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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA CONHECIMENTO E TRANSCENDÊNCIA AVAIR GUILHERME AMARAL DE CARVALHO RA : 19536-7 São Carlos 2003

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS

CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

CONHECIMENTO

E

TRANSCENDÊNCIA

AVAIR GUILHERME AMARAL DE CARVALHO

RA : 19536-7

São Carlos 2003

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS

CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

CONHECIMENTO

E

TRANSCENDÊNCIA

AVAIR GUILHERME AMARAL DE CARVALHO

RA : 19536-7

Monografia apresentada como conclusão da

disciplina Pesquisa em Fundamentos da Psicologia IV ,

sob orientação do Prof. Dr. BENTO PRADO JR.,

Departamento de Filosofia .

São Carlos 2003

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SUMÁRIO

Resumo.............................................................................................................04

Apresentação....................................................................................................05

Introdução.........................................................................................................06

1. Do que se pode (ou não) conhecer...............................................................08

2. Hinduismo e metafísica.................................................................................21

3. A roda da vida...............................................................................................51

Conclusão.........................................................................................................63

Referências Bibliográficas................................................................................66

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RESUMO

Com o advento da Física Relativista e da Mecânica Quântica, a suposta

idéia de realidade objetiva, calcada em pressupostos materialistas, foi abalada.

Na medida em que fenômenos atômicos não se correlacionam mais com

processos objetivos no tempo e no espaço, que símbolos matemáticos

descrevem apenas probabilidades e não fatos, a teoria quântica inaugura uma

nova concepção epistemológica, gerada pela necessidade de transcender

conceitos contraditórios como partícula-onda, movimento-repouso, força-

matéria, existência-não-existência.

Para a filosofia ocidental, tal impacto epistemológico representa tanto a

retomada de um problema que já fora objeto da reflexão de filósofos como

Platão, Descartes, Kant e Schopenhauer, como a consideração de concepções

indianas milenares, uma vez que a física quântica aproxima-se do discurso

filosófico oriental ao trazer para o centro de nossa reflexão uma inquietante

questão: é possível a realidade objetiva ?

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APRESENTAÇÃO

"No princípio, não havia o Ser nem o não-Ser.

Não havia nem o ar nem o firmamento para além dele.

O que é que se movia, então, ruidosamente? E onde?

E sob a guarda de quem? Eram as águas que estavam debaixo do firmamento?

Era o abismo das águas, insondável? Naquele tempo não havia

nem morte nem imortalidade.

A luz não fora ainda separada das trevas. E as trevas cobriam o abismo.

Aquele que é Uno, respirava sua própria respiração.

E, afora ele, nada mais existia, apenas uma exceção, a noite,

(no começo, embuçada nas trevas). A terra era vazia, vaga, até que, fruto do Ardor, o Uno viesse surgindo.

O Ardor era o Desejo (Kama), e o Desejo foi a primeira semente. Foi o primeiro germe do espírito.

Depois, voltados para dentro de si mesmos, os poetas descobriram a relação entre o Ser e o não -Ser.

Sua corda estava estendida na transversal. O que havia acima dela?

Havia semeadores semeando. Havia forças em ação.

O elã, espontâneo, estava embaixo. O Dom de si estava em cima.

Quem sabe, com certeza apodítica, de onde provém, como criação secundária?

Os deuses nasceram depois do universo. Eles também vieram depois.

Quem saberia precisar sua origem? Quem saberia explicar a criação que veio depois,

a dos deuses e a dos homens, se tudo faz parte de um grande plano ?

Só aquele que tudo vigia lá do mais alto dos céus, só ele o sabe.

Mas sabe mesmo?”

Rigveda X, 10

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INTRODUÇÃO

No século XVII, ao estabelecer as bases para a filosofia e ciência

modernas, Descartes retoma a idéia dos fundamentos matemáticos e da

essência do sujeito como substância pensante. No entanto, o materialismo,

corrente filosófica que dominaria a ciência, de modo geral, até o início do

século XX, contrapõe-se frontalmente à idéia de uma substância imaterial.

Para essa corrente de pensamento, processos mentais são totalmente

determinados por processos materiais. Somente os átomos seriam o substrato

real da matéria.

Entretanto, com o advento da Física Relativista e da Mecânica Quântica,

a suposta idéia da realidade objetiva das partículas elementares foi abalada.

Ao conceber o universo como uma teia dinâmica de relações, a teoria quântica

enfrenta uma nova situação epistemológica e recoloca um problema filosófico

fundamental: afinal, o que é possível conhecer ?

Tanto a relatividade como a teoria quântica descobriram que leis

deduzidas a partir de fenômenos atômicos não se correlacionam mais a

processos objetivos no espaço e no tempo, mas apenas a situações

observacionais. Os símbolos matemáticos com que essas situações são

descritas representam possibilidades, e não fatos. Representam um estágio

intermediário entre o possível e o efetivo.

Tal constatação aproximou a física quântica da filosofia oriental, na

medida em que ambas transcendem conceitos contraditórios como: partícula-

onda, movimento-repouso, força-matéria, existência-não-existência.

Para a filosofia ocidental, tal concepção implica no questionamento dos

limites de nosso conhecimento e na retomada de conceitos propostos pela

Filosofia desde Platão. Nesse sentido, o presente estudo, ao propor uma

reflexão sobre o problema do conhecimento, procurou contemplar, no primeiro

capítulo, algumas idéias de filósofos como Platão, Descartes, Kant e

Schopenhauer, apresentando, no segundo capítulo, os principais conceitos da

metafísica hinduísta, para, no terceiro capítulo, apresentar um contraponto

entre esta e os principais conceitos da física moderna, com vistas à uma

conclusão.

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1. DO QUE SE PODE (OU NÃO) CONHECER

Os filósofos gregos, meditando sobre os fenômenos visíveis,

defrontaram-se com a questão das menores partículas da matéria. A física

atômica, fundada por Demócrito e Leucipo, considerava essas partículas como

“aquilo que existe”. Concebidas como indivisíveis e imutáveis, eram as

unidades últimas, dotadas de eternidade. Daí seu nome: átomos. Dotadas de

uma forma definitiva, estavam separados entre si pelo espaço vazio, o que

propiciava o “campo” no qual suas diferentes posições e movimentos

determinavam os mais variados fenômenos.

Por outro lado, para Platão, as menores partículas da matéria não eram

redutíveis à própria matéria. No último limiar das estruturas materiais o que

existe é uma forma matemática, ou um constructo intelectual. O mundo pode

ser uniformemente inteligível com base na simetria matemática, na imagem, na

idéia.

No século XVII, ao estabelecer as bases para a filosofia e ciência

modernas, Descartes retoma a idéia dos fundamentos matemáticos e da

essência do sujeito como pura substância pensante, pois cogito, ergo sum.

Mas, neste mesmo século, Thomas Hobbes e Pierre Gassendi, inspirados

pelos atomistas gregos, iriam constituir uma outra corrente de pensamento

denominada materialismo1, cujas teses gerais podem se resumir no seguinte:

processos mentais são inteiramente determinados pelos processos físicos.

Proclamada a impossibilidade de haver um espírito sem corpo, ou liberdade

para a vontade, o materialismo logo iria destituir de valor os eventos imateriais,

na medida em que somente consideraria pertinentes questões passíveis de

observação e constatação pública, destituindo de importância científica

intuições ou insights, por serem considerados eventos privados.

Os postulados dessa última corrente dominaram as ciências naturais até

o século XIX, em especial a física e a química. Os átomos da química eram

considerados o substrato real da matéria. No entanto, a própria Física,

surpreendida pela descoberta de Max Plank, recolocou o problema que, para

os materialistas já estava solucionado.

1 Que, historicamente, irá se opor ao dualismo e ao idealismo filosófico.

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Plank descobriu nos fenômenos de radiação uma qualidade de

descontinuidade que, embora se relacionasse com a existência dos átomos,

não poderia ser explicada com base na existência deles. Semelhante

característica levou à idéia de que tanto a descontinuidade quanto a existência

do átomo poderiam ser apenas manifestações de uma lei fundamental da

natureza. O quantum de ação de Plank colocava sob suspeição a existência

dos átomos como constituintes últimos da matéria, e retomava o idealismo

platônico, no sentido de que a existência dessas partículas, assim como de

outras, poderia ser atribuída ao efeito de simetrias matemáticas.2

1.1. Platão, Descartes, Kant, Schopenhauer e os impasses

da Física Moderna

“O absoluto, o não-hipotético, habita além das últim as hipóteses”

Platão

Depois da morte de Sócrates, Platão viaja e freqüenta centros

pitagóricos de pesquisa científica. Em Cirene inteira-se das pesquisas

matemáticas desenvolvidas por Teodoro, particularmente as referentes às

grandezas “irracionais” (cujo valor exato não se podia determinar). Os

irracionais matemáticos serão fonte de inspiração para várias teorias platônicas

por representarem a “justa medida” que nenhuma linguagem consegue exaurir.

É na matemática que Platão vê descortinar o caminho para ultrapassar

as aporias socráticas3 e conduzir à certeza. Seguindo o método dos

geômetras, e fortemente influenciado pelo pitagorismo, Platão propõe as idéias

como causas intemporais para os objetos sensíveis. Os objetos sensíveis

teriam, portanto, como modelos formas incorpóreas e transcendentes.

Mas o exame da hipótese sobre a existência das idéias (ou das causas

inteligíveis daquilo que os sentidos são capazes de apreender), remeterá

Platão à busca de uma condição incondicionada para o conhecimento. O

2 Heisenberg (2000), p. 13 3 Perguntas que Sócrates fazia e deixava sem resposta.

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encontro com o fundamento absoluto da verdade será, para Platão, não o

ponto de partida mas a meta a ser alcançada após a travessia de todo o

campo do possível. “O absoluto, o não-hipotético, habita além das últimas

hipóteses”4, diria.

No entanto, da hipótese das idéias deriva um problema decisivo: o da

possibilidade de conhecer as realidades invisíveis e incorpóreas. É preciso

admitir um conhecimento das idéias incorpóreas que antecede ao

conhecimento dos sentidos. Para Platão somente o intelecto pode apreender

as idéias, porque ele também é incorpóreo. Antes de nascer, a alma humana

teria contemplado as idéias eternas. Encarnada, perde a possibilidade de

contatar diretamente as realidades incorpóreas. É diante de suas cópias –os

objetos sensíveis- que pode recuperar, por reminiscência, o conhecimento das

idéias; o que torna conhecimento equivalente a reconhecimento. A hipótese da

reminiscência vem, assim, sustentar a idéia do mundo das formas, implicando,

por sua vez, uma outra doutrina: a da pré-existência da alma em relação ao

corpo. A imortalidade, no platonismo, converte-se numa condição para a

ciência, para a explicação inteligível do mundo físico.

Mas, em relação à existência do mundo físico, outra questão se coloca:

se a causa inteligível do mundo físico é o mundo das idéias, então o que o

constitui, o que lhe dá materialidade ?

Na etapa final do pensamento de Platão, essa questão irá motivar a

cosmogonia e a física do Timeu , um dos mitos filosóficos mais importantes de

todos os tempos.

Timeu, um matemático e astrônomo, seguidor de Pitágoras, expõe sua

concepção sobre a origem e desenvolvimento do universo. Ele supõe a

existência de algumas coisas que não se transformam, e que podem ser

conhecidas pela inteligência e pela razão. Sobre elas pode-se estabelecer um

conhecimento certo, seguro. Sobre aquilo que muda constantemente, pode-se

ter apenas um conhecimento temporário, imperfeito.

Segundo Timeu , 27 d5:

4 Platão. In: Os Pensadores (1983), p. XV.

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“A primeira distinção a ser feita é esta: o que é aquilo que sempre é e

não se torna, e o que é aquilo que está sempre se tornando mas nunca é? “5

Timeu afirma, a seguir, que aquilo que é captado pelos sentidos está

sempre mudando6; o que, em última instância, leva-nos a concluir pela

impossibilidade de se construir uma ciência segura sobre o sensível.

O Timeu começa por discutir, por meio de argumentos racionais, se o

universo de fato surgiu ou se é eterno. Tendo decidido pela criação do

universo, Timeu pressupõe um criador7 e expõe suas idéias de como o criador

planejou o Universo.

O criador não constrói o universo a partir do nada, mas já encontra

alguma coisa: o caos inicial, desordenado, ao qual ele imprimiu ordem8. O

universo, planejado como algo uno e perfeito, é auto-suficiente, possui forma

esférica e movimento circular9, em torno do próprio centro.

Ao descrever progressivamente cada uma das características do

universo, Timeu segue a tradição de Pitágoras, assumindo que tudo foi

planejado de acordo com leis matemáticas. Ele admite que há coisas eternas –

Deus e as idéias- pois não sofrem transformação, e coisas que se transformam

sempre, que são materiais e perceptíveis. No entanto, supõe que, para que os

elementos que formam a base de toda a matéria possam continuar a existir,

deve haver algo imperceptível, sem forma (mas passível de adquirir qualquer

forma) e invisível. Essa base é o espaço.

Havia, portanto, algo a partir do qual Deus criou o universo. De um lado

havia idéias, a partir das quais podia elaborar um modelo de mundo. Por outro,

diferentes tipos básicos e matéria, que surgiam e se decompunham no espaço.

Deus surge para colocar ordem no caos. Somente a partir daí é que as coisas

5 Platão, Timeu, apud Charles H. Kahn: Ser em Parmênides e em Platão . In: Cadernos de Tradução I. Trad. Maura Iglesias. RJ: Núcleo de Estudos de Filosofia Antiga – Depto. Filosofia, PUC, agosto de 1997. 6 Segundo Charles Kahn, no Banquete, no Fédon e na República, Platão expõe uma teoria das Formas que tem sua base ontológica derivada da distinção de Parmênides entre o Ser e o Tornar-se, reforçada pelas distinções entre realidade e aparência, entre o inteligível e o sensível. 7 O criador, no Timeu, não corresponde a nenhum dos deuses do panteão grego. É uma concepção religiosa abstrata. 8 Notamos que a própria palavra grega para universo – kosmos – significa ordem. 9 Aqui se apresenta a idéia de que a forma esférica e o movimento circular são os mais perfeitos.

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começaram a adquirir características peculiares e, depois, puderam ser

nomeadas.

O mundo sensível, em última instância, seria uma imitação do mundo

inteligível, pois todo o universo seria resultante da ação de um artesão divino

que teria dado forma à matéria-prima (o caos), tomando como modelo as

idéias eternas. A arte divina teria produzido tanto as obras da natureza, como a

imagem dessas obras.

No século XVII, ao fundar a filosofia e a ciência modernas, também

Descartes relativiza a importância do sensível em relação à substância

pensante, ou puro espírito.

Ao iniciar suas Meditações Metafísicas , seu objetivo é o de estabelecer

os fundamentos que assegurem a veracidade da ciência, encontrando, para

isso, um ponto que, exposto à qualquer dúvida, se mostre certo e indubitável.

Utilizando o artifício de um Gênio Maligno, estende a dúvida ao valor objetivo e

à certeza subjetiva das verdades matemáticas.

Na Meditação Segunda, ao se persuadir que todas as coisas poderiam

ser obra do Gênio Maligno, com a intenção de o enganar, conclui, apesar

desse raciocínio, existir enquanto aquele que pode ser enganado. Se, ao

inspecionar os atributos de sua consciência, percebe-se como ser pensante, o

pensamento torna-se, portanto, o único atributo que não pode ser separado de

seu ser. Descartes enuncia, então, o cogito: “Penso, existo”, sendo a certeza

de sua existência condicionada à duração de seu pensamento e à sua

percepção enquanto ser pensante.

