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Conjunções Críticas Da Democratização, As Implicações Da Filosofia Da História de Hegel Para Uma Análise Histórica Comparativa
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Conjunes Crticas da Democratizao: as Implicaes da Filosofia na Histria de Hegel para uma Anlise Histrica Comparativa
Kurt von Mettenheim
Texto disponvel em www.iea.usp.br/artigos
As opinies aqui expressas so de inteira responsabilidade do autor, no refletindo necessariamente as posies do IEA/USP.
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Conjunes Crticas da Democratizao: as Implicaes da Filosofia da Histria de Hegel
para uma Anlise Histrica Comparativa
Kurt von Mettenheim
INTRODUO
O tema central deste texto foi desenvolvido a partir de uma leitura da Filosofia da
Histria de Hegel. Nessa obra, apresentada uma anlise comparada da seqncia de
conjunes crticas* que redefiniram o contedo das relaes entre sociedade e Estado na
Europa Ocidental. Assim, em primeiro lugar, este artigo visa esclarecer as hipteses
causais de Hegel sobre os perodos de mudanas repentinas e significativas que ocorreram
na histria europia. Em segundo, procura comprovar a validade dessas hipteses por meio
de evidncias empricas acumuladas, desde Hegel at nossos dias. Pretende dessa forma,
buscar uma nova perspectiva histrica para compreender a democratizao, a fim de que
possa tambm desenvolver conceitos, teorias e mtodos, extremamente necessrios, para
analisar as mudanas, tambm repentinas e significativas, do nosso fin de sicle.
surpreendente, por exemplo, que tanto o final da guerra fria quanto o trmino dos regimes
autoritrios tenham-se dado relativamente sem violncia. Este trabalho tem, portanto,
como pressuposto a necessidade de se estabelecer novas perspectivas para os estudos de
democracia e mudana, reconhecendo que, para tanto, no h melhor lugar para se buscar
novas idias do que as obras clssicas.1
O conceito de conjunes crticas utilizado neste artigo a partir da histria
comparada e das teorias de path dependence, para captar a singular condio causal das
repentinas e significativas mudanas polticas que reformulam periodicamente as relaes
entre sociedade e Estado.2 Estruturas sociais, tendncias econmicas, atributos culturais e
inrcia institucional no determinam a resoluo dos conflitos durante as conjunes
* N. da T.: A expresso critical junctures, definida no texto, foi traduzida como conjunes crticas. A expresso path dependence, igualmente definida, foi conservada em ingls. 1 Sobre a necessidade de teoria clssica em estudos comparativos, ver: Atul Kohli, Peter Evans, Peter J. Katzenstein, Adam Przeworski, Suzan Hoeber Rudolf, James Scott, and Theda Skocpol, The Role of Theory in Comparative Politicas: a Symposium World Politics. Vol 48, no. 1, October, 1995, pp. 1-49. 2 Uma reviso recente dessas perspectivas encontra-se em: Paul Pierson, Path Dependence and the Study of Politics. Artigo apresentado American Political Science Association Annual Meeting, San Francisco, 1996; e Ian Lustick, History, Historiography, and Political Science: Multiple Historical Records and the Problem of Selection Bias. American Political Science Review. Vol. 90, September, 1996.
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crticas.3 Ao contrrio, o processo causal permanece aberto e contingente a uma srie de
fatores eminentemente polticos tais como pactos, negociaes e outros atos, escritos ou
simblicos, que legitimam as ordens e rotinas polticas subseqentes. Nesta perspectiva, a
histria evidencia uma srie de momentos polticos. As conjunes crticas reformulam
subitamente as relaes entre sociedade e Estado e determinam as futuras vias do
desenvolvimento cultural, econmico e social.
O cerne da Filosofia da Histria de Hegel mostra uma anlise de como as relaes
entre sociedade e Estado, na Europa Ocidental, foram reformuladas na seqncia de
conjunes crticas, ou momentos polticos. Na sua viso germnica e de europeu
ocidental, as conjunes crticas mais importantes foram: 1) a organizao da democracia
na Grcia antiga; 2) a emergncia do cristianismo sob o imprio romano; 3) a arte de
governar de Carlos Magno e as reformas religiosas do papa Gregrio VII, que produziram
a ordem medieval; 4) a Reforma Protestante, que solidificou os primrdios do Estado
moderno europeu; 5) a Revoluo Francesa, que definiu o governo representativo popular,
na Europa do sculo XIX. Esta lista de conjunes crticas no exaustiva para a Europa e
tampouco um substituto para a anlise da trajetria histrica de outras regies.4
Este trabalho procura extrair, da Histria da Filosofia de Hegel e de evidncias
empricas acumuladas desde sua poca, vrias implicaes em relao s conjunes
crticas, democracia e mudana poltica para a realizao de anlises de poltica
comparada. Primeiro, os conceitos de conjuno crtica e path dependence ajudam a
compreender tanto as foras causais da continuidade histrica quanto a importncia da
repentina mudana poltica.5 Segundo, a transparncia e a imediao das relaes entre
sociedade e Estado, durante as conjunes crticas, apontam para a necessidade de se
realizar uma anlise mais profunda da lgica causal e dos contedos substantivos desses
momentos polticos, para melhor compreenso do conjunto singular de riscos e
oportunidades que apresentam. Por fim, talvez fosse bom enfatizar a necessidade de
3 Ver: Theda Skocpol, Protecting Soldiers and Mothers: The Political Origins of Social Origins of Social Policy in the United States. Cambridge: Belknap Press Harvard, 1992. 4 Notar que a Filosofia da Histria de Hegel comea por uma reviso das civilizaes orientais e das origens da Grcia no Imprio Persa. Ver: George Pericles, Barbarian Asia and the Greek Experience: From the Archaic Period to the Age of Xenophon. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1994. 5 Sobre path dependence , ver Paul Pierson, Path Dependence and the Study of Politics, Douglas C. North. Institutions, Institutional Change, and Economic Performance. Cambridge: Cambridge University Press, 1990; Sven Steinmo, Kathleen Thelen, and Frank Longstreth, eds. Structuring Politics: Historical Institutionalism in Comparative Analysis. Cambridge: Cambridge University Press, 1992. Sobre momentos cruciais, ver: Ruth B. Collier e David Collier, Shaping the Political Arena: Critical Junctures, the Labor Movement, and Regime Dynamics in Latin America. Princeton: Princeton University Press, 1991.
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analistas de poltica comparada terem de considerar o fato de que a democracia um
princpio, mais do que uma forma particular de regime, restrita aos tempos modernos.
Desde seu aparecimento, na antiga Grcia e ao longo de toda a histria da Europa
ocidental, a democracia foi um princpio condutor de mudana poltica.6
OS CONCEITOS DE CONJUNO CRTICA E PATH DEPENDENCE
Cientistas sociais utilizam os conceitos de conjunes crticas e path dependence
para especificar os argumentos acerca dos momentos polticos e suas condies causais
singulares, da mesma forma que os autores clssicos buscavam termos adequados para
construir seus conceitos. Na introduo Sociologia da Religio, Max Weber usou o
desvio de estrada-de-ferro como metfora para descrever uma determinada configurao
que assumem certos momentos polticos, os quais, apesar de permanecerem abertos
liderana, escolha e mudana, uma vez ultrapassados permitem que o desenvolvimento
da religio e da sociedade retomem seu curso rapidamente.7 Mais recentemente, Barrington
Moore usou argumentos semelhantes para comparar os caminhos histricos em direo
ditadura e democracia, no sculo XX, que foram determinados pelo sucesso ou fracasso
das revolues.8 Desde Barrington Moore, o conceito de conjunes crticas vem ocupando
lugar central na anlise comparada. Por exemplo, a discusso de Seymour Martin Lipset e
Stein Rokkan sobre o sistema partidrio europeu, reflete o modo pelo qual, na histria da
regio, uma seqncia de conjunes crticas foi resolvida.9 Esse trabalho permanece um
marco nos estudos de anlise comparada, pois demonstrou a autonomia causal e o carter
poltico das conjunes crticas que solidificaram o sistema partidrio europeu. Por sua
vez, Ruth e David Collier usam o conceito de conjunes crticas para explicar a trajetria
de doze pases latino-americanos, a partir do modo pelo qual a classe trabalhadora foi
6 Embora as perspectivas histricas sobre a democracia tendam a enfatizar as ondas que redefiniram seu contedo, por pesquisar insuficientemente a histria, elas deixam de desvendar a origem e a evoluo do princpio democrtico. Ver: Samuel Huntington, The Third Wave: Democratization in the Late Twentieth Century. Norman: University of Oklahoma Press, 1991, e John Markoff, Waves of Democracy: Social Movements and Political Change. Thousand Oaks: Pine Forge Press, 1996. 7 Ver a introduo a: Max Weber, The Sociology of Religion. Boston: Beacon Press, 1993. 8 Barrington Moore. Social Origins of Dictactorship and Democracy. Boston: Beacon Press, 1966. Para uma interpretao mais estruturalista, reagindo ao argumento de Moore, ver: Gregory Luebbert, Liberalism, Fascism, or Social Democracy. New York: Oxford, 1991, pp. 306-315. 9 Lipset e Rokkan, em conseqncia, empurraram a autonomia da poltca para fora do esquema sociolgico fechado, de Talcott Parsons sua base e inspirao intelectuais. Ver: Stein Rokkan & Seymour M. Lipset, eds. Cleavages, Ideologies, and Party Systems. New York, Free Press, 1967.
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incorporada, em meados deste sculo.10 Os autores demonstram que mesmo em uma regio
tradicionalmente considerada como politicamente instvel, as conjunes crticas
solidificam a poltica. Momentos polticos de mudana repentina e significativa so
seguidos por longos perodos de rotina, ordem, consolidao, ou path dependence. Novas
perspectivas histrico-institucionais em poltica comparada tambm utilizam o conceito de
conjunes crticas, para descrever como mudam as instituies.11 Em resumo, as
mudanas repentinas que periodicamente redefiniram as relaes entre sociedade e Estado,
ao longo da histria europia ocidental, podem ser comparadas em termos de contedo
poltico e processo causal envolvido.
