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 Quaestio Iuris vol.08, nº. 01, Rio de Janeiro, 2015. pp. 81-105 DOI: http://dx.doi.org/10.12957/rqi.2015.15352  __________________________________ __________vol.08, nº. 01, Rio de Janeiro, 2015. pp. 81-105 81  A L G U M A S C O N SIDE R A Ç Õ ES S O B R E A I N F L U Ê NCIA DO PENSAMENTO DE HUGO GROTIUS NO DIREITO INTERNACIONAL CONTEMPORÂNEO Leonam Baesso da Silva Liziero 1  Resumo O artigo apresentado descreve algumas das influencias do pensamento racionalista do  jurista holandês de Hugo Grotius (1583-1645) no direito internacional contemporâneo, que ainda permanecem, mesmo após a entrada em vigor do sistema Nações Unidas, em substituição ao sistema clássico de direito internacional, o de Westphalia. Para isso, são apresentadas algumas considerações iniciais sobre o que foi a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), estopim de uma tensão política entre católicos e protestantes provinda do século anterior, e seu resultado, a Paz de Westphalia, um divisor de águas na história do direito internacional. Posteriormente se falará sobre o pensamento racionalista de Grotius, sua inovação ao pensar um direito natural imutável independente do direito divino e como pensou a questão da justiça na guerra. Por fim, será discutido como algumas ideias jusracionalistas de Grotius podem ser encontradas na configuração do direito internacional contemporâneo, com ênfase na característica de (quase) imutabilidade do jus cogens e no s istema de segurança coletiva da Organização das Nações Unidas. Palavras-chave:  Hugo Grotius; Direito Internaiconal; Jusracionalismo. INTRODUÇÃO Quando Grotius escreveu suas obras, os vestígios do poder supranacional que tanto marcaram a Europa na Idade Média tinham quase que desaparecido. Exemplos claros disso são a Igreja Católica Apostólica Romana em relação aos soberanos de grande autoridade medievais e o grande potentado do Sacro Império Romano Germânico. 1  Doutorando em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Professor da Universidade Candido Mendes-UCAM. E-mail: [email protected]

CONSIDERAÇÕES SOBRE A INFLUÊNCIA DO PENSAMENTO DE HUGO GROTIUS NO DIREITO INTERNACIONAL CONTEMPORÂNEO

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A INFLUÊNCIA DO PENSAMENTO DE HUGO GROTIUS NO DIREITO INTERNACIONAL CONTEMPORÂNEO

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  • Quaestio Iuris vol.08, n. 01, Rio de Janeiro, 2015. pp. 81-105 DOI: http://dx.doi.org/10.12957/rqi.2015.15352

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    ALGUMAS CONSIDERAES SOBRE A INFLUNCIA DO

    PENSAMENTO DE HUGO GROTIUS NO DIREITO INTERNACIONAL

    CONTEMPORNEO

    Leonam Baesso da Silva Liziero1

    Resumo O artigo apresentado descreve algumas das influencias do pensamento racionalista do jurista holands de Hugo Grotius (1583-1645) no direito internacional contemporneo, que ainda permanecem, mesmo aps a entrada em vigor do sistema Naes Unidas, em substituio ao sistema clssico de direito internacional, o de Westphalia. Para isso, so apresentadas algumas consideraes iniciais sobre o que foi a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), estopim de uma tenso poltica entre catlicos e protestantes provinda do sculo anterior, e seu resultado, a Paz de Westphalia, um divisor de guas na histria do direito internacional. Posteriormente se falar sobre o pensamento racionalista de Grotius, sua inovao ao pensar um direito natural imutvel independente do direito divino e como pensou a questo da justia na guerra. Por fim, ser discutido como algumas ideias jusracionalistas de Grotius podem ser encontradas na configurao do direito internacional contemporneo, com nfase na caracterstica de (quase) imutabilidade do jus cogens e no sistema de segurana coletiva da Organizao das Naes Unidas. Palavras-chave: Hugo Grotius; Direito Internaiconal; Jusracionalismo.

    INTRODUO

    Quando Grotius escreveu suas obras, os vestgios do poder supranacional que

    tanto marcaram a Europa na Idade Mdia tinham quase que desaparecido. Exemplos

    claros disso so a Igreja Catlica Apostlica Romana em relao aos soberanos de

    grande autoridade medievais e o grande potentado do Sacro Imprio Romano

    Germnico.

    1 Doutorando em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Professor da Universidade Candido Mendes-UCAM. E-mail: [email protected]

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    O continente estava em processo de concluso de um longo perodo de guerras,

    que levaram ao surgimento de pequenos Estados. Esta sucesso de mudanas conduziu

    depois de algum tempo constituio dos grandes Estados do continente europeu, que

    teve incio com o juramento de vassalagem de Afonso Henrique ao Vaticano em 1139,

    tornando-se assim o rei do Estado de Portugal e que terminou com as revolues

    de unificao da Itlia e da Alemanha no sculo XIX. Estas alteraes das relaes

    internas e externas do sistema poltico da Europa provocavam descontentamento nos

    prprios pases, j que era interessante para eles realizar um equilbrio poltico

    regional.ssim, vemos que Hugo Grotius viveu em um perodo em que as guerras eram

    uma constante, um meio comum de resolver divergncias polticas; as grandes

    potncias da poca (Frana, Espanha, Inglaterra, Sucia e o Sacro Imprio Romano)

    estavam sempre de prontido para dar incio um conflito, fosse por um motivo

    realmente grave ou por meras futilidades polticas.

    Hugo Grotius2 nasceu em Delft, no dia 10 e abril de 1583 e faleceu em Rostock,

    dia 28 de agosto de 1645. Doutorou-se em Direito na Universidade de Orleans. Em

    1599, comeou a exercer funo de jurista em Haia. Cinco anos depois, tornou-se

    conselheiro jurdico do prncipe holands Maurcio de Nassau. Em 1613, foi nomeado

    governador de Rotterdam, e em 1617 tornou-se membro do Comit de Conselheiros do

    Partido Arminiano. Em Agosto os Estados Gerais iniciaram um conflito com a Holanda,

    futuramente calvinista. Em 1618, aps um inesperado golpe de Estado calvinista, foi

    preso com van Oldenbarnevelt e Rombout Hoogerbeets (pensionrio de Leyden) em

    nome dos novos Estados Gerais. Por ter dado apoio ao parlamento holands e van

    Oldenbarnevelt na luta pelo poder contra Maurcio de Nassau, acabou preso. Em 1619,

    foi sentenciado priso perptua trancafiado no castelo de Loevestein acusado de

    traio. No tendo outra sada, auxiliado pela esposa, escapuliu do confinamento dentro

    de uma arca que continha alguns livros, dali seguiu foragido para Amsterdam e

    em seguida, Paris. Em 1625, publicou O Direito da Guerra e da Paz. Serviu Coroa Sueca

    como embaixador.

    A GUERRA DOS TRINTA ANOS E O DIREITO DA GUERRA E DA PAZ

    2 Para informaes sobre a vida de Grotius, conferir KINGSBURY, Benedict; ROBERTS, Adam.

    Introduction: Grotian Thougth in International Relations. In: BULL, Hedley; KINGSBURY, Benedict; ROBERTS, Adam. Hugo Grotius and International Relations. Clarendon Paperbacks, 1992, pp.1-64.