Com esse exercício, Descartes estabelece a verdadeira natureza do ser:

puro pensamento, excluído de todo elemento corporal e de todo conhecimento

sensível (pois o Cogito não se apresenta à imaginação).

O Cogito, portanto, pré-existe ao conhecimento das coisas, sendo

condição necessária das verdades matemáticas.

Ao investigar as origens das idéias, Descartes encontra a idéia de Deus,

que é a idéia que possui mais realidade objetiva do que as que representam

substâncias finitas. Não podendo Deus, o soberanamente perfeito, participar

de nenhum grau de imperfeição e sendo o engano uma forma de imperfeição,

conclui Descartes que Deus não é enganador. Dessa forma, abole-se o Gênio

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Maligno, saindo o Cogito de sua precariedade temporal, ao mesmo tempo em

que se assegura a veracidade das idéias claras e distintas.

Mas, enquanto para Descartes o conjunto de conhecimentos sobre o

mundo sensível deve se sustentar sobre raízes metafísicas, Kant, em seus

Prolegômenos, questiona tanto o caráter científico da metafísica, quanto todas

as formas apresentadas pelos filósofos anteriores à ele.

Embora não reconhecendo a realidade metafísica como ciência, Kant

admite a possibilidade de um certo conhecimento sintético a priori, já que tanto

a matemática pura quanto a ciência pura possuem proposições reconhecidas

como independentes da experiência.

Ao investigar como são possíveis proposições sintéticas a priori,

averigua os juízos matemáticos, os quais o levam a supor a existência de uma

intuição pura, através da qual todos os conceitos são apresentados. Por essa

intuição a priori pode-se conhecer os objetos como eles aparecem aos

sentidos, não como são em si mesmos.

Como fundamento dos conceitos da matemática pura estão as intuições

de tempo e espaço. São as intuições puras de espaço e tempo que servem de

fundamento às intuições empíricas, já que, segundo o filósofo, se constituem

em formas da sensibilidade que antecedem, no sujeito, as impressões através

das quais os objetos o afetam.

Kant diferencia seu pensamento do pensamento idealista (que, para ele,

resume-se na suposição de não existir outro ser senão o ser pensante, para

quem as representações não correspondem a nenhum objeto exterior),

afirmando a existência de coisas fora do sujeito, que lhes são dadas como

objetos dos sentidos, mas a respeito das quais nada sabe, tendo delas

conhecimento unicamente através de seus fenômenos.

Kant enfatiza aqui o que considera um dos enganos da metafísica:

tomar fenômenos –ou representações– como coisas em si mesmas.

Discordando do idealismo cartesiano, afirma que a intuição sensível apenas

representa a intuição da coisa, nunca sua constituição, sendo que, para ele,

coisas reais não podem ser transformadas em representações ou fenômenos

de coisa.

Assim, para Kant, a natureza só pode ser conhecida como um complexo

de fenômenos e os princípios a priori são princípios da experiência possível,

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não estando relacionados com as coisas em si mas sim com os fenômenos

como objetos da experiência.

Deste modo, tanto a matemática quanto a ciência pura da natureza não

ultrapassam os fenômenos, representando o que torna possível uma

experiência.

Ao considerar como fenômenos os objetos dos sentidos, Kant observa

que admitimos a existência das coisas em si como fundamento desses

mesmos fenômenos, embora nada saibamos de sua constituição. O

pressuposto desse raciocínio está em que, se admitirmos fenômenos,

devemos admitir as coisas em si mesmas.

Embora haja independência entre os conceitos do entendimento puro e

os princípios da experiência, não é possível pensar alguma coisa fora do

campo da experiência.

Através da experiência externa, o sujeito tem consciência da realidade

dos corpos e dos fenômenos externos no espaço, sendo que através da

experiência interna, objeto de sentido interno que pode ser conhecida através

de fenômenos que constituem um estado interno, cujo ser que fundamenta o

fenômeno é desconhecido, uma vez que a representação do eu seria o

sentimento de uma existência sem conceito.

Não há possibilidade de se pensar o ser do entendimento através dos

conceitos do entendimento puro, pois nada de determinado seria pensado.

Mas também não há possibilidade de pensá-lo por meio das propriedades do

mundo dos sentidos, pois ele reduzir-se-ia a mais um dos fenômenos do

mundo dos sentidos.

Enquanto para os idealistas os conhecimentos advindos dos sentidos e

da experiência são ilusões, encontrando a verdade apenas nas idéias do

entendimento puro e da razão, o princípio que rege o idealismo de Kant é que

o conhecimento retirado do entendimento puro ou da razão é ilusório, sendo a

verdade encontrada somente na experiência.

Kant problematiza o idealismo de Descartes, na medida em que este

último considera a existência de objetos fora do sujeito como duvidosa e

indemonstrável. Ao contrário de Descartes, Kant tenta demonstrar que temos a

experiência, não somente a imaginação das coisas exteriores, e que mesmo a

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experiência interna, indubitável para Descartes, somente torna-se possível

mediante a experiência externa.

Kant pressupõe que a consciência de sua existência é de ocorrência

simultânea à consciência imediata da existência de coisas externas a si. Para o

filósofo, somente é imediata a experiência exterior, através da qual se torna

possível a experiência interna, que, para ele, é a determinação da existência

do sujeito no tempo. E a determinação no tempo só pode ser percebida

através de mudança nas relações externas com referência ao que é

permanente no espaço.

A representação “eu sou”, que exprime a consciência que acompanha

todo o pensamento e que contém em si a existência de um sujeito, não pode

ser tomada como conhecimento já que não é experiência, para a qual se

requereria uma intuição interna além do pensamento de algo existente em

relação ao qual o sujeito seria determinado. Para que tal se dê, são exigidos

objetos exteriores, o que significa dizer que a experiência interna só é possível

de forma mediada pela experiência externa.

Para Kant, a existência dos objetos dos sentidos só pode ser conhecida

comparativamente a priori em relação à outra existência já dada, ou seja, a

existência só pode ser conhecida pela ligação com o já percebido, segundo leis

da experiência e não por conceitos.

O entendimento fornece a priori a experiência uma regra referente às

condições subjetivas e formais que a tornam possível. Formas de intuição

como além do espaço e do tempo ou formas de entendimento, como além das

formas discursivas do pensamento ou do conhecimento por conceitos não

poderiam ser concebidas ou compreendidas por nós, já que não estariam no

campo da experiência, o único em que são dados os objetos. Segundo o

próprio Kant:

“Tempo, espaço e causalidade não são determinações da coisa em si,

mas pertencem unicamente a seu fenômeno, na medida em que não passam

de formas de nosso conhecimento. Mas como toda multiplicidade e todo surgir

e fenecer são possíveis unicamente mediante tempo, espaço e causalidade,

também aquelas pertencem apenas ao fenômeno, e de modo algum à coisa

em si. Contudo como todo nosso conhecimento é condicionado por aquelas

formas, toda a experiência é apenas conhecimento do fenômeno, não da coisa

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em si: por isto suas leis não podem ser aplicadas à coisa em si. Isto é válido

inclusive para nosso próprio eu, que nós conhecemos unicamente como

fenômeno, e não pelo que possa ser em si”.10

Schopenhauer, kantiano, mas também crítico de Kant, baseia sua crítica

na observação de que Kant teria interpretado de forma inadequada o Mito da

Caverna de Platão. Para Schopenhauer, Kant negou à coisa em si o tempo, a

causalidade e o espaço, na medida em que as encerrou em expressões

abstratas. Para Kant, a coisa em si é inapreensível; Schopenhauer acreditava

que o noumenum kantiano poderia ser apreendido pelo puro sujeito do

conhecimento que, liberto da Vontade e do princípio de razão, através da

contemplação estética, poderia vislumbrar um objeto como Idéia platônica11. A

Vontade seria a coisa em si, a fonte de todos os fenômenos, que nada mais

são do que Representações da vontade12.

Para Heisenberg, Kant percebeu, de forma perspicaz, o modo como

obtemos as experiências, mas, ao fazer das formas intuitivas do “espaço”, do

“tempo” e da “causalidade” condições a priori da experiência, ele possibilita

postulá-las como absolutos e afirmar que elas têm que estar presentes no

conteúdo de quaisquer teorias físicas, da mesma maneira. Entretanto, o

advento da física relativista e da teoria quântica contradiz essa concepção,

pois os conceitos intuitivos de espaço e tempo tem sua aplicação limitada aos

fenômenos que envolvem pequenas velocidades. Fenômenos que envolvem

velocidades próximas à velocidade da luz não podem ser adequadamente

interpretados de acordo com o conceito kantiano de espaço e tempo.

Nas palavras de Heisenberg:

“Nossas formas de percepção, embora a priori, não se adaptam às

observações dos eventos que sucedem a velocidades próximas à da luz (...)”

e:

“Na física atômica, as observações não podem mais ser objetivadas de

uma maneira tão simples; isto é, não é possível referi-las a algo que se verifica

objetivamente ou de modo descritível no espaço e no tempo”13

10 Os Pensadores, São Paulo: Abri Cultural, 1980, p. 06 11 Arthur SCHOPENHAUER, O Mundo como Vontade e Representação , pp. 254, 255. 12 Ibid. pp. 239,240. 13 Op.cit, p. 19

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O problema, que permeou por séculos a filosofia, agora estava

recolocado.

1.2. O problema recolocado

Werner Heisenberg inicia o primeiro capítulo de seu livro A imagem da

Natureza na Física Moderna problematizando o conceito de natureza e, por

conseguinte, o problema da realidade. Para o autor, uma interação entre

campos de força, sem nenhuma substância como suporte para essas mesmas

forças, era menos compreensível do que a idéia materialista da realidade,

imposta como verdadeira e única. Essa imposição é atribuída, por Heisenberg,

à força de persuasão de uma idéia simples, que apresenta uma sólida imagem

de mundo repousando sobre constituintes últimos da matéria. Os pequenos

constituintes das partículas elementares (elétrons e as demais partículas

subatômicas) seriam, para os materialistas e seus herdeiros intelectuais, a

última realidade objetiva.

Ainda, segundo o autor, foi exatamente nesse ponto que se produziram,

no século XX, profundas alterações nos fundamentos da física atômica,

arrastando muitos homens de ciência para longe da concepção proposta pela

antiga filosofia atomística e pelo materialismo. O que se constatou foi que a

suposta realidade objetiva das partículas elementares não passa de uma

simplificação demasiado grosseira do estado real das coisas.14 Para

Heisenberg:

Quando observamos objetos da nossa experiência cotidiana, o processo

físico que facilita a observação desempenha, verdadeiramente, apenas um

papel secundário. Quando se trata de componentes mínimos da matéria

qualquer processo de observação provoca uma forte perturbação; não é, pois,

possível falar do comportamento da partícula independentemente do processo

de observação. Daqui resulta que as leis da natureza que nós formulamos

14 Heisenberg , W. A imagem da natureza na física moderna . Lisboa, LBL, s/d, p.14.

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matematicamente na mecânica quântica, não se referem às partículas

elementares em si, mas ao conhecimento que nós temos delas.15

As conseqüências dessas constatações levaram o físico a considerar a

sua ciência apenas como um elo em uma cadeia de contatos do homem com a

natureza, e aceitar que a sua ciência não pode mais falar da natureza

prescindindo do homem.

A tentativa de deduzir leis dos fenômenos atômicos fez que os físicos

descobrissem que já não eram processos objetivos no espaço e no tempo que

estavam sendo correlacionados, mas apenas situações observacionais.

Portanto, a descrição matemática dessas situações observacionais representa

possibilidades, e não fatos. Eles representam um estágio intermediário entre o

possível e o efetivo, que segundo o autor, só pode ser chamado de objetivo no

sentido em que, digamos, a temperatura é chamada de objetiva pela

termodinâmica estatística.16

O conhecimento do possível, na teoria quântica, possibilita algumas

previsões exatas; mas, em geral, só permite especular sobre a probabilidade

de ocorrência de um evento futuro.

Para melhor elucidarmos essa questão, debrucemo-nos sobre uma

breve descrição do comportamento do elétron no momento em que se tenta

medir sua órbita.

1.2.1. O estado quântico

De acordo com a física clássica, o elétron apresenta-se como partícula

ou onda. Como conseqüência dessa idéia, teoricamente cada um desses

processos poderia ser seguido passo a passo, em sua sucessão, o que nos

levaria a decidir em qual das duas categorias o dito elétron seria colocado. No

entanto, todas as medidas utilizadas pela Física para seguir a órbita do elétron

e decidir entre a sua natureza ondulatória ou corpuscular, leva o objeto a

mudar completamente o seu estado no próprio ato da medida.

Conseqüentemente, o resultado da medida não pode mais ser aplicado ao

estado inicial do elétron, mas ao estado em que o mesmo foi colocado pela

15 Idem, ibid

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19

medida, que é um estado energético tão alto que não apresenta mais nenhuma

propriedade ondulatória.

Como, para seguir a estrutura da órbita, é preciso usar ondas de luz de

comprimento de onda muito pequeno (pois só é possível ver coisas maiores do

que o comprimento de onda da luz utilizada para a observação), com

freqüência elevada e, portanto, com um grande quantum de energia, quando a

luz atinge o elétron, ela o arranca de sua órbita, destruindo o próprio objeto a

ser observado.

A natureza quântica da luz impossibilita à Física decidir entre onda e

partícula. Se uma subdivisão do processo for forçada para que seja possível

“olhar” para a onda a fim de determinar onde o elétron está, ele será

encontrado como uma partícula real, mas sua natureza ondulatória terá

desaparecido.

A grande idéia trazida pela Física Quântica “é o reconhecimento do fato

de que os estados quânticos individuais formam um todo indivisível, que existe

apenas enquanto não é atacado por um meio de observação. No estado

quântico, o elétron não é nem uma partícula nem uma onda no velho

sentido.”17.

Para Heisenberg, não podemos mais tratar as observações como se

elas se referissem ao modelo da “coisa em si” ou a “objetos”. Para o autor,

Kant não poderia prever que os átomos não são nem coisas nem

Gegenstände.”18 19

Assim sendo, de um modo totalmente inesperado, o questionamento

filosófico da realidade e da possibilidade ou não de qualquer conhecimento é

recolocado, na atualidade, por um campo do conhecimento que encontrou, na

experiência, os limites de sua própria constituição enquanto corpo teórico.

Como resume Niels Bohr:

A plenitude, em nosso caso, não é apenas uma abundância de

experimentos, mas também a abundância de conceitos mediante os quais

podemos falar de nossos problemas e dos fenômenos. O pressuposto de

qualquer entendimento da teoria quântica é uma mudança em nossos

16 Heisenberg , W.(2000), p. 145. 17 Weisskopf (1975), p.142 18 Objetos.

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processos de pensamento. Só temos esperança de efetuá-lo se usarmos toda

uma variedade de conceitos, discutirmos a relação entre as leis formais da

teoria quântica e os fenômenos observados, iluminarmos essa relação por

todos os lados e salientarmos suas aparentes contradições.(...) Somos

obrigados a falar através de imagens e comparações que não expressam

exatamente o que entendemos. Também não podemos evitar contradições

ocasionais; não obstante, as imagens nos ajudam a chegar mais perto dos

fatos verdadeiros. Sua existência não pode ser negada: “A verdade habita as

profundezas”.20

A que profundezas Niels Bohr se refere ?