CONJUNES CRTICAS E DEMOCRACIA COMO PRINCPIO
As definies de democracia como um tipo de regime poltico tendem a ocultar em
que medida a democracia, como princpio, tem conduzido as mudanas polticas, desde a
antiga polis grega. A partir da argumentao de Friedrich e Bryzinski, em Totalitarianism
and Democracy, as pesquisas de poltica comparada tendem a aceitar uma dicotomia
forada entre dois tipos polares de governo. Apenas recentemente, essa dicotomia cedeu
lugar a outras tipologias, mais cuidadosas, construdas por alguns cientistas polticos
dedicados aos estudos da democracia, nos novos contextos, aps o processo de transio ao
fim de alguns regimes militares.12 Porm, muito mais do que tipologias bem elaboradas de
regimes, importante enfatizar o impacto causado pela democracia, quando pensada como
um princpio. Isso no implica em apelar para princpios morais ou conceitos ticos. Mas,
ainda, seria importante notar que apelos diretos, princpios democrticos e noes
populares de justia substantiva so condutores da mudana poltica durante os repentinos
e significativos acontecimentos das conjunes crticas.
10 Collier & Collier, Shaping the Arena of Politics: Critical Junctures, the Labor Movement, and Regime Dynamics in Latin America. Princeton: Princeton University Press, 1991. 11 Sobre abordagens institucionais histricas, ver: Stemno, Thelan, & Longstreth. Eds. Structuring Politics. 12 David Collier and Steven Levitsky, Democracy with Adjectives: Conceptual Innovation in Comparative Research. World Politics, vol 49(3), april, 1997, p. 430-451; e Guillermo ODonnell, Illusions of Consolidation, Journal of Democracy, vol 7, n 2, April, 1996, pp. 34-51.
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O fato de tais elementos terem sido determinantes para a resoluo das conjunes
crticas ao longo de toda histria europia, implica na necessidade de se realizar uma
reviso de idias amplamente aceitas de democracia como o ponto culminante da
modernidade e do desenvolvimento. Se a democracia um princpio que determina a
resoluo de conflitos e de conjunes crticas ao longo da histria, ento os tipos
weberianos de dominao tradicional, carismtico e racional-legal no podem ser postos
em uma ordem cronolgica linear.13 O legado de Parsons e outros antigos analistas de
Weber levam a crer que esses trs tipos de dominao representam o perfil geral do
desenvolvimento poltico da Europa Ocidental. Se verdade que Weber parecia acreditar
que o princpio democrtico era um tipo isolado, mais permanente e tambm mais
problemtico, ento srios problemas se colocam, quanto ao lugar da democracia,
apreciada por essa viso cronolgica que estabelece a dominao tradicional, carismtica e
racional-legal como um marco histrico inamovvel.14
Em suma, nas anlises de poltica comparada seria necessrio reconhecer que os
princpios democrticos e as concepes populares de justia substantiva tm sido
fundamentais, desde a antiguidade, para a realizao de pactos polticos e a criao de
solues institucionais durante as conjunes crticas.
COMPARANDO CONJUNES CRTICAS AO TESTAR AS HIPTESES CAUSAIS DE HEGEL
As discusses a seguir buscam, em primeiro lugar, esclarecer as hipteses causais
sobre cada conjuno crtica, apresentada na Filosofia da Histria de Hegel. Em seguida,
procura-se verificar a validade de suas anlises, pela evidncia emprica acumulada desde a
poca de Hegel. Aps uma discusso introdutria da histria e da historiografia, os
13 Notar a diferena, no trabalho recente de Parsons sobre Weber, quanto interpretao de um percurso atravs das noes de autoridade tradicional, carismtica e legal-racional. Ver: Max Weber, The Theory of Economic and Social Organization. New York: Free Press, 1947 (introduo por Talcott Parsons, pp. 56-86). 14 Os editores das obras completas de Weber demonstraram que ele enfatizou um quarto princpio adicional de dominao legtima. A significao desse quarto tipo para o assunto presente claramente sugerida por seu ttulo: O princpio democrtico da legitimao. Embora central na palestra feita por Weber em 1917 (em outubro, enquanto se desenrolavam os dramticos acontecimentos da Revoluo Russa), esse quarto tipo jamais se tornou um captulo independente ou uma sub-seo, nos manuscritos de Weber que foram publicados. Ao contrrio, os pargrafos originais da palestra de 1917 que discutem a fora legitimadora do princpio democrtico foram simplesmente inseridos no captulo sobre o carisma, para a verso final de Economia e Sociedade. Faz-se necessria uma anlise mais minuciosa desses procedimentos editoriais. Contudo, descrever o princpio democrtico como um sub-conjunto de problemas vinculados ao carisma, evidentemente constitui uma falha por no se fazer justia a uma srie de problemas cruciais da teoria e da anlise da democracia.
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captulos substantivos que formam o corpo da Filosofia da Histria encontram-se
organizados de maneira semelhante. Em cada perodo, Hegel rev, primeiro, os
desenvolvimentos estruturais para, em seguida, analisar as causas mais prximas da
mudana poltica. Assim, por exemplo, enquanto a origem da democracia na Grcia posta
dentro do contexto dos desenvolvimentos ocorridos na religio, na filosofia, no comrcio e
na guerra, ele argumenta que as causas imediatas podem ser encontradas nas reformas de
Clstenes que introduziram regras randmicas para a representao eleitoral. Apesar de
Hegel examinar as explicaes gerais para a fundao e o desenvolvimento da antiga
Roma, sua anlise detm-se, mais uma vez, nos momentos polticos, nos impactos
causados pela reforma agrria, na utilizao, por Licnio, dos novos apelos populares
diretos e nas conseqncias dramticas que a derrota na Segunda Guerra Pnica produziu
no mbito domstico. Ainda a emergncia do cristianismo, assim como as reformas do
papa Gregrio VII (1073-1085) so tratadas em termos empricos e na perspectiva de uma
anlise organizacional. Finalmente, a Reforma Protestante e a Revoluo Francesa so
ambas analisadas por meio de comparaes sistemticas de similaridades e diferenas,
contrastadas pelas experincias nacionais. O carter causal, emprico e comparativo dos
captulos substantivos da Filosofia da Histria permite que se desafie as perspectivas
contemporneas e que se confronte a anlise de Hegel com evidncias empricas recentes.
Em resumo, a seqncia histrica de conjunes crticas, que Hegel tenta relacionar, inicia-
se com o sistema de governo ateniense e com a maneira pela qual ao redefinir liberdade,
esse sistema deixou um legado s experincias subseqentes de organizao interna dos
Estados.
Conjuno Crtica 1: A organizao da democracia na Grcia antiga
Como principal hiptese causal sobre a Grcia antiga, Hegel afirma que o novo
modelo poltico foi mais importante na construo da democracia do que os fatores sociais,
econmicos ou culturais. Em sua concepo, a hierarquia existente e as associaes
funcionais entre as dez tribos de Atenas foram reorganizadas com sucesso sob bases
democrticas mediante as reformas constitucionais arquitetadas por Clstenes (508 a.C.).
Desse modo, a introduo de um novo e randmico processo eleitoral culminou com uma
srie de desenvolvimentos na economia, na cultura, na sociedade e na religio, alm de
fornecer um novo contexto institucional para novas experincias de liberdade e cidadania,
na Grcia. Hegel no exagera em seus argumentos. Os atenienses no conseguiram
conciliar essas novas realizaes com a realidade permanente da guerra e da ambio
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imperial, no plano exterior, e a do orculo e da escravido, no plano domstico. Entretanto,
semelhana das conjunes crticas subseqentes, os gregos, por meio dos princpios
democrticos constitudos, reformularam o que era possvel.
Apesar de muitos especialistas sustentarem que o estudo da antiga Grcia deveria
ser um fim em si e que cientistas sociais no deveriam procurar testar seus paradigmas,
mas deix-los em suspenso, pesquisas recentes, tais como as de Josiah Ober e outros,
apontam para a importncia de se reexaminar a experincia clssica grega. Alm disso, o
carter de mudana poltica centrado nas reformas empreendidas por Clstenes, em 508
a.C., confirma a relevncia das mudanas repentinas e significativas enfatizadas na
Filosofia da Histria.15 As anlises do nascimento das cidades-estado gregas,16 a origem e
o desenvolvimento da democracia17 e a emergncia de um novo tipo de poltica, de
identidade e de cidadania, dentro de um cenrio democrtico, aps as reformas de
Clstenes,18 so questes que caracterizam as pesquisas contemporneas. Em sntese, a
organizao da democracia na Grcia aparece como o primeiro exemplo de conjuno
crtica na Filosofia da Histria de Hegel; um momento que redefiniu o contedo das
relaes entre Estado e sociedade durante um perodo de mudanas repentinas e
significativas.
