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CONRADO AUGUSTO GANDARA FEDERICI GIULIO CACCINI E SUAS NOVAS MÚSICAS - UM ELOGIO AO CANTO - UNICAMP 2009

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CONRADO AUGUSTO GANDARA FEDERICI

GIULIO CACCINI E SUAS NOVAS MÚSICAS

- UM ELOGIO AO CANTO -

UNICAMP

2009

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III

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

GIULIO CACCINI E SUAS NOVAS MÚSICAS

- UM ELOGIO AO CANTO -

DOUTORADO EM EDUCAÇÃO

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO:

EDUCAÇÃO, CONHECIMENTO, LINGUAGEM E ARTE

UNICAMP

2009

IV

V

VI

VII

Para Lucílio e Leda.

VIII

IX

AGRADECIMENTOS

Eliana Ayoub, Beatriz Dokedall,

Milton José de Almeida, Edmundo Pacheco Hora,

Silvana Ruffier Scarinci,

José Rafael Madureira e Michelle.

X

XI

Sine musica nulla vita.

(Nietzsche – Crepúsculo dos Ídolos, a partir do aforisma 33)

XII

XIII

RESUMO Giulio Caccini (1561-1618) e suas Novas Músicas compõem o tema central desta pesquisa. A tradução de suas principais obras, Le Nuove Musiche (1601) e Nuove Musiche e Nuova Maniera di scriverle (1614), o estudo prático do canto e a observação cuidadosa de uma de suas árias fundamentam este trabalho sobre uma época em que imperava a todo artista de corte a habilidade em ser original. Giulio Caccini o fez encontrando em seu ofício de cantor e compositor as maneiras de viver coletivamente e eternizar seu legado pessoal. Chegar às reflexões imersas nas características da arte renascentista, sempre partindo do canto e do texto de origem, deixando-o ressoar, ou “recitar cantando”, é o desejo maior deste estudo. Em 3 capítulos, 1. Elogio ao Canto, 2. Aspectos gerais sobre a música no Renascimento e 3. A Camerata Fiorentina, o artista de corte e a paideia, o trabalho aproxima a literatura especializada da musicologia, história e sociologia, integrando conhecimentos dispersos em prol de um melhor entendimento das publicações de Giulio Caccini. A fonte principal são os próprios textos e músicas do autor, colocados em diálogo com a experiência prática de seguir suas lições de canto e a contextualização das condições de seu surgimento. Encerram a pesquisa um apêndice de personalidades relacionadas ao autor e seu tempo, um breve glossário de termos referentes à música do período e, em anexo, as edições em fac-símile das referidas publicações e uma seleção em CDs de amostras musicais da obra de Giulio Caccini disponíveis no mercado. Palavras-chave: Giulio Caccini (1568-1618), Canto, Música Antiga, Educação

ABSTRACT Giulio Caccini (1561-1618) and his New Music are the central subject of this research. The translation of his most important works, Le Nuove Musiche (1601) and Nuove Musiche e Nuova Maniera di scriverle (1614), the chant practical study and the carefully observation of one of his arias are the basis of this work about an age in which the skill of being original was a real high demand for every court artist. Giulio Cacini has done it finding in his job as a singer and composer, the manners of living collectively and leaving his personal legate to eternity. Get into the reflexions of the Renaissance art characteristics, always starting from the chant and original texts, trying to let them reverberate, or in armonia favellare, is the biggest desire of this study. To benefit from a better understanding of Giulio Caccini’s publications, the work connect the specialized musicology literature, history and sociology in 3 chapters, in order to integrate the knowledge that uses to be separated: 1. A Praise of Chant, 2. General aspects of the music in Renaissance and 3. The Florentine Camerata, the court artist and the paideia. The author’s texts and music are the principal sources, supported by the practical experience following his chant lessons and the context of the treatise’s arise conditions. Ending the research, there are an appendix of personalities related to the author and his time, a short ancient music glossary, the copy of the facsimile original edition and a Giulio Caccini’s musical selection from CDs that are available in trade market. Key-words: Giulio Caccini (1568-1618), Chant, Early Music, Education

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XV

SUMÁRIO

MOTIVAÇÕES ........................................................................................................................01

ÀS VOLTAS COM A TRADUÇÃO .............................................................................................17

AS NOVAS MÚSICAS (1601) ...............................................23

NOVAS MÚSICAS E NOVA MANEIRA DE ESCREVÊ-LAS (1614).......................53

CAPÍTULO 1.

ELOGIO AO CANTO.................................................................................................................63

CAPÍTULO 2.

SOBRE A MÚSICA NO RENASCIMENTO....................................................................................93

CAPÍTULO 3.

A CAMERATA FIORENTINA, O ARTISTA DE CORTE E A PAIDEIA.............................................103

ENLACES..............................................................................................................................121

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .........................................................................................127

BIBLIOGRAFIA .....................................................................................................................131

REFERÊNCIAS DISCOGRÁFICAS ...........................................................................................133

REFERÊNCIAS VIDEOGRÁFICAS ...........................................................................................135

APÊNDICE A

PERSONALIDADES.................................................................................................................137

APÊNDICE B

GLOSSÁRIO............................................................................................................................143

ANEXO 1 – EDIÇÕES FAC-SIMILARES.....................................................................................147

LE NUOVE MUSICHE (1601) NUOVE MUSICHE E NUOVA MANIERA DI SCRIVERLE (1614)

ANEXO 2 – AMOSTRAS MUSICAIS - CDS..............................................................................179

XVI

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MOTIVAÇÕES

Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.

(CALVINO, 1993, p.10).

Giulio Caccini (1551–1618) e Le Nuove Musiche – As Novas Músicas – de 1601 e

Nuove Musiche e Nuova Maniera di scriverle – Novas Músicas e Nova Maneira de

escrevê-las – de 1614, não são verdadeiramente conhecidos. Para a maior parte dos

interessados em música em geral, música antiga, ópera ou especificamente o canto, são

obras clássicas reconhecíveis somente indiretamente por meio de citações passageiras ou

notas de rodapé.

Por um anseio mais do que exclusivamente particular, pesquisa-se sempre pelas

origens dos fatos, por acontecimentos que estruturem ou até controlem melhor o presente

vivido. Atualmente, iniciando-me na arte do canto e desejando referências mais vigorosas

sobre tal compositor, dito um dos fundadores da música barroca, encontro-o de forma

interessante e prazerosa, cantando-o, lendo-o e relacionando-o a todo um contexto musical

pessoal.

A música sempre foi uma presença constante entre meus familiares. Habituei-me a

ela recebendo uma formação ortodoxa em um conservatório musical para crianças, tocando

flauta doce. Permiti, não sem esforço, que a música crescesse junto comigo, apesar da forte

tendência à timidez, vencida sempre que minha mãe e primeira mestra de música colocava-

me para tocar diante de audiências diversas, acompanhando-me ao piano, quando tinha

cerca de 9 ou 10 anos.

Na adolescência, aproveitei parcialmente a rara estrutura de um colégio alemão, não

participando mais assiduamente da orquestra de câmara, dos inúmeros ensaios e grupos

musicais diversos. A disciplina dos treinamentos esportivos era mais sedutora do que

aquela da prática instrumental. Ainda assim, a música ocupou-me novamente na forma de

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contrabaixista popular por 10 anos, de 1991 a 2001, enquanto cursava a graduação em

educação física, além das 15 disciplinas no curso de música do Instituto de Artes.

Experienciei também a música e a tecnologia, compondo e editando materiais ecléticos,

como trilhas sonoras para teatro, dança e ginástica geral.

O repertório antigo da flauta doce retornava constantemente, pois era, para além de

uma habilidade adquirida, uma fonte de grande regozijo pessoal. O encontro em 2000 com

o conjunto de música antiga Zebu Trifásico, fundado em 1992 pelos biólogos Thomas

Lewinsohn e André Victor Lucci Freitas selou o contato com compositores como Michael

Praetorius, Tylman Susato e Johann Hermann Schein, que eram, em pleno século XVI,

praticantes de uma harmonia polifônica mais próxima de um complexo jogo musical.

Reunimo-nos neste grupo até hoje para tocar e divertir-se, as essências mais fundamentais

da música.

A Renascença assaltou-me uma vez mais com a dissertação de mestrado sobre as

origens nas cortes européias da nobre arte do palhaço. Defendida em 2004 e intitulada “De

Palhaço e Clown. Que trata de algumas das origens e permanências do ofício cômico e mais

outras coisas de muito gosto e passatempo” (FEDERICI, 2004), o trabalho representou uma

eficaz síntese, um momento de acolhimento e potencialização dos meus saberes esparsos.

O encontro com Edmundo Hora sempre guiou minhas peregrinações em música

antiga, desde as primeiras reuniões e récitas quando ainda frequentava a graduação.

Posteriormente, 3 semestres cursados de Estudos Dirigidos em Práticas Interpretativas

culminaram com trio “Con La Gracia” ao final de 2006, em um recital de flautas doce e

cravo. Em ensaios semanais, decifrávamos partituras barrocas, traduzindo seus escritos para

a interpretação da música. Neste mesmo ano, na disciplina Tópicos Especiais em Práticas

Interpretativas, aproximei-me do extenso tema da afinação, ainda sob a orientação do

professor Edmundo.

Alguma confiança e serenidade foram as minhas fortunas maiores sedimentadas a

partir da amizade com José Rafael Madureira. Foi ele quem, de fato, ditou-me o norte,

mostrou-me o lugar e a força da música. Da minha música. De índole ígnea, tomou-me

como tutor musical em suas pesquisas em dança, expressão, educação, reavivando-me e

iluminando as virtudes dos diálogos entre música e corpo. Com espetáculos, performances,

atuações e composições – como a Suite para flauta doce e orquestra MIDI, de 1999 –

3

exercitamos juntos nossas possibilidades de músicos, atores e acrobatas. Pela sua maneira

avassaladora de conhecer, iniciou-se no canto antes do que eu. Para ter-me como parceiro e

amigo ainda mais próximo, encantou-me a também penetrar neste terreno, no qual, até

então, não me aventurara, pois, para cantar, é preciso ter força, ter reservas extras, atributos

que somente conheci mais recentemente. Como confidenciou uma renomada soprano

americana: “A música possibilitou-me enquanto um jovem indivíduo frágil, dar voz a

emoções às quais eu mal podia nomear, e agora ela me possibilita dar à minha voz a única e

misteriosa força de falar a outros” (FLEMING, 2005, p.220).

* * *

O projeto inicial desta pesquisa, intitulado “Retórica Sem Palavras: A Música do

Renascimento como Programa Político de Educação da Sociedade”, abrangia muitas das

questões que me uniam à música antiga: as afinações diversas e o temperamento musical,

as transformações da construção dos instrumentos da época, o percurso da notação musical,

a educação da sensibilidade e da escuta, a formação da plateia, a vontade de conhecer pela

ótica do cotidiano, ao invés da perspectiva do oficial, os interesses e mesclas político-

sociais em relação à música, as técnicas de composição e as teorias do afeto, a retórica

musical, a moralidade implícita na música como linguagem, as relações com a música

atual, enfim, uma ampla gama de possíveis assuntos a serem desenvolvidos.

Em uma fase inicial da pesquisa, começava a abertura de temas que apontavam para

dimensões obscuras da música, como por exemplo o desenvolvimento dos sistemas de

afinação que, segundo os mesmos mecanismos da pintura, apesar da distância temporal de

quase três séculos, adequaram toda a linguagem ocidental a algumas adaptações estruturais,

não sem diversos interesses implícitos: a técnica da perspectiva estava para a pintura, assim

como a afinação em temperamento igual estava para a música. De um ponto de vista mais

físico ou técnico, o conceito de perspectiva em música relaciona-se mais diretamente à

4

DEUS

PÚBLICO

qualidade da “amplitude”: das variações de forte e fraco que conferem aos sons a noção

espacial de distância, como, analogamente na pintura, acontece com o recurso perto e

longe. Como se tratava do Renascimento, a recorrência sempre passava pelas convenções e

controles das manifestações artísticas da época, pelos significados e símbolos ocultos, pela

submissão aos imperativos sociais da corte. Ao ler os tratados de época ganhei, pois, uma

nova dimensão de pesquisa: imaginar antes de perceber. “Quem acumula muita informação

perde o condão de advinhar: divinare” (BARROS, 2009, p.53).

Ao tomar contato com a mística que trespassava os sistemas visuais, reconhecia

como, do mesmo modo, acontecia na música: os intervalos perfeitos e aqueles proibidos, as

relações numéricas e a Harmonia das Esferas, antiga doutrina grega, pitagórica, que

postulava uma relação harmônica entre os planetas, governados pela proporção entre as

suas órbitas e a sua distância fixa da Terra. Vincenzo Galilei, pai do famoso astrônomo

Galileu Galilei, fazia parte da Camerata Fiorentina, juntamente com Giulio Caccini, e era

também ele grande estudioso da música, além de compositor.

Os questionamentos direcionavam-se ao encontro do personagem principal, à

descrição densa da paisagem da época e dos personagens secundários, às rupturas na vida

que geraram produções marcantes como, por exemplo, as histórias dos casamentos.

Delineava-se o complexo movimento daquela época, que constituía os ritos da instituição

religiosa, de passagens dos valores celestes, inaudíveis, até alcançar uma música mundana.

Junto com todo o movimento educativo regulador da época, arquitetônico e visual,

presente na pintura, também a música encaminhava o som para o alto e educava, simulando

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os interiores das almas, conduzindo-as em escalas ascendentes. A autoridade da fé ensinava

que a música ideal estava presente somente em um mundo também ideal, o celeste, e era

por isso inaudível.

A música mundana, ou música cósmica na teoria de Boécio, era explicada pela

Harmonia das Esferas, cujas relações numéricas fixas observáveis no movimento dos

planetas e na sucessão das estações constituíam a harmonia no macrocosmo. A música

humana, a que determina a união do corpo e da alma era emanada pela voz e constituía a

harmonia no microcosmo e à música instrumental, ou música audível produzida por

instrumentos cabia a integração destas instâncias, “ilustrando os mesmos princípios de

ordem, especialmente nos quocientes numéricos dos intervalos musicais” (GROUT e

PALISCA, 2007, p.46).

Destacava-se a força das doutrinas cristãs na elaboração da música ocidental como

um todo, e sob quais vestes ocorriam as sutis construções e traduções das vontades divinas

nas expressões do ser humano. A dominação religiosa era desvelada pela angústia na

música (tensão) e acalmada pela salvação divina (relaxamento), o mesmo movimento do

pecado, seguido da penitência e apaziguado pelo perdão.

A linguagem musical aprimorava e refazia caminhos de interferência e controle

entre a própria técnica e as manifestações e necessidades do poder dominante. Cunharam-

se e aperfeiçoaram-se efeitos técnicos de tradução de sentimentos, dentro de um sistema de

convenções comportamentais e expressivas.

Quais seriam as sabedorias musicais em maleabilidade, flexíveis às vontades

sociais, religiosas e artísticas? A técnica da composição musical sobretudo. A dominação

simbólica era praticada pelo legítimo conhecimento de composição musical, que atestava a

capacidade de inovação constante, a sedução pelos malabarismos do afeto, os riscos das

novidades bem fundamentadas e relacionadas aos diversos campos dos conhecimentos

valorizados – gramática, lógica e retórica, aritmética, geometria, astronomia e música.

As melhores formas de divulgação e publicidade das últimas invenções no campo da

música seriam, então, as reuniões do maior número possível de pessoas relevantes,

poderosas social e politicamente, que pudessem ser tocadas pelo inédito e, assim, mantê-lo:

as festas de casamento entre os nobres.

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Giulio Caccini era um destes homens que lidava com a música nesta sorte de

ambiente, como cantor, compositor, professor. Integrou o grupo que produziu as bodas de

Maria de’ Medici e Henrique IV da França em 1600, compondo a maior parte de Il

Rapimento di Cefalo. Posteriormente, em 1608, participou diretamente do casamento de

Maria Magdalena da Áustria com Cósimo de’ Medici. Neste ínterim, com a garantia

sempre provisória de um lugar na corte, publicou As Novas Músicas e, já ao final da vida,

Novas Músicas e Nova Maneira de escrevê-las.

As traduções de tais obras, precedidas de algumas observações sobre seus princípios

norteadores, compõem a parte inicial deste trabalho.

A prática da música antiga sempre foi o carro-chefe de minhas indagações nesta

pesquisa, além de uma importantíssima via de compreensão dos segredos musicais da

referida época, visto que grande parte dos hábitos daqueles músicos não estava grafada,

mas subentendida na execução – como por exemplo as indicações de andamento andante,

largo, allegro ou vivace que somente surgiram após meados de 1640.

O primeiro capítulo, intitulado Elogio ao Canto, busca o diálogo com o texto

original, identificando suas partes mais eloquentes. Seguem-se reflexões sobre a

experiência prática e pessoal com a música “Deh, dove son fuggiti”, utilizada pelo autor

como um exemplo pedagógico de suas lições musicais.

O segundo capítulo, Aspectos gerais sobre a música no Renascimento, contextualiza

panoramicamente a música da época, relacionando alguns de seus aspectos mais gerais à

música de Giulio Caccini.

Com o encontro de sutilezas e histórias particulares de ousadas experimentações

dramáticas para entretenimentos cortesãos chega-se à famosa Camerata Fiorentina, tida

como grupo precursor da ópera, mas muito além deste clichê, como uma academia de

amantes da filosofia, ciência e artes, dentre tantas outras na Itália renascentista. Este tema

foi tratado no terceiro capítulo, intitulado A Camerata Fiorentina, o artista de corte e a

paideia, buscando correlações com o artista de corte e as vontades humanistas de conhecer

e reviver a formação clássica do homem grego.

Constam ainda um conciso apêndice de personalidades citadas ao longo do texto

relacionadas a Giulio Caccini e seu tempo, um breve glossário de termos referentes à

música do período e, em anexo, as edições em fac-símile de Le Nuove Musiche e Nuove

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Musiche e Nuova Maniera di scriverle, além de uma seleção em CDs de amostras musicais

da obra de Giulio Caccini disponíveis no mercado, interpretadas pelos cantores Montserrat

Figueras, Marco Horvat, Olga Pitarch e Johannette Zomer.

* * *

O primeiro contato com o canto italiano foi ao final de 2006. Em 2007, Beatriz

Dokedall, regente e professora de canto, inicia a condução desta longa jornada de

autoconhecimento e prazer pelo ato de cantar. Analogamente, desde os primeiros longos

períodos de estudo de flauta doce, já percebia que somente a prática exploratória, isolada,

já me saciava. Pelas palavras da experiente cantora:

As palavras practice [a prática ou o ato de praticar] e practical [prático] são quase uma e o mesmo, e, quanto mais eu trabalhei, mais eu vi as suas similaridades. Foi aqui que eu comecei a desenvolver minha verdadeira paixão pelo ato de cantar, pelo processo de explorar cada aresta do enigmático instrumento da voz. Eu ainda penso que é um milagre que alguém aprenda como cantar bem, devido ao mistério de coordenar músculos involuntários, o que parece impossível de se esclarecer. É uma coisa maravilhosa cantar diante de uma plateia, porém cantar para mim, sozinha em uma sala, demolindo frases nota por nota, palavra por palavra, é de algum modo ainda mais satisfatório, e foi assim que eu comecei a aprender (FLEMING, 2005, p.23).

O coração do trabalho, a tradução desta obra fundamental do canto ocidental,

despertou juntamente com a minha aprendizagem daquelas mesmas ideias que Giulio

Caccini publicara em 1601 e 1614, sobre o deleitar, o mover os afetos, descobrindo em

mim mesmo, com persistência tenaz, a verdadeira catarse da música ressoando no próprio

corpo, não como uma atualização da convenção renascentista, mas como possibilidade

artística de vida musical. Imerso no espírito do canto, fonte infinita capaz de reunir saberes,

épocas e desejos distantes, encontrei-me empenhado neste trabalho específico sobre Le

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Nuove Musiche e Nuove Musiche e Nuova Maniera di scriverle, tratados clássicos escritos

por Giulio Caccini.

Em 2008, em pleno verão europeu, com a ingênua e romântica vontade de encontrar

os lugares sobre os quais tanto me debruço, fiz uma viagem pela Itália. Não digo que pisar

sobre as mesmas ruas e admirar o palazzo florentino da camerata (hoje, um singelo prédio

de apartamentos) não tenha causado certa comoção particular. Apenas a presença fria do

edifício e a imaginação já foram suficientes, pois as sensações in loco são verdadeiramente

potentes. No entanto, tomar contato com a realidade contemporânea daquele país e lugares

sobremaneira turísticos, ensinaram-me a enxergar o curso da história como sendo

implacavelmente ininterrupto, transformável e, principalmente, muito ressignificado. As

cidades italianas que visitei, com seu vasto repertório de obras de arte, museus,

peculiaridades e segredos, são verdadeiramente inundadas pela ditadura do espírito

econômico, por um insistente turismo cultural, forçando uma amigável convivência entre

os prédios históricos, lojas de grife, restaurantes de comidas típicas e comerciantes

imigrantes. Compreendi e senti a globalização de forma crua.

Raros, porém inesquecíveis, foram os encontros com cidadãos italianos que

autenticamente valorizassem seu ofício, sua tradição modificada e harmonizada com os

modos de vida contemporâneos. Foram eles: um alfaiate, um produtor de vinhos e azeite de

oliva, um doceiro.

Pude ainda constatar como algumas escolhas políticas, sem dúvida particulares e

pessoais, podem ou não eleger uma obra, um local ou uma pessoa, valorizando e

legitimando importâncias simbólicas, mas primordialmente financeiras e lucrativas,

redirecionando em massa interesses e vontades alheias. Alguns museus famosos e

consagrados reúnem as obras de artistas renomados, enquanto maravilhosos afrescos de

outros pintores perecem esquecidos ao lado.

Quanto à produção musical renascentista, dimensiona-se tudo aquilo que nunca será

ouvido graças a tais movimentos de escolhas pessoais. Neste rumo, recortes de grandes

pinturas aparecem reproduzidos nos mais inusitados suportes (calendários, camisetas,

xícaras, capachos), como exemplo mais famoso e simples: o encontro dos dedos de Adão e

seu criador, no amplo e detalhado teto da Capela Sistina no Vaticano. Instantaneamente

associa-se tal fragmento ao seu lugar de origem, o Vaticano, revelando duplamente a

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potência do sistema de educação visual renascentista e a capacidade humana de

ressignificação e deslocamento de poderes, sejam religiosos, políticos ou econômicos: a

pintura torna-se mero adesivo, signo raso de uma passagem fortuita por um ponto turístico

valorizado, arrastando consigo apenas uma lembrança, e não mais a memória e a

reminiscência. Evidência semelhante prolongou-se à música quando, ao assistir a uma

ópera, fui capaz de reconhecer apenas um pequenino trecho diante de toda a sua

suntuosidade, não por falta de instrução, mas por estar naturalmente sujeito ao aprendizado

e à recorrência dos extratos preferidos e replicados por alguns, malgrado toda a perda de

contexto da obra íntegra. Esta tendência foi impulsionada por concertos de grandes

intérpretes, em que são apresentadas apenas as árias, ou as partes prediletas de óperas

diversas, tornando-as conhecidas.

Estes foram apenas alguns apontamentos pessoais realizados em minha passagem

pelos lindos lugares erguidos durante o Renascimento na Itália, pela reflexão e comparação

entre os grandes eixos turísticos e os sulcos simbólicos deixados às suas margens.

Enfim, o contato com a abundância da cultura italiana em todos os sentidos – da

língua, das artes, da culinária – impregnou-me de uma paixão visceral pelas origens,

caminhos e hábitos daquele povo, remetendo-me curiosamente aos encontros da Camerata

Fiorentina e fortalecendo minha vontade de dar novo fôlego à obra de Giulio Caccini, agora

em terras distantes da dele, reavivando a alma de sua música atemporal.

A experiência em solo italiano não mais desperdiçar-se-á.

Se experimentasse nestas breves memórias reproduzir cronologicamente meu

caminho de aproximação até os dois livros referenciais supracitados, perceberia que os

alcancei por diversas vias: pela prática junto ao grupo Zebu Trifásico, pela prática e

pesquisa teórica da música barroca dos séculos XVII e XVIII, pela flauta doce, pela prática

do canto, pelos encontros impensados com pessoas e situações. Porém, tal ótica reduziria a

riqueza da mescla em que os caminhos entrecruzados, cortados, refeitos, reforçaram-se

mutuamente e constituíram-me reciprocamente.

Minha história tortuosa, sempre apoiada em pelo menos duas áreas hoje

distanciadas, porém idealizadas pelos gregos antigos na paideia, a ginástica e a música,

encontraram muitos momentos de dualidade e outros tantos de equilíbrio. Nesta ocasião,

comparo-a simplesmente à composição musical, que outra não é, como nos ensina

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indiretamente Giulio Caccini, do que a combinação, o ajuste, enfim, a harmonia entre

circunstâncias aparentemente diversas.

“E porque na profissão de cantor (pela sua excelência) não servem somente as coisas particulares, mas o conjunto a faz melhor” (CACCINI, 1601, p.31).

* * *

– Não é então por este motivo, Glauco, que a educação pela música é capital, porque o ritmo e a harmonia penetram mais fundo na alma e afetam-na mais fortemente, trazendo consigo a perfeição, e tornando aquela perfeita, se se tiver sido educado? E, quando não, o contrário? (PLATÃO, Livro III, República, 402 A, 2004, p.94).

Com alguma naturalidade em nossa sociedade, ao se citar a Renascença, os nomes

dos pintores mais famosos e suas obras mais notórias são rapidamente evocadas à mente. O

esplendor desta época foi também constituído pela música – além da poesia e da literatura,

do teatro, da dança e das convenções comportamentais de maneira geral.

O objetivo desta pesquisa é o estabelecimento de melhores condições para a leitura

das obras clássicas de Giulio Caccini, traduzindo e experimentando-as, discutindo e

contextualizando seus aspectos principais. O terreno da Educação acolhe, identifica e

aglutina estas diversas formas de produção de cultura, de contato entre os seres humanos

em tempos e espaços diversos e os modos de transmissão desta cultura.

História, sociologia, filosofia, estética, teoria da música, musicologia, enfim, são

campos do conhecimento que, nesta pesquisa, auxiliam no estabelecimento de relações

entre música e educação. O presente trabalho dobra-se sobre a tradução, porém, tampouco,

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aprofunda-se nas teorias de literatura e tradução, semiótica ou hermenêutica. O desejo é

sempre o de entender do texto próprio, sem inferências e extrapolações estrangeiras em

demasia, as ideias que lá foram deixadas, é de manter o texto e a música vivos, é de trazer

para o presente os pressupostos de um dos primeiros manuais práticos de ensino de canto,

suas instruções, exemplos e algumas partituras.

Para além de um crescimento artístico e acadêmico pessoal, o principal escopo está

na voz da pesquisa, na voz de cantores, acadêmicos e também apreciadores que encontrarão

melhores condições de manusear os importantes ensinamentos deixados nos prefácios ora

traduzidos, além de algumas das mais de 70 partituras de Giulio Caccini, transcritas para a

grafia atual. Sua contextualização e os grifos sobre seu caráter orientador de noções

essenciais de canto, de um dos primeiros ensaios de ensino artístico, completam estas

condições gerais para sua melhor compreensão.

Reanimar os textos de Giulio Caccini manifesta o forte desejo de oferecê-los com

alcance e rigor não somente a iniciados na arte do canto e acadêmicos da música, mas

também a diletantes ávidos por um conhecimento acessível. Que não se perca de vista em

nenhum momento o propósito maior desta jornada: o cantar.

Foram utilizadas como base teórica algumas das referências de maior relevância na

historiografia musical sobre o período – tendo em vista as limitações de uma pesquisa feita

no Brasil – e a ligação direta ao tema. Destacam-se, além das próprias cópias fac-similares

dos originais de Giulio Caccini, as traduções de Joël Heuillon, H. Wiley Hitchcock, as

obras de Claude Palisca, Donald Jay Grout e Nikolaus Harnoncourt, as importantes

publicações de Flavio Testi e Piero Gargiulo, além dos trabalhos dos pesquisadores

brasileiros Ibaney Chasin e Heloisa Muller. As obras de Norbert Elias, Michel de Certeau e

Werner Jaeger auxiliam na contextualização histórica da antiguidade.

Giulio Caccini foi um dos compositores que, em parceria ou concorrência com

tantos outros como Jacopo Peri, Emilio de’ Cavalieri, Marco da Gagliano ou Claudio

Monteverdi, impeliu o crescimento de um novo estilo musical. O entendimento de seu

valor não está centrado exclusivamente sobre a sua Grande Obra; tampouco foi

propriamente O Autor; Giulio Caccini, sozinho, não se revelou indispensável para a música

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e é justamente esta marca que o destaca como ser humano possível, contribuinte essencial

para desvio de rumo da criação musical ocidental.

Giulio Caccini rivalizou com seus contemporâneos, trabalhou arduamente e

produziu peças, bastante interessantes em seu conjunto, inaugurando com suas publicações

uma maniera estruturada de composição musical voltada para mover os afetos dos

ouvintes.

Repetem-se e reforçam-se enciclopedicamente conceitos os mais diversos sobre

música, perpetuando ideias genéricas, levadas para lugares-lembrança, fechadas em

compartimentos estanques. Com certa frequência em notas de rodapé, cita-se de passagem

Giulio Caccini e sua obra Le Nuove Musiche como o estado embrionário da ópera, como a

origem deste nobre gênero musical, como uma das primeiras manifestações do canto

acompanhado. Admitir Giulio Caccini somente como precursor da ópera, seria atualizar e

aceitar novamente as imposições do amplo sistema de educação política das cortes, seria

naturalizá-lo apenas como um emblema de fundação de algo fantástico de maior valor,

subtraindo-lhe a historicidade.

Como músico da corte italiana, Giulio Caccini, como tantos outros de seu tempo,

mais ou menos famosos, tinha obrigações muito explícitas no terreno musical, tais como

cantar de forma soberba, dominar instrumentos diversos como viola, harpa, alaúde e

chitarrone, compor sob encomenda para as nobres comemorações, dirigir grupos musicais,

ensinar a futuros cantores os segredos da boa maneira de se mover os afetos da audiência,

tornar público seus trabalhos por meio de tratados, enfim, manter-se constantemente

conhecido e inovador. Em seu tempo e desejando viver desta carreira, não teria outra

escolha além de tentar abranger a música em sua completude.

