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1 “A “conquista” teve dois lados”: uma análise sobre a atuação do SPI no sul da Bahia 1 Jurema Machado de A. Souza (UFRB e PINEB/UFBA) RESUMO Na Bahia, no início do século XX, não havia mais grupos ou comunidades indígenas reconhecidas deste modo pelo Estado. Entretanto, nas matas do sul e extremo-sul da Bahia, persistiam pequenos grupos com pouco ou nenhum contato, notadamente, nas bacias dos rios Gongoji, Cachoeira, Pardo e Jequitinhonha. Segundo relatórios do órgão indigenista oficial, esses grupos estavam ameaçados por doenças, invasões, maus tratos, fragilidades culturais, expansão da lavoura cacaueira, e, sobretudo, pela corrupção no próprio SPI. O objetivo desta comunicação é compreender a atuação do Serviço de Proteção aos Índios SPI junto à Reserva Caramuru-Catarina Paraguassu. Para tanto, parto da leitura de documentos produzidos tanto por índios e funcionários do órgão estatal, e que estão reunidos no acervo do Museu do Índio; e principalmente através da memória dos indígenas, mediante trechos de entrevistas e relatos biográficos. Palavras-chave: Índios, Reserva Caramuru Paraguassu, SPI A chegada do órgão indigenista à região O primeiro documento que trata da criação das bases para instalação de postos indígenas na região sul da Bahia datam de 1910, portanto, no mesmo ano da criação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILNT) 2 . Esse documento, de autoria de Pedro Maria Trompowsky Taulois, datado de 28 de dezembro de 1910, é acompanhado de um ofício endereçado ao Tenente-Coronel Cândido Rondon, onde o subscrevente afirma que elaborou o relatório baseado em informações verbais, e por isso, atesta a necessidade de fazer verificação in loco, e 1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN 2 Não irei descrever os objetivos centrais da criação do SPLINT, que posteriormente, em 1918, passará a chamar-se Serviço de Proteção aos Índios SPI. Tampouco irei desenvolver análises detalhadas sobre o caráter positivista e militar do órgão e a tutela, pois não é a finalidade desta comunicação. Isso está satisfatoriamente discutido em Souza Lima (1985, 1987, 1995, 2000); Pacheco de Oliveira (1988, 2006); Rocha Freire (1990, 2005) e outros.

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“A “conquista” teve dois lados”: uma análise sobre a atuação do SPI

no sul da Bahia1

Jurema Machado de A. Souza

(UFRB e PINEB/UFBA)

RESUMO

Na Bahia, no início do século XX, não havia mais grupos ou comunidades indígenas

reconhecidas deste modo pelo Estado. Entretanto, nas matas do sul e extremo-sul da

Bahia, persistiam pequenos grupos com pouco ou nenhum contato, notadamente, nas

bacias dos rios Gongoji, Cachoeira, Pardo e Jequitinhonha. Segundo relatórios do órgão

indigenista oficial, esses grupos estavam ameaçados por doenças, invasões, maus tratos,

fragilidades culturais, expansão da lavoura cacaueira, e, sobretudo, pela corrupção no

próprio SPI. O objetivo desta comunicação é compreender a atuação do Serviço de

Proteção aos Índios – SPI junto à Reserva Caramuru-Catarina Paraguassu. Para tanto,

parto da leitura de documentos produzidos tanto por índios e funcionários do órgão

estatal, e que estão reunidos no acervo do Museu do Índio; e principalmente através da

memória dos indígenas, mediante trechos de entrevistas e relatos biográficos.

Palavras-chave: Índios, Reserva Caramuru Paraguassu, SPI

A chegada do órgão indigenista à região

O primeiro documento que trata da criação das bases para instalação de postos

indígenas na região sul da Bahia datam de 1910, portanto, no mesmo ano da criação do

Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILNT) 2

.

Esse documento, de autoria de Pedro Maria Trompowsky Taulois, datado de 28 de

dezembro de 1910, é acompanhado de um ofício endereçado ao Tenente-Coronel

Cândido Rondon, onde o subscrevente afirma que elaborou o relatório baseado em

informações verbais, e por isso, atesta a necessidade de fazer verificação in loco, e

1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de

agosto de 2014, Natal/RN 2 Não irei descrever os objetivos centrais da criação do SPLINT, que posteriormente, em 1918, passará a

chamar-se Serviço de Proteção aos Índios – SPI. Tampouco irei desenvolver análises detalhadas sobre o

caráter positivista e militar do órgão e a tutela, pois não é a finalidade desta comunicação. Isso está

satisfatoriamente discutido em Souza Lima (1985, 1987, 1995, 2000); Pacheco de Oliveira (1988, 2006);

Rocha Freire (1990, 2005) e outros.

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confirma que está naquele dia seguindo para o Rio de Contas. Outrossim, a primeira

providência tomada, como refere o documento, foi a instalação da Inspetoria no

segundo andar de um prédio, de número 7, localizado na Rua Chile, centro de Salvador.

Uma vez instalada, representantes da Inspetoria partem para o sul da Bahia.

Estava previsto que os trabalhos se iniciariam pelo Rio Gongogi, entretanto, o inspetor

recebe a notícia de período de cheia neste rio, bem como maior dificuldade de contato

com os índios em função da tensa relação ali existente entre estes e o “civilizador”. Isso

constatado, optam por seguir viagem através do Rio Jequié, pois lhe fora informado de

que ali era possível formar uma frente de trabalho, pois haveria uma harmoniosa relação

entre índios e nacionais.

O mesmo informante o alertou que entre o alto Gongogi e o Jequitinhonha

“existem três tribus, além de um Kilombo de negros que dizem existir nos fundos do

Camamú”. Taulois segue afirmando que a situação dos índios que já era dolorosa,

tendia a piorar em função da eminente construção de uma estrada de ferro partindo da

baía de Camamú até o Salto Grande do Jequitinhonha. E pondera que o Estado da Bahia

fez concessão de terras devolutas (12 legoas por 4 legoas) para o cidadão Enrique J.