19 Heisenberg, W.(1996), p. 145 20 Heisenberg (1996), pp. 243-4

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21

2. HINDUÍSMO E METAFÍSICA

2.1 Os Upanishades

O Hinduismo pode ser encarado como um amplo e complexo organismo

sócio-religioso com uma variedade imensa de seitas, cultos e sistemas

filosóficos. Suas manifestações partem de práticas rituais ingênuas, chegando

a atingir filosofias altamente intelectuais, com concepções de alcance e

profundidade fabulosas. Embora a maioria dos hindus seja composta de

humildes e devotos aldeões, o Hinduismo tem produzido um grande número de

destacados mestres espirituais, que possuem a capacidade de transmitir seus

profundos insights21.

Apesar da imprecisão dos dados obtidos, historicamente, a filosofia

indiana pode ser dividida em três períodos: o período védico (1500-600 a.C.); o

período épico (600 a.C. a 200 d.C.) e o período dos seis sistemas (200 d. C.).

Durante o primeiro período, a mais antiga manifestação religiosa

verificada na Índia e, talvez, em toda a humanidade, chegou à Índia trazida

pelos invasores arianos em 1500 a.C., proveniente da Pérsia antiga, anterior a

Zoroastro. A partir de século V a.C., as escolas védicas já apresentavam

conotações hindus.

Os Vedas22 são a fonte espiritual do Hinduismo, foram escritos por

sábios anônimos, aos quais a sabedoria foi revelada pelos deuses. Eles são

até hoje a mais alta autoridade religiosa para a maioria das vertentes do

Hinduismo, sendo que, qualquer sistema filosófico que não aceite tal

autoridade é considerado, na Índia, como heterodoxo.

Os Vedas foram compostos nas diversas épocas do primeiro período, e

cada um deles é dividido em várias partes: as mais antigas ensinam preces e

hinos sagrados; as posteriores prescrevem rituais de sacrifícios vinculados aos

hinos védicos; e as mais recentes elaboram o conteúdo prático e filosófico dos

Vedas.

21 Aqui no sentido de “intuições”. 22 Veda, ou Vedas é a denominação do “Livro da Sabedoria”.

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22

É entre os anos 600-300 a.C. que aparecem os Upanishades, como um

posfácio aos Vedas, representando um verdadeiro sumário dos grandes temas

da filosofia indiana, contendo especulações sobre temas metafísicos.

Os Upanishades chamados “védicos” são treze e são os elementos da

filosofia natural que servirão de base ao conhecimento dos Upanishades pós-

védicos. A idéia central está ligada a Brahman, conceito que, originalmente,

referia-se à fórmula sagrada, pois a “palavra brahman espalhava misteriosa

energia se fosse repetida ou, então, ouvida em silêncio”.23

A idéia de que os eventos e os objetos do mundo, em sua grande

diversidade, são apenas manifestações diversas de uma mesma realidade

última (Brahman) tornou-se a tese maior nos Upanishades, uma espécie de

alma ou essência interna do universo, na qual estava imersa a alma mortal e

individual (Atman). A essência do pensamento dos Upanishades é a idéia de

que a realidade individual (Atman) e a realidade última (Brahman) são Um.

Essa realidade é o conceito unificador que permitiu a grande profusão

de deuses e deusas pois, monísticamente, todos são criações de Brahman. Tal

realidade última, é descrita como infinita e além de todos os conceitos, não

podendo ser apreendida pelo intelecto e nem expressa em palavras. Para que

essa idéia pudesse ser transmitida, os sábios hindus utilizaram-se da

linguagem mitológica, representando Brahman como divino.

É no Upanishad conhecido como Taittiriya, onde o problema do

fundamento último das coisas aparece por meio das questões: é a matéria o

fundamento último das coisas? É a vida o fundamento último das coisas? São

os sentidos o fundamento último das coisas? É a inteligência o fundamento

último das coisas? A cada questão é apresentada uma refutação, a saber: a

matéria não pode ser o fundamento último das coisas porque ela não explica

os fenômenos da vida; a vida não pode ser o fundamento último da própria

vida, porque ela é insuficiente até para elucidar os seres vivos; os sentidos não

podem ser o fundamento último das coisas, pois a explicação por meio deles é

insuficiente para tratar daquilo que não é sensível (objetos imperceptíveis); a

inteligência não pode ser o fundamento último das coisas, pois, caso contrário,

todos os aspectos do ser poderiam ser reduzidos a termos intelectuais.

23 Valle (1997), p. 22.

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23

A realidade última é concebida como sendo aquilo que está além de

tudo o que existe. Ela é Brahman, o princípio de todas as coisas, causa

material e eficiente do Cosmo. Sua natureza não pode ser definida. É

indivisível, embora se possa compreendê-la se recorrermos à intuição. Só se

pode falar de Brahman no sentido negativo (“não é isso”, também “não é

aquilo”, etc).

2.2. A Metafísica no período dos seis sistemas

No período dos seis sistemas, encontramos o Vedanta (literalmente, “O

Fim dos Vedas”), o segundo sistema, ou segunda indagação, onde a teoria do

conhecimento é discutida e fundamentada. Tal escola é a mais intelectual do

hinduismo, baseando-se nos Upanishades, enfatizando Brahman como um

conceito metafísico, não-pessoal e isento de todo e qualquer conteúdo

mitológico.

Segundo o Vedanta, nossos sentidos podem nos enganar, nossa

memória pode não passar de mera ilusão, mas há uma experiência, em meio a

outras tantas experiências, que não deixa dúvida em relação à sua veracidade:

é a existência do Eu. Não pode ser negado (“eu não sou”) porque aquele que o

nega é parte da essência de sua natureza. Como ele nos escapa, só sabemos

de sua existência por meio de sua apresentação imediata. O Eu distingue-se

dos corpos, dos sentidos, do entendimento, e é princípio de nossa consciência,

embora nosso juízo acabe por igualar sujeito e objeto, real e irreal.

O mundo empírico não é real, embora haja alguma realidade que o faz

subsistir. Pois, mesmo que todo o cosmo não passasse de imaginação, algo

estaria servindo de fundamento à nossa imaginação. Esta realidade última é

Brahman.

A rigor, todo nosso conhecimento é não-conhecimento. Quando, porém,

o conhecimento negativo não é suficiente, nós o transformamos em um deus

(Ishvara), criado de acordo com as regras de nossa lógica.

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3.1. Eternidade e Tempo

"Tudo vai, tudo volta; eternamente gira a roda do s er...

Tortuoso é o caminho da eternidade" 24

Nietzsche

Para exemplificar a origem das concepções de tempo e eternidade entre

os hindus será apresentado um mito que se encontra compilado em um dos

Purãna25. Tal mito descreve fatos ocorridos com Indra, rei dos deuses do

olimpo védico, que queria ver realizadas todas suas fantasias maravilhosas de

glória e prestígio. Mas o Menino Maravilhoso e o Velho Homem Sábio lhe

ensinam um segredo sobre a divina e impessoal esfera da eternidade que

pode libertá-lo de suas ambições e ilusões egoístas.

Conta um mito antigo que Indra matou o dragão que mantinha as águas

do céu cativas em seu ventre. As águas foram libertas e suas torrentes fluíram

através da terra, voltando a circular pelo corpo do mundo. Tal corrente é o rio

da vida, pertencente a todos: seiva dos campos e florestas, sangue que corre

nas veias.

O gigantesco dragão apossara-se desse bem comum para satisfazer o

seu egoísmo, mas acabou morto e os fluidos brotavam novamente; os titãs

voltavam para os mundos ínferos e os deuses retornavam ao cume da

montanha central da terra.

As mansões majestosas da imponente cidade dos deuses haviam

desmoronado durante a supremacia do dragão, e o primeiro ato de Indra foi

reconstruí-las. Proclamado como salvador por todas as divindades celestiais,

ordenou ao deus das artes e dos ofícios que erigisse um palácio digno do

esplendor inigualável do rei dos deuses.

O gênio miraculoso construiu uma suntuosa mansão, com palácios e

jardins maravilhosos, lagos e torres. Mas Indra exigia cada vez mais, e toda

vez que apreciava a obra, arquitetava mais fantasias sobre as maravilhas que

queria ver realizadas. Desesperado, o construtor divino apelou pelo criador

24 Nietzsche, (1988) pp. 224-7. 25 “velhas histórias”: compilações de mitos em dezoito suplementos históricos aos Vedas, compostos entre 500 a.C. e 500 d.C., são a bíblia popular do hinduísmo.

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demiúrgico, Brahman, a corporificarão do Espírito Universal que habita muito

acima da agitada esfera olímpica, onde ainda reinam a ambição, a disputa e a

glória.

Em segredo, Brahman confortou-o dizendo que podia voltar em paz,

pois logo seria libertado de tal encargo. Enquanto o artífice divino retornava à

cidade de Indra, Brahman ascendeu a uma esfera mais alta até chegar a

Vishnu, o Ser Supremo, de quem o próprio Criador não era mais que um

agente. Beatificamente, Vishnu escutou-o em silêncio e apenas com um aceno

de cabeça, o fez saber que sua vontade seria realizada.

No dia seguinte, pela manhã, apareceu um menino brâmane diante dos

portões da mansão de Indra, ordenando ao porteiro que anunciasse sua visita

ao Rei dos Deuses. Indra apressou-se a dar as boas vindas ao visitante

auspicioso, que aparentava ter uns dez anos de idade e irradiava um brilho de

sabedoria. Depois de todas as saudações e cerimônias de boas vindas, Indra

perguntou ao Venerável Menino o propósito de sua visita.

A criança respondeu que queria perguntar-lhe sobre seus maravilhosos

projetos e perguntou quantos anos seriam necessários para a edificação de

sua rica residência majestosa, e que outros feitos de engenharia esperava que

o artífice divino realizasse. Com um sorriso bondoso, afirmou que nenhum

Indra antecedente conseguiu terminar um palácio como havia de ser o dele.

Orgulhoso, Indra divertia-se com a pretensão do menino que queria

saber o que ele ainda ignorava. Paternalmente, perguntou se seriam muitos os

Indras e artífices divinos que o menino havia visto ou pelo menos ouvido falar.

Com um tranqüilo aceno de cabeça e uma voz terna e acolhedora, a criança

respondeu que já havia visto muitos. Disse também que conhecia o seu pai, o

velho Homem-Tartaruga, senhor e progenitor de todas as criaturas da terra,

bem como o seu avô, o raio da luz celestial, filho gerado do puro espírito de

Brahman e conhecia também a Brahman que foi gerado do cálice do lótus

germinado no umbigo de Vishnu. Conhecia também o próprio Vishnu, o Ser

Supremo, que sustém Brahman no seu empenho criativo.

O menino continuou dizendo que conhecia a terrível dissolução do

universo, assistindo repetidas vezes ao perecimento de tudo ao fim de cada

ciclo. Descreveu os tempos terríveis em que cada átomo dissolve-se nas águas

primordiais e puras da eternidade (de onde originalmente tudo nasceu). Falou

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do momento em que tudo retorna à infinidade impenetrável e selvagem do

oceano, no qual, coberto por uma total escuridão, não se vê qualquer vestígio

de seres animados. Seguiu indagando: Quem enumerará as eras do mundo,

enquanto se sucedem ao infinito? Quem tentará, no espaço infinitamente

amplo, contar um a um os universos, cada um deles contendo seu Brahman,

seu Vishnu e seu Shiva26? Quem contará a totalidade dos Indras que, um a

um, já reinaram e desapareceram repetidas vezes em todos os inumeráveis

mundos? Declarou que os sábios têm o conhecimento de que, mesmo

existindo entre os servos de Indra alguém capaz de contar os grãos de areia

da terra e as gotas da chuva que caem do céu, jamais alguém conseguirá

enumerar todos os Indras.

A criança começou, então, a contabilizar: a vida e o reinado de um Indra

duram 71 éons; um dia e uma noite de Brahman terminam quando 28 Indras

tiverem morrido; a existência de um Brahman é de 108 anos medidos de dias e

noites bramânicos; Brahman sucede a Brahman e não há fim para o número

de Brahmans; o número de Indras, então, nem é digno de comentários.

Indagou se alguém poderia estimar o número de universos, em qualquer

momento dado, cada um abrigando um Brahman e um Indra. Diz que além da

visão mais remota no espaço exterior os universos surgem e desaparecem

constelando em hostes inumeráveis; como barcos, flutuam nas águas

insondáveis e puras que formam o corpo de Vishnu, e em cada poro de tal

corpo um universo floresce e fenece. Termina indagando sobre a possibilidade

de alguém enumerar todos esses universos, ou todos os deuses de todos

esses mundos presentes e passados.

Naquele momento uma procissão de formigas invadiu o salão numa

coluna de formação militar de quase quatro metros de largura. O menino fez

uma pausa, admirando-as, de repente soltou uma gargalhada estrondosa e

logo se aquietou num silêncio profundo e introspectivo. Gaguejando, Indra

pergunta o motivo da gargalhada e questiona a verdadeira identidade do

menino.

O menino responde que riu por causa das formigas, e que a razão não

podia ser contada, pois a semente do infortúnio e o fruto da sabedoria estavam

26 Karma= ação; “... é a força da criação, de onde provém a vida de todas as coisas.”, Bhagavad-Gita, 8.3.

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contidos naquele segredo, um segredo que, como um machado, golpeia a

árvore da vaidade mundana, cortando-lhe as raízes e dipersando-lhe a copa.

Segundo o menino, tal mistério é a luz para aqueles que tateiam na ignorância,

pois está submerso na sabedoria das idades, e é muito difícil de ser revelado,

mesmo aos santos. É o ar que mantém vivos os ascetas que renunciam e

transcendem a existência mortal; mas destrói os mundanos iludidos pelo

desejo e pelo orgulho.

Indra, ainda imóvel, suplica, com surpreendente e visível humildade, à

encarnação da sabedoria, que lhe revele tal segredo das idades, a luz que

dissipa a escuridão. O menino revelou ao deus a sabedoria secreta: - Vi as

formigas, ó Indra, desfilando em longa procissão. Cada uma delas já foi um

Indra e como vós, cada um dos Indras, um dia ascendeu à condição de rei dos

deuses por virtude de feitos piedosos. Mas agora, através dos muitos

renascimentos, cada um se transformou novamente em formiga. E este é o

exército dos que já foram Indras.

O ensinamento diz que devoção e grandes feitos elevam os habitantes

do mundo ao reino glorioso das mansões celestiais, aos domínios excelsos de

Brahman e Shiva e à mais alta esfera de Vishnu; mas os atos perversos

fazem-nos mergulhar nos mundos ínferos, em poços de dor e sofrimento. E as

novas encarnações se dão entre pássaros, vermes, porcos, animais selvagens,

árvores ou insetos. Apenas através dos feitos que alguém pode merecer a

felicidade ou sofrimento e torna-se senhor ou escravo, podendo atingir a

qualidade de rei ou brâmane, de um deus, um Indra ou um Brahman. O saber

desse segredo é a travessia para a bem-aventurança através do oceano do

inferno.

O menino compara a vida no ciclo dos incontáveis renascimentos como

as visões dos sonhos: as árvores e pedras silenciosas, os deuses das alturas

são todos como aparições fantásticas. Porém a lei do tempo é administrada

pela morte, ela é senhora de tudo. Volúveis e efêmeros como bolhas são o

bem e o mal dos personagens do sonho, pois o bem e o mal se alternam em

ciclos infindos. O sábio, porém, não se apega nem ao bem nem ao mal, nem a

coisa alguma, não se prende a absolutamente nada. Terminando o tremendo

ensinamento, o menino fitou seu anfitrião. O rei dos deuses, com todo seu

esplendor celestial, viu-se reduzido à insignificância.