A tradução de suas principais obras, Le Nuove Musiche e Nuove Musiche e Nuova

Maniera di scriverle, o estudo e a observação cuidadosa de sua música são as partes

constitutivas mais importantes deste trabalho sobre uma época em que a habilidade em ser

original era imperiosa a todo artista de corte, bem como chegar a possíveis reflexões

imersas nesta característica dominante na arte renascentista, sempre partindo do texto de

origem, deixando-o dizer ou ressoar, ou nas palavras do próprio Giulio Caccini, “recitar

cantando”. O trabalho atém-se ao momento da prática italiana de se fazer música, não se

estendendo até as especificidades de outras importantes realidades europeias, francesa,

13

inglesa, alemã ou outra, apesar de haverem costumes já difundidos e semelhantes entre

elas.

Música é deleite. Mister é deixar explícito que não se trata de explicar a música ou

delimitar suas regras e funções sociais.

(...) O mesmo penso sobre a música [sobre o zelo pessoal quanto às aparições e exibições públicas]; por isso não quero que o nosso cortesão faça como muitos que, tão logo chegam onde quer que seja, inclusive na presença de senhores de quem não têm o menor conhecimento, sem se deixarem rogar começam a fazer o que sabem; de modo que parece que somente com aquele objetivo tenham aparecido e que aquela seria sua atividade principal. Portanto, o cortesão deve fazer música como passatempo, e quase forçado, e não na presença de plebeus, nem de nenhuma multidão; e, embora saiba e entenda aquilo que faz, também nisso quero que dissimule o estudo e o trabalho que são necessários em todas as coisas que têm de ser bem-feitas, e demonstre pouco estimar em si mesmo tal condição, porém, executando-a com maestria, faça que seja apreciada pelos outros.

Então o senhor Gaspar Pallavicino: - Há muitos tipos de música, – disse – tanto vocal quanto instrumental. Por isso gostaria de saber qual é a melhor de todas, e em que momento o cortesão deve executá-la. – Boa música – respondeu Dom Federico – creio que seja cantar seguindo a partitura com segurança e bela maneira; e mais ainda cantar acompanhado de viola, pois toda doçura consiste quase num solo, e com muito maior atenção se nota e ouve o belo modo e a ária ficando os ouvidos ocupados com uma só voz, e melhor ainda se discerne então cada erro mínimo; o que não acontece quando se canta em grupo, porque um ajuda o outro. Mas sobretudo me parece muito prazeroso recitar uma poesia acompanhado de viola; coisa que tamanha formosura e eficácia acrescenta às palavras, que provoca maravilhamento. (...) A voz humana dá muito ornamento e graça a todos esses instrumentos [de teclado, de cordas] dos quais basta ao nosso cortesão ter noções; porém, quanto mais exímio for, melhor será, sem que se atreva muito com aqueles que Minerva e Alcibíades recusaram, pois parecem causar uma certa repulsa. (CASTIGLIONE, 1997, p. 97-98).

O excerto acima de O Cortesão, publicado em 1528, revela prospectivamente

importantes permanências na música, sugerindo possíveis caminhos pelos quais ela

enveredaria no século seguinte.

A vida nas cortes era inteiramente regida por convenções nos mais diversos

segmentos, desde os hábitos à mesa, as vestimentas, as rotinas pessoais de acordo com a

função exercida, até os comportamentos exigidos na convivência social, o autocontrole

emocional, a contenção dos próprias emoções, afetos e sua adequação – sem mencionar

especificamente as regras artísticas que compunham esta maneira do viver cortesão.

14

(...) Não é difícil entender a perfeita conveniência das atitudes, o cálculo preciso dos gestos, a nuance das palavras, em suma, a forma de específica racionalidade que se tornou uma espécie de segunda natureza dos membros dessa sociedade. Eles sabiam exercer essa racionalidade sem esforço, com elegância – e de fato ela era indispensável –, assim como o controle das emoções exigido por esse exercício, como instrumentos da disputa na concorrência por prestígio e status (ELIAS, 2001, p.110).

As palavras acima de Norbert Elias referem-se ao Antigo Regime, mais

especificamente à já superestruturada corte francesa de Luís XIV no século XVIII. No

entanto, vislumbram-se os aprimoramentos pelos quais passaram todas as vertentes de

comportamento dentro do ambiente cortesão, desde suas formas menos complexas, como a

corte florentina de finais do século XVI.

Giulio Caccini encontrou as correspondências entre seu modo de vida e seu ofício e

cunhou na música local as convenções necessárias à sua existência. As mudanças no cantar

não representavam somente consequências e respostas reativas a fatores extrínsecos, como

as convenções comportamentais, mas as constituíam também. Mover os afetos, como tal

música pretendia, exprimiria sobretudo interferir sobre as manifestações convencionadas de

tais afetos.

O cortesão, e por extensão todos aqueles que desejassem ser considerados como cavalheiros ou como damas, deviam cultivar metas artísticas quantas lhes fossem possíveis ou, pelo menos, ser capazes de falar com conhecimento sem fazer com que os outros se sentissem incomodados. Ele ou ela deviam comportar-se e falar com graça, e com certa desenvoltura (sprezzatura é a famosa palavra utilizada por Castiglione) (CORNELL e MATHEWS, 1997, p.95).

Os homens se desenvolvem nas relações com outros homens e através delas. Pelo

permanente jogo de escolhas pessoais Giulio Caccini desenvolveu suas particularidades

inéditas na forma de cantar e compor imerso na sociedade em que vivia. “Os Outros: o

melhor de mim sou Eles” (BARROS, 2009, p.73). Não há outra escolha: vive-se o meio em

que se está presente, de acordo com as pessoas ao redor, obviedade esta que se faz

necessária, a fim de dar ainda mais relevo às formas selecionadas por Giulio Caccini, do

canto, da composição e das publicações, pelas quais lançou-se à história da música.

15

* * *

Cresci com a música, ouvindo, tocando. Por me parecer terreno comum, fascina-me

conhecê-lo, reconhecendo-me. Desta vez, sigo com o canto, o mais fundamental dos

saberes relacionados à música. Destarte, escuto códigos ainda inaudíveis que a relacionam

aos projetos de educação de comportamentos pretendidos e, praticamente, exigidos

socialmente.

O contato com os rastros histórico-sonoros do canto renascentista, revela-me em

duplo sentido: de um lado, obscuramente, os lastros dos procedimentos cotidianos,

tradicionais, sobre os quais os seres humanos e as sociedades equilibram-se e, de outro, os

mastros em que alguns poucos eventos ergueram-se, guiando e redirecionando o caminho.

Rastros históricos, lastros cotidianos e mastros-guia coexistem na formação do hábito de

escuta e na prática do comportamento diário, nos próprios praticantes ordinários, como foi

Giulio Caccini.

Esta é uma pesquisa que se entrega à simplicidade e também às dúvidas, que admite

perguntas, sem pretender explicar e encontrar os resultados que legitimem com uma

eficácia e precisão mecânica o canto de época, mas compreendê-lo. Busca-se admitir como

um fazer acadêmico possível, os próprios descaminhos que não correm pelo curso

principal, mas que transbordam olhares diversos sobre o tema e também contribuem para

que outros os encontrem conjuntamente.

16

17

ÀS VOLTAS COM A TRADUÇÃO

A verdade do original só pode se dar a ver no afastamento do original, nas diversas transformações e traduções históricas que ele percorre, não na sua imediatez inicial (GAGNEBIN, 1999, p.21).

Originais foram, talvez, os pensamentos do autor que, ao escrever, ele próprio, já os

reorganizou, criando suas obras. Ao publicar, novo ânimo foi insuflado, dando condições às

ideias iniciais de serem perpetuadas e ressignificadas. Ao traduzi-las hoje, mais uma vez,

impulsiona-se a mesma roda, já renutrida tantas vezes.

Apesar de As Novas Músicas terem vindo à luz certamente após julho de 1602,

como atestam as chancelas da igreja no início da obra e do impressor e editor Giorgio

Marescotti no encerramento do prefácio e na página final, considera-se aqui 1601 como o

ano em que Giulio Caccini escreveu-o.

Os dois tratados são constituídos por capas com os títulos das obras, ilustrações de

brasões, nome do autor, local e data, além de, na publicação de 1614, breves dizeres sobre

o ineditismo de seu conteúdo – apesar dos aproximadamente 15 anos de desenvolvimento

do estilo recitativo impulsionado com a primeira publicação. Seguem páginas com

autorizações da igreja, dedicatórias, agradecimentos nominais e então os importantes

prefácios: “Aos leitores” (1601) e “A discretos leitores” (1614), que contêm a grande parte

das orientações preconizadas por Giulio Caccini. Na primeira publicação, ainda constam

exemplos musicais específicos, comentados sobre a melhor execução de exclamações,

trilli , gruppi, rebatimento de garganta, cascata, além de um exemplo de aplicação prática

em ária (“Cor mio deh non languire”) e duas árias com os princípios assinalados nas

próprias partituras (“Aria di Romanesca” e “Deh, dove son fuggiti”), à partir das quais o

interessado poderia inferir e aplicar similarmente seus ensinamentos sobre as demais

músicas. Seguem-se as coleções de madrigais e canzonetas estróficas, também chamadas

de árias por Caccini.

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Para os madrigais Caccini elegeu um estilo de recitação musical mais livre, algo lamentosa, que busca expressar o sentimento melancólico do amante não correspondido ou dos amores impossíveis. Já na cançoneta, por ele chamada de ária, a composição se volta freqüentemente para um enquadramento estrófico, ao pulso mais ritmado das danças, que com entusiasmo e exuberância se dedicam a exprimir os prazeres ou dores, a sorte, enfim, dos amores jovens e impacientes. São, assim, sonoramente mais leves, ágeis e alegres, mesmo quando refiguram os sofrimentos daqueles que amam (MULLER, 2006, p.140).

O princípio fundamental que rege as traduções que se seguem é a busca da

conservação do conteúdo, estilo e convenções de origem em que foram escritos os textos

em italiano por Giulio Caccini, isto é, a aspiração a um prazer de saborear uma obra, apenas

transposta para esta língua materna de maneira fiel, trazendo consigo a cultura distante.

Grande parte do entendimento de um texto antigo como este, está tanto na forma

pela qual foi escrito e estampado, quanto em seu conteúdo, característica ainda mais

relevada pela época, a Renascença. Ambos são indissociáveis.

A estrutura do texto revela obrigações e submissões sociais extremamente

relevantes ao que seria afirmado nas páginas subsequentes, como por exemplo a

autorização do padre inquisidor, licenciando a publicação, ou as dedicatórias e menções

presentes no decorrer de todo o texto, além da principal na terceira página, a nobres

senhores, compositores ou libretistas.

A disposição e tamanho da tipologia e das letras escolhidas não são de modo algum

aleatórios, pois seguiam uma tradição de impressão carregada de importâncias e

hierarquias: o título da obra e de seu autor em extremo destaque, garantindo uma perfeita

visibilidade e notoriedade a ambos, bem como o ano e o nome do editor na primeira página.

Em seguida a autorização eclesiástica e a dedicatória ao possível representante do mecenato

em questão. Somente então os escritos em si dedicados aos leitores, seguidos da publicação

das partituras e algumas observações sobre a prática do canto.

Esta era uma estrutura política, construída simbolicamente. A ruptura deste esquema

significaria novas intenções no ato de traduzir, pois constituíam uma tentativa de captação e

tradução simbólica do real, da ordem instituída. Esta tradução buscou manter os emblemas

que contribuem extraordinariamente para além da compreensão das palavras, almejando a

19

liberdade também do leitor atual em imaginar o contexto das condições de produção das

obras, ajudado pelas palavras do próprio autor.

Daí a idéia de que a tradução se apóia em alguns processos de negociação, sendo a negociação, justamente, um processo com base no qual se renuncia a alguma coisa para obter outra – e no fim as partes em jogo deveriam experimentar uma sensação de razoável e recíproca satisfação à luz do áureo princípio de que não se pode ter tudo (ECO, 2007, p.19).

Foi renunciada a direta compreensão do texto escrito, para se obter seus significados

ampliados pela forma e linguagem. Foi utilizada principalmente a versão francesa da obra,

como fonte de esclarecimentos, já que nela, como bem especifica seu autor nos princípios

editoriais iniciais, priorizou-se tornar claros e inteligíveis os pensamentos do autor

(HEUILLON, 1993, p.2). As ideias foram organizadas. Como forma de negociação na

tradução francesa, optou-se por explicar o autor com o ajuste de suas palavras. Além desta,

também foram consultadas as versões em inglês, (HITCHCOCK, 1980 e 1978) e a tradução

para o português presente na tese de Heloisa Muller.

Não há julgamento sobre as traduções já existentes. Todos seremos inelutavelmente

tradutores e traidores. Quanto à presente, há uma atenção em relação à voz autoral do

criador, cuidando para amenizar os efeitos das vontades pessoais sobre o texto. A tradução

efetiva seu papel quando impulsiona ideias, quando possibilita o trânsito de pensamentos,

quando revela as belezas que não se perderam/perderão no tempo.

Obviamente esta é a utopia de qualquer um que se lance na aventura de uma

tradução: manter o original, sem excessivas interferências pessoais, partindo da premissa de

que duas línguas diferentes constituem realidades históricas infinitas e quase intraduzíveis

entre si, pois se trata também da passagem entre duas culturas diferentes.

A publicação de músicas por Giulio Caccini, precedidas por explicações técnicas

entremeadas de referências e citações aos próprios atributos e aos favores de personagens

importantes ao autor, sacralizavam suas práticas diante da sociedade. É também esforço

desta tradução não esconder a maneira como suas ideias foram ponderadas, o modo como

seu pensamento atravessou a pena e ganhou o papel, seus limites e as características de uma

linguagem que, desorganizada ou redundante para os parâmetros modernos, com

longuíssimos parágrafos, interpunha conceitos, constituindo uma retórica típica.

20

Pode-se até justificar a falta de método com que trata os exercícios de canto,

presumindo uma urgência na publicação – que foi atrasada por motivos de doença por mais

de um ano. Imagina-se a que forças Giulio Caccini, um nobre cortesão, estava submetido

para publicar seus tratados rapidamente. Se o fizesse antes de seus rivais, prolongaria a

manutenção da posição social em que se encontrava. Estas são suposições que a tradução

não poderia corrigir, retificando períodos, organizando pensamentos, refazendo o texto de

origem.

A tradução busca as tônicas e as dominantes dos textos escritos e de algumas

partituras publicadas em Florença no início do século XVII, as quais introduziam, como era

a praxe da época, mais uma maniera de se fazer música. O texto vertido torna possível

transportar o leitor, pelas palavras, para aquele mundo sonoro-visual acontecido e não mais

apreensível. Pretende iluminar a especificidade daquela cultura através da passagem para o

português do Brasil os escritos de um cortesão italiano. Para tanto, a reversibilidade entre

os textos e partituras, de partida e de chegada, comandam as escolhas e tomadas de posição

críticas, que são inúmeras. Isto é, mantiveram-se ao máximo as possibilidades de se

retornar ao texto de partida, às suas palavras, tanto no plano semântico, quanto no plano

estilístico. Por isso, as notas de rodapé ao longo do texto reduzem-se somente às essenciais.

A tradução deve responsabilizar-se pelas finezas do próprio autor, mesmo que

sacrificando a inteligibilidade imediata.

Com o intuito de aproximar épocas tão afastadas, aspira-se manter um ritmo ouvido

das partes escritas, com um mínimo possível de explicações, notas e alterações dos longos

períodos e ideias grafadas. Felizmente, as línguas de partida e chegada, italiano e

português, beneficiam vigorosamente a conservação da elegância, do número e estrutura de

palavras e períodos, mantendo assim um contorno dos sons muito próximo entre ambas.

Compensações e ajudas ao texto de origem são feitas somente em momentos

cruciais de encadeamentos e mudanças de pensamentos. Mesmo em relação a grafemas

aparentemente negligenciáveis, como vírgulas, ponto e vírgulas, aspas, travessões e outros

diversamente utilizados pelo autor, procura-se ao máximo otimizar a reversibilidade entre

os textos.

As partituras também passaram em alguma medida por uma tradução. Quanto à sua

edição, ainda que parcial de um total de aproximadamente 70 partituras de madrigais e árias

21

foi feita a transposição para a grafia atual, tradição já bastante difundida entre executantes

de baixo contínuo, mantendo a cifragem e transportando para as claves mais usuais (fá e

sol) as músicas escritas em outras claves – como a de dó na primeira linha, correspondente

à voz da soprano – adequando e unindo a grafia de grupos de notas então escritas

separadamente, a fim de tornar a leitura possível. Para a pesquisa, foram escolhidas 9

partituras (publicadas por JEPPESEN, 1949, apesar desta apresentar o baixo contínuo

realizado) como interessante forma de cotejamento.

Este trabalho de decifração estará sempre sujeito à cuidadosa reinterpretação e

revisão específica devido à grande dificuldade de leitura em muitas das partituras. Percebe-

se pelas expressões “erros mais notáveis” e “erros ocorridos na impressão”, erratas ao final

das publicações, a possibilidade concreta e perfeitamente concebível da existência de outros

erros menos notáveis. Daí o cuidado constante nas traduções e transcrições musicais com

qualquer forma de certeza fechada. A má impressão, imprecisão métrica, falta de

correspondência entre a melodia e o texto dificultam sobremaneira a reescrita musical, visto

que programas editores musicais de computador aceitam, em geral, somente padrões e

medidas regulares atuais. É instigante o trabalho de adaptação de partituras com mais de

400 anos a recursos tecnológicos atuais – que às vezes precisam ser driblados – buscando

equilibrar as características essenciais da grafia antiga e a facilitação da leitura aos cantores

do presente.

O pudor com a partitura e o respeito à vontade nela grafada do compositor é próprio

de uma música mais recente. Desta, da qual trata este trabalho, a imaginação, a criação e a

interpretação sobre a obra, sempre sustentadas por meras pistas, contextos e conhecimentos

multidisciplinares, são fundamentais. Este processo na música antiga será sempre tentativa

em debate, pautada pela pesquisa.

Pelas características do próprio conteúdo destes tratados, não se traduziu para o

português as letras das músicas e tampouco as referências a elas no decorrer do texto, pois

levam em conta as alturas das notas em íntima relação com as vogais e sílabas

pronunciadas, que são, em última instância, a concretização objetiva do ato de cantar. A

terminologia musical convencional também foi sempre mantida no italiano, como trillo ou

gruppo.

22

Em anexo, constam nos CDs exemplos musicais, oferecidos em alguns casos em até

três versões diferentes, possibilitando ao leitor-ouvinte-cantor o conhecimento e a

comparação entre formas distintas de interpretação das lições de Giulio Caccini por

profissionais contemporâneos de renome. Esta seleção mostrou-se como relevante auxílio

nesta jornada, contribuindo para uma aproximação à sonoridade do estilo de composição de

Giulio Caccini.

A S N O V A S M Ú S I C A S

D E G I U L I O C A C C I N I D I T O R O M A N O .

E M F L O R E N Ç A P E L O S M A R E S C O T T I

M D C I .

Conrado Augusto Gandara Federici

Tradutor.

24

Eu, Frei Francesco Tibaldi, florentino da Ordem Menor, li estes madrigais musicais do Senhor

Giulio Caccini Romano, e sobre estas composições em matéria de amor mundano, não

encontrei coisa alguma que reprove a fé católica, nem tampouco contra o Prelado da Santa

Igreja, a República ou os Príncipes, e por tal fé, escrevi estas quatro linhas de próprio punho,

na igreja de Santa Cruz em Florença no último dia de junho de 1602 com a carta dedicatória ao

Senhor Lorenzo Salviati, e uma outra aos leitores.

Concede-se o direito de impressão com o consentimento do Padre Inquisidor, primeiro dia de

julho de 1602.

Cos. Vigário de Florença

Concede-se licença de impressão em Florença. In quorum fidem. Dat. Flor. 1º de junho de

1602.

O Inquisidor de Florença

25

A O I L U S T R Í S S I M O

SENHOR LORENZO SALVIATI

VOSSO HONORÁVEL SENHOR

Nenhuma coisa reconforta mais o oferecer aos outros até mesmo os pequeninos dons,

do que a gratidão de quem nesta se digna a aceitá-los. V.S. Ilustríssima sempre se

condescendeu em favorecer e acolher, não direi os dons, mas as provas dos meus exercícios

musicais: enquanto seu nobre intelecto afinado em todas as belas disciplinas, é-se deleitado não

somente em escutar de mim as minhas músicas, e de quem é exercitado por mim, e o canto,

mas amiúde ainda de honrá-las cantando-as. O porquê, devendo-me por certa experiência

artística, publicar alguns poucos Madrigais e cançonetas compostas em Ária, recomendo-os à

vossa proteção, que com tanta cortesia compraz-se em considerá-las: esperando que aquelas

Musas, com as quais ela em seu nobilíssimo jardim se firma estar em virtuoso dileto, que por

vizinhança de lugar que daquela minha humilíssima casa não se destaca, devem manter

recordadas à V. S. Ilustríssima aquela minha servitude, que de antiga que seja, deseja e espera

cada vez mais integrar-se à vossa virtude, e na benevolência de vossa graça, a qual, desejando

sempre que esteja adornada pela graça divina, a vós presto reverências. Florença no primeiro

dia de Fevereiro de 1601.

A Vossa Ilustríssima

Agradecidíssimo Servidor

Giulio Caccini.

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A O S L E I T O R E S :

Se os estudos de música feitos por mim entorno da nobre maneira de cantar,

aprendidos de meu famoso professor Scipione Del Palla, e minhas outras composições de mais

madrigais e árias, compostas por mim em diversas épocas não as manifestei até agora, isto é

proveniente de não estimar necessário: parecia-me que suficientes honrarias já recebesse pelas

minhas músicas, muito além até de seus méritos, vendo-as continuamente executadas pelos

mais famosos cantores e cantoras da Itália, e outros nobres e amantes desta profissão. Mas as

vendo agora rumarem laceradas e gastas, além do mau emprego daqueles longos giros de vozes

simples, e dobradas, isto é redobradas, entrelaçadas uma à outra, criadas por mim para fugir

daquela antiga forma de passagens às quais já se acostumaram, mais própria aos instrumentos

de sopro e de cordas, do que para as vozes, e outrossim usar indiferentemente, o crescer, e o

diminuir da voz, as exclamações, trilli e gruppi, e outros tais ornamentos à boa maneira de

cantar, foi-me necessário, e ainda movido pelos amigos, publicar minhas músicas; e nesta

primeira impressão com este discurso aos Leitores mostrar as causas, que me induziram a

similar modo de canto para uma voz solo, a fim de que, não sendo mais nutrido pela música

destes modernos tempos há pouco passados (que eu saiba) daquela inteira graça que sinto em

minh’alma ressoar, possa deixar delas nestes escritos algum vestígio, e que outros possam

alcançar a perfeição, pois Poca favilla gran fiamma seconda1. Eu, verdadeiramente nos tempos

em que florejava em Florença a virtuosíssima Camerata do Ilustríssimo Senhor Giovanni Bardi

de Conti de Vernio, aonde afluía não somente grande parte da nobreza, mas ainda eminentes

músicos, e engenhosos homens, e Poetas, e Filósofos da Cidade, havendo também eu a

frequentado, posso dizer ter apreendido mais do que seus dotes da razão, que em mais de

trinta anos de contraponto, pois estes expertíssimos gentis-homens sempre me confortaram, e

com claríssimas razões convenceram-me a não valorizar aquele tipo de música que, não

permitindo entender bem as palavras, corrompe o conceito e o verso, ora alongando e ora

abreviando as sílabas para acomodar-se ao contraponto, laceramento da Poesia, mas a ater-me

àquela forma tão celebrada por Platão e outros filósofos, que afirmaram a música não ser outra

senão a fala, e o ritmo e o som por último, e não ao contrário, a desejar que ela possa penetrar

o intelecto alheio, e realizar aqueles admiráveis efeitos os quais estimam os escritores, e que

não poderiam acontecer através do contraponto da música moderna, e particularmente

27

cantando um solo sobre qualquer instrumento de corda, que não se entendia a palavra por

conta da profusão de passagens, tanto nas sílabas curtas quanto nas longas, e em todo gênero

de música que por este meio fossem pela plebe exaltados e aclamados como solenes cantores.

Visto portanto, se como digo, que tais músicas e músicos não obtinham outro prazer fora

daquele, que podia a harmonia dar ao ouvido solo, tanto que não podiam elas mover o

intelecto sem a inteligência das palavras, ocorre-me introduzir um tipo de música pela qual os

outros pudessem quase que falar em harmonia, usando nesta (como disse em outra

oportunidade) uma certa nobre sprezzatura2 do canto, passando por vezes por algumas

dissonâncias, mantendo por isso a corda do baixo parada, exceto quando quiser servir-me dela

segundo um uso comum, com a região média do instrumento para exprimir algum afeto, não

sendo boas a outro. Lá donde principiei naqueles tempos estes cantos para uma voz solo,

parecendo-me que tivessem mais força para deleitar e mover, do que mais vozes juntas,

compus naquele tempo, os Madrigais “Perfidissimo volto”, “Vedrò’l mio sol”, “Dovrò dunque

morire”, e similares; e particularmente a ária sobre a Égloga Del Sannazaro “Itene à l’ombra de

gli ameni faggi” naquele mesmo estilo, que depois adotei para as fábulas, que em Florença

foram representadas cantando. Aqueles Madrigais e Ária ouvidos na camerata com amoroso

aplauso, e exortações a executar meu pressuposto fim por tal caminho, moveram-me a

transferir-me a Roma a fim de apresentar-lhes também acolá, onde ouvidos os ditos Madrigais

e Ária na casa do Senhor Nero Neri, muitos gentis-homens que lá se reuniam, e

particularmente ao Senhor Lione Strozzi, todos podem conceder bons testemunhos, quanto

me exortassem a continuar a iniciada empresa, dizendo-me por isto naqueles tempos, não

terem nunca ouvido harmonia de uma voz solo sobre um simples instrumento de corda, que

houvesse tido tanta força para mover o afeto da alma quanto aqueles madrigais; se pelo novo

estilo destas, como habituando-se também naqueles tempos cantar a uma voz solo os

madrigais publicados para mais vozes, não pareciam eles, além do artifício das partes

correspondentes entre eles, a parte solo do soprano, caso fosse cantada em solo, tivesse

sozinha afeto algum. Sucedeu-se que, de volta a Florença, e considerando que outros naqueles

tempos usavam demais para as músicas algumas Cançonetas, palavras vis, as quais, pareciam-

me, inconvenientes e que entre os homens conhecedores, não as estimassem. Ocorre-me

também ao pensamento, desta vez por soerguimento das almas oprimidas, compor algumas

cançonetas em ária para poder usá-las em concerto para mais instrumentos de corda, e

comunicado este meu pensamento a muitos gentis-homens da cidade, fui agraciado

28

gentilmente por eles com muitas cançonetas em medidas variadas dos versos, se como ainda

que junto ao Senhor Gabbriello Chiabrera, que em abundância e diversificação em relação a

todos os outros, supriu-me, dando-me a oportunidade de grande variação, a partir dos quais

compus diversas árias e por longo tempo. Não foram pois desprezadas em quase toda a Itália,

ora servindo-se deste estilo qualquer um que quisesse compor para uma voz solo, e

particularmente aqui em Florença, onde estando eu há já trinta e sete anos estipendiado por

estes Sereníssimos Príncipes, à mercê de sua bondade, qualquer um que quisesse, pôde ver e

ouvir ao seu bel-prazer, tudo aquilo que compus entorno destes estudos. Nestes, assim, tanto

nos madrigais quanto nas árias, sempre procurei a imitação do conceito da palavra,

pesquisando aquelas notas mais e menos afetuosas, segundo seus sentimentos, e que

particularmente houvessem graça, havendo esconso o mais que pude a arte do contraponto, e

assentado as consonâncias nas sílabas longas, e fugindo das breves, e observado a mesma regra

ao fazer as passagens, se bem que para determinado ornamento tenha usado algumas poucas

colcheias até o valor de um quarto ou de meio compasso, no mais das vezes sobre sílabas

breves, pois são notas rápidas e não passagens, mas um certo incremento de graça, se me

permitem, até porque o discernimento especial faz de cada regra insurgirem algumas exceções.