Conill, responsável pela construção da estrada de ferro, e outras terras poderiam lhe ser

doadas, caso o contratante ou a empresa imprimisse “colonização e notório

aproveitamento das terras”. O subscrevente alerta que não será possível o Estado da

Bahia voltar atrás na construção da estrada de ferro, entretanto, ele acredita ser possível

conseguir alguma coisa em benefício dos índios, pois se o Governo do Estado fizer a

doação ao Governo Federal, a empresa não poderá reclamar mais por terras, pois estas

não serão mais devolutas, e sim “reservadas aos índios”. Taulois conclui:

O assumpto a ser tratado, julgo que deverá ser feito directamente

por essa Directoria, que mais facilmente conseguirá uma solução

favorável... porque julgo que o problema ficará dentro em breve

mais complicado do que se encontra presentemente, visto como os

índios serão abatidos por todos os lados sem recurso algum, salvo

uma luta terrível da qual serão aniquilidos; e será extremamente

doloroso se esta inspetoria tiver que assistir ao massacre dos índios,

sem que coisa alguma possa fazer por elles3

3 A documentação relativa ao Museu do Índio foi recolhida por mim e pela pesquisadora Ana Cláudia

Gomes de Souza, em julho de 2012, em ocasião das atividades de pesquisa documental relativas ao

projeto de pesquisa e extensão intitulado “Índios da Reserva Caramuru-Paraguassu na

Contemporaneidade (1926-presente): parentesco, território, identidade e memória mediante o uso de

tecnologias sociais”, desenvolvido no âmbito do Programa de Pesquisas sobre Povos Indígenas do

Nordeste Brasileiro PINEB/UFBA. Um dos objetivos do projeto foi a reunião da bibliografia (etnológica,

histórico-documental e jornalística) produzida, no período compreendido entre 1926 até o ano de 2012,

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Mais adiante, apresenta os dados colhidos junto ao Sr. Apolinário Front,

delegado de Terras e Minas do 15º. Distrito sobre a localização de índios Pataxó e

Mongoyó, “uns no affluente do Rio de Contas de nome Grungugy e seus affluentes digo

tributários que nascem ao lado norte da serra deste nome e nas vertentes do Rio

Cachoeira, ao sul da Serra Itararacá e mais suas cabeceiras...”. Índios “Machacaris”

viveriam nas cabeceiras dos rios Jucuru e Itanhém. O relatório traz ainda referência de

duas outras etnias, mas, infelizmente, ininteligíveis no documento. Ao total seriam 200

a 300 famílias de Mongoyós e Patachós; 60 a 80 Machacaris, o que contabilizaria cerca

de “1.800 almas”.

Em relatório de 1938, Curt Nimuendaju supunha existir ainda outro pequeno

bando Pataxó de 7 indivíduos, que habitava, em estado selvagem, o rio Guabira, que

desemboca três léguas abaixo do Salto Grande, no rio Jequitinhonha pela banda do

Norte, mas desses há quatro anos não se tinha mais notícias. Outro bando habitava no

baixo rio Gongogi, e havia sido, gradativamente, exterminado pelos fazendeiros

vizinhos. Em 1938, só restava do grupo um único homem que, quatro vezes capturado

pelos funcionários do Posto Paraguassu, fugiu três vezes antes de falecer (Nimuendaju

1938).

Dois outros documentos, infelizmente sem data, tratam das instruções para

instalação dos postos no sul da Bahia, no Rio Pardo, Gongogi e Rio de Contas.

Documentos que referem às instruções e normativas quanto à “conquista e pacificação

dos índios”, o primeiro descreve a localização do que podemos considerar o primeiro

posto de Atração no Rio Pardo.

Esses documentos são especialmente relevantes, pois apontam para a

preocupação do recém-criado órgão indigenista para esta região, desde a sua fundação.

Do mesmo modo, fornecem insumos para verificarmos como a questão dos índios

considerados não-contactados significava não-civilizados, pois, notadamente, não

viviam em completo isolamento. De fato, a intenção, como veremos no decorrer do

texto, era transformá-los em trabalhadores nacionais. Por outro lado, a criação do SPI,

em 1910, teria ensejado um espaço de entendimento, em que pese precário, com os

sobre os Índios naquela reserva. Outrossim, os depoimentos aqui apresentados, bem como grande parte

das análises foram ensejadas no bojo das reuniões e atividades relativas a esse mesmo projeto. Portanto,

devo créditos e agradecimentos a Maria Rosário Carvalho, coordenadora do projeto, aos colegas Ana

Cláudia Gomes de Souza, Hugo Prudente e Franklin Carvalho, e a todos os bolsistas e pesquisadores

locais.

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Estados para a reintegração da posse dos territórios indígenas (Dantas, Sampaio e

Carvalho, 1992, p. 452).

A intenção do órgão indigenista em adquirir terras devolutas do Estado da Bahia,

aquelas ainda não tomadas pela lavoura cacaueira, ou pela estrada de ferro, como refere

Taulois, nos remete à seguinte questão: eram essas terras realmente devolutas? Ou se

tratava de um grande território tradicional ocupado ininterruptamente por distintos

grupos, mas agora à mercê de uma exploração mais ostensiva? A Lei 198, de

21/08/1887 havia extinguido os aldeamentos indígenas no Estado. A Constituição

Republicana de 1891 determinou a transferência das terras dos aldeamentos para os

Estados (Carneiro da Cunha, 1987, p. 74). Já em 1910, ou seja 20 anos após essa

transferência, o órgão indigenista, mas não somente ele, atesta a existência de índios em

todo o perímetro do que consideramos baixo-sul, sul e extremo sul da Bahia. Ou seja, o

próprio poder público se contradiz naquilo que pretendia confirmar: a extinção dos

índios. Não obstante os seus aldeamentos extintos, permanecem em toda a extensão da

região, e, segundo os documentos atestam, apesar de todas as admoestações, os

indivíduos parecem gozar de reconhecimento quanto à sua condição de indígenas. Não

somente aqueles considerados não-contactados, mas, também, aqueles aldeados em

épocas anteriores. Lembremos pois a referência sobre índios que vivem harmonizados

com nacionais no Rio Jequié. Diante dessas informações, podemos sugerir que talvez

esses índios sejam aqueles que migraram do aldeamento de Nossa Senhora de Nazareth

da Pedra Branca, no recôncavo sul da Bahia, os chamados Kariri-Sapuyá, que além da

experiência de repressão a quilombos (Carvalho, 1995, p. 274), após o deslocamento do

sul do recôncavo teriam se instalado nas terras do também extinto aldeamento de Santa

Rosa, localizado no município de Jequié4. É também para a Reserva Caramuru-

Paraguassu que esses mesmos Kariri-Sapuyá serão conduzidos, em 1938, pelo etnólogo

Curt Nimuendaju.