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    A reforma protestante, iniciada com Lutero, foi contida em 1555 pela Paz de

    Augsburg. Este tratado determinou as zonas de influencia catlicas e luteranas de

    acordo com a religio do governante local. No era uma soluo em longo prazo, mas

    durante pelo menos cinquenta anos prevaleceu como lei vlida. Interessados no

    controle do mar Bltico, suecos e dinamarqueses provocaram novas tenses,

    encorajando assim os protestantes alemes. Enquanto isso, os Habsburgos

    procuravam se infiltrar na Frana, mas o rei francs, Henrique IV, retaliando, apoiou os

    protestantes das outras naes.

    A Espanha, querendo retomar a regio da Holanda, financiou a represso aos

    protestantes. Assim, com a Defenestrao de Praga, A Europa explodiu no conflito

    brutal em 1618. O ano de 1618 foi como muitos outros nestas difceis dcadas de

    neutralidade armada que ocorreram de tempos em tempos na histria da Europa.

    Distrbios polticos explodiram intermitentemente no clima tenso com medo de

    novos violentos conflitos. Diplomatas estavam receosos, enfrentando a gravidade de

    cada nova manifestao violenta e repentina de ruptura de equilbrio, com polticas

    precipitadas. Enquanto estes negociadores dos Estados encaravam estas crises, quarenta

    milhes de camponeses inseridos numa estrutura confusa da esttica civilizao viviam

    em meio a campos de batalha.

    A Guerra dos Trinta anos foi sem sombra de dvida uma real catstrofe para

    todo o continente europeu. Catstrofe causada sim, alm das contas. Homens da

    Europa geraram esta calamidade para eles prprios. Conhecida como um conflito

    armado entre catlicos e protestantes, se originou graas ambio dos Habsburgos em

    obter o controle poltico em todo territrio germnico, seno todo europeu. Acabou por

    fixar a diviso religiosa da Europa at os tempos atuais. Nas palavras de C.V.

    Wedgwood, esta guerra foi moralmente corrupta, economicamente destrutiva. Uma

    degradao para a sociedade3

    Era claro no conflito a diviso de dois polos distintos, porm modificaes

    aconteceram nas alianas internacionais no centro da Europa em razo de antigas

    rivalidades entre os pases, como a Holanda que queria se libertar da Espanha, que

    por sua vez tinha histrico de lides com a Frana. Os franceses, como de se esperar,

    3 WEDGWOOD. The Thirty Years War. New York: New York Review Book, 2005, p. 78

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    por ambicionarem a supremacia poltica do continente, eram rivais dos austracos.

    Tambm j existiam alguns conflitos internos entre os principados catlicos e luteranos

    do Sacro Imprio.

    Eram os polos do conflito: (a) Os catlicos: Eram comandados pelos Habsburgos.

    A famlia Habsburgos era a qual pertencia Fernando II, rei da Hungria, ustria e Estria,

    eleito imperador do Sacro Imprio Romano Germnico em 1619, posteriormente

    sucedido por seu filho, Fernando III. Formavam uma aliana com as naes catlicas da

    Germnia e tinham parentesco com o rei espanhol Felipe III (sucedido por Felipe IV).

    Alm de serem da mesma dinastia, os soberanos do Sacro Imprio e a Espanha eram

    fervorosamente catlicos e recebiam o apoio do papa. Por alguns perodos, este bloco

    catlico foi apoiado por luteranos da Saxnia e calvinistas de Brandeburgo. O objetivo

    desta aliana catlica era abolir a crena protestante do solo europeu. (b) Os

    protestantes: A aliana protestante era constituda de diversas regies da Germnia,

    como a Bomia, Brandeburgo, Saxnia, o Palatinado do rei Frederico V (que em 1620,

    aps a derrota para Fernando II, se refugiou na Holanda); a Dinamarca; a Sucia do rei

    Gustavo Adolfo, mais tarde sucedido por Cristina; a Inglaterra (que no teve

    participao significativa no conflito), a Holanda, que era governada pela casa de

    Nassau; e a Frana, pas catlico que por interesse poltico e econmico apoiou os

    protestantes e entrou definitivamente na guerra entre 1634 e 1635. Este bloco tinha o

    objetivo de lutar pelos direitos dos luteranos e calvinistas, para que fosse reconhecida a

    liberdade religiosa (a Frana tinha como fim alcanar o poder supremo do

    continente enfraquecendo seus dois grandes rivais: a Espanha e o Sacro Imprio).

    Alm desta diviso em polos, cada um dos beligerantes envolvidos buscavam

    seus prprios interesses privados e havia at mesmo conflitos entre integrantes do

    mesmo lado como a Sucia e Dinamarca.

    Um dos principais traos que caracterizam a obra de Grotius foi a tentativa de

    levar o aspecto internacional a um equilbrio aonde no haveria conflitos, resgatando a

    paz e organizando regras de condutas a serem seguidas pelos Estados no

    relacionamento entre eles. Pode-se, ao realizar a leitura de O Direito da Guerra e da

    Paz, encontrar alguns objetivos aspirados pelo jurista holands: a dessacralizao do

    princpio da guerra, assim como sua condenao. A guerra s seria ainda admitida

    caso fossem respeitados determinados limites; a valorizao dos Tratados; a instituio

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    de um ordenamento e engrandecer uma tcnica essencialmente jurdica entre os

    Estados, o Jus Gentium; a busca de meios para, nas situaes em que fosse necessrio,

    manter ou reestabelecer a paz; a limitao das guerras s partes diretamente

    envolvidas, gerando assim aos outros pases no envolvidos uma condio de

    neutralidade e; a elaborao de uma teoria que favorecesse o desenvolvimento

    progressivo da sociedade internacional como uma entidade constituda por Estados

    soberanos.

    Aps a terrvel calamidade que envolveu a Europa por trinta anos em choque

    religioso, os pases finalmente decidiram pela paz. Assim como muitas guerras que

    terminam com um tratado de cessao de hostilidades, a Guerra dos Trinta Anos se

    resolveu com um deles: A Paz de Westphalia de 1648. Um grande marco para o Direito.

    A instituio do Jus Gentium, do princpio da territorialidade e enfim, a concepo do

    Estado moderno.

    Um ente soberano que governa uma ordem jurdica prpria em um espao

    terrestre, martimo e areo com fronteiras admitidas pelo Direito Internacional, para

    um povo que vive neste determinado espao.

    A partir de ento, o relacionamento entre Estados seria regido por normas

    jurdicas criadas entre eles. A constituio de um Direito comum a todos os povos, que

    seria formulado pelos Estados e teriam eles prprios como destinatrios de regras a

    serem cumpridas.

    A PAZ DE WESTPHALIA

    A Paz de Westphalia consagrou o princpio hujus regio, ejus religio. Em sua

    literal traduo: na regio dele, a religio dele.

    Em uma profunda anlise do que dita o princpio, significa que em um

    determinado territrio, sob a autoridade de um governante, deve imperar uma nica

    ordem jurdica definida por ele. Deste modo, vemos que o sentido de religio muito

    mais voltado para a imposio de um ordenamento jurdico laico e tcnico do que

    tornar obrigatrio a religio escolhida por aquele que governa o Estado.

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    Grotius, utilizando os ensinamentos de Tito Lvio, nos faz conhecer que os

    tratados so aqueles que se fazem por ordem do poder soberano e nos quais o

    prprio povo fica exposto ira divina se faltou com sua palavra.4

    Vemos assim que esta frase de Grotius pode sintetizar quilo que serviu de base

    para a aplicao hujus regio, ejus religio no Tratado de Paz de Westphalia. Se o Estado

    descumprisse aquilo a que se obrigou com o tratado, sofreria uma sano superior ao

    mbito nacional. Podemos perceber que neste sentido, ira divina, a punio ao

    Estado que deixou de cumprir a obrigao (seja um dar, fazer ou no fazer) realizada

    pelos outros Estados signatrios.