Conjuno Crtica 2: A emergncia do cristianismo em Roma
Aps rever o desenvolvimento poltico da Repblica ao Imprio, em Roma, a
Filosofia da Histria apresenta uma anlise organizacional sobre o cristianismo inicial e
como este tentou englobar princpios democrticos (primeiro sua expanso evanglica, em
seguida o desenvolvimento do dogma e ento as instituies da igreja). Para Hegel, a
aceitao da regra de ouro proporcionou uma nova base organizacional que tanto remetia
aos princpios gregos da democracia como conduzia a subseqentes desenvolvimentos na
Europa Ocidental. Embora Roma tenha reduzido os indivduos a categorias legais
abstratas, foi precisamente quando a filosofia e a personalidade se tornaram introspectivas,
15 Josiah Ober tem sido o pricipal arauto da ligao entre o estudo da Grcia Antiga e as preocupaes contemporneas na cincia e teoria polticas. Ver: Josiah Ober, The Athenian Revolution. Princeton: Princeton University Press, 1996; e Josiah Ober and Charles Hendrick, eds. Demokratia: A Conversation on Democracies Ancient and Modern. Princeton: Princeton University Press, 1996. 16 Franois de Polignac. Cults, Territory, and the Origins of the Greek City-State. Chicago: University of Chicago Press, 1995. 17 James ONeil. The Origins and Development of Ancient Greek Democracy. Lanham: Rowman & Littlefield, 1995. 18 Christian Meier. The Greek Discovery of Politics. Cambridge: Cambridge University Press, 1991; e Alan L. Boegehold & Adele C. Scafuro, eds. Athenian Identity and Civic Ideology. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1994.
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que se criaram as condies capazes de levar os cristos a procurar um novo tipo de
organizao espiritual. Hegel reconhece que a Igreja Crist transformara-se numa
aristocracia de padres e que a escravido continuava existindo. Apesar disso, a emergncia
do cristianismo pode ser descrita como uma conjuno crtica porque os cristos
restabeleceram as concepes de liberdade e democracia gregas num nvel mais universal.
Hegel descreve a subseqente trajetria poltica da Europa como uma tentativa de
reconciliar a distncia entre o mago da viso da democracia crist e as realidades
contextuais dos Estados e da poltica.
Para estabelecer o contexto em que se desenvolveu a histria poltica romana,
Hegel analisa vrios problemas de diferentes categorias. Para a anlise poltica comparada
de especial interesse sua descrio de uma nova dinmica poltica entre democratizao e
aristocracia. Porque apelos plebiscitrios volteis prevaleceram sobre o governo
representativo, porque o clientelismo prevaleceu sobre a cidadania e porque a Legio
Romana centralizou o poder ao redor dos cnsules, argumenta
Hegel, que um movimento dual entre a democratizao e a emergncia de novos
aristocratas seria uma descrio representativa da poltica romana.19 Hegel afirma tambm
que a reforma agrria teve sucesso em Roma porque estava ligada ao alistamento militar e
expanso imperial. Camponeses tornavam-se soldados em Roma porque a eles foram
prometidas terras desde que cumprissem seu dever militar.
Recentes estudos sobre Roma e os primrdios do cristianismo sustentam as
caractersticas bsicas das hipteses causais de Hegel. Primeiro, ele apia-se em
historiadores, de Tito Lvio a Niebuhr, para construir seu relato das origens e dos
desenvolvimentos polticos em Roma. Suas anlises, ainda hoje, merecem a ateno dos
especialistas, por suas vises interpretativas e seus fundamentos factuais.20 Segundo, a
arrojada ligao estabelecida por Hegel entre reforma agrria, organizao do exrcito
romano e a extenso do Imprio aparece um tanto exagerada, no quadro de variedade e
complexidade enfatizados pelos conhecimentos contemporneos. Desde as anlises de Max
19 A Filosofia da Histria de Hegel rev o mito e a literatura secundria sobre os fundamentos de Roma, apoiando-se ento em Livius e Niebuhr para descrever a organizao de seis classes atravs da censura, da extenso do sufrgio e do contedo do clientelismo. Trabalhos recentes sobre Roma tm ajudado. Para uma viso geral, ver: Richard E. Mitchell. Patricians and Plebians: The Origin of the Roman State. Ithaca: Cornell University Press, 1990. 20 Sobre Tito Lvio e a origem do Estado Romano: Erich Burck. Das Geschichtswerk des Titus Livius. Heidelberg: C. Winter, 1992; e Gary B. Miles. Livy: Reconstructing Early Rome. Ithaca: Cornell University Press, 1995.
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Weber sobre a lei agrria romana,21 os intrpretes mais eruditos tm focalizado seus
estudos na agricultura, mais especificamente, nas relaes de propriedade em geral,22 nas
ligaes entre revoltas camponesas, na Siclia, no advento de Tibrio Graco como Cnsul e
seu assassinato por senadores proprietrios rurais.23 Alis, discusses sobre o contedo e o
impacto da reforma agrria introduzida por Tibrio Graco, ainda hoje recebem
considervel ateno por parte dos historiadores.24 A anlise de Hegel da Legio Romana
foi tambm enriquecida por estudos recentes, que esclarecem como os cnsules
controlavam os pagamentos, os donativos e as indenizaes.25
Ao pesquisar a origem e a evoluo do cristianismo, estudos recentes tambm
enfatizam os princpios democrticos e as anlises organizacionais de maneira congruente
com a de Hegel. Por exemplo, sua afirmao de que os cristos redefiniram as concepes
de liberdade num nvel mais universal reproduzida por Liebeshuetz: "a idia de que o
pobre, o doente e o velho deviam ser ajudados porque existiam, eram criaturas de Deus,
no clssica."26 Da mesma forma, conhecimentos recentes tambm focalizam os
desenvolvimentos organizacionais especficos nos primrdios do cristianismo. Sem dvida,
a necessidade de lidar com prticas caritativas reconhecida como o impulso inicial para o
nascimento da organizao da Igreja. Wayne Meekes demonstra que, por volta da metade
do terceiro sculo, a Igreja de Roma sustentava cerca de 1500 pessoas.27 A Igreja crist
redefiniu a democracia ao admitir a regra de ouro, organizou novos setores da sociedade
romana e (depois da declarao de f de Constantino em 324) tornou-se a doutrina oficial
do Imprio Romano.28 Entretanto, a discusso sobre os desenvolvimentos posteriores da
cristandade e de Roma desvia-se da conjuno crtica disponvel, isto , da origem do
cristianismo sob o Imprio Romano.
21 Max Weber. Die romische Agrargeschichte in ihre Bedeutung fur das Staats in Privatrecht. Max Weber Gesaumtausgabe, Bd 2 Tbingen, 1986; Max Weber, The Agrarian Sociology of Ancient Civilizations, London: Verso, 1988. 22 M. I. Finley, ed. Studies in Roman Property. Cambridge: Cambridge University Press, 1976 e K. D. White. Roman Farming. Ithaca: Cornell University Press, 1970. 23 D. Stockton. The Gracchi. Oxford: Oxford University Press, 1979. 24 Ver: R. Develin. The Dismantling of the Gracchan Agrarian Program. Antichthon. 13 1979; e K. Meister. Die Aufhebung der Gracchischen Agrarreform. Historia. 23 (1974) J. Molthagen. Die Durchfuhrung der Gracchischen Agrarreform. Historia. 22 (1973) pp. 423-458; K. Bringham. Die Agrarreform des Tiberius Gracchus: Legende und Wirklichkeit. Frankfurter Historische Vortrage, Heft 10, Stuttgart, 1985. 25 J. B. Campbell. The Emperor and the Roman Army. Oxford: Oxford University Press, 1984. 26 "J. Liebeschuetz. Continuity and Change in Roman Religion. Oxford: Oxford Univesity Press, 1979, p. 187. 27 Wayne Meeks. The First Urban Christians: The Social World of Apostle Paul. New York: Yale University Press, 1983. 28 Ver: Timothy D. Barnes. Anathasius and Constantine: Theology and Politics in the Constantinian Empire. Cambridge: Harvard Univesity Press, 1993.
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Conjuno Crtica 3: A arte de governar de Carlos Magno, as reformas religiosas do
papa Gregrio VII e a ordem medieval
Para Hegel, a arte de governar de Carlos Magno e as reformas religiosas do papa
Gregrio VII produziram os pactos polticos e as relaes feudais da ordem medieval.
Hegel descreve a habilidade de Carlos Magno em edificar e manter seu imprio, no por
revolucionar ou impor novas formas de poltica, mas por sua destreza em 1) negociar a
colaborao para a defesa de toda a Frana e do norte da Europa, contra os mouros e 2)
reconstruir poderes imperiais e de Estado, que foram sendo abandonados, no rastro do
Imprio Romano. Hegel afirma que as subseqentes reformas da Igreja Crist, sob
Gregrio VII (1073-1085), atenderam tanto opressiva situao dos seres humanos,
quanto realidade da contestao poltica. Com a carne humana sendo posta venda nos
mercados e os claustros funcionando como o nico lugar seguro para a prole das elites, os
hereges, os rebeldes e os reformadores urbanos mobilizavam a turba em oposio
nobreza secular, aos padres casados e venda de postos eclesisticos.
Hegel afirma que trs inovaes institucionais sob Gregrio VII acederam aos
movimentos reformistas e transformaram a Igreja no principal poder poltico da Europa:
celibato clerical, controle papal sobre os ttulos religiosos e o direito papal da investidura
dos reis.29 A Igreja tambm expandiu sua autoridade, organizando bispados e snodos por
toda Europa, definindo procedimentos para a missa, legitimando uma srie de ritos
simblicos e representaes pictricas. Longe de uma realizao linear dos princpios
cristos ou democrticos, a mobilizao extrema que comeou entre os reformadores
urbanos culminou com o xenofbico militarismo das cruzadas. Para Hegel, a construo
das catedrais gticas, a proliferao de novas ordens religiosas, as ordens msticas dos
cavaleiros e a ritualizao dos torneios acadmicos, expressavam a transformao da
cristandade, de uma pequena comunidade religiosa no interior do Imprio Romano, em um
poder mundial, que salvava almas por dinheiro e mobilizava apoio para a guerra. O poder
mundial da Igreja foi construdo com arquitetura imponente, com mobilizao de massa e
com expedies militares.
Ainda que proliferem perspectivas diferentes sobre a origem, desenvolvimento e
legado da ordem medieval, a historiografia poltica recente concentra seus estudos nos
momentos polticos e nos processos causais j enfatizados por Hegel, na Filosofia da
Histria. A evidncia emprica acumulada, desde a poca de Hegel 1) confirma a
29 Sobre as mudanas organizacionais da Igreja durante Gregorio VII, ver: Colin Morris. The Papal Monarchy. Oxford: Oxford University Press, 1989.