Entretanto, a classificação civilizado x selvagem, logo será substituída por outra

díade puro x misturado, e o que aparentava ser alguma vantagem, ser “civilizado”, logo

4 Em maio de 2013, eu, Maria Rosário Carvalho, José Augusto Sampaio, Hugo Prudente e Julie Lourau,

todos antropólogos, e mais o arqueólogo Luydy Fernandes, realizamos uma viagem de prospecção na

tentativa de percorrer o suposto caminho trilhado pelos Kariri-Sapuyá da saída de Pedra Branca, no

Recôncavo sul da Bahia, até a Reserva Caramuru-Paraguassu. Neste sentido, fizemos paradas, além de

Pedra Branca, na atual Faz. Santa Rosa, município de Jequié, onde supomos ter sido a aldeia Santa Rosa.

Todo o percurso foi feito dentro de fazendas de particulares e, muitas vezes, sem estradas, margeando a

estrada de ferro, ou em cima dela, já que ela não existe mais. De lá, rumamos para Poções, onde os Kariri-

Sapuyá residiram na localidade de São Bento, e onde Nimuendajú os teria encontrado.

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se revestirá da mais cruel forma de ação do Estado: a opressão e as distintas maneiras de

assistência.

A criação da Reserva Caramuru-Catarina Paraguassu e os distintos grupos:

entre puros e misturados

Criada oficialmente em 1926 em chamadas terras devolutas do Estado da Bahia,

localizadas no município de Itabuna, e próximas ao povoado de Santa Rosa, atualmente

a cidade de Pau Brasil, mais ao sul, e mais ao norte, nas proximidades do povoado de

Itajú, hoje cidade de Itajú do Colônia, a Reserva Indígena Caramuru-Catarina

Paraguassu reuniu em um dos seus postos, o Caramuru, esses bandos ainda não

contactados. Registros etnológicos mais recentes como os de Aracy Lopes da Silva e

Nássaro Nasser (1984), dão conta que esses bandos eram majoritariamente das etnias

Pataxó, Hãhãhãi, e Baenã; posteriormente, e seguindo reconfiguração espacial, abrigou

no Posto Paraguassu outros grupos oriundos de aldeamentos extintos, como os supra-

referidos Kariri-Sapuyá, os Kamakã, Guerén e Kiriri. O texto da lei fala explicitamente

em terras a serem reservadas aos Tupinambá e Pataxó, ou outros... Todavia, as fontes

documentais e a memória dos indígenas não nos permite identificar quais indivíduos

daqueles a quem se atribui “serem pegados no mato” seriam oriundos da etnia

Tupinambá.

Tanto na documentação relativa ao Museu do índio, quanto na memória dos

índios prevalecem as seguintes personagens. Aqueles que “vieram do mato”: Itatico,

Bute, Micô, Natico, Mimequi, Ketão, Dedé Pataxó, Titiá, Honrak, Barretá, Micô,

Batará, Rosalina, Tamani etc. E como aqueles que lutaram pela retomadas das terras em

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tempos mais recentes, Samado, Bite, Maura, Ursulino, Saracura, Nailton. Quando os

indagamos sobre as etnias dos índios considerados puros, do mato, invariavelmente nos

respondem que eles eram Pataxó, Hãhãhãi ou Baenã. Contemporaneamente, às famílias

de Tupinambá residentes na aldeia é atribuída a origem de Olivença.

Como podemos perceber a própria configuração espacial da Reserva, que foi

aquela que se consolidou até meados dos anos 50, primou por estabelecer uma severa

linha divisória entre índios puros, os pegados no mato, e os impuros ou caboclos,

aqueles oriundos de antigos aldeamentos. A categoria índios legítimos ou índios puros

foi-lhes fortemente inculcada por alguns “encarregados” dos Postos que estabeleceram,

assim, de fato, uma prática classificatória e diversionista.

A percepção destes sobre a história do posto pode ser igualmente distinta, já que

experimentaram experiências diferentes. Os chamados puros eram também vistos como

selvagens, agressivos, arredios. Segundo relatos, eram “capturados no mato feito bicho,

vinham amarrados pra sede”, a esses eram destinadas, em que pese precária, a total

assistência do posto, como remédios e mantimentos. A percepção reveste-se, pois, de

um atributo simultaneamente positivo – puro, e não mestiço, genericamente referido

como caboclo – e negativo, à medida que não era pessoa e, portanto, não tinha nome ou

apenas trazia o nome da mata.

Um documento de recenseamento, de 1957, elaborado pelo então encarregado,

José Brasileiro, traz a seguinte observação: “o modelo para o censo indígena não

esclarece se [os] índios mestiços, produto de vários cruzamentos, devem ser contados,

embora os traços que lhes restem lembrem pouco a sua ascendência. Aqui demos apenas

o número dos índios realmente puros, oriundos da selva, onde foram conquistados o seu

produto [descendente], que reúne um total de 17 e além desses, 14 crianças que

resultaram da mistura entre índio puro com mulher civilizada e vice-versa”. Nesse censo

foram contabilizados 26 pataxós e 5 baenãs. Outros documentos de recensseamento de

anos subsequentes obedecem a mesma lógica, em um deles chega a constar “o

Paraguassu é um caso teórico, não existe na prática em função do índio”. Esta assertiva

pode dizer respeito tanto ao fato de lá estarem localizados os caboclos, ou os

misturados, quanto ao fato de nesta porção terem se concentrado, embora em forma de

pequenas propriedades ou lotes, um grade número de terras arrendadas e invadidas.