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A história continua com a chegada de uma figura parecida com um

eremita: uma abundante e desajeitada cabeleira de tranças; uma pele de

antílope negra nos quadris; uma marca branca pintada na testa; a cabeça

protegida por um rústico guarda-sol de erva; e no peito, um estranho chumaço

circular de pêlos, que se conservavam circunferência e eram raros no centro.

O velho caminhou até Indra e o menino e acocorou-se entre os dois,

imóvel como uma rocha. Recobrando seu papel de anfitrião, Indra reinicia

todas suas reverências de boas vindas. O menino, então, toma a frente de

Indra e faz uma série de perguntas inquiridoras ao homem: de onde ele viria,

qual seu nome, porque estava ali, onde morava, o que significava o guarda-sol

de erva, o que queria dizer o tufo circular de pêlos em seu peito, porque era

denso na circunferência e ralo no centro.

Paciente, o velho sorriu e respondeu lentamente que era brâmane e seu

nome era Hirsuto. Continua dizendo que estava ali para ver Indra, e que como

sabia que sua vida era curta, decidiu não ter lar algum, não construir casa, nem

se casar ou procurar sustento. Vivia de esmolas e, para abrigar-se do sol e da

chuva, levava à cabeça aquele guarda-sol de erva. Sobre o círculo de pêlos,

disse que apesar de causar aflição traz uma sabedoria: a cada Indra que

morre, cai um fio; e é por isso que já se foram todos os fios centrais.

Continua, dizendo: - Quando a outra metade do período concedido ao

presente Brahman chegar ao fim, eu próprio morrerei. Portanto, menino

brâmane, restam-me poucos dias de vida! De que me serviriam, então, esposa,

filhos ou casa? Cada mover de pálpebras do grande Vishnu marca a extinção

de um Brahman, e tudo o que há sob a esfera bramânica é tão insubstancial

quanto uma nuvem que se forma e logo se dissipa. Este é o motivo que me

leva a entregar-me, abnegando de tudo o mais, à meditação cujo objeto são os

incomparáveis pés de lótus do supremo Vishnu. Esta fé que eu dedico significa

mais do que a beatitude da redenção, pois toda a alegria, mesmo a celestial, é

tão frágil quanto um sonho e apenas interfere na unicidade de nossa devoção

a Ele, o Supremo.

O velho declara que tal sabedoria maravilhosa lhe foi ensinada por

Shiva, aquele que concede a paz. E que não necessita mais experimentar as

várias e bem-aventuradas formas de redenção: poder compartilhar as

mansões divinas do supremo deus, desfrutar-lhe a eterna presença, ser igual

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a ele em corpo e vestes, tornar-me parte de sua augusta substância ou mesmo

absorver-me por completo em sua inefável essência.

Depois de tais declarações, ao mesmo tempo, o santo homem e o

menino brâmane, desapareceram abruptamente. O mito diz que o velho era o

próprio Shiva e que o menino era Vishnu. Agora sozinho, Indra estava perplexo

e atônito; refletiu sobre o caráter de sua vivência, pois lhe parecera um sonho.

Indra, então não sentia mais o desejo de ampliar seu próprio esplendor divino

construindo seu palácio. Convocou, então, o artífice divino, cobriu-o de jóias e

dádivas preciosas, e, oferecendo-lhe uma festa, libertou-o de seu encargo.

Depois de adquirir a sabedoria, Indra desejava agora ser livre: confiou

ao filho o esplendor e o peso de seu grande cargo, e preparou-se para viver

como um eremita, isolado no ermo. Aflita, sua esposa recorreu ao Senhor da

Sabedoria Mágica (sacerdote e conselheiro espiritual do Rei dos Deuses).

Na presença de Indra, o conselheiro discursou sabiamente sobre as

virtudes da vida espiritual e as da vida secular. Habilmente, atribuiu a cada

uma o que lhe era devido, persuadindo o rei a abrandar sua extremada

determinação ao mesmo tempo em que a rainha recobrava sua alegria.

Como mestre espiritual, o Senhor da Sabedoria Mágica certa vez

elaborou um tratado sobre a arte de governar, para instruir Indra. Agora, sua

segunda obra era um tratado sobre as estratégias para conduzir o amor

conjugal, versando sobre a encantadora e eterna arte da corte amorosa e do

encadeamento do ser amado com laços duradouros. Seu livro tornou-se um

alicerce sólido da vida matrimonial do casal.

Esta maravilhosa história mostra como o Rei dos Deuses foi humilhado

em seu orgulho sem limites. Através da sabedoria espiritual e secular, libertou-

se de sua ambição excessiva ao conhecer o papel que lhe cabia nos ciclos da

infinita mobilidade da vida.

2.3.1. Dharma Esquartejado

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Nessa maravilhosa história é revelada uma estranha pulsação do tempo,

com visões de ciclos cósmicos - éons27 que se sucedem na infinitude do

tempo, éons coexistentes nas infinitudes do espaço. Todo o pensamento hindu

acompanha tal ritmo “atemporal”. A roda do renascimento e morte, o ciclo da

emanação, fruição, dissolução e reemanação constitui-se lugar comum da fala

popular e também um tema fundamental da filosofia, do mito, da religião e da

arte. Sua abrangência vai da vida individual à história da sociedade e ao

movimento do cosmos.

As mitologias hindus subdividem cada ciclo cósmico em quatro yugas

(idades do universo). À medida que o ciclo prossegue ocorre o declínio da

excelência moral. A tradição greco-romana denominou as idades do período

clássico de acordo com os metais: ouro, prata, bronze e ferro. Já as hindus

utilizaram os quatro arremessos do jogo de dados: Krta (é o lance que concede

vitória total no jogo), Tretã (lance do três), Dvãpara (lance da díade) e Kali

(lance perdido).

A primeira idade é a yuga dos “quatro quartos”, na concepção indiana a

idéia de totalidade está associada ao número quatro; esta yuga, portanto, é a

perfeita, durante a qual a Dharma (ordem universal do universo, preexistente

ao início das forças universais) firma-se sobre as quatro pernas, como uma

vaca sagrada. Durante esta yuga os homens nascem virtuosos e dedicam sua

vida ao cumprimento dos deveres e tarefas divinamente designados pelo

Dharma. Nesta idade o fundamental é a santidade.

Com o movimento do processo vital do organismo do universo, a ordem

se enfraquece. Os elementos do Sagrado Dharma desvanecem-se, quarto a

quarto, enquanto seu oposto vai ganhando espaço. Na segunda idade, tanto o

corpo universal como o corpo da sociedade humana são sustentados agora

por três quartos de sua virtude total. O modo de vida próprio de cada casta

começa a entrar em declínio, seus deveres deixam de ser as leis espontâneas

que regem a ação dos homens e por isso agora eles precisam ser aprendidos.

A terceira idade é a do perigoso equilíbrio entre a perfeição e a

imperfeição, luz e treva. Neste período, apenas dois quartos do Dharma ainda

27 Etm.: aion - uma idade, vida, eternidade. Um período de tempo extremamente longo e indefinido, maior que uma era contada segundo as regras da Astronomia. Emanações do Ser a partir do desconhecido e último princípio metafísico.

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têm efetividade no mundo manifestado. O ideal de estado semidivino da

sociedade foi destruído, o conhecimento revelado da hierarquia de valores foi

perdido. A vida dos homens e do universo não é mais regida pela ordem

espiritual perfeita. Todos os seres humanos tornam-se cegos pela paixão aos

bens terrenos, mesquinhos, gananciosos e avessos ao cumprimento dos

deveres sagrados ditados pela abnegação. A verdadeira santidade é extinta, e

agora só pode ser atingida através da prática religiosa, do jejum, da devoção e

do ascetismo.

Na Kali Yuga (idade das trevas) o universo subsiste miseravelmente

com apenas um quarto da força total do Dharma. A vida é regida pelos

princípios egoístas, vorazes, cegos e negligentes. Kali significa “a pior de todas

as coisas”. Nesta idade o homem e universo atingem o limite do que têm de

pior, na degradação social e moral. “Quando a sociedade atinge o estágio no

qual a propriedade confere posição, a riqueza torna-se a única fonte de virtude,

a paixão o único elo a unir marido e mulher, a falsidade é a fonte do sucesso

na vida, o sexo a única razão de deleite e quando os ornamentos externos são

confundidos com a religiosidade interior...”28. No presente ciclo, considera-se

que essa idade iniciou no ano de 3102 a.C.

A Kali Yuga é a mais curta devido à deficiência da Dharma, durando

432.000 anos. Sua precedente a Dvãpara Yuga, que possui o dobro da

substância moral, abrange um tempo duas vezes maior, 864 000 anos. A Tretã

Yuga, com três quartos do Dharma, dura o período de três unidades de Kali, 1

296 000 anos. A Krta Yuga, período do Dharma “quadrado”, dura 1.728.000

anos. A soma geral é de 4 320 000 anos, ou dez vezes a duração da Kali

Yuga, tal ciclo completo é denominado Mahãyuga (“O Grande Yuga”).

Um único dia de Brahman (kalpa) dura mil mahãyugas (4.320.000.000

de anos para a humanidade). Para os deuses abaixo de Brahman e acima dos

homens este período constitui 12 mil anos divinos. Esse dia inicia com a

criação ou evolução, quando o universo é emanado pela substância divina,

transcendente e não manifestada; e termina com a dissolução e reabsorção do

universo que se funde novamente com o Absoluto. Todas as esferas do

universo e todos os seres contidos nela desaparecem ao final do dia de

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Brahman, persistindo, durante a noite que se segue e que dura o mesmo

período do dia, apenas como germe latente da necessidade de uma nova

manifestação.

Os Kalpas são subdivididos em quatorze intervalos de Manu que

sempre terminam com um dilúvio. Manu seria uma espécie de Noé hindu, o

herói que se salva do dilúvio. O período atual é chamado de intervalo de Manu

Vaivasvata (“Manu Filho do Deus-Sol Vivasvant”), que é o sétimo intervalo do

atual dia de Brahman, mais sete devem transcorrer para o dia terminar. O dia

atual é denominado Varãha Kalpa (“O Kalpa do Javali”), pois é nele que Vishnu

encarna sob a forma deste animal para salvar o universo. Este é o primeiro dia

do qüinquagésimo na de vida do atual Brahman e findará, depois de mais sete

dilúvios, na próxima dissolução.

Os kalpas evoluem e declinam acompanhados de eventos mitológicos

que se repetem eternamente, de formas similares, em ciclos grandiosos, lentos

e inexoráveis. As vitórias dos deuses, que lhes afirmam a autoridade sobre as

respectivas esferas universais; os intervalos de malogro, queda e destruição,

quando são subjugados pelos titãs ou antideuses; os avatares ou encarnações

de Vishnu, quando o Ser Supremo assume forma humana ou animal para

intervir como salvador do mundo ou libertador dos deuses: tais prodígios tão

singulares e maravilhosos quando ocorrem, não passam de elos imutáveis

numa cadeia sempre recorrente. Todos acontecimentos, maravilhas e

tragédias são momentos típicos do invariável processo da história ininterrupta

do organismo do universo, que constituem o padrão esquemático de um dia de

Brahman.

Brahma ressurge na aurora de cada kalpa, emergindo de um lótus

nascido e florescido no umbigo de Vishnu. No primeiro intervalo de Manu do

atual kalpa, Vishnu desceu na forma de javali para resgatar a recém-criada

Terra, que havia sido levada por um demônio para o fundo do mar. No quarto

intervalo ele libertou um rei-elefante do poder de um monstro marinho. No

sexto ocorreu um evento cósmico conhecido como a “Batedura do Oceano

Lácteo”, durante o qual os deuses e titãs, que lutavam pelo domínio do mundo,

firmaram uma trégua temporária para extrair o elixir da imortalidade do oceano

28 (anônimo) Vyãsa, Vishnu Purãna , livro IV- capítulo 24. Tradução para o inglês de H. H. Wilson, Londres 1840.

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universal. As duas grandes epopéias da Índia descrevem os eventos ocorridos

durante a atual mahãyuga do sétimo intervalo de Manu: o Rãmãyana refere-se

à idade Tretã do presente ciclo e o Mahãbhãrata, à idade Dvãpara.

Tais eventos mitológicos repetem-se a cada 4.320.000.000 de anos. O

indivíduo de vida efêmera continua presente ao longo do ciclo de suas

transmigrações, sob alguma forma, em algum lugar, desempenhando uma

máscara ou outra, em todo o transcorrer do prolongado percurso.

Humanamente, o tempo de vida de um Brahman parece muito extenso,

porém, ele é limitado. Dura cem anos bramânicos (com dias e noites de

Brahman) e termina numa grande e universal dissolução, através da qual

desvanecem-se não somente as três esferas visíveis dos três mundos (terra,

céu e espaço intermediário), como também a totalidade das esferas de todo e

qualquer ser, mesmo as dos mundos supremos. Todos se dissolvem na divina

Substância primeva, permanecendo, então, por outro século de Brahman, um

estado de total reabsorção, após tal estado recomeça o ciclo de

311.040.000.000.000 de anos na contagem humana.

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3.2. Maya

Quando se amplia a perspectiva, todos os aspectos da vida têm seus

valores alterados. "Era como se as montanhas -permanentes, se comparadas

às sete décadas, mais ou menos, que dura uma breve existência humana-

fossem observadas todas de uma só vez, da perspectiva de muitos milênios:

assim, surgiriam e desapareceriam como ondas"29. Não é à toa que a

expressão comumente usada para "é" em sânscrito é "torna-se" e as idéias de

"mundo" e "universo" possuem a conotação de "transitório, em permanente

mutação". O permanente é visto como fluido, tornando ainda mais árdua a

tentativa de descobrir um alicerce sólido.

A irrealidade para os hindus está ligada às idéias de transitoriedade,

mutabilidade constante, eterno retorno e ilusão. Já a idéia de realidade é

associada à imutabilidade, fixidez e eternidade. Se a consciência do indivíduo

é perturbada pelas experiências e sensações, sem que ele tome um ponto de

vista mais amplo que lhes diminua a importância, as formas efêmeras que

aparecem e desvanecem-se no infindável ciclo da vida (samsara) são

reconhecidas como absolutamente reais.

Porém, se é constatada sua transitoriedade, transparece o caráter irreal

de ilusão ou miragem, engano dos sentidos ou invenção duvidosa de uma

consciência restrita ao ego. O mundo compreendido desta maneira faz parte

da Maya: arte, poder ou magia do criador. Não é a própria compreensão, mas

a criação de acordo com a compreensão; é a ferramenta utilizada na produção

das aparências, tendo por base de todas as coisas a eternidade.

A Maya dos deuses é seu poder de assumir diversas formas, exibindo,

conforme sua vontade, vários aspectos de sua essência sutil. Mas eles

próprios resultam de uma Maya maior: a espontânea autotransformação da

substância de origem indiferenciada, divina e onigeratriz; que produz tanto os

deuses como o universo no qual atuam. Através do jogo da Maya manifesta-se

o manancial eterno e original do ser, na forma de todos universos que

coexistem no espaço e sucedem-se no tempo. A Maya também pode cessar, o

29 Zimmer (1989). pg. 29.

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que acontece no período de não-manifestação (noite cósmica), quando o

manifestado dissolve-se.

Um dos temas básicos na mitologia hindu é a criação do mundo pelo

auto-sacrifício de Deus, através do qual Ele se torna o Mundo e, finalmente, o

Mundo retorna a ser Deus. Tal atividade é comparada a uma peça divina, na

qual Brahman é o grande mago que se transforma no mundo através do seu

mágico poder criativo, que é a expressão da idéia de maya contida no Rig

Veda30.