    Desta forma, apoiado em uma base contratual, Grotius formulou uma teoria em

    que os Estados deviam ser signatrios de um pacto intergovernamental que os obrigasse

    e que imperasse entre eles uma relao de confiana. Para atender ao que o tratado

    estabelecesse, os Estados precisariam sacrificar um pouco da sua soberania em prol da

    norma superior (norma do direito das gentes)

    Para que a Paz de Westphalia fosse realizada, foram escolhidas duas cidades

    germnicas declaradas como zonas neutras em acordo pelos beligerantes: as cidades de

    Osnabrck e Mnster. Nos encontros de negociao, so reunidos, segundo

    informaes da poca, representantes de quase 200 pases, entre eles, grandes

    potncias, ducados, condados e principados. Dos grandes Estados, no aparecem

    para serem partidrios a Inglaterra, o Imprio Otomano e a Rssia.

    Os catlicos se renem em Mnster. Os protestantes, em Osnarbrck. Ao

    final das negociaes, a Frana, dirigida por Mezarino, consegue o domnio sobre os

    territrios da Alscia, Philippsburg e Breisach., alm de manter o que tinha conquistado

    da Espanha na guerra: Flanders, Roussilon e Artois. Contudo, o principal objetivo da

    Frana alcanado: o enfraquecimento da Dinastia Habsburgo. A Sucia, grande

    vencedora da Guerra dos Trinta Anos junto com Frana e Holanda, consegue terras no

    norte da Alemanha, como por exemplo, a Pomernia. A Holanda, aps anos tentando

    se libertar da Espanha, consegue enfim sua independncia. criada a Confederao da

    Sua.

    4 3GROTIUS, Hugo. O Direito da Guerra e da Paz. Iju: Uniju, 2007,p 650.

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    As primeiras sentenas do Tratado de Westphalia afirmam que a paz deve ser

    crist, universal, perptua e que ela seja uma amizade verdadeira e sincera entre

    todas as partes.5 Deste modo, como imaginou Grotius, este tratado foi uma

    estabilidade conseguida pela confiana mtua entre as partes. Sem a interferncia da

    Santa S no Tratado, a Paz de Westphalia era uma obrigao civil entre os governantes

    que eram simultaneamente como magistrados e partes.

    Em relao ao mbito religioso, foram aceitos definitivamente o

    luteranismo e o calvinismo como confisses consentidas, ou seja, todos os governos

    que pactuaram o tratado deveriam tolerar o culto de qualquer religio crist em seu

    territrio. Quaisquer que fossem as disputas entre as religies, deveriam ser resolvidas

    em negociaes diplomticas. Sobre a evoluo da diplomacia com a Paz de

    Westphalia, ensina Celso D. Albuquerque Mello: A partir de 1648, a diplomacia passou

    por diversas transformaes e os seus institutos foram se sedimentando. De uma

    regulamentao consuetudinria chegou-se regulamentao convencional.6

    importante tambm destacar que com a elaborao do texto do Tratado de

    Westphalia, foram redefinidos os critrios de atribuio de nacionalidade, que so

    conhecidos por jus soli e jus sanguinis.7

    Alm ento de uma um marco para o ser do Estado, o Tratado de Westphalia

    representou um marco para o Direito Internacional, para a diplomacia e para a

    laicidade do governo.

    A regio da Alemanha aps a Guerra dos Trinta anos ficou em frangalhos. O

    conjunto que compunha a forte unidade poltica do Sacro Imprio se esfacelou. O poder

    poltico do Imperador ficou drasticamente reduzido, j que as clusulas da Paz de

    Westphalia deram soberania a diversas regies que eram partes do Sacro Imprio,

    ficando assim o imperador apenas como um administrador de uma confederao.

    Estes pequenos Estados tinham liberdade de se relacionar com outros estrangeiros

    5 ROMANO, Roberto. A Paz de Vestflia (1648) In: Demtrio MAGNOLI. (org.). Histria da Paz.

    So Paulo: Contexto, 2007,.p.83. 6 MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Pblico. vol.2 13 ed...Rio de

    Janeiro: Renovar, p 1310. 7 FILOMENO, Jos Geraldo Brito. Manual de Teoria Geral do Estado e Cincia Poltica, 3 ed. Rio de

    Janeiro: Forense Universitria,1999, p.67

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    (Frana ou Inglaterra, por exemplo), desde que suas aes no fossem lesivas ao

    Imprio.

    Com tudo isso, Westphalia tido como o tratado pioneiro com o intuito de

    proteger a soberania dos Estados, em que a ordem jurdica, poltica e administrativa de

    um no deveria intervir na do outro e a separao do mundo religioso e do mundo civil.

    O DIREITO DA GUERRA E A RACIONALIZAO DO DIREITO

    NATURAL

    A dessacralizao da guerra, a relao de confiana entre soberanos e uma

    ordem jurdica comum entre todos os pases constituda de tratados nos quais seriam

    signatrios os prprios Estados, foram ideais que Grotius pretendia que fossem

    colocados em prtica para dar fim terrvel realidade da primeira metade do sculo

    XVII. Sua ideia de guerra era uma juno do ser e do agir, que seria um estado em que

    se encontram os indivduos que resolvem suas controvrsias usando a fora.8

    Em sua obra encontramos alguns conceitos que se tornaram essenciais para a

    concluso do Tratado de Westphalia. Inicialmente Grotius inicia definindo o que

    seria a guerra: o estado de indivduos, considerados como tais, que resolvem suas

    controvrsias pela fora.9

    E juntamente com o Direito e com a guerra, Grotius procurou relacionar estes

    dois elementos essenciais para as sociedades com outro elemento que est no mais

    ntimo de cada ser humano: a Justia. O Direito e a Justia em o Direito da Guerra e da

    Paz podem ser fortemente ligados quanto o Direito considerado aquilo que justo ou

    aquilo que no injusto. E o justo se define pela excluso do que apresentado

    como seu oposto: injusto tudo que repugnado pelos seres que podem raciocinar e

    ponderar ideias universais. Sobre a justia na guerra, Grotius escreveu ser preciso uma

    violao ao jus gentium para que nela houvesse alguma justia. E nesse caso,

    apoiando-se em autores como Sneca, defende trs causas legtimas da guerra: a

    defesa, a recuperao do que nos pertence e a punio.10 Com o passar do tempo suas

    8 GROTIUS, Hugo. O Direito da Guerra e da Paz. Iju: Uniju, 2007,p. 101.

    9 Ibidem, p. 73

    10 Ibidem, p.287

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    concepes sobre guerra justa foram aprimoradas e atualmente uma questo de

    suma importncia nas relaes intergovernamentais.

    Segundo esta noo, na atual tutela do Direito Internacional Pblico aos casos

    de guerra, possvel perceber alguma influncia do jusnaturalismo de Hugo

    Grotius. Se o homem por sua essncia tende a se manter em no estado dado pela

    natureza, ou seja, se proteger, natural que ataque quele que ameace sua integridade.11

    Deste modo, um Estado formado por uma sociedade que por sua vez formada

    por homens tem o direito de guerrear (jus ad bellum) para se defender, com a finalidade

    de que no haja sua destruio e tambm para a proteo da ordem soberana vigente

    em seu territrio.

    A agresso s considerada justa e de direito quando h uma agresso anterior

    ilegal contra aquele Estado. Assim, vemos que no justo o conflito armado que resulta

    na agresso por uma ameaa no concretizada. Guerra preventiva no pode ser

    considerada legal, pois no h a agresso efetiva de outro Estado. Pelo que

    estabelecido pelo jus cogens sobre a dessacralizao do princpio da guerra, o

    Estado agressor realizar uma ofensiva a outro alegando que este representa uma

    ameaa no obedece legalidade intergovernamental, pois perante o Direito

    Internacional apenas as guerras defensivas so legais.

