respostas. Por isso, a

    compreenso de sua funo e seu estatuto nos textos de Plato parece, a meu ver,

    merecer um estudo detalhado, sobretudo o modo como a memria abordada,

    explicita e implicitamente, em um dilogo como o Teeteto.

    Todavia, como no se pode deixar de lado a abordagem do tema maior em

    detrimento do que aparentemente ornamental, deve-se ao menos esforar-se para

    expor o elo existente entre o principal e o perifrico, e isto prefigura o objetivo deste

    trabalho. Abordar tal elo , neste sentido, expor as relaes existentes entre

    conhecimento e memria no dilogo Teeteto de Plato. No h aqui um esquema a

    ser seguido, seno a leitura do texto platnico. A bibliografia acerca da memria no

    Teeteto no conta com mais do que alguns poucos ttulos, e estes, por sua vez, no

    resolvem e nem to pouco esclarecem muito a questo. Resta-nos, ento, apenas o

    dilogo.

    Se a pretenso aqui abordar o dilogo sob a luz da memria dramtica,

    conveniente, de antemo, que alguns esclarecimentos sobre o conceito sejam

    colocados. Memria dramtica ope-se aqui ao que chamarei de memria filosfica.

    Por memria filosfica, compreendem-se as passagens onde a memria tratada

    explicitamente no dilogo, quer atravs de recursos argumentativos, quer atravs de

    recursos estilsticos, como smiles ou metforas. Tais recursos, argumentativos e

    estilsticos, dizem respeito incluso da memria na compreenso da definio do

    conhecimento, isto , onde o termo e seus cognatos so citados por Plato. Se

    considerarmos a diviso tradicional do dilogo Teeteto em trs partes, cada uma

    delas correspondendo s trs definies propostas de conhecimento, podemos

    constatar que a memria, neste sentido filosfico, ocorre praticamente em todas

    elas, gerando ora longas discusses, ora menes mais curtas, e todas elas, no

    momento devido, sero analisadas dentro do contexto da investigao.

    Alm desta memria filosfica, surge a memria dramtica. Tal conceito est

    nas entrelinhas do dilogo. O Teeteto, por ser um dilogo cuja riqueza temtica

    abundante, deixa muitas vezes as suas sutilezas passarem despercebidas. Uma

  • 12

    destas sutilezas o modo como seu autor cria e desenvolve as memrias dos seus

    participantes, articulando-as com determinadas passagens do dilogo, e a isto

    chamo memria dramtica. Dramtica tambm no sentido de conflito. Tal conflito,

    estabelecido por Plato no dilogo, se d, a meu ver, no jogo elaborado entre a

    recordao e o esquecimento de seus interlocutores. Por mais acessria ou

    ornamental que seja esta abordagem da memria, ela d, muitas vezes, certa leveza

    ao dilogo. Por ser abordada implicitamente, ela permite ao leitor uma espcie de

    pausa na argumentao criada por seus personagens, como se de alguma maneira

    o convidasse a fazer parte tambm do jogo que lida com a lembrana e o

    esquecimento, com essa memria dramtica.

    Se preservar a memria de seus participantes um dos objetivos de Plato

    no Teeteto, a linha que sigo para comentar o dilogo mostra-se pertinente.

    Pertinente no apenas porque considero o dilogo como um memorial dedicado a

    Scrates, mas tambm porque a memria, enquanto recurso estilstico e, em outros

    casos, recurso dialtico, configura-se tambm como recurso mediador de suas

    partes. Isto se d no apenas na elaborao do prlogo, onde aparentemente isto

    posto de maneira mais explcita, mas tambm em pontos especficos do dilogo,

    sobretudo nos passos onde uma argumentao deixada de lado para que outra

    seja discutida em seu lugar, isto , quer sua construo dramtica, quer em sua

    discusso filosfica. Assim, ao aceitar a pertinncia do termo memria para esta

    interpretao, faz-se necessrio, no somente aqui, mas no decorrer da anlise do

    dilogo, que tal termo seja qualificado de acordo com a exegese pretendida.

    Quanto estrutura da tese, ela se divide em quatro partes. Embora estas

    partes correspondam a uma diviso tradicional do dilogo, correspondentes ao

    prlogo e s definies de conhecimento propostas por Teeteto, a leitura que

    apresento linear, isto , este comentrio tenta abordar o texto de Plato em sua

    totalidade, ora analisando profundamente certas passagens, ora apenas indicando

    outras que mereceriam uma anlise tambm profunda, mas que, infelizmente,

    escapam do escopo deste trabalho.

    Na primeira parte, Memria e narrativa, analiso o prlogo que introduz o

    dilogo principal. Nesta anlise, proponho que a construo do dilogo, tal como

    Plato o apresenta, tem como base a memria dos participantes, tanto daqueles que

  • 13

    figuram apenas no prlogo, quanto daqueles que figuram no dilogo principal. Alm

    das memrias dos participantes, compreendidas como um jogo de lembrana e

    esquecimento, a questo da escrita tambm abordada, pois no prlogo do Teeteto

    se diz expressamente que se trata de um dilogo escrito. Assim, a relao entre

    escrita e memria tambm , en passant, abordada nesta primeira parte do

    comentrio ao dilogo.

    Na segunda parte, cujo ttulo Asthesis: Conhecimento, sensao e

    memria, discute-se a relao entre os trs termos indicados, isto , a relao que

    se d entre conhecimento, tema central do dilogo, e sensao, resposta dada por

    Teeteto ao ser questionado pela essncia do primeiro termo. Evidentemente, a

    memria, termo escolhido para interpretar algumas sutilezas do dilogo, tambm

    ser analisado, quer ele ocorra em passagens ditas dramticas, como o encontro de

    Scrates, Teodoro e Teeteto, quer em passagens argumentativas, como a refutao

    da tese do homem medida de Protgoras.

    Na terceira e quarta partes, os ttulos seguem, a exemplo da parte anterior,

    as definies dadas por Teeteto. Assim, na terceira, intitulada Dxa: Conhecimento,

    opinio e memria, analiso a discusso entre Scrates e Teeteto, aps este ltimo

    afirmar que conhecimento opinio verdadeira. Alm de alguns elementos sutis de

    memria dramtica, implcitos na passagem, analiso de forma mais aprofundada as

    duas passagens onde Plato aborda explicitamente a questo da memria, a saber,

    na descrio do bloco de cera e no smile do avirio, entendida aqui como memria

    filosfica.

    Enfim, na quarta parte, Lgos: conhecimento, explicao e memria,

    abordo a ltima definio de conhecimento apresentada por Teeteto, que o descreve

    como opinio verdadeira acompanhada de explicao. Alm da refutao de

    Scrates, analiso novamente alguns aspectos da chamada memria dramtica nesta

    ltima parte do dilogo, especificamente na apresentao do chamado sonho de

    Scrates e nas definies de . Por fim, apresento a traduo integral do

    dilogo1. Assim estruturada a tese, caber ento a esta anlise do dilogo mostrar

    se a abordagem que trago agora luz frutfera ou no passa de vento.

    1 Todas as tradues deste trabalho so minhas, salvo quando indicado em nota.

  • 14

    Parte I

    NARRATIVA E MEMRIA

  • 15

    O prlogo do Teeteto e a construo de um dilogo memorvel

    Teeteto est ferido e est sendo transportado do campo de batalha para

    Atenas. Assim Euclides nos apresenta o personagem que d nome ao dilogo e tal

    apresentao tem ares picos. Homero tambm ps em cena o retorno de seus

    heris ptria aps a batalha, e seus poemas eram instrumentos para que a honra

    desses heris no fosse esquecida. Tal como para um guerreiro homrico, os feitos

    de Teeteto tambm no deveriam ser esquecidos. Mas as suas aes militares em

    Corinto no sero o contedo destas recordaes. A batalha a ser lembrada, talvez

    at mais dura que a guerra, a conversa que ele teve ainda jovem com Scrates.

    Ao lado de Homero, Plato. Ao invs do poema, o dilogo.

    Assim como as palavras do poeta do fama imortal ao heri, as palavras do

    filsofo preservam, via dilogo, a memria de seus dois interlocutores principais.

    Teeteto no o nico que pode encontrar a morte eminente devido as suas aes.

    Scrates tambm, e o final do dilogo nos diz isto, deve se dirigir ao Prtico dos

    Reis para tomar cincia da acusao que lhe perpetrada. Do resultado desta

    acusao, a morte de Scrates. O seu destino, portanto, conhecido. Quanto ao de

    Teeteto, apenas se sabe o que Scrates profeticamente havia contado a Euclides,

    quando afirmava que Teeteto se tornaria notvel ao atingir a idade adulta.

    impossvel saber se tal profecia se concretizou, pois nada sabemos de seus feitos

    em idade adulta. De Teeteto adulto, temos apenas a imagem de seu corpo

    transladado, vtima de um mal que assolou o campo de batalha. Plato, ao justapor

    estas duas mortes no dilogo, parece lhe dar ares de epitfio. Neste sentido, a

    dramaticidade do Teeteto traz consigo, implicitamente, a inteno de preservar estas

    duas memrias.