A palavra “maya” é um dos termos mais importantes para a

compreensão da filosofia hindu e seu sentido foi se alterando através das

épocas. Do significado de poder do criador divino, chegou a significar o estado

psicológico de um ser humano sob o encantamento da peça mágica. O

encantamento de maya consiste na confusão da miríade de formas da peça

divina com a realidade, sem que seja percebida a unidade de Brahman

subjacente a todas elas.

Maya não significa simplesmente que o mundo é uma ilusão. O erro

consiste em pensar que as formas e estruturas percebidas, das coisas e dos

fatos existentes, são realidades da natureza; não percebendo que são apenas

conceitos oriundos de nossas mentes voltadas para a medição e

categorização. A confusão é acreditar que os conceitos são a realidade, seria

como confundir uma fotografia com a pessoa de carne e osso.

A natureza para os hindus,é constituída de formas relativas e fluidas,

como a maya, em eterna mutação, que são conjuradas pelo grande mago da

peça divina. Tal peça é rítmica e dinâmica, pois o mundo de maya transforma-

se continuamente. A força que dá dinamismo à peça é karma31: o principio

ativo da peça; a totalidade do universo em ação, na qual todas as coisas

encontram-se vinculadas dinamicamente a tudo o mais.

Assim como o sentido da palavra maya, o significado de karma foi

transportado da esfera cósmica original para a esfera humana, adquirindo um

sentido psicológico. Sob o encantamento de maya, a percepção do mundo

permanece fragmentada, levando as pessoas a pensarem que estão

30 O mais antigo dos Vedas. 31 Karma= ação; “... é a força da criação, de onde provém a vida de todas as coisas.”, Bhagavad-Gita, 8.3.

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separadas do ambiente que as cerca. Acreditando poder agir

independentemente, as pessoas encontram-se atadas pelo karma. A única

maneira de libertar-se desse laço é compreender a unidade e harmonia de

toda a natureza, incluindo a si mesmo e agindo de acordo com tal

entendimento.

A compreensão de que todos os fenômenos percebidos pelos sentidos

constituem parte da mesma realidade constitui-se uma maneira de libertar-se

do encantamento de maya, ao mesmo tempo em que as amarras do karma

são rompidas. Tal libertação (moksha) é a experiência concreta e pessoal do

fato de que tudo, inclusive o si mesmo, é Brahman.

2.4.1. As Águas da Existência

O enigma de Maya é abordado numa versão literária medieval de

um mito hindu apresentada no Matsya Purãna. A história é uma espécie de

conto infantil, porém traz profundas implicações filosóficas. Conta o mito que

Nãrada, um asceta semidivino, foi um devoto exemplar, a quem Vishnu

aparecera em seu eremitério. O deus, respondendo à sua austeridade,

prometeu atender-lhe um desejo: humildemente Nãrada pediu diretamente ao

Ser Supremo que lhe contasse o segredo da sua Maya. O deus o instruiu, não

com palavras, mas submetendo-o a uma aventura aflitiva.

Na versão a seguir, escrita por volta do século IV d.C., o santo Vyãsa

narra a história para um grupo de santos homens interessados no segredo da

Maya de Vishnu. Ele adverte que somente o próprio Vishnu pode compreender

o mistério de sua Maya. Ela mantém a todos sob seu encanto, em uma

espécie de sonho coletivo. O que Nãrada pode fazer é apenas narrar uma

história vinda dos tempos remotos, na qual os efeitos da Maya são exercidos

numa situação específica e particularmente instrutiva.

Um jovem príncipe chamado Kãmadamana32 vivia na mais severa e

ascética austeridade desde tenra idade; porém, num determinado momento,

seu pai começou a insistir para que ele se casasse, pois somente assim

32 “Domador de Desejos”

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poderia conquistar a felicidade completa. Em respeito ao seu pai, o jovem

guardou silêncio por algum tempo, mas depois de tanta insistência acabou

declarando que, como era fiel à conduta designada por seu nome, o poder

divino de Vishnu, que confunde e sustenta a tudo e a todos no mundo, foi-lhe

revelado.

Seu pai, depois de um momento de reflexão silenciosa, habilmente

argumentou apelando para a responsabilidade, deixando de lado o prazer

pessoal. Declarou que um homem deveria casar-se para poder procriar, pois

os espíritos ancestrais, que habitam o mundo dos pais, poderiam padecer da

falta de oferendas de alimentos de seus descendentes, sofrendo infortúnios e

desesperos indescritíveis.

O filho responde, com grande sabedoria, que já passara por cerca de

mil vidas, sofrendo por centenas de vezes a morte e a velhice; conhecendo a

união e a perda de várias esposas; existindo como relva, arbusto, réptil, árvore,

gado e animais ferozes. Por muitas vezes ele fora brâmane, mulher e homem,

compartilhando as bem-aventuranças das mansões celestiais de Shiva e

vivendo entre os imortais. Não havia nenhuma forma de ser, mesmo sobre-

humana que ele não assumira mais de uma vez. A cada dissolução do cosmos

para reabsorver-se na informe essência da Divindade, ele também desvanecia;

e quando o universo novamente se desenvolvia, ele também reingressava na

existência, vivendo uma outra sucessão de renascimentos. O jovem revela que

por muitas vezes fora vítima da ilusão da existência, e sempre através do

casamento.

Naquele momento, o jovem inicia a narração de um fato ocorrido

durante sua penúltima encarnação, quando seu nome era Sutapas33. Era um

asceta e, por causa da sua fervorosa devoção, Vishnu apareceu-lhe montado

em seu pássaro celestial dizendo que lhe concederia qualquer coisa que

desejasse. O asceta então pede o conhecimento que lhe permita compreender

a Maya.

O deus então questiona o valor que tal compreensão poderia ter para o

asceta, dizendo que preferia lhe conceder opulência de vida, oportunidades de

cumprir seus deveres e responsabilidades sociais, na posse de muitas

33 “Aquele cujas Austeridades são Boas”

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riquezas, saúde prazeres e filhos heróicos. Porém, Sutapas responde que é

exatamente disso que pretende libertar-se.

Vishnu responde argumentando que ninguém jamais compreendeu e

nem poderia compreender sua Maya, cujo mistério é impenetrável. O deus

começa, então, a narrar os fatos ocorridos com Nãrada. Assim como Sutapas,

ele atingiu o merecimento da graça divina e mostrara o mesmo desejo. Apesar

das objeções do deus, ele insistira e, então, Vishnu lhe ordenou que

mergulhasse nas águas da lagoa para poder experimentar o mistério de sua

Maya.

Mergulhando na lagoa, Nãrada emergiu sob a forma de uma jovem que

era filha de um rei. Quando atingiu o esplendor da juventude, seu pai deu-a em

casamento ao príncipe de um reino vizinho. Nãrada, que então se chamava

Sushilã, experimentou, sob a forma feminina, todos os prazeres do amor.

Depois que seu marido herdou o trono, teve muitos filhos e netos, tornando-se

uma rainha extremamente feliz.

Porém, uma rixa entre seu marido e seu pai acabou por resultar numa

guerra terrível entre os dois reinos. Numa única batalha morreram muitos de

seus filhos e netos, Sushilã perdeu também o pai e o marido. Em pranto e luto,

mandou erguer uma gigantesca pira funerária, dispondo os corpos de seus

irmãos, filhos, sobrinhos e netos, lado a lado, com os corpos de seu pai e seu

cônjuge. Com uma tocha em mãos, acendeu a pira.

Quando as chamas se levantaram desesperou-se e, chamando pelos

filhos, atirou-se nas chamas crepitantes. Naquele instante as chamas

esfriaram-se, aquietando-se e tornando-se límpidas, a pira transformara-se em

lagoa. Sushilã estava submersa na água, transformada em Nãrada, então,

Vishnu tomou-o pela mão e, tirando-o da lagoa, perguntou, com um quase

sorriso, quem era o filho cuja morte ele tanto lamentava. O santo asceta

encheu-se de confusão e vergonha.

Vishnu continuou dizendo que aquela era a imagem de sua Maya:

amaldiçoada, ríspida e pesarosa. Ninguém poderia compreender suas

profundezas sem fundo, nem Brahman, o nascido do lótus, nem nenhuma

outra divindade, como Indra ou mesmo Shiva, pois não há como nem porque

conhecer o incognoscível.

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Após essa revelação, Nãrada pediu fé, devoção e graça para pode

lembrar-se sempre daquela experiência. Pediu também para que aquela lagoa

tornar-se uma fonte iniciática, um lugar sagrado de peregrinação, cujas águas

tivessem o poder de lavar todos os pecados. Vishnu concedeu os piedosos

desejos e desapareceu, voltando à sua cósmica morada no Oceano Lácteo.

Afastando-se também de Sutapas, Vishnu disse que contara aquela

história para mostrar a inescrutabilidade do mistério de sua Maya, e que, se ele

ainda quisesse, poderia atirar-se também à água e saber porque tal mistério

não pode ser conhecido. Lançando-se na lagoa, Sutapas (penúltima

reencarnação do príncipe Kãmadamana) emergiu como uma menina,

envolvendo-se na trama de outra vida.

2.4.2. As Águas da Não-Existência

O Matsya Purãna aborda o simbolismo de Maya num mito que narra as

aventuras insensatas de um grande sábio chamado Mãrkandeya. Sua história

ocorreu durante o intervalo da não-manifestação, entre a dissolução e a

recriação do universo. Por um acidente inusitado e miraculoso o sábio

presenciou uma série de transformações arquetípicas de Vishnu, que se

mostra primeiramente sob a forma elementar do Oceano Cósmico, depois

toma a forma de um gigante deitado sobre as águas, a seguir, de uma criança

divina, que brinca sozinha sob a árvore cósmica, e, finalmente aparece na

forma de um majestoso ganso selvagem, cuja respiração é o som da melodia

mágica da criação e dissolução do universo.

A história começa resgatando a idéia da deterioração da ordem

cósmica. Durante o lento e irreversível decorrer dos quatro yugas, o sagrado

Dharma vai desvanecendo, quarto a quarto, na vida universal. Quando o caos

se instala completamente no mundo, os homens ocupam-se somente com a

luxúria e o mal. A vontade de elevar-se até às alturas supremas desaparece,

os laços de simpatia e amor dissolvem-se, e o egoísmo predomina. A

calamidade cai sobre a civilização dos homens, que antes era regida pela

harmonia, o organismo universal deteriorou-se e não tem mais qualquer

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possibilidade de salvação, pois o universo atingiu a maturidade para poder

dissolver-se.

Um dia de Brahman havia terminado e Vishnu, de quem primeiramente

o mundo emanou em perfeita pureza e ordem, sente dentro de si a urgência de

que o cosmos, exausto, retorne à sua substância divina. Chegou o momento

do criador e sustentador do universo expressar seu aspecto destrutivo (Shiva).

O caos estéril será extinto, e com ele todos os seres animados, desde

Brahman (o espírito da vida cósmica) até a última folha de relva, serão

dissolvidos. Tudo e todos serão reabsorvidos no Supremo.

Parece que o curso regular do ano hindu, com seu calor impiedoso e

seco alternando períodos de chuvas torrenciais e avassaladoras, é ampliado

num grau que acaba por destruir a existência. O calor e a umidade, que tanto

cooperam na agricultura, agora aniquilam. O terrível trabalho de Vishnu inicia

quando ele precipita sua energia infinita no sol, torna-se o sol, e com seus

raios destruidores, o mundo inteiro definha. Das profundas rachaduras da

terra, uma grande chama de calor letal engole as águas divinas do abismo

subterrâneo. Quando a seiva vital desaparece dos corpos de todos os seres

vivos e também de todo o corpo cósmico, Vishnu transforma-se em vento - a

cósmica respiração da vida-, e retira de todos os seres o ar que lhes dava vida.

Totalmente seca, a substância do universo é atraída pelo ciclone, e, devido à

fricção do material extremamente seco, ela inflama, e o deus transforma-se em

fogo.

Tudo, incluindo a lua e as estrelas, é reduzido a cinzas por este

fogaréu gigantesco. Tomando a forma de uma grande nuvem, Vishnu derrama

uma chuva torrencial, apagando o incêndio universal. Depois de ferido e

transformado em cinzas, o corpo da terra conhece seu último alívio: a extinção

final, o Nirvana34. Reintegradas ao oceano primordial, de onde surgiu a aurora

do universo, as cinzas de toda a criação são acolhidas, mais uma vez, pelo

fecundo útero aquático. Seus elementos fundamentais voltam a dissolver-se no

fluido indiferenciado do qual surgiram. Este é o intervalo de uma noite de

Brahman.

34 Extinção; obtenção do fim último daquele que se livra do ciclo das reencarnações. Fim do processo materialista de existência.

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Após ter reabsorvido o universo, Vishnu dorme em sua solidão sobre a

substância imortal do oceano, como um vulto descomunal, meio submerso e

meio flutuante. Ninguém pode vê-lo ou compreendê-lo, somente ele conhece a

si próprio. Tanto o oceano cósmico, quanto o gigante Senhor de Maya

adormecido, são a manifestação dual de uma única essência.

Durante a noite universal do Homem Cósmico, o cosmos está dentro

do deus, como uma criança a crescer no ventre da mãe; pois ali tudo é

restaurado em sua perfeição primordial. Rodeado pela escuridão, o divino

sonhador faz florescer dentro de si a visão ideal do que deveria ser o universo.

O mundo retomará seu curso harmonioso assim que se recobrar do declínio,

da confusão e da catástrofe.

É neste intervalo mágico que o mito narra um evento fantástico.

Mãrkandeya está peregrinando sobre a terra pacífica, contemplando com

alegria o espetáculo da visão ideal do mundo. Porém, acontece um acidente,

no meio de seu percurso errante, o ancião resvala, sem perceber, da boca do

deus Supremo, precipitando-se nas águas do oceano cósmico. Vishnu dorme

com os lábios entreabertos, emanando um som harmonioso e profundo de sua

respiração, que ressoa pelo imenso silêncio da noite de Brahman.

Devido a Maya de Vishnu, Mãrkandeya não discerne o gigante

adormecido; ele enxerga apenas o oceano de trevas que se estende para além

da noite sem estrelas, que tudo envolve. Desesperado e temendo por sua vida,

o sábio agitava-se nas águas escuras. Quando reflete sobre sua experiência,

pensa que pode estar sonhando, ou enfeitiçado por uma ilusão. Tinha a

certeza de que esta experiência tão estranha só poderia ser fruto de sua

imaginação, pois o mundo perfeito, de curso tão harmonioso, que tanto

contemplava, não mereceria a aniquilação que parecia tê-lo atingido de súbito.

Percebeu a ausência do sol, da lua e do vento; não havia também montanhas

ou terra, então, questionava em que tipo de universo poderia estar.

Desesperado em meio a imensidão das águas, Mãrkandeya acabou

por distinguir a forma do deus adormecido, enchendo-se de beatífica alegria. A

imensa forma meio submersa parecia uma cadeia de montanhas irrompendo

das águas, e do seu interior, uma luz maravilhosa era irradiada. Nadando até a

forma divina, para contemplá-la, mal abriu a boca para perguntar quem era, o

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gigante agarrou-o e engoliu-o. O sábio retornava ao interior do deus, numa

paisagem que já conhecia.