Mas porque disse acima serem mal empregados aqueles longos giros de voz, é de se advertir

que as passagens não foram criadas porque eram necessárias à boa maneira de cantar, mas

creio eu, preferencialmente, visando a uma titilação das orelhas daqueles que menos

entendessem o que seja cantar com afeto, pois se disto soubessem indubitavelmente as

passagens soariam aborrecidas, não sendo coisa mais oposta aos seus afetos, pois por isso disse

serem mal empregados aqueles longos giros de voz, mas que por mim foram assim

introduzidos para servirem às músicas menos afetuosas, e sobre sílabas longas, e não curtas, e

em cadências finais, não servindo ao resto entorno das vogais outra observação, pelos ditos

longos giros, a não ser a vogal “u”, que tem melhor efeito na voz do soprano, do que no

Tenor, e a vogal “i”, melhor no Tenor do que a vogal “u”, estando todas as remanescentes em

uso comum, apesar de muito mais sonoras serem as vogais abertas do que as fechadas, como

ainda mais próprias e mais fáceis para exercitar a disposição, a fim ainda que se devam estes

giros de voz usar, se façam com algumas regras em minhas obras observadas, e não ao acaso e

sobre a prática do contraponto, donde seria de ofício pensar primeiramente na obra que outros

querem cantar em solo, e familiarizar-se a ela, ao considerar que o contraponto seja o bastante;

mas que para a boa maneira de compor e cantar neste estilo, serve muito mais a inteligência do

29

conceito, e da palavra, o gosto, a imitação destes também nas notas afetuosas, como na sua

expressão ao cantar com afeto, pois o contraponto não convém, servindo-me de tal recurso

para acomodar somente as duas partes juntas – o baixo e o canto – e escapar certos erros

notórios, e unir algumas rijezas mais por acompanhamento do afeto, do que para usar a

habilidade, se como ainda se vê, que melhores efeitos causarão e deleitarão mais uma ária ou

um madrigal em tal estilo composto ao gosto do conceito das palavras, que tenha boa maneira

de cantar, que não desvirtuará com toda a arte do contraponto, donde não se pode extrair

melhor razão, que com a mesma prova. Tais foram pois as razões que me induziram a similar

maneira de canto para uma voz solo, e onde, e em que sílaba e vogais se devem usar os longos

giros de voz. Ora resta a dizer sobre porque o crescer e diminuir da voz, as exclamações, trilli e

gruppi, e os demais afetos supracitados que são indistintamente usados, mas que, nesse caso,

diz-se usar indistintamente, cada vez que outros deles se servem tanto nas músicas afetuosas,

onde mais se demandam, quanto nas cançonetas de dança; a raiz deste defeito (se não me

engano) é causada porque o músico não domina bem primeiro aquilo que ele quer cantar, pois

se assim fosse, indubitavelmente não incorreria em tais erros, se como mais facilmente incorre

nestes tais, pois sendo formado em uma maneira de cantar (verbograça) toda afetuosa com

uma regra geral, do que no crescer e diminuir da voz e nas exclamações, quais sejam o

fundamento deste afeto, sempre dele se serve em cada sorte de música, não discernindo se as

palavras o pedem; lá onde convosco, que bem entendem os conceitos e os sentimentos das

palavras conhecem os nossos defeitos, e sabem distinguir onde mais e menos se requeira este

afeto: a quem se deve procurar com cada estudo de vultoso prazer, e prezar mais a sua

aprovação, do que o aplauso do vulgo ignorante. Esta arte não tolera a mediocridade, e quanto

mais refinamento por sua excelência nela está, com tanto mais fadiga e diligência devemos nós

professores encontrá-lo com cada estudo e amor, amor este que me moveu (vendo eu que, dos

escritos, temos a luz de cada ciência e de cada arte) a dele deixar este tênue facho nestas notas e

discursos apensos, entendendo eu de mostrar o quanto se incumbe a quem faz profissão de

cantar solo sobre a harmonia do Chitarrone, ou outro instrumento de corda que já esteja

introduzido na teoria desta música, e toque com suficiência. Não que não possa ser

parcialmente adquirida também por extensa prática, como se vê, como fizeram muitos,

homens e mulheres, até porém a um certo termo; mas porque a teoria destes escritos até o

limite supracitado faz o ofício. E porque na profissão de cantor (pela sua excelência) não

servem somente as coisas particulares, mas o conjunto a faz melhor. Para proceder por

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conseguinte com ordem, direi que os primeiros e os mais importantes fundamentos são a

entoação da voz em todas as notas, não em solo, que nenhuma corda falte abaixo ou exceda

acima, mas que tenha a boa maneira, como ela se deva entoar, e que, por ser usada além, em

dueto, veremos um e outro, e com as notas de rodapé que mostraremos, que a mim parecerão

mais próprios para os outros afetos, que seguem anexos. São portanto alguns, que na entoação

da primeira nota, atacam-na uma terça abaixo, e alguns outros atacam-na na nota mesma,

sempre crescendo-a, dizendo-se esta a boa maneira de emitir a voz com graça, a qual a primeira

forma, por não ser regra geral, pois que em muitas consonâncias ela não se acorda, ainda que

ela se possa também usar, vinda a ser agora maneira tanto ordinária, que ao invés de ter graça

(porque também alguns se mantêm na terça abaixo por um espaço de tempo demasiado, onde

valeria a pena ser acenada) diria que ela seria ao contrário ofensiva ao ouvido, e que para os

principiantes particularmente ela deveria ser usada raramente, e como mais peregrina, eleger-

me-ia ao invés desta, a segunda maneira do crescer a voz. Mas porque eu não estou nunca

sossegado dentro dos termos ordinários e usados pelos outros, ao contrário fui sempre

investigando mais novidade a mim possível, para que a novidade seja apta a poder melhor

conseguir a finalidade do músico, isto é deleitar e mover o afeto da alma, considerei ser uma

maneira mais afetuosa o entoar a voz por contrário efeito ao outro descrito, isto é, entoar a

primeira nota diminuindo-a, apesar da exclamação, que é o meio mais essencial para mover o

afeto: e exclamação propriamente outro não é, que no extinguir da voz reforçá-la o mesmo

tanto: e tal acréscimo de voz na parte do soprano, sobretudo nas vozes falsas3, muitas vezes

tornam-se agudos insuportáveis aos ouvidos, como em muitas ocasiões ouvi.

Indubitavelmente, portanto, como afeto mais próprio a mover, melhor efeito fará o entoar da

nota diminuindo-a do que crescendo-a; pois na dita primeira forma, crescendo a voz para fazer

a exclamação, é necessário ainda ao finalizá-la, ampliá-la e por isso disse que parece forçada e

rude. Mas todo o contrário efeito fará ao diminui-la, depois que ao finalizá-la, o dar-lhe um

pouco mais de espírito tornando-a mais afetuosa; além de usar tanto uma forma quanto a

outra, e ora o outro efeito poder-se-á variar, sendo sempre muito necessária a variação nesta

arte, desde que ela seja direcionada à finalidade dita. De maneira que se esta é a maior parte da

graça no cantar até poder mover o afeto da alma, naqueles conceitos de verdade donde mais se

convém usar tais afetos, e se se demonstra com tantas vivas razões delas vêm em consequência

novamente, que destes escritos aprende-se portanto aquela graça muito necessária; que em

melhor maneira e maior clareza para sua inteligência não se pode descrever, e não obstante se

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pode alcançar perfeitamente, pelo que após o estudo da teoria e das ditas regras, se coloque em

ação aquela prática pela qual em tudo as artes torna-se mais perfeito, mas particularmente na

profissão, e do perfeito cantor e da perfeita cantora.

Daquilo portanto, que possa ser com maior ou menor graça entoado na dita maneira,

dele se pode fazer experiência nas notas escritas acima com as palavras embaixo “Cor mio deh

non languire” portanto na primeira mínima pontuada se pode entoar “Cor mio” diminuindo-a

pouco a pouco e no silenciar da semínima crescer a voz com um pouco mais de espírito, e verá

feita a exclamação tão afetuosa pela mesma nota, que cala por grau conjunto; porém muito

mais, enérgica aparecerá na palavra “deh” pela sustentação da nota, que não cala por grau

conjunto, como também suavíssima, pois, pela repetição da sexta maior, que cala por salto, o

que quis observar, para mostrar a outrem, não somente o que são exclamações e onde nasçam,

mas que podem também ser de duas qualidades, uma mais afetuosa que a outra, se pela

maneira pela qual são descritas, ou entoadas em um modo ou em outro, como por imitação da

palavra quando porém ela terá significado com o conceito: além de que todas as exclamações

em todas as músicas afetuosas, por uma regra geral, podem sempre ser usadas em todas as

mínimas e semínimas pontuadas para descender, e serão vias mais afetuosas para a nota

subsequente, que continua, que não farão nas semibreves, nas quais haverá mais espaço, o

crescer e diminuir da voz sem usar as exclamações: entendendo por consequência, que nas

músicas ariosas, ou cançonetas de dança, ao invés destes afetos, deva-se usar somente a

vivacidade do canto, base esta que deve ser transportada da mesma ária, na qual mesmo que

haja lugar para quaisquer exclamações, deve-se deixar a mesma vivacidade, e nelas não pôr

afeto algum que tenha a languidez. Eis porquê chegamos nós a uma cognição quanto seja

necessário ao músico um certo discernimento, o qual costuma prevalecer sobre a arte, como

também podemos ainda conhecer das notas acima escritas, quanta maior graça têm as quatro

32

primeiras colcheias sobre a segunda sílaba da palavra “languire” assim ritenutas da segunda

colcheia pontuada, que as últimas quatro iguais, assim descritas como exemplo. Mas porque

muitas são as coisas que se usam na boa maneira de cantar, que para encontrar-se nesta maior

graça, descrita em uma maneira, fazem efeito contrário uma da outra, donde se diz a outrem

cantar com mais ou menos graça, far-me-ão agora demonstrar primeiramente, em que guisa foi

descrito por mim o trillo e o gruppo, e a maneira usada por mim para ensiná-lo aos interessados

de minha casa, e além pois todos os outros efeitos mais necessários, para que não reste

refinamento por mim observado, que não se demonstre.

O trillo descrito por mim sobre somente uma nota, não foi por outra razão

demonstrado nesta guisa, senão porque, ao ensiná-lo à minha primeira esposa, bem como à

atual e para minhas filhas, nele não observei outra regra, além desta, na qual é escrito, e um, e

outro, isto é começar-se da primeira semínima, e rebater cada nota com a garganta sobre a

vogal “a” até a última breve, e similarmente ao gruppo; tal trillo e gruppo, quanto à supradita regra,

dominados com grande excelência pela minha ex-esposa os deixarei julgar qualquer um que a

seu tempo a ouça cantar, bem como a outrem deixo o julgamento, podendo-se ouvir, em

quanto refinamento seja feito pela minha atual esposa, que, se é verdade que a experiência seja

mestra de todas as coisas, posso com alguma segurança afirmar e dizer não se poder usar

melhor meio para ensiná-lo, nem melhor forma para descrevê-lo, do que como está expresso

um e outro. Tais trillo e gruppo por serem degraus necessários a muitas coisas que se descrevem,

e são efeitos daquela graça que mais se pesquisa para o bem cantar, e como dito acima, escritos

em uma maneira, ou em outra fazem contrário efeito daquele conveniente, mostrarei não

somente como podem-se usar, mas ainda todos estes efeitos descritos em duas maneiras com o

mesmo valor das notas, para que de toda forma cheguemos em concórdia, como acima é

repetido mais vezes, pois que com estes escritos aliados à prática se possam aprender todos os

refinamentos desta arte.

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Segundo as notas supra-escritas em duas maneiras, vemos ter mais graça a segunda do

que a primeira, da qual portanto podemos fazer melhor experiência; serão a seguir descritas

algumas destas com as palavras em baixo e junto o baixo para o Chitarrone, e todos os passos

afetuosíssimos, com a prática dos quais qualquer um poderá com eles se exercitar: e deles

adquirir respectiva maior perfeição.

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E porque nos dois últimos versos sobre as palavras “Ahi dispietato amor” na Ária di

romanesca, e no madrigal seguinte “Deh dove son fuggiti” estão incluídos todos os melhores

afetos que se podem usar entorno à nobreza desta maneira de cantar, os quais quis, por isso,

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descrevê-los; para mostrar onde deve-se crescer e diminuir a voz: a fazer as exclamações, trilli e

gruppi e, em suma, todos os tesouros desta arte, bem como para não ser necessário outra vez

demonstrar aquilo que em todas as obras seguirão: e a fim de que sirvam como exemplo, em

identificação, nestas músicas, os mesmíssimos lugares onde serão mais necessários, segundo os

afetos das palavras. Segue-se pois, que de nobre maneira seja esta assim chamada por mim, que

seja usada sem se submeter à métrica regular, muitas vezes sendo a metade o valor da nota,

menos segundo os conceitos das palavras, que é, pois, donde nasce aquele canto em sprezzatura,

de que se fala; lá onde, portanto, são tantos os efeitos a serem usados para a excelência desta

arte, para a qual é tão necessária a boa voz, quanto a respiração, para do fôlego se valer onde

mais aprouver, será portanto útil advertência que o professor desta arte, que deve pois cantar

em solo sobre o Chitarrone, ou outro instrumento de corda, sem ser forçado a acomodar-se a

outro que a si mesmo, eleja-se um tom, no qual possa cantar em plena e natural voz, para fugir

das vozes falsas. Os quais, para fingi-los - ou ao menos nos forçados - vale-se da respiração

para não descobri-los muito (pois, no mais, costumam ofender aos ouvidos), dela também

valendo-se para dar maior espírito no crescer e diminuir da voz, nas exclamações e todos os

outros efeitos que mostramos; faça sim, que a respiração não lhe falte, pois, onde é preciso.

Mas das vozes falsas não podem nascer a nobreza do bom canto: que nascerá de uma voz

natural, cômoda em todas as notas, a qual qualquer um poderá manejar a seu talento, sem se

valer da respiração para outra coisa, senão para se mostrar senhor de todos os melhores afetos,

que se podem usar nesta nobilíssima maneira de cantar, cujo meu amor, e genericamente de

toda música, em mim aceso por inclinação da natureza, e pelos estudos de tantos anos,

desculpar-me-á se deixado fosse devanear muito além, que talvez não conviesse a quem não

estima menos o ensinar, do que o comunicar o aprendido, e à guisa de reverência, levo a todos

os professores desta arte: a qual, sendo belíssima, e deleitando naturalmente, então se faz

admirável, e ganha-se inteiramente o amor de outros, quando com ela, aqueles que a possuem,

e com o seu ensino, e com o deleitar de tantos outros exercitando-a frequentemente, a

descobrem, e a revelam como um exemplo e uma imagem verdadeira daquelas incontroláveis

harmonias celestes, das quais derivam tantas graças sobre a Terra, com as quais desperta os

intelectivos ouvintes à contemplação dos infinitos diletos no Céu espalhados.

Pois que eu tenha o costume de em todas as minhas músicas saídas de minha pena,

denotar pelas cifras sobre a parte do Baixo, as terças e as sextas, nas maiores onde é assinalado

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o sustenido e nas menores o bemol, similarmente às sétimas ou outras dissonâncias para

acompanhamento das partes do meio; resta agora dizer que as ligaduras das partes do Baixo,

nesta maneira, foram usadas por mim, para que após a consonância do acorde tanja-se

somente a corda assinalada, sendo esta a mais necessária (se não estou errado) na própria

aplicação do Chitarrone, e a mais fácil de se usar, e de se realizar, sendo este instrumento o

mais apto a acompanhar a voz, particularmente a do Tenor, do que qualquer outro; deixando

por remanente ao arbítrio de quem mais entende, o tanger com o Baixo daquelas cordas, que

podem elas ser de melhor entendimento, ou que mais acompanharão a parte que canta em

solo, não se podendo, exceto pelo uso da tablatura, pelo quanto conheço, descrevê-lo com

mais facilidade. Mas entorno às ditas partes do meio, é vinda uma observação singular de

Antonio Naldi, dito o Bardella, gratíssimo servidor destas Altezas Sereníssimas. O qual, pois se

como foi o inventor, assim é reputado por todos como o mais excelente que, até os nossos

tempos, tenha melhor tocado tal instrumento, pois das suas realizações fazem fé os

professores, e aqueles que se deleitam ao exercício do Chitarrone, se já mesmo ele não adviesse

daquele, que em mais outras vezes, também sucedido é, isto é que outros se envergonhassem

em ter aprendido as disciplinas de anteriores, como se alguém pudesse ou devesse ser inventor

de todas as coisas, e como se fosse tolhido ao engenho dos homens poder sempre andar

criando novas disciplinas à elevação da própria glória e benefício comum.

Do Impressor aos Leitores.

A dilação do tempo desta obra até a data da dedicatória, que foi no dia primeiro de fevereiro

até este último dia de junho, no qual é subscrita a licença do Superior, pareceria longa e

desconforme, caso o discreto Leitor não fosse advertido de que, após o início da impressão, a

longa enfermidade do autor, e a enfermidade e morte de meu pai Giorgio Mariscotti, foram as

verdadeiras causas e desculpas de alterar os dias e as datas.

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[ Madrigais: ]

Queste lagrim’ amare

Dolcissimo sospiro

Amor io parto

Non più guerra, pietate

Perfidissimo volto

Vedrò’l mio Sol

Sfogava con le stelle

Fortunato augellino

Dovrò dunque morire?

Filli mirando il cielo

F I N A L D O S M A D R I G A I S .

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Não tendo podido por muitos impedimentos publicar como era meu desejo o

“Rapimento di Cefalo”, música composta por mim por mandamento do Sereníssimo Grão

Duque meu Senhor, e representada no casamento da cristianíssima Maria Medici Rainha da

França e di Navarra, é-me oferta agora, com a oportunidade de com estas outras músicas

minhas, somar àquele último Coro deste Rapimento, a fim de que se veja a variedade das

passagens feitas por mim pelas partes de canto solo, eu não seja obrigado a delas fazer outra

demonstração, como havia pensado, podendo-se na parte do Baixo, que nesta vez busca as

notas do Tenor, e nos dois Tenores seguintes observar as regras feitas por mim sobre as

sílabas, as longas, as breves. E ainda que eu não tenha usado a boa e a ruim, segundo as regras

do contraponto, assim nesta partitura como nas minhas outras músicas, donde intervêm tais

ornamentos, não me inquieto porque não usei de tanger no retorno destes a corda do Baixo

na dissonância, assim julgo, que se deva permitir, e por isto, e pela variedade deles, como ainda

pelo privilégio, que deve haver nesta partitura de canto solo, não podendo errar com as partes

do meio, como erro grande seria, se nas outras músicas, que se costumam a mais vozes

qualquer uma fazer passagens, bastando pois para não corromper o artifício do contraponto,

neste (além de muitos erros nos quais se pode incorrer) usar somente a boa maneira, e o afeto

sobre o qual, no discurso acima, suficiente por declaração, se é falado.

Último Coro do Rapimento di Cefalo executado entre vozes e instrumentos por setenta e

cinco pessoas à meia Lua, tanto quanto mantinha a Cena onde depois a ela segui outros

concertos, o baile para o qual em outra ocasião publicarei.

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Esta ária cantou em solo com as mesmas passagens como estas Melchior Palentrotri

Músico Excelente da Capela de N. S. [Muove si dolce]

Esta ária cantou em solo com outras passagens segundo seu estilo Jacopo Peri, Músico Excelente estipendiado desta Alteza Sereníssima

[Caduca siamma]

Esta ária cantou em solo, parte com as mesmas passagens, e parte a seu gosto o famoso Francesco Rasi’ Nobile

Aretino, muito grato Servidor a Alteza Sereníssima de Mântua [Qual trascorrendo]

[Quand’ il bell’ anno primavera]

Ária Primeira [Io parto amati lumi]

Ária Segunda

[Ardi cor mio]

Ária Terceira [Ard’ il mio petto misero]

Ária Quinta [Fillide mia]

Ária Oitava

[Odi Euterpe il dolce canto]

Ária Nona [Belle rose purpurine]

Ária Última

[Chi mi confort’ ahimé]

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E R R O S M A I S N O T Á V E I S

ocorridos ao imprimir.

Na Página de Queste lagrim’ amare, quinto sistema na parte do Baixo, segundo compasso, a sexta nota

deve ser uma mínima.

Na Página de Non più guerra, pietate, primeiro sistema na parte do Tenor, segundo compasso, sobre a

primeira nota vai a palavra “duol”.

Na Página de Filli mirando il cielo, primeiro sistema na parte do Baixo, quarto compasso, na segunda nota

b. fa b. mi, a diesis que está na nota subsequente, onde não deve estar.

Na Página de Muove si dolce, sexto sistema na parte do Baixo, primeiro compasso, a segunda nota no la mi

ré que é mínima, devem ser duas semínimas ligadas, e a segunda assinalada em cima com uma sexta maior.

E M F L O R E N Ç A , ________ ________________ _______________ __________________ _________ __

Impresso por Giorgio Marescotti. M DC II. Com Licença dos Superiores.

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N O V A S M Ú S I C A S E N O V A M A N E I R A

DE E S C R E V Ê – L A S Com duas árias particulares para Tenores, que alcançam

as notas do Baixo,

DE GIULIO CACCINI DE ROMA, DITO GIULIO ROMANO,

Nas quais se demonstra, que com tal Maneira de escrever e com a prática desta, possam-se aprender todos os refinamentos dest’ Arte,

sem a necessidade do Canto do Autor;

Adornadas com Passagens, Trilli, Gruppi, e novos afetos para verdadeiro exercício de qualquer um que queira professar o cantar em solo.

E M F L O R E N Ç A .

Impresso por Zanobi Pignon, e Companheiros. 1614. ________ __ _________ _ __ __________ ____ ______ _ ________________ ______ _ _______________ ____ ____ ________ ______ _ ________ __________ ________ ________ ____ ______ __

Com Licença dos Superiores.

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A O M U I T O I L U S T R E S E N H O R P I E R O F A L C O N I E R E M E U SENHOR.

Acostumei muitas vezes com aqueles que aprenderam alguma arte, ou disciplina de

alguém, ou que de alguém tiveram ocasião de aprendê-la, de oferecê-los os primeiros esforços,

que entorno a tal arte, ou disciplina fizeram, e publicaram, mostrando desta maneira em troca

algum sinal de débita gratidão; mas revendo quão grande seja a antiga obrigação que tenho à

memória do Senhor Paolo Falconieri, que aconselhou-me na minha juventude aos estudos de

Música, e incitou-me, e obrigou-me, por assim dizer, com a ajuda de seus favores e de sua

proteção a com eles empenhar-me longamente, ofertarei a V.S. seu maior filho, não as

primícias, mas aquelas considerações, que reuni entorno ao modo de bem cantar, de poder-se

aprender cada refinamento dos escritos após as observações de muitos anos, não somente com

meu próprio exercício contínuo do cantar, e da minha esposa, e das minhas filhas, mas por ter

escutado os maiores homens cantores, e mulheres, que na Itália e fora da Itália estiveram ao

término de cinquenta anos, ou estão no presente, poderá V.S. conhecer reciprocamente que

obséquio meu em sua Casa, começado nos anos de minha infância, permanece até aqueles de

minha velhice conservando-se o mesmíssimo até àqueles poucos sobre os quais poderei

avançar, desejando entanto a V.S. suma felicidade e beijando-o as mãos de Casa. No dia 18 de

agosto, 1614.

De V.S. muito Ilustre .

Servidor devotadíssimo, & agradecidíssimo.

Giulio Caccini de Roma.

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A DISCRETOS LEITORES

Muitos anos atrás, sem que eu publicasse alguma das minhas obras musicais para uma

voz solo, delas insurgiram muitas outras, feitas em diversos períodos, e ocasiões, das quais foi

mais notória, a música, que fiz para a fábula de Dafne do Senhor Ottavio Rinuccini,

representada na casa do Senhor Jacopo Corsi de honrada memória a estas Altezas

Sereníssimas, e outros Príncipes; mas as primeiras que publiquei foram as músicas feitas no

ano de 1600 na fábula de Eurídice, obra do mesmíssimo autor; e foram as primeiras, que se

viam chegar à luz na Itália por qualquer compositor e de tais estilos para uma voz solo; em

seguida publicara no ano de 1601 aquelas, que intitulei as novas músicas, e com elas publicara

um discurso no qual se contém (se não erro) tudo aquilo, que possa desejar quem professe de

cantar em solo, e visto no presente o quão universalmente acolhida e aceita esta minha maneira

de cantar em solo, sobre a qual escrevo justamente, como se canta, quanto seja preferido aos

outros, pelo lucro, que de tais obras fizeram os editores; e considerado quanto, além do cantar

em solo tenha sido aceita a maneira das músicas de coros das mencionadas fábulas, e as

invenções delas, e de outras fábulas, feitas após, onde da mesma forma fiz diversas árias

segundo o que demandavam os diversos afetos de tais coros, claros e harmoniosos, resolvi

publicar novamente estas outras árias minhas, algumas das quais foram escritas na mesma

maneira, que convém, que foram cantadas, havendo marcado sobre a parte, que canta, trilli, e

gruppi, e outros novos afetos nunca mais vistos pela estampa, com passagens mais próprias à

voz, passagens estas que, por ora, não desejei mostrar delas outra variação, sendo a mim, estas,

por si só suficientes ao justo exercício desta arte, não havendo necessidade de repetir mais

vezes o mesmíssimo podendo ser estas degrau a outras mais difíceis, como oportunamente se

demonstrará; algumas aqui as inseri, as quais nesta cantam ora em voz de tenor, e ora de baixo

com passagens mais próprias para cada uma das duas vozes, e estas para o uso de quem tivesse

talento natural de alcançar os extremos destas tessituras, sendo necessário na dita parte do

baixo nas semínimas, e colcheias pontuadas, que desçam por grau conjunto, trilá-la ora uma

ora a outra, para dar-lhe maior graça, força e espírito, e por assim dizer bravura, e audácia, que

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mais se busca na mencionada parte, e na qual tanto menos afeto se exige, do que na parte do

tenor; e quanto ao tamanho, ou à amplitude a se observar nas mencionadas árias, segundo o

que mais exige a gravidade a se usar, conforme aos afetos das palavras, e outros movimentos

da voz mais em uma, do que na outra parte, delas me remeto ao juízo do cantante, juntamente

ao meu discurso publicado de 1601. Assinalei sobre o Baixo a ser realizado, as terças, e sextas

maiores, e menores indiferentemente tanto por bequadro, quanto por bemol, e cada outra

coisa mais necessária, a fim de fazer-me mais acessível aos menos peritos, que tivessem gosto

de exercitar-se nestas; recebam-nas corteses leitores com aquele afeto, que vos ofereço, e

vivam felizes.

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A L G U M A S A D V E R T Ê N C I A S.

Três coisas principalmente se convém saber de quem professa bem cantar em solo com

afeto. São elas o afeto, sua variação e a sprezzatura. O afeto em quem canta outro não é que

pela força de diversas notas, e de vários acentos com o temperamento do fraco, e do forte uma

expressão das palavras, e do conceito, que se consegue ao cantar até mover o afeto em quem

escuta. A variação no afeto, é aquela passagem, que se faz de um afeto em um outro com os

mesmíssimos meios, segundo o que as palavras, e o sentido guiam o cantante sucessivamente.

E esta é de se atentar minuciosamente a fim de que com a mesmíssima vestimenta (por assim

dizer), alguém não se abalasse a representar o esposo, e o viúvo. A sprezzatura é aquela graça

que se dá ao canto com a diminuição em mais colcheias, e semicolcheias sobre diversas notas

feita a tempo, cedendo ao canto uma certa angústia finita, e sequidão, rendendo-o prazeroso,

licencioso, e arioso, se como no comum falar a eloquência, e a diminuição tornassem evidentes

e doces as coisas de que se fala. Nesta eloquência das figuras, e às cores retóricas assimilaria, as

passagens, os trilli, e os outros ornamentos similares, que esparsamente em cada afeto se

podem tal ora introduzir. Conhecidas estas coisas, acreditarei com a observância destas minhas

composições, que quem tiver disposição ao cantar, poderá porventura ter como resultado

aquele fim, que se deseja no canto especialmente, que é o deleitar.

T A B E L A :

[A quei sospir ardenti] [Se voi lagrime à pieno] [Gia non l’allacia] [Alme luce beate] [Vaga suspin’ascosa] [Mentre che fra doglie, e pene] [Se in questo scolorito] [L’abella man’vistringo] [Non al Ciel cotanti lumi] [S’io vivo anima mia] [Tutto il di Piango] Amor ch’attendi...................60 [Se ridete gioiose] [In tristo umor] [O piante, ò selue] [Ohime begl’occhi, e quando] [Lasso che pur] [Tu ch’ai le penne amore] [Dite ò del foco mio] [Più l’altrui fallo] Al fonte al prato...................61 [O dolce fonte del mio pianto amaro]

[Torna de torna] [Io Che l’eta solea]

Aura amorosa.......................62 O che felice giorno..............63

[Chio non tami cor mio] [Diseguir falso duce] [Dalla porta d’oriente] [Hor, che lungi da voi] [E poi ch’a mortal ] [Con le luci d’un bel Ciglio] [Pien d’amoroso affetto] [Reggami per pieta] [Amor l’ali m’in penna] [Deh chi d’alloro]

O fim da Tabela

Erros ocorridos na impressão. Da pág. 20 até a 25 não as enumero [no original], mas o alfabeto (índice)

está certo; na página [de Vaga suspin’ascosa], no 7 verso ao final há uma colcheia que não procede; na

página da ária “Io che l’eta” no décimo verso onde se lê o segundo bemol convém uma mínima no de

sol ré.

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NOTAS DA TRADUÇÃO

1 "Pouca faísca grande chama segue”, Dante. A Divina Comédia. Paraíso, I, 34 – tradução de Italo Eugenio Mauro. SP: Editora 34, 2004, p.14. 2 No contexto musical: “desprezo”, displicência, desprezo pelo canto em favor da fala, desprendimento do tempo, do pulso rígido, no sentido de liberdade de expressividade e andamento (SADIE, 2001, p.223). “Liberdade do canto” de acordo com Jean-Philippe Navarre (Apud MULLER, 2006, p.215). 3 Possivelmente falsetes. “Os usos mais remotos da fonação em ‘segundo registro’ na música ocidental são difíceis de traçar ou definir por causa das ambiguidades de terminologia. Teóricos da renascença e do início do barroco, como Maffei, Zacconi, Caccini e Vicentino, parecem contradizerem-se nos tópicos relacionados à voz, incluindo a fonação no ‘segundo registro’ ” (SADIE, 2001, p.538).

CAPÍTULO 1

ELOGIO AO CANTO

Amor doce visão Auras divinas suspiro ardente

coração Olhos dor lágrima morte...

dulcíssimo luzes meu bem Sol belo

Teus olhos estrelas amor sedução arde

meu coração Meu peito miserável vida Piedade

Alegria choro languir amor

Estas palavras, aqui desarrumadas, despontaram repetidas vezes nas Novas Músicas

de Giulio Caccini. Sua música as revestiu e adornou, alargando-as até seu limite expressivo.

Não seriam mais somente palavras, mas sua potência extrema composta de modo a

comover. Seriam, como ele mesmo indicou, reles fagulhas a prenunciar o fogo das paixões

da alma traduzidas no ato de cantar.

Amparado pela produção de renomados poetas, como Petrarca, Rinuccini, Guarini e

Chiabrera, Giulio Caccini escolheu textos seguindo a tradição humanística e musicou seus

versos, esculpindo suas sílabas, com o intuito maior de dar a estas e outras tantas

expressões dos sentimentos sua mais ampla eloquência, sua força maior.

O tema único ao qual dedicou sua vida foi o aprimoramento técnico da expressão do

amor mundano pelo canto cortesão, contribuindo para criação de convenções musicais que,

na arte musical, dessem conta da força moral desejável ao bom cidadão. Referia-se ao

canto, da mesma forma como ao homem, “para dar-lhe maior graça, força e espírito, e por

assim dizer bravura, e audácia” (CACCINI, 1641). Esta escolha, além de pessoal, foi

também inelutavelmente social, dentre os assuntos em voga.

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A temática do amor, da honra, da beleza, da coragem, e de todas as outras virtudes que permeavam e interessavam o modo de viver quinhentista, tornam-se, pois, centrais e recorrentes tanto nas construções teóricas, como nas manifestações estéticas. É emblemático este novo tom, pois ele indica que os ventos renascentistas haviam imprimido uma nova forma de observar o comportamento humano, uma nova maneira de acompanhar o modo de vida que se encontrava em mutação. Herança dos primórdios do movimento humanista, este novo olhar de pensadores e artistas se voltava, então, para a vida afetiva dos homens, centrava-se nas novas formas de viver, de se relacionar e de fazer cultura. (...) De sorte que, é preciso efetuar esta equação que liga pensamento com proposição de vida, para melhor compreender o desenvolvimento das “doutrinas do amor” no ambiente estético que gerou esta vastíssima coleção de tratados (MULLER, 2006, p.172-173).