Em geral, os puros residiam na porção norte da reserva, posto Caramuru, numa

espécie de vila, local onde havia o galpão para onde eram conduzidos os índios

capturados pelo grupo de atração. A imagem a seguir é um desenho elaborado pelos

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indígenas Wagner Ramos e Hemersson Dantas, na ocasião em que foram pesquisadores

locais do projeto “Os Índios da Reserva Caramuru-Paraguassu na Contemporaneidade

(1926-presente): parentesco, território, identidade e memória mediante o uso de

tecnologias sociais”. O desenho é uma tentativa de representação da “vila de índios”,

com os principais locais referenciados pela memória dos mais velhos.

Esse local, na memória dos índios, representa momentos de dor e sofrimento,

mas, contraditoriamente, de proteção.

Os índios não podiam falar a sua língua materna, originária pra os

seus filhos, porque se o chefe de posto e a sua equipe visse, aquele

índio era disciplinado. Como? Por isso que tem a história do pé de

eucalipto, quando via que o índio tava falando o linguajar pra seu

filho, “amarre no pé de eucalipto, deixa ele lá o dia todo, sem comer,

sem beber” e colocava lá um punhado de quê? Quando não era o fel,

era o sal, e ficava eles lá amarrado no pé de eucalipto, abaixo de uma

sol tremendo. Wagner Ramos. (Carvalho et al, 2012)

.... eu não fui criada com uma mãe só, eu fui criada através de chefe de

posto, parteira que veio antigamente, rezadeira de antigamente, minha

criação, minha cultura foi toda confundida, com muita coisa. Eu não

sabia se eu pegava a minha linguagem, eu tinha vergonha, que eles

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diziam que era língua de bicho, eu não sabia se eu pegava a língua da

parteira, que era uma negra, eu não sabia se eu pegava a cultura da

rezadeira, da parteira, então nosso povo lá da Bahetá foi criado assim

dessa maneira. Chefe de posto orientando pra outro jeito, mulher de

chefe de posto que dizia: “Vocês têm que aprender falar o português,

saber trabalhar, que vocês não têm mais terra, e o governo não vai

sustentar índio mais não, índio vai ter que trabalhar no Estado”.

Maura Titiá, Baenã. (Carvalho et al, 2012)

Nos tempos do SPI que era bom, não faltava nada pra nós, eu lembro,

eu era pequenininha. Aqui tinha Laticínio, os índios tinha seu gado,

tinha o chefe pra não deixar nada acontecer aos índios, vinha cesta

básica, não faltava nada. Hoje é essa pobreza, a FUNAI não quer dar

nada aos índios... Maria José, Zezé.

Tanto Wagner, como Maura apresentam uma visão negativa e sofrida da gestão

do SPI, enquanto Maria José ressalta a importância da assistência, da tutela, e imagina

um período de certa fartura e riqueza. O pai de Maria José, Natico, era “índio puro”, sua

família sempre viveu no posto Caramuru. Talvez possamos afirmar que a memória de

Zezé é restritiva e selecionou o que era considerado positivo, pois documentos do

acervo do Museu do Índio, bem como as trajetórias de vida de tantos outros indígenas,

revelam a forma prematura como seu pai, mas também muitos outros, morreram de

forma violente e prematura. Natico faleceu em 1955, aos 47 anos. Em 1958, o

encarregado do posto, José Brasileiro, solicita à Diretoria que “os filhos menores de

Itatico e Natico fossem internados na capital...”. Itatico, por seu turno, morreu em 1956,

aos 50 anos, quando, embriagado, teria caído da carroceria de um caminhão.

Os chamados índios puros, invariavelmente, permaneciam com os nomes do

mato: Natico, Itatico, Honrak, Memiqui, Ketão, Bute. Salvo Rosalina, índia Baenã, mãe

de Maura Titiá. “A essa o chefe deu nome de brasileiro pois ela se negou a falar”. Já às

crianças, não era permitido que os pais nomeassem: “trazia um padre da cidade e botava

pra batizar”. Assim foram, por exemplo, batizados José Bute (filho da Pataxó Bute com

um não-índio), Maura (filha de Rosalina, Baenã, com Titiá (Hãhãhãi), Maria José Filha

e Jorge Filho (filhos de Natico, Hãhãhãi com a não-índia, Isabel). Natico, por sua vez,

antes de unir-se a Isabel, juntou-se a Bute e tiveram Batará. José Bute não se auto-

incluía entre os “índios puros”, antes enfatizando ser filho de mãe indígena e pai não

indígena desconhecido, ao passo que, para ele, o seu irmão Batará, o segundo filho da

mãe, era/é índio puro. Contextualizemos melhor a sua história. Ele nasceu no arraial

Pina, que se tornaria, à época, um dos mais promissores distritos de Itabuna, sob o

topônimo Jussari, onde a mãe, Bute, pataxó hãhãhãi, foi “pegada no mato”, fugindo do

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incêndio de uma roça, e criada por uma família local, até que o Posto a recolheu e ao

filho primogênito, igualmente designado Bute. Após o seu nascimento, a mãe se uniu ao

“índio puro” Natico e concebeu o segundo filho, Batará. Bute morre precocemente e

então Natico casa-se com Isabel, com quem terá sete outros filhos. Destes 7, Maria José,

Maria dos Anjos, Henrique, Jorge, todos terão o sobrenome “Filho” ou “Filha”,

atribuídos pelo chefe de posto.

Batará Bute, demonstrou, ao contrário do irmão, José Bute, desinteresse pela

vida como vaqueiro, no posto, e terminou “sendo levado” por um dos encarregados do

SPI para a sede geral, no Rio de Janeiro, para ser “internado em um colégio”. Em 1951,

José Bute foi também levado ao Rio de Janeiro, e ali ao colégio – provavelmente uma

escola profissionalizante -- onde Batará se encontrava. Mantiveram correspondência,

em um determinado período, no decorrer do qual Bute lhe enviou o dinheiro resultante

da venda do gado que ele possuía no posto. Batará, ao acusar o recebimento, comentou

que instalaria uma oficina em Bauru, pois aprendera o ofício de mecânico. José Bute

afirma não ter tido mais notícias do irmão.