    A cena pica descrita acima precede o dilogo propriamente dito. O prlogo,

    como ela chamada, possui suas especificidades. A primeira delas diz respeito a

    seus trs participantes: Euclides, Trpsion e um rapaz escravo. Do primeiro, sabe-se

    que de Megara e l teria fundado uma escola filosfica. Por muito tempo,

    confundiu-se este Euclides com outro Euclides, o matemtico de Alexandria, autor

    dOs Elementos. Atualmente, consenso entre os comentadores de que no se trata

  • 16

    da mesma pessoa; do segundo, Trpsion, nada se sabe alm do que nos

    mostrado no prlogo; de ambos, todavia, Plato nos diz no Fdon2 que estavam

    presentes no momento da morte de Scrates; do rapaz escravo, apenas a meno

    de que ele ser o leitor do dilogo. Estes trs personagens, embora figurem na

    introduo do dilogo, no participam efetivamente da discusso principal.

    Voltemos ento curta narrativa do prlogo. Euclides nos diz que, enquanto

    acompanhava Teeteto, lembrou-se () do encontro de Scrates com o

    jovem e da maneira proftica como ele falou a respeito de Teeteto. Euclides no

    estava presente na discusso e a teria ouvido diretamente de Scrates. O primeiro

    aspecto digno de apreo nesta passagem a ocorrncia do verbo lembrar-se

    (). A partir dela, a questo que se coloca faz referncia imagem de

    Teeteto. Seu corpo transladado pode ser considerado como o estopim para a

    lembrana de Euclides?

    Talvez encontremos a resposta em um episdio da vida de outro autor

    grego, o poeta lrico Smnides de Ceos, considerado o pai da arte da memria.

    Conta-se dele que, durante um banquete, ele teria sido chamando para fora do salo

    onde se encontravam os convivas, mas ao sair, no encontrou ningum. Neste

    momento, o salo teria desabado e todos os convidados teriam morrido e ficado

    desfigurados. Simnides, ento, teria conseguido lembrar-se do lugar onde todos os

    convidados estavam e, assim, identific-los.

    Deste episdio, pode-se chegar concluso de que a memria consiste em

    tambm em lugares e imagens3. Tais elementos, creio, esto presentes na cena que

    descreve a primeira apario de Teeteto no dilogo. O cenrio utilizado por Plato

    o campo de batalha de Corinto ( ) do qual Teeteto

    trazido. A lembrana original de Euclides necessita, portanto, de um lugar que lhe

    ateste alguma veracidade narrao que ele est prestes a iniciar, no bastando

    2 Fdon, 59c:

    : ; :, . Equcrates: E havia estrangeiros presentes? Fdon: Sim. Smias, o Tebano, Cebes e Fedondes; e tambm Euclides e Trpsion de Megara. 3 Yates. F.A. A arte da memria. UNICAMP, So Paulo, 2007.

  • 17

    apenas a sua recordao de Teeteto, mas tambm um acontecimento que a

    justifique. As imagens, por sua vez, seriam o fato de Teeteto estar acometido de

    algumas feridas ( ) e de uma doena surgida no exrcito (

    ). Neste sentido, no basta apenas recordao de

    Euclides, mas necessrio ainda algo que marque, de alguma maneira, tal

    recordao.

    Trpsion pede ento que Euclides narre estas conversas. Entretanto, a

    conversa entre Teeteto e Scrates no pode ser reproduzida em sua totalidade por

    Euclides de modo improvisado (originalmente , pela boca). No

    entanto, Euclides diz ter feito algumas anotaes () de tais conversas.

    Estes hypomnmata constituem, ento, o elemento mediador entre a memria de

    Scrates e a memria de Euclides, alm de ser o elemento necessrio para a

    preservao da memria de ambos, preservao que se d atravs da escrita.

    Alm disso, Euclides expe todo o procedimento que garante o sucesso da

    preservao e transmisso do dilogo. O mtodo cclico, indo do oral ao escrito e

    vice-versa. Euclides ouve de Scrates as conversas dele com Teeteto e as toma por

    escrito. No exerccio de transcrev-las, ele pensa essas recordaes. Entretanto, a

    memria lacunar de Euclides no lhe permite que o processo de escrita seja

    acabado. Diz ele:

    , , , , .

    Mas logo ao chegar em casa, escrevi as anotaes, e depois, em momento de cio, escrevia medida de que me lembrava, e todas as vezes que ia Atenas, interrogava Scrates do que no me recordava e, retornando para c, as corrigia; de modo que a conversa est escrita quase em sua totalidade. [143a]

    Mas a que podemos atribuir essa incapacidade de Euclides de reproduzir

    tais conversas tanto de improviso quanto no momento da escrita? Ora, Euclides no

    um aedo inspirado pelas Musas, capaz de narrar os feitos de Teeteto. Se ele no o

    , Scrates, em contrapartida, parece s-lo. Se Euclides, por sua memria

  • 18

    deficiente, retorna a Scrates a fim de que ele preencha essas lacunas, graas

    memria de Scrates esta sim fazendo lembrar um rapsodo homrico que se

    pode ter acesso aos detalhes da conversa que ele tivera com Teeteto. Assim, a

    memria de Scrates a fonte qual Euclides deve recorrer para corrigir seus

    escritos.

    Sabemos que o Teeteto o nico dilogo platnico onde se diz

    expressamente que foi escrito. Se o intuito aqui relacionar o conceito de memria

    com o documento escrito, deve-se, primeiramente, examinar o papel atribudo

    memria no prlogo. Podemos dispor essas memrias no plural, pois agora

    contamos com a memria de Scrates e Euclides da seguinte maneira:

    primeiramente, na conversa entre Euclides e Trpsion, temos a memria de Euclides

    em relao a Scrates e Teeteto, j que ele se lembrara das conversas entre os

    dois. Em seguida, no processo de reviso dos escritos de Euclides, temos a

    memria de Scrates preenchendo as lacunas devido falta de memria de

    Euclides, ou seja, a memria de Scrates em relao a Teeteto. Por fim, sabemos

    que o verdadeiro autor do dilogo Plato, e no Euclides. Assim, temos a memria

    de Plato em relao a Scrates.

    Ademais, necessrio observar a disposio destas memrias no prlogo,

    pois ela se d tanto no mbito oral quanto no escrito. O que discutido no dilogo

    principal ocorreu, em algum momento, numa conversa entre Scrates, Teeteto e

    Teodoro, ou seja, o seu carter fundamental a oralidade. Embora Euclides no

    estivesse presente durante esta conversa, ele a teria ouvido de Scrates durante as

    suas idas Atenas, portanto, mais uma marca de oralidade.

    Num segundo momento, quando Euclides retorna a sua casa e faz as suas

    anotaes, fica estabelecida a relao entre a memria e a escrita, isto , a relao

    entre aquilo de que ele se lembra e os seus hypomnemata. Entretanto, como ele

    nem sempre era capaz de se recordar de tudo o que ouvira, ele pedia novamente a

    Scrates que lhe contasse aquilo que no lhe vinha mente, estabelecendo ento

    uma relao entre memria e oralidade. Mas o ciclo no para a. Novamente em

    casa, Euclides corrigia suas anotaes baseando-se naquilo que Scrates lhe

    contara. Nesta fase, a relao que se estabelece entre a escrita e a memria de

    Euclides tendo como base a oralidade de Scrates. A consequncia direta de toda

  • 19

    essa elaborao cclica do dilogo o fato de que agora Euclides tem por escrito

    toda a conversa entre Scrates, Teeteto e Teodoro sob a forma de um livro ()

    que pode finalmente ser reproduzido para Trpsion. Mas o livro no ser lido por seu

    suposto autor, Euclides, tarefa que cabe ao escravo, caracterizando assim a ltima

    marca da oralidade no prlogo.

    Do ponto de vista da composio do dilogo, alguns aspectos da memria

    dramtica j podem ser observados. No trecho citado acima, a memria pode ser

    caracterizada primeiramente pelo seu aspecto oral, ou seja, o lembrar-se de algo

    que foi dito, representado nas formas dos verbos e ; em

    segundo lugar, esta caracterizao passa ao aspecto escrito, representado pelo

    substantivo , a anotao escrita. Alm disso, observa-se tambm o uso de

    duas formas do verbo ( e ); o primeiro est associado

    ao termo , ou seja, escrever para no esquecer; o segundo, o perfeito

    , confirma que a ao foi terminada, ou seja, o dilogo j est escrito.

    Mas o dilogo assim apresentado a verso de Euclides para o que

    Scrates lhe narrara, uma vez que no temos condies de saber quais eram as

    partes de que ele no se lembrava, e nem quais as partes revisadas por Scrates.

    Apesar deste limbo, sabe-se que o texto contou com a reviso de Scrates. Deve-

    se, por isso, atentar a esse processo de reviso e, a partir desta passagem, justificar

    uma das funes do prlogo mencionada no incio, a saber, descrever os eventos

    dramticos que antecedem a narrao. No final do dilogo, sabemos que Scrates

    est prestes a se dirigir ao Prtico dos Reis, onde ter conhecimento de sua

    sentena. J sabemos tambm que, atravs da fala anterior de Euclides, a conversa

    se deu um pouco antes da morte de Scrates. Em que momento ento, se deu

    esses encontros entre os dois, para que a reviso das conversas fosse feita?

    Plato nos diz no Fdon [58c] que entre a sentena proferida contra

    Scrates e a sua execuo h um perodo de cerca um ms entre elas. Por esta

    passagem, pode-se supor que Euclides teria visitado Scrates na priso durante

    este intervalo, e feito a reviso de suas anotaes na cela onde ele se encontrava

    preso.