Abruptamente realocado no mundo harmonioso do sonho de Vishnu, o

sábio foi tomado por um estado de extrema confusão. Pois somente conseguia

lembrar-se de sua rápida e inesquecível experiência como de uma espécie de

sonho ou visão. Mas ele mesmo, como ser humano, era incapaz de aceitar

qualquer realidade que transcendesse as formas de interpretação de sua

consciência limitada. Paradoxalmente ele encontrava-se no interior da

divindade, sendo apenas uma imagem do sonho universal. Também para

Mãrkandeya, abençoado de súbito pela contemplação do Ser Supremo em e

por si mesmo, tal revelação não passava de um sonho.

Mãrkandeya retomou sua vida de sábio peregrino, voltando a vagar

pela imensidão da Terra. Observava todas as castas em devoção às suas

tarefas, testemunhando a plena vigência, entre os homens, da sagrada

seqüência dos Quatro Estágios da Vida. Perambulou por mais cem anos em

segurança, pois encontrou graça e alegria no ideal estado das coisas.

Inadvertidamente, outra vez ele deslizou da boca do adormecido e caiu

no mar de trevas. Mas, desta vez, contemplou uma criancinha luminosa, que

dormia sob uma figueira. Sob o efeito de Maya, observou a criança divina

brincando alegre e solitária, no meio do imenso oceano. Aproximando-se do

menino, ia refletindo internamente e pensando que já vira algo semelhante há

muito tempo, lembrou-se, então, da insondável profundidade do oceano sem

fim e, naquele momento, um calafrio percorreu-lhe a espinha.

Dirigindo-se a ele, o menino dá as boas vindas e pede que não tenha

medo de aproximar-se. Mãrkandeya sentiu-se profundamente ofendido pelo

fato do menino ter lhe chamado somente pelo nome e depois de “filho meu”,

deixando de fazer referência a sua santidade e nascimento. Explodiu em ira

dizendo que o menino era muito atrevido de não fazer menção aos seus

poderes mágicos, ou de desconsiderar sua venerável idade.

Esperando o término da manifestação de ira, o menino,

pacientemente, continua seu discurso dizendo que era seu progenitor, seu pai

e seu ancestral, pois ele era o ser primevo que concedia a vida. Disse também

conhecer muito bem quem havia gerado a Mãrkandeya. Seu pai praticara a

austeridade mais severa para poder gerar um filho, e como sua santidade

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perfeita lhe agradava, concedeu ao asceta a realização de um pedido. Foi

pedido, então, que seu filho (Mãrkandeya) fosse abençoado com uma

inexaurível vitalidade e que jamais envelhecesse.

O menino declara que o pai de Mãrkandeya conhecia a essência

secreta de sua existência, da qual Mãrkandeya fora originado. Esta era a razão

do sábio ter o privilégio de contemplar o deus reclinado sobre as águas

cósmicas primevas omniabrangentes, ou brincado como uma criança sob

aquela árvore.

Alegre, Mãrkandeya curvou-se em humilde submissão e suplicou ao

menino que lhe contasse o segredo de sua Maya, o motivo dele aparecer como

uma criança que brinca ou como um gigante deitado sobre o oceano infinito,

suplica ainda para que seja revelado seu nome, pois ele deveria ser o Ser

Supremo, já que ninguém mais poderia existir como Ele existia.

O menino respondeu que era o Homem Cósmico Primevo, que

também é as águas, o ser primeiro e a fonte do universo. Disse que possuía

mil cabeças, e que manifestava a si mesmo como a mais sagrada das

oferendas sagradas; também se manifestava como o fogo sagrado que levava

aos deuses no céu as oferendas dos homens e, simultaneamente,

manifestava-se como o Senhor das Águas. Nas vestes de Indra, era o primeiro

dos imortais; era também o ciclo do ano, gerando e dissolvendo tudo. Era o

divino iogue, malabarista e mago cósmico, com maravilhosos ilusionismos, que

nada mais são do que os yugas (idades universais). A criança dizia ter o poder

de colocar um fim a tudo o que existia, e denominava-se Morte do Universo.

Num gesto rápido, o Ser Primevo levou Mãrkandeya à boca e engoliu-

o. Ele voltara ao interior do corpo gigantesco. Mas desta vez, o santo encheu-

se de beatitude e desistiu de viver perambulando, procurou um lugar solitário

para descansar. Em sua quietude solitária, ouvia com alegria a “Canção do

Ganso Imortal”, que nada mais era do que a melodia da respiração universal

de Deus, afluindo e refluindo35. a canção ouvida era: “Muitas são as formas

que tomo. Quando o sol e a lua se extinguem, eu flutuo e nado, em

movimentos lentos, sobre a infinita imensidão das águas. Sou o Ganso. Sou o

35 Em sânscrito: hamsa. Acredita-se que a inspiração provoca o som ham e a expiração, sa. A canção “Hamsa, Hamsa” ao mesmo tempo diz “sa-‘ham, sa-‘ham”. Sa significa “isto-este” e ham “Eu”. Desta forma, a canção também diz “Este sou eu” ou “Eu sou Isto”.

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Senhor. Crio o universo a partir da minha essência, e habito o ciclo do tempo

que o dissolve”36.

Ouvindo o canto da respiração do Ser Supremo, o santo não se

preocupou mais em acompanhar a evolução do mundo, nem a observação do

estado ideal das atividades humanas lhe trazia prazer. Ele fora liberto da

compulsão por contemplar prazerosamente os mais belos lugares e as mais

maravilhosas paisagens celestes, pois a mais divina das canções absorvia-lhe

toda a atenção.

O mito de Mãrkandeya inicia com uma descrição da dissolução do

universo e termina narrando o reinício.

Sob a forma aquática, o Ser Supremo acumulou gradualmente dentro

de si uma energia incandescente. Então, resolveu criar novamente o universo

utilizando sua força ilimitada. Vishnu, o próprio Universal, visualizou a estrutura

do universo com seus cinco elementos -éter, ar, fogo, água e terra- e, entrando

nas águas agitou-as com suavidade. As ondas seguiam-se umas às outras,

formando entre elas uma pequenina fenda. Tal fenda é o espaço (éter), o

inapreensível elemento que não se pode ver, portador do invisível, da

incorpórea qualidade perceptiva do som. Com a ressonância do espaço, surge

o elemento ar, na forma de vento.

Dispondo do espaço para mover-se livremente, o vento espalhou-se

pelo espaço, expandindo-se por todos os quadrantes. Soprando com violência

e fúria, elevou as águas a uma grande altura. De tal fricção originou-se o

elemento fogo, que foi devorando gradualmente as águas cósmicas e, onde a

água desapareceu, formou-se um imenso vácuo. A esfera celestial superior

ingressou na existência no interior deste vácuo. Depois de originar os

elementos de sua essência, o Ser Supremo regozijava-se ao contemplar a

formação do espaço celeste. Concentrou sua mente, preparando-se para gerar

a Brahman.

Deleitando-se consigo mesmo no oceano cósmico, ele fez brotar do

seu cósmico umbigo um único lótus, com mil pétalas de ouro puro, imaculadas

e irradiantes como o sol. Brahman veio à luz ao mesmo tempo em que a flor. O

Ser Criador do universo irradiava sua ardente energia da criação.

36 Zimmer, 1989. pg. 44.

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45

A responsabilidade de Brahman sempre é confiada a um perfeito

iogue, que aprendeu a controlar absolutamente a si mesmo e aos poderes do

universo. Quando um ser humano purifica-se através de fervorosa austeridade,

renascendo espiritualmente através da iniciação na sabedoria sagrada, torna-

se um iogue excelso. O Ser Supremo reconhece sua absoluta dignidade,

confiando-lhe os processos de criação quando o universo expande-se

novamente.

Com suas quatro faces, Brahman controla todos os quadrantes e todo

o espaço do universo. O lótus bramânico é denominado como “supremo

aspecto da terra”. É retratado como símbolo do referido elemento, é a deusa

Terra, da qual erguem-se as altitudes das sagradas montanhas, que são as

moradas divinas dos seres sobre-humanos. Tais montanhas (Himalaia e os

montes Sumeru, Kailãsa e Vindia) estão impregnados da seiva vital do lótus,

as águas que delas nascem são tão salutares quanto o elixir da vida imortal.

Essas águas desembocam nos rios que são lugares sagrados de

peregrinação.

Os filamentos do lótus são as inumeráveis montanhas do mundo, que

são abundantes em metais precisos. Nas pétalas externas situam-se os

continentes inacessíveis que são habitados por povos estranhos. O lado

interno das pétalas contém demônios e serpentes que duelam. No centro do

pericarpo, em meio aos quatro oceanos que se estendem pelos quatro

quadrantes, situa-se o continente que contém a Índia.

Desta forma, o imenso sonho do universo foi emanado pelo poder da

Maya do Ser Supremo, ingressando outra vez na existência, para recomeçar o

maravilhoso percurso circular dos quatro yugas. Este novo ciclo é idêntico a

todos os outros que já foram e àqueles que estão por vir. Por enquanto, ele

está orvalhado e radiante, e, por causa do efeito da substância vivente de sua

fonte original ele expande-se, maravilhoso na delicadeza da aurora.

2.4.3. O Simbolismo das Águas

“No início, tudo era como um mar sem luz”

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Rig Veda, X. 129.337

Na Índia, a água sempre foi considerada como uma manifestação

tangível da essência divina. Desde a época dos primeiros Vedas até o

hinduismo atual, a água é adorada diariamente, num jarro ou cântaro,

representando a presença da divindade. O jarro de água é a imagem sagrada

mais simples utilizada nos rituais diários. A água é considerada morada do

deus.

Na saga de Nãrada, a água aparece como fator de transformação. Ela

é considerada como a atuação da Maya, o elemento aquoso é a materialização

primária da energia-Maya de Vishnu. Mergulhar na água significa adentrar no

mistério de Maya, em busca do supremo segredo da vida, pois a água é o

elemento preservador da vida, circulando na natureza sob as formas de chuva,

seiva, leite e sangue. Sua substância é dotada de um poder transformador

fluídico. (Rogado a revelar seu segredo, Vishnu não utilizou fórmulas verbais,

simplesmente apontou para a água, o elemento de iniciação.)

As águas cósmicas são ilimitadas e imperecíveis, ao mesmo tempo,

são a fonte imaculada de todas as coisas e formidável sepultura. Devido ao

seu poder de autotransformação, a energia do abismo toma formas

individualizadas, dotadas de vida temporária e de autoconsciência limitada. Por

algum tempo nutre-as com sua seiva vivificante, depois as dissolve novamente

para que retornem à energia anônima da qual surgiram.

O simbolismo hindu retrata com nitidez a ambivalência do benevolente-

maligno, pois esta é essencial para o conceito indiano de divindade. O deus

supremo aparece com sua maya, e todos os deuses da tradição hindu

apresentam este paradoxo, pois são tão poderosos para amparar quanto para

destruir.

As reflexões de Mãrkandeya são um tipo de comentário à idéia de

Maya, cuja questão metafísica intrínseca é: “O que é o real?”. Os hindus

acreditam que a realidade é uma função do indivíduo, é o resultado das

virtudes e limitações específicas de cada consciência individual. A realidade

que o santo contemplava no interior do gigante cósmico era percebida como

37 In Zimmer, H. R., Mitos e Símbolos na Arte e Civilização da Índia. São Paulo, Ed. Palas Athena, 1989. pg. 36

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sólida e substancial, porém, não passava de um sonho, uma visão interior da

mente do deus adormecido. Já a noite das noites, que era a realidade da

substância primeva, parecia, à consciência humana do santo, uma miragem

perturbadora. Para ele era impossível que aquela experiência fosse real.

A palavra sânscrita Yoga possui o sentido de unir, juntar, concentrar ou

fixar a mente. Ela é uma disciplina espiritual rigorosa, sendo praticada com o

intuito de exercer controle sobre as forças interiores do ser, obter poderes

ocultos, dominar determinadas forças da natureza e, principalmente, alcançar

a união com o Espírito Universal. Seus principais estágios são três: fixar a

atenção, contemplar e absorver. Exclusivamente e por longo período de tempo,

a atenção do iogue é dirigida para um único objeto (concreto ou abstrato,

humano ou divino) que é escolhido de acordo com propósito do praticante. A

disciplina física também é exercitada através do controle da postura, da

respiração, da alimentação e da abstinência. O objetivo primeiro é a

concentração de todas as energias psíquicas num único ponto, dessa forma,

torna-se possível uma identificação total com o objeto.

Tanto a filosofia hindu quanto a prática iogue objetivam transcender os

limites da consciência individual. As histórias míticas expõem, de forma

popular, as experiências e os resultados da ioga. Elas interpretam a existência

apelando para a intuição e para a imaginação. Entre os diálogos e discursos

dos personagens principais, há momentos de exposições e interpretações

filosóficas; porém, a história em si, nunca é explicitamente elucidada. Os

contos atingem ao ouvinte apelando à intuição, à imaginação criativa, agitando

e alimentando o inconsciente.

As histórias possuem esse efeito imediato devido à participação do

pensamento coletivo da comunidade religiosa na produção, enriquecimento e

controle dos contos. Os temas são reelaborados e enriquecidos através das

sucessivas gerações, recebendo novas formas e impregnando-se de novos

significados, num processo de criação e aceitação intuitiva da coletividade.

Os mitos e símbolos da Índia não podem ser intelectualizados ou

reduzidos a significados fixos. São mais arcaicos do que os mitos conhecidos

através da literatura grega, cuja maioria dos textos são criações individuais.

Nos mitos da Índia, é possível apreender a coletiva sabedoria intuitiva de uma

civilização atemporal, anônima e multifacetada. Porém, certos detalhes

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familiares ao ouvinte hindu são estranhos aos leitores ocidentais. Deixando de

lado as interpretações definidas, o leitor ocidental, não familiarizado com as

idéias primárias da tradição hindu, pode, com respeito e resignação,

contemplar o embaraço experimentado por Mãrkandeya, deixando que fale por

si só.

Levando em consideração a auto-revelação de Vishnu, parece que

Mãrkandeya obteve um privilégio maior que o de Nãrada. Os dois mergulharam

na água, o primeiro por inadvertência e distração, o segundo mergulhou

intencionalmente. As águas revelaram a ambos “o outro lado” ou o aspecto

diferente por completo do mundo.

Nãrada parecia tão próximo da essência secreta de deus, pois era um

devoto fervoroso que se entregara afetuosamente à austeridade. Porém sua

experiência ocorreu numa outra existência, numa outra trama mundana de

sofrimento e alegria. A transformação atou-o nas mesmas amarras que, em

seu fervoroso ascetismo, esforçava-se para ignorar e superar. As águas

iniciaram-no no aspecto inconsciente de seu ser, mergulharam-no em desejos

e atitudes ainda pulsantes dentro dele. Estes aspectos estavam velados à sua

consciência pelo unidirecionalismo de seu esforço. Sua experiência trazia uma

lição intrínseca que pretendia ensinar-lhe que ele não era o que imaginava ser.

Mãrkandeya era um santo diferente e estava preso no sonho do

mundo, no interior do corpo do deus adormecido. Ele era apenas uma, entre

todas as configurações, mas mesmo assim sentia-se deliciado com o seu

papel eterno de santo peregrino, deleitando-se com o estado ideal das

questões humanas. Ele não queria obsessivamente transcender o feitiço de

Maya e penetrar no milagre da miragem. Quando caiu da boca do deus, ele

saiu do que compreendia como existência, deparando-se com o Grande Nada

(o deserto do vasto oceano ilimitado). O mundo que ele conhecia dissolvera-

se, permitindo a experiência de dois aspectos contraditórios e incompatíveis da

mesma e única essência. Sua mente humana era incapaz de coordenar

tamanha contradição, por isso Vishnu ensinou-se a identidade dos opostos ou

a unidade fundamental de todas as coisas em Deus. Tudo se origina da divina

substância única, florescendo e perecendo em Deus, fundindo-se novamente

na fonte una.