Sua música não era para ser executada para grandes plateias, mas na comodidade do

salotto, da sala pequena, íntima, somente onde seria possível a apreensão de todas as

nuances, cumpridas a pouca distância do ouvinte. Ele trabalhou sobre o canto acompanhado

por um instrumento base. Difícil, neste aspecto, aceitar que sua obra seja confinada a

precursora da contrastante e potente ópera, que se assemelharia muito mais ao espetáculo

grandioso moderno. Irônico destino. Seus ensinamentos iam em direção contrária, eram a

respeito do domínio da suavidade, do detalhe, das fragilidades humanas, do apuro do

sentimento da palavra, de seus requintes. Apesar disso, Giulio Caccini certamente tinha

pretensões maiores com tais publicações, visto o ambiente e a época de forte disputa pelo

posto de criador do novo stile recitativo.

As músicas de Giulio Caccini, mais do que apenas composições de um manual

técnico de canto, são testemunhos dos refinamentos do sentimento, do cuidado e atenção

para com a amplitude dos fundamentos expressivos em música, como “a entoação da voz

em todas as notas”, “cantar solo sobre a harmonia do Chitarrone”, “o crescer, e o diminuir

da voz, as exclamações, trilli e gruppi, e outros tais ornamentos à boa maneira de cantar”,

“a sprezzatura”, “a imitação do conceito da palavra, pesquisando aquelas notas mais e

menos afetuosas, segundo seus sentimentos, e que particularmente houvessem graça,

havendo esconso o mais que pude a arte do contraponto”, “onde, e em que sílaba e vogais

se devem usar os longos giros de voz”, “deleitar e mover o afeto da alma”. São retratos da

cultura, da criação humana sobre a boa maneira de se executar, para além do canto, o

movimento dos afetos entre as pessoas, ainda que tal movimento fosse também

coreografado por convenções dispersas por toda forma de comportamento social. Quase nos

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escapa tal compreensão, distantes que ficamos desta importância. Apenas a audição das

músicas recuperaria seus sentidos talvez já perdidos. Almejar descobrir este canto genuíno

refletiria apenas uma fixação teórica.

Sabe-se impossível recuperar, em termos de uma plenitude estilística, o modo de cantar do século XVI, e tal impossibilidade é geradora de indefinições teóricas recorrentes. Seja como for e a partir da reflexão teórico-musical configurada, importa marcar que o compositor buscou constituir uma melodia declamatória e expressiva, busca que aparece sempre posta e reposta em seu Prefácio (MULLER, 2006, p.90).

Suas recomendações técnicas descrevem sutilezas e minúcias, dão pinceladas muito

delicadas, que somente as vozes mais bem preparadas e longamente treinadas eram capazes

de executar, sem contudo precisarem ser outras vozes. Giulio Caccini refaz curiosamente os

“longos giros de voz” contra os quais tanto adverte no cantar, escrevendo redundantemente

sobre determinados pontos. Das páginas que redigiu, a maioria são em música, são

partituras para se cantar e praticar as habilidades capazes de transformar as palavras em

afeto, exercícios de requintes bastante específicos relacionados à arte do canto. De fato,

suas músicas nem sempre obedecem criteriosamente às suas próprias lições, revelando mais

uma necessidade de se escrever sobre as novas tendências, “falar em harmonia”, publicá-las

e demarcar limites sociais, do que realizá-las efetiva e disciplinadamente com rigor

absoluto. Seu propósito parece que ia além de uma apostila destinada à prática de seus

alunos, sugerindo, pelas suas palavras, ambições mais particulares em relação ao próprio

status do que uma preocupação pedagógica com o canto – tanto que sequer sugere

exercícios de repetição, exclusivamente técnicos, nem tampouco metodológicos da prática.

As partes introdutórias, praxes e exigências formais, revelam não mais do que sua

adequação e comum submissão às normas cortesãs, aos maneirismos, aos movimentos

velados de pedido e permissão, dedicatória e favorecimento, publicação e reconhecimento.

As chancelas da igreja na figura do inquisidor e dos “honoráveis senhores” citados

autorizam a perpetuação de seu trabalho maior, de registrar suas composições, de atestar

publicamente os feitos que menciona, de autofirmar sua capacidade de cantor já em

declínio e possivelmente ameaçado por outros mais jovens.

66

Se os estudos de música feitos por mim entorno da nobre maneira de cantar, aprendidos de meu famoso professor Scipione Del Palla, e minhas outras composições de mais madrigais e árias, compostas por mim em diversas épocas não as manifestei até agora, isto é proveniente de não estimar necessário: parecia-me que suficientes honrarias já recebesse pelas minhas músicas, muito além até de seus méritos, vendo-as continuamente executadas pelos mais famosos cantores e cantoras da Itália, e outros nobres e amantes desta profissão. Mas as vendo agora rumarem laceradas e gastas, além do mau emprego daqueles longos giros de vozes simples, e dobradas, isto é redobradas, entrelaçadas uma à outra, criadas por mim para fugir daquela antiga forma de passagens às quais já se acostumaram, mais própria aos instrumentos de sopro e de cordas, do que para as vozes, e outrossim usar indiferentemente, o crescer, e o diminuir da voz, as exclamações, trilli e gruppi, e outros tais ornamentos à boa maneira de cantar, foi-me necessário, e ainda movido pelos amigos, publicar minhas músicas; e nesta primeira impressão com este discurso aos Leitores mostrar as causas, que me induziram a similar modo de canto para uma voz solo, a fim de que, não sendo mais nutrido pela música destes modernos tempos há pouco passados (que eu saiba) daquela inteira graça que sinto em minh’alma ressoar, possa deixar delas nestes escritos algum vestígio, e que outros possam alcançar a perfeição, pois Pouca faísca, grande chama segue (CACCINI, 1601).

Como ditava a tradição, abre seu primeiro texto de 1601 dirigindo-se humildemente

aos leitores, falando de como foi obrigado a investir em tal publicação, satisfeito que estava

em ouvi-las dos melhores cantores da época, a fim de protegê-las dos contínuos

desvirtuamentos que estavam sofrendo. Sem dúvida, esta sempre foi uma das convenções

mais eficazes: rebaixar-se inicialmente para, em seguida, estar em posição de elogiar-se e

cantar os próprios louros, sem parecer por demais pedante. Referiu-se à própria obra como

“algum vestígio” do ressoar de sua alma, que pudesse ajudar outros a alcançar a perfeição,

ganhando a oportunidade de estampá-las.

Como penetrar e mergulhar na sensibilidade daqueles tempos? Como poder

imaginar além das partituras, recriando aqueles estados de humanidade perceptíveis para

ouvidos mais do que atentos, educados? Como figurar os descaminhos pelos quais a

percepção auditiva e o sentimento passaram ao longo destes quatro séculos? Para que

despertar uma realidade de ânimos tão remota que quase se destaca completamente da

contemporaneidade? Como encontrar os fios que ainda são capazes de nos devolver a

beleza, a descoberta, a expressão artística? Quais significados poderiam ter, hoje, o

suspirar? Poderia algum outro meio ser capaz de condensar tão bem um retrato assim fiel

das formas de educação dos comportamentos renascentistas, como a música? “As formas

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da arte registram a história da humanidade com mais exatidão do que os documentos”

(ADORNO, 2007, p.42).

Cantando e respirando: Il canto è fiato.

Giulio Caccini não era um tratadista teórico, nos moldes de Gaffurio, Zarlino,

Galilei ou Mei, mas um músico prático, um exímio cantor e professor, conforme afirmam

testemunhos. Objetivamente, não redigiu uma pesquisa sobre os referenciais clássicos, nem

mesmo explorou grandes explicações sobre as motivações da música dos antigos e suas

relações com a corte moderna, fazendo apenas referências indiretas, aprendidas em sua

frequentação nas reuniões da Camerata Fiorentina. Ateve-se ao ofício do canto, apurando e

compondo peças que possibilitassem sínteses concretas já o suficientemente lavradas no

âmbito teórico por seus contemporâneos acerca da comoção da alma pela música.

Suas obras são um marco divisor de águas porque atestaram, ao mesmo tempo em

que se fazia, uma prática de canto tida como revolucionária. Pelas palavras de Certeau

(1994, p.200):

Essas aventuras narradas, que ao mesmo tempo produzem geografias de ações e derivam para os lugares comuns de uma ordem, não constituem somente um ‘suplemento’ aos enunciados pedestres e às retóricas caminhatórias. Não se contentam em deslocá-los e transpô-los para o campo da linguagem. De fato, organizam as caminhadas. Fazem a viagem, antes ou enquanto os pés a executam.

Compilou nas suas obras publicadas uma coleção de composições musicais já

executadas, como exemplos práticos da boa maneira de cantar, observando princípios

interpretativos essenciais, encontrando nestas a oportunidade de destaque e de autointitular-

se inventor de um modo de cantar dramático, já praticado também por outros concorrentes,

como Cavalieri e Peri, e que se tornava o costume cortesão em voga, apesar da prática

monódica recorrente de longa data – como a monodia grega antiga, a monodia do canto

litúrgico da igreja medieval, a monodia ritualística de outros povos com diferentes tradições

culturais.

Giulio Caccini aproveitou bem a oportunidade da exposição pública e eternizou suas

instruções particulares sobre o canto, contribuindo para a criação de convenções musicais.

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Destacou os seguintes princípios:

-Crítica ao contraponto polifônico da “música moderna”: “(...) não valorizar aquele

tipo de música que, não permitindo entender bem as palavras, corrompe o conceito e o

verso, ora alongando e ora abreviando as sílabas para acomodar-se ao contraponto,

laceramento da poesia” (CACCINI, 1601).

Acompanhando as importantíssimas reflexões de Girolamo Mei, dito

verdadeiramente o único filólogo e historiador especializado na música grega, pois erigiu

suas pesquisas a partir de fontes primárias – uma vez que era fluente em grego – Giulio

Caccini apostou na monodia como forma mais autêntica de alcançar o movimento dos

afetos, à maneira grega. Em uma carta de 1572 a Vincenzo Galilei, Mei explica os

fundamentos da aversão ao contraponto de vozes de diferentes tessituras:

Quanto a estes princípios [da música], é necessário que sejam naturais e sólidos; não derivados, pois, de algo variável. Nesse sentido, visto que a música que concerne ao canto gravita em torno das qualidades da voz, e nisto, especialmente, em ser aguda, média ou grave, pareceu-me que deveria ser primordial que a virtude desta arte repousasse seu principal fundamento necessariamente nestas disposições [tímbricas]. E, ademais, não havendo semelhança entre cada uma destas paixões da voz [grave, média, aguda], seria irrazoável que tivessem as mesmas faculdades. De fato, por serem contrárias entre si – nascidas de disposições [humanas e sonoras] contrárias, ocorria, necessariamente, que tivessem propriedades contrárias, as quais, por sua vez, tinham força para produzir reciprocamente efeitos contrários. Visto que a voz foi concedida pela natureza aos seres animados, e ao homem, em particular, para a significação de seus próprios conceitos, era efetivamente racionável que estas suas qualidades diversas – fundamentalmente divergentes umas das outras – fossem adequadas, cada uma por si e distintamente, para expressar afeições determinadas; como também era necessário, ademais, que cada uma exprimisse, comodamente, as suas próprias afeições e não as das outras. De tal modo, que a voz aguda não pudesse exprimir a afeição da média com justeza, e menos ainda a da grave; nem a grave, inversamente, a da média, e menos ainda a da aguda; nem a média, tampouco, a afeição da aguda ou grave. Mas, ao revés, que a qualidade de uma, sendo necessariamente àquelas oposta e reversa, surgisse como impedimento à operação da outra. A partir desta ideação e fundamento passei a argumentar que se a música dos antigos cantasse simultânea e misturadamente várias árias na mesma canção, como fazem nossos músicos com o baixo, tenor, contralto e soprano – ou mesmo com mais ou menos vozes dispostas a um só tempo, sem dúvida teria sido impossível que tivesse podido, galhardamente, mover os afetos desejados no ouvinte, como se vê que a isto chegasse pelos inúmeros relatos e testemunhos de grandes e nobres escritores (apud CHASIN, 2004, p.13).

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-A “sprezzatura”: termo utilizado para quando o canto devesse se aproximar da fala,

em um contexto melódico:

A sprezzatura é aquela graça que se dá ao canto com a diminuição em mais colcheias, e semicolcheias sobre diversas notas feita a tempo, cedendo ao canto uma certa angústia finita, e sequidão, rendendo-o prazeroso, licencioso, e arioso, se como no comum falar a eloquência, e a diminuição tornassem evidentes e doces as coisas de que se fala (CACCINI, 1614).

E também quando o canto pudesse submeter-se a uma variação da métrica, em um contexto

rítmico, recurso modernamente denominado por rubato:

Segue-se pois, que de nobre maneira seja esta assim chamada por mim, que seja usada sem se submeter à métrica regular, muitas vezes sendo a metade o valor da nota, menos segundo os conceitos das palavras, que é, pois, donde nasce aquele canto em sprezzatura, de que se fala (CACCINI, 1601).

Tal expressão musical complementada pelo contexto da cortesania enriquece-se

sobremaneira: consistia na faculdade ou facilidade espontânea para o fazer, uma

superioridade sem demonstração de dificuldade. O texto de Castiglione (1997, p.42) assim

ilumina a palavra:

Mas, tendo eu várias vezes pensado de onde vem essa graça, deixando de lado aqueles que nos astros encontram uma regra universal, a qual me parece valer, quanto a isso, em todas as coisas humanas que se façam ou se digam mais que em qualquer outra, a saber: evitar ao máximo, e como um áspera e perigoso escolho, a afetação; e, talvez para dizer uma palavra nova, usar em cada coisa uma certa sprezzatura [displicência] que oculte a arte e demonstre que o que se faz e diz é feito sem esforço e quase sem pensar.

Seria uma espécie de canto que garantiria a liberdade técnica da demonstração da

habilidade de escolha do intérprete sobre a melhor forma de se cantar, de se dosar a medida

entre melodia, fala e regularidade rítmica intencionando aumentar o vigor da palavra, “(...)

passando por vezes por algumas dissonâncias, mantendo por isso a corda do baixo parada”

(CACCINI, 1601). No entanto, a noção de sprezzatura descrita em O Cortesão, a

espontaneidade calculada, a simulação de uma liberdade da regra, é de fato conformidade a

uma regra mais abrangente. A regra maior que regia as convenções de comportamento no

ambiente cortesão era a aparência. Giulio Caccini apropria-se de tal conduta, adequando e

colocando em planos associados o modo de vida e a técnica artística musical, estabelecendo

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uma influência recíproca e uma perfeita coesão entre as condições de produção de sua nova

música e os artifícios técnicos que a constituíram.

Interessante pensar sobre o conceito de aparência: “O que é, para mim, a aparência?

Na verdade, não o contrário de alguma essência – o que poderia eu dizer de qualquer

essência, a não ser, justamente, apenas os predicados de sua aparência!” (Nietzsche, F. A

Gaia Ciência, aforisma 54 apud ROSSET, 1983, p.63-64). Para Rosset, “o elogio da

aparência coincide com o elogio do real, pois o espaço da representação não é, para

Nietzsche, senão o lugar preciso onde se encontrará as coisas, seu local próprio, a

“localidade” precisa do real” (ROSSET, 1983, p.60). A condição de aparência não

representa uma situação inferior ou menos legítima do que uma pretensa realidade

mascarada, mas, ao contrário, a própria realidade da condição humana que se constitui por

variantes de seus símbolos e códigos inventados.

-O “cantar solo sobre a harmonia do Chitarrone” (CACCINI, 1601) e o “baixo

contínuo”. Sugeria uma linha simples do baixo, com cifras que indicavam ao intérprete do

instrumento acompanhador (chitarrone, tiorba, alaúde, cravo, viola da gamba ou outro), por

convenção usual da época, a harmonia a ser executada:

Pois que eu tenha o costume de em todas as minhas músicas saídas de minha pena, denotar pelas cifras sobre a parte do Baixo, as terças e as sextas, nas maiores onde é assinalado o sustenido e nas menores o bemol, similarmente às sétimas ou outras dissonâncias para acompanhamento das partes do meio (CACCINI, 1601).

Giulio Caccini mantém sempre a posição avessa à mistura de vozes e movimentos

harmônicos simultâneos, nos quais “(...) não se entendia a palavra por conta da profusão de

passagens, tanto nas sílabas curtas quanto nas longas” (CACCINI, 1601).

De fato, a expressão baixo contínuo, apesar de sua familiaridade com o início desta

prática, não foi grafada por Giulio Caccini. Provavelmente, Lodovico Viadana, prolífico

compositor, o fez no mesmo ano de 1602 em seus Cento concerti ecclesiastici... con il

71

basso continuo. Agostino Agazzari foi quem teorizou em um dos primeiros tratados sobre o

assunto (1607): Del Sonare Sopra’l Basso con tutti li Stromenti e dell’ uso loro nel

Conserto. Também em 1607 foi publicado em Siena um trabalho de autoria de Francesco

Bianciardi, intitulado Breve Regola Per Imparar A Sonare Il Basso Com Ogni Sorte

D’Istrumento, versando sobre as regras da nova tradição de acompanhamento.

Os principais pontos em comum entre estes três autores são: a introdução da linha contínua do baixo como elemento essencial, a preocupação em evitar movimentos paralelos entre as vozes, a recomendação do uso do movimento contrário, a unanimidade em torno dos instrumentos considerados mais aptos ao acompanhamento, o cuidado com o volume sonoro e acima de tudo a preocupação com a evidenciação e clareza da linha melódica mostraram-se sólidos e pertinentes, atravessando um longo período da história da música (ROSA, 2007, p.128).

-“A imitação do conceito da palavra, pesquisando aquelas notas mais e menos

afetuosas, segundo seus sentimentos, e que particularmente houvessem graça” (CACCINI,

1601). Este é um dos principais fundamentos do canto renascentista professado por Giulio

Caccini: partindo do significado da palavra, recriar com notas musicais, com um suporte

diverso do inicial, significados afins substancialmente potencializadores da palavra.

A pesquisa de uma retórica musical deve ser compreendida em sua dimensão mais

ampla, chegando até o período barroco maduro a uma complexa teoria dos afetos, baseada

na retórica clássica, em que, por fim, até a palavra era dispensada, tamanha a codificação

que o sistema musical alcançou. A música instrumental barroca desenvolveu-se

grandemente devido à associação entre a música e o texto. Esta relação proporcionou o

estabelecimento de convenções musicais apuradas baseadas nas técnicas de persuasão

emocional (TARLING, 2004, p.6) de acordo com as demais convenções expressivas dos

afetos, como por exemplo o gestual, a contenção corporal, as expressões da face, as

etiquetas específicas para cada situação dentro da corte.

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-“Trilli e gruppi, e outros tais ornamentos à boa maneira de cantar” (CACCINI,

1601). Didaticamente, Giulio Caccini organizou uma série de compassos de exemplos

numerados em 1 e 2 – sendo o de número 2 a sua recomendação pedagógica – explicando e

demonstrando sua principal inovação, que consistia em, ao invés de se executar com

regularidade tais ornamentos, inserir diminuições melismáticas e quebras com notas de

menor valor, também denominadas de glosas, mesclando assim padrões rítmicos diferentes,

visando a uma melhor expressão dos afetos.

Esta seção de sua obra é a única verdadeiramente organizada como uma cartilha de

canto, com aumento do grau de complexidade, oferecendo exemplos individuais de

ornamentação, em seguida, excertos musicais com texto e, por fim, trechos de música e

acompanhamento, nos quais os exemplos contextualizam-se.

-“Onde, e em que sílaba e vogais se devem usar os longos giros de voz” (CACCINI,

1601). O autor identifica as melhores vogais, adequando-as às tessituras vocais

correspondentes, visando a uma boa execução das hoje denominadas volaturas em prol do

bom entendimento da palavra cantada, caso contrário, a sílaba seria cumprida demais e o

significado inicial do vocábulo perder-se-ia.

(...) pelos ditos longos giros, a não ser a vogal “u”, que tem melhor efeito na voz do soprano, do que no Tenor, e a vogal “i”, melhor no Tenor do que a vogal “u”, estando todas as remanescentes em uso comum, apesar de muito mais sonoras serem as vogais abertas do que as fechadas, como ainda mais próprias e mais fáceis para exercitar a disposição (CACCINI, 1601).

-“(...) a nobreza do bom canto: que nascerá de uma voz natural, cômoda em todas as

notas, a qual qualquer um poderá manejar a seu talento” (CACCINI, 1601).

Inaugurando a tradição seguida posteriormente pelos principais tratadistas sobre o

canto italiano, tais como Píer Tosi, Giambattista Mancini, Manuel García e Nicola Vaccai,

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Giulio Caccini destaca a importância do trabalho com uma voz natural e confortável em

toda a sua extensão, sem referir-se especificamente à dimensão ou à altura de oitavas

determinadas, interesse este de futuros “atletas da voz” (VACCAI, 2004, p.5) que, como

ilustra a literatura específica (PACHECO, 2004), sempre foram exceções entre os cantores.

Esta expressão de Giulio Caccini assinala que qualquer forma de afastamento excessivo da

natureza particular da voz nunca foi bem-vinda à beleza do canto.

-“Deleitar e mover o afeto da alma” (CACCINI, 1601). Era a finalidade primordial

do músico profissional da época, conhecedor e investigador das últimas novidades em

matéria musical, estudioso da complexa carreira que se constituía como artista de corte.

“(...) pela força de diversas notas, e de vários acentos com o temperamento do fraco, e do

forte uma expressão das palavras, e do conceito, que se consegue ao cantar até mover o

afeto em quem escuta” (CACCINI, 1601).

Na publicação de 1614, estampou na própria capa:

Novas Músicas e Nova Maneira de Escrevê-las. Nas quais se demonstra, que com tal maneira de escrever e com a prática desta, possam-se aprender todos os refinamentos dest’ Arte, sem a necessidade do canto do autor; Adornadas com passagens, trilli , gruppi, e novos afetos para verdadeiro exercício de qualquer um que queira professar o cantar em solo.

Ao que parece, ele também tentou direcionar suas músicas a um viés educativo,

mais como um manual de exercitação do canto e difusão de sua nova maneira, que não

requeresse a presença do professor, do que como uma despretenciosa coleção de peças.

Este destaque no frontispício demonstra o caráter formativo do conjunto das músicas,

anunciando seus benefícios. As palavras “nova/novo” repetem-se incansavelmente grifando

as qualidades do inédito exigido como costume convencional da época. Sugeriu até uma

gradação de dificuldade para suas músicas, com a possível intenção de, novamente,

posicionar-se de forma humilde, possivelmente buscando justamente o efeito contrário:

“(...) podendo ser estas músicas degrau a outras mais difíceis” (CACCINI, 1614).

74

A maior revolução d’As Novas Músicas nas duas publicações, mesmo que

separadas por 12 ou 13 anos e entrecortadas por outras publicações similares, foi, em

relação ao período anterior, o contraste artístico em direção a uma aparente simplificação

do canto no aspecto do número de vozes e no contraponto, introduzindo o caráter recitativo,

bastante declamado, ao canto monódico. Naturalmente, Giulio Caccini advoga

tecnicamente em favor do cuidado com a boa maneira de cantar, com o bom canto,

sublinhando as novidades, as convenções do momento, como os sutis enfeites melismáticos

em passagens que eram feitas de forma mais regular – mesclando notas pontuadas.

Consciente das fragilidades e caprichos da voz, destaca que o canto não deveria ser de

modo algum forçado, mas adaptado à extensão vocal do praticante, obediente da respiração,

que deveria evitar os falsetes e esforços desnecessários e contrários à sua beleza.

Em posição de vanguarda, envereda ainda a um refinado elogio ao ensino de canto,

à boa maneira renascentista, divagando e recuperando os ensinamentos clássicos de

Pitágoras sobre a Harmonia do Cosmo (CACCINI, 1601):

Mas das vozes falsas não podem nascer a nobreza do bom canto: que nascerá de uma voz natural, cômoda em todas as notas, a qual qualquer um poderá manejar a seu talento, sem se valer da respiração para outra coisa, senão para se mostrar senhor de todos os melhores afetos, que se podem usar nesta nobilíssima maneira de cantar, cujo meu amor, e genericamente de toda música, em mim aceso por inclinação da natureza, e pelos estudos de tantos anos, desculpar-me-á se deixado fosse devanear muito além, que talvez não conviesse a quem não estima menos o ensinar, do que o comunicar o aprendido, e à guisa de reverência, levo a todos os professores desta arte: a qual, sendo belíssima, e deleitando naturalmente, então se faz admirável, e ganha-se inteiramente o amor de outros, quando com ela, aqueles que a possuem, e com o seu ensino, e com o deleitar de tantos outros exercitando-a frequentemente, a descobrem, e a revelam como um exemplo e uma imagem verdadeira daquelas incontroláveis harmonias celestes, das quais derivam tantas graças sobre a Terra, com as quais desperta os intelectivos ouvintes à contemplação dos infinitos diletos no Céu espalhados.

Após alguns anos de desenvolvimento das Novas Músicas, Giulio Caccini adverte

no prefácio da publicação de 1614 uma síntese de seu pensamento:

Três coisas principalmente se convém saber de quem professa bem cantar em solo com afeto. São elas o afeto, sua variação e a sprezzatura. O afeto em quem canta outro não é que pela força de diversas notas, e de vários acentos com o temperamento do fraco, e do forte uma expressão das palavras, e do conceito,

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que se consegue ao cantar até mover o afeto em quem escuta. A variação no afeto, é aquela passagem, que se faz de um afeto em um outro com os mesmíssimos meios, segundo o que as palavras, e o sentido guiam o cantante sucessivamente. E esta é de se atentar minuciosamente a fim de que com a mesmíssima vestimenta (por assim dizer), alguém não se abalasse a representar o esposo, e o viúvo. A sprezzatura é aquela graça que se dá ao canto com a diminuição em mais colcheias, e semicolcheias sobre diversas notas feita a tempo, cedendo ao canto uma certa angústia finita, e sequidão, rendendo-o prazeroso, licencioso, e arioso, se como no comum falar a eloquência, e a diminuição tornassem evidentes e doces as coisas de que se fala. Nesta eloquência das figuras, e às cores retóricas assimilaria, as passagens, os trilli , e os outros ornamentos similares, que esparsamente em cada afeto se podem tal ora introduzir. Conhecidas estas coisas, acreditarei com a observância destas minhas composições, que quem tiver disposição ao cantar, poderá porventura ter como resultado aquele fim, que se deseja no canto especialmente, que é o deleitar.

Uma breve síntese de aspectos da obra de Giulio Caccini, baseada em Gargiulo

(2000), favorece um entendimento teórico sobre sua produção:

-da finalidade: nobre maneira de cantar, mover o afeto, deleitar;

-dos meios expressivos: melhor aproximar-se da fala natural;

-da pesquisa dos afetos: notas do acorde mais ou menos afetuosas;

-da praxe dos ornamentos: o crescer e o diminuir da voz, as exclamações, trillo e gruppo,

além da parcimônia no emprego dos longos giros da voz (volaturas);

-do emprego das dissonâncias e desenvoltura de execução: transpassar pelas muitas

dissonâncias; uso de certa sprezzatura (rubato);

-da relação entre som e palavra: imitação dos sentimentos das palavras;

-das solicitações da “nova maneira” de cantar: aquela graça que se procura no bem cantar;

-das intenções conclusivas: ter sido o primeiro a publicar tal estilo de canto;

* * *

76

Quando ocorre um ligeiro distanciamento deste importante momento da história do

canto ocidental, relacionam-se e contrastam-se os diferentes estados pelos quais a técnica

de canto passou e ainda passa. Ressalta-se neste todo, a preciosa pesquisa realizada por

Giulio Caccini em sua prática de composição.

Muito além de adequar as poesias às melodias capazes de mover os afetos de acordo

com as convenções em voga, o autor buscou na experiência como cantor e professor,

principalmente em família, com as duas esposas e filhas, aquelas vogais que melhor

ressoassem em diferentes alturas, para diferentes vozes, em relação à harmonia, ao

instrumento acompanhador e ao ambiente acústico a que se destinavam. Criava-se ali, sem

outros recursos além do próprio cantor, sobretudo, os métodos de educação de uma forma

de cantar intimamente relacionada a uma auto-exploração e a um autoconhecimento das

qualidades vocais. O contexto de crescente especialização de funções que ocorria nas cortes

favorecia sobremaneira esta forma de cultivo e desenvolvimento de talentos pessoais.

Os divertimentos e refinamentos cortesãos centravam-se na educação de habilidades

e técnicas do ser humano, como conhecimentos literários, habilidades artísticas, a música e

a pintura, capacidades intelectuais e pensamento criativo demonstrado no convívio social,

artes de cavalaria, luta e defesa da honra em sérios jogos de caráter simbólico.

As atividades habituais do cortesão nas cercanias de construções extraordinárias,

contrastavam com as da população em geral, educando a sensação de alteridade pela posse

e ostentação material, opondo e distanciando nobres de homens comuns.

No espaço dos palazzi, as características de preferência de som e silêncio eram

estabelecidas por variáveis peculiares, compostas por uma paisagem sonora com mais

tempo e espaço para reverberação, decorrente de uma arquitetura com pés direitos bem

mais altos. De uma forma timbristicamente diversa, as notas podiam ser experimentadas em

circunstâncias possivelmente menos ruidosas e com interferências menos agressivas,

consonantes às técnicas ainda manuais e mecânicas.

Tal ambiente sonoro estaria preenchido de uma sensibilidade educada para outras e

mais sutis ressonâncias da voz, eleitas por categorias de gosto também diversas das atuais.

A lapidação do canto era feita pela arte do encantamento com a voz, fundamentada mais

por elementos acústicos finos e uma forte correlação às convenções e maneirismos do

77

comportamento cortesão. A teoria dos afetos desenvolvida na música barroca comportava a

audição de particularidades harmônicas determinadas a cada tipo específico de acorde,

convencionando estados de alma a expressões timbrísticas.

A matéria de busca do bom canto constituía-se na combinação harmônica, no jogo

entre sons em tensão e relaxamento. A construção das convenções harmônicas barrocas

expressas pela alternância entre acordes de repouso, acordes dominantes e o retorno a

acordes de repouso passou pela sensibilidade de um tipo de sociedade atenta a contrastes de

sentimentos e disposições de espírito. “As dissonâncias surgiram como expressões de

tensão, de contradição e dor. Sedimentaram-se e converteram-se em ‘material’. Já não são

meios de expressão subjetiva, mas nisto não renegam sua origem e se convertem em

caracteres do protesto objetivo” (ADORNO, 2007, p.72-73).