    Mas diante deste documente escrito, podemos ainda nos perguntar se

    Plato teria mudado a sua posio em relao escrita, j que ele mesmo, atravs

  • 20

    de um mito narrado por Scrates no Fedro, indica quais seriam, dado o

    aparecimento da escrita, os seus reveses para a memria. No seria estranho este

    reforo do uso da escrita no Teeteto, uma vez que o prprio Plato o critica no

    Fedro? Para responder questo, necessrio observar a passagem onde o mito

    descrito e suas possveis relaes com nosso dilogo.

    Neste mito, Plato narra a lenda do deus egpcio Theuth, que alm de

    inventor dos nmeros, do clculo, da geometria e da astronomia, tambm havia

    descoberto a escrita. Distribuindo elogios e censuras a cada uma dessas artes ao

    apresentar a escrita, o deus diz ao rei que tal arte tornar os egpcios mais sbios e

    tero boa memria; assim, descobri um phrmakon para a memria e a sabedoria

    (

    .), ao que lhe teria replicado o rei:

    (...) , , .

    (...) isto engendrar esquecimento nas almas daqueles que aprendem, pois no cultivaro a memria, porque confiando no que est escrito, se lembraro no a partir do seu prprio interior, mas do exterior, atravs de sinais estranhos. Certamente no encontraste um remdio para a memria, mas apenas para a recordao. [274e]

    Mas qual a sua implicao em nosso dilogo, tendo em vista a memria

    dramtica? Vemos que alguns dos elementos presentes nesta passagem

    assemelham-se aos encontrados no prlogo. No Fedro, a palavra escrita ()

    est ligada recordao (), da mesma maneira que no Teeteto o

    termo escrevia () est ligado a anotaes (). Existe,

    evidente, uma forte relao semntica entre o escrever e o lembrar, entre escrita e

    memria. De acordo com a passagem, recordar ter acesso quilo que de alguma

    forma foi registrado e est preservado.

    Apesar de ser notria a crtica que Plato faz escrita no Fedro, podemos

    nos perguntar se, no contexto do Teeteto, ela pode ser considerada realmente como

    uma crtica. No Fedro, a escrita um phrmakon e so duas as leituras possveis,

  • 21

    pois este termo grego designa tanto o veneno quanto o remdio. Se considerarmos

    o seu carter txico, a escrita representa um vis negativo, ou seja, tal como citado

    na passagem acima, ela leva ao esquecimento. Em contrapartida, a escrita tem

    tambm a sua via positiva. Enquanto remdio, ela cura ou salva os homens do

    esquecimento. a este segundo entendimento do termo, o salvamento, que eu

    atribuo o papel da escrita no Teeteto. Esta atribuio diz respeito tanto ao papel

    desempenhado por Euclides quanto quele desempenhado por Plato. Euclides, no

    prlogo, pode ser considerado o duplo ficcional de Plato, j que ele supostamente

    escreveu o dilogo. O que isto quer dizer? Se hoje ns temos acesso ao

    pensamento de Scrates, devemos isto graas ao registro escrito que Plato fez,

    atravs do dilogo, das conversas de Scrates. No questo aqui discutir se se

    trata de fico ou no, pois o que est em jogo no o contedo, mas a forma. Ora,

    se diz respeito forma, o papel de Euclides em relao a Scrates exatamente o

    mesmo de Plato, j que ele, no prlogo do Teeteto, diz ter registrado as conversas

    de Scrates. Se o Teeteto um dilogo onde se diz que foi escrito, ele se d,

    portanto, como a representao do pensamento do personagem Scrates e se faz

    representao toda vez que lembrado ou lido. Neste sentido, o phrmakon

    reproduzido em nosso dilogo essencialmente positivo.

    Mas resta ainda uma rpida observao a respeito da composio do

    dilogo. Ao apresentar o texto a Trpsion, Euclides diz que o dilogo no est

    escrito da maneira que Scrates havia narrado, mas da maneira que Scrates havia

    conversado com Teeteto e Teodoro. Para tal composio, Euclides teria retirado, no

    que diz respeito s falas dos interlocutores, as expresses que caracterizavam os

    intervalos da conversa, como por exemplo, eu disse ou eu afirmei (

    ) ou expresses como concordou e no concordou (

    ). Embora no seja possvel afirmar que tais omisses interlocutrias

    eram um recurso estilstico recorrente na Antiguidade para a construo de uma

    narrativa, temos dele outro exemplo semelhante. Ccero, ao escrever o seu Sobre a

    Amizade, parecia ter em mente (ou ter lido) o Teeteto de Plato. Diz ele:

  • 22

    Retive os pensamentos em minha memria, e os expus neste tratado a meu modo. Fiz calar os personagens mesmos, para no entrecortar o discurso com estas palavras: eu disse e ele disse e para que se possa crer na presena dos interlocutores.4

    Assim, podemos concluir a anlise do prlogo tendo em mente que sua

    interpretao pelo vis da memria dramtica mostrou que a memria, do ponto de

    vista de sua relao com o oral e o escrito, torna-se fundamental para a leitura

    proposta. Desta maneira, podemos passar para a anlise do dilogo principal e

    verificar qual papel esta memria dramtica assim como a memria filosfica,

    desempenha no resto do dilogo.

    4 Ccero, Sobre a amizade.

  • 23

    PARTE II

    ASTHESIS:

    CONHECIMENTO, SENSAO E MEMRIA.

  • 24

    As memrias de Scrates e Teodoro

    As primeiras palavras lidas pelo escravo pem em cena Scrates e Teodoro.

    O primeiro a falar Scrates. Sua procura inicial por um jovem que se distinga dos

    demais, principalmente daqueles de Cirene, jovens que se ocupem da geometria e

    de outros ramos do saber. curiosa esta preocupao de Scrates no incio do

    dilogo. Ele, que sabemos nunca ter ido alm dos muros de Atenas, questiona um

    estrangeiro de Cirene sobre a possibilidade de encontrar algum que se encontra

    justamente em Atenas.

    Teodoro, no entanto, conhece este jovem, embora estranhamente no o

    nomeie. Ao contrrio, ele prefere descrev-lo. Ele afirma que o jovem no bonito

    ( ), pois se assemelha a Scrates pela forma achatada do nariz e

    pelos olhos salientes ( ).

    Dada a semelhana entre ambos, pode-se considerar que o jovem um duplo de

    Scrates. interessante notar aqui a importncia dada por Plato a esta descrio

    fsica de Teeteto, pois tal descrio parece antever alguns pontos que sero

    discutidos ao longo do dilogo.

    A resposta de Teodoro, no entanto, no descreve de imediato o modelo de

    jovem procurado por Scrates, mas se atm primeiramente a sua aparncia olhos

    e nariz ou seja, aos rgos de Teeteto que dizem respeito sensao. Alm disso,

    se Teodoro inicia assim a apresentao do jovem, ele a justifica no porque ele

    tenha algum tipo de desejo por ele ( ), mas simplesmente por ser

    este o modo como o seu conhecimento de Teeteto lhe parece primeiramente, isto ,

    atravs de sua percepo imediata atravs dos sentidos.

    Apenas num segundo momento Teodoro deixa de lado a aparncia de

    Teeteto e passa a descrev-lo como o modelo procurado por Scrates. As virtudes

    do jovem o qualificam como tendo uma natureza espantosa (

    ). Destas virtudes, Teodoro destaca a sua facilidade em aprender

    (), sua gentileza e coragem (), alm de possuir uma boa memria

    (). Estas caractersticas atribudas a Teeteto ecoam nas passagens onde

  • 25

    Scrates enumera, no livro IV da Repblica5, as qualidades exigidas ao filsofo,

    candidato ao posto de guardio da cidade.

    Ansioso por saber quem o jovem, Scrates pergunta a Teodoro de quem

    se trata, pois, embora ele j tenha ouvido o nome, no se lembra. Reconheo-o. o

    filho de Eufrnio de Snio (. ), diz Scrates

    ao avistar o jovem. curioso que Plato, ao fazer tal referncia ao nome do pai de

    Teeteto, parea propositadamente esquecer-se da formulao dos patronmicos

    gregos. Em grego, o modo corrente utilizado ao referir-se a algum que vai ser

    apresentado justamente a frmula que contm o nome da pessoa acompanhado

    do nome do pai no caso genitivo. Embora no a utilize por completo aqui, ela que

    faz com que Teodoro imediatamente se lembre do nome do jovem, afirmando tratar-

    se de Teeteto.

    No que diz respeito memria dramtica, esta cena introdutria j levanta

    uma primeira questo literria no dilogo: possvel confiar na memria de seus

    participantes? Observemos como se do os dois esquecimentos citados acima.

    Quanto ao primeiro, o de Teodoro, com j foi dito, trata-se de uma relao imediata

    com os sentidos, relao onde o mais significativo para ele foi retido, neste caso, a

    aparncia de Teeteto. Quanto a Scrates, irnico o seu esquecimento. Se

    Scrates o duplo de Teeteto, isto , se existe uma semelhana entre ambos, no

    seria plausvel que ele, assim como o jovem, tivesse boa memria?

    Scrates diz que reconhece Teeteto. Se tal reconhecimento ocorre assim

    que traduzo o verbo na passagem, por reconhecer e no por conhecer

    em razo de Scrates ver em Teeteto o seu duplo, algum que se assemelha

    fisicamente a ele, cuja imagem faz com que ele se recorde.

    Ademais, sabemos que notria a memria de Scrates e para justificar

    tal afirmao suficiente lembrar-se de que ele narrou todo do dilogo a Euclides.