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Vishnu, em suas diferentes manifestações divinas, apresenta o

segredo de sua Maya como sendo a identidade dos opostos. Maya consiste na

manifestação simultânea e sucessiva de energias conflitantes, de processos

contraditórios que se aniquilam mutuamente: criação e destruição, sonho

agradável da visão interior do deus e desolação do nada (terror do vazio, pavor

do infinito), evolução e dissociação. Maya é o próprio ciclo total do ano, que a

tudo gera e também dissipa. A conjunção aditiva “e”, que aparece unindo as

incompatibilidades, pode ser comparada ao caráter fundamental do Ser

Supremo, que é o senhor e controlador de Maya, cuja energia é,

paradoxalmente, a própria Maya. Existe uma única essência que permeia os

opostos, eles nada mais são do que aspectos diferentes do mesmo Vishnu.

Considerando a psicologia do inconsciente, é possível fazer uma

leitura, intuitiva, das imagens deste mito hindu. Em meio a tantas

interpretações, esta pode também se mostrar coerente, pois maya é um termo

que pode referir-se tanto ao psicológico quanto ao cósmico.

A terra, as esferas superiores e inferiores, são formas individualizadas

e diferenciadas do universo. Elas são mantidas pelo elemento fluido e informe

das profundezas, do qual tudo evoluiu e expandiu. A personalidade individual

consciente, a psique que os homens podem perceber e os personagens que

representam em sociedade ou sozinhos, todos esses aspectos do ser humano

são mantidos -enquanto microcosmo mental e emocional- pelo elemento fluido

do inconsciente. Neste elemento estão submersas todas as potencialidades

desconhecidas pela pessoa, que são distintas de seu ser consciente e muito

mais abrangentes e estranhas do que a personalidade apresentada. No

entanto, a própria personalidade que a pessoa apresenta é sustentada por tal

base profunda, que, como fluido, circula, vivifica, inspira e, freqüentemente,

perturba.

A simbologia das águas pode representar o elemento mais profundo

do inconsciente, no qual todas as tendências e atitudes estão contidas pelo

esforço da repressão em afastá-las da consciência, no caso de Nãrada pela

obsessão de uma santidade perfeita. Representa a potencialidade

indiscriminada e abrangente da vida e da natureza, que está presente nos

indivíduos, embora afastada da atuação consciente perceptível e

compreensível.

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3. A RODA DA VIDA

3.1. Brahman e a Interconexão Universal

“ ... partículas materiais isoladas são abstrações, sendo que suas propriedades só

podem ser definidas e observadas através de sua interação com outros sistemas”

Niels Bohr

Uma característica importante da visão hindu do mundo é a consciência

da unidade e da inter-relação de todas as coisas e eventos, a experiência do

mundo fenomênico como manifestação de uma unidade básica (Brahman).

Para o hinduismo, esta realidade última só pode ser compreendida através da

intuição; porém, no ocidente, a Física moderna evidenciou tal unidade quando

penetrou a fundo na matéria, atingindo o reino das partículas subatômicas. Os

diversos modelos subatômicos expressam o mesmo insight, considerando que

os componentes da matéria e seus fenômenos básicos não podem ser

entendidos como entidades isoladas, mas unicamente como partes integrantes

do todo.

A divisão do mundo em objetos e eventos isolados, não é uma

característica fundamental da realidade, trata-se, pois, de uma abstração

elaborada pelo intelecto, que é condicionado à categorização e à

discriminação. Acreditar que tais conceitos abstratos de objetos isolados são a

realidade da natureza é, pois, uma ilusão. O hinduísmo explica que essa ilusão

está baseada na avidya38, que é produzida na mente iludida pela maya.

Heisenberg e Bohr demonstraram, com bastante clareza, como a teoria

quântica implica a existência de um estado de interligação essencial da

natureza. O ponto de partida é a divisão do mundo físico em sistema

observado e sistema observador. Nos experimentos da Física Quântica, esta

divisão gera um paradoxo, pois o sistema observador é concebido de acordo

com as leis da Física Clássica, e o objeto observado (no caso, um átomo ou

uma partícula) não pode ser descrito adequadamente por meio dos conceitos

clássicos.

38 Em sânscrito: “ignorância”.

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Na teoria quântica, os sistemas observados são descritos em termos de

probabilidades; não é possível predizer com certeza onde se encontrará uma

partícula subatômica num determinado momento. Os experimentos de colisão

de partículas, são repetidos, registrados e analisados dezenas de milhares de

vezes antes de se determinar a probabilidade de ocorrência de um processo

particular. Através da teoria quântica, é possível compreender a probabilidade

como uma característica fundamental da realidade atômica, que governa todos

os processos e, até mesmo, a própria essência da matéria. As partículas não

existem com certeza em determinados pontos, porém apresentam tendências

a existir; igualmente os processos atômicos não ocorrem com certeza em

momentos definidos e nem de uma forma definida, somente apresentam

tendências a ocorrer. Por meio da matemática, essas tendências são

representadas como funções de probabilidade.

Existe uma incompatibilidade entre a descrição em termos clássicos

para a disposição experimental, e as funções de probabilidade para os objetos

observados. Essa incongruência recoloca profundos problemas filosóficos e

levanta a questão: a Física pode dispensar a metafísica?

Na observação empírica, as partículas só podem ser concebidas

enquanto interconexão entre os processos de preparação e medição. Suas

propriedades são definidas unicamente em relação aos processos de

experimentação, pois, se tais processos forem alterados, as propriedades das

partículas também serão modificadas. Para dar conta desse problema,

pragmaticamente, os físicos separam, fisicamente por uma longa distância, os

processos de preparação e medição; almejando que o sistema observado seja

isolado -para que possa ser definido-, sem que deixe de interagir a fim de que

possa ser observado.

A princípio, a ordem de grandeza de tal separação deve ser infinita,

pois, segundo a teoria quântica, o conceito de uma entidade física distinta

somente pode ser definido com alguma precisão se tal entidade estiver

infinitamente distante das atividades de observação. Porém, na realidade tal

separação é impossível e até mesmo desnecessária, pois a ciência moderna já

concebe os conceitos e teorias como aproximações.

Na teoria quântica, as entidades físicas distintas são idealizações

somente até o ponto em que se possa tornar os efeitos da interação

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desprezíveis, separando-se os sistemas por uma longa distância. A questão:

qual será a grandeza da distância satisfatória? leva à concepção de que o

sistema macroscópico forma um todo unificado, aniquilando a noção de objeto

observado.

Desta forma, é revelada uma interconexão essencial do universo, que,

fundamentalmente, caracteriza a realidade atômica independente da

interpretação da teoria matemática. Esta nova noção de totalidade intacta

refuta a idéia de realidade fundamental da Física Clássica, na qual o mundo

pode ser analisado em partes separadas, portadoras de existência

independente. A realidade fundamental passa a ser este estado de

interconexão quântica de todo o universo, na qual as partes capazes de

comportar-se de maneira relativamente independente são apenas formas

particulares e contingentes desse todo universal.

Na Física quântica, os sólidos objetos materiais da Física clássica

dissolvem-se em padrões de probabilidades, não relacionados às coisas em si,

mas relacionados somente às interconexões. Desta forma, o universo é

encarado como uma complexa teia de relações entre as diferentes partes de

um todo unificado. Tal forma de explicação do mundo aproxima-se muito das

expressões usadas pelos hindus para explicar suas intuições sobre a natureza.

Nas palavras de Heisenberg: “O mundo afigura-se assim como um complicado

tecido de eventos, no qual conexões de diferentes tipos se alternam ou se

sobrepõem, ou se combinam, determinando, assim a textura do todo.”39

Para os hindus, Brahman é o fio condutor da teia cósmica. Tal estado de

entrelaçamento universal é descrito levando em conta o observador humano e

as limitações de sua consciência. Na Física atômica, os objetos

compreendidos como interações podem provocar mudanças na consciência do

observador. “A ciência natural não se limita simplesmente a descrever e a

explicar a natureza; ela constitui parte da interação entre a natureza e nós

mesmos.”40

Para a Física atômica, o observador humano é necessário tanto para a

observação das propriedades, quanto para a definição das próprias. A idéia

central consiste no fato da natureza propriamente dita não ser observável, o

39 Heisenberg (1968), p. 107. 40 Idem, p. 81

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que se pode observar é a natureza exposta ao método humano de

questionamento. Se a disposição experimental for modificada,

conseqüentemente, as propriedades do objeto observado também o serão.

O fato acima pode ser exemplificado na observação das partículas

subatômicas, pois o observador, necessariamente, é obrigado a optar por

medir a posição da partícula ou o seu momentum41. O princípio da incerteza de

Heisenberg afirma que essas duas quantidades jamais poderão ser medidas

simultaneamente com precisão, pois essa limitação é inerente à realidade

atômica.

Na Física atômica, o termo “observador” pode ser substituído por

“participante”, pois a medição altera o estado da partícula, o universo é

modificado, tornando-se um universo participante. Na visão hinduísta, o

conhecimento intuitivo da natureza somente pode ser obtido através da

participação plena do indivíduo. Lançando mão de todo seu ser, sujeito e

objeto fundem-se, tornado-se inseparáveis e indistinguíveis. A Física quântica,

porém, distingue o observador e o observado, sem refutar sua

inseparabilidade.

O hinduismo descreve a apreensão final da unidade de todas as coisas

através de um estado de consciência, no qual a individualidade dissolve-se

numa unidade indiferenciada, transcendendo o mundo dos sentidos e

ultrapassando a noção de “coisas no mundo”. A Física moderna não foi tão

longe na experiência da unidade de todas as coisas, porém, seu trabalho

parece caminhar em direção à visão de mundo do hinduismo, ao iniciar a

abolição da noção de objetos fundamentalmente separados, substituindo o

conceito de observador pelo de participante, e, finalmente, abrindo caminho

para a possibilidade de se incluir a consciência humana em sua descrição de

mundo. Parece que a Física moderna foi levada a conceber o universo como

uma teia interligada de relações físicas e mentais, cujas partes somente

podem ser definidas considerando suas vinculações com o todo.

41 Quantidade definida pela multiplicação da massa da partícula por sua velocidade.

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3.2. A União dos Opostos e a Complementaridade

Onda/Partícula

“Uma coisa depende da outra, e uma conduz à outra. Esses extremos se tocam, e se unem, à força de se afastarem,

encontrando-se em Deus, e somente em Deus.” Pascal

A visão de que todos os eventos e objetos são manifestações de uma

unidade básica, não significa, para os hindus, que todas as coisas são iguais.

Eles reconhecem a individualidade das coisas, sem perder a consciência de

que todas diferenças e contrastes são relativos dentro de uma unidade

omniabrangente. Ao pensador Ocidental, em estado normal de consciência, é

extremamente difícil aceitar a unidade de todos os contrastes -inclusive dos

opostos-, porém esta intuição está na base da concepção oriental do mundo.

Para a filosofia hinduísta, os opostos são conceitos abstratos relativos

que pertencem ao reino do pensamento. Ao conceber um determinado

conceito, concebe-se também o seu oposto; porém, a tradição hindu

transcende os conceitos intelectuais, tomando consciência da relatividade e da

relação polar de todos os opostos, que nada mais são do que dois lados da

mesma realidade (partes extremas de um único todo). O pensamento hindu

procura atingir um ponto de vista absoluto no mundo do “não pensamento”, no

qual a unidade de todos os opostos é uma experiência vívida. O objetivo de tal

vivência é obter a capacidade de manter um equilíbrio dinâmico entre os

extremos. Na arte religiosa hindu são retratadas inumeráveis imagens da união

dinâmica dos opostos, a mais difundida é a imagem de Shiva (o dançarino

cósmico), que ora aparece em forma andrógina, ora fundido à personificação

de sua natureza feminina.

Para a Física relativista, a unificação de entidades aparentemente

separadas e irreconciliáveis é obtida passando de três para quatro dimensões,

na qual conceitos como tempo e espaço são unificados. Neste mundo

quadridimensional também a força e a matéria encontram-se unificadas, a

matéria pode aparecer como partícula descontínua ou como campo contínuo.

Tal unidade só pode ser evidenciada com clareza através de formalismos

matemáticos extremamente abstratos, pois a visão humana é limitada pelo

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mundo tridimensional dos sentidos, no qual desenvolvem-se os padrões de

pensamento e linguagem.

Na concepção do hinduismo, torna-se possível a vivência dessa

dimensão mais elevada de uma forma concreta. Através da meditação

profunda, é possível transcender tal mundo tridimensional da vida cotidiana,

vivenciando uma realidade inteiramente diferente, na qual todos os opostos

estão unificados num todo orgânico (ou organismo do universo). Porém, os

orientais sofrem das mesmas dificuldades da Física relativística ao tentar

expressar em palavras tal experiência multidimensional, em palavras, pois a

consciência tridimensional reduz as possibilidades de expressão, impondo

limites ao processo de pensamento.

Na Física atômica, a unificação de conceitos contraditórios está

relacionada com a dualidade onda/partícula. Existem situações nas quais o

aspecto de partícula é predominante, em outras as partículas comportam-se

mais como ondas; tal natureza dual aparece tanto na luz, quanto em todas as

outras radiações eletromagnéticas. Os elétrons são comumente considerados

como partículas, porém, quando um feixe dessas partículas passa por uma

pequena fenda, é difratado exatamente como um feixe de luz; desta forma os

elétrons também apresentam comportamento de ondas.

A surpreendente dualidade matéria/radiação, originou muitas das

questões que levaram à formulação da teoria quântica. A imagem de uma

onda que se espalha progressivamente no espaço é fundamentalmente

diversa da figura de uma partícula localizada num ponto determinado do

espaço. Apenas tardiamente, a Física aceitou a constatação de que a matéria

manifesta-se de maneiras que pareciam ser mutuamente excludentes, a

dificuldade consistia em aceitar que as partículas também são ondas e que as

ondas igualmente são partículas.

No âmbito da teoria quântica, a representação de uma partícula que se

desloca é totalmente diversa daquela que corresponde a uma onda que se

desloca. O fenômeno das ondas ocorre em muitos contextos diferentes,

porém, pode ser descrito com mesmo formalismo matemático.

Uma onda de luz, uma onda sonora ou uma onda de água podem ser

descritas por meio da mesma formulação matemática. A Física quântica utiliza

essas formas para descrever as ondas associadas às partículas, porém, tais

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ondas mostram-se muito mais abstratas. O fato de estarem relacionadas

intimamente com a natureza estatística da teoria quântica, determina que tais

fenômenos somente podem ser descritos em temos de probabilidades. Um

problema surge da noção de que estas funções matemáticas são apropriadas

para descrever fenômenos de ondas; entretanto, as ondas associadas a

partículas não são ondas tridimensionais, tais como as ondas sonoras ou da

água; na verdade são “ondas de probabilidades” -quantidades matemáticas

abstratas relacionadas com as probabilidades de se encontrar as partículas em

vários lugares e com várias propriedades.

O conceito de ondas de probabilidade parece burlar o paradoxo das

partículas serem ondas, recolocando esse paradoxo num novo contexto,

relacionado a um outro par de conceitos opostos: o da existência e da não-

existência. Não se pode afirmar que uma partícula exista num determinado

local; mas também não se pode afirmar que não exista. A partícula, entendida

como um padrão de probabilidade, tende a existir em diversos lugares,

manifestando dessa forma uma espécie de realidade física entre a existência e

a não-existência. É impossível descrever o estado da partícula utilizando

conceitos opostos fixos, pois a partícula não está presente em nenhum lugar

fixo, nem tampouco está ausente. Sua posição não se altera, nem permanece

em repouso. A única mudança dá-se no padrão de probabilidade,

descrevendo, assim, as tendências da partícula existir em determinados locais.