Um ofício assinado pelo encarregado José Brasileiro, em 1958, solicita que

sejam cortadas as despesas com Dedé, Mimequi, e filhos de Itatico e Natico. Segundo o

argumento, “Dedé pode trabalhar mas prefere viver na vadiagem”; Mimequi seria

casada com um não-índio e por isso não precisaria da renda. Já as crianças deveriam ser

“afastadas da convivência perniciosa”. Como mencionado acima, o pedido era para que

fossem internados na capital. A resposta à solicitação do encarregado veio rápida e

positiva. Às crianças foi recomendado que lhes desse destino em cidades próximas,

acatando o internamento.

Maura Titiá, aos oito anos, foi retirada da aldeia e conduzida para Itabuna para

trabalhar em casa de família. Primas suas foram também deslocadas para Salvador, para

Ilhéus, algumas das quais nunca retornaram. Essa era uma prática muito comum à

época, quando certos encarregados dos postos indígenas sentiam-se à vontade para

dispor das crianças indígenas, utilizando-se da sua força de trabalho ou alienando-a para

outrem, à guisa, muitas vezes, de troca de favores. Ela diz que mulheres procedentes do

Rio de Janeiro em visita aos Postos escolhiam as índias que queriam, indiferentes às

reclamações e súplicas dos pais.

Esses, muitos não voltou! Levaram Iraci, Batará, que é um irmão de

Zé Bute... levaram pro Rio de Janeiro e esses não voltaram mais.

Nunca deu notícia. Não se sabe o destino. Tem Teresinha, Telvina,

que é irmã de Pomboca, minhas primas, também sumiram... Teve

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minha irmã, Maria Preta, que mandaram pra São Paulo, e voltou

porque ela veio fugida, pedindo carona. Ela sofreu muito, não

gostava nem de contar! ela tinha um registro diferente da minha

aldeia, foi o patrão lá que registrou pra ela poder passar lá em São

Paulo. É muita, é muita história. Eu tenho um irmão que veio do

mato, no braço da minha mãe, quem criou foi Zé Brasileiro mais seu

Sílvio [encarregados do Posto Indígena]. Quando ele já tava rapaz,

ele pegou uma briga com o chefe de posto, o chefe de posto botou ele

pra correr da aldeia, sumiu na época, tinha uns nove anos, dessa

sumida ele não apareceu mais nunca. Esse veio do mato. Isso foi em

sessenta [1960] por aí.

Tanto Dedé, quanto Mimequi, teriam destinos trágicos e poucos explicados. Ele

teria sido levado preso ao presídio Krenak, onde desapareceu. E ela matou o marido

não-índio, foi presa e nunca mais se teve notícias. Pomboca, seu filho, que reside hoje

na chamada aldeia Bahetá, onde era localizado o posto caramuru, nega-se a falar sobre o

ocorrido com sua mãe. O assassinato do marido não- índio parece reforçar a

“personalidade selvagem” que os índios atribuem a Mimequi: “era índia braba, virou

onça”. Ketão, a índia mais velha à época também teria virado onça.

É ponto comum entre eles que a criação da reserva, especialmente para os

recém-contactados, significou a circunscrição territorial, uma sedentarização forçada,

alterando de forma drástica seus modos de pensar e agir, e que passaram a viver sob o

julgo dos brancos. Para os “chegados”, ou seja, os grupos provenientes de aldeamentos

extintos, a reserva significava a possibilidade de se fixarem de forma mais positiva, já

que vinham há décadas deambulando sem rumo, com paradas incertas. Para estes, após

comprovação de ascendência indígena, lhes era destinado um pedaço de terra para que

pudessem cultivar e dalí retirar seu sustento. Todavia, foram estes que abriram as matas

e fizeram caminhos que interligavam as distintas regiões da reserva, Córrego do Mundo

Novo, Ourinho, Toucinho, Serra das Alegrias, Serra da Bananeira, etc.

Segundo José Bute, que também foi funcionário do posto5, “os puro não

misturava com eles [caboclos] não. E aí a área foi aparecendo caboco, registrando

índio... Sei que encheu! De Olivença, todo canto apareceu índio. Ficava lá dentro do

posto: -- arranja uma área de terra! Dava: tome! Vai tomar conta lá pra baixo se

quisesse. Que o posto só dava mesmo alimentação aos índio legítimo, os puro”.6

5 Ofício de outubro de 1960 relaciona os servidores lotados no posto indígena. Há a menção a José Bute,

que “fora admitido em 1945 na função de aprendiz-índio” 6 Depoimento concedido a Hugo Prudente, pesquisador do PINEB. (Relatório do Projeto “Índios da

Reserva Caramuru-Paraguassu na Contemporaneidade (1926-presente): parentesco, território, identidade

e memória mediante o uso de tecnologias sociais”

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Justina, índia Kariri-Sapuyá, que chegou à Reserva aos 12 anos, provavelmente

em 1938, juntamente com um grupo formado por outros Kariri-Sapuyá, a quem a

chegada na reserva é atribuída a Curt Nimuendaju, afirma que no dia da chegada

“passaram pra falar com o chefe, ele mandou ir para os lados do Toucinho, pra nós abrir

a mata e fazer nossas palhoças. Foi uma trabalheira”. Sobre isso, Maura Titiá completa:

O chefe trazia, cadastrava os índio, e botava nas localidade. Como os

índio que veio de fora era mais... já sabia derrubar de machado, sabia

labutar com ferramenta, eles botavam aquele grupo de índio naquela

localidade: “ -- aqui você vai trabalhar pra sua família”. Aí os índio

veio derrubando as mata e abrindo... Discriminavam. Que até o

próprio chefe do SPI na época, ele discriminava o próprio índio,

porque eles achava que o índio verdadeiro é aqueles que veio do

mato, a partir dos índio que eles chamava de caboco, eles achava que

não era mais índio, podia ser escravo, que muitos deles aí foi

escravo... Muitos desses índios que vieram de fora foi escravo no

tempo do SPI. E muitos que vivia aqui pra redondeza, também,

ganhava terra, mas ficava sendo escravo, o chefe de posto fazia o que

queria. Quando ele resolvia negociar aquela terra que ele deu ao

próprio índio pra morar com a família, ele fazia tudo pra negociar, aí

tirava o índio e botava um posseiro, arrendava, era um tal de

arrendamento. Maura Titiá (Oficina Cartografia, janeiro de 2012).