    Como ento justificar o seu esquecimento nesta passagem? Por ora, tomemos como

    um simples esquecimento, uma falha de sua memria. A resposta definitiva vir,

    mas apenas nos movimentos finais do dilogo. Mas voltemos a este encontro.

    5 Repblica, 503c

  • 26

    O cenrio a sada do ginsio. Nota-se, nesta passagem, que Teodoro no

    faz parte do mesmo grupo de jovens que se dedicam ginstica. Plato parece

    aqui, novamente, antecipar outro ponto importante da discusso do dilogo.

    Podemos ver Teodoro como representante do repouso e da falta da atividade fsica,

    isto , um digno representante da estabilidade. Mas no avancemos na

    argumentao. Aps uma breve apresentao entre Scrates e Teeteto, onde

    Scrates reconhece a semelhana entre ambos e, aparentemente critica a posio

    de Teodoro, to atrelada s aparncias, podemos passar questo principal do

    dilogo.

    As primeiras assimilaes de por Teeteto

    Antes de nos ocuparmos com a refutao de Scrates primeira definio

    dada por Teeteto, convm examinarmos o modo como o seu termo principal

    pode ser traduzido e/ou entendido no dilogo. As tradues possveis

    so trs: saber, cincia ou conhecimento e, a meu ver, nenhuma delas incorreta,

    embora as duas primeiras levem a algumas imprecises. A hiptese que levanto

    para compreender tais imprecises a seguinte: existe um entendimento por parte

    de Teeteto de que possa ser saber ou cincia e, neste sentido, a

    sequncia do dilogo mostra que tal entendimento pertinente. Mas como isto

    ocorre? Primeiramente, observemos onde seria equivalente a saber:

    . (...) ; . ; . . . . . ; . ; . . ; . ; . ; . . Scrates: (...) Ora, diz-me: aprender no tornar-se mais sbio

    acerca daquilo que se aprende?

  • 27

    Teeteto: Como no? Scrates: E pela sabedoria, eu penso, que os sbios so sbios. Teeteto: Sim. Scrates: E isto difere em algo do conhecimento? Teeteto: Isto o qu? Scrates: A sabedoria. Ou ser que os que conhecem tais coisas no so sbios. Teeteto: Como no? Scrates: Ento so o mesmo, o conhecimento e a sabedoria? Teeteto: Sim. [145d-e]

    Nesta passagem, o pano de fundo da argumentao a aprendizagem, e

    natural que tal aspecto seja abordado aqui. Scrates tem diante de si um aluno,

    Teeteto, e um mestre, Teodoro, com o qual o jovem j havia afirmado que aprendera

    muitas coisas. Se, segundo Scrates, a consequncia de aprender tornar-se sbio

    naquilo que se aprende, Teeteto pode ser considerado, por seu aprendizado com

    Teodoro, sbio em relao s coisas que aprendeu, isto , a geometria. Mas

    Scrates sugere ainda, com a aquiescncia de Teeteto, a equivalncia entre

    conhecimento e sabedoria e, por consequncia, a concluso de que aqueles que

    conhecem () so sbios (). Entretanto, justamente isso que

    deixa Scrates em aporia, pois ele no compreende o que ,

    conhecimento.

    Se pensarmos que o mesmo () que , a definio

    buscada para o primeiro termo j est dada e, por consequncia, o dilogo no teria

    razo de existir. Por isso, paradoxal traduzir por saber, e o paradoxo

    reside na confuso criada ao traduzirmos, por exemplo, , por aqueles

    que sabem, j que aqueles que sabem so, de fato, , sbios pela sabedoria

    ().

    No entanto, se por causar este tipo de confuso, a traduo de por

    saber no possvel, o entendimento dela, no contexto desta passagem o .

    Teeteto concorda que o mesmo que porque ele foi induzido por

    Scrates a responder assim. A equidade dos termos, lembremos, foi sugerida por

    Scrates num contexto de aprendizagem, onde se impe a relao mestre/discpulo.

    Se Teeteto discordasse de Scrates, que afirma que aprender torna mais sbio

    quem aprende, ele concordaria, indiretamente, que os ensinamentos de Teodoro

    no tornam ningum sbio, nem o prprio Teodoro. Assim, quando Teeteto

  • 28

    concorda com a equivalncia dos dois termos, seu objetivo livrar-se do embarao

    pessoal de acusar seu prprio mestre, Teodoro, de no ser sbio, o que justifica,

    portanto, o entendimento que ele tem de que o mesmo .

    Desta maneira, se retornarmos ao termo , e se desejarmos tambm

    manter uma linha coerente para a sua traduo (e a coerncia aqui diz respeito

    apenas traduo, no ao seu entendimento), deve-se procurar outro sentido para

    ele, de modo que os termos que lhe so cognatos, como , tambm no

    se contradigam no decorrer do dilogo, tal como mostrado acima.

    A mesma hiptese pode ser defendida se tomarmos como

    cincia. Cincia, no sentido moderno do termo e devemos falar em seu sentido

    moderno, supondo o entendimento do termo por um leitor moderno no oferece o

    mesmo escopo que os demais termos empregados, ao contrrio, ele o restringe. Se,

    por exemplo, mantermos o mesmo raciocnio aplicado acima a , como

    se poderia traduzir o termo? Pode-se, evidente, supor que so

    aqueles que tm cincia. Todavia, conhecer algum ou alguma coisa no quer

    dizer que eu tenho uma cincia desta pessoa ou desta coisa. Pode-se, por exemplo,

    dizer que se conhece Scrates, mas isso no quer dizer que eu tenha uma cincia

    de Scrates ou, em um sentido moderno, afirmar que exista uma socratologia6.

    Neste sentido, se difere de cincia.

    No entanto, no se deve esquecer de que Teeteto um jovem matemtico e

    os assuntos aos quais ele se dedica a geometria e o clculo podem ser

    realmente considerados como um conjunto de disciplinas que formam uma cincia, a

    matemtica. Por consequncia, nada impede que de Teeteto surja o entendimento

    de que exista uma equivalncia entre e cincia, e isto fica claro na

    passagem onde ele faz uso de um argumento matemtico para demonstrar a sua

    explicao acerca das potncias e dos nmeros irracionais. Mas o argumento de

    Teeteto uma demonstrao, no uma definio e, por isso, a aquiescncia de

    Scrates ao dizer que Teeteto deve seguir este mesmo caminho para chegar

    definio de .

    6 O termo empregado aqui, socratologia, uma adaptao de outro termo cunhado por Valter Cavini

    durante sua apresentao na Journe dtude - La troisime partie du Thtte de Platon, em Nantes, Frana, 2015.

  • 29

    Tendo passado em vista os possveis significados para o termo, creio que a

    traduo de por conhecimento parece ser, portanto, a mais adequada.

    Quanto ao seu entendimento, podemos deix-lo tanto para Scrates, que se

    encontra em aporia, quanto para Teeteto, que tem a misso de encontrar uma

    definio para o termo, ou ainda ao leitor do dilogo, a quem cabe interpretar o que

    Plato diz em seu escrito.

    O conhecimento uma tcnica?

    Antes de entrar na questo principal do dilogo, Scrates coloca, em uma

    sentena, qual o objeto da investigao. A discusso inicial parte do saber se

    aprender no tornar-se mais sbio naquilo que se aprende Mas este

    questionamento de Scrates o conduz a uma aporia, pois justamente a

    equiparao entre saber/conhecimento e sabedoria que o deixa em dificuldades.

    necessrio ento reformular questo. O desejo de Scrates verificar a

    possibilidade de se definir claramente o que vem a ser o conhecimento.

    Teodoro, dado a sua idade avanada e falta de hbito em tais assuntos, se

    diz incapaz de prosseguir com Scrates na discusso. Scrates torna ento a

    questo a Teeteto e pede que ele lhe responda o que parece ser o conhecimento.

    A resposta de Teeteto, no entanto, no vai de encontro ao que Scrates lhe

    pedira. Tal no condiz com a essncia do conhecimento, mas simplesmente com a

    identificao entre os dois termos que foi incitada por Scrates. Em vez de expor

    uma definio de conhecimento, o jovem interlocutor descreve o conhecimento pelas

    cincias que Teodoro lhe ensinava, que so as mesmas que Plato apresenta como

    necessrias formao do filsofo na Repblica, como o clculo e a aritmtica

    ( ) e a geometria (). Alm disso, a resposta de

    Teeteto possui um vis tecnicista, pois junto a estas cincias, ele acrescenta

    tambm as artes dos sapateiros e de outros artesos (

    ) como se todas elas fossem conhecimentos.

    Ora, de onde surge este vis tecnicista mencionado acima, que leva Teeteto

    a considerar tambm estas artes como conhecimento? A resposta parece estar no

    modo como Teeteto apreende primeiramente o conhecimento, pois ele parece ligar-

  • 30

    se a uma concepo mais arcaica de sabedoria. Esta pr-platnica se define

    como a capacidade para realizar alguma coisa, ou seja, totalmente voltada para o

    campo da habilidade prtica. Dessa maneira, as respostas de Teeteto configuram-se

    em um tecnicismo oposto ao conhecimento, ou seja, remetem a uma oposio

    clssica grega entre saber manual e saber intelectual. Teeteto no ainda um

    filsofo e, por isso, a sua maneira de raciocinar se mantm presa aos raciocnios

    demonstrativos da geometria. Ele deve ento abrir mo deste conhecimento prtico

    para ascender a este conhecimento filosfico, ou seja, deve abstrair que o

    conhecimento conhecimento de alguma coisa () e ir em direo ao

    conhecimento ().