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importncia da arte de governar de Carlos Magno e das reformas de Gregrio VII, 2)
demonstra a transparncia e a proximidade das relaes entre governantes medievais e seus
sditos e 3) sugere que as noes populares de justia substantiva conduziram os
momentos polticos que definiram a ordem medieval. Na verdade, historiadores medievais
enfatizam o contedo revolucionrio dos movimentos de reforma urbana, no noroeste da
Europa, o carter poltico das reformas gregorianas e o carter itinerante da realeza, que
encobrem teorias aceitas do desenvolvimento do Estado na regio.
luz da arte poltica de Carlos Magno, constata-se que o debate sobre a
emergncia do Isl e suas relaes com a negociao da defesa militar coletiva da Europa,
empreendida por ele, tem sido um tema importante na historiografia moderna, desde a obra
de Henri Pirenne sobre Maom e Carlos Magno.30 Sem dvida, existe consenso sobre a
existncia de um Mediterrneo unido que se dividiu, vindo a se transformar na Europa
Medieval, no Imprio Bizantino e nos Califados, durante o stimo sculo.31 Entretanto,
enquanto a transio da antiguidade para o feudalismo tem sido tratada em termos de uma
dinmica estrutural, localizada na economia e na sociedade, por notveis especialistas,
como Perry Anderson, ou os historiadores da Escola dos Anais, certas obras j
consideradas clssicas, como as de Pirenne e de outros especialistas do medievo enfatizam
aspectos polticos.32 Alm disso, conhecimentos contemporneos sugerem tambm que
princpios democrticos e concepes populares de justia substantiva impulsionaram
essas mudanas. Desde os desafios dos profetas religiosos radicais, at a mobilizao por
reformas, lideradas por autoridades seculares e religiosas, a mobilizao de turbas urbanas,
em termos de "uma nova e irada intolerncia em relao ao status quo", fornecem um
contexto fundamentalmente novo para a organizao dos reinados e da Igreja Crist.33
Como adverte Karl Leyser, "uma expanso da conscientizao e das faculdades de
30 Embora seja considerado como um texto pioneiro entre historiadores contemporneos, a tese de Pirenne claramente articulada com a Filosofia da Histria. Henri Pirenne, Mohammed and Charlemagne. London: Allen & Unwin, 1939; e Hodges, Richard & David Whitehouse, Mohammed, Charlemagne & the Origins of Europe, Archeology and the Pirenne Thesis. Ithaca: Cornell University Press, 1983. Ver tambm: Joseph R. Strayer. Medieval Statecraft and the Perspectives of History. Princeton: Princeton University Press, 1971. 31 Fernand Braudel. The Mediterranean and the Mediterranean World in the Age of Phillip II. London: 1972/3 2 vols.; e Judith Herrin. The Formation of Christendom. Princeton: Princeton University Press, 1987. 32 Perry Anderson, Passages from Antiquity to Feudalism. London: NLB, 1974 e C. Wickham. The Other Transition: From the Ancient World to Feudalism. Past and Present. 103, (1984) pp. 3-36. Para uma perspectiva diferente, ver: Dietrich Gerhard Old Europe: A Study of Continuity 1000-1800. New York: Academic Press, 1981. 33 The wars Henry IV, after his return from Canossa, waged against his enemies in Germany bore a revolutionary character on both sides. Karl Leyser, The Gregorian Revolution and BeyondCommunications and Power. London: Hambledon Press, 1982, p.14.
12
percepo do estrato at ento silencioso da massa de laboratores, os desprivilegiados,
pertenciam aos desenvolvimentos revolucionrios despertados pela profundidade e
amplitude do grande conflito no Reich".34 Embora a evidncia da conscientizao popular
deva ser inferida dos documentos eclesisticos, das aes reais e dos assuntos de alta
poltica, como se encontram historicamente registrados, as relaes entre governantes e
governados, com seu carter direto e contedo substantivo, sustentam a descrio causal,
de Hegel, de revolta, de reforma e do papel dos princpios democrticos que produziram a
ordem medieval.
O reino medieval sustentava-se em tcnicas de governo pessoais, diretas e
transparentes, contidas no conceito de Leyser de reinado itinerante.35 Como afirma Leyser:
"O reino existia para executar certas tarefas consentidas atravs de um pacto." Se o
governante falhasse em execut-las, todas as obrigaes para com ele desapareceriam.36
Uma anlise das prticas polticas regionais e locais dos governos Otonianos e Slios
sugere que seus reinados itinerantes forneceram uma frmula poltica alternativa que
permitia a manuteno da ordem, da defesa militar e da colonizao. Longe de ser um
episdio disfuncional destinado a ser restabelecido pelas instituies de um Estado
centralizado numa simples capital, os Reis Itinerantes governavam efetiva e eficientemente
pelo caminho, fazendo justia, resolvendo conflitos e negociando a paz, sem leis escritas e
sem documentao registrada de uma burocracia central.37 Os Reis do noroeste da Europa
monopolizavam a comunicao, controlavam o comrcio e estabeleciam a legitimidade
necessria ao realizarem entradas solenes, coroaes e outras demonstraes rgias.38 Na
verdade, aps a perda pela dinastia Otoniana de suas colnias entre os eslavos, nos finais
dos anos 900, as minas de prata das montanhas Harz forneceram uma fonte de riqueza
alternativa durvel. A prata expandiu o domnio Otoniano bem depois da dinastia
Carolngia (frequentemente considerada como a responsvel pela histrica norma
centralizada francesa) ter-se dispersado por autoridades regionais.
34 Idem, Ibidem. p. 15. 35 Karl Leyser. Medieval Germany and its Neighbors Communications and Power. London: Hambledon Press, 1982, p. 94. 36 Leyser, Ottonian Government Idem, p. 150. 37 Leyser sustenta que seria errado considerar a origem e o desenvolvimento do reinado itinerante como arcaico, primitivo e atrasado, ou como antecipando o excepcionalismo germnico. Medieval Germany and its Neighbors, 900-1250 Communications and Power, London: Hambledon Press, 1982, p. 70. 38 Leyser, Idem, p. 94.
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Em resumo, o problema fundamental acerca dos governantes medievais no o
modo como eles prefiguraram Estados absolutos, mas como administraram a justia,
legitimaram suas regras e asseguraram igualmente a riqueza e a defesa comum. Algumas
anlises recentes sobre a ordem medieval contradizem os trabalhos anteriores que
procuraram extrapolar o absolutismo do sculo XVII, de volta ao perodo medieval, ou ali
encontrar instituies, quando nessa poca eram as mudanas e as relaes pessoais que
definiam a poltica.39 A diversidade e a complexidade da poltica medieval tambm
contradizem aqueles estudos que exageram o poder papal e a influncia da lei cannica
sobre os processos locais, alm de apontar para a ausncia da descrio da ordem medieval
como extenso da dominao familiar. Da mesma forma, as concepes impessoais da
dominao, no capitalismo de mercado, que sustentam a anlise marxista deixam de captar
o carter pessoal e o contedo substantivo da poltica medieval.40
Os enfoques na arte de governar de Carlos Magno e nas reformas gregorianas como
os momentos polticos que modelaram a ordem medieval tambm fornecem novas
perspectivas s teorias sobre a transio para o feudalismo, que enfatizam o carter nico
do sculo XII.41 Berman, Bloch, Anderson, Morris e outros discutem os tipos de
burocracia, lei cannica, erudio pessoal e administrao central, emergentes durante o
sculo XII, mostrando que diferem fundamentalmente das relaes pessoais e fluxos que
caracterizaram a poltica medieval anterior. Mas, como observa Reynolds: "Por que todos
esses tipos de mudana acontecem no decurso e por volta do sculo XII e de que maneira
estavam conectados entre si?".42 Tanto a Filosofia da Histria de Hegel como
investigaes recentes sugerem que a arte de governar de Carlos Magno e as reformas
gregorianas forneceram as condies polticas que esto na origem e nos fundamentos dos
acontecimentos do sculo XII, um sculo to enfatizado pelos historiadores.43
39 Karl Leyser assinala: A velha escola assumiu, com algumas excees, o Estado e um aumento de atribuies administrativas do governo, sem colocar questes muito precisas sobre seu funcionamento, no dia a dia. Nessa sua abstrao, era uma sombra da histria das instituies que realmente no existia in Medieval Germany and its Neighbors, 900-1250 p. 80. Por velha escola, Leyser entende: C. C. Bailey, The Formation of the German College of Electors in the Mid-Thirteenth Century. Toronto: 1949; e Heirich Mittels, The State in the Middle Ages: A Comparative Constitutional History of Feudal Europe. Amsterdam: North-Holland, 1975. 40 Leyser, Medieval Germany and its Neighbors, 900-1250, Idem, p. 179. 41 Perry Anderson, Passages from Antiquity to Feudalism. London: Verso, 1974; Herald Berman, Law and Revolution. Cambridge: Harvard University Press, 1983; Marc Bloch, Feudal Society 1: The Growth of Ties of Dependence. London: Routledge, 1965; e Colin Morris, The Papal Monarchy: The Western Church, 1050-1250. Oxford: Oxford University Press, 1989. 42 Suzan Reynolds, Fiefs and Vassals: The Medieval Evidence Reinterpreted. Oxford: Oxford University Press, 1994. 43 Berman, Law & Revolution.
14
Com efeito, Reynolds conclui sua reviso das anlises causais da poltica medieval
com a sugesto de que "Se procuramos entender as mudanas nas relaes polticas e os
direitos e obrigaes de propriedade, precisamos prestar mais ateno em outros fatores.