    Sobre a chamada guerra preventiva, Grotius observa o temor de uma coisa

    incerta no pode dar direito execuo de medidas violentas. A guerra deve ser

    permitida num perigo presente e certo e no num pressuposto perigo. Com isso, a

    ameaa deve ser certa e concreta para que o Estado revide. E tambm como queria

    Grotius, a guerra deve ser permitida apenas contra o Estado agressor. Recorre-se a ela

    como um ltimo recurso. Deste modo, ficam excludos do perigo aqueles que no

    estiveram envolvidos no conflito, criando o estado de neutralidade. Mesmo se agredido,

    um Estado deve recorrer aos meios possveis para resolver o litgio, pleiteando se

    necessrio Sociedade Internacional a aplicao de alguma sano antes de recorrer

    guerra. O conflito deve ser dirigido contra aqueles estados que no se submeterem ao

    que decidido pela Sociedade Internacional A nica causa legtima para guerra

    uma agresso violenta recebida. E a guerra pode ser lcita se tiver o Estado tiver o

    11Ibidem, p. 297

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    intuito de se defender ou recuperar algo que lhe foi injustamente tomado por outro

    Estado.

    Sobre o sentido do termo direito, ensina Grotius que o primeiro se relaciona

    justia, o Direito pode ser aquilo que justo ou aquilo que no injusto e, injusto

    tudo aquilo que repudiado pelos seres dotados de razo.12. Seguindo este raciocnio,

    em um segundo sentido, Grotius afirmou que o Direito uma qualidade moral do

    indivduo para possuir ou fazer de modo justo alguma coisa.13

    No sentido mais trabalhado por Grotius, o terceiro, o direito tem um significado

    amplo de lei. O direito nesse sentido tido numa compreenso racionalista, dividindo-

    se em direito natural e direito voluntrio. O direito natural permite uma legitimao do

    direito voluntrio, mas agora no mais em bases de cunho cosmolgico ou teolgico,

    mas sim baseados na capacidade de conhecimento humano.

    Nesse sentido, o direito natural nos ditado pela razo que nos leva a conhecer

    que uma ao, dependendo se ou no conforme natureza racional, afetada ou no

    pela deformidade moral ou por e necessidade moral e que, em decorrncia, Deus, o

    autor da natureza, a probe ou a ou a ordena.14

    Grotius defende a imutabilidade do direito natural:

    O direito natural to imutvel que no pode ser mudado nem pelo prprio Deus. Por mais imenso que seja o poder de Deus, podemos dizer que h coisas que ele no abrange porque aquelas de que fazemos aluso no podem ser seno enunciadas, mas que no possuem nenhum sentido que exprima uma realidade e so contraditrias em si. Do mesmo modo, portanto, que Deus no poderia fazer com que dois mais dois no fossem quatro, de igual modo ele no pode impedir que aquilo que essencialmente mau no seja mau. [...] na realidade no o direito natural que muda, sendo imutvel, mas a coisa, a respeito da qual o direito natural estatuiu, que sofre mudana.15

    Essa concepo de direito natural fundamenta o direito na razo humana

    independente da figura divina, fundamento do direito natural no medievo. Conforme

    Wight,

    12

    Ibidem, p. 72 13

    Ibidem, p. 74 14

    Ibidem, p. 81 15

    Idem

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    Grotius viu o direito natural como sendo racional, isto , totalmente aberto explorao pela razo e reduzvel a uma forma sistemtica. O direito natural baseado na natureza dos seres humanos, no, como em outras leis, por sua vontade, nem diretamente pela vontade de Deus; mas abrange assuntos decorrentes da vontade humana.16

    Este jusracionalismo uma caracterstica da concepo moderna do direito e

    posteriormente culminar com a percepo dos direitos naturais individuais dados pela

    razo humano no Sculo XVIII. Para France Farago, preciso compreender a mxima

    de Grotius que diz que todas as teses do direito natural poderiam conservar sua validez

    admitindo mesmo que no tivesse existido nenhum Deus, ou que a prpria divindade

    no se preocupasse com o mundo das coisas humanas17

    Pelos preceitos da poca, os Estados Catlicos consideravam justa a agresso aos

    protestantes (inclusive a ruptura da Paz de Augsburgo de 1555). Encontravam a

    legalidade para seu ato no incidente diplomtico conhecido como a Defenestrao de

    Praga, em que dois representantes catlicos do imperador Matias em Praga foram

    jogados pela janela pelos protestantes.

    Alm do conflito religioso entre cristos, a guerra tambm foi levada tona

    pelos interesses dos Habsburgos que desejavam manter o poder do Imprio, e pelos

    interesses dos outros Estados em esfacelar o poder do Sacro Imprio cada vez mais; a

    luta de independncia da Holanda contra a Espanha e outras razes particulares de

    algumas naes.

    Com o fim da guerra, o Direito Internacional ganhou real amplitude. A Paz de

    Westphalia de 1648 atendeu aos objetivos da obra de Grotius. Formou-se entre os

    signatrios e consequentemente aos demais Estados a instituio e amplificao de uma

    cincia dedicada ao estudo de relaes entre os Estados, o jus gentium. Neste sentido,

    leciona Floh:

    Nesse momento observa-se no apenas a reviso da Ordem Internacional e dos parmetros tradicionais das relaes internacionais, mas tambm o estabelecimento

    16

    WIGHT, Martin. Four Seminal Thinkers in International Theory: Machiavelli, Grotius, Kant and Mazzini. New York: Oxford University Press, 2005, p.39. No original em ingls: Grotius saw natural law as being rational, that is, wholly open to exploration by reason and reducible to a systematic form. Natural law is based on the nature of human beings, not, like other laws, on their will, nor directly on the will of God; but it covers matters resulting from human will. 17

    FARAGO, France. A Justia. Barueri: Manole, 2005, p. 165.

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    de novas bases para o sistema de normas de Direito Internacional, ou seja, o surgimento de uma nova ordem jurdica, tal como proposto na obra clssica e H.Grotius, alguns anos antes da Paz de Vestflia.18

    Sendo um instituto jurdico, o jus gentium deve regular as aes de um estado

    frente ao outro, com uma relao de confiana entre os soberanos. Deste modo, sendo

    respeitado o Princpio da Territorialidade, os governantes confabulam-se com os outros,

    seja para determinar regras comuns a serem aplicadas dentro da ordem jurdica interna

    de cada um, seja para a resoluo de conflitos de interesses devendo priorizar a soluo

    pacfica das divergncias.

    O princpio de que uma ordem jurdica deve ser eficaz para ser vlida

    pertencente ao Direito Internacional. Por este princpio, uma autoridade efetivamente

    investida o governante legtimo, a ordem coercitiva decretada por este poder soberano

    a ordem jurdico- administrativa que paira em um determinado territrio no qual vive

    uma sociedade um Estado reconhecido internacionalmente, na proporo em que

    essa soberania , como um todo, eficaz.