    Se o conhecimento prescinde deste , a resposta que Scrates espera

    deve ser simples, como se ao se perguntar o que o barro, pura e simplesmente

    ( ) se responda que terra misturada com lquido. Ora,

    irnico este pedido de Scrates, pois a investigao acerca do conhecimento

    mostrar que no h nada de simples nela. Se as respostas de Teeteto conduziam a

    um caminho infinito ( ), o caminho para atingir a essncia do

    conhecimento ser o longo dilogo que temos pela frente.

    A descrio daquilo que pode ser construdo com o barro, nesta passagem,

    para a descrio do que seria o barro em si, retoma o modelo de discusso dos

    dilogos da primeira fase de Plato, caracterizado pela transio do geral para o

    particular ou, melhor dizendo, parte da busca do que meramente sensvel por

    definio para alcanar a definio inteligvel. Isto ocorre no Mnon, por exemplo,

    onde a discusso sobre as virtudes demandava a transio dos diversos tipos de

    virtude para a virtude em si. Esta transio, tal como tambm ocorre no incio do

    Teeteto, pode levar crena de que ele se encaixa em tal modelo de dilogo. Mas,

    ao contrrio, vejo o Teeteto como um divisor de guas nos dilogos de Plato.

    Neste sentido, o Teeteto , a meu ver, um dilogo de transio. No apenas

    por abandonar este modelo de discusso, mas principalmente no que diz respeito

    figura de Scrates. Quanto a isso, cabe uma crtica. Convencionou-se que a

    tetralogia na qual se insere nosso dilogo deve ser lida como uma sequncia, em

    razo de sua afinidade temtica. Logo, o Teeteto, o Sofista e o Poltico formam uma

    trilogia escrita, seguida de outro dilogo, o Filsofo, nunca escrito por Plato. A

  • 31

    transio entre o Teeteto e o Sofista se d pela ltima fala de Scrates no primeiro

    dilogo, onde ele diz que amanh de manh cedo, regressaremos aqui de novo. A

    sequncia inicia-se ento no Sofista, onde Teodoro afirma: Fiis, Scrates, ao

    compromisso de ontem, aqui estamos (...).. Creio que esta sequncia proposta

    mais didtica do que filosfica ou, melhor dizendo, mais didtica do que dramtica.

    Qual seria ento a sequncia que explicaria esta dramaticidade?

    A resposta encontra-se no na ltima frase de Scrates no Teeteto, mas sim

    na penltima, onde ele diz que deve retirar-se para tomar conhecimento do processo

    que movido contra ele. Se levarmos em conta mais esta frase do que a ltima, a

    sequncia de leitura aps o Teeteto seria: primeiramente o utifron, onde Scrates

    toma conhecimento da acusao, seguido da Apologia, corolrio de sua defesa; logo

    aps o Crton, que relata os seus dias na priso e, por fim, o Fdon, onde narrada

    a sua morte. Se forem lidos desta maneira, ao voltarmos ao Sofista, possvel

    compreender por que Scrates no mais o interlocutor principal. A voz do mestre

    lentamente apagada por Plato, pois Scrates est definitivamente morto. Dessa

    maneira, o Teeteto seria o ltimo dilogo onde os pensamentos de Scrates foram

    realmente discutidos em sua maior complexidade. por este ponto de vista que

    considero o Teeteto como dilogo memorvel. Memorvel aqui, pelas duas

    acepes do termo. O Teeteto , por um lado, o dilogo de Scrates que deve ser

    conservado na memria, e esta tambm a razo de figurar em seu prlogo o modo

    como ele foi construdo. Por outro lado, memorvel no sentido da preservao,

    no apenas desta discusso de Scrates, mas tambm da sua notoriedade como

    mestre de Plato.

    A memria de Teeteto: um exemplo matemtico

    Antes de dar, com Teeteto, a definio de conhecimento, parece-me

    primeiramente necessrio analisar o que tradicionalmente se convencionou chamar

    de a parte matemtica do Teeteto. Contrariamente s afirmaes e especulaes

    feitas pelos comentadores do dilogo, tentarei mostrar aqui no os desdobramentos

    e as consequncias da demonstrao proposta pelo jovem interlocutor de Scrates,

  • 32

    pois a minha proposta nada tem a ver com ela. Minha interpretao da passagem

    apoia-se mais na maneira que podemos caracterizar Teeteto como o interlocutor

    ideal de Scrates do que tentar afirmar ou especular algo sobre a demonstrao

    apresentada por ele. Assim, a alternativa que proponho partir de uma pequena

    sutileza textual empregada por Plato na passagem, mas que me parece passar

    despercebida aos olhares dos comentadores.

    Mas, antes da anlise de tal sutileza, vejamos o que pode ser dito a respeito

    da memria dramtica nesta passagem. Seguindo o testemunho textual, podemos

    primeiramente verificar que a demonstrao proposta por Teeteto est ligada sua

    memria recente. Para compreender o que isto quer dizer, necessrio atentar

    possibilidade levantada por Scrates, pois ele nos diz que a resposta que melhor

    definiria o conhecimento poderia ser elaborada de maneira simples. Tal simplicidade

    reside, como sugere Scrates, na resposta dada questo o que o barro?, pois

    possvel simplesmente responder que ele terra misturada gua. Este exemplo

    faz surgir em Teeteto a lembrana de algo que Teodoro h lhe pouco ensinava

    acerca das potncias:

    . , , , . Teeteto: Agora, Scrates, parece fcil dessa maneira; ento,

    perguntas provavelmente o que h pouco nos veio mente, quando conversvamos eu e este teu homnimo Scrates. [147d]

    Ora, este vir mente no outra coisa seno uma recordao de Teeteto. A

    origem desta recordao a lio que lhe ensinava Teodoro antes do encontro com

    Scrates. A descoberta de Teeteto diz respeito a tentar reunir sob um nico nome,

    pelo qual pudssemos nomear todas as potncias ( ,

    ) todos os nmeros irracionais

    por um nico termo ( ). Mas a, a meu ver, que reside o erro de Teeteto.

    O que Teeteto fez nesta demonstrao foi reunir diversas potncias, das

    quais ele diz que so de nmero infinito, sob um nico nome. Este procedimento o

    mesmo que ele fizera anteriormente, quando tentou reunir sob o nome

  • 33

    conhecimento, todas as disciplinas ensinadas por Teodoro e tambm as demais

    artes, como a do sapateiro. Mas o pedido de Scrates , a meu ver, oposto ao

    demonstrado por Teeteto. Scrates pede a Teeteto que defina o conhecimento. Ora,

    aquilo que deve ser definido j est nomeado, no ocorrendo o mesmo que na

    demonstrao de Teeteto, onde a partir das potncias foi encontrado um nome para

    elas. Alm disso, no Crtilo7, Scrates deixa claro que os nomes como guias no

    devem ser tomados como guias para alcanar a essncia de algo, e esta sugesto

    , a meu ver, retomada aqui.

    Aps concluir sua demonstrao, Teeteto ouve de Scrates que ele deve

    imitar o caminho seguido na resposta sobre as potncias para definir o

    conhecimento. Entretanto, a definio deve ser dada reunindo todos os

    conhecimentos ( ) em uma nica forma ( ), em uma nica

    definio ( ). Ora, sabemos que Teeteto no dar apenas uma definio para

    o conhecimento, mas trs. Alm disso, esta nica forma mencionada por Scrates

    parece ecoar na imagem da linha da Repblica, pois, se Teeteto consegue dominar

    a parte dos objetos matemticos, ele no est, portanto, na seo anterior, que d

    conta apenas dos objetos sensveis. Isto faz dele o interlocutor ideal para a

    discusso sobre o conhecimento, se pensarmos que esta nica forma qual

    Scrates se refere o conhecimento verdadeiro correspondente sua parte

    inteligvel da imagem da linha.

    A maiutica socrtica

    O mtodo maiutico ou a arte maiutica consiste numa metfora

    platnica para a descoberta do saber. Por definio, a maiutica a arte de fazer

    dar luz as almas e o seu propsito levar o interlocutor a dar luz algo que ele

    tem dentro de si. Neste sentido, o mtodo consiste em colocar o interlocutor em uma

    posio desconfortvel face ao que gerado.

    que sentes as dores do parto, caro Teeteto, por no estar vazio, mas

    fecundo ( , , ) o

    7 Crtilo, 439b.

  • 34

    que, de maneira abrupta e um tanto quanto estranha, diz Scrates ao refutar a

    primeira tentativa frustrada de Teeteto em responder questo acerca do que seria

    o conhecimento. At aqui, neste princpio de discusso, Teeteto estava sendo

    encorajado por Scrates a dar-lhe uma resposta que definisse o conhecimento de

    modo mais universal. Se Scrates busca uma resposta, Teeteto, por outro lado, tem

    muitas. Reduzi-las a uma nica o pedido de Scrates, e o caminho a ser seguido

    pelo seu jovem interlocutor deve ser o mesmo que aquele empregado anteriormente

    para a descoberta das potncias. Embora Teeteto esteja familiarizado com as

    habituais questes de Scrates, ele no deixa de preocupar-se com a questo, e

    sua resposta que ele tem tentado convencer-se daquilo que ele prprio diz. Em

    face do embarao do jovem matemtico, Scrates sentencia, diagnosticando os

    seus sintomas, que Teeteto est grvido e sente as dores do parto.