Primeiro, na poltica e nos acontecimentos de fato".44
Um dos argumentos centrais desta seo tem sido o de demonstrar que a Filosofia
da Histria de Hegel (e historiadores recentes) fornece uma determinada explicao
causal que vincula a arte de governar de Carlos Magno e as Reformas Gregorianas aos
desenvolvimentos institucionais subseqentes, na ordem medieval. Finalmente, um outro
argumento central deste artigo, o de que a justia substantiva conduz os acontecimentos da
conjuno crtica, j aparece nos relatos dos historiadores medievalistas. Por exemplo,
Reynolds afirma que o termo vassalo deve ser substitudo porque a compreenso corrente
no consegue captar a realidade de que "A cultura medieval incorporava, por um lado, a
crena na hierarquia, na obedincia e na lealdade e, por outro, no costume, na justia
imanente, na mutualidade das obrigaes e no julgamento coletivo".45
Finalmente, as hipteses causais de Hegel acerca da arte de governar, da reforma
religiosa e da ordem medieval devem ser diferenciadas daquilo que Reynolds denominou
como o mito que explica o desenvolvimento feudal pelo costume da vassalagem pessoal e
concesses de feudos a bandos guerreiros. Reynolds afirma que esse argumento est
baseado em um texto do sculo XII, intitulado libri feudorum, no qual se descreve a poca
anterior supostamente como uma era de migraes. Entre a queda do Imprio Romano e o
desenvolvimento daquilo que era considerado como governo moderno civilizado, a Europa
esteve mergulhada, assim se pensava, num estado de barbrie no qual as idias de bem
estar , esprito pblico e lei racional foram mantidas vivas apenas pela Igreja.46
A anlise de Hegel estabelece juno entre a arte de governar de Carlos Magno, as
Reformas Gregorianas e os desenvolvimentos medievais subseqentes, mas evita tanto
esse mito da poca negra quanto os exageros na nfase burocracia estatal, lei e
formao erudita, to enfatizadas pelos especialistas em sculo XII. Ao contrrio, a
Filosofia da Histria acentua os momentos polticos, as concepes correntes de justia
substantiva e a transparncia do Reino medieval. Pode-se afirmar que esses princpios so
sustentados pela evidncia emprica acumulada desde ento.
44 Ibid. p. 482. 45 Reynolds, Fiefs and Vassals, p. 35. 46 Ibid., p. 483.
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Conjuno Crtica 4: A reforma protestante e os primrdios
do sistema estatal moderno
A hiptese causal de Hegel sobre a Reforma Protestante, considerada como a quarta
conjuno crtica analisada na Histria da Filosofia, mostra que ela produziu, de incio,
revoltas camponesas por toda a Europa e, s ento, definiu as identidades nacionais e as
relaes exteriores do sistema nascente de Estado Moderno. Pois somente a partir de
1520 que a ordem medieval, baseada nos princpios imperiais e papais do poder universal,
deu lugar s novas igrejas e s identidades nacionais. As pesquisas recentes so
amplamente concordes com a anlise de Hegel, destacando tanto experincias nacionais
diversas, quanto nexos causais similares, entre tradues da Bblia, revoltas populares e o
desenvolvimento de novas relaes entre as igrejas e o Estado e de relaes inter-
Estados.47 Embora trabalhos de especialistas contemporneos indiquem que Hegel tenha
exagerado as oportunidades de incorporao popular atravs da primogenitura,48 certos
conceitos novos, como confessionalizao,49 sustentam as teses centrais da anlise
hegeliana e esclarecem os laos existentes entre Estados nacionais emergentes e igrejas
ps-reformistas.
Uma vez mais, a anlise de Hegel concentra-se nos momentos polticos e na
importncia das concepes populares de justia substantiva, durante a Reforma. Para ele,
Lutero causou a Reforma protestante e as revoltas camponesas por haver desafiado aquilo
que, de incio, aparentava ser uma simples questo litrgica. Contudo, os ensinamentos de
Lutero ressoaram com impacto, pois recolocavam os princpios centrais do Cristianismo
como assuntos de escolha individual, no de autoridade da Igreja. Tais assuntos
explodiram em termos de reformas, revoltas e guerras camponesas, em grande parte por
causa de erros polticos e intransigncia, por parte da Igreja Catlica. Simultaneamente,
novas teologias surgiram, a partir da leitura da Bblia em lnguas nativas, causando revoltas
populares que tentavam construir comunidades polticas baseadas no cerne das doutrinas
crists.50 Ao contrrio das naes catlicas onde permaneceu o uso do latim , as tradues
47 Peter Blinkle, The Revolution of 1525: The German Peasants war from a new Perspective. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1981. 48 Paula S. Fichter, Protestantism and Primogeniture in Early Modern Germany. New Haven: Yale University Press, 1989. 49 Heinz Schilling cunha o conceito de confessionalizao para descrever as relaes comuns entre Igreja e Estado, que se desenvolveram na Europa Ocidental entre 1550 e 1650. Ver: Heinz Schilling, Religion, Political Culture, and the Emergence of Early Modern Society: Essays in German and Dutch History. New York: E. J. Brill, 1992. 50 Werner O. Packull, Hutterite Beginnings: Communitarian Experiments during the Reformation. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1995.
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da Bblia usadas na Alemanha, Inglaterra e Escandinvia forneceram novas bases para a
definio de identidades nacionais.51
As pregaes pessoais, transparentes e diretamente populares tambm tiveram um
papel condutor nos eventos da Reforma. Para Hegel, a Reforma Protestante forou
dirigentes a trazer para a esfera poltica as noes de direitos privados e obrigaes
recprocas, que definiam as relaes entre senhor e servo. A Reforma Protestante colocou,
assim, a questo dos direitos para as massas populares, deixadas de lado aps as cruzadas e
pelo aventureirismo que havia sustentado reis, ordens reais e a Igreja Catlica. Dessa
perspectiva, o princpio da primogenitura ampliou os direitos populares.
As anlises contemporneas esclarecem que a primogenitura antecede a Reforma e
que as reivindicaes de reis e prncipes no conseguiram transformar as ordens sociais
europias.52 Na verdade, Hegel reconhece que os reis fracassaram ao tentar transferir
obrigaes e responsabilidades, decorrentes dos conceitos centrais de direitos privados,
para a esfera pblica. Ao contrrio, as identidades nacionais no oeste europeu foram
forjadas pelas guerras e no pela incorporao de populaes, nem por uma redefinio da
democracia na organizao poltica. Para Hegel, foi a xenofobia popular que solidificou o
controle dos aristocratas na poltica de corte e alicerou o sistema estatal europeu do sculo
XVII.
As anlises recentes das revoltas e da Reforma sublinham tambm a centralidade
das concepes populares de justia substantiva. Como afirma Peter Blickle, o carter
central da Reforma Protestante est na srie de ataques e ameaas vindo de baixo que
conduziu a redefinio das relaes entre Estado e sociedade.53 Camponeses e citadinos
revoltaram-se contra o dzimo e os juros, cobrados por patrcios, mosteiros e conventos.54
Por exemplo, as doze exigncias da Guerra dos Camponeses eram a reduo das taxas, a
reforma religiosa, a abolio da servido, a liberdade de caar e pescar, a extenso dos
direitos comunais, a declarao do evangelho como lei e o reconhecimento de Lutero,
Zwnglio e outros lderes protestantes como juizes.55 A inabilidade das guerras camponesas
e das revoltas urbanas em construir instituies polticas durveis tem sido uma
51 Quanto ao impacto das tradues da Bblia, ver: Christopher Hill, The English Bible and the Seventeenth Century Revolution. London: Penguin, 1993. 52 Fichtner, Protestantism and Primogeniture in Early Modern Germany. 53 Blickle, The Revolution of 1525, p. 187. 54 Sobre grupos de reforma urbana, ver Brickle, op. cit. p. 167-180. O calvinismo em Genebra permanece como exemplo notvel da institucionalizao protestante. Ver: William G. Naphy. Calvin and the Consolidation of the Genevan Reformation. New York: St. Martins Press, 1994. 55 Sobre as doze exigncias dos camponeses alemes, ver: Blickle, The Revolution of 1525, p. 25-57.
17
preocupao constante dos analistas polticos, desde a anlise de Engels sobre as revoltas
camponesas na Europa.56
A anlise contempornea igualmente documenta a extenso da variao regional e
nacional, durante o perodo da Reforma.57 Na Frana, os reformadores urbanos
enfrentaram uma dura represso, que produziu guerras civis por todo o sculo XVI.58 Os
Paises Baixos desenvolveram uma religio de Estado, desde 1523 at 1555, mas
reprimiram sociedades secretas evanglicas e anabatistas.59 As experincias da Espanha e
da Itlia mostram que a Reforma poderia ser revertida por meio de uma represso decisiva,
por parte da Igreja e do Estado.60 Na Inglaterra, a Reforma ocorreu atravs da liderana do
Parlamento e do Rei.61 Ainda, em Schleswig, Holstein e Sucia, reis e prncipes
conduziram a Reforma e instituram religies protestantes como de Estado.62 Mesmo na
Alemanha, as diferenas foram considerveis.63 A Reforma popular continuou em muitas
cidades-livres imperiais, enquanto que camponeses e burgueses aliaram-se, na Bavria e
Subia, na Alemanha Meridional, e os anabatistas continuaram sua tradio radical.