    INFLUNCIAS NO DIREITO INTERNACIONAL CONTEMPORNEO

    As normas fundamentais de vrias ordens jurdicas internas de um Estado so

    fundamentadas em normas gerais de Direito Internacional Pblico, sejam elas geradas

    por tratados-leis, tradados-contrato, atos unilaterais das naes, costumes, decises das

    Cortes Internacionais ou ainda, pelo jus cogens. de grande importncia tambm

    conceituar o jus cogens como sendo os princpios gerais do Direito internacional

    Pblico; contrrio aos atos terroristas, ao narcotrfico e outros atos que atrapalhem a

    ordem e estabilidade dos Estados, alm da proteo pessoa humana. O jus cogens

    deve ter sempre um carter geral em relao aos Estados tutelados pelo direito

    internacional. Neste sentido,

    Se jus cogens deve refletir normas fundamentais para estruturar a Sociedade Internacional, os valores a ela mais caros e que sejam de um entendimento geral, entre todas as fontes, apenas um tratado multilateral que tenha um alto numero de Estados signatrios com grande

    18

    FLOH, Fabio. Direito Internacional Contemporneo:Elementos para a Configurao de um Direito Internacional na Ordem Internacional Neo-Vestfaliana. In: CASELLA, Paulo Borba. et al.(org.) Direito Internacional, Humanismo e Globalidade. So Paulo: Atlas, 2009, p. 220.

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    relevncia para o cenrio internacional podem instituir tais normas.19

    Pode-se dizer inclusive que um polo de normas imutveis que est acima de

    todas as outras e que at mesmo os tratados internacionais sero nulos se regularem

    matria contrria ao jus cogens. A prescrio normativa sobre este tema se encontra na

    Conveno de Viena Sobre Direitos dos Tratados de 1969, em seu artigo 53. Sobre a

    obrigatoriedade, explica Jete Jane Fiorati,

    A imperatividade do jus cogens no implica somente na sua obrigatoriedade, uma vez que tambm as normas derivadas de jus dispositivum so obrigatrias para as partes, mas, principalmente, na proibio da derrogao de suas normas. A imperatividade encontra sua outra face na inderrogabilidade.20

    Possvel seria ento a criao de uma norma que vincularia seus Estados

    signatrios a aceitar a guerra como ilcito internacional? uma das funes da Carta

    das Naes Unidas, que entrou em vigor em 24 de outubro de 1945, tratado este

    considerado um tratado- constituio. Interessante completarmos este raciocnio com

    um as palavras de Paulo Borba Casella,21 utilizando-se dos ensinamentos de Vicente

    Marotta Rangel, ainda que se tratando de questo terminolgica: Texto

    constitucional da sociedade internacional na expresso de Vicente Marotta RANGEL

    (1954)-, o tratado hierarquicamente mais importante a Carta, expresso utilizada no

    tocante s Naes Unidas.

    Percebe-se ento que numa sociedade composta por Estados, h a necessidade

    da criao de normas para se protegerem um dos outros. No caso da Carta da ONU,

    houve a concretizao de uma tendncia de institucionalizao do Direito

    Internacional, que j vinha desde Westphalia. Explica Mazzuoli:

    O Direito internacional deixa de ser um direito das relaes bilaterias ou multilaterais entre os Estados para se tornar um direito cada vez mais presente nos organismos internacionais, na Organizao das Naes Unidas, bem como em suas agncias especializadas, podendo at mesmo chegar criao de um rgo supranacional com poderes decisrios, como o caso da

    19

    LIZIERO, Leonam Baesso da Silva. Jus Cogens, Naes Unidas e Direito Blico. Rio de Janeiro: Agbook, 2013, p. 50. 20

    FIORATI, Jete Jane. Jus Cogens: As Normas Imperativas do Direito Internacional Pblico como Modalidade Extintiva dos Tratados Internacionais, p.86. 21

    ACCIOLY, Hildebrando; NASCIMENTO E SILVA, Geraldo Eullio do; CASELLA, Paulo Borba. Manual de Direito Internacional Pblico. 16. ed. ref. So Paulo: Saraiva, 2008, p. 132.

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    Unio Europeia. O grau de institucionalizao da sociedade internacional pode ser aferido pelo numero de rgos criados e respeitados pela maioria dos Estados motivados pelo interesse em sedimentar a existncia de polos decisrios das relaes internacionais22

    Havendo ento instituies de Direito Internacional, h um maior controle de

    atos dos Estados, uma vez que se obrigam a aceitar as normas internacionais,

    obrigatoriedade esta fundamentada no princpio pacta sunt servanda. Este princpio de

    direito internacional por sua vez encontra importncia fundamental na obra de Grotius.

    Segundo o autor, o dever de cumprir as promessas decorre da natureza da justia

    imutvel que comum em sua maneira a Deus e a todos os seres dotados de razo.23

    Isso implicou no pensamento jurdico internacionalista posterior a

    obrigatoriedade dos pactos (inclusive na teoria kelseniana) o que se tornou alguns dos

    fundamentos do contemporneo Direito dos Tratados, principalmente no princpio do

    pacta sunt servanda, no qual o tratado faz lei entre os Estados signatrios e que o que

    for pactuado deve ser cumprido e o princpio da boa-f, que dita que um Estado

    pactuante tem um dever de lealdade, cooperao e confiana com o outro Estado que

    venha a participar do acordo (ou outros Estados, caso seja um tratado multilateral)

    A fora destes dois princpios to significativa que so previstos na Conveno

    de Viena sobre direitos dos Tratados de 1969, em seu artigo 26:Todo tratado em vigor

    obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa-f Nesta mesma conveno, sobre

    as regras de interpretao dos tratados tambm determina o artigo 31 que: Um tratado

    deve ser interpretado de boa-f segundo o sentido comum atribuvel aos termos do

    tratado em seu contexto e luz de seu objetivo e finalidade

    Com isso possvel resolver muitos conflitos atuais determinando normas entre

    os beligerantes que atendam aos interesses dos envolvidos. Assim, os

    desentendimentos religiosos que acontecem constantemente nos pases europeus, no

    apenas em razo do credo como da etnia, poderiam ser resolvidos se realizado um

    tratado entre a Comunidade Europeia para aceitao das diferenas. Desta forma, os

    Estados se obrigariam a tolerar a diversidade entre os povos de todo continente,

    preconizando que para esta tolerncia deve haver um comprometimento daqueles

    22

    MAZZUOLI, Valrio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Pblico 3 ed. So Paulo: RT, 2009, p.49. 23

    GROTIUS, Hugo. O Direito da Guerra e da Paz, pp. 551-552.

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    beneficiados que devero respeitar as normas internacionais e internas de cada Estado,

    resolvendo seus litgios, quando houver, de maneira pacfica.

    Veja-se que com isso, a valorizao do pacifismo e da proteo pessoa

    humana traduz um interesse de todos na Comunidade Internacional. , portanto,

    necessria uma relao de confiana entre os governos de cada Estado. J que existe a

    condenao da guerra, o ideal que os Estados utilizem as fontes do Direito

    Internacional alcanarem seus objetivos. E mesmo se o Estado estiver em uma crise

    interna de conflitos que sejam de plenitude internacional, deve se ater s normas

    internacionais para a ento aplicao de suas leis internas.

    Desta forma, segundo os princpios gerais do Direito das Gentes, a guerra

    proibida em um primeiro momento. legtima apenas se for uma reao contra um ato

    antijurdico ou contra uma agresso armada em nvel de Estado, sendo que deve

    ser dirigida apenas ao Estado responsvel pelo delito.