    Mas seria possvel, a princpio, levar a srio esta sentena de Scrates,

    admitindo a gravidez de um jovem? Aparentemente, no para Teeteto. Se

    pensarmos na dramaticidade da cena, somos capazes de ouvir o riso de Teeteto nas

    entrelinhas. No ao acaso, Scrates o repreende: , diz ele, que ao p da

    letra pode ser traduzido por algo ridculo aos olhos do outro, ou que provoca riso;

    ao que Scrates complementa para dar autoridade sua sentena no ouviste

    que eu sou filho de uma grande, nobre e imponente parteira, Fenarete? (

    , ;).

    Agora, dada a seriedade imposta por Scrates questo, deve-se

    compreender a passagem tendo em mente o princpio que assemelha a maiutica

    arte de partejar propriamente dita. Na realidade, toda a apresentao deste mtodo

    encontra sua sustentao ao apontar tanto as semelhanas como as diferenas

    existentes entre uma e outra arte. Scrates afirma praticar a mesma arte de sua

    me, Fenarete, cujo nome, recorrendo etimologia, significa algo prximo de

    aquela que mostra a virtude. Sendo filho de uma parteira e praticando a mesma

    arte, ele pode fazer com que Teeteto traga luz o que tem dentro de si. este o

    princpio da maiutica: fazer com que o interlocutor mostre o saber que est em seu

    interior. Mas este no um processo fcil, e pode-se dizer at que h algo de

    violento nele, pois Teeteto sente dores. No entanto, em auxlio a este desconforto

    que Scrates emprega a sua arte.

  • 35

    Para compreender o que sua arte realmente , Teeteto precisa compreender

    o ofcio das parteiras. Nenhuma delas pode oferecer ajuda no parto enquanto ela

    prpria puder engravidar ou dar luz, mas somente exerceria tal funo aps o

    perodo em que no podem mais ter filhos. Para justificar tal posio, Scrates

    recorre a uma divindade, rtemis, dizendo que coube a ela, por no poder gerar

    filhos, a proteo aos nascimentos. Outra caracterstica da deusa foi no ter dado a

    funo de partejar quelas mulheres que so estreis, uma vez que no poderiam

    adquirir uma arte em que no possuam experincia. Logo, a deusa teria atribudo

    esta arte quelas mulheres que partilham com ela estas caractersticas. Alm disso,

    as parteiras esto autorizadas a medicar e a proferir encantamentos, provocando as

    dores do parto, fazendo com que as parturientes se acalmem por utiliz-los,

    levando-as a darem luz ou, pelo contrrio, fazendo com que elas abortem.

    Mas as parteiras tambm, segundo Scrates, acumulam outra funo, a de

    serem as mais hbeis casamenteiras, pois so elas que sabem qual mulher cabe a

    qual homem, a fim de que possam gerar os mais excelentes filhos a partir desta

    relao. Teeteto parece ignorar esta exposio de Scrates, sobretudo este

    processo de eugenia; mas Scrates vai alm e remenda que as parteiras so mais

    orgulhosas desta atividade a de casamenteiras do que a de cortar um cordo

    umbilical. Continuando a comparao, Scrates afirma que a arte de cultivar a terra

    e colher dela seus frutos a mesma que aquela de quem tem o conhecimento de

    qual a melhor terra para determinado vegetal e de qual a semente que se deve

    rejeitar.

    Scrates tambm justificar o papel das parteiras ao compar-las ao ato de

    alcovitar, ou seja, a arte de presidir os encontros amorosos entre um homem e uma

    mulher. Dessa forma, dada a honestidade das parteiras, elas evitariam ser

    casamenteiras, com receio de que fossem confundidas, ou seja, que uma arte fosse

    tomada por outra.

    A partir desta descrio do ofcio das parteiras, Scrates confronta seus

    diversos aspectos com os da sua arte. Embora haja semelhanas entre elas, so as

    diferenas que preservam o seu carter de mtodo filosfico. o seu produto que o

    define como o maior e mais belo trabalho, isto , distinguir o verdadeiro do falso.

    No se pode esperar que o produto da arte das parteiras pudesse ser caracterizado

  • 36

    como verdadeiro ou falso, simplesmente por ele ser nico, ou seja, quanto s

    parteiras, o fruto sempre uma criana que gerada. Quanto ao resultado da

    maiutica socrtica, caracteriz-lo como verdadeiro ou falso possvel. O lgos

    extrado de seu interlocutor passvel de ser verdadeiro ou falso, real ou irreal, e

    esta a distino fundamental da maiutica.

    A segunda diferena diz respeito a quem se deve ajudar no trabalho de

    parto. Scrates parteja homens e no mulheres. Terceira diferena: Scrates parteja

    almas e no corpos e, alm disso, cabe a ele verificar se o pensamento produzido

    uma fantasia e uma mentira, ou se uma verdade, o que torna a sua arte superior

    das parteiras.

    Mas desta comparao surge uma consequncia que contradiz a exposio

    de Scrates. No incio da analogia, ele justifica que, por vontade da deusa rtemis,

    as mulheres estreis no podem exercer a funo de parteiras, e que s podem s-

    las aquelas que j tiveram uma experincia pessoal de gestao. Entretanto,

    Scrates, apesar de fazer vir luz o lgos de seu interlocutor, declara ele mesmo

    ser estril em sabedoria, e de ser incapaz de produzir por si mesmo um nico

    raciocnio, o que o faz ser alvo de crticas, por somente questionar e no prestar

    declaraes sobre nada. Ora, esta esterilidade, que Scrates afirma partilhar com as

    parteiras, entra em contradio direta com o passado fecundo das parteiras. Como

    se resolve tal contradio?

    Uma primeira hiptese a aproximao que Scrates faz de si mesmo com

    a deusa rtemis. Ora, esta deusa no podia ter filhos e, por isso, lhe foi dada a arte

    de presidir os nascimentos. Mas ela no podia dar este dom aos humanos, ou seja,

    no podia fazer com que as mulheres se tornassem parteiras sem antes terem dado

    luz, pois a natureza humana seria muito fraca para adquirir uma arte da qual ela

    no teria uma experincia prvia. Mas, se a deusa no podia atribuir uma arte

    quelas que nunca procriaram, pois ela a divindade que por si mesma no procria,

    ela poderia transmitir a arte quelas que no pudessem mais dar luz, embora elas

    j o tivessem feito em algum momento. a divindade, portanto, a causa divina que

    guia Scrates na arte de partejar as almas dos homens.

    Existe, entretanto, um duplo movimento de aproximao e afastamento na

    analogia. A esterilidade que afasta Scrates das parteiras o aproxima da divindade,

  • 37

    rtemis. A causa a deusa. Comparado s parteiras, Scrates no precisa de uma

    experincia pessoal prvia, pois a natureza humana, como ele mesmo diz, fraca.

    a divindade ento, que por presidir as gestaes, faz com que ele no prescinda da

    experincia pessoal requerida s parteiras mortais. Ao contrrio dos nascimentos

    comuns, a divindade intervm pessoalmente para guiar Scrates no emprego da

    maiutica. Scrates, assim, sugere que a sua atividade possui uma dimenso divina

    ao atribuir a si mesmo as mesmas qualidades que os deuses. Os paralelismos

    estabelecidos entre a sua prpria atitude e a atitude divina assinala uma

    proximidade com os deuses, conferindo-lhe um estatuto quase que divino.

    Por extenso, a divindade a causa que possibilita o parto aos homens e

    tambm determina se o produto das dores um raciocnio vlido ou se apresenta

    defeitos e deve ser rejeitado. No se deve esquecer de que a maiutica perdura

    durante todo o dilogo e Scrates, alm de ajudar no parto, tambm precisa

    averiguar se o fruto da gestao verdadeiro ou no passa simplesmente de vento.

    Mas, quanto esterilidade, existe uma hiptese que pode resolver a

    contradio. Scrates j fez nascerem frutos antes. E o que podemos dizer destes

    frutos que ele j fez nascer? Eles so frutos que no vingaram. Scrates no possui

    sabedoria, logo, ele nunca fez nascer nada que fosse verdadeiro. Se a maiutica

    requer ter feito isso previamente, como ocorrem com as parteiras, e Scrates s fez

    nascerem frutos semelhantes ao vento, vazios, ele no poderia ser parteiro de

    homens que deram luz algo verdadeiro, pois ele nunca fez isso antes. Entretanto,

    ele pode ser parteiro de homens que deram luz a um fruto semelhante ao vento,

    pois ele j fez isto antes.

    Entretanto, a hiptese que pretendo sustentar rene um pouco das duas que

    foram mencionadas. Creio que quem nos d a resposta para resolver esta questo

    o prprio Scrates. Entretanto, a anlise deve ser feita pela via contrria sua fala,

    quando ele declara no prestar declaraes a respeito de nada por no ter nada de

    sbio. Imaginemos que Scrates decida emitir suas opinies e se declare sbio. Dos

    discpulos que convivessem com ele, ele no poderia retirar nada, mas apenas

    preench-los com o seu pretenso saber. Ora, se colocar nesta posio faria de

    Scrates um sofista, e seus discpulos estariam na posio de receptores, incapazes

  • 38

    de produzir qualquer verdade. Se isto ocorresse, no existiria mais o partejar de

    almas, e a maiutica no teria razo em existir.