As notas mais adequadas sobre as quais os ornamentos, como trilli e gruppi, por

exemplo, ressaltariam o movimento emocional das palavras cantadas eram experimentadas

em audições cotidianas integradas à vida habitual da corte. O canto não se dissociava da

coleção de modos de conduta daquele ambiente, pelo contrário, também o conformava.

A educação da sensibilidade às técnicas de emissão do melhor som, da boa maneira

de cantar, foi cultivada a partir da minuciosa pesquisa sobre a vinculação da palavra,

especificamente da melhor vogal em determinada altura, a um possível significado

traduzido em som. Linhas melódicas dramáticas e sugestivas foram engenhosamente

admitidas, legitimadas e aceitas como eficientes na moção dos afetos. Mais do que simples

emoções em movimento, passagens entre a melancolia e a raiva, a alegria ou a angústia, as

paixões e afetos refletiam as alterações dos movimentos sofridos pela alma e pelo espírito,

operadas pela mente e reveladas no corpo.

A música atraía para si as primeiras experiências de uma futura retórica que

chegaria a não mais necessitar das palavras, tamanho o grau de fusão entre melodia e

significado. Aos poucos, com a acumulação de técnicas de composição e execução

utilizadas em forma de pacto subentendido entre as cortes de maior porte, um novo estilo

musical compunha-se em acordes altamente regulados por convenções. A estruturação de

uma música feita no círculo da nobreza não poderia acontecer de outra maneira. A

alternância entre tensões e repousos tornou-se estereotipada com o tratamento uniforme

disposto para as dissonâncias e cadências e, paulatinamente, o ritmo ganhou controles

78

métricos mais severos, prevalecendo figuras e esquemas formais altamente organizados

como dispositivos expressivos.

79

Uma experiência com as lições de Giulio Caccini – “Deh, dove son fuggiti”

Talvez uma das melhores maneiras de se alcançar alguma interpretação e pretender,

quiçá, uma possível facilitação ao leitor das obras de Giulio Caccini seja experimentado-as,

colocando-se como o próprio sujeito que se coloca à mercê do desafio do exercício.

Distante de uma aplicação técnica da “ciência” forjada por Giulio Caccini ou de

uma reprodução prática de sua teoria, admite-se aqui, sobretudo, o componente

fundamental da experiência: sua capacidade de formação ou de transformação pessoal.

No sentido pleno do conceito de experiência (Erfahrung) de Walter Benjamin, o ato

de cantar a música de Giulio Caccini definiu a marca deste trabalho. O sentido pessoal,

atrelado ao ritmo de minha própria existência, deu vez à construção de um saber finito,

particular, subjetivo. Esta possibilidade é única no estudo do canto que, em sucessivas

sessões, oferece tempo suficiente para a percepção da própria condição corporal, para o

conhecimento e aprimoramento estético das capacidades vocais, para o reconhecimento das

debilidades do organismo e para a pesquisa do possível.

A experiência com a música de Giulio Caccini e seus ensinamentos representou um

encontro. No entanto, o valor da experiência apropriada e incorporada, inconclusa e

progressivamente sedimentada, não se permite conter totalmente em palavras, pois é

inseparável de quem a encarna, “somente tem sentido no modo como configura uma

personalidade, um caráter, uma sensibilidade ou, em definitivo, uma forma humana

singular de estar no mundo (...)” (BONDÍA, 2002, p.27).

A experiência do canto é uma forma de artesanato, com seu curso lento, regular e

orgânico. Pelo seu caráter totalizante, em que a matéria trabalhada é o próprio corpo e o

fundamento principal é o mesmo sopro essencial, o ato de cantar atravessa qualquer

possibilidade de fragmentação da vida.

O entendimento da experiência do canto de Giulio Caccini, descrita em seus textos,

alcança realmente a luz quando é capaz de incluir em seu fluxo narrativo comum e vivo

aquele que lê, mas principalmente aquele que canta e ouve. Seus conselhos e advertências

se refazem e reconectam um devir histórico em condições completamente distintas.

80

De todas as músicas publicadas, excetuando os modelos de exercícios específicos,

Giulio Caccini escolheu somente 3 pequenas peças para aplicar metodologicamente seus

ensinamentos sobre interpretação e ornamentação, elegendo-as como exemplos a serem

seguidos, uma vez que obedeceu a alguns padrões de composição em todas as demais

peças. São elas: “Cor mio, deh, non languire”, “Aria di Romanesca” e “Deh, dove son

fuggiti” .

E porque nos dois últimos versos sobre as palavras “Ahi dispietato amor” na Ária di romanesca, e no madrigal seguinte “Deh dove son fuggiti” estão incluídos todos os melhores afetos que se podem usar entorno à nobreza desta maneira de cantar, os quais quis, por isso, descrevê-los; para mostrar onde deve-se crescer e diminuir a voz: a fazer as exclamações, trilli e gruppi e, em suma, todos os tesouros desta arte, bem como para não ser necessário outra vez demonstrar aquilo que em todas as obras seguirão: e a fim de que sirvam como exemplo, em identificação, nestas músicas, os mesmíssimos lugares onde serão mais necessários, segundo os afetos das palavras (CACCINI, 1601).

É, sem dúvida, nesta forma de aproximação ao tema, no cantar propriamente as

lições de Giulio Caccini, que a jubilação musical é exercida como uma experiência artística

privilegiada. Especialmente pelo seu caráter sensorial, da percepção cinestésica da vibração

sonora pessoal, da escolha e criação consciente do próprio caráter, da própria voz, a partir

das observações autorais feitas há tanto tempo, em comunhão com as características vocais

pessoais.

Uma interpretação da partitura exigiu uma reflexão sobre os significados dos termos

nela grafados, para que se aproximassem ao máximo daquela realidade musical, uma vez

que tais termos já sofreram várias transformações estilísticas.

Na reunião das orientações teóricas e das possibilidades vocais pessoais é viável a

prática de uma música historicamente orientada que almeje uma coerência e sinceridade

artística.

O sentido do exercício pessoal das lições de canto escritas por Giulio Caccini

mostrou-se essencial em minha iniciação ao canto, harmonizado a uma história de vida

musical. O que se oferece é uma maneira particular de encontro com esta música, refletindo

sobre este percurso educativo.

Após cantar “Deh, dove son fuggiti”, o processo iniciou-se pela adequação da

partitura à minha tessitura vocal, baixando-a em um tom, de acordo com a ideia de que a

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ampliação da extensão vocal acontece somente com a prática constante e cuidadosa, além

de ser pequena e paulatina. Ademais, é possível que o diapasão florentino da época ainda se

baseasse em um lá 460Hz, o que deixaria a tessitura da peça ainda mais distante de meus

recursos.

Diversas afinações coexistiram, variando de acordo com a instrumentação e a

acústica do local. Adaptações sempre foram bem-vindas visando às melhores condições de

execução e viabilidade na prática de conjuntos mistos, instrumentais e vocais.

Mezzo punto e tutto punto eram os nomes das afinações padrão associadas ao corneto, violino e órgão na Itália do norte, de meados de 1580 ao final do séc. XVI. Mezzo punto, claramente o diapasão mais comum, correspondia a um lá ~464Hz, enquanto tutto punto a um lá ~440Hz. Por conta dos temperamentos e técnicas de dedilhados que tornavam as transposições em meio tom impraticáveis, músicos de sopro provavelmente possuíam vários instrumentos, afinados em tons consecutivos, possibilitando as várias combinações necessárias aos diferentes repertórios (SADIE, 2001, p. 766).

A escrita de uma nova partitura levou em conta que na época de produção da música

original, início do século XVII, o conceito de tonalidade não correspondia ao atual,

portanto a ausência de acidentes na armadura de clave não significava que a partitura

estaria escrita na tonalidade de dó maior. O temperamento igual, condição técnica que

possibilitaria a noção de campos harmônicos e transposições diretas para qualquer

tonalidade, somente seria fixado no século seguinte. Os acidentes referiam-se a, usando a

terminologia analítica atual, um modo e não uma tonalidade.

A partitura adequada, após revisão e correção específica supervisionada por

Edmundo Hora, passou a ser a seguinte:

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83

As instruções de Giulio Caccini na partitura são, apesar de precisas quanto à

localização, sujeitas a uma árdua interpretação. Resumem-se pela ordem em que aparecem

na partitura a: scemar di voce (diminuição de voz); variações de exclamações, tais como

esclamazione spiritosa, esclamazione più viva, esclamazione, esclamazione com misura più

larga (exclamação com maior medida), esclamazione rinforzata (exclamação reforçada); a

ornamentação trillo, finalmente, sua inovação, a sprezzatura: ‘senza misura’ quasi

favellando in armonia con a suddetta sprezzatura (sem medida quase falando em harmonia

com a supradita sprezzatura).

Como realizar, no sentido da intensidade, uma diminuição de voz concordante ao

estilo de canto da época, sem exagero ou falta? Como chegar a uma gradação precisa que

reproduza as diferentes formas de exclamação que requisitou? Como encontrar a boa

medida entre o recitar e o cantar? Como esperar reproduzir sua música em tempos

modernos seguindo conceitos já por tanto tempo modificados? O trabalho que aqui valeu a

pena ser feito foi, além de evitar equívocos terminológicos, recriar um canto com a busca

de sentido e harmonia, mais do que exatidão. A dúvida sobre como o canto soava não se

esgotou, foi recorrente e infinita a cada ensaio.

O autor baseia seu novo estilo de composição sobre a boa forma de conciliação do

significado claro da palavra à altura da nota cantada, tecendo com a poesia o dito

movimento dos afetos.

Nestes, assim, tanto nos madrigais quanto nas árias, sempre procurei a imitação do conceito da palavra, pesquisando aquelas notas mais e menos afetuosas, segundo seus sentimentos, e que particularmente houvessem graça (...) (CACCINI, 1601). (...) mas que para a boa maneira de compor e cantar neste estilo, serve muito mais a inteligência do conceito, e da palavra, o gosto, a imitação destes também nas notas afetuosas, como na sua expressão ao cantar com afeto, pois o contraponto não convém, servindo-me de tal recurso para acomodar somente as duas partes juntas – o baixo e o canto – e escapar certos erros notórios, e unir algumas rijezas mais por acompanhamento do afeto, do que para usar a habilidade, se como ainda se vê, que melhores efeitos causarão e deleitarão mais uma ária ou um madrigal em tal estilo composto ao gosto do conceito das palavras, que tenha boa maneira de cantar, que não desvirtuará com toda a arte do contraponto, donde não se pode extrair melhor razão, que com a mesma prova (CACCINI, 1601). (...) lá onde convosco, que bem entendem os conceitos e os sentimentos das palavras conhecem os nossos defeitos, e sabem distinguir onde mais e menos se requeira este afeto: a quem se deve procurar com cada estudo de vultoso prazer,

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e prezar mais a sua aprovação, do que o aplauso do vulgo ignorante (CACCINI, 1601).

Para uma aproximação interpretativa justa e um melhor embasamento dos termos

que utilizou, a tradução do texto da música é aqui bem-vinda. Este auxílio, é conveniente

citar, não encerra categorias em cada uma das expressões utilizadas – crescer e diminuir da

voz, exclamação, trillo, sprezzatura – outrossim, reúne uma leitura e um momento

particular deste estudo do canto. Não se define, portanto, como executar rigorosamente

determinado tipo de exclamação, ou como fazer a correta sprezzatura, mas identifica-se

onde e por quê tais observações foram propostas.

Deh... deh, dove son fuggiti? Deh, dove son spariti gl'occhi de quali errai? Io son cener omai. Aure! Aure divine, ch'errate peregrine in questa part'e in quella. Deh, recate novella dell'alma luce loro. Aure, ch'io me ne moro... Deh, recate novella dell'alma luce loro. Aure, aure ch'io me ne moro...

Oh... oh, onde fugiram? Oh, onde desapareceram os olhos pelos quais errais? Sou cinzas agora. Auras! Auras divinas, que erram peregrinas aqui e acolá. Oh, levem boas novas da alma, luz deles. Auras, que disto eu morro... Oh, levem boas novas da alma, luz deles. Auras, auras que disto eu morro...

Giulio Caccini argumenta que um princípio fundamental para se cantar bem é

dominar aquilo que se canta, facilitando a escolha das intenções e entoações, das diferentes

nuances e adequação das ornamentações possíveis:

Ora resta a dizer sobre porque o crescer e diminuir da voz, as exclamações, trilli e gruppi, e os demais afetos supracitados que são indistintamente usados, mas que, nesse caso, diz-se usar indistintamente, cada vez que outros deles se servem tanto nas músicas afetuosas, onde mais se demandam, quanto nas cançonetas de dança; a raiz deste defeito (se não me engano) é causada porque o músico não domina bem primeiro aquilo que ele quer cantar, pois se assim fosse, indubitavelmente não incorreria em tais erros, se como mais facilmente incorre nestes tais, pois sendo formado em uma maneira de cantar toda afetuosa com

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uma regra geral, do que no crescer e diminuir da voz e nas exclamações, quais sejam o fundamento deste afeto, sempre dele se serve em cada sorte de música, não discernindo se as palavras o pedem (CACCINI, 1601).

Sua primeira indicação na partitura é logo na nota inicial, pedindo uma diminuição

de voz.

Segundo suas orientações, crescer e diminuir (crescendo e

decrescendo) a voz são formas de melhor controlar as exclamações,

localizando-as, diferenciando-as e encadeando-as mais

convenientemente aos significados das palavras. De acordo com o

contexto harmônico, a primeira nota, em intervalo de terça maior em

relação ao baixo, deve exprimir com a sua diminuição, o significado de lamentação da

interjeição deh! O autor explica porque não se deve, segundo a convenção usual, crescê-la e

tampouco entoá-la sobre a tônica:

São portanto alguns, que na entoação da primeira nota, atacam-na uma terça abaixo, e alguns outros atacam-na na nota mesma, sempre crescendo-a, dizendo-se esta a boa maneira de emitir a voz com graça, a qual a primeira forma, por não ser regra geral, pois que em muitas consonâncias ela não se acorda, ainda que ela se possa também usar, vinda a ser agora maneira tanto ordinária, que ao invés de ter graça (porque também alguns se mantêm na terça abaixo por um espaço de tempo demasiado, onde valeria a pena ser acenada) diria que ela seria ao contrário ofensiva ao ouvido, e que para os principiantes particularmente ela deveria ser usada raramente, e como mais peregrina, eleger-me-ia ao invés desta, a segunda maneira do crescer a voz (CACCINI, 1601).

Em seguida, descreve que a surpresa gerada pela sua diminuição, ao invés de seu

crescer, moverá o afeto com maior eficiência, provavelmente pelo contraste criado à prática

musical anterior, que ele visava suplantar:

Mas porque eu não estou nunca sossegado dentro dos termos ordinários e usados pelos outros, ao contrário fui sempre investigando mais novidade a mim possível, para que a novidade seja apta a poder melhor conseguir a finalidade do músico, isto é deleitar e mover o afeto da alma, considerei ser uma maneira mais afetuosa o entoar a voz por contrário efeito ao outro descrito, isto é, entoar a primeira nota diminuindo-a, apesar da exclamação, que é o meio mais essencial para mover o afeto (CACCINI, 1601)

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Quanto às exclamações (sforzando) ou variações de dinâmicas, mais uma vez Giulio

Caccini escolhe diversificar o que parecia ser a tradição mais praticada na época, de crescer

a nota uniformemente até seu final, (ou o inverso, diminuindo-a até seu final) inserindo

variações mais expressivas. Em diminuendo, ao invés de finalizar uma nota de maneira

uniforme por toda a sua duração, sugere que, antes de a nota acabar, deva ser feito ainda um

leve crescendo. Advoga em favor desta maneira em contraposição às finalizações em

crescendo, que ainda necessitariam de um desagradável reforço ao seu final. Em suas

palavras:

Exclamação propriamente outro não é, que no extinguir da voz reforçá-la o mesmo tanto: e tal acréscimo de voz na parte do soprano, sobretudo nas vozes falsas [possivelmente, falsetes], muitas vezes tornam-se agudos insuportáveis aos ouvidos, como em muitas ocasiões ouvi. Indubitavelmente, portanto, como afeto mais próprio a mover, melhor efeito fará o entoar da nota diminuindo-a do que crescendo-a; pois na dita primeira forma, crescendo a voz para fazer a exclamação, é necessário ainda ao finalizá-la, ampliá-la e por isso disse que parece forçada e rude. Mas todo o contrário efeito fará ao diminui-la, depois que ao finalizá-la, o dar-lhe um pouco mais de espírito tornando-a mais afetuosa; além de usar tanto uma forma quanto a outra, e ora o outro efeito poder-se-á variar, sendo sempre muito necessária a variação nesta arte, desde que ela seja direcionada à finalidade dita (CACCINI, 1601).

Ainda por ser alcançado, o domínio da execução destas várias sugestões de formas

de exclamação constituem um estudo longo, constante e minucioso, tão ou mais rigoroso do

que a sua decifração teórica.

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A simples definição geral moderna de trillo como “um tipo de ornamento que

consiste em uma alternância mais ou menos rápida da nota principal com a nota um tom ou

meio tom acima dela” (SADIE, 2001, p.735), não contribui significativamente para o seu

debate e entendimento na música de Giulio Caccini. A interpretação sobre suas indicações

de trillo foi compreendida pela definição específica dada pelo próprio compositor, gerando,

além de uma dificuldade técnica sobre sua escolha, uma controversa opção entre as duas

formas apresentadas: trillo e gruppo.

O autor repassa a lição para a primeira esposa e filhas:

O trillo descrito por mim sobre somente uma nota, não foi por outra razão demonstrado nesta guisa, senão porque, ao ensiná-lo à minha primeira esposa, bem como à atual e para minhas filhas, nele não observei outra regra, além desta, na qual é escrito, e um, e outro, isto é começar-se da primeira semínima, e rebater cada nota com a garganta sobre a vogal “a” até a última breve, e similarmente ao gruppo (CACCINI, 1601).

As convenções harmônicas praticadas pela maioria dos compositores

contemporâneos a Giulio Caccini acompanhavam o procedimento de se criar nas cadências

e resoluções de frases, uma tensão dramática com o uso de dissonâncias e ornamentação

que contribuissem para tal estado, para posteriormente resolvê-las. O uso do chamado

gruppo pareceria mais adequado por conter em sua execução a repetição entre a nota

superior e a própria nota, concorrendo para a potência do encadeamento harmônico. No

entanto, o autor não grafa esta forma de ornamentação em nenhum momento em toda sua

obra, nem mesmo nos exemplos específicos destes dois ornamentos, exceto por uma única

vez na ária de exemplo “Cor mio, deh, non languire”. Esta observação pode sugerir que a

opção entre os dois ornamentos estivesse baseada no contexto melódico, na convenção e

preferência interpretativa dos executantes.

O contorno melódico desta primeira frase em que aparece a sugestão de trillo é

sobre uma nota precedida de sua superior (* nota fá, da palavra o-MA-i), sugerindo uma

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apojatura, neste caso escrita, do chamado gruppo, ao

invés do trillo . No entanto, também pela reutilização

deste recurso em outras partituras, é possível

interpretar-se como o desejo de um destaque sobre

esta dissonância específica. Caccini revela e acentua a

tensão, colocando-a em primeiro plano: fugindo do

padrão tradicional, o compositor joga com os valores de cada nota nas alternâncias entre o

baixo contínuo e a dissonância, enfatizando o efeito esperado da surpresa com o trillo . Ao

invés de simplesmente realizar a tensão convencional do acorde dominante de Lá maior (lá-

dó#-mi), ele escolhe realçar com trillo um mi bemol, produzindo uma 5ª diminuta contra o

baixo Lá (a nota fá faz o movimento descendente para o mi bemol, no acorde subdominante

de Sol 7, caminhando para a resolução Sol 6. Quando o baixo passa para Lá , usualmente, o

mi seria bequadro, formando o acorde maior).

A decisão sobre a melhor maneira de se interpretar caberia ao cantor? Certamente,

uma vez que a posição do intérprete começava a ganhar extrema importância, inspirando os

compositores a partir da liberdade conseguida na efetivação do canto e da técnica em

ascenção.

Em seu prefácio de 1601, Giulio Caccini refere-se sempre conjuntamente às duas

formas de ornamento, não fazendo outra distinção além daquela descrita musicalmente. Em

suas palavras:

Tais trillo e gruppo por serem degraus necessários a muitas coisas que se descrevem, e são efeitos daquela graça que mais se pesquisa para o bem cantar, e como dito acima, escritos em uma maneira, ou em outra fazem contrário efeito daquele conveniente, mostrarei não somente como podem-se usar, mas ainda todos estes efeitos descritos em duas maneiras com o mesmo valor das notas, para que de toda forma cheguemos em concórdia, como acima é repetido mais vezes, pois que com estes escritos aliados à prática se possam aprender todos os refinamentos desta arte (CACCINI, 1601).

Percebe-se que os trilli , de acordo com a definição de Giulio Caccini, são sugeridos

mais frequentemente sobre as notas longas de final de frase, portanto com mais tempo para

serem executados, reforçando um investimento sobre este tipo de convenção não escrita,

mas certamente acordada entre os praticantes.

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Efetivamente, este canto de interpretação livre, fundado na sprezzatura e fortemente marcado pela utilização de ornamentos e melismas, se adequa a um universo artístico mais voltado ao prazer sensorial do que aos princípios daquilo que se propagava como a autêntica expressão de raiz humanista. A essência da expressão de Caccini reside, realmente, na utilização de passagens, trilos, exclamações e outros artifícios sonoros, os quais, se têm poder de dotar a música de afetos, também podem lhe conferir um caráter formalístico e programático, principalmente se levarmos em conta que tal ornamentação é utilizada sempre em situações semelhantes, recorrentes, paradigmáticas (MULLER, 2006, p.150).

Sobre as orientações de Giulio Caccini nesta fase de expressiva transição musical,

cabe ainda destacar que:

Ornamentação no início da música barroca italiana era inseparável da expressão em geral. Sobretudo, o cantar e o tocar deveriam ser realizados com graça, um conceito estético tão ligado à ornamentação que sua forma plural grazie era empregada genericamente a todos os ornamentos de escala pequena que vieram à voga por volta de 1600. Estes novos ornamentos (também chamados accenti, affetti ou maniere) coexistiram com os mais elaborados passagi ou diminuições, que eram remanescentes da prática renascentista (SADIE, 2001, p.712).

As dificuldades de interpretação da matéria contida nos textos, na música de Giulio

Caccini e em sua realização, ao invés de se estabelecerem como barreiras à pesquisa,

tornam-se intentos ainda mais instigantes. A tradução da música antiga não se esgota.

Ainda sobre o ornamento trillo :

Considerando-se ornamentos de escala pequena, pode-se abordar a terminologia com um certo ceticismo. Trillo para um autor é, para um outro, tremolo, e um

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determinado termo é às vezes usado tanto genérica quanto especificamente no mesmo tratado. [...] Trillo era talvez o mais omnipresente termo para um ornamento de escala pequena no início do barroco italiano, e sua abreviação ‘t’ ou ‘tr’, era o único símbolo de ornamento largamente utilizado.[...] Os dois modelos comumente reconhecidos por trillo no início do barroco – alternando notas e repetindo notas – simplifica demais o problema. O prefácio de Caccini contém ilustrações adicionais de trillo que diferem significativamente de sua breve definição inicial, sendo frequentemente padrões não cadenciais que incluem notas auxiliares bem como notas repetidas (SADIE, 2001, p.713)

Ao se relativizar historicamente as técnicas de execução musical, como o trillo neste

caso, tornam-se possíveis mais questionamentos sobre os por quês de suas transformações

ao longo do tempo, e levantam-se subsídios para sua interpretação atual.

Sobre a sprezzatura, movimento não mecânico, mas ritmicamente expressivo

(MULLER, 2006, p.146), Giulio Caccini escreveu-a efetivamente sobre uma única frase em

todas as suas músicas publicadas, cuja divisão, em técnica de diminuição, entre semínimas,

colcheias e semicolcheias facilita sua execução. Ao cantar em tempo rubato, é, de fato,

quase “natural” falar em harmonia nesta típica sentença de sua principal proposição:

Nesta ária não há exemplo dos “longos giros de voz”, ou volaturas, comentados por

Giulio Caccini. Observa-se apenas as vogais “e” (da palavra deh), “i” (da palavra io) e “a”

(da palavra aure) em notas longas e dramáticas, mas com prosseguimento do texto, ao invés

de passeios melódicos que pudessem, conforme as queixas do autor, prejudicar o

entendimento do texto. Em outras partituras, o compositor mantém uma relativa coerência

aplicando os floreios a palavras que não são verdadeiramente ricas em afeto, mas privadas

de conceito – segundo a sua definição – como dove (onde) ou voi (vocês).

Giulio Caccini realmente apostou em um estilo de composição que seguisse padrões

de harmonias, intervalos e convenções na aplicação de ornamentos típicos para

determinados contextos de afetos.

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De sorte que seu canto é dotado de uma certa “maneira”, onde determinada expressividade sonora favorece e dá cor a determinada expressão poética. Exemplos desta artificiosa “maneira” são as exclamações lânguidas e comovidas sobre notas longas que expressam gemidos e outros estados de alma, ou repetições de figuras que pretendem exprimir a natureza dos sentimentos. Portanto, se esta solução compositiva, esta avizinhação ao modo natural de falar ou recitar, se consolida como música expressiva, no caso de Caccini, também denota um exagero sonoro e pode ser melhor compreendida se vinculada à arte cortesã que vicejou nos finais do século XVI florentino (MULLER, 2006, p.150).

Na eloquência do canto de Giulio Caccini, foi traduzido para a música o instantâneo

do comportamento convencional de meados de 1600. Sua vida e sua arte são nitidamente

indissociáveis. As mudanças e suplantações estilísticas não cessavam, disseminadas que

eram primeiramente entre as cortes mais ricas.

Em tratados desta natureza não se pode admitir literalmente os significados de

termos técnicos musicais atuais, tais como falsete, trillo , gruppo ou exclamação que, pela

linguagem escrita se mantêm. O processo histórico já os transformou sem cerimônias.

Antes de contextualizá-los, não se chega a uma aproximação plausível. Desta etapa em

diante, prosseguindo com o trabalho de interpretação informada, dá-se de fato um processo

criativo baseado na pesquisa histórica que relativizou e questionou a expressão do termo na

determinada época. Não se trata mais de descobrir com precisão as indicações de como era

praticada a música naquela época, mas de como estes sinais podem reverberar na atividade

artística moderna.

Aceitando as exigências da experiência com a música de Giulio Caccini, outros e

mais amplos círculos de saberes foram atraídos, como a inserção e as relações desta sorte

de música na história e na cultura.

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93

Capítulo 2

SOBRE A MÚSICA NO RENASCIMENTO

Portanto, resumindo em poucas palavras, devem os encarregados da cidade apegar-se a este sistema de educação, a fim de que não lhes passe despercebida qualquer alteração, mas que a tenham sob vigilância em todas as situações, para que não haja inovações contra as regras estabelecidas na ginástica nem na música. Acautelem-se o mais possível, com receio de, se alguém disser que “os homens apreciam acima de tudo o canto que tiver mais novidade” (Odisseia I. Homero), se julgar talvez que o poeta quer referir-se não a cantos novos, mas a uma maneira nova de cantar, e que a elogia. Tal coisa não deve louvar-se nem entender-se assim, porquanto deve ter-se cuidado com a mudança para um novo gênero musical, que pôde pôr tudo em risco. É que nunca se abalam os gêneros musicais sem abalar as mais altas leis da cidade, como Dâmon afirma e eu creio. (PLATÃO, Livro IV, República, 424 A, 2004, p.117).

Tentar situar historicamente, mesmo que de maneira geral, a música no

Renascimento é desafiador pela sua grande abrangência e pelas infinitas janelas que se

abrem a cada tema fundamental da época. O esforço é de constantemente direcionar suas

bases essenciais ao estudo em questão, é de relacionar as obras de Giulio Caccini, suas

especificidades e as condições teóricas gerais de seu surgimento, a um todo extremamente

amplo, sem, com isso, deixar com que se percam nos vastos pilares do período, como o

humanismo ou o neoplatonismo por exemplo. Circunscrever a música no tempo do

Renascimento significa tangenciar a infinitude da arte no período, de forma panorâmica,

optando pelo não aprofundamento em ricos temas como a pintura, a escultura ou a

arquitetura sem, no entanto, negligenciá-los e isolá-los.

A ideia abrangente mais direta a que se faz referência é a de que, neste período

denominado historicamente como Renascimento, ocorreria um ressurgimento do esplendor

da Antiguidade Clássica, um regresso de seus êxitos e excelências à luz e à vida

(CORNELL e MATHEWS, 1997, p.11), com vistas a um progresso em relação ao período

anterior, a Idade Média, graças ao trabalho de humanistas em conhecer – redescobrir, obter,

recuperar, restaurar, traduzir, interpretar, ressignificar, transformar, difundir – os autores, as

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obras clássicas, o modo de vida antigo e a paideia. A ideia de recuperação dos valores

clássicos abrangia toda a cultura, especialmente o campo das artes, da linguagem e

literatura, gramática, poesia, retórica, da filosofia, das ciências, da religião, enfim,

empreendia um possível renascer da civilização antiga grega e romana.

Em linhas gerais, o Renascimento teve início nas cidades-estado autônomas

italianas, expandindo-se ao restante do continente europeu, durante o século XIV até o final

do século XVI. Com a devida maleabilidade de barreiras ou abstrações teóricas, entende-se

que as obras de Giulio Caccini, classificadas até como fundadoras do período Barroco na

música, identificam-se como belo exemplo da prática renascentista de buscar diretamente

nas fontes clássicas a legitimação maior de sua música, mesmo que sejam adotadas como

divisoras de águas em classificações históricas mais generalizantes.

A produção de Giulio Caccini apontava para um futuro musical diferente, não resta

dúvida, sem nostalgia, preocupações ou reclamações conservadoristas em relação à prática

que suplantava. Esta seconda prattica – de acordo com a denominação posteriormente dada

por Monteverdi – surgia em relação à prima prattica, contrapontística, e anunciava uma

nova maneira do fazer musical.