    E por diversos motivos, Grotius procurou demonstrar que o direito de natureza

    no se ope guerra, invocando assim a questo do envolvimento na justia nas guerras

    que podiam ser legitimadas por este direito natural, sendo o objetivo da guerra

    assegurar a conservao da vida e do corpo, conservar ou adquirir as coisas teis

    existncia, este objetivo est em perfeita harmonia com os princpios primeiros da

    natureza24. Esta legitimao encontra sua origem na percepo racional do direito

    natural que ensina que nos primrdios a guerra tinha como objetivo a preservao da

    vida e do corpo e proteger ou conquistar aquelas coisas que seriam necessrias

    existncia. Desta forma, no , portanto agir contra a natureza da sociedade zelar

    e prover para os prprios interesses, sob a condio deque o direito do outro no seja

    atingido. Em decorrncia, o emprego da fora, quando no viola direitos de outros, no

    injusto.25

    Leciona a este respeito Wight:

    Somente a guerra justa legal e um beligerante envolvido em uma guerra justa pode infligir punio a seu inimigo, e o inimigo (o beligerante injusto) no tem direito de se defender, mas ele admite que, em seguida, na prtica, a distino desprezivel: uma vez que a guerra tem incio,

    24

    Ibidem, p. 101. 25

    Ibidem, p. 103.

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    deve ser conduzida de acordo com as regras da guerra sem levar em conta as causas da justia dela.26

    Porm temos as situaes nas quais certos atos dos Estados causam dano a

    outro, seja por descumprimento de conveno internacional, seja por quaisquer outras

    atitudes tomadas. Como a partir da Carta da ONU foi consolidado o instituto da soluo

    pacfica de conflitos internacionais, o Direito Internacional tem meios de resolver lides

    entre Estados sem a necessidade de guerra. Tal importncia alcanou este instituto que

    foi devidamente positivado em seu Artigo 33.

    Assim, quanto dessacralizao da guerra, as ideias de Grotius foram

    aprimoradas e puderam ser aplicadas em um mbito mundial, assegurando a

    responsabilidade, pois com um dano gerado um vnculo jurdico.

    Com a configurao de um ilcito internacional, gerada a responsabilidade do

    Estado infrator. Para entender ento quando imputada esta responsabilidade,

    preciso a anlise de alguns elementos essenciais. Conforme ensina o professor Guido

    Fernando Silva Soares:27

    1. Um comportamento em violao de um dever internacional sempre atribuda a

    um ou mais Estados, que pode ser um ato comissivo ou omissivo;

    2. A existncia de um dano fsico ou moral causado a outros Estados, seu territrio

    e bens, ou ainda ao povo deste;

    3. Um nexo de causalidade normativa entre o dano e o ilcito, o qual institui um

    dever de reparar do Estado infrator e cria uma faculdade do estado atingido de

    exigir uma reparao.

    E nestes elementos apresentados possvel perceber os princpios da

    dessacralizao da guerra e a limitao da guerra aos beligerantes envolvidos no

    conflito, gerando deste modo uma situao de neutralidade a terceiros pases.

    Ao que determinado juridicamente como comportamento lesivo de um Estado,

    resultante de uma ideia formulada exclusivamente pelo Direito Internacional. A

    agresso de um Estado por outro uma violao de direito. possvel classificar os

    26

    WIGHT, Martin. Four Seminal Thinkers in International Theory: Machiavelli, Grotius, Kant and Mazzini. New York: Oxford University Press, 2005, p. 51. No original em ingls: Only the just war is legal and a belligerent engaged in a just war may inflict punishment on his enemy, and the enemy (the unjust belligerent) is not entitled to defend himself;96 but he then admits that in practice the distinction is negligible: once war is in being, it must be conducted according to rules of war without regard to causes or the justice f it. 27

    SOARES, Guido Fernando Silva. Curso de Direito Internacional Pblico. p.186.

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    danos causados ao Estado quanto gravidade da leso em (a) atos ilcitos que tornam

    possvel uma restituio a uma situao anterior, em que a reparao do Estado ofensor

    justamente devolver ao Estado lesado a situao na qual ele se encontrava antes da

    leso; (b) danos morais, aqueles no quais um Estado ofende a honra e a reputao de

    outro, sendo que para esta ofensa cabe um pedido de perdo para reparar este dano na

    maioria das vezes e; (c) destruio de uma propriedade de um Estado economicamente

    valorizada e, se no for possvel um retrocesso situao anterior ao dano, a

    indenizao deve ser monetria na proporo dos bens destrudos.

    Quanto ao dano, tambm possvel distinguir os que so causados diretamente

    aos Estados e indiretamente, quando causados s pessoas suas jurisdies ou seus bens.

    Os danos causados ao Estado diretamente correspondem quelas leses no que diz

    respeito invaso do territrio, a destruio de algum bem ou ainda uma ofensa

    honra e a imagem moral. No segundo caso, a ofensa contra particulares, sejam

    pessoas naturais ou jurdicas, que esto protegidos pelo Estado. 28

    evidente que, nos casos onde o Estado ofensor no se retrata, seja pedindo

    desculpas formalmente ou pagando devida indenizao, ou se o Estado ofendido no

    aceitar a retratao daquele Estado que o lesa, o incidente entre estes pases pode

    evoluir para o rompimento de relaes diplomticas e em pior hiptese, para o conflito

    armado.

    A Paz de Westphalia foi o primeiro tratado intergovernamental que conseguiu

    determinar alm de outras inovaes, normas a serem aplicadas na guerra. Hoje temos

    regras reconhecidas oficialmente por tratados internacionais realizados

    principalmente no sculo XX. Porm mesmo antes do Tratado de Westphalia em 1648,

    j houve tentativas de aplicar a soluo pacfica pelos povos mais antigos. Como

    observa John Keegan, a expectativa de um futuro no qual o recurso guerra seja

    colocado sob limites racionais no deve nos levar falsa viso de que no tenha havido

    limitaes no passado29

    , no entanto, possvel pensar que as guerras podem ser explicadas por defeitos

    em alguns ou em todos os Estados sem acreditar que a mera eliminao dos defeitos

    28

    GROTIUS, Hugo. O Direito da Guerra e da Paz, p.297 29

    KEEGAN, John. Uma Histria das Guerras. So Paulo: Cia das Letras, 2006, p. 94.

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    estabelea a base da paz perptua.30 Como utpica a eliminao dos defeitos de cada

    Estado, pois esto fortemente enraizados em sua cultura, a Comunidade Internacional

    deve estar preparada a qualquer tempo para um conflito entre pases, alm de se utilizar

    da tutela do Direito Internacional Pblico, para que no haja maiores calamidades

    alm do que a guerra oferece.

    Segundo Celso Mello:

    Com a evoluo do DI e o inicio de uma institucionalizao da sociedade internacional na nossa matria passou a ser eminentemente um direito de paz. A guerra deixou de ser uma sano, ou um modo violente de soluo dos litgios internacionais, para ser um ilcito internacional. Um dos fatores que contriburam para a evoluo neste sentido foi a intensificao das relaes internacionais e, em consequncia, multiplicando as ocasies para guerras. Diante deste fato os Estados passaram a procurar resolver litgios internacionais de modo pacfico.31

    Ento, sob a tutela do Direito Internacional Pblico, a guerra regulamentada,

    de onde deriva a expresso usada para o conjunto de normas que imperam as aes dos

    beligerantes, o jus in bello. Assim, possvel declarar com firmeza que a atuao

    daqueles que so partes em uma guerra sofre limitaes, limitaes estas formuladas

    com base nos princpios gerais de Direito Internacional. H, segundo a doutrina

    internacionalista32, dois princpios bsicos que regem o direito blico.