Segundo Justina, Curt Nimuendaju os acompanhou andando e montado, e trazia

um baú cheio de presentes, de dentro do qual retirou um pente para ofertar-lhe.

Nimuendaju permaneceu na Reserva Caramuru-Paraguassu de 22 de setembro a

28 de novembro de 1938, quando observou o estado de abandono em que ela se

encontrava e que teria ensejado sua intrusão por parte da população regional

(Nimuendaju 1938). “Dos Kariri-Sapuyá aí recém-fixados, que ele também designava

“índios de São Bento”, ele registrou que não conservavam quaisquer vestígios da língua

original, tampouco qualquer “particularidade tribal”. Em contrapartida, teriam

desenvolvido, apesar ou devido à miscigenação, um profundo sentimento de divisão

étnica, a humanidade sendo distinguida entre “nós”, enfeixado pelos índios,

independentemente da afiliação lingüística e étnica, e os “outros”, os “contrários” (ib.8).

O seu deslocamento para o sul da Bahia não teria alterado positivamente o sentimento

de desconforto urdido ao longo das sucessivas migrações” (Carvalho e Souza, 2005.

Enciclopédia dos Povos Indígenas no Brasil. Instituto Socioambiental).

Finalmente, para os indígenas em contato recente e intermitente, teria ocorrido a

incorporação em um contexto colonial sob a forma de um aparato político-

administrativo que representa o Estado; para os grupos provenientes dos aldeamentos

Page 12: conquista” teve dois lados”: uma análise sobre a atuação do SPI no

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extintos significou uma segunda incorporação. Para uns e outros, a circunscrição

territorial instaura novas e decisivas relações às quais deverão se subjugar. Para João

Pacheco de Oliveira, “a atribuição a uma sociedade de uma base territorial fixa se

constitui em um ponto-chave para a apreensão das mudanças por que ela passa, isso

afetando profundamente o funcionamento das suas instituições e a significação de suas

manifestações culturais. Nesse sentido, a noção de territorialização é definida como um

processo de reorganização social que implica: 1) a criação de uma nova unidade

sociocultural mediante o estabelecimento de uma identidade étnica diferenciadora; 2) a

constituição de mecanismos políticos especializados; 3) a redefinição do controle social

sobre os recursos ambientais; 4) a reelaboração da cultura e da relação com o passado”

(OLIVEIRA, 1998, p. 55).

Souza Lima (2011) destaca o modo como “o status jurídico de índio foi pensado

sob o enquadre do evolucionismo presente em todos os matizes da imaginação política

dos finais do século XIX e inícios do XX... Tal status foi de fato e de direito

instrumento no processo de integração das populações indígenas a uma comunidade

política representada como nacional: a atribuição da indianidade seria a via de acesso e

forma intermediária do cumprimento de um projeto de extinção dos povos nativos

enquanto entidades discretas, dotadas de uma historicidade diferencial e de auto-

determinação política... O que se pretendia era transformar os indígenas em

trabalhadores rurais, e não matá-los”. (Ibid. p. 209, 210). No caso emblemático do Posto

Paraguassu parece que a maioria dos índios não cumpriu a essa expectativa, e foram

mortos e abandonados à própria sorte. A ação fraternal e a tutela não operaram neste

caso, manchando de sangue a história de um dos maiores símbolos do nacionalismo

brasileiro.

Os arrendamentos e a invasão das terras da Reserva

Sob argumento da ineficiência da gestão do SPI e do reduzido número de

indígenas no Posto, atestada pelos recenseamentos que insistiam em contabilizar

somente os chamados índios puros, a partir da década de 30 do século XX, as terras da

referida reserva começam a ser alvo da cobiça de grandes fazendeiros, ao mesmo

tempo, em que pequenos lotes nas suas margens começam a ser arrendados a não-índios

pelo próprio SPI. Após sérias e violentas investidas, a quase totalidade das terras da

reserva foi invadida, o que culminou com a quase total expulsão dos índios.

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13

A Reserva Caramuru-Paraguassu é uma das terras indígenas com um dos

maiores acervos documentais do período do SPI. Esta farta documentação é rica em

informações institucionais sobre os mais variados assuntos, que vão desde o

recenseamento da população indígena residente no posto, formulários de registro de

óbitos e nascimentos, a relatórios dos chefes de posto, recibos de arrendatários e outros

documentos que registram a relação da comunidade indígena com as instâncias estatais

desse período.

Dentro da lógica constituída de patrimônio indígena, o posto Caramuru, durante

muitos anos, teve que fomentar e gerir renda para a sua sobrevivência. Assim eram

elaborados, mensalmente, balancetes sobre a movimentação da renda do posto, com

especificações sobre receita, despesas totais. Operando dentro dessa lógica

mercantilista, os arrendamentos no P.I.C.P. buscavam apresentar-se como uma solução

mediadora de conflitos agrários na região de Itabuna/BA (Museu do Índio, 2002, p.

377).

Em novembro de 1957, o encarregado do posto recebeu um ofício do Diretor

José Luís Guedes, onde estava descrita “a obrigação de cada posto indígena em

promover e desenvolver suas atividades em termos da utilização do patrimônio

indígena, empregando, para tal, de preferência, o braço indígena, como fator decisivo de

aculturação”. Em 1957, os arrendamentos das terras da reserva já corriam soltos, e eram

sérios os problemas enfrentados, tais como falta de pagamento e o avançar nas terras

por parte de arrendatários.