As realidades da Física atômica e da filosofia oriental transcendem os

estreitos limites dos conceitos opostos. Oppenheimer diz: “Se indagarmos, por

exemplo, se a posição do elétron permanece a mesma, devemos responder

“não”; se indagarmos se a posição do elétron varia com o tempo, devemos

responder “não”; se indagarmos se o elétron permanece em repouso, devemos

responder “não”; se indagarmos se está em movimento, devemos responder

“não”.”42 O Isa-Upanishad concorda: “Move. Não se move. Está longe e está

perto. Está dentro de tudo isso, E está fora de tudo isso.”43

A Física moderna concebe a união dos opostos, transcendendo os

conceitos contraditórios: partículas e onda, movimento e repouso, força e

matéria, existência e não-existência. Como demonstrado na filosofia indiana, a

42 Oppenheimer (1954), p. 42-43. 43 Isa-Upanishad, 5.

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Física quântica também transcende os conceitos de existência e não-

existência. Diante de tal realidade transcendente, tanto a física quanto a

filosofia hindu abandonam as amarras da lógica clássica, libertando seus

pontos de vista da rigidez, o que permite contemplar seus objetos de diferentes

pontos de vista, formando uma impressão multifacetada.

A teoria quântica associou o comprimento de onda com o momentum da

partícula correspondente. Se o pacote de ondas não possuir um comprimento

de onda bem definido, a partícula não possui um momentum bem definido.

Esta relação mostra que não existe apenas uma incerteza relacionada à

posição da partícula correspondendo ao comprimento do pacote de ondas,

mas, também, uma incerteza no seu momentum, causada pela expansão do

comprimento de onda. Existe uma interligação entre essas duas incertezas,

pois a expansão no comprimento de onda (incerteza do momentum) depende

do comprimento do pacote de ondas (incerteza de posição). A tentativa de

localizar de forma mais precisa a partícula, isto é, confinar seu pacote de

ondas a uma região menor, resultará num aumento da expansão no

comprimento de ondas e, desta forma, num aumento na incerteza do

momentum da partícula.

O princípio de incerteza de Heisenberg consiste na forma matemática

precisa dessa relação entre as incertezas de posição e momentum de uma

partícula. Tal princípio afirma que, no mundo subatômico, é impossível

conhecer a posição e o momentum de uma partícula com grande precisão.

Reciprocamente, quanto melhor for o conhecimento da posição da partícula,

mais obscuro será o seu momentum. A única atitude a tomar é escolher e

efetuar a medição precisa de uma das duas quantidades, deixando a outra na

mais completa ignorância. Tal limitação está no princípio, não se relacionando

com as técnicas de medida.

O princípio da incerteza é relevante na medida em que ele expressa as

limitações dos conceitos clássicos numa forma matemática precisa. Diante da

teia de relações entre as diversas partes de um todo unificado, as noções

clássicas, de que existem entidades físicas distintas, tornam-se totalmente

inadequadas para descrever o mundo subatômico. Neste âmbito, as partículas

só podem ser definidas em termos de suas conexões com o todo, muito

embora tais conexões sejam de natureza probabilística, havendo muito mais

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probabilidades do que certezas. Ao descrever-se as propriedades de uma

partícula de acordo com os termos clássicos (posição, energia, momentum,

etc), chega-se a pares de conceitos inter-relacionados que não podem ser

definidos simultaneamente de forma precisa.

A idéia da complementaridade entre tais pares de conceitos clássicos

opostos foi introduzida por Niels Bohr, que considerava, as representações

como partícula e como onda, duas descrições complementares da mesma

realidade, sendo cada uma delas apenas parcialmente correta e possuindo um

intervalo de aplicação limitado. Bohr sugeriu que tal noção poderia ser um

conceito útil fora do campo da física, e, de fato, a noção de

complementaridade vem mostrando-se extremamente útil desde 1500 a.C.,

desempenhando um papel essencial no pensamento hinduísta.

3. O Universo Dinâmico e a Expansão do Universo

A idéia de que todos os fenômenos do mundo são manifestações da

mesma realidade última, concebida como a essência do universo, que sustenta

e unifica todas as coisas e eventos observados, está associada, no hinduismo,

a Brahman. Tal realidade transcende os conceitos intelectuais da mente

humana, para a qual a expressão dessa realidade é impossível. Sua natureza

é caracteristicamente a de manifestar-se em infinitas formas, que ingressam na

existência e desintegram-se, transformando-se em outras formas num

processo sem fim. A Unidade Cósmica é intrinsecamente dinâmica e a

apreensão dessa natureza dinâmica é a experiência básica do hinduismo.

Na Grécia antiga, Heráclito ensinava que tudo flui, comparando o mundo

a um fogo eternamente vivo. Na filosofia indiana a palavra Brahman44, possui

conotação dinâmica, sugerindo uma realidade sempre dinâmica e viva. Os

Upanishades descrevem Brahman como aquilo que não possui forma, que é

imortal, que se move, associando-o ao movimento, muito embora ele

transcenda todas as formas. No Rig Veda a natureza dinâmica do universo é

44 Palavra derivada da raiz sânscrita brih: “crescer”.

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expressa pela palavra Rita45, que possui a conotação de “o curso de todas as

coisas” ou “a ordem da natureza”. Esta palavra acha-se vinculada a todos os

deuses védicos, descritos nas lendas do Veda. Tal ordem da natureza foi

concebida pelos poetas védicos, não como lei divina estática, mas como um

princípio dinâmico inerente ao universo. Porém, foi o sentido deste termo foi

deslocado de sua esfera cósmica original para a esfera humana, sendo

reinterpretado com um sentido moral, como lei universal à qual todos devem

obedecer.

Nos Vedas, idéia de Rita antecipa o conceito de karma. Conforme

exposto, o hinduísmo encontrou muitas formas de expressar a natureza

dinâmica do universo através da linguagem mítica. Transparece um cosmos

orgânico, crescendo e movendo-se ritmicamente; um universo no qual tudo é

fluido e em permanente mudança, nele, todas as forças estáticas são maya e,

portanto, existem como conceitos ilusórios.

O aprofundamento na leitura dos textos religiosos e filosóficos hindus,

mostra uma concepção de mundo em termos de movimento, fluxo, mudança.

Uma idéia muito importante é a de que o universo deve ser compreendido

como uma teia inseparável, cujas interconexões são profundamente

dinâmicas.

A Física moderna também concebe o universo como essa teia de

relações, reconhecendo que essa teia é intrinsecamente dinâmica. A teoria

quântica concede à matéria um aspecto dinâmico que emerge como uma

conseqüência da natureza ondulatória das partículas subatômicas. Na

relatividade, a unificação do espaço e do tempo implica que a existência da

matéria não pode ser separada de sua atividade. A compreensão das

propriedades das partículas subatômicas só pode se alcançada utilizando os

conceitos de movimento, interação e transformação.

Para a teoria quântica, as partículas também são ondas e isso faz com

que se comportem de maneira muito peculiar. Toda vez que uma partícula

subatômica é confinada numa pequena região do espaço, ela reage a tal

confinamento movimentando-se de um lado para o outro, quanto menor a

região de confinamento, mais rapidamente a partícula se agitará. Este “efeito

45 Palavra derivada da raiz sânscrita ri: mover.

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quântico” é uma característica do mundo subatômico, sem nenhuma analogia

macroscópica.

Esta tendência das partículas a reagir ao confinamento através do

movimento é característica do mundo subatômico, implicando uma “inquietude”

fundamental da matéria. Na Física quântica a matéria jamais se encontra em

repouso, pois está sempre em permanente estado de movimento, determinado

pelas estruturas moleculares, atômicas e nucleares. Nos átomos em vibração,

os elétrons são ligados aos núcleos atômicos através de forcas elétricas que

tendem a mantê-los o mais próximo possível, reagindo a tal confinamento

rodopiando nesse espaço de forma absurdamente rápida. Nos núcleos, os

prótons e os nêutrons são comprimidos até atingirem um minúsculo volume por

intermédio de poderosas forças nucleares, deslocando-se nesse espaço numa

velocidade inimaginável.

O pensamento indiano ressalta que o universo deve ser apreendido

dinamicamente à medida que se move, vibra, respira, dança, ou seja, a

natureza não se encontra em equilíbrio estático, apresentando um dinamismo

incrível.

A Física constatou a natureza dinâmica do universo observando,

também, o mundo das estrelas, no qual as nuvens rotatórias de hidrogênio

contraem-se para formar estrelas, aquecendo-se nesse processo até que se

tornem chamas incandescentes no céu. Nossa galáxia é um imenso disco de

estrelas e gás girando no espaço como uma roda de dimensões imensas, de

forma que todas as estrelas e planetas movem-se em torno do centro da

galáxia. Alcançando a mais alta esfera do espaço e tempo, é possível estudar

o universo como um todo e descobrir que ele se encontra em expansão.

Para Einstein o espaço não é plano, mas curvo, e tal curvatura é

determinada pela distribuição da matéria conforme suas equações de campo.

A Cosmologia moderna supõe que o universo passou a existir a partir da

ocorrência de um evento altamente dramático, cerca de 10.000 milhões de

anos atrás, quando a totalidade de sua massa explodiu a partir de uma

pequena bola primitiva de fogo. A expansão atual do universo é considerada

como o impulso remanescente dessa explosão primordial.

Para descobrir o que aconteceu antes desse momento, é necessário um

esforço sobre-humano para expressar tais fatos em termos de pensamentos e

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linguagem, pois é impossível formular uma explicação atrelada às concepções

de espaço e tempo sobre acontecimentos ocorridos antes que ambos

existissem.

A idéia de um universo que se expande e se contrai periodicamente,

envolvendo uma escala enormemente vasta de espaço e tempo, não foi

concebida apenas pela Cosmologia moderna, pois, como foi explicitado já

estava presente há milênios na antiga cosmologia indiana. Concebendo um

cosmos orgânico que se move ritmicamente, os hindus puderam desenvolver

cosmologias evolucionárias que muito se aproximam de nossos modelos

científicos modernos.

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CONCLUSÃO

O conhecimento que temos do mundo é inconsistente. Todos os objetos

do mundo são transitórios, e o devir é o que marca a sua existência. As

categorias de tempo e espaço, ligadas à experiência, são contraditórias em si

mesmas. O termo Maya expressa a imperfeição e a relatividade do mundo. No

entanto, Maya não significa que o mundo seja mera ilusão. São nossas

categorias que não revelam como ele realmente é. Por exemplo, o finito é o

infinito vetado a nós pelas barreiras que nós mesmos criamos. Quando a

intuição nos permite reconhecer o Absoluto, o relativo desaparece. Quando,

porém, estamos imersos no relativo, não há Absoluto sobre o qual possamos

nos referir. O problema do real se apresenta de acordo com as diferentes

perspectivas que assumimos ao colocá-lo.

Todavia, se Brahman é a causa do mundo, isso significa que o mundo

não pode ser explicado sem referência ao fundamento último da aparente

existência do mundo.

Na filosofia clássica ocidental, encontramos em Platão a idéia de que no

último limiar das estruturas materiais o que existe é uma forma matemática, ou

um constructo intelectual. O mundo só nos é inteligível com base na simetria

matemática, na imagem, na idéia.

Tal idéia, retomada por Descartes no século XVII, como fundamento

para a filosofia e ciência modernas, encontrou oposição em uma outra corrente

de pensamento, o materialismo, que a partir desse mesmo século dominou a

metodologia das ciências e o pensamento filosófico até o início do século XX.

No entanto, com o advento da Física Relativista e da Mecânica

Quântica, os conceitos materialistas que determinavam, até então, a

concepção ocidental de realidade, foram ultrapassados. Explorando o mundo

subatômico, a Física moderna revelou uma realidade que, inesperadamente,

transcende a linguagem e o raciocínio. O impacto de tais descobertas ocasiona

uma ruptura epistemológica com o materialismo, recolocando questões que

haviam sido objeto de reflexão de filósofos como Kant e Schopenhauer.

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Heisenberg, um dos maiores pensadores da Física Moderna, ao

questionar os constituintes últimos da matéria, critica o reducionismo

materialista e recoloca a questão da possibilidade da realidade objetiva.

Para o físico, apesar de Kant ter percebido o modo como obtemos a

experiência da realidade, ao fazer das formas intuitivas do “espaço”, do

“tempo” e da “causalidade” condições a priori da experiência, possibilitou

postulá-las como absolutos, presentes no conteúdo de quaisquer teorias

físicas.

Os adventos da Física Relativista e da Teoria Quântica contradizem

essa concepção, pois os conceitos intuitivos de espaço e tempo limitam-se aos

fenômenos que envolvem pequenas velocidades. Fenômenos que ocorrem a

velocidades próximas à da luz não permitem uma interpretação kantiana do

espaço e do tempo.

Com a formulação do princípio da incerteza, Heisenberg torna as

noções clássicas de entidades físicas distintas inadequadas para descrever o

mundo subatômico, pois, neste âmbito, as partículas só podem ser definidas

em termos de conexões probabilísticas com o todo, havendo muito mais

probabilidades do que certezas.

O conceito de ondas de probabilidade recoloca num novo contexto o

paradoxo onda-partícula e relaciona esta “realidade” quântica a um outro par

de opostos: o da existência e da não-existência. Não há, pois, como afirmar se

uma partícula existe ou não em um determinado local. Como padrão de

probabilidade, uma partícula tende a existir em vários locais, manifestando,

dessa forma, uma espécie de realidade física entre a existência e a não-

existência. Como uma partícula não está presente nem ausente em nenhum

lugar fixo, torna-se impossível descrever o seu estado utilizando conceitos

opostos fixos.

Desse modo, a Física Moderna confirma a idéia oriental de que os

conceitos utilizados para descrever a natureza são limitados, pois as partículas

são, igualmente, destrutíveis e indestrutíveis, a matéria é, ao mesmo tempo,

contínua e descontínua, e força e matéria são tidas como aspectos diferentes

de um mesmo fenômeno.

Para o pensamento ocidental, condicionado pela extrema racionalidade

lógica, tal unificação é inapreensível. No entanto, para que a física moderna

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pudesse conceber a mecânica quântica, foi levada a transcender conceitos

contraditórios como: partículas e onda, movimento e repouso, força e matéria,

existência e não-existência, aproximando-se, assim, do discurso filosófico

indiano.

Diante de tal realidade transcendente, tanto a física como a filosofia

hindu abandonam as amarras da lógica clássica, libertando seus pontos de

vista da rigidez, o que permite contemplar seus objetos de diferentes pontos de

vista, formando uma impressão multifacetada.

As realidades da Física atômica e da filosofia oriental transcendem os

estreitos limites dos conceitos opostos. Oppenheimer diz:

“Se indagarmos, por exemplo, se a posição do elétron permanece a

mesma, devemos responder “não”; se indagarmos se a posição do elétron

varia com o tempo, devemos responder “não”; se indagarmos se o elétron

permanece em repouso, devemos responder “não”; se indagarmos se está em

movimento, devemos responder “não”.”46

O Isa-Upanishad concorda: “Move. Não se move. Está longe e está

perto. Está dentro de tudo isso, E está fora de tudo isso.”47

46 Oppenheimer (1954), p. 42-43. 47 Isa-Upanishad, 5.

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