Com o restabelecimento dos estilos clássicos e a propagação do estudo, o

conhecimento começou a difundir-se mais rapidamente e a música passou a ser publicada,

em vez de circular apenas em manuscritos. A interação complexa de ideias pagãs e cristãs,

uma fé redescoberta na dignidade do ser humano, um sentido de pompa reforçado pela

iconografia e o cerimonial da Roma antiga, o regresso dos mitos e deuses pagãos em todo o

seu esplendor significativo, a pintura da natureza circundante (CORNELL e MATHEWS,

1997, p.12 e 16) constituiram algumas das principais manifestações renascentistas, que

foram devidas a um longo processo de contato desde o século XII, via Cruzadas, viagens

exploratórias e de expansão territorial e de mercados, dos eruditos da Europa Ocidental

com o mundo árabe e com a civilização islâmica espanhola e do sul da Itália. Ocorreu, pois,

o acesso a traduções de trabalhos científicos e filosóficos de Roma e Grécia antigas, como

os de Aristóteles por exemplo, que reunia ideias sobre filosofia, física, astronomia, lógica,

política e ética, e que culminaram com a grande revolução cultural do período em questão.

Giulio Caccini era também conhecido como Giulio Romano, pois nasceu em Tivoli,

95

dependência territorial de Roma, um dos corações, portanto, de todo este vigor cultural.

Caccini estava imerso completamente neste meio fecundo.

O movimento intelectual denominado humanismo foi um dos principais eixos do

período. Consistia no reavivar da sabedoria da antiguidade e no estudo aprofundado do que

era conhecido sobre gramática, retórica e a habilidade de comunicar clara e

convincentemente, literatura, poesia, história e filosofia moral. Tendo como referencial a

literatura clássica, sua revisitação e pesquisa proporcionavam um abrangente guia de

comportamento e erudição (CORNELL e MATHEWS, 1997 e GROUT e PALISCA, 2007)

simpático aos interesses políticos da época.

Recuperando os ideais remotos no campo da cultura e mais especificamente no

terreno musical italiano, sobressaem-se, dentre tantos, alguns autores e obras-chave

intermediárias entre os escritos clássicos, a Idade Média e o Renascimento: De institutione

musica, de Boécio (c. 500); A Divina Comédia, de Dante Alighieri (1314-1321);

Decameron (1348-1353) e Genealogia Deorum Gentilium (1350), de Giovanni Boccaccio,

referências da cultura, poesia e mitologia; a fundação do Neoplatonismo com Theologia

platonica (1482), de Marsilio Ficino, Practica musice (1496), de Franchino Gaffurio; os

manuais politicossociais como O Príncipe (1513), de Nicolau Maquiavel e O Cortesão

(1525), de Baldassare Castiglione, que já apontavam para uma aplicação dos ideais

clássicos ao contexto cortês, o primeiro, da perspectiva do governante na dominação e

poder e, o segundo, da perspectiva de seu séquito acompanhante, tradição da qual Giulio

Caccini seria seguidor e praticante. Le Istitutioni harmoniche (1558), de Gioseffo Zarlino, o

epistolário de Girolamo Mei a Vincenzo Galilei e ao Conde Bardi (1572) e Dialogo della

Musica Antica e della Moderna (1581), de Vincenzo Galilei, completam os tratados-chave

mais destacados até as publicações de Giulio Caccini, geradas, portanto, já por uma longa

tradição de investigação e erudição em referenciais clássicos.

A leitura do texto clássico de Boécio, uma suma em cinco volumes dos

conhecimentos teóricos herdados dos gregos, feita na corte de Mântua em 1424, “(...) pode

ser considerada um marco que assinala o início dos novos estudos sobre os primórdios

gregos da teoria musical” (GROUT e PALISCA, 2007, p.185). A ele, seguiram-se as

descobertas para o ocidente dos mais importantes manuscritos de tratados musicais gregos

pelas mãos de emigrantes, por meio de pilhagem em Bizâncio, como os tratados de

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Bacchius Sênior, Aristides Quintiliano, Cláudio Ptolomeu, Cleónides, Euclides “[...] e um

outro então atribuído a Plutarco” (GROUT e PALISCA, 2007, p.185), além do capítulo

sobre a música dos Problemas do pseudo-Aristóteles, os Deipnosofistas de Ateneu, os oito

livros da Política de Aristóteles e passagens relativas à música dos diálogos de Platão

(República e Leis), todos já traduzidos para o latim (mesmo que restritamente a estudiosos)

em finais do século XV. “Em 1453, Constantinopla, a capital do Império Bizantino, caiu

em poder dos Turcos Otomanos; como resultado, muitos eruditos gregos bizantinos fugiram

para as cidades italianas” (CORNELL e MATHEWS, 1997, p.119).

A obra de Boécio traz para a Idade Média os conceitos de Pitágoras sobre as

relações matemáticas que regulam os sons musicais, as proporções nas quais se baseiam os

intervalos, a relação entre o comprimento de uma corda e a altura de um som, pois foi o

primeiro que considerou o número como princípio de todas as coisas, como reflexo de uma

ordem cósmica.

Nos ensinamentos de Pitágoras e dos seus seguidores a música e a aritmética não eram disciplinas separadas; os números eram considerados a chave de todo o universo espiritual e físico; assim, o sistema dos sons e ritmos musicais, sendo erigido pelo número, exemplificava a harmonia do cosmos e correspondia a essa harmonia (GROUT e PALISCA, 2007, p.19).

A obra de Boécio lembra ainda que “(...) os pitagóricos sabiam que os diversos

modos musicais influem sobre a psicologia dos indivíduos e distinguiam ritmos duros e

ritmos temperados, ritmos adequados para educar os jovens e ritmos moles e lascivos”

(ECO, 2004, p.61-63).

Havia uma convicção de que a escolha do modo musical apropriado, detentor de

efeitos éticos, ideia esta presente tanto em Platão quanto em Aristóteles, era o recurso do

compositor para tocar as emoções do ouvinte.

Modos musicais De musica, I, 1 Nada é mais próprio à natureza humana do que abandonar-se aos modos suaves e mostrar-se irritada por modos contrários; e isso não se refere apenas, em cada um, a certas inclinações ou a certas idades, mas toca todas as tendências: as crianças, os jovens, os próprios velhos são tocados tão naturalmente, de maneira espontânea, pelos modos da música que se pode dizer que nenhuma idade se aliena do prazer do doce canto. Daí pode-se reconhecer que não injustamente foi dito por Platão que a alma do mundo foi composta com musical conveniência.

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De fato, através do que é convenientemente harmonizado em nós, percebemos nos sons aquilo que é composto de maneira harmônica e com isso nos deleitamos, pois compreendemos que nós mesmos somos feitos à semelhança disso. Amiga é, de fato, a semelhança, odiosa e contrária é a dessemelhança” (Boécio apud ECO, 2004, p.62).

As relações místicas entre a proporção e a perspectiva, os números, a cabala, a

religião e a música eram cada vez mais enredadas. Nas artes visuais, inúmeros foram os

teóricos, estudiosos e renomados artistas como Brunelleschi, Michelangelo ou Da Vinci

que desenvolveram e articularam seus princípios, de acordo com toda a prolífica produção

de pinturas e as realizações arquitetônica e estatutária. Quanto à música, estas marcas do

Renascimento não são tão evidentes, pois não têm, além do mesmo apelo de circulação, as

mesmas possibilidades de conservação e materialização. A magia e a alquimia constituíam-

se sempre como terrenos perigosos aos seus praticantes e seguidores diante das

possibilidades de contradição aos dogmas da hegemonia religiosa dominante e inquisidora.

Esta característica de junção dos domínios musical, matemáticos e religiosos bem

ilustra-se com o compositor francês Guillaume Dufay, que compôs para a consagração da

cúpula da Catedral de Florença, obra de Brunelleschi, uma peça coral, transformando as

proporções matemáticas ocultas da construção em um moteto, Nuper rosarum flores

(1436). A catedral é mundialmente conhecida, pois é vista; já a música associada é

enigmática e cinge-se do mistério vinculado aos números da arquitetura grandiosa.

Outro importante ideal estético e princípio criativo deste período sustentava-se na

capacidade de mímese da natureza pelo ser humano, na sua imitação e na capacidade

catártica da arte, da música.

Do mesmo modo como alguns fazem imitações segundo um modelo com cores e atitudes, – uns com arte, outros levados pela rotina, outros enfim com a voz; assim também, nas artes acima indicadas [epopeia, poesia trágica, comédia, poesia ditirâmbica, aulética, citarística], a imitação é produzida pelo ritmo, da linguagem e da harmonia, empregados separadamente ou em conjunto (ARISTÓTELES, Livro I, 2004, p.23).

Isto significava que se aproximar o mais possível de uma música original, grega,

conferiria tanto maior legitimidade e valor à composição. Tal música era a monodia, em

contraste ao contraponto, que, ao possibilitar que diferentes vozes fossem soadas ao mesmo

tempo, misturaria melodicamente diferentes afetos e impediria a boa inteligibilidade das

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palavras. O canto era a imitação da palavra: a melodia serviria para o redizer da palavra, o

que moveria ainda mais o afeto e conduziria o ouvinte. O som reafirmaria a essência da

palavra, o que viria a ser a base geral das músicas futuramente compostas por Giulio

Caccini, ou o stile rappresentativo do canto cênico: estilo vocal solista das peças

dramáticas musicadas.

O movimento neoplatônico, principalmente inaugurado e promovido por Marsílio

Ficino em Florença, atualizava as ideias de que “(...) a arte, ao revelar a realidade, o faz

pela metade, pois continua ocultando significados mais profundos que estão abaixo da

superfície das coisas” (COELHO, 2000, p.30). Para além de uma imitação fidedigna da

realidade vista ou ouvida, representada pelos artifícios técnicos humanos, estariam os

sentidos suprassensíveis. O neoplatonismo propunha-se, pois,

(...) no interior de uma visão misticizante do Todo ordenado em esferas harmônicas e graduadas, a cumprir três tarefas: difundir e atualizar a sabedoria antiga; coordenar seus múltiplos aspectos, na aparência discordantes, no interior de um sistema simbólico coerente e inteligível; mostrar a harmonia entre esse sistema e o simbolismo cristão (ECO, 2004, p.184).

Giulio Caccini, preocupando-se principalmente com sua arte de composição

musical, reflete este princípio já presente na prática de canto de sua época, observando que

sempre procurou, em suas próprias palavras: “(...) imitar o conceito das palavras,

pesquisando aquelas notas mais e menos afetuosas, segundo seus sentimentos, e que

particularmente houvessem graça (...)” (1601), a fim de mover as paixões e os afetos da

alma. Por conta de sua natureza aérea, o canto ocupava uma posição central importante no

modelo de conexão do cosmo, entre as esferas material e imaterial. Tal natureza de sopro –

il canto è fiato – o conduziria junto ao ponto médio (spiritus) do organismo humano, no

ponto onde se encontram a alma e o corpo. O canto era “um imitador potentíssimo de todas

as coisas”, fossem espirituais, celestes ou mundanas, nas palavras de Marsílio Ficino (apud

TOMLINSON, 2000, p.63).

Os madrigalistas descobriam meios de uma diversidade verdadeiramente extraordinária, para criar correspondências entre palavras e música: ritmos declamatórios, árias sutis nas melodias, gestos icônicos, dissonâncias e cromatismos emotivos, similaridades entre sintaxes musicais e sintaxes verbais,

99

por fim a estrutura ou o desenho retórico mais amplo e geral da música. Todos estes meios construíam imagens fônicas de estados psicológicos ou de coisas materiais que tais estados refletiam: em outras palavras, métodos e procedimentos que ofereciam, por meio do veículo do espírito vocal, imagens das ligações harmônicas entre alma e mundo (TOMLINSON, 2000, p.63).

Além do amor, dentre os temas e assuntos preferidos e mais reproduzidos, estavam

outras alegorias pagãs e a utilização de figuras mitológicas e lendárias, que serviam de

meio eficaz de travestimento e dissimulação entre os ideais antigos, como forma de

legitimação, os interesses cristãos, os objetivos para os quais a música era produzida, como

reuniões e festas grandiosas, e os interesses particulares do compositor e do intérprete. Por

conseguinte, a aproximação entre as artes literárias, a poesia e a música foi um importante

legado destes tempos, sendo paulatinamente construído e apoiado sobre a atenção

minuciosa aos sons das palavras e versos escritos, imitados pela música, coordenando

rigorosamente sílabas, altura e ritmo (GROUT e PALISCA, 2007, p.188).

A maior parte dos estudos musicais e tratados, como os de Franchino Gaffurio,

traziam para o Renascimento os preceitos básicos acerca dos modos gregos, das regras de

consonância/dissonância, dos propósitos e das regras do sistema tonal, da afinação, das

relações entre música e palavra e da harmonia da música, do homem, do espírito e do

cosmos (GROUT e PALISCA, 2007, p.186). Le Istitutioni harmoniche, 1558, de Gioseffo

Zarlino é um dos últimos elos entre as obras de Giulio Caccini e a antiguidade

propriamente, pois foi um largo estudo que sintetizou as já anteriormente apuradas regras

sobre o valor simbólico dos intervalos diatônicos ou cromáticos, dos ritmos rápidos ou

lentos, dos sons graves ou agudos para a expressão dos sentimentos.

Sobre este panorâmico percurso da situação da música no Renascimento, eleva-se a

Camerata Fiorentina, nome dado ao grupo de intelectuais que se reunia entre

aproximadamente 1573 e 1592, em torno dos mecenas florentinos Giovanni de’ Bardi e,

posteriormente, Jacopo Corsi, a fim de discutir principalmente as relações entre filosofia,

ciências e artes. A ela pertenciam os poetas Ottavio Rinuccini e Gabbriello Chiabrera,

famosos poetas e libretistas, o intelectual e músico Vincenzo Galilei, pai do célebre

astrônomo, os compositores Jacopo Peri e Giulio Caccini, além de aficionados a participar

dos informais saraus ali promovidos. Discutia-se e fazia-se música buscando os

embasamentos gregos em voga, colocando a poesia em um plano eminente e destacado.

100

Segundo Girolamo Mei, conceituado helenista, filósofo e estudioso florentino da

música, que tivera contato direto com os documentos gregos, correspondendo-se em carta

de 1572 com Vincenzo Galilei, pertencente à Camerata:

Nos coros, antigamente, o canto era o elemento principal, e o som [sem a palavra, puro] um quase seu servidor que o acompanhava. Então, naturalmente, o canto, no homem, era o verdadeiro, e o som a imagem deste canto. E foi assim até que se começou, quase sob o pretexto de se abrir um novo caminho, a se fazer o contrário: o som precedia a voz, que o seguia. Sobre isto, nos antigos, leem-se muitas querelas, tendo esta mutação de costume permitido, de certo modo, que o sentido [o ouvido] se tornasse principal, e a razão súdita sua. E, de fato, tal situação teria de surgir, pois se deixou que o som, imitação da voz, a subordinasse naquilo que propriamente a ela competiria. Porém, a voz foi especialmente dada ao homem pela natureza não apenas para que ele manifestasse através de seu simples som, como fazem os animais despossuídos da razão, o prazer e a dor, mas para, na conjuminância com o falar significante, exprimir adequadamente os conceitos da sua alma (apud CHASIN, 2004, p.31-32).

No entanto, a prática musical usual deste século XVI ainda girava em torno da

exploração da polifonia: várias vozes simultâneas e em contraponto. Concomitantemente, a

igreja já apontava novas direções ao desenvolvimento musical:

O Concílio de Trento (reunido intermitentemente entre 1545 e 1563) tentava definir a doutrina católica e reformar as práticas das igrejas em resposta ao desenvolvimento do protestantismo no norte da Europa. A arte e a música da igreja, que, demasiado levianamente, se consideravam ‘lascivas’, foram atacadas, as mensagens artísticas deviam seguir a Bíblia e santificar a tradição da Igreja; a música devia reforçar as palavras da liturgia, e não obscurecê-las com uma polifonia complicada (CORNELL e MATHEWS, 1997, p.99). Qualquer concepção do canto em modos musicais deverá destinar-se, não a dar ao ouvido um vão prazer, mas a permitir que as palavras sejam claramente entendidas por todos e, assim, os corações dos ouvintes sejam tomados pelo desejo das harmonias celestiais, na contemplação da beatitude dos eleitos (A. Theiner, Acta [...] Concili tridentini [...], 2, 1874, 122, trad. in Gustave Reese, Music in the Renascence, p.449 apud GROUT e PALISCA, 2007, p.285).

Ocorria uma espécie de ludicidade harmônica: não havia centros tonais rigidamente

definidos. Grosso modo, experimentavam-se os sabores e coloridos diversos do repouso e

da tensão, dos caminhos da consonância e da dissonância propiciados pela execução de

sons ao mesmo tempo, da mistura das vozes. O próprio Caccini faz esta crítica:

101

Eu, verdadeiramente nos tempos em que florejava em Florença a virtuosíssima Camerata do Ilustríssimo Senhor Giovanni Bardi de Conti de Vernio, aonde afluía não somente grande parte da nobreza, mas ainda eminentes músicos, e engenhosos homens, e Poetas, e Filósofos da Cidade, havendo também eu a frequentado, posso dizer ter apreendido mais do que seus dotes da razão, que em mais de trinta anos de contraponto, pois estes expertíssimos gentis-homens sempre me confortaram, e com claríssimas razões convenceram-me a não valorizar aquele tipo de música que, não permitindo entender bem as palavras, corrompe o conceito e o verso, ora alongando e ora abreviando as sílabas para acomodar-se ao contraponto, laceramento da Poesia, mas a ater-me àquela forma tão celebrada por Platão e outros filósofos, que afirmaram a música não ser outra senão a fala, e o ritmo e o som por último, e não ao contrário, a desejar que ela possa penetrar o intelecto alheio, e realizar aqueles admiráveis efeitos os quais estimam os escritores, e que não poderiam acontecer através do contraponto da música moderna, e particularmente cantando um solo sobre qualquer instrumento de corda, que não se entendia a palavra por conta da profusão de passagens, tanto nas sílabas curtas quanto nas longas, e em todo gênero de música que por este meio fossem pela plebe exaltados e aclamados como solenes cantores (1601).

Segundo Mei, esta prática contrapontística desvirtuava o sentido da música: a

palavra se perderia, seus sentidos não seriam adequadamente inteligíveis. Chasin (2004,

p.71) assim resume:

A música dos gregos, distintamente, não se cingia à carícia gratuita dos ouvidos, considera o Dialogo, mas entendia dispor as paixões poéticas, as paixões da alma. Pela arte dos sons, enfim, o ouvinte se educava, formava e desenvolvia humanamente, uma vez tomado pelos sentimentos e posturas poético-melodicamente expressos. Numa palavra, para Galilei, como para Mei, música é voz, que é poesia, que é canto, que é afeto humano.

Neste contexto descrito germinaram as Novas Músicas propostas e posteriormente

publicadas por Giulio Caccini. Tais músicas estavam envoltas pela discussão sobre a

sabedoria musical grega, foram negociadas não sem controvérsias com outros tantos

especialistas contemporâneos a ele, foram liberadas e vindas à tona pela sua ousadia em

defesa do espaço profissional, mas sobretudo vital e estavam a serviço do novo estilo e

expressão poética.

Ideais humanistas foram, ao longo do século XVII, elaborados a ponto de culminar

no período Barroco no século XVIII com, por exemplo, concertos instrumentais puramente

descritivos da natureza e dos fenômenos físicos. Estes exemplos sintetizam o signo maior

102

do Renascimento de apreender a realidade pela arte, potencializá-la, naturalizando os

códigos da retórica musical.

Imitação e invenção fundiram-se e coincidiram, trazendo para aquele presente,

transformados, os principais valores da música do período clássico antigo, como o realce à

palavra poética, todavia com funções diversas das de então. Vozes e registros com igual

importância, harmonia baseada em intervalos e o uso livre e intercambiável da voz e dos

instrumentos no início do Renascimento, resultaram, no período Barroco, em estilos mais

complexos, como sonata, concerto, sinfonia, vozes e registros mais agudos com maior

importância em relação aos demais, harmonia baseada em acordes e o uso regulado da voz

e dos instrumentos para fins específicos e bem determinados (KOOLBERGEN, 1995,

p.25), e uma extrapolação e transformação estilística em relação ao período anterior.

CAPÍTULO 3

A CAMERATA FIORENTINA , O ARTISTA DE CORTE E A PAIDEIA

A Camerata Fiorentina

É sabido que o escopo daquele eleito grupo de estudiosos fiorentinos, poetas e músicos, literatos e humanistas, que no último quarto do século décimo sexto conviviam na casa de Giovanni de’ Bardi, conde di Vernio, era descobrir de que modo os antigos gregos conseguiam obter da música aqueles efeitos tão maravilhosos dos quais tanto fala a literatura, a tradição e as lendas, e consequentemente de fazê-los reviver nos tempos modernos (TESTI, 1970, vol.1, p.50).

Accademia di Platone, Accademia degli Invaghiti, Accademia degli Intronati,

Accademia degli Alterati, Accademia Fiorentina, Accademia della Crusca, Accademia

degli Incogniti, Accademia degli Unisoni, Camerata Fiorentina eram os nomes de alguns

dos muitos grupos de nobres italianos que se reuniam informal e regularmente para

conversar sobre poesia e literatura, música, astrologia, filosofia, matemática e outras

ciências, cantar e tocar. Este tipo de encontro social funcionava tanto como um espaço para

a exposição de saberes e pesquisas pessoais, com um caráter mais educacional, quanto uma

espécie de sarau, no âmbito dos divertimentos, em que predominavam apresentações

musicais e declamações de poesia.

Devido a esta dupla função, as reuniões também possibilitavam que os nobres

frequentadores apresentassem seus filhos mais jovens, aspirantes, portanto, às posições

sociais e direitos já conquistados, ao círculo da comunidade. Estas novas gerações eram

introduzidas em uma sociedade já diferenciada e estimulada ao estudo e aprofundamento

em temas valorizados neste meio. “Alguns dos homens mais velhos atuavam como

preceptores, enquanto outros principalmente ouviam e debatiam. Elas [as academias]

provavelmente preparavam os jovens homens para participarem de academias mais formais

e de estudos universitários” (PALISCA, 1989, p.4).

104

Em contraste a períodos historicamente precedentes, esta fase do Renascimento

pode ser entendida como o momento em que determinadas pessoas, de certos grupos sociais

como os frequentadores da Camerata, passaram por uma necessidade mais intensa de se

comunicar umas com as outras a respeito de sua singularidade, diferenciando-se em suas

atividades mais individuais, como o canto por exemplo, do que coletivas, intercambiando

estudos, articulando saberes, criando ocasiões próprias à expressão de perícias mais

especializadas. Esta necessidade não se desvincula de uma estruturação da política da corte,

diferenciando pessoas e distribuindo poderes, cargos e funções.

Associa-se e participa deste deslocamento a própria afirmação da harmonia moderna

da época, “que tendendo a uma sempre mais acentuada homofonia, vinha a colocar-se a

serviço do sentimento individual, virgem e pronto, naquele momento histórico, à mais

intensa e livre expressão” (TESTI, 1970, p.54).

A sempre necessária e exigente variedade do entretenimento cortesão demandou

uma grande diversidade de formas musicais, partindo dos coros religiosos, passando pelas

contrapontísticas misturas de vozes e chegando ao canto solo cortesão.

Giulio Caccini participou como cantor e compositor desta fase de ampliação da

especialização de funções. Aproveitou a abertura de uma rara possibilidade de intercâmbio

de classes (seu pai, apesar de bem sucedido, era carpinteiro), saindo provavelmente por

volta de 1564, quando tinha treze anos, de sua cidade natal, Roma, devido ao

reconhecimento pelos nobres de seu talento como cantor.

Neste período o jovem Caccini é recrutado pelo embaixador florentino para tomar parte nas festividades do casamento de Francisco de Medici com Joana da Áustria em Florença, ocasião em que interpreta de Francesco D’Ambra e Alessandro Striggio – Fuggi speme mia. Caccini permanece em Florença a serviço da corte grão-ducal passando a frequentar os salões do Conde Giovanni Bardi, ponto de reunião da Camerata Florentina, onde entra em contato com vários intelectuais, poetas e artistas que ali se dedicavam a discutir arte, literatura e filosofia. O aristocrata Bardi, que então ocupava o cargo de dirigente dos espetáculos da corte, passa a patrocinar Caccini incentivando sua arte e recomendando seu trabalho (MULLER, 2006, p.228).

A Camerata Fiorentina também é conhecida por Camerata Bardi, devido à atividade

de mecenato – mencionada desde 1560 ao bancar os estudos de Vincenzo Galilei – de seu

principal articulador, o conde Giovanni Bardi. Em meados de 1590 as reuniões passaram a

105

acontecer na residência de outro mecenas, Jacopo Corsi, devido ao paulatino afastamento e

declínio do conde Bardi por desavenças políticas na cidade. Os primeiros registros do termo

Camerata Fiorentina foram de Giulio Caccini em sua dedicatória ao Conde Bardi, da

partitura L’Euridice composta in musica in stille rappresentativo (20 de dezembro de 1600)

e no prefácio de Le Nuove Musiche (1601).

A Camerata Fiorentina é um interessante exemplo das maneiras como aconteciam a

proliferação e a multiplicação das sofisticações de corte pelo cerimonial e etiqueta. O

acesso e o estudo dos modos de vida clássicos passavam a fazer parte dos hábitos nobres a

partir deste tipo de inserção artística. Foi obra da Camerata Fiorentina o estudo das teorias

que sustentavam a monodia como música ideal para a melhor moção dos afetos, em acordo

com as pesquisas da prática grega.

A expressão fundamental das teses da Camerata estão no célebre Dialogo della

Musica Antica et della Moderna (Florença, 1581), de Vincenzo Galilei, que apontavam

sobretudo a superioridade da música grega sobre aquela de seu tempo. Os pressupostos

desta publicação advieram dos pensamentos do humanista Girolamo Mei, seu professor.

A diferenciação de uma boa sociedade pelas formas agradáveis, pelos refinamentos,

pela arte da reserva, do bem viver, do cultivo de bons hábitos, da aparência e do

comportamento comedido, justo, sem demonstração de esforço, não se separava ou

distanciava das práticas artísticas, pelo contrário, participava da criação dos padrões de

referência do gosto artístico. Com a legitimação da corte, a arte praticada dentro de suas

cercanias tornar-se-ia o padrão a ser seguido, ensinando maneiras de comportamento, tendo

ou não este fim.

A Camerata Fiorentina representava um grupo de estudos em que, imagina-se, seus

frequentadores divertiam-se informalmente impregnados por uma vontade de ascensão

social. Pertencer a um grupo desta natureza significava ter acesso e contato com pessoas

importantes social e politicamente. Ela não estava totalmente aberta à entrada de qualquer

um, apenas de convidados, pois constituía mais um espaço de homens que, de alguma

forma, disputavam formas de poder ou legitimação social, pois a necessidade de se destacar

desenvolve-se sempre em relação a uma coletividade, à uma necessidade de se fazer parte.

A alternância da supremacia deste tipo de academia variava de acordo com a permanência

em cargos políticos importantes de seus principais favorecedores.

106

Frequentavam de fato as reuniões da Camerata os músicos Vincenzo Galilei e

Giulio Caccini, além da grande probabilidade de que Jacopo Peri, Jacopo Corsi e Piero

Strozzi o tenham feito mais tarde em relação aos primeiros. Outros músicos, como escreveu

Caccini (1601), “os melhores da época”, ainda colaboraram com Bardi em comemorações

de corte, como Alessandro Striggio, Cristoforo Malvezzi, Emilio de’ Cavalieri e Francesco

Cini. Entre os poetas, participaram Ottavio Rinuccini, Giovanni Battista Guarini,

Gabbriello Chiabrera e Giovanni Battista Strozzi.

Apesar de não ter herdado a profissão do pai, a música na vida de Giulio Caccini

começou seguindo a tradição dos ofícios artesanais. Ele era um típico artesão, no sentido de

que fazia música para seus patronos. Nunca foi completamente livre, até mesmo depois de

começar a frequentar as reuniões da Camerata e obter sucesso com seu trabalho, como

arriscariam ser os futuros músicos que, seguindo uma consciência musical mais pessoal e

produzindo obras desatreladas de encomendas de patronos, escolheriam os mercados aos

quais se submeter. Casou-se com uma cantora, Lucia di Filippo Gagnolanti, com quem

permaneceu até 1593, tendo duas filhas, Francesca ou La Cecchina, e Settimia. Ambas

tornaram-se famosas cantoras, compositoras e instrumentistas. Teve ainda Pompeu, filho

ilegítimo, que, educado pelo pai, também aprendeu a cantar. Em 1604, quatro anos antes de

falecer, casou-se novamente com outra cantora, Margherita Benevoli della Scala, falecida

em 1636. Havia pelo menos 5 outras crianças dos dois casamentos: Dianora, Giovanni

Battista, Giulio, que tornou-se monge em 1615, Michelangelo e Scipione, que cantou na

corte em finais de 1620. Giulio Caccini foi o professor de canto e música de suas esposas e

filhas. Com sua instruída e talentosa família e mais outros alunos fundou o Concerto

Caccini, um prestigiado conjunto musical que se apresentou em várias cidades italianas,

chegando até a passar uma temporada de seis meses na corte de Paris, por empréstimo do

grão-duque da Toscana, a pedido do próprio rei francês na época, Henrique IV, atendendo

ao convite de Maria de Medici, a rainha da França.

Suas inovações estilísticas apontavam para um futuro, mas sempre buscando

agradar ao público da corte florentina a que estava emaranhado, àquele público que garantia

sua permanência no meio. Suas novidades caminhavam em conjunto com os padrões

existentes, ousando dentro de limites simbólicos sutilmente estabelecidos, comunicados e

107

negociados. Sua arte era utilitária no sentido de que supria uma demanda de entretenimento

do ócio da corte e de realização de festas inéditas.

É possível situar a atividade de Giulio Caccini como sendo uma arte tipicamente de

artesão empregado, ainda longe de praticar uma futura arte de artista, de característica mais

livre. A Camerata Fiorentina congregava as condições propícias para o amplo

desenvolvimento de uma nova música, reunindo, não acidental e espontaneamente, os mais

sábios e capazes estudiosos. Estes homens eram, antes de tudo, estipendiados por um nobre

influente.