56 Friedrich Engels, The Peasant War in Germany. New York: International Publishers, 1966; e Bob Scribner & Gerhard Benecke, The German Peasant War of 1525: New Viewpoints. London: Allen &Unwin, 1979. 57 Para anlises comparativas, ver: Euan Cameron, The European Reformation. New York: Oxford Univesity Press, 1991; e Bob Scribner, Roy Porter, & Mikulbais Teich, eds. The Reformation in National Context. New York: Cambridge University Press, 1994. 58 Sobre a Frana, ver: Frederick J. Baumgartner, France in the Sixteenth Century, New York: St. Martins Press, 1995; e Janine Garrison, A History of Sixteenth Century France, 1483-1598: Renaissance, Reformation and Rebelion. New York: St. Martins Press, 1995. 59 Alistair Duke, Reformation and Revolt in the Low Countries. London: Ronceverte, 1990. 60 Sobre as estratgias polticas catlicas em geral, ver: Robert Bireley, The Counter-Reformation Prince: Anti-Machiavellianism or Catholic Statecraft in Early Modern Europe. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1990. Sobre a Espanha, ver: Marcel Bataillon, Erasme et lEspagne, Genve: Droz, 1991; e Anne J. Cruz e Mary Elizabeth Perry, eds. Culture and Control in Counter Reformation Spain. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1992. 61 Sobre o rei, parlamento e reforma na Inglaterra, ver: Eamon Duffy, The Stripping of the Alters: Traditional Religion in England: 1400-1580. New Haven CT: Yale University Press, 1992; Christopher Haigh, English Reformations: Religion, Politics, and Society under the Tutors. New York: Oxford University Press, 1993; Donna B. Hamilton & Richard Strier, eds. Religion, Literature and Politics in Post-Reformation England, 1540-1688. New York: Cambridge University Press, 1966; e D. G. Newcombe, Henry VIII and the English Reformation. New York: Routledge, 1995. 62 Quanto Reforma na Escandinavia, ver: Birget Sawyer & Peter Sawyer, Medieval Scandinavia: From Conversion to Reformation circa 800-1500. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1993. 63 Sobre a Reforma na Alemanha, ver: James D. Tracy, ed. Luther and the Modern State in Germany. Kirksville: Sixteenth Century Journal Publishers, 1986; e Heinrich Lutz, Reformation und Gegenreformation. Munich: Oldenbourg, 1995.
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A despeito das considerveis variaes regionais e nacionais, tanto Hegel quanto
estudos recentes sublinham o impacto da Reforma e da Contra-Reforma na organizao
das identidades nacionais e nas relaes entre Estado e Igreja. Afirma Heinz Schilling que
prticas religiosas similares, tais como os grandes textos doutrinrios, definiram no
apenas o contedo externo, como tambm as relaes internas dos primeiros Estados
Modernos.64 O conceito de confessionalizao descreve a substituio da Cristandade
Ocidental-Europia unificada, da Idade Mdia, por quatro Igrejas, a Luterana, a Calvinista,
a Anglicana e a Catlica Romana.65 A percepo de Schilling das similaridades funcionais
entre igrejas ps-reformistas contradiz os relatos marxistas e idealistas sobre a Reforma e o
sistema estatal europeu. Para Schilling, quatro igrejas ps-reformistas realizaram alianas
com os primeiros Estados Modernos e definiram as realidades polticas, sociais e
organizacionais do primeiro sistema de Estado Moderno.66
Conjuno Crtica 5: A Revoluo Francesa e a necessidade
de um governo representativo popular
A hiptese causal principal de Hegel sobre a Revoluo Francesa discute como os
homens, enquanto indivduos, vieram, na sua esteira, a julgar assuntos polticos
diretamente, mais na base de concepes de cidadania universal e de justia substantiva, do
que de noes passadas, de obrigao feudal, ou de santidade da propriedade privada. Os
comentrios polticos de Hegel sobre as trs primeiras dcadas aps a Revoluo Francesa
fornecem uma srie de hipteses substantivas sobre a organizao do governo popular
representativo, na Alemanha, Inglaterra e Frana. So de especial interesse suas teses sobre
a oportunidade do surgimento de nova liderana poltica atravs da reivindicao popular
direta, a necessidade de estender e aprofundar a cidadania, o atraso das elites fundirias
tradicionais, o perigo de se unificar a Alemanha pela militarizao e pelo fato novo da
existncia de polticos profissionais e das mquinas partidrias.67
64 De acordo com Schilling, as confisses mais significativas foram: para o Luteranismo, a Confisso de Augsburg (1530), as Confisses Helvticas (1536, 1566), o Consensus de Zrich (1549); para o Anglicanismo, o Common Book of Prayers (1549) e os Trinta-e-Nove Artigos (1563); para o Catolicismo, o cnones doutrinrios do Conclio de Trento, especialmente a Profisso de F Tridentina (1564) e certas bulas papais. Schilling, Religion, Politics, and the Emergence of Early Modern Society. p. 205. 65 Schilling, p. 23. 66 O conceito de religio vinculum societas, na lei alem do sculo XVII, aponta para a importncia das igrejas na consolidao das relaes entre Estado e sociedade, aps a Reforma protestante. Schilling argumenta que as identidades religiosas forneciam um equivalente funcional do nacionalismo que solidificava Estados durante os sculos XIX e XX. Schilling, op. cit. p. 234. 67 Hegels Political Writings. Z. A. Pelczynski, Oxford: Clarenden Press, 1964.
19
Enquanto A Constituio Alem (1800-1802) define os problemas da reforma
constitucional germnica, aps a Revoluo Francesa, comentrios subseqentes, em 1815
e 1831, fornecem uma anlise comparativa mais rica dos riscos e oportunidades para a
organizao do governo popular representativo. A anlise de Hegel, sobre a proposta de
Friedrich I, de Wrttemberg, de ampliar o sufrgio e introduzir uma cmara legislativa
central no Estado de Wrttemberg, baseou-se tanto num modelo, de mudana
plebiscitariamente conduzida, que ele extraiu da Repblica Romana, quanto numa
cuidadosa anlise burocrtica de como a legislatura de Wrttemberg bloqueou a reforma
constitucional. A anlise de Hegel do debate parlamentar ingls sobre a Reform Bill, em
1831, reconhece que a venda de votos, que uma nova gerao de polticos profissionais e
que os grandes interesses corporativos forneceram um novo contexto para o governo
popular representativo. No entanto, Hegel compara cenrios onde h reforma com outros,
onde h estabilidade, para concluir que a extenso do sufrgio pode produzir uma
governncia receptiva e responsvel.
A Alemanha no mais um Estado.68 Assim comea o primeiro comentrio
poltico de Hegel, aps a Revoluo Francesa. Para se tornar de novo um Estado, a
administrao da defesa, as finanas e a lei necessitam ser centralizadas sob o controle de
uma cmara popular representativa. Ao afirmar que a incluso das massas necessria para
assegurar sociedades abertas, Hegel rejeita idias anteriores sobre as oportunidades de
construo do Estado Alemo atravs da combinao de sua religio protestante com a
monarquia.69 Para Hegel, os Estados do sculo XIX precisavam escolher entre a
neutralidade (com risco de invaso, fraude e desgoverno) e o desenvolvimento de um novo
patriotismo democrtico, baseado na incluso das massas. Alm disso, Hegel conclui que
os mecanismos mais viveis de incorporao das massas populares, para assegurar
sociedades abertas, so aqueles da poltica eleitoral competitiva e das instituies
representativas.
Como poderia a Alemanha tornar-se de novo um Estado, aps a Revoluo
Francesa? O rei Friedrich I, de Wrttemberg, retratado como um rei-filsofo, nos tempos
modernos, porque ele soube identificar as oportunidades de reformas domsticas
significativas, na nova ordem europia que se seguiu derrota de Napoleo e ao Congresso
de Viena. Em 15 de maro de 1815, Friedrich I, de Wrttemberg, propunha uma nova
68 G.W.F. Hegel, Die Verfassung Deutschlands, Werke I, Fruhe Schriften, Frankfurt: Suhrkamp, 1971, pp. 461-581. 69 Notar a comparao com a Austria, Hegel, Die Verfassung Deutschlands, p. 571.
20
constituio, com instituies representativas, para o Estado de Wrttemberg.70 Vrias
caractersticas da anlise de Hegel sobre reformas constitucionais merecem ateno.
Primeiro, os desenvolvimentos domsticos e internacionais esto intimamente ligados.
Assim como faz no comentrio poltico sobre a Constituio Alem (1800-1802), Hegel se
refere constantemente ao legado da Revoluo Francesa (e vitria de Napoleo sobre a
Prssia, em 1806) como tendo terminado com as reivindicaes aristocrticas de privilgio
social e representao poltica. Entretanto, nove anos depois, Hegel encontrou no rei
Friedrich I, de Wrttemberg, um ator capaz de ligar as presses internacionais crescentes
necessidade de democratizar a poltica domstica. As presses pela democratizao
assumiram tambm a forma de efeito demonstrao. A conscincia popular, por toda a
Europa, foi profundamente afetada pelos princpios democrticos universais da Revoluo
Francesa. Hegel pondera que, sem o estabelecimento de um governo popular
representativo nos termos propostos por Friedrich I, de Wrttemberg, a Alemanha
continuaria no apenas a limitar a liberdade individual, mas tambm seria condenada a ser
fraca no plano internacional e incompetente no domstico.
A segunda caracterstica de interesse, no comentrio de Hegel sobre Wrttemberg
est na transparncia e imediao das relaes entre Estado e sociedade. Em vez de
valorizar a gradual evoluo dos direitos atravs dos sculos, nos termos das regras da lei
civil, da incluso poltica e da justia social,71 Hegel prefere os prospectos de uma
profunda mudana poltica baseada no apelo direto do Rei em favor da incorporao
popular. Para Hegel, o conflito poltico central se dava entre as aspiraes do povo por um
governo representativo baseado na nova conscincia de liberdade, que a Revoluo
Francesa produziu por toda a Europa, e as elites antiquadas que reivindicavam noes
datadas de lei e legitimidade, da Idade Mdia.