    Mas o prprio Scrates quem d a origem da sua incapacidade de produzir

    saberes, e ela surge da proibio imposta pelo deus. A maiutica no uma

    atividade divina, mas tambm no puramente humana. esta posio

    intermediria que d a Scrates a singularidade enquanto partejador de almas. A

    maiutica surge de um apelo divino. Se Scrates fosse dotado do poder de procriar,

    ele seria como uma destas almas cujo fruto poderia ser partejado. Ora, seria

    necessrio um Scrates para partej-lo, e depois outro Scrates, ad infinitum, pois

    necessrio que um parteje os outros. Esta necessidade coloca Scrates na funo

    de mediador. Mas mediador para os outros, pois impossvel que ele mediasse a si

    mesmo. Neste sentido, Scrates goza de uma posio especial. A invocar o seu

    daimon, ele invoca a permisso para a prtica da maiutica.

    Alm disto, Scrates dispe tambm da arte de reunir interlocutores, assim

    como as parteiras dispem da arte de reunir um homem e uma mulher. Entretanto,

    estes interlocutores, muitas vezes, se mostram incapazes de aprender. Estes se

    afastam de Scrates, ou por convico prpria, ou persuadidos por outros e, uma

    vez que no seguem o princpio da maiutica, abortam as coisas que ainda restam

    por causa das ms companhias, destruindo o que Scrates fizera nascer. No

    entanto, existem outros, aqueles com quem Scrates pode associar-se, uma vez

    que a divindade assim permite. Estes sofrem o mesmo que as mulheres que esto

    em trabalho de parto, e esto cheios de dificuldades, e Scrates pode ajudar-lhes.

    Mas aqueles que Scrates reconhece como no totalmente fecundos ele os envia

    aos sofistas, com a ajuda da divindade. Como Teeteto encontra-se dentre os

    primeiros, Scrates lhe pede ento que confie nele como filho hbil de uma parteira

    e responda ao que lhe for perguntado.

    Encorajado por Scrates, Teeteto vai ento propor trs definies de

    conhecimento, primeiramente identificando-o com a sensao, depois com a opinio

    verdadeira e, enfim, com a opinio verdadeira acompanhada de lgos.

  • 39

    CONHECIMENTO SENSAO? Sensao e Protgoras

    Aps ter convencido Teeteto de que seus dons de parteiro podem ajud-lo a

    se livrar do embarao no qual ele se encontra, Scrates pede que ele novamente

    tente definir o conhecimento. Segundo Teeteto:

    , , . Parece-me, ento, que aquele que conhece algo tem uma sensao disto, o qual conhece, e como agora mesmo parece, o conhecimento no outra coisa seno sensao. [151e]

    Ao equiparar os dois termos principais na definio, conhecimento

    () e sensao (), Teeteto nos diz que existe nos indivduos uma

    capacidade ligada aos sentidos e, quando estes percebem ou tm a sensao de

    algo, eles automaticamente o conhecem. Tal definio no se mostra insignificante

    ( ) para Scrates e, portanto, deve ser analisada. Sua anlise, no

    entanto, consiste em aproximar a definio dada por Teeteto tese de Protgoras.

    Tal aproximao se d porque tanto a proposta de Teeteto quanto a tese de

    Protgoras dizem as mesmas coisas ( ), embora de outro modo. Assim,

    a resposta mais adequada que associa conhecimento e sensao aquela que se

    aproxima do dictum de Protgoras, citado de cor (ou de memria) por Scrates: o

    homem a medida de todas as coisas, das que so, como so, e das que no so,

    como no so. ( " , "

    , .).

    Esta citao de Protgoras aproxima no apenas a primeira definio de

    conhecimento tese do sofista, mas tambm faz referncia prpria construo do

    dilogo. Lembremos que, no prlogo, Euclides nos diz que o dilogo foi escrito. Aqui,

    Plato recorre outra fonte escrita para dar continuidade argumentao, pois faz

    Scrates perguntar a Teeteto se ele j lera a sentena em algum lugar. Ora, quando

  • 40

    Teeteto alega j t-la lido muitas vezes (), isto faz crer que esta verso da

    tese de Protgoras parecia ser corrente nos crculos que tratavam da educao dos

    jovens. Alm disso, ela parece mostrar tambm que Plato no se mostrava to

    avesso ao uso da escrita, ao menos para aqueles que no eram filsofos. Note-se

    que Scrates cita a frase de memria, enquanto Teeteto j a lera em algum lugar.

    A sentena de Protgoras explicada assim por Scrates: por um lado,

    assim como a coisa aparece () para ele, tal ela () para ele; por outro

    lado, tal como essa mesma coisa aparece para Teeteto, assim ela para Teeteto, e

    tanto Scrates quanto Teeteto so homens. Assim, a medida de cada um, ou a

    verdade da coisa para cada um, a maneira como a coisa se apresenta para cada

    um, sendo o homem a medida. Entretanto, o que est em jogo aqui no apenas o

    ponto de vista do indivduo, mas principalmente o ponto de vista de um indivduo, o

    de Protgoras, sendo ele um "homem sbio" ( ). ele ento que deve

    ser refutado.

    Neste sentido, evidente que para Protgoras o ser s exista do ponto de

    vista individual. Para exemplificar tal ponto de vista, Scrates d o exemplo do

    vento: o que faz com que o vento, sendo nico, parea frio para alguns indivduos ao

    mesmo tempo em que no parece frio para outros? Se cada indivduo pode sentir o

    mesmo vento de maneiras diferentes, ou seja, se o vento parece frio a um e no frio

    a outro, h de se admitir que o mesmo vento possui duas propriedades, o frio e o

    no frio. Estabelece-se, ento, uma relao em dois nveis: primeiramente, entre o

    vento e a sua propriedade o frio e, em seguida, entre o vento e aquele que o

    sente.

    Assumir a primeira relao cair em contradio, pois o mesmo que dizer

    que o mesmo vento ao mesmo tempo frio e no frio. Em contrapartida, assumir a

    segunda relao concordar com Protgoras, pois o vento parece () de uma

    maneira para um indivduo, e de outra maneira para outro indivduo. Ora, se o que

    parece () o mesmo que ser sentido (), ento a aparncia

    () seria o mesmo () que a sensao (), quer em relao s

    propriedades do vento, quer s quaisquer outras relaes.

    Entretanto, esta explicao suscita uma dificuldade. A sensao, sempre

    sendo do que , infalvel (), sendo ela conhecimento ( ).

  • 41

    Mas, segundo a interpretao de Scrates para a tese de Protgoras, se a sensao

    relativa a cada indivduo, como pode ela poderia ser infalvel, isto , estar livre do

    erro? Quer isto dizer que cada aparncia pode ser sentida pelo indivduo de modo

    diferente daquele sentido por todos os outros indivduos, uma vez que a verdade de

    cada sensao como ela lhes aparece? para livrar-se de tal dificuldade que

    Scrates expe a tese secreta de Protgoras.

    A tese secreta de Protgoras consiste em algo que ele teria revelado

    somente a alguns de seus discpulos, mas, para a multido, falava de modo obscuro

    (). Ora, o verbo utilizado por Plato aqui , que quer dizer falar

    obscuramente ou por enigmas. Logo, a referncia clara. Herclito que Scrates

    tem em mente, cuja tradio o denominava como obscuro.

    Scrates enuncia ento esta doutrina: nada nico em si e por si (

    ), e ela traz consigo algumas consequncias. Por ela,

    impossvel nomear ou qualificar alguma coisa com correo, pois, se no h

    unidade, objeto ou qualidade, pode-se, a partir do ponto de vista do indivduo,

    nomear grande ao que pequeno ou pesado ao que leve, e assim por diante. Ora,

    se nada nico, mas admite variaes quanto ao tamanho, peso ou qualidade,

    impossvel afirmar que algo (); isto se deve ao fato de que tudo parte do

    movimento (), da deslocao () e da mistura (), fazendo com

    que as coisas no mais sejam, mas se tornem () algo diferente daquilo que

    era antes.

    Mas Herclito no o nico defensor de tais opinies, j que Scrates

    aproxima da tese de Protgoras aquela de outros sbios antigos. Fazem parte deste

    squito o filsofo pr-socrtico Empdocles, o poeta cmico Epicarmo e Homero,

    que canta a beleza das aparncias efmeras. A citao de Homero aqui no

    gratuita. Scrates precisa da autoridade do maior educador da Grcia para refutar o

    jovem Teeteto. Assim como fizera anteriormente ao citar o fragmento de Protgoras,

    Scrates agora recorre a um verso da Ilada8, Oceano, origem dos deuses, e a me

    Ttis, para assegurar que todas as coisas tm sua origem no fluxo. natural, no

    entanto, que Scrates exclua Parmnides desta lista, pois ele o nico defensor do

    ser nico e do repouso. Ademais, sabemos que esta excluso apenas temporria,

    8 Homero. Ilada, XIV, v.201, 302.

  • 42

    j que sua doutrina ser discutida e refutada na clebre cena do parricdio no

    Sofista.

    Mas para dar conta de sua explicao sobre o movimento, necessrio que

    Scrates fale tambm de seu oposto, o repouso. Ambos possuem implicaes quer

    no corpo, quer na alma. No corpo, pelo repouso e pelo descanso que a condio

    dos corpos se deteriora e, em contrapartida, pelo movimento e pelos exerccios

    que ele se preserva. Quanto alma, pela aprendizagem que a sua condio

    preservada, ao adquirir conhecimentos, o que a torna melhor9. Em contrapartida,

    pelo repouso, entendido como ignorncia, que ela se deteriora, pois nada aprende e

    se esquece.