As convenções musicais adotadas por Giulio Caccini e prescritas em suas

publicações acompanhavam a etiqueta de corte, com uma primordial função simbólica,

traduzindo-se como um severo monopólio do controle dos afetos e emoções, educando sua

introjeção pessoal e ensaiando, pelo canto, mais um recurso de autocontrole. O termo

sprezzatura revela-se como uma interessante demonstração deste vínculo entre as maneiras

de comportamento social e as maneiras de composição musical. Sua música não poderia ser

exclusiva e desvinculada do ambiente musical em que era nutrido, pois foi pensada

coletivamente dentro da Camerata Fiorentina. As tentativas de singularização de sua

própria obra, como as publicações em questão, sempre resvalaram em disputas. A

competição com os outros compositores contemporâneos era por status. Suas árias e

cançonetas dialogavam com as convenções musicais da época, ora acatando-as ora

subvertendo-as.

Um bom exemplo ilustrativo destes tipos de intrigas, que tanto alimentam o

imaginário sobre a vida nas cortes, foi a sua particular contenda com Peri, com quem

rivalizava. Giulio Caccini

[...] conseguiu não só inserir em Euridice árias de sua autoria, a pretexto de que vários cantores “dependem dele”, e representar três dias mais tarde no Palazzo Vecchio seu primeiro melodrama, Il rapimento di Cefalo; mas, além disso, musica por sua vez a mesma Euridice e consegue publicá-la antes da de Peri. Não consegue todavia fazê-la representar antes de 1602. Por sua vez, Pietro Bardi, o filho de Giovanni, difunde habilmente a opinião que prevalecerá até nossos dias: o melodrama é o fruto dos trabalhos da Camerata e das experiências de Caccini! Peri, no prefácio de Euridice, concede essa prioridade a Cavalieri (CANDÉ, 2001, p.430).

108

A efervescência cultural que permeou os mais de 20 anos de atividades da Camerata

Fiorentina permite atribuir os créditos de uma transformação musical – os impulsos iniciais

do canto recitado acompanhado por um baixo cifrado – a um coletivo de autores.

Em convivência constante, em aspirações por cargos e condições sociais

concorrentes, admitindo as contribuições alheias ou mesmo apropriando-se delas

estrategicamente – uma vez que o conceito de autoria apenas começava a ser mais

rigidamente defendido – estre grupo de homens nutria-se da profunda pesquisa da paideia

para embasar suas novas criações, correspondendo-se entre si e inventando seus modos de

expressão. “Certamente, a opção por uma recitação que se inspira mimeticamente no falar,

mostra que ele [Giulio Caccini] não desconhecia o que havia sido escrito e discutido na

troca de cartas entre Girolamo Mei, Galilei e Bardi” (MULLER, 2006, p.149).

A típica manutenção de uma frequente tensão nos meios cortesãos foi um fator

importante da força criativa para “as novas músicas” na época: ao mesmo tempo em que

foram impulsionadas, também alavancaram novos esforços da classe dos compositores. A

Camerata Fiorentina é melhor entendida como sendo um movimento coletivo, em que

despontaram manifestações individuais, como as de Giulio Caccini.

109

O artista de corte

Florença e Veneza tiveram uma enorme aristocracia urbana interessada em manifestar a posição das suas famílias patrocinando a educação e as artes. Os outros centros principais da Itália tiveram também uma ampla gama de mecenas, mas ali o foco principal estava quase sempre na corte principesca (CORNELL e MATHEWS, 1997, p.67).

Talvez as manifestações das artes visuais ajudem a melhor compreender o lugar do

artista dentro desta forma peculiar de organização social, a corte de maneira geral. Com

uma nítida separação entre a vida nas cidades, com governo e administração próprias, e

aquela acontecida nas cortes, independente, todo o aparato concreto e pictórico – partindo

da arquitetura dos castelos e dos palazzi e chegando a toda forma de pinturas e quadros em

seus interiores – concorria em alguma proporção à materialização simbólica de um poder

real.

Arte de artesão (com suas derivações, arte da corte ou oficial): produção de arte para um patrono pessoalmente conhecido, com status social muito superior ao do produtor (num gradiente íngreme de poder). Subordinação da imaginação do produtor de arte ao padrão de gosto do patrono. Arte não-especializada, mas uma função de outras atividades sociais dos consumidores (primariamente, um aspecto do dispêndio na competição por status). Forte caráter social e fraco caráter individual dos produtos de arte, simbolizados pelo que chamamos de “estilo”. Arte de artista: arte criada para um mercado de compradores anônimos, mediados por agências tais como negociantes de arte, editores de música, empresários etc. Mudança na relação de poder em favor dos produtores de arte, significando que eles podem induzir o consenso público quanto a seu talento. Maior independência dos artistas a respeito do gosto artístico da sociedade, paridade social entre o artista e o comprador de arte (democratização) (ELIAS, 1995, p.135).

Os pintores reais possuíam responsabilidades políticas não só de intercâmbio

diplomático, mas também de observação e registro do ambiente distante e alheio. Por

poderem possuir a patente de emissários reais, participavam de uma política dinástica

matrimonial, produzindo retratos como ofertas não pouco interesseiras.

O intercâmbio de presentes e agrados era comum e, cada vez mais, seu valor

deixava de ser material – como trabalhos de ourivesaria, tecidos caros, carruagens, objetos

110

religiosos, relíquias – e passava a ser artístico. A tela constituía um importante recurso de

intercâmbio e transporte do retrato de personagens da realeza, pois estava envolta pela

antiga técnica retórica de dissimulatio: que se ocultassem as falhas da natureza ao se

retratar os rostos dos soberanos e se encobrissem e dissimulassem as imperfeições naturais

por meio de artifícios, e se mantivessem a nobreza e a dignidade mais aparentes.

A música fazia parte deste ambiente, inicialmente também como decoração e, aos

poucos, como protagonista de passatempos e reuniões sociais de maior vulto, como as

portentosas e vistosas festas matrimoniais.

A ideia de um artista soberano e livre dos artesãos da cidade surgiu após a abertura

de postos importantes na corte e na igreja – na música, como compositor, cantor, músico,

professor de música, maestro di cappella – fazendo com que fosse possível que se levasse

também para as cidades, o conceito de artista irrestrito à corte, universal, fomentando a

produção e veiculação artística entre este dois ambientes.

Enquanto, por um lado, os clientes das cidades eram cuidadosos em não transgredir

tradições e limites de decência, padrões estéticos, os da corte exigiam a novidade e o maior

destaque possível, uma originalidade diferenciadora, formas novas e exclusivas,

extravagâncias excêntricas, aparências deslumbrantes, contra os métodos tradicionais

urbanos. Este foi sem dúvida um estímulo natural de migração para a corte de artistas

originais. Novamente, pela luz das reflexões sobre um pintor:

Não totalmente sem razão, atribui-se a Brunelleschi a força discursiva do “apóstolo Paulo”; Vasari atribui as dificuldades permanentes de Brunelleschi na construção da cúpula florentina à mentalidade estreita do público florentino, que pretendia intrometer-se em tudo. Os artistas, que – como diz Vasari – “como os médicos, que se exercitam na pele dos pobres do campo”, não se importavam em oportunisticamente desistir de suas intenções formais em favor do gosto trivial, permaneciam nas cidades, presos à exclusividade, e por fim eram impelidos para as cortes. A sociedade urbana não era flexível o suficiente para aceitar as propostas artísticas novas e originais” (WARNKE, 2001, p.102).

As cidades, às vezes, faziam dos artistas que recebiam postos na corte,

representantes de seus interesses naquele meio, e vice-versa, nomeando e criando cargos de

representatividade. Giulio Caccini foi sempre conhecido como Giulio Romano, apesar de

ter vivido em Florença desde os treze anos: sua descendência da importante capital

religiosa nunca poderia ser deixada de lado. Efetivamente, não constam favorecimentos

111

diretos por tais raízes. Simbolicamente, no entanto, seu nome sempre teria maior peso se

relacionado ao poder dominante da igreja romana.

A fama constituía-se em cartão de visitas para a entrada do artista na corte, como

aconteceu com Giulio Caccini que, após apresentações em sua cidade natal, foi convidado a

ir para Florença, onde permaneceu e floresceu. Acasos ou condições favoráveis,

autopropaganda à moda de muitos escritores humanistas, presentes de todos os tipos com a

imprescindível prática dedicatória e os prefácios elogiosos, a atitude pessoal, a beleza física

e a ostentação das virtudes mais valorizadas como a erudição em letras e filosofia, eram os

recursos dos artistas para galgar os postos na corte, de maneira livre – eram possivelmente

as formas primitivas de uma livre concorrência, às portas dos castelos e palácios.

As invejas, lutas e competições por privilégios sempre existiram, e as intrigas pelos

postos também, pois apenas o reconhecimento e fama públicos poderiam manter o artista

no séquito. Os concursos públicos não eram muito comuns para altos cargos – pois, para

estes, bastava o convite pessoal do soberano – mas fomentavam produções de alto nível

para a diversão e deleite das cortes, afora a promoção e reconhecimento público dos artistas

envolvidos.

O artista era exclusivo de determinada corte geralmente durante obras de grande

porte, podendo trabalhar e fazer a propaganda em outros locais com a permissão do

príncipe. No caso das artes visuais, suas obras eram de propriedade dos príncipes e

estabeleciam moedas de magnaminidade do príncipe, pois representavam produtos mais

espirituiais do que comerciais. Já a eloquência musical tinha seu alcance direto àquelas

pessoas presentes em determinadas reuniões, nas quais as obras eram executadas.

Como forma de refletir sobre o desenvolvimento da música da qual se trata, é

interessante destacar a comunicação entre compositores de cortes distintas, como por

exemplo o acesso de Claudio Monteverdi, enquanto era estipendiado pela corte de Mântua,

talvez atualmente mais famoso e conhecido do que Giulio Caccini, à Camerata Fiorentina.

Distante das comuns comparações e julgamentos de valores, ou de uma frequente

escavação sobre a originalidade da autoria da primeira ópera, percebe-se que as influências

e interferências mútuas eram de fato bastante habituais e as convergências das muitas

referências a que os compositores estavam abertos aconteciam em suas singularidades de

composição.

112

Primeiramente, em ordem temporal, a sua provável estada em Florença em outubro de 1600, sempre no séquito do duque que foi convidado para as bodas de Maria de’ Medici com Enrico IV da França, estada que, se verdadeiramente parece ter ocorrido, forneceu-lhe certamente a ocasião de assistir às representações de Euridice de Peri e de Il rapimento di Cefalo de Caccini, além de frequentar a casa de Jacopo Corsi e portanto de estruturar-se uma precisa ideia acerca dos prinícipos da Camerata. Nota: Que Monteverdi foi a Florença e que durante tal estada tenha frequentado a Camerata é testemunhado, infelizmente de forma indireta, por Carlo Roberto Dati. [...] ‘Nos tempos andados nos quais a nossa nobre juventude era menos indolente e mais dedicada aos exercícios e entretenimentos cavalheirescos, [...] a casa de Jacopo Corsi estava sempre aberta, quase uma academia pública, a todos que das artes liberais tivessem inteligência ou vagueza. A ela concorriam cavalheiros, literatos, poetas e músicos insignes: e especialmente por ela foram alojados e com ela permaneceram o Tasso, o Chiabrera, o Marino, o Monteverdi, Muzio Efrem e mil outros de tal escalão...’ [A. Solerti, Gli albori del melodramma, Milano-Palermo-Napoli, 1903-1904, Vol.I, p.48]. ‘Em todo caso - como nota de’ Paoli - até se não estivesse presente, Monteverdi poderia ser prontamente informado de maneira particular e, por assim dizer, de primeira mão. Protagonista de Euridice, de fato, Francesco Rasi foi emprestado pela ocasião do duque Vincenzo à corte Medicea: aquele mesmo Francesco Rasi cantor, poeta e compositor, que era uma das glórias da Corte mantovana. Rasi deveria informar minuciosamente Monteverdi sobre os espetáculos florentinos, não somente, mas, retornando a Mântua, é provável que tenha trazido consigo uma bela provisão de árias escritas no novo estilo monódico, e que as cantasse nas reuniões musicais que aconteciam todas as sextas-feiras na Galleria degli Specchi. Monteverdi, pois, não somente foi informado, mas podia ouvir e estudar as produções dos componentes da Camerata’ [D. de’ Paoli, Claudio Monteverdi, Milano, 1945, p.76] (TESTI, 1970, p.183-184).

A criação de postos de especialistas artísticos, como pintor, escultor, cunhador de

moeda, marceneiro, miniaturistas e os demais cargos musicais já mencionados, funcionava

como uma estrutura com vistas à segurança e construtibilidade do mundo cortesão em

contraste com a cidade: a formação do território nobre. A responsabilidade artística

pertenceria à corte, que passava então a ditar as tendências artísticas e técnicas.

A Camerata Fiorentina era mantida por um nobre, o conde Bardi, que era quem

possuía, por hierarquia, o livre acesso e a responsabilidade pela organização musical de

comemorações na corte florentina dos Medici em finais do século XVI. A música por ele

fomentada era o modelo a ser seguido e desenvolvido naquela região. As formas de

educação musical, do canto, da instrumentação, da composição, encaminhar-se-iam na

direção proposta por tal nobre e seu grupo de seguidores.

113

É novamente cabível complementar as diferenças entre uma arte praticada como

atividade mecânica, daquela dita livre:

Chamava-se “livre” (liberalis), a “arte” (ars) que fosse digna de um homem livre, portanto, a que não fosse exercida por prazer desinteressado. Pois essa ars origina-se de uma “virtude”, de uma virtus, que se exprime num “dom” inconfundível, no ingenium. Essa virtude é um presente de Deus ou da natureza. O exercício da virtude é a inventio, a “invenção”, que é orientada pelo “julgamento”, o iudicium. Na aplicação da virtude o julgamento serve-se de regras e técnicas específicas e que constituem a scientia, a “ciência” de uma ars. Quem, em resultado de sua atividade intelectual, é responsável pela criação da “obra”, o opus, na mente, pode deixar sua realização para os artesãos, que dominam as técnicas da scientia. Essa atividade secundária pode ser calculada, avaliada e paga. A verdadeira produção da virtude é incomensurável e pode apenas ser “patrocinada” e “estimulada”. O serviço aos príncipes era basicamente uma atividade “livre”, não um serviço remunerado, mas um serviço de virtude, baseado no juramento de lealdade recíproca (WARNKE, 2001, p.65).

O músico não deveria se especializar por desejo próprio, pois isto restringiria seu

campo de atuação. Por isso, prestando serviços à corte como praticante de uma arte de

artesão, Giulio Caccini exerceu diferentes funções na área musical, atuando principalmente

como cantor e compositor, mas também como professor e diretor de seu próprio conjunto.

A Camerata Fiorentina era livre e independente. Não era uma escola e tampouco

visava exclusivamente ao suprimento musical da corte florentina. Aos poucos, as próprias

cortes maiores começaram a organizar-se com apoios financeiros e academias de arte reais,

criando um fomento interno a novas gerações de artistas. O cargo de emissário permanente,

ou um olheiro e avaliador de artistas em outras cortes, e o estímulo aos jovens artistas a

viagens de formação ao exterior, pendia sempre a uma equiparação às normas

internacionais de gosto. A ousadia artística e a diplomacia entre as cortes sempre

caminharam em constante jogo de tensão e desequilíbrio controlável, ora arriscando

ineditismos, ora conformando-se e inspirando-se em referências de outros.

Com o falecimento ou deposição do príncipe, caía também o servidor artista que ali

estava para cercá-lo de uma aura que o faria parecer importante: o artista fazia parte do

círculo pessoal – caráter privado do cargo – do soberano, acompanhante de viagem e

entretenimento, garantido por uma fidelidade de servidão com suas virtudes, pelo bem-estar

do príncipe, recebendo, por vezes, títulos de familiaris do imperador, que acumulava à sua

volta uma comunidade ampla de acento intelectual destacado. Por ser servidor da corte,

114

recebia uma remuneração fixa em gêneros e em dinheiro, além de todas as garantias de

necessidades – exigências de etiqueta e aparência – de casa, dentro ou fora do palácio,

farmácia e médicos, comida e vestimenta adequada a um servidor real para ser reconhecido

como tal. Tais regalias estendiam-se também a sua família, além de garantias por invalidez

ou impossibilidade ao trabalho, bem como pagamentos de espera. Rendas vitalícias

vinculavam a disponibilidade da habilidade, por fidelidade, e não o fornecimento de obras.

A renda recompensava a virtude e não o desempenho. As gratificações eram livres e

esponâneas, de acordo com a avaliação do soberano, apesar de manifestamente

representarem sua não mesquinhez.

Como a música deveria exercer um efeito imediato sobre a audiência, a velocidade

das produções eram proporcionais aos valores políticos nela envolvidos. Estes valores eram

momentâneos, aparentes e fugazes, pois se alteravam juntamente com as pessoas

relacionadas às situações.

Em 1587, Ferdinando de’ Medici, um liberal, quase um progessista, sucede a seu irmão Francisco, conservador e autocrata. Bardi era do partido desse último. Incentivara sua ligação, depois seu casamento com a famosa Bianca Cappello, que Ferdinando detestava. O advento do novo grão-duque de Toscana é, para o animador da Camerata, o sinal da desgraça. Com sua experiência, ele ainda organiza as festas de 1589, como organizou as de 1579, mas sua influência pessoal cessou, e ele decide mudar-se de Florença para Roma em 1592. O novo mecenas influente é Jacopo Corsi (1560-1604), compositor e cravista amador. É um espírito original, voltado para o futuro. A partir de 1590 mais ou menos, ele organiza em sua residência saraus poéticos e musicais, frequentados pelos poetas Rinuccini e Torquato Tasso e pelo compositor Emilio de’ Cavalieri. Este, cujas posturas estéticas e políticas nunca se harmonizaram com as de Bardi, acaba de ser nomeado superintendente das artes pelo grão-duque Ferdinando (CANDÉ, 2001, p.425).

Identifica-se mais uma vez que os percursos do desenvolvimento musical ocidental

de finais do século XVI, estiveram sempre atrelados à malha das relações sociais e políticas

da corte florentina.

Identificando perspectivas históricas fomentadas mais pela intensidade dos fatos do

que por sua descrição, vislumbra-se a coexistência de eventos por vezes separados e

organizados cronologicamente. As tendências das novas músicas estavam muito mais

atreladas a um contexto social que as avigorava, pari passu com a vida das pessoas

próximas e suas interrelações, do que com uma sucessão de estilos consolidados que se

115

sobrepusessem. A polifonia não foi simplesmente substituída pela monodia, que, por sua

vez, desenvolveu-se até transformar-se em melodrama, e assim sucessivamente. As práticas

musicais de conjunto moviam-se interferindo e acompanhando toda a dinâmica social

específica daquela cidade em questão, sempre em aliança com as cortes vizinhas com

poder e influência comparáveis.

A alternância entre diferentes pessoas no poder, com suas distintas convicções

particulares, acabaram por compor um complexo jogo de encontros artísticos, cujas

principais manifestações publicadas, como Le Nuove Musiche e Nuove Musiche e Nuova

Maniera di scriverle, oferecem-se ainda como riqueza e experiência a ser vivida.

Que forças sustentavam a vontade de pesquisa incessante para uma sempre nova

música neste intrincado meio?

116

Paideia

Não se pode evitar o emprego e expressões modernas como civilização, cultura, tradição, literatura ou educação; nenhuma delas, porém, coincide realmente com o que os Gregos entendiam por paidéia. Cada um daqueles termos se limita a exprimir um aspecto daquele conceito global, e, para abranger o conceito total do conceito grego, teríamos de empregá-los todos de uma só vez. E no entanto a verdadeira essência da aplicação ao estudo e das atividades do estudioso baseia-se na unidade originária de todos aqueles aspectos – unidade vincada na palavra grega – , e não na diversidade sublinhada e consumada pelas locuções modernas. Os antigos estavam convencidos de que a educação e a cultura não constituem uma arte formal ou uma teoria abstrata, distintas da estrutura histórica objetiva da vida espiritual de uma nação; para eles, tais valores concretizavam-se na literatura, que é a expressão real de toda cultura superior (JAEGER, 2003, p.1).

Da forma como se configurava a sociedade florentina de meados de 1600, os ideais

da paideia tinham grande relevância. Ter como referenciais as maneiras dos governantes do

período clássico, representava um poder ainda mais efetivo, pois estaria apoiado sobre uma

tradição irrevogável e historicamente reconhecida.

A música, como uma manifestação de destacado lugar na cultura grega, guardava,

também nesta época, uma posição influente nos modos de vida de um pretenso tipo de

Homem elevado renascentista – no sentido de um ser humano culto e civilizado.

Obviamente, a formação e o contexto das pessoas que teriam acesso às ideias do período

clássico afastavam-se bastante de suas origens gregas. Ainda assim, com o crescente acesso

a textos originais, traduções e o contato com a produção literária grega, legitimava-se

crescentemente o embasamento dos comportamentos cotidianos do nobre cortesão na

cultura clássica.

Nos estádios primitivos do seu crescimento, [a paideia] não teve a idéia clara dessa vontade; mas, à medida que avançava no seu caminho, ia-se gravando na sua consciência, com clareza cada vez maior, a finalidade sempre presente em que a sua vida assentava: a formação de um elevado tipo de Homem. A idéia da educação representava para ele o sentido de todo o esforço humano. Era a justificação última da comunidade e individualidade humanas (JAEGER, 2003, p.7).

117

A paideia foi o extenso movimento em que se forjaram, como tomada de

consciência e produção cultural, princípios naturais da vida humana e das leis imanentes

que regem suas forças corporais e espirituais. “Colocar estes conhecimentos como força

formativa a serviço da educação e formar por meio deles verdadeiros homens, (...), é uma

idéia ousada e criadora que só podia amadurecer no espírito daquele povo artista e pensador

[os gregos]” (JAEGER, 2003, p.13). O humanista intelectual do Renascimento apropriou-se

deste mesmo espírito na invenção dos modos de vida deste período. A criação e formação

do ser humano vivo passou a ser a finalidade maior de uma forma de viver que se

sustentava em um dos muitos pilares da paideia: a educação teria de ser também um

processo de construção consciente.

Toda educação é assim o resultado da consciência viva de uma norma que rege uma comunidade humana, quer se trate da família, de uma classe ou de uma profissão, quer se trate de um agregado mais vasto, como um grupo étnico ou um Estado (JAEGER, 2003, p.4).

A paideia deu existência a uma consciência das leis gerais que determinam a

essência humana, cujo princípio espiritual não era o individualismo, mas o humanismo. A

educação do Homem seria exercida de acordo com a verdadeira forma humana, com o seu

autêntico ser. Talvez neste aspecto resida um dos muitos distanciamentos entre o estilo de

vida clássico e aquele da Renascença, período em que as condutas centradas em uma

existência individual começavam a despontar com maior força. Na paideia, ao contrário,

erguia-se pela primeira vez na história, o Homem como ideia.

O nascimento de um ideal definido de Homem superior tem na paideia sua origem,

constituindo escopo principal da formação da pessoa pertencente à nobreza e aristocracia

grega. O desenvolvimento da excelência humana, a educação de virtudes, a destreza e a

força como base para uma posição dominante, o heroísmo, a prudência e a astúcia, a

coragem, a bravura e valentia militar e, sobretudo, a noção de honra estabeleciam suas

bases formativas primordiais.

O Homem grego, a que todos os educadores, poetas e filósofos aspiravam, era

essencialmente político e estava profundamente vinculado à humanidade: “o fato de os

homens mais importantes da Grécia se considerarem sempre a serviço da comunidade é

índice da íntima conexão que com ela tem a vida espiritual criadora” (JAEGER, 2003,

118

p.17). A arte grega é a expressão do espírito da comunidade, cujo ideal é a estrita

subordinação do individual à totalidade.

A palavra e o som, o ritmo e a harmonia, na medida em que atuam pela palavra, pelo som ou por ambos, são as únicas forças formadoras da alma, pois o fator decisivo em toda a paidéia é a energia, mais importante ainda para a formação do espírito que para a aquisição das aptidões corporais no agon [jogos competitivos] (JAEGER, 2001, p.18).

Pela ótica platônica, a educação da criança deveria sempre iniciar pela formação da

alma, isto é, pela música, que incluía, além da melodia e do ritmo, principalmente a palavra

falada. A poesia e a música eram consideradas as bases da formação do espírito e

englobavam a educação religiosa e moral. A poesia possuía o status de maior grau na

cultura grega, estando nela incluída a música: “só esta vigência universal da poesia como

suma e compêndio de toda a cultura permite-nos compreender a crítica a que Platão a

submete [diferenciando uma literatura falsa de outra verdadeira], uma vez que esta

concepção fez da palavra do poeta uma norma” (JAEGER, 2003, p.772).

Para a cultura grega, a poesia e a música eram irmãs inseparáveis, a ponto de uma

única palavra grega abranger os dois conceitos: mousiké (µουσική).

A palavra µουσική tem uma amplitude muito maior que nossa “música”. Além de abranger o canto e a dança com acompanhamento musical, abrangia também todas as artes e habilidades presididas por Apolo e as Musas. Estas são chamadas artes “musicais”, para distingui-las das artes plásticas e mecânicas que não pertencem ao domínio das Musas (HUIZINGA, 2004, p.178).

A conceito deriva de uma forma adjetivada de musa que, na mitologia, era qualquer

uma das nove deusas irmãs que presidiam a determinadas artes e ciências.

Platão era convicto de que a força educadora das imagens poéticas e musicais era

insubstituível, não restringindo de forma alguma o caráter da formação do Homem grego.

“Não era bons especialistas, mas apenas bons cidadãos em geral que a antiga paidéia se

propunha formar” (JAEGER, 2003, p.784).

A tradição platônica presente na paideia grega reconhece a música sobre as outras

artes, definindo sua ação formadora inconsciente, anterior a uma educação filosófica

racional, garantindo uma capacidade de discernimento entre “(...) uma certeza infalível de

satisfação pelo belo, e de repugnância pelo feio, a qual a habilita mais tarde a saudar

119

alegremente, como algo que lhe é afim, o conhecimento consciente, quando ele se

apresenta” (PLATÃO, Livro III, República, 402 A, 2004, p.94).

A paideia foi referência inspiradora e modelo, de maneira ampla, para inúmeras

manifestações no Renascimento. A Camerata Fiorentina recorreu a numerosas fontes que,

certamente, não se concentravam exclusivamente na música.

120

121

Enlaces

Diante da mestra, sentindo a vibração sonora que o ar provoca, existo. Como professora, ela cuida e insiste.

Insistirá sempre.

Este trabalho identificou alguns dos modos pelos quais a música integra a vida, em

determinados tempos e lugares. Giulio Caccini, em seu fazer cotidiano como cortesão,

encontrava, a cada dia, as maneiras de engendrar em seu ofício a sua maior paixão, a

música, o canto.

Quais os sentidos de um debruçar-se sobre o canto antigo e infinitamente

transformado?

As obras clássicas de Giulio Caccini ainda ensinam a cantar. Uma música

historicamente orientada carece da sensibilidade da época remota, talvez mais do que da

decifração sistematizada de seus códigos. Parar, ouvir, sentir, são urgências bastante atuais,

que a música antiga desperta e ensina, pois suas belezas estão no encontro dos detalhes e

singularidades de uma sonoridade novamente buscada e reinventada.

Para que se deter nos pormenores de uma música quase esquecida?

O canto exige atenção e cuidado absoluto para um relaxamento muscular sutil, para

uma respiração consciente e controlada, hábitos raros. Esta condição essencial do ato de

cantar, talvez sugira como e quais afetos e paixões da alma devessem ser

convencionalmente movidos. A hipótese de uma pesquisa orgânica, acompanha a ideia de

que os acontecimentos não correm no tempo reto, são registrados sempre parcialmente, sob

o ponto de vista de quem o faz e dão-se aos olhos somente com persistência.

As Novas Músicas revelam a beleza da coesão entre as condições de produção das

técnicas musicais e o ambiente. Com o realce na sprezzatura e a monodia sobre um baixo

contínuo, Giulio Caccini realizou não somente uma prática inédita, mas percebeu quais

qualidades da vida na corte poderiam ser admitidas em música. O encontro do estudo de

canto pelas lições da música antiga, mostram que a técnica profundamente mesclada com

122

seu ambiente de execução, por não objetivar a potência da intensidade e da extensão vocal

como fim, ainda é capaz de instruir, mesmo em fases iniciais da educação da voz.

Como professor, Giulio Caccini foi um dos primeiros no domínio musical

renascentista a sugerir e tentar sistematizar formas de ensino diversas da imitação do

mestre, ditando regras de canto em publicações. Identificou uma gradação crescente nos

exercícios, aumentando o grau de complexidade das músicas, grafando exemplos

destacados, contextualizados em trechos musicais e posteriormente em exemplos de árias

completas.

O entendimento do cantar significa uma percepção e organização extensas, um

alinhamento entre o controle da respiração e uma consciência emocional fina. Guiar o fluxo

de ar através do próprio corpo e senti-lo soar é uma experiência musical que toca, pois,

como na dança ou no teatro, a matéria trabalhada é o si mesmo. A aprendizagem da

paciência, da dedicação do tempo, da suspensão e demora na minúcia, esta busca só é

testemunhada pelo mestre.

Diante da mestra, sei que posso. Ela me escuta. Um quadro atrás de mim professa. É de um brasileiro:

O compositor me disse que eu cantasse distraidamente Essa canção

Que eu cantasse como se o vento soprasse pela boca Vindo do pulmão

E que eu ficasse ao lado pra escutar o vento jogando as palavras Pelo ar

O compositor me disse que eu cantasse ligada no vento

Sem ligar Pras coisas que ele quis dizer

Que eu não pensasse em mim nem em você Que eu cantasse distraidamente como bate o coração

E que eu parasse aqui

Assim

(GIL, 1996, p.156)

123

No momento da aprendizagem do controle das sensações necessárias ao canto, a

história se funde, o tempo se dissipa, a experiência acontece, a arte se completa. Não há

garantia de que outros afetos sejam movidos, além daqueles do próprio cantor.

Recordo-me do impulso que me atirou na aventura da pesquisa sobre

Giulio Caccini e suas Novas Músicas.

Lembro somente da felicidade que sinto ao cantar.

O prazer despertado nesta procura traz de volta à tona a inutilidade do cantar.

124

125

Esta arte não tolera a mediocridade, e quanto mais refinamento por sua excelência nela está, com tanto mais fadiga e diligência devemos nós professores encontrá-lo com cada estudo e amor, amor este que me moveu (CACCINI, 1601).

126

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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APÊNDICE A:

PERSONALIDADES

Agazzari, Agostino (Siena, 1578-1640). Compositor e escritor, tendo ocupado os cargos de praefectus musicae em Roma e organista do Duomo em Siena. Destaca-se em sua obra o tratado sobre baixo contínuo Del Sonare sopra il basso de 1607.