Terceiro, Hegel apresenta uma srie de referncias comparadas para defender tais
reivindicaes.72 Ele busca duas comparaes (uma de similaridade, outra de diferena)
para esclarecer essa oposio das elites agrrias alems s reformas constitucionais de
70 Frederich II props a eleio de representantes para uma nica cmara, por perodos de trs anos. Os limites ao voto seriam fixados em 200 Guildens e 25 anos de idade, enquanto que o financiamento da administrao estatal seria centralizado sob o controle dessa cmara de representantes. 71 Sobre a gradual redefinio de direitos que ocorreu durante trs sculos na Inglaterra, ver: T. H. Marshall, Citizenship and Social Class, Cambridge: Cambridge University Press, 1950. 72 O primeiro referendum comparativo sado da teoria poltica clssica. Hegel descreve as propostas de Reforma de Frederich II como um chamado da elites agrrias germnicas ao Principado, nos termos da imagem clssica de Maquiavel. Para Hegel, O Prncipe, de Maquiavel, apelava s elites italianas para remover as foras estrangeiras da Espanha e Frana. Infelizmente, os prncipes alemes pareciam no ter essa vocao. Em vez disso, emergiu uma aliana conservadora contra as iniciativas reais de democratizao.
21
Friedrich I, de Wrttemberg. A oposio de elite primeiramente comparada dinmica
da poltica interna clssica, da antiga Roma, na qual os aristocratas se opunham a alianas
entre o Cnsul e a plebe. Hegel elabora esta dinmica poltica a partir de relatos
respeitveis sobre Roma Antiga, esclarece os novos contextos gerados pelas estruturas
sociais medievais e pela Reforma Protestante, aplicando ento essa dinmica na descrio
das oportunidades polticas de mudana, na Alemanha do incio do sculo XIX. Hegel
assinala tambm a diferena de carter dos interesses aristocrticos privados que
conduziram constelao particular da oposio conservadora na Alemanha. Dessa forma,
a maneira pela qual os interesses agrrios privados sufocaram as iniciativas reais,
esclarecida por paralelos histricos, com especial ateno s diferenas entre eles.
A anlise das reformas constitucionais de Friedrich I, de Wrttemberg, tambm
elaborada em perspectiva comparada. Hegel procura contrastar a prolongada oposio feita
pelas elites agrrias alems com a poltica eleitoral competitiva inglesa e, igualmente, com
o rumo da revoluo na Frana. As comparaes de Hegel com a Inglaterra iluminam as
possveis implicaes surgidas com a expanso do sufrgio. Hegel conclui que a poltica
eleitoral inglesa, longe de incrementar tenses e produzir polarizao, na verdade resultou
no avesso disso. A hiptese causal, nesse caso, a de que a poltica competitiva eleitoral
pode impedir a escalada dos conflitos polticos porque os grupos de oposio tendem a
focalizar sua fria no nas instituies governamentais, mas no partido que est no poder.
Antecipando os argumentos de Hofstadter, hoje clssicos, sobre a ascenso da oposio na
poltica americana, o governo em exerccio no a administrao do Estado em si torna-
se objeto de oposio, assim que a poltica eleitoral competitiva torna-se o centro do
princpio de legitimao do governo representativo.73
Hegel tambm realiza comparaes entre as histrias da Frana e da Alemanha.
Embora a poltica francesa ps-revolucionria tambm seja caracterizada pelas mesmas
tenses entre direitos universais, pela incorporao das massas populares, pelos novos
sentidos da lei pblica e pela resistncia entre as elites agrrias, sua combinao particular
diverge. A incorporao de setores populares, na Frana, configurou uma situao na qual
a maioria enfrentava a oposio do rei e das elites agrrias. Em comparao, as iniciativas
reais de democratizao, em Wrttemberg, foraram as elites agrrias a se opor ao rei.
Hegel igualmente estabelece uma comparao histrica com as tentativas anteriores de
organizao de um governo popular representativo, em Tbingen (1514). Afirma ele que
73 Richard Hofstadter, The Idea of a Party System: The Rise of Legitimate Opposition, Berkeley: University of California Press, 1969.
22
essa experincia tambm gerou reaes conservadoras, assim como a rearticulao de
noes indiretas de representao, sadas da lei medieval. Examina a seguir a poltica
burocrtica de oposio ao rei e ao povo. Descreve a morte lenta que as reformas
constitucionais de Friedrich I, de Wrttemberg, tiveram, em gabinetes burocrticos,
enquanto estiveram em mos de representantes do Estado de Wrttemberg e das elites
acadmicas.74
A anlise de Hegel, em 1831, da poltica eleitoral-partidria e do governo
representativo popular inclui o reconhecimento de que, na Inglaterra, uma nova classe de
polticos profissionais se havia alado para dominar a poltica e que a corrupo poltica e
os grandes interesses corporativos agora apresentavam uma srie de problemas novos para
o governo representativo popular. A despeito disso, Hegel afirma que a Reform Bill
poderia produzir mudanas e alterar o sentido subjetivo do voto. Embora o predomnio da
lei privada e a falta de incluso popular formassem os contextos centrais dos debates sobre
a Reform Bill, Hegel argumenta que os prospectos reformistas giravam em torno da aptido
dessa simples extenso do sufrgio em produzir reformas materiais substantivas. A lgica
da escolha feita pelo eleitor estaria presa a esse contexto, porque somente um governo
representativo popular, com eleies decidindo assuntos de poltica de Estado, que
poderia produzir escolhas cuidadosamente pesadas e responsveis. Esse argumento choca-
se com a realidade da venda generalizada de votos e da corrupo, no sistema ingls,
fornecendo uma perspectiva para o eleitorado, que permanece central, na anlise do
comportamento eleitoral desde ento.
Os prospectos de reforma iluminaram tambm as opes das elites. A copiosa
experincia das elites inglesas com governos parlamentares e com a disposio de alternar-
se no poder, tendiam a reforar os prospectos de Reforma. Contudo, Hegel nota tambm o
surgimento de uma nova classe de polticos profissionais, nesse contexto de interesses
corporativos privados e de corrupo poltica. Se no se produzissem mudanas
substantivas pr-reformas (provavelmente por causa do controle exercido pelas grandes
corporaes sobre a poltica eleitoral e o Parlamento) as elites de oposio radical
ganhariam em popularidade por perseguir, dogmaticamente, princpios abstratos.
74 O primeiro comit de 25 representantes, estabelecido em 17 de abril de 1815, deixou quase intactas as propostas de reforma e remeteram-nas Cmara de Estado. Ali, foram elas discutidas at fevereiro seguinte, sem aprovao ou veto. Pelo contrrio, foi formado um novo comit, maior, em 29 de fevereiro de 1816, apenas para gerar uma discusso complexa sobre quem, precisamente, detinha jurisdio. Depois que o outono chegou sem sinais de progresso, esse estado de coisas estacionou, aps a morte do rei Friederich I, de Wrttemberg, em 29 de outubro. O novo Regente formou uma nova comisso com as elites agrrias, da qual no emergiu nem aprovaes nem contra-propostas.
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Referindo-se anlise de Lord Wellington desses novi homines que vendem votos como
meio-de-vida, Hegel define os polticos profissionais em termos que antecipam a famosa
conferncia de Weber sobre a poltica como vocao. Porm, longe da nostalgia
conservadora de Wellington, Hegel enfatiza a possibilidade de que uma nova dinmica
competitiva pudesse emergir da nova constelao de polticos profissionais, das polticas
eleitorais e dos grandes interesses corporativos. A extenso do sufrgio e a realidade da
corrupo podiam produzir a substituio dos estadistas tradicionais ingleses por polticos
profissionais. Embora essas sejam apenas passagens, em seus comentrios polticos, Hegel
claramente antecipa os argumentos da teoria democrtica de elite, de que a competio
entre polticos profissionais pelos grupos de votantes, est no mago da realidade da
democracia nos tempos modernos.
Em suma, os comentrios polticos de Hegel fornecem uma srie de perspectivas
comparadas e hipteses empricas sobre a constituio do governo popular representativo,
aps as guerras napolenicas. Nesse sentido, seus comentrios continuam a seqncia de
conjunes crticas esboada na Filosofia da Histria, ao traar as implicaes da nova
conscincia de liberdade, que se propagou por toda a Europa, na esteira da Revoluo
Francesa. Hegel estabelece conexes claras entre desenvolvimentos internacionais e
domsticos, entre noes novas de direitos universais, a habilidade dos indivduos para
refletir, a capacidade das polticas eleitorais competitivas de produzir governncia efetiva e
as possibilidades das reivindicaes populares diretas de produzir mudana.
Embora os conhecimentos diversificados e complexos sobre a Revoluo Francesa
e no decorrer das trs dcadas que se seguiram meream mais ateno, a anlise
comparada que Hegel realizou desses eventos e das experincias nacionais europias
permanece como inovadora. A pesquisa recente tende a enfatizar as dimenses sociais e
culturais da mudana.75 Contudo, interpretaes amplas e anlises causais da Revoluo
Francesa so geralmente consistentes com a narrativa de Hegel, na Filosofia da Histria e
nos comentrios polticos.76
75 Como trabalhos recentes de reviso, ver: Lewis Gwynne, The French Revolution: Rethinking the Debate. New York: Routledge, 1993; Frank A. Kafker & James M. Laux, eds. The French Revolution: Conflicting Interpretations, Malabar, Fla: R. E. Krieger, 1989; e Colin Lucas, ed. Rewriting the French Revolution, New York: Oxford University Press, 1991.
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CONCLUSO
Este artigo procurou utilizar hipteses causais e perspectivas comparativas da
Filosofia da Histria, de Hegel, para compreender o carter poltico e o contedo
substantivo das conjunes crticas da democratizao, na histria da Europa Ocidental.