Como atesta Guimarães de Sá (2002), no relatório de conclusão dos trabalhos de

demarcação do posto, o engenheiro Alfredo Amorim Coelho, fica visível que tal

processo foi acordado entre o SPI e o Governo do Estado da Bahia, “já prevendo a

proposta de arrendamento das terras do posto como uma forma de solução mediadora

para os conflitos locais” (Museu do Índio/FUNAI, 2002, p.377).

Em Memorial apresentado em 13 de janeiro de 1933, ao Interventor Federal

Juracy Magalhães, por negociantes e lavradores do município de Itabuna, são

apresentadas várias razões acerca da ineficiência do funcionamento do “Posto Indígena

Catarina Paraguassu” como fundamento para a extinção da Reserva (Memorial ao

Interventor Federal Juracy Magalhães, 1933).

O argumento utilizado para tentar demonstrar a ineficiência do Posto do SPI é a

sua proximidade da cidade e das diversas zonas habitadas, em decorrência do que não

haveria mais índios a catequizar. Os signatários utilizam como prova para tal argumento

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o fato de no intervalo compreendido entre 1926-1933 “terem sido pegados apenas 29

índios, entre crianças, mulheres e homens, conforme a escrituração do próprio PI. Em

tempos remotos existiram índios a catequizar naquela zona, porém com a grande

entrada de habitantes nossos em razão da expansão da lavoura e da pecuária, os índios –

os poucos existentes – foram se retirando e desaparecendo dali, não havendo, portanto,

necessidade de despesas com um PI” (MEMORIAL, 1933). Finalmente, pede ao

interventor as providências para a prova das alegações apresentadas e, configurando-se

a veracidade, “seja supresso o posto indígena e entregue as suas terras ao povo

trabalhador deste município, como premio ao seu esforço já tão bem comprovado,

pagando o que for de lei”. (Memorial, 1933).

Mesmo não acatando o pedido, a demarcação não compreende todas as 50

leguas em quadra inicialmente reservadas, e muitos eventos marcam esse período. Um

dos exemplos mais emblemáticos é a chamada “Revolta do Posto”, ou a Revolta de

Fontes”. Em 1936, a Reserva Caramuru-Paraguassu foi alvo de grande repressão

policial decorrente da resistência do então encarregado do SPI na Bahia e funcionário

do posto desde a sua fundação, Telésforo Martins Fontes, à tentativa, por parte de

engenheiros e posseiros invasores, de procederam a medições na região do rio Pardo, a

fim de requerem títulos de propriedade ao Estado. Fontes apreendeu os instrumentos de

medição e comunicou o fato aos seus superiores, sendo, pouco depois, acusado, por

oficiais da PM do Estado da Bahia, de estar utilizando, com fins subversivos, armas que

lhe haviam sido encaminhadas, pela própria PM, para assegurar a integridade da

Reserva. O fato foi revestido de tal gravidade que o governador-interventor do Estado

da Bahia, o então capitão Juracy Magalhães, confiou o comando da força repressiva ao

Cel. Liberato de Carvalho, que, significativamente, atuara na campanha contra

Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. Os alvos preferenciais da repressão foram os

pequenos arrendatários, por terem se recusado a abandonar suas terras para os

fazendeiros e pouco mais de três dezenas de índios, encontrados em precária situação de

saúde, acometidos, inclusive, de leishmaniose (cf.depoimento reservado do Cel.

Antonio Medeiros Azevedo à Maria Hilda Paraíso 1976: 35). Os arrendatários que

haviam permanecido na área da reserva foram os beneficiários, já que a sua situação foi

formalizada mediante contratos-padrão do SPI, assim como os novos posseiros

requerentes de terras (Paraíso ib.:36).

Segundo Maura Titiá, e muitos outros, Fontes foi um dos poucos que lutou para

garantir a terra aos índios. Já para Piba, filho de Natico, Fontes representa a chefia das

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frentes de atração e pacificação, “um homem forte, mas sem coração, que trazia os

índios e deixava preso”. Esse sentimento em relação ao SPI é muito comum, ou seja, o

SPI os aprisionou e os escravizou, mas, contraditoriamente, é graças à presença do

órgão que aquele território existe. Sem dúvidas, toda a trajetória daqueles grupos étnicos

como uma coletividade específica está atrelada à sua relação com o Estado, através do

SPI e seus encarregados.

Na passagem e no tempo presente

Eu gostaria de pedir licença ao leitor para reproduzir aqui um relato longo,

porém bastante emblemático dessa relação, mas que coloca o protagonismo dos

indígenas na questão central para resistência e manutenção das terras.

“Muitos desses índios que vieram de fora foi escravo no tempo do

SPI. E muitos que vivia aqui pra redondeza, também, ganhava terra,

mas ficava sendo escravo, o chefe de posto fazia o que queria. Quando

ele resolvia negociar aquela terra que ele deu ao próprio índio pra

morar com a família, ele fazia tudo pra negociar, aí tirava o índio e

botava um posseiro, arrendava, era um tal de arrendamento. Aí esse

arrendamento era pra [ajudar na sede] do SPI lá no posto. E toda a

questão aqui quando os fazendeiro começou a invadir, a gente lá da

Bahetá cansou dos índios, os outros índios dos outros grupos, chegar

lá as liderança, queixando. Eu mesmo fui criada dentro da sede do

posto, trabalhando pra chefe de posto, eu fui criada ali, vendo todos os

movimento. Os índio chegar, dizer pro chefe: “Olha, nós tamo aqui

com uma questão, fazendeiro fulano de tal tá invadindo nossa roça”;

“E porque vocês não vende aquilo lá? Mais cedo ou mais tarde eles

vão botar fogo em vocês”. Eu cansei de ouvir isso. Então o pobre do

índio não tinha força, não tinha quem ajudasse ele, não tinha uma lei,

uma justiça. A justiça quem fazia naquele tempo era os homem de

dinheiro. Então, o coitado chegava, vendia, dava, saía corrido, que as

ameaça era forte, aconteceu muito isso. E aí nesse povo todo, que

tinha nessas localidade, todo mundo tinha sua moradia, tinha seus,

plantava suas roça, tinha seus lugar de pescar, tinha lugar de caçar, pra

suas família, foi criando suas família. E aí foi começando as invasão,

os índio foi correndo, outros foi saindo, muitos foi vendendo, outros

foi deixando a terra, e no fim da história, quando eu me entendi, em

63, já não tinha mais índio nesse município, com terra própria. Só

tinha Samado, que eu me lembro, que tinha a localidade dele no

Panelão, e, tinha muito índio, mas tudo trabalhando pra o próprio

fazendeiro. E os índio que tava [na localidade] na época, era nós lá na

Bahetá [antigo Caramuru], com essas trinta tarefa de terra e ainda os

fazendeiro [destelhando] a casa, dando pressão na gente pra sair.