    Scrates descreve ento como se d a gerao a partir do movimento, quer

    no corpo, quer na alma. Uma diz respeito ao ser, produzida pelo movimento; a outra

    diz respeito ao seu contrrio, o no ser, produzida pelo repouso. Os exemplos dados

    so o calor e o fogo, engendrados pelo movimento de frico e translao. Mas no

    apenas ele, mas tambm o bom e o mau estado do corpo, um gerado pelo

    movimento e outro pelo repouso [153c].

    Para aproximar a teoria da sensao ao mobilismo de Herclito, Scrates a

    exemplificar atravs da cor. A cor no nem o que encontra (objeto) e nem o que

    encontrado (sensao), mas algo intermedirio, prprio a cada indivduo, isto , um

    movimento gerado entre a sensao e o objeto. Toda sensao seria ento prpria a

    cada indivduo. Ora, afirmar isso gera uma objeo, pois seria preciso admitir que

    todo ser que sente perceberia a mesma sensao, ou seja, tal como uma cor

    pareceria para ele, ela pareceria tambm para um co ou qualquer animal, e isto

    impossvel. Como o indivduo est em constante mutao, ele no jamais

    semelhante () ao que ele era, e, por isso, suas sensaes individuais tambm

    mudam.

    9 O tema do aprendizado e do esquecimento, ou seja, a sua relao com a memria, ser retomado

    por Scrates na apresentao do modelo do bloco de cera e do avirio.

  • 43

    Sensao e Herclito

    Os desdobramentos da teoria do fluxo de Herclito deixam Teeteto em

    estado de admirao. A este estado de admirao (), Scrates finalmente

    reconhece em Teeteto a figura do filsofo, pois a filosofia, para Plato, tem origem

    neste maravilhamento:

    , . do filsofo este sentimento, admirar-se, e no existe outro ponto de partida da filosofia do que este. [155d]

    Scrates comea ento a expor o que existe de mais secreto da tese de

    Protgoras, e a busca se dar em torno da verdade secreta (

    ) deste homem. O aviso a Teeteto claro: ele deve observar a

    exposio ao mesmo tempo em que se mantm atento para que eles no sejam

    ouvidos por alguns dos no iniciados (). Ora, estes no favorecidos pelas

    Musas so aqueles que acham que no existe outra coisa alm do que podem

    agarrar com as mos e no admitem que aes, geraes e todo o invisvel

    participem da existncia [155e]. Teeteto toma estes homens como teimosos e

    obstinados ( ), diferentes daqueles que

    Scrates tem em mente, j que o autor, ou os autores da doutrina secreta seriam,

    em contrapartida, mais refinados ( ).

    Scrates descreve ento tal doutrina. Os movimentos so de dois tipos, um,

    descrito como potncia de agir () e o outro, como potncia de sofrer uma ao

    (). A partir do encontro e da frico destes ( ),

    so gerados descendentes infinitos, que se formam aos pares. Destes pares, um o

    objeto da sensao ( ) e o outro a sensao (). As sensaes,

    por sua vez, tambm se dividem em duas e so nomeveis, correspondendo aos

    sentidos nos homens, alm das sensaes de calor e frio, os prazeres, as dores, os

    desejos e o medo.

  • 44

    O gnero sensvel ( ), por outro lado, tem a mesma origem

    que cada uma destas sensaes. Todas as espcies de cores, por exemplo, so

    geradas respectivamente a todas as espcies de vises; do mesmo modo, todos os

    sons a todas as espcies de audies, e para outras as outras sensaes, outros

    que so sentidos. Isto quer dizer que para cada viso existe um tipo de cor

    correspondente quela viso, do mesmo modo que, para cada audio existe um

    tipo de som correspondente quela audio e assim, para todas as outras

    existe um que lhe corresponde. assim, associando uma determinada

    sensao a um objeto da sensao que termina o mito descrito por Scrates,

    embora Teeteto no o tenha entendido completamente.

    Teeteto no compreende muito bem tais desdobramentos e Scrates prope

    ento termin-los. Estes movimentos, diz ele, variam em rapidez e lentido. Estas

    duas caractersticas visam precisar a descrio do conhecimento segundo as

    doutrinas de Protgoras e Herclito, isto , estabelecer quais resultados surgem da

    relao entre elas. Scrates demonstra estas consequncia na relao

    agente/paciente, exemplificando atravs das sensaes produzidas pelo olho que v

    e o objeto que visto [156e]. Mas a distino entre agente e paciente no clara,

    pois no pode haver agente antes do seu encontro com o paciente e nem pode

    haver paciente antes que haja o encontro com a agente, pois somente na relao

    com outra coisa que um agente e o outro paciente.

    Scrates pergunta a Teeteto se, at ento, as coisas expostas lhe so

    agradveis e, quando tu as saboreias, elas te satisfazem? ( , ,

    , ;). irnica esta fala de

    Scrates, pois ele faz uso de termos ligados s sensaes, como se dependesse

    delas a aprovao de Teeteto. No entanto, Teeteto ainda tem dvidas se as

    perguntas de Scrates esto a p-lo prova ou se Scrates as diz em razo de

    simplesmente lhe parecerem assim. Diante desta dvida de Teeteto, necessrio

    relembrar o que havia sido dito a respeito de sua arte maiutica. Scrates no sabe

    nada e estril em relao a estas questes, fazendo apenas surgir, atravs de sua

    tcnica, uma opinio de Teeteto acerca do que vem sendo exposto, comparada ao

    fruto do nascimento, o qual Scrates pode examinar, quer se mostre vazio ou no.

    Teeteto ento exortado a responder se lhe agrada o fato de algo no ser, mas

  • 45

    devir sempre, como o bom, o belo e todas as coisas h pouco nos detnhamos

    [157d].

    Scrates retoma ento o que ainda falta ser dito do argumento. Falta dizer a

    respeito dos sonhos, das doenas e de todas as outras loucuras, que so

    associadas s imperfeies dos sentidos, como o ver e ouvir mal. Alm disso, disso

    incorre tambm todas as sensaes ilusrias, de onde a possibilidade de existir

    sensaes falsas em relao tese de Protgoras. O argumento do sonho e da

    loucura introduzido na argumentao a fim de criar uma objeo a esta tese. Se

    conhecimento o mesmo que sensao, ento qualquer ser capaz de sensao ,

    por consequncia, capaz de conhecimento. Mas isto cria um problema, pois os

    animais tambm so capazes de possuir sensaes.

    Qual argumento ento necessrio para refutar a definio de

    conhecimento de Teeteto, segundo a qual conhecimento seria sensao e a

    associao que Scrates fizera desta resposta tese do homem-medida de

    Protgoras, da qual gera sensaes falsas?

    Teeteto hesita em responder, pois ele no pode ir contra o argumento de

    que os loucos ou sonhadores no tm opinies falsas, quando pensam que so

    deuses, ou como os que nos sonhos voam por acreditarem ter asas. A hesitao de

    Teeteto levanta o argumento da divergncia existente entre e o sono e o estado de

    viglia [158b]. Alm deste argumento, Scrates levantar outros para exemplificar o

    papel do agente e do paciente em relao s sensaes, como o estado de

    Scrates doente e Scrates saudvel, onde o sabor do vinho pode parecer doce ou

    amargo para cada um deles. A anlise detalhada destes argumentos, entretanto,

    escapa proposta de leitura do Teeteto, tal como ela foi definida para esta tese.

    Vejamos resumidamente alguns destes argumentos e avancemos para a questo da

    memria, tal como ela apresentada nesta primeira parte do dilogo.

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    Anfidromia

    , , , , . muito bom o que disseste, que o conhecimento no seno a sensao, e nisto concorrem tanto o que diz Homero, Herclito e todos de tal gnero: que tudo se move como fluxos, e, de acordo com sapientssimo Protgoras, que o homem a medida de todas as coisas, e, segundo Teeteto, que a sensao se torna saber, sendo assim a mesma coisa. [160e]

    Nesta passagem Scrates retoma a primeira definio de Teeteto, que

    equipara conhecimento e sensao, definio chancelada pela autoridade tanto de

    Protgoras quanto de Homero e Herclito, que afirmam que tudo se move em fluxos.

    Alm disso, Scrates incorpora verbalmente o devir definio de Teeteto, pois

    agora a "sensao se torna saber" ( ). Este o primeiro

    fruto de Teeteto, que Plato compara a um recm-nascido, aludindo chamada

    Anfidromia, festa que se dava logo aps o nascimento onde a criana era carregada

    em torno da lareira. Do mesmo modo que a criana era inserida na sociedade

    atravs deste ritual, a definio de Teeteto, interpretada pelo vis mobilista, tambm

    deve ser inserida na argumentao ( ).

    Mas Teodoro intervm no dilogo para mais uma vez pr em evidncia o

    carter de Teeteto. Seu humor fcil lhe permitir aguentar a exposio de seu filho,

    primeiro fruto produzido pela arte maiutica de Scrates. O desejo de Teodoro

    claro nesta passagem: ele quer ver refutada a resposta de Teeteto, de que

    conhecimento no outra coisa seno sensao. Mas isto tambm revela o carter

    de Teodoro. Teodoro um amante dos discursos