Ao tentar esclarecer as hipteses de Hegel e ao rever a evidncia emprica acumulada
desde suas anlises, este breve exerccio sugere que os conceitos de conjunes crticas e
path dependence possam ajudar a descrever as mudanas peridicas e sbitas que
reorganizam as relaes entre Estado e sociedade. Nestas relaes, as conjunes crticas
so raras, entretanto aglutinam fenmenos polticos comparveis que 1) so causa e
conseqncia de mudanas na conscincia popular de justia; 2) redefinem a democracia
remetendo-a a princpios bsicos; 3) so determinadas por fatores tipicamente polticos,
tais como negociaes, pactos e acordos; 4) compartilham de uma imediao e de uma
transparncia singulares, nas relaes entre Estado e sociedade. Esta concluso rev as
hipteses causais, as perspectivas comparativas e a evidncia histrica apresentadas neste
artigo.
Talvez a concluso mais importante deste exerccio seja que a democracia um
princpio no restrito apenas a determinado regime formal ou a um perodo histrico
particular. Ao contrrio, as conjunes crticas tm redefinido as relaes entre Estado e
sociedade na medida em que a transparncia, a imediao e o contedo substantivo das
reivindicaes populares diretas reformularam princpios democrticos. Os gregos antigos
criaram princpios democrticos atravs de simples regras randmicas de representao,
que entrelaaram-se com os vnculos tribais. Em Roma, os cristos formaram uma
comunidade baseada na aceitao universal da regra de ouro. Na Europa Medieval, os
reinados itinerantes colocavam os agentes reais in situ e no atrs das muralhas dos
castelos e das barreiras burocrticas, enquanto que hereges, reformadores urbanos, elites da
igreja e realeza atendiam s novas demandas populares de mudana do status quo. A
Reforma Protestante tentou inicialmente eliminar toda intermediao entre as comunidades
e Deus, criando-se ento as grandes religies nacionais, que definiram o primeiro sistema
de Estado Moderno na Europa. Finalmente, a Revoluo Francesa deu por obsoletas
antigas reivindicaes de legitimidade, lei e tradio, ao eliminar todas as idias e
instituies do passado que pudessem interferir com a relao direta entre cidado e
76 Talvez o mais influente estudo comparativo da Revoluo Francesa seja: Theda Skocpol, States and Social Revolutions, Cambridge: Cambridge University Press, 1979.
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governo. Em suma, essas conjunes crticas dispunham de uma transparncia e imediao
nicas, que ligavam os setores populares aos governantes e articulavam novas percepes
de justia substantiva baseada em princpios democrticos.
Outra concluso, que procuramos evidenciar nesta reviso histrica, que os
estudos de poltica comparada necessitariam ultrapassar a infeliz dicotomia, entre as teorias
das elites e as participativas, da democracia, que tem dominado esse campo por mais de
trs dcadas. Desde o trabalho de Schumpeter, as autodenominadas grandes correntes
tericas tm procurado restringir a significao da democracia e tentado focalizar a seleo
competitiva de elites como caracterstica essencial dela, na sociedade de massas.77 Em
oposio, os tericos da participao tm argumentado que a significao da democracia
no pode ser limitada e que mecanismos vrios da expanso da cidadania e de concesso
de maior poder sociedade no apenas incorporam melhor as tradies liberal e
democrtica, mas tambm permanecem vitais para a organizao da democracia
contempornea.78 Ambas as perspectivas contm virtudes. Entretanto, nem a limitao da
definio de democracia a eleies competitivas, nem os simples apelos a uma participao
maior, so suficientes para dar conta dos complexos problemas enfrentados por aqueles
que constroem governos representativos no mundo todo.
O colapso do Imprio Sovitico foi o ponto alto de uma srie de notveis
transies, a partir de governos militares e autoritrios, desde a dcada de 1970. Os
cientistas polticos enfrentam hoje uma quantidade indita de novos Estados nacionais e
um sistema internacional complexo, no mundo ps-transio e ps-guerra-fria. A anlise
comparada apresentada anteriormente sugere que certas redefinies, igualmente cruciais,
das relaes entre Estado e sociedade, no passado, podem fornecer conceitos, mtodos e
teorias para a anlise da mudana, nos dias de hoje. De fato, em vez de procurar encontrar
um s conceito ou uma explicao nica, os analistas de poltica comparada necessitam
mtodos e conceitos abertos, para compreender as novas redefinies regionais e nacionais
de governos de representao popular.
77 Para uma reviso da teoria democrtica por uma perspectiva auto-proclamada como central, ver: Sartori, Giovanni, Democratic Theory Revisited, Chatham: Chatham House, 1987. 78 Peter Bachrach, The Theory of Democratic Elitism. Boston: Little Brown, 1967; Carole Pateman, Participation and Democratic Theory. Cambridge: Cambridge University Press, 1970.
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Sem dvida, novas pesquisas seriam necessrias para melhorar a compreenso de
problemas clssicos, tais como as tenses entre democracia e mercado, mritos relativos
das instituies parlamentares e presidenciais, configurao do governo federal e unitrio,
problemas de organizao dos partidos e de utilizao dos meios de comunicao de
massa, impacto de regras eleitorais, papel das estratgias de campanha, para citar apenas
alguns problemas clssicos nas anlises comparadas sobre democracia.
Neste texto, procurou-se ainda evitar o problema do vis da escolha, atravs da
investigao sistemtica de relatos histricos diversos, sobre os cinco perodos analisados
pela Filosofia da Histria de Hegel.79 A esse respeito, a anlise precedente procurou
seguir as estratgias de Lustick e Collier para reduzir os riscos de selecionar textos que
sustentassem os argumentos de Hegel, aqueles que compartilhassem de pressupostos
subjacentes ocultos, sobre poltica e sociedade. Ao contrrio, este artigo submeteu os
argumentos de Hegel s evidncias empricas acumuladas desde sua poca, tanto as que
afirmam quanto as que negam seus argumentos. precisamente pela clareza dos
argumentos causais, na Filosofia da Histria, de Hegel, que se possibilita a organizao
da pesquisa em seqncias de conjunes crticas atravs da histria europia e no por
algum desconhecido vis subjacente, compartilhado por historiadores, cientistas polticos e
Hegel.
Pode a comparao entre conjunes crticas do passado fornecer novas
perspectivas sobre padres contemporneos de mudana? Embora mais anlises e
elaboraes conceituais ainda sejam necessrias, um argumento central deste artigo j pode
ser destacado: o conceito de conjunes crticas capaz de despertar ateno para as
notveis transies polticas contemporneas. Alm das precaues inerentes s anlises
comparadas de acontecimentos recentes, outros cuidados so requeridos para o emprego de
novos conceitos e mtodos, necessrios para se compreender os riscos e oportunidades da
poltica democrtica, em contextos regionais e nacionais diversos, deste fin-de-sicle ps-
transio. O conceito de conjunes crticas sugere que a criatividade poltica e no as
estruturas econmicas, sociais ou polticas determinar os desenvolvimentos, que as
demandas populares diretas por justia substantiva conduziro os eventos e que os
princpios democrticos retero tanto as problemticas dimenses do nivelamento social,
79 Quanto ao problema do vis de seleo no uso da historiografia pelos cientistas polticos, ver: Ian Lustick, History, Historiography, and Political Science: Multiple Historical Records and the Problem of Selection Bias, American Political Science Review, vol. 90, no. 3, september, 1996, pp. 605-618; e David Collier, Translating Quantitative Methods for Qualitative Researchers: The Case of Selection Bias American Political Science Review, vol. 89, no. 2, june 1995, pp. 461-5.
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quanto uma poderosa fora legitimadora nas relaes entre Estado e sociedade, por vias
que vo alm das eleies competitivas e do Estado de Direito.
A despeito de seu ttulo, a Filosofia da Histria um texto que sistematicamente
compara conjunes crticas com similaridades e diferenas de trajetrias nacionais
diversas. No h uma teoria geral da histria nos captulos substantivos da Filosofia da
Histria. H apenas a busca sistemtica por causa e efeito, durante as conjunes crticas
que deram forma histria do Estado e da regio. No por outro motivo que Carl
Friederich convoca os estudiosos para uma discusso alongada da Filosofia da Histria de
Hegel, sugerindo formulaes para novas perspectivas da teoria e da anlise da democracia
e das relaes entre Estado e sociedade de hoje.
Por fim, um comentrio se faz necessrio quanto ao aparente eurocentrismo desta
anlise e quanto s oportunidades para a anlise de conjunes crticas e path dependence,
em outros contextos nacionais e regionais. Embora este artigo tenha se concentrado na
seqncia de conjunes crticas que reformularam as relaes entre Estado e sociedade na
histria do noroeste da Europa, o conceito se presta investigao em outras regies. Por
exemplo, trajetrias, reconhecidamente bem estudadas, de desenvolvimentos na Amrica
Latina (definidas dentro do paradigma de desenvolvimento dependente) tambm foram
pontuados por momentos polticos de mudana. Durante tais momentos, desenvolvimentos
subjacentes na economia, sociedade e cultura foram reformulados. Isso significa dizer que
as conjunes crticas so experincias nacionais e regionais, que determinam situaes
bsicas de desenvolvimento dependente, emergindo dos enclaves, do controle nacional, do
populismo nacional e do investimento estrangeiro direto. Embora os autores das anlises
da dependncia apresentem seus conhecimentos na tradio da economia poltica e de uma
metodologia histrico-estrutural, a anlise dos momentos polticos que tornaram possvel a
certos pases da Amrica Latina alterar os termos de sua insero na economia mundial
sugere que o conceito de conjunes crticas seja compatvel com uma srie de tradies
tericas e metodolgicas. Da mesma forma, os notveis avanos dos historiadores sociais e
dos estudos que enfocam questes de raa, gnero e novas identidades, tambm parecem
cabveis na anlise de conjunes crticas. Em suma, por anlise da Europa e da Amrica
Latina no se pretende depreender a inexistncia de conjunes crticas em outras
civilizaes, por exemplo, orientais. Com efeito, estudos tanto recentes quanto clssicos
sobre relaes entre Estado e sociedade, de carter pr-europeu, na sia Central, China e
ndia sugerem que sbitos perodos de mudanas profundas podem igualmente caracterizar
suas respectivas experincias histricas.