Porque se... Que eles dizia que Zé Brasileiro quando largou o posto

abandonado, já tinha alugado, arrendado a manga lá. Só que na época,

os índio, meus primo que morava em cidade, pulou pra dentro, que a

gente tava sozinha, eu já tava com mamãe morrendo, Honrak já tava

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fraco, e nós era criança jovem. Que aconteceu? Aí [Jorge] veio com os

menino, aí foi que nós seguremo, não deixemo... Tinha ameaças, tinha

coisas, nós corria, fazia nossas ameaça e corria deles, que [nós não]

tinha medo, mas nós ainda guentemo lá...[sobre os índios que vieram

de fora] não tinha piedade naquele tempo, não, eles pegavam a terra

bruta donde tinha onça, tinha tudo quanto era inseto, e mandava

entregar lá pro índio: “Ói, já mandei fazer uma [corrente] lá”. Aí os

coitado ia pra lá fazer rancho, derrubada da mata, abrir, fazer rancho e

morar ali. E ali dentro, hoje mesmo [a menina] disse pra mim: “O que

a gente ficava lá dentro daquelas mata, era vendo a hora da onça

comer nós tudo, mas nossos pai fazia fogo, e a gente ficava ali

debaixo do rancho, eles limpando, abrindo as mata, pra fazer roça, pra

fazer, planta alimento pra gente comer”. Foi assim que muitos índios

sobreviveu aqui dentro. E nós de Bahetá fiquemo como se fosse uns

mendigo. Que quando eles tomaram a terra, que nós tinha liberdade de

andar aí na terra, o nosso povo, o nosso grupo, eles tomaram a terra

toda [acima] da Bahetá. Com trinta tarefa de terra, vivendo do peixe!

Quando nós ia buscar lenha do lado do fazendeiro, nós era enrabado

de cachorro, e muitas horas teve isso, apanhava. Se nós saísse de

nosso pedacinho de terra pra ir pescar lá na fazenda, no rio que tava

passando lá naquela fazenda, a gente saía rasgado de cachorro,

apanhado, eles não davam oportunidade. E nós [seguimo] ali

mendigando, vendo nossos velho morrer de fome, morrer à míngua,

até que enterremo o último, a última que nós enterremo foi Bahetá.

Com todo sofrimento. Nós criança vivendo ali que nem cachorro.

Pisado, machucado, massacrado... Minha mãe mesmo foi pegada em

36, foi outro sofrimento maior do mundo, eu não gosto de alembrar da

história de minha mãe, que foi muito sofrimento, e fora os outros que

foram pegados, não é? O sofrimento. Muitos [inaudível] veio morrer,

eu aí na minha aldeia eu cansei de ver, sair um caixão [hoje] pra

semana sair [dois]. Morrer de fome, doença, matado, a parecia morto.

Tudo sofrimento. Então, pra gente avançar aqui, foi muita briga, muita

luta, foi que chegou a história dos cacique em 82. Aí como o cacique

que veio, veio mais informado na época, o Saracura, ele veio mais

informado, com a cabeça... Ele foi orientado da FUNAI, quando ele

chegou aqui, pra sentar com Samado, pra ele poder fazer essa

retomada, ele já veio com a cabeça feita, ele entrou antes de Samado.

Samado e Déro, que era as únicas duas pessoas que a gente respeitava,

que tinha como um cacique, né? Que orientava a gente na questão

dessa terra.” (Maura Titiá, Oficina de Cartografia, janeiro de 2012)

Como dito anteriormente, certos líderes são referenciados como aqueles que

resistiram na terra e depois articularam-se para a retomada do território. Certas

personagens são emblemáticas, como Samado Santos, que não sossegaram, nem se

abateram frente às invasões. Uma boa parte da documentação presente no Museu do

Índio contém cartas de Samado endereçadas ao SPI e posteriormente à FUNAI,

denunciando os nomes dos fazendeiros invasores e a utilização de violência contra ele.

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Em um documento de 1952, Eduardo Galvão, chefe da Seção de Orientação e Assistência

do SPI, escreve ao chefe da Reserva, anunciando que recebeu no Gabinete do Ministério

da Agricultura, os índios Samado, Dionísio e Desidério, que partiram para o Rio de

Janeiro para reclamar as terras das quais haviam sido expulsos, e que lá estavam desde

1939. Os índios queixaram-se ainda do encarregado e do chefe de posto, pois, segundo

eles, nenhuma atitude foi tomada.

Contemporaneamente, ainda prevalece em certa medida as antigas distinções

entre os índios mais puros e mais legítimos, como a referência àqueles que lutaram e

resistiram, entretanto isso não os legitima em relação a certos privilégios como o acesso

a determinadas áreas mais privilegiadas. O que os qualifica tem sido cada vez mais a

relação com os órgãos estatais, um certo desembaraço nesse trânsito com as instâncias

de mediação, como a própria FUNAI, o Ministério Público, a Secretaria de Saúde

Indígena, o Ministério da Educação, etc., e, em alguma medida, o movimento indígena

mais amplamente.

A curva da história, como dizem os caboclos quando bebem, é longa, mas é uma

curva...

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Microfilmes consultados do Acervo do Museu do Índios

151, 152, 153, 154, 155, 181, 182, 184, 189, 190, 190, 334, 380