    O primeiro o princpio da necessidade, para o qual no deve existir limitaes

    guerra. Assim sendo, em nome dos objetivos a serem alcanados, o beligerante pode

    utilizar qualquer meio que bem entender para obter a vitria, no respeitando

    regramento algum. O Estado, como esperado em uma guerra, precisa utilizar de todos

    os meios necessrios para no ser derrotado, guerreando para assegurar que o inimigo

    no destrua o ente soberano que o rege, no tome seu territrio e no destrua sua

    estrutura social. Desta forma, no importa se houver oprbrio no conflito. O mais

    interessante ter bom xito na guerra. O que h de extremamente negativo

    justamente a negao submisso que este princpio faz ao regramento blico. A

    existncia de convenes, acordos e protocolos existentes para amenizar o uso da fora

    30

    WALTZ, Kenneth N. O Homem, o Estado e a Guerra. So Paulo, Martins Fontes, 2005 p. 105 31

    MELLO, Celso D. De Albuquerque. Curso de Direito Internacional Pblico.13 ed. p.1431. 32

    MELLO, Celso D. De Albuquerque. Curso de Direito Internacional Pblico.13 ed. p.1450

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    de um Estado com a finalidade de proteger as vtimas inocentes que sempre tem suas

    vidas destroadas de nada valeriam e assim, todos os esforos dos Estados

    civilizados em cuidar da vida humana em geral seriam em vo.

    O segundo o princpio da humanidade, que ensina justamente que o

    beligerante deve se portar na guerra respeitando exatamente as leis para conflitos

    armados e tentar prejudicar minimamente o inimigo. O conflito armado, para este

    princpio, deve ser resolvido com o mnimo de destruio possvel. Ainda que com todo

    o sistema internacional de proteo pessoa humana fortalecer a aplicabilidade deste

    princpio, percebe-se uma grande idealismo em conflito com a realidade de uma

    guerra, onde soldados feridos e famintos precisam, alm de lutar pelo seu pas, lutar

    por sua prpria sobrevivncia e para garantir suas vidas, no importa o quanto de

    estrago causado. Isto se tornou uma questo conflitante nestes ltimos anos no s por

    causa da convenincia militar que frequentemente insiste que ele deve ser ignorado

    (isso no novidade), mas porque os mtodos de guerra contempornea [...] torna cada

    vez mais difcil de distinguir combatentes de no combatentes.33 Por isso, ao

    examinar a aplicao do direito na guerra, necessrio fazer um equilbrio entre estes

    dois princpios, sabendo que so simultneos.

    Como no direito interno, em que h aplicao de punio quele que viola uma

    norma, o Direito Internacional Pblico possui sanes que visam prevenir contra uma

    infrao s normas do jus in bello. So estas sanes as represlias, que podem ser

    entendidas como uma retaliao feita por Estados fora inicialmente do conflito que

    procuram coibir a agresso realizada pelo Estado que desrespeita os regramentos de

    guerra. Estas represlias levam a outras sanes, como a m imagem do Estado

    transgressor diante daqueles que se mantiveram neutros, dificuldade em algumas

    relaes comerciais e ressarcimento de danos ao pas que foi prejudicado pela infrao

    ao jus in bello. O que tema de maior debate se as represlias so atos lcitos ou

    ilcitos diante o Direito Internacional. Os que defendem as represlias como ato lcito

    apoiam seu argumento no fato de que o Estado ao utiliz-las, age em prol da Sociedade

    Internacional, j que uma resposta a um delito no mbito internacional. Por sua vez,

    33

    HIGGINS, Rosalyn.Grotius and the Developtment of International Law in the United Nations Period. In: BULL, Hedley; KINGSBURY, Benedict; ROBERTS, Adam. Hugo Grotius and International Relations. Clarendon Paperbacks, 1992, p. 275

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    os que consideram a represlia como ilcita, observam que a ONU s admite o uso da

    fora nos casos de legtima defesa.

    A negao das leis da guerra pelos beligerantes leva ao que, por uma influncia

    de Clausewitz, chamado de estado de guerra total. Na guerra total, os civis no so

    respeitados, os efeitos do conflito ultrapassam os territrios dos beligerantes e no

    distingue os envolvidos dos no envolvidos. Com isso, h a negao de limites

    estabelecidos por atos jurdicos internacionais que deveriam ser respeitados por

    aqueles que se envolvem em hostilidades armadas, a guerra total uma afronta ao

    Direito Internacional Pblico. Conforme a lio de Rodrigo Passos, explicando o

    pensamento de Clausewitz,

    A trindade que caracterizaria a guerra real e completaria sua definio como fenmeno total, comportaria trs componentes que expressariam suas tendncias dominantes. O primeiro componente englobaria uma violncia original, uma hostilidade e uma animosidade, considerados como um impulso natural ego, todos ligados ao povo. O segundo componente diria respeito ao jogo de probabilidades e do acaso que movem livre alma criativa, que depender das caractersticas de seu comandante e de seu exrcito. Por fim, a subordinao da guerra poltica e aos objetivos polticos, assunto de deciso exclusiva do governo de um Estado.34

    So diversos os efeitos do estado de guerra. Atinge o prprio Estado, como

    tambm as pessoas que nele vivem e seus bens. Os principais efeitos que atingem os

    Estados so o rompimento das relaes diplomticas entre os beligerantes e a

    suspenso dos efeitos de certos tratados entre eles. Terminado o conflito armado, os

    tratados voltam a vigorar.

    E para o trmino de um conflito armado, o Direito Internacional tambm tem

    normas que regulam relaes entre os beligerantes. Estas normas, assim como a base

    para as regras na guerra, foram dadas doutrina moderna por antigos

    internacionalistas, principalmente Francisco Suarez e Hugo Grotius. -nos possvel

    dizer que estas relaes entre beligerantes so convenes feitas entre eles que visam o

    34

    PASSOS, Rodrigo Duarte Fernandes. Clausewitz e a Poltica Uma Leitura de A Guerra. Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao em Cincia Poltica do Departamento de Cincia Poltica da FFLCH. So Paulo, 2006.p. 8

  • Quaestio Iuris vol.08, n. 01, Rio de Janeiro, 2015. pp. 81-105 DOI: http://dx.doi.org/10.12957/rqi.2015.15352

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    fim do estado de guerra. Sobre estas convenes especiais, ensina Celso D. de

    Albuquerque Mello que:

    Estas convenes se distinguem dos tratados internacionais comuns em vrios pontos: no so concludas geralmente pelos rgos normais do Estado para as relaes internacionais, mas pelo comandante chefe das foras armadas. Elas se distinguem dos tratados quanto sua execuo, no havendo assim necessidade, por exemplo, de uma promulgao das normas internacionais no mbito interno. Elas geram obrigaes diretamente para o Estado e so executadas pelos rgos militares. Elas entram em vigor imediatamente aps sua concluso.35

    Assim, no espelho do que foi a Paz de Westphalia, tratados sempre

    surgem para colocar trmino a uma guerra. Estes tratados colocam fim a questes antes

    divergentes.

    Como a guerra atualmente vista no geral como um meio no lcito para se

    resolver conflitos entre Estados, o Direito Internacional adota ento o que conhecido

    como solues pacficas de controvrsias internacionais. Uma interessante crtica no

    estabelecimento da segurana coletiva no sistema Naes Unidas faz Higgins:

    O sistema Naes Unidas foi criado para resolver este temvel dilema de uma

    maneira totalmente alm de Grotius. No corao da Carta estava a ideia que seria

    realista para obrigar os Estados a usar a fora apenas em legtima defesa, porque a

    segurana coletiva poderia ser provida para garantir que direitos no poderiam ser

    negados de forma que pudesse ameaar a paz internacional. A realidade que o

    sistema de segurana coletiva da ONU totalmente falho. de fundamental

    importncia reconhecer isso e focar nossas mentes nas consequncias decorrentes

    dessa realidade. Desde o comeo as Naes Unidas tem sido incapaz de conter as

    conter as foras pelas quais foi previsto que o Conselho de Segurana poderia prover a

    segurana coletiva.36

    possvel enxergar a questo da guerra de maneira mais fcil levando-se em

    conta tambm o Conselho de Segurana da ONU. Como rgo responsvel pelas

    35

    MELLO, Celso D. De Albuquerque. Curso de Direito Internacional Pblico.13 ed. p.1517-1518 36

    HIGGINS, Rosalyn.Grotius and the Developtment of International Law in the United Nations Period. In: BULL, Hedley; KINGSBURY, Benedict; ROBERTS, Adam. Hugo Grotius and International Relations. Clarendon Paperbacks, 1992, p. 270.

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    deliberaes do uso da fora da Organizao das Naes Unidas, de suma

    importncia analisar sua interveno em alguns conflitos armados em tese.

    Pode ser considerada legal o uso da fora em casos de legtima defesa do Estado

    a um ataque armado de outro. Alm desta situao, no considerado ilcito o conflito

    armado quando autorizada interveno militar pelo Conselho de Segurana,

    autorizao esta que pode resultar de grave violao aos Direitos Humanos e violao

    do regime democrtico quando for este regime aquele que de vontade do povo do

    Estado em questo.

    Segundo a Carta da ONU de 1945, em seu captulo VII, o Conselho de

    Segurana pode intervir nos casos em que for necessrio o uso de fora militar nas duas

    situaes anteriormente ditas. apenas necessrio um veto de um dos cinco membros

    permanentes (Reino Unido, Estados Unidos, China, Rssia e Frana) para se impedir

    uma interveno. Tambm so necessrios nove votos dos quinze componentes para se

    aprovar uma medida desta, sendo que um dos cinco membros permanentes no vote

    contra. Se um dos membros for omisso na votao ou desta se ausentar, no ser esta

    omisso considerada um veto, porm preciso a aprovao da maioria absoluta dos

    membros para a tomada de qualquer medida.

    A existncia de qualquer ameaa paz internacional, ruptura da paz ou ato de

    agresso ser determinada pelo Conselho de Segurana, que, a fim de manter a paz e a

    segurana internacionais, far as recomendaes ou adotar as medidas que considere

    apropriadas (artigos 39 a 51)37.

    No Sculo XX, aps a criao da ONU, foram conhecidos casos em que foi

    necessria a interveno: Guerra das Corias (1950), Rodsia do Sul (1966), Iraque (1991)

    e Bsnia-Herzegovina (1995). No convm neste estudo aprofundar nestas questes

    particulares, mas em todas elas houve a interveno do Conselho de Segurana por

    uma das duas razes que a autoriza, seguindo o procedimento estabelecido na Carta.

    Houve uma gradativa evoluo na atuao do Conselho de Segurana aps o trmino

    da chamada Guerra Fria. Segundo Michael Byers:

    Na dcada de 1990, o conselho de segurana da ONU considerou que certas

    crises de carter nacional envolvendo questes humanitrias e de direitos humanos

    37

    ACCIOLY, Hildebrando; NASCIMENTO E SILVA, Geraldo Eullio do; CASELLA, Paulo Borba. Manual de Direito Internacional Pblico. 16. ed. ref. So Paulo: Saraiva, 2008, p.417.

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    constituam ameaas paz e segurana internacionais, justificando assim o recurso

    ao Captulo VII para impor sanes ou autorizar o emprego da fora militar.38

    Considerando que o Direito precisa ser comum a todos os povos, as intervenes

    podem at ter um liame de justia, j que h uma clara distino ideolgica e poltica

    entre, por exemplo, Estados Unidos e Rssia. Uma ao que seja absurdamente ofensiva

    liberdade e integridade dos seres humanos de alguns Estados a ponto de provocar

    repugnncia a rivais polticos d azo ao uso da fora da ONU de maneira que no seja

    injusta.

    CONSIDERAES FINAIS

    Hugo Grotius foi um dos mais significativos pensadores do direito internacional

    na emergncia da modernidade. O direito internacional pensado como vinculo de

    confiana entre soberanos dessacralizou o exerccio da guerra e possibilitou o

    surgimento de um modelo de sociedade internacional que se perpetuou durante quase

    trezentos anos, sendo modificado pelo modelo Naes Unidas, em vigor desde 1945.

    Ainda sim, apesar do modelo westphaliano no estar mais em voga atualmente

    na sociedade internacional a despeito do debate profundo que o assunto envolve, a

    posio de uma mudana de paradigma com a emergncia das Naes Unidas

    muito da compreenso do contemporneo direito internacional depende dessas bases

    modernas lanadas no Sculo XX. Inclusive nesse sentido, possvel revisitar algumas

    ideias de Grotius em institutos internacionais.

    O imutvel direito natural racionalizado, passvel de ser conhecido pelo homem,

    que envolve a natureza das coisas em si, pode ser pensado na ideia de imutabilidade de

    certas normas do direito internacional contemporneo, principalmente no tocante ao

    instituto do jus cogens, apesar das diferenas ontolgicas entre esses dois conceitos.

    O jus cogens um direito (quase) imutvel, como o direito natural de Grotius.

    Tambm o jus cogens aplicado de forma geral a toda a sociedade internacional, tal

    como o direito natural de Grotius aplicado a todas as naes, ou a maioria das naes

    ditas como civilizadas.

    38

    BYERS, Michael. A Lei da Guerra. So Paulo: Record, 2006, p.40.

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    SOME OBSERVATIONS ON THE INFLUENCE OF HUGO GROTIUS'S THINKING

    IN CONTEMPORARY INTERNATIONAL LAW

    Abstract The presented article reports some of the influences of rationalistic thought of the dutch jurist Hugo Grotius (1583-1645) in contemporary international law, which remain even after the entry into force of the United Nations system, to supplant the westphalian system of international law. For this, we present some initial considerations about the Thirty Years' War (1618-1648), sparked of political tension between Catholics and Protestants orginating from the previous century, and its outcome, the Peace of Westphalia , a watershed in the history of international law . Later we talk about the rationalist thought of Grotius , his innovation in thinking an immutable natural law independent of divine law and how he thought the question of justice in war . Finally, as will be discussed some jusracionalist ideas of Grotius can be found in contemporary international law setting , with emphasis on feature ( almost) immutability of jus cogens and the collective security system of the United Nations .

    Keywords: Hugo Grotius; International Law; Jusracionalism.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    ACCIOLY, Hildebrando; NASCIMENTO E SILVA, Geraldo Eullio do; CASELLA, Paulo Borba. Manual de Direito Internacional Pblico. 16. ed. ref. So Paulo: Saraiva, 2008 BYERS, Michael. A Lei da Guerra. So Paulo: Record, 2006. FARAGO, France. A Justia. Barueri: Manole, 2005 FILOMENO, Jos Geraldo Brito. Manual de Teoria Geral do Estado e Cincia Poltica. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitria,1999 FIORATI, Jete Jane. Jus Cogens: As Normas Imperativas do Direito Internacional Pblico como Modalidade Extintiva dos Tratados Internacionais. Franca: Ed. Unesp, 2004. FLOH, Fabio. Direito Internacional Contemporneo: Elementos para a Configurao de um Direito Internacional na Ordem Internacional Neo-Vestfaliana. In: CASELLA, Paulo Borba. et al.(org.) Direito Internacional, Humanismo e Globalidade. So Paulo: Atlas, 2009.

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    Trabalho enviado em 19 de agosto de 2014. Aceito em 11 de fevereiro de 2015.