Bardi, Giovanni de’ (Florença, 1534-1612). “Giovanni Bardi, florentino de uma antiga

família guelfa, à qual também pertencera Simone, marido da Beatriz de Dante, devia encarnar, na sociedade florentina do último quarto do quinhentismo, o tipo de cavalheiro de velha estampa, grande senhor orgulhoso, generoso e profundamente conservador. Dotado de vasta erudição, filólogo e matemático, embebido de filosofia platônica e de purismo dantesco, guardando grande predileção pela música, na qual (...) era compositor de alguma estima, tinha sempre em torno de si os mais célebres homens da cidade, eruditos em tal profissão, e convidando-os para sua casa formava quase uma agradável e contínua academia. Neste ambiente, longe do vício e de qualquer sorte de jogo, a juventude nobre de Florença tinha despertado, com grande proveito, pois se tratava ali não somente de música, mas também de conversas e ensinamentos de poesia, astrologia e de outras ciências, que tornavam tão belas conversações também úteis e recíprocas”. (PIRROTTA, Nino apud MULLER, 2006).

Bianciardi, Francesco (Casole d’Elsa, 1570-1607). Compositor italiano. Foi organista e

mestre de capela da Catedral de Siena. Sua obra mais conhecida é, além da Breve Regola Per Imparar A Sonare Il Basso Con Ogni Sorte D’Istrumento de 1607, a Missa Octo Vocum.

Boécio (Roma, c.480 - c.524). Principal mediador entre a cultura greco-latina e a música

medieval: [Boetius], Anicius Manlius Severinus, escritor e estadista romano. Escreveu sobre as disciplinas matemáticas (aritmética, música, geometria e astronomia), lógica, teologia e filosofia. Em De institutione musica considerou a música como uma força que impregnava todo o universo (musica mundana) e um princípio unificador tanto do corpo e alma do homem quanto das partes de seu corpo (musica humana); a música também seria inerente a certos instrumentos (musica instrumentalis). Boécio concebeu o Sistema Perfeito de teoria grega com sua teoria dos tetracordes, a doutrina pitagórica das consonâncias, a matemática para racionalizar as consonâncias musicais e o princípio da divisão monocórdia. Seu tratado tornou-se a obra de teoria musical mais difundida na Idade Média.

Caccini, Francesca (La Cecchina) (Florença, 1587-1641). Cantora e compositora, filha mais velha de Giulio Caccini. Foi a primeira mulher conhecida que compôs ópera e provavelmente a compositora mulher mais prolífica de seu tempo. Como filha, irmã,

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esposa e mãe de cantores, Francesca esteve imersa na cultura musical de seu tempo desde a infância. Além de ter recebido ampla instrução em canto, alaúde, harpa, instrumentos de teclado e composição, também foi educada em literatura, pois tornou-se conhecida por escrever poesia em italiano e latim.

Caccini, Settimia (La Flora) (Florença, 1591-1660). Cantora e compositora, filha mais

nova de Giulio Caccini. Educada em canto e composição pelo pai, foi uma exímia soprano de “reputação imortal”, atuando principalmente na corte florentina.

Cavalieri, Emilio de’ (Roma, 1550-1602). Compositor e também precursor da prática

italiana de recitar cantando. Destaca-se de sua produção para comemorações de corte a obra Rappresentazione di Anima e di Corpo de 1600. Trabalhou principalmente em Roma e Florença.

Chiabrera, Gabbriello (Savona, 1552-1638). Poeta e libretista cuja obra mais famosa, Il

rapimento di Cefalo de 1600, foi também musicada, dentre outros, por Giulio Caccini. Ao lado de Guarini e Rinuccini teve intensa participação no desenvolvimento da poesia cantada do melodrama italiano.

Corsi, Jacopo (Florença, 1561-1602). Mecenas da música e compositor. Responsável por

duas das primeiras grandes produções do melodrama italiano: Dafne de 1598, apresentada em sua própria casa e contendo pelo menos duas árias de sua autoria e Euridice de 1600, de Peri.

Dufay, Guillaume (c.1398-1474, Cambrai). Compositor francês reconhecido por seus

contemporâneos como o principal de sua época. Como componente do coro papal, compôs o famoso moteto Nuper rosarum flores para a consagração da cúpula da Catedral de Florença, de Brunelleschi em 1436. A maioria de seus motetos são composições imponentes, escritas em comemoração a um acontecimento político, social ou religioso. Destaca-se entre suas missas a Ave Regina coelorum, talvez sua última composição.

Ficino, Marsilio (Figline, 1433-1499, Florença). Humanista e filósofo florentino. Teve o

constante apoio e amizade de Cosimo e Lorenzo de’ Medici e foi o espírito guia da Accademia di Platone em Careggi, perto de Florença. Seu interesse em músico foi o de um dedicado neoplatonista. Vários de seus escritos perpassam as teorias neoplatônicas da magia e em tópicos musicais neopitagóricos como De triplici vita e Epistola de musica. Observações ocasionais, como as relações entre a tríade e a Santíssima Trindade sugerem que Ficino pensava a música nos termos de seu próprio tempo, mas sua principal preocupação era o caráter, o ethos das doutrinas musicais antigas.

Gaffurio, Franchino (Lodi, 1451-1522, Milão). Teórico e compositor italiano, cujas obras

Theorica musice de 1492, Pratica musice de 1496, De harmonia musicorom instrumentorum opus de 1518 se destacam, constituindo um conjunto de estudos musicais tanto teóricos, quanto práticos. Circulou entre os principais litterati, compositores e artistas italianos da Renascença, dentre os quais Leonardo da Vinci.

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Gagliano, Marco da (Florença, 1575-1642). Compositor italiano, fundador em 1607 da Accademia degli Elevati em Florença. Foi maestro di cappella da Catedral de Florença e da corte dos Medici. Dentre sua prolífica produção, destaca-se a obra Dafne de 1608 com o mesmo texto de Rinuccini, acompanhando o estilo ora em voga.

Galilei, Vincenzo (Santa Maria a Monte, c.1520-1591, Florença). Teórico e compositor, foi

um dos membros mais ativos e proeminentes da Camerata Fiorentina, pai do famoso astrônomo Galileu Galilei. Em seus textos publicados, especialmente o Dialogo della Musica Antica et della Moderna de 1581, propôs que, pela monodia, se retomasse a união entre poesia e música que existiu na Grécia antiga.

García, Manuel (Madri, 1805-1906, Londres). Barítono espanhol, filho do tenor e

compositor Manuel García del Popolo Vicente Rodríguez, tornou-se renomado por suas investigações sobre a fisiologia da voz, pela invenção do laringoscópio em 1854 e pela publicação de um importante método de canto Traité complet sur l’art du chant de 1847.

Guarini, Giovanni Battista (Ferrara, 1538-1612). Poeta italiano. Sua peça mais importante

foi Il Pastor Fido de 1598. Malvezzi, Cristoforo (Lucca, 1547-1599, Florença). Compositor italiano. Serviu à família

Medici em San Lorenzo como cônego a partir de 1562, em Santa Trinità como organista em 1565, maestro di cappella ao mesmo tempo da catedral e de San Giovanni Battista em 1573 e organista em San Giovanni em 1574. Foi professor de Peri. Escreveu música para intermedi florentinos, incluindo o famoso de 1589, bem como ricercares e madrigais instrumentais.

Mancini, Giambattista (1714-1800). Professor de canto e escritor do importante tratado

Pensieri e riflessioni pratiche sopra il canto figurato de 1774. Marenzio, Luca (Coccaglio, 1553-1599, Roma). Prolífico compositor que frequentou a

Camerata Fiorentina, participando com dois esplêndidos intermedi para La Pellegrina, espetáculo organizado para as núpcias do grão-duque Ferdinando e Cristina de Lorena em 1589. Produziu mais de 200 madrigais a 4, 5 ou 6 vozes (1580-1589, 8 livros), 115 Villanelle ed arie alla napoletana, motetos, uma missa a 8 vozes, 2 intermédios, entre outros.

Mei, Girolamo (Florença, 1519-1594, Roma). Humanista e historiador de música, um dos

mentores da Camerata Fiorentina, professor de Vincenzo Galilei. Seu pioneiro De modis musicis antiquorum (1566-1573), completo estudo da música da Grécia antiga em quatro volumes, foi uma contribuição decisiva no desenvolvimento da monodia e do dramma per musica seiscentista italiano.

Monteverdi, Claudio (Cremona, 1567-1643, Veneza). Prolífico compositor italiano. Ficou

conhecido como um expoente da moderna abordagem da harmonia e da expressão musical do texto. Em 1607 sua primeira ópera, Orfeo, foi produzida em Mântua, seguida de Arianna. Em 1613 foi nomeado maestro di cappella na catedral de San

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Marco em Veneza. Publicou dentre inúmeras obras oito livros de madrigais seculares entre 1587 e 1638.

Naldi, Antonio (Bardella) (? -1621, Florença). Alaudista e cantor italiano, inventor do

chitarrone. Seu virtuosismo no instrumento foi elogiado por Giulio Caccini em seu prefácio de Le Nuove Musiche de 1601. Relacionava-se com a corte dos Medici em Florença desde 1571 e em 1588 ocupava o cargo de zelador oficial dos instrumentos musicais da corte.

Palla, Scipione Del (?-1569). “Cantor, compositor, ator e talvez também poeta, ele nasceu

em Siena, mas passou muito de sua vida útil em Nápoles e depois em Florença, onde morreu à 20 de outubro de 1569. Já em 1545 se tem notícia dele, quando a comédia sienesa Gl'Ingannati foi executada no Palazzo Sanseverino em Nápoles e os papéis foram levados parte por cavalheiros napolitanos e parte por músicos profissionais, entre eles Leonardo dell’Arpa, Zoppino e Scipione del Palla. Durante pelo menos os últimos dez anos de sua vida, Palla morou em Florença. Já em 1559 ele é registrado como um cantor do Grão Duque da Toscana. Caccini não somente estudou com Scipione como também esteve trabalhando sob sua direção à partir de 1568, ambos a serviço de Cosimo I. As poucas composições de Palla que sobreviveram estão na coleção de árias editadas pelo compositor e organista napolitano Rocco Rodio e publicada em Nápoles por Gioseppe Cacchio em 1577” [MAYER BROWN, H. (The Geography of Florentine Monody In: Early Music, 1981, p.147-149) apud MULLER, 2006].

Praetorius, Michael (Kreuzburg an der Werra, 1571-1621, Wolfenbüttel). Compositor e

teórico alemão, filho de um luterano ortodoxo, foi, além de um dos mais versáteis, um dos mais prolíficos de sua época. Entre suas 21 publicações vocais sacras que restaram incluem-se mais de 1000 obras baseadas em hinos protestantes, muitas destas para coros múltiplos, além de música latina para o serviço luterano, motetos, salmos e danças instrumentais, o Terpsichore de 1612. Publicou ainda um importante tratado enciclopédico, o Syntagma musicum em 3 volumes de 1614-20, com informações detalhadas sobre instrumentos e práticas de execução.

Peri, Jacopo (Roma, 1561-1633, Florença). “(...) cantor, além de compositor, apelidado de

o Zazzerino [o Cabeleira], Jacopo nasce em Roma, transferindo-se rapidamente para Florença, onde, aluno de Malvezzi, foi de pronto muito reconhecido também como organista. Prestigiadíssimo pelos duques da Toscana – foi, de fato, cantor nos papéis dos Medici de 1588, principal diretor da música e dos músicos de corte em 1591 e finalmente camerlengo geral de Arte da Lana de 1618 – teve por toda a vida a responsabilidade principal de cada festa e entretenimento musical organizado na casa dos Medici. Foi sempre naquele ambiente florentino, objeto da animosidade pessoal de Caccini que, entre outro, querendo reivindicar para si a prioridade da invenção do estilo recitativo verdadeiro e próprio, declarou-se, no seu segundo prefácio [de 1614], o autor de Dafne” (TESTI, 1970, p.70).

Petrarca (Arezzo, 1304-1374, Arquà). Poeta cuja obra inspirou e influenciou inúmeros

compositores. Apesar de apaixonado por música, são poucos os poemas de sua autoria pertencentes à categoria poesia per musica. A importante retomada do interesse por sua

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obra no século XVI começa com a obra de Benedetto Gareth e a edição de Pietro Bembo do Canzoniere de 1501. Sua obra inspirou pelo menos duas gerações de poetas italianos, incluindo Sannazaro e Tasso, todos eles autores de textos para madrigalistas.

Rasi, Francesco (1574-1620). Poeta, compositor e tenor italiano. Tido como aluno de

Caccini, fez grande sucesso como cantor e executante de chitarrone. Após um período a serviço de Gesualdo, trabalhou a partir de 1598 na corte de Mântua, onde é provável que tenha criado o papel-título no Orfeu de Monteverdi.

Rinuccini, Ottavio (Florença, 1563-1621). Poeta e libretista, foi o autor de quase todos os

textos de La pellegrina de 1589, também uma das obras fundadoras do melodrama italiano, permanecendo como principal libretista dos compositores vindouros, Peri, Caccini e Monteverdi.

Sannazaro, Iacobo (1455-1530). Poeta italiano. Schein, Johann Hermann (1586-1630). Compositor e poeta alemão. Dedicado

basicamente à música vocal, foi significativo como um dos primeiros compositores a enxertar o estilo italiano moderno nos elementos tradicionais da música eclesiástica luterana. Sua principal obra instrumental é o Banchetto musicale de 1617.

Susato, Tylman (Antuérpia, c.1500-1561?-4). Editor de música e compositor, com

atividade na Antuérpia. Instrumentista municipal até 1549 e compositor de chansons, canções flamengas, motetos e música para dança, trabalhou como editor musical de 1543 a 1561, fundando a primeira importante editora de obras musicais nos Países Baixos.

Strozzi, Piero (Florença, 1550-1610). Compositor amador e nobre florentino.

Desempenhou importante papel no fomento da nova música nos finais dos quinhentos, como membro da Camerata e participante ativo nas discussões da reforma da música do período.

Striggio, Alessandro (Mântua, c.1540-1592). Compositor italiano. Nobre de Mântua e

principal compositor na corte dos Medici em Florença a partir dos anos 1560, era o encarregado da música e compôs intermedi para ocasiões solenes, além de músicas cênicas, música sacra e madrigais. Foi também um famoso executante de lirone e viola.

Tasso, Torquato (Sorrento, 1544-1595, Roma). Poeta italiano. Ligado à corte dos Este em

Ferrara, produziu uma poesia de notável perfeição técnica, que atraiu incontáveis madrigalistas e monodistas. Suas principais obras foram a pastoral Aminta de 1573 e a famosa epopéia Gerusalemme liberata de 1581, fonte básica para compositores operísticos no século XVII e posteriores.

Tosi, Píer Francesco (Cesena, 1653-1732, Faenza). Cantor castratto e teórico italiano.

Ensinou canto em Londres e foi também diplomata. Escritor do importante tratado sobre canto Opinioni de’ cantori antichi e moderni, o sieno osservazione sopra il canto figurato de 1723.

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Vaccai, Nicola (Tolentino, 1790-1848, Pesaro). Compositor e professor italiano. Sua

principal obra, para além de suas 17 óperas, foi o Metodo pratico di canto italiano per camera de 1832, excelente manual introdutório às práticas de interpretação do século XIX.

Viadana, Lodovico (Viadana, 1560-1627, Gualtieri). Compositor italiano, também frade

minorita. Foi maestro di capella das catedrais de Roma, Concórdia e Fano. Professor e compositor prolífico principalmente de obras vocais sacras, além de canzonetas e obras para conjunto instrumental, destacou-se na época por sua escrita expressiva. Tornou-se conhecido por seus Cento Concerti Eclesiastici de 1602, a mais antiga publicação vocal sacra com uma parte para baixo contínuo.

Zarlino, Gioseffo (1517-1590). Teórico e compositor italiano. Estudou com os

franciscanos e ordenou-se padre. Na Catedral de Vhioggia foi cantor em 1536 e organista de 1539 a 1540, antes de seguir para Veneza em 1541, onde estudou com Willaert. A partir de 1565 foi maestro di cappella de San Marcos. Publicou Le Istitutione harmoniche em 1558, um marco na história da teoria musical, que tinha como objetivo unir teorias especulativas, baseadas em fontes antigas, a práticas modernas de composição.

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APÊNDICE B:

GLOSSÁRIO

Ária (ou, para Giulio Caccini, cançoneta) – Do italiano aria (ar), termo que designa uma canção independente, ou que é parte de uma obra maior. A palavra italiana pode ser entendida como “estilo” ou “maneira”, e no século XVI aria designava composições simples sobre poesia ligeira. As árias como melodias, ou esquemas para canções, foram impressas durante a maior parte do século XVI e boa parte do século XVII, em publicações instrumentais e vocais (SADIE, 2001, p.887).

Baixo contínuo – “[...] Um sistema adotado para a notação da harmonia do acompanhamento, que consistia em cifras e outros sinais postos sobre a parte do baixo, cuja realização, portanto, cabia ao executor. Teve origem no século XVII, do costume de nossos [italianos] organistas, que usavam escrever, ao sustento da parte vocal mais baixa das composições polifônicas, uma parte para o órgão (basso per l’organo). Tal baixo, dito ainda continuo – pela primeira vez, ao que consta, por Viadana – encerra, pois, uma função verdadeira e propriamente harmônica, nas composições de Peri, de Caccini e de dei’ Cavallieri, os quais sem dúvida foram os primeiros compositores a sobrescrever os números para indicar a harmonia desejada” (TESTI, 1970, p.76).

Chitarrone – Instrumento semelhante a tiorba, com um segundo cravelhal onde se prendem as cordas mais graves, como uma espécie de “alaúde de grande formato com cordas graves simpáticas (que ressoavam juntamente com as principais, reforçando-lhes a sonoridade)” (COELHO, 2000, p.390).

Contraponto – Organização vertical de um conjunto complexo de ideias melódicas em linhas horizontais (CANDÉ, 2001, p.179).

Diminuição ou glosa – Termo de origem espanhola usado no século XVI, como no Trattado de glosas, de Diego Ortiz em 1553, como equivalente musical da glosa poética, para variações, habitualmente sobre um tema religioso. Na obra de Giulio Caccini, equivale a ornamentação.

Égloga – De acordo com Muller (2006, p. 215), égloga é uma poesia pastoril, em geral dialogada.

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Madrigal – No que tange ao estilo italiano, “aplicada a uma forma musical, a palavra parece ter sido esquecida, até ressurgir em uma carta de César de Gonzaga a Isabel d’Este em 1510 (madrigaletto). Em 1533, o editor Dorico publica em Roma o primeiro livro de madrigais, segido por vários outros até o início do século XVII. [...] À música para todos os primeiros madrigalistas opõem uma musica reservata, dirigida aos iniciados. Cumpre ressaltar que o madrigal, como a canção francesa, não é música coral destinada às apresentações públicas, mas uma música “de câmara”, concebida para grupos pequenos de cantores e instrumentistas reunidos em redor de uma mesa. [...] A união da música ao texto e a liberdade da forma são suas características essenciais, assim como a continuidade musical. A vã tentativa de corresponder à poesia inspira aos músicos os mais aberrantes “madrigalismos”, figuras sonoras ilusórias que se referm sumariamente a símbolos ou a aparências. Não lhes basta imitar musicalmente uma realidade sonora – riacho, pássaros, caçada ou guerra. É preciso, além disso, encontrar equivalências musicais para certos conceitos. Tudo o que sobe ou desce suscita movimentos melódicos ascendentes ou descendentes, as palavras céu ou morte são acompanhadas de harmonias transparentes ou dissonantes, certas palavras-chave são sublinhadas por melismas e os compositores se divertem colocando palavras como sol, si (sim), mi fa (me faz) em notas homônimas. A tradução musical do sentimento poético faz intervir, por vezes, o “cromatismo”, como se dizia; as notas alteradas acarretam modulações, mudanças de “cor” correspondentes à mudança de sentimento. É o sentido harmônico moderno que desperta aqui, assinalando o fim de certo “classicismo” da polifonia” (CANDÉ, 2001, p.362-364).

Modo musical – Termo da teoria musical ocidental com três aplicações principais, todas relacionadas a acepções da palavra latina modus (“medida”, “padrão”, “maneira”). A primeira diz respeito à relação entre valores de notas na notação antiga, a segunda a intervalos na antiga teoria medieval e a terceira ao tipo de escala e tipo de melodia. Em seu sentido mais comum, ‘modo’ significa a escala ou a seleção de notas usada como base para uma composição; essa seleção tem implicações a respeito de onde as melodias deverão terminar, das formas que podem assumir e (segundo a teoria mais antiga) do caráter expressivo de uma peça (SADIE, 2001, p.775).

Monodia – “A monodia nasce e se desenvolve no seio de uma cultura humanista, certa de que a arte pode se pôr enquanto formadora da individualidade, do espírito, do caráter (...). Para os gregos, monodia era o canto de uma única voz, em contraste ao canto de um grupo coral. Mas desde o início, a este significado mais específico ou técnico se somou a consciência de um caráter expressivo qualitativamente distinto, uma vez que no teatro grego a monodia se referia ao monólogo da tragédia e consistia de uma recitação dramática que era cantada por um só ator. Então, os gregos entenderam que, quando o canto fosse executado apenas por um cantor, e não por um coro, fazia-se da expressão dos sentimentos algo mais intenso, ou mais imediatamente comunicável. No ambiente florentino quinhentista, “herdeiro maior” da tradição da arte dos antigos, os estudos sobre a música grega, realizados fundamentalmente pelo filósofo humanista Girolamo Mei, se consolidaram como base teórica que sustentou os trabalhos artísticos da Camerata Bardi, da qual Caccini foi membro” (MULLER, 2006, p.50, 20).

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Moteto – “Composição polifônica, de caráter religioso ou profano, a várias vozes (a capela ou com acompanhamento instrumental) e cada uma com ritmo e texto próprios”. Uma das formas mais importantes de música polifônica, de origem francesa no século XIII (“moteto” deriva do francês mot, “palavra”) (FERREIRA, 1999).

Polifonia – Termo derivado do grego, significando “vozes múltiplas”, usado para a música em que duas ou mais linhas melódicas soam simultaneamente. A expressão “era polifônica” é geralmente aplicada ao final da Idade Média e principalmente ao Renascimento. O tipo de polifonia usado na época barroca, por Bach e Haendel, é geralmente designado pelo termo “contraponto” (SADIE, 2001, p.74).

Prima prattica / seconda prattica – Diferenciação entre os dois estilos de composição de Monteverdi: “prima prattica: estilo polifônico tradicional, o de Luca Marenzio – Missas, Livros I a IV dos madrigais e uma parte do livro V; seconda prattica (citada pela primeira vez em 1605): subordinação da música ao texto poético necessitando da criação de um novo estilo melódico (stile rappresentativo) de acordo com os princípios dos humanistas florentinos, emprego do baixo contínuo, riqueza da instrumentação nas obras para o teatro ou para a igreja – Livros V a IX dos madrigais, Orfeo, Vespro della Beata Vergine, Selva Morale (CANDÉ, 2001, p.372).

Stile recitativo e Stile rappresentativo – Dois dos muitos termos aplicados no início do século XVII aos estilos afetuosos da Nova Música. Giovanni Battista Doni em seu Trattato della musica scenica de 1633, assim os define: “Por stile recitativo, pois, se compreende hoje o tipo de melodia que se pode recitar corretamente e com garbo, isto é, o canto solo, de tal modo que se compreendam as palavras, ou que se faça no palco ou nas Igrejas e oratórios em forma de diálogos, ou nas câmaras privadas, ou em outro lugar; e finalmente com este nome entende-se todo tipo de música, que se cante solo ao som de qualquer instrumento, com pouco alongamento das notas, e de tal forma que se aproxime da fala comum, mas, no entanto afetuosa. Mas por rappresentativo devemos entender um tipo de melodia que é verdadeiramente correspondente ao palco, isto é, para cada tipo de ação dramática que se deseja representar (os gregos dizem µιµεϊδαι, ou seja, imitar) com o canto, que é quase igual ao stile recitativo atual, mas não completamente, porque algumas coisas deveriam ser removidas para levá-lo à perfeição... Portanto agrada-me mais chamar este estilo apropriado para o teatro de rappresentativo ou scenico, ao invés de recitativo, porque os atores em grego chamados de υποκριταί e em latim de histriones não recitavam, mas representavam, imitando as ações e costumes humanos, e também porque como já demonstrei em meu Discorsi musicali, este estilo seria muito apropriado para a recitação em público ao som de algum instrumento, conforme a prática antiga, de algum poema heróico...” (SCARINCI, 2006, p.61-62).

Temperamento igual – Grosso modo, temperamento musical foi a maneira ocidental de lidar com a padronização dos sons, das escalas e da harmonia. Pelas propriedades físicas, analogamente ao modelo de explicação da luz dividida em um espectro de freqüências diversas que resultam em cores distintas, o som também é composto por

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uma série de freqüências simultâneas, em diferentes intensidades e combinações. A escala musical é uma construção histórica, feita de escolhas e ajustes de frequências entre as notas visando a um “acordo” (acorde) entre elas. “Os intervalos harmônicos representam, na teoria das proporções, uma ordem criada por Deus; todas as consonâncias correspondem a índices numéricos simples (2:3 = a quinta; 3:4 = a quarta; 4:5 = a terça maior etc.) Aquilo que se aproxima mais da unidade é sentido como mais agradável, mais perfeito do que o que está longe, onde dominam proporções ruins, inclusive o caos. A relação 4:5:6 era tida como perfeita: ela é construída sobre a nota fundamental (dó), seus números são consecutivos e produzem três sons harmonicamente consoantes e diferentes (do-mi-sol), um acorde perfeito maior: harmonia perfeita e uma consonância das mais nobres (trias musica). Este acorde era o símbolo musical da Santíssima Trindade. (A afinação devia seguir precisamente o quarto, quinto e sexto harmônicos!). [...] Desta maneira, todas as harmonias eram julgadas “moralmente”, podendo-se compreender porque as peças necessariamente terminavam com um acorde perfeito maior: não se poderia finalizar uma obra no caos (uma regra cujas ocasionais infrações servem para denotar uma intenção particular do autor)” (HARNONCOURT, 1988, p.79). Rousseau, em seu tempo, também teorizou sobre o conceito: “Um som traz consigo todos os seus sons harmônicos concomitantes, nas relações de força e de intervalos que devem ter entre si para conseguir a mais perfeita harmonia desse mesmo som. Acrescentai ainda uma terça ou uma quinta ou alguma outra consonância; não a estareis acrescentando, estareis redobrando-a; conservais a relação de intervalo mas alterais a de força. Ao reforçar uma consonância e não as outras, estareis rompendo a proporção; ao desejar fazer melhor do que a natureza, fazeis pior. Vossos ouvidos e vosso gosto são corrompidos por uma arte mal compreendida. Naturalmente, não há outra harmonia além do uníssono” (2003, p.156).

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ANEXO 1 – EDIÇÕES FAC-SIMILARES DO MATERIAL UTILIZADO NESTA PESQUISA

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ANEXO 2 – AMOSTRAS MUSICAIS - CDS 1 E 2

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VERSÃO A (CACCINI, 1990):

-Jordi Saval i Bernadet (1941-). Músico e compositor catalão especializado em viola

da gamba.

-Montserrat Figueras (1948-). Soprano espanhola.

-Hopkinson Smith. Músico e musicólogo americano especializado em alaúde e

guitarra barroca.

-Robert Clancy. Músico especializado em guitarra barroca e chitarrone.

-Xenia Schindler. Harpista.

VERSÃO B (HORVAT, 2003):

-Marco Horvat. Cantor e instrumentista francês especializado em tiorba, guitarra

barroca, lirone.

-Olga Pitarch. Soprano.

-Eric Bellocq. Alaudista francês, também especializado em tiorba e guitarra

renascentista.

-Angélique Mauillon. Harpista.

-Imke David. Executante de lirone.

VERSÃO C (CACCINI E PICCININI, 2005):

Johannette Zomer. Soprano.

Fred Jacobs. Tiorbista.

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Faixa CD 1 – As Novas Músicas (1601) Tempo Versão

01 Movetevi à pietà 2’19’’ A

02 Queste lagrim’ amare 4’14’’ A

03 Dolcissimo sospiro 5’38’’ A

04 Dolcissimo sospiro 2’07’’ C

05 Amor, io parto 3’11’’ A

06 Amor, io parto 2’51’’ C

07 Vedrò’l mio sol 3’30’’ A

08 Amarilli mia bella 2’13’’ A

09 Amarilli mia bella 2’44’’ C

10 Fortunato augellino 3’17’’ C

11 Filli, mirando il cielo 2’53’’ C

12 Muove si dolce 2’08’’ B

13 Ard’il mio petto misero 2’36’’ B

14 Chi mi confort’haime? 6’02 B

15 Fere selvaggie 2’04’’ C

16 Udite, udite, amanti 1’18’’ C

17 Belle rose porporine 2’29’’ A

Novas Músicas e Nova Maneira de Escrevê-las (1614)

18 A quei sospiri ardenti 2’55’ B

19 A quei sospiri ardenti 3’04’’ C

20 Alme luci beate 3’29’’ A

Faixa CD 2 – Novas Músicas e Nova Maneira de Escrevê-las

(1614) Tempo Versão

01 Vaga su spin’ascosa 2’43’’ B

02 Vaga su spin’ascosa 3’13’’ C

03 Tutto’l di piango 6’48’’ A

04 Tutto’l di piango 5’06’’ B

05 Tutto’l dí piango 6’30’’ C

06 Torna, deh torna 3’47’’ A

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07 Torna, deh torna 3’04’’ B

08 Mentre che fra doglie e pene 2’32’’ B

09 Mentre che fra doglie e pene 2’00’’ C

10 Non ha’l ciel 2’31’’ A

11 Non ha’l ciel cotanti lumi 2’06’’ C

12 Amor ch’atendi 2’17’’ A

13 Tu ch’ai le penne 3’05’’ A

14 Tu ch’ai le penne, Amore 4’30’’ B

15 Al fonte, al prato 1’22’’ C

16 Aur’amorosa 2’53’’ C

17 Dalla porta d’oriente 1’52’’ A

18 Dalla porta d’oriente 4’28’’ B

19 Dalla porta d’oriente 3’28’’ C

20 Con le luci d’um bel ciglio 1’56’’ A

GIULIO CACCINI E SUAS NOVAS MÚSICAS - UM ELOGIO AO CANTO - de

Conrado Augusto Gandara Federici é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Vedada a criação de obras derivadas 3.0 Brasil.

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