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ISSN:2011799X
Consideraes sobre a traduo brasileira de Die Idee des Guten
zwischen Plato und Aristoteles de Hans-Georg Gadamer luz de
preceitos tericos de Ji Lev1
Tito Lvio Cruz Romo Universidade Federal do Cear, Brasil
Resumo: A traduo de textos filosficos demanda diferentes estratgias tradutrias, tais como: a) notas do
tradutor; b) explicaes inseridas diretamente no corpo do texto; e c) certos malabarismos semnticos em diversas perspectivas lingustico-culturais. Na verso brasileira do livro Die Idee des
Guten zwischen Plato und Aristoteles, de Hans-Georg Gadamer, o tradutor do livro recorreu a notas do
tradutor para explicitar nuances prprias do alemo filosfico e tambm certas correspondncias
entre os idiomas alemo e grego, na forma como foram concebidas originalmente por Gadamer. O
objetivo principal deste artigo mostrar a utilidade de notas do tradutor na superao de alguns
impasses de traduo dessa obra filosfica no vernculo brasileiro, que nem sempre faz jus, da mesma maneira, estreita relao existente entre o alemo e o grego. Em meio ao agn translatrio
imposto pelo texto de Gadamer, algumas noes caras a Ji Lev podem clarear o caminho do tradutor, como p. ex.: a) valores semnticos e contedo ideo-esttico do texto-fonte; b)
funcionalidade do texto-alvo; c) condicionamento lingustico, forma lingustica e contedo ideo-
esttico; d) minimizao de dificuldades; e) reestilizao do texto-fonte.
Palavras-chave: traduo, filosofia, Hans-Georg Gadamer, Ji Lev.
Consideraciones sobre la traduccin brasilea de Die Idee des Guten zwischen Plato und Aristoteles
de Hans-Georg Gadamer a la luz de los principios tericos de Ji Lev
Resumen:
La traduccin de textos filosficos requiere diferentes estrategias, tales como: a) las notas del
traductor; b) las explicaciones incorporadas directamente en el cuerpo del texto; c) ciertos
malabarismos semnticos desde diversas perspectivas lingsticas y culturales. La traduccin brasilera de Die Idee des Guten zwischen Plato und Aristoteles de Hans-Georg Gadamer implic que el
traductor empleara notas de pie de pgina para explicitar matices propios de la terminologa
1 Durante o trabalho de verso brasileira da obra Die Idee des Guten zwischen Plato und Aristoteles, da autoria
de Hans-Georg Gadamer (1900-2002), foram necessrias diversas reflexes sobre o processo tradutrio,
os limites e os desafios do texto-fonte, entre outros, que acabaram levando o tradutor e tambm autor
deste artigo a escrever as consideraes aqui contidas. O presente texto insere-se em um projeto de
investigao intitulado Traduo de Especialidades, em que o autor deste artigo vem trabalhando desde
junho de 2016 no mbito das disciplinas que ministra no Programa de Estudos da Traduo (POET) da
Universidade Federal do Cear.
mailto:[email protected]
329 Romo, T. L. C. / Consideraes sobre a traduo brasileira de Die Idee des Guten zwischen Plato und Aristoteles de
Hans-Georg Gadamer luz de preceitos tericos de Ji Lev
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Mutatis Mutandis Vol. 9, N. 2. 2016, pp. 328-347
filosfica del alemn, al igual que algunas correspondencias, concebidas por el propio Gadamer,
entre el alemn y el griego. En este artculo nos proponemos sealar la utilidad de las notas de
traductor como estrategia para vencer los obstculos implcitos en la versin brasilera de la obra
mencionada, teniendo presente que en portugus los estrechos vnculos entre el alemn y el griego no pueden mantenerse siempre de la misma manera. Para superar el agn conceptual impuesto
por Gadamer en su libro, el uso por parte del traductor de algunos conceptos de Ji Lev, puede ser muy tiles, por ejemplo, a) los valores semnticos y el contenido ideolgico-esttico del original; b)
la funcionalidad del texto de llegada; c) le condicionamiento lingstico, la forma y el contenido
ideolgico-esttico; d) la minimizacin de las dificultades; e) la reestilizacin del texto fuente.
Palabras clave: Traduccin, filosofa, Hans-Georg Gadamer, Ji Lev.
Considerations on the Brazilian translation of Die Idee des Guten zwischen Plato und Aristoteles by
Hans-Georg Gadamer in the light of the theoretical principles of Ji Lev
Abstract:
The translation of philosophical texts requires different strategies, such as: a) translators notes; b)
explanations as direct elements of the text; and c) semantic juggling under linguistically and
culturally diverse perspectives. In order to accomplish the Brazilian translation of Gadamers above-
mentioned book, the translator used footnotes to emphasize nuances of certain German
philosophical terms and some correspondences between German and Greek, as conceived originally
by the German philosopher. The main purpose of this paper is to point out how useful translators
notes can be to overcome some obstacles in the translation of Gadamers book into Brazilian
Portuguese, a language in which the close links between German and Greek cannot always be maintained in the same way. To surmount the translations agon imposed by Gadamers text, in
such a case the translator can appeal to some of the concepts advocated by Ji Lev, e.g.: a) Semantic values and ideo-aesthetic content; b) Functionality of the target-text; c) Linguistic conditioning,
linguistic form and ideo-aesthetic content; d) Minimization of difficulties; e) Re-stylization of the
source-text.
Keywords: translation, philosophy, Hans-Georg Gadamer, Ji Lev.
A poesia est no corao da filosofia, o poema um filosofema2.
Jacques Derrida
1. A arte de traduzir textos filosficos
Ao longo dos sculos, a filosofia, notadamente aquela concebida e exercida pelos grandes estudiosos gregos, tem sido uma fonte quase inesgotvel, a partir da qual
tradutores podem verter as obras dos grandes filsofos e tambm se dedicar a comentar e at mesmo a escrever longos e elucidativos textos em que procuram penetrar os
2 Cf. Abbagnano, 2000, p. 442: Filosofema: Na lgica de Aristteles (Top., VIII, 11, 162 a 15) o
raciocnio demonstrativo. Fora da lgica: conceito ou lugar-comum filosfico. Neste segundo sentido, usado pelo prprio Aristteles (De cael., II, 13, 294 a 19) e pela tradio posterior.
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meandros do processo tradutrio. A ttulo de exemplo, mencione-se aqui o clebre filsofo, telogo evanglico e tradutor Friedrich Schleiermacher, que traduziu, inter alia,
os conhecidos Dilogos de Plato. Como obra reflexiva e quase sempre festejada3 sobre
o processo tradutrio e o significado do ato de traduzir, Schleiermacher (2011) legou
posteridade o clebre ensaio intitulado ber die verschiedenen Methoden des bersetzens
[Sobre os diferentes mtodos de traduzir], apresentado como conferncia perante a Academia Real de Cincias em Berlim no dia 24 de junho de 1813 e publicado em um
compndio de obras completas no ano de 1838. Embora o ensaio de Schleiermacher no tenha como ponto de partida a traduo de obras filosficas, pode-se supor que sua
prtica tradutria, bastante voltada para o gnero filosfico, certamente em muito contribuiu para fundamentar suas reflexes acerca do ato de traduzir. Ademais, como
veremos a seguir, textos filosficos possuem alguns aspectos em comum com textos literrios, notadamente com os gneros textuais de natureza e forma potica.
Da mesma forma que hoje em dia no se pode falar de uma teoria geral da traduo, mas talvez sim, com maior acurcia, de teorias da traduo4, tambm h
indubitavelmente diferentes formas de se entender o termo filosofia(s). Examine-se, de incio, a seguinte afirmao:
A disparidade das F[ilosofias]. tem por reflexo, obviamente, a disparidade de significaes de F[ilosofia]., o que no impede reconhecer nelas algumas constantes. Destas, a que mais se presta a
relacionar e articular os diferentes significados desse termo a definio contida no Eutidemo de
Plato: F. o uso do saber em proveito do homem. Plato observa que de nada serviria possuir a
capacidade de transformar pedras em ouro a quem no soubesse utilizar o ouro, de nada serviria
uma cincia que tornasse imortal a quem no soubesse utilizar a imortalidade, e assim por diante.
necessria, portanto, uma cincia em que coincidam fazer e saber utilizar o que feito, e essa cincia
a F. (Eutid., 288 e 290d). (Abbagnano, 2000, p. 442)5
Por tratar a filosofia (ou as filosofias) em um verbete de dicionrio, Abbagnano (2000, p. 442 ss.) elenca, para esta(s) uma srie de diferentes concepes, dentre as quais se podem
3 Em seu ensaio intitulado Die Aufgabe des bersetzens, Johann Albrecht Karl Schfer (1839) ope-se
ostensivamente ao mtodo de traduo proposto por Schleiermacher e realizado principalmente por
Johann Heinrich Vo, renomado tradutor alemo de obras de Homero. 4 Em um livro intitulado bersetzungstheorien [Teorias da Traduo], Stolze (2011, p. 7) adverte: Der
interdisziplinre Charakter der Wissenschaft vom bersetzen, die mit unterschiedlichen
Nachbardisziplinen in Kontakt steht, ist ein weiterer Grund fr die Vielfalt der theoretischen Anstze und
damit auch fr die Uneinheitlichkeit im Begriffsapparat. Die Fortentwicklung der noch relativ jungen
Disziplin fhrte nicht zu einer allmhlichen Herausbildung einer allgemeinen bersetzungstheorie,
vielmehr wurden und werden stndig neue Anstze entwickelt.[O carter interdisciplinar da cincia do
traduzir, que se encontra em contato com diversas disciplinas correlatas, mais um motivo para a
variedade de abordagens tericas e consequentemente tambm para a no-uniformidade do aparato
conceitual. O desenvolvimento continuado dessa ainda jovem disciplina no levou a um desenvolvimento
gradual de uma teoria geral da traduo; ao invs disso, desenvolveram-se e continuam a se desenvolver
novas abordagens]. Obs.: As tradues das citaes estrangeiras contidas neste artigo sero feitas, para
fins meramente didticos, pelo prprio articulista e apresentadas diretamente no corpo do texto, enquanto
os trechos originais viro em notas de rodap. Se, para os trechos originais, j existirem tradues
consagradas em portugus do Brasil, ser dada preferncia a estas. 5 Grifos de Abbagnano (2000).
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ressaltar, de forma seletiva e, portanto, no conclusiva, as seguintes: a) a concepo
analtica considera a filosofia uma atividade humana, tendo como funo fazer escolhas; b) considera-se a filosofia juzo sobre o saber, atribuindo-lhe, assim, a funo
de unificar as cincias ou de reunir seus resultados numa viso de mundo; c) a filosofia, segundo as filosofias de origem oriental, contemplao, o que, dentro da filosofia hodierna, estaria representado na fenomenologia e no espiritualismo; d) entende-
se a filosofia como anlise da linguagem, em que esta ocupa uma posio principal como instrumento mais apto a eliminar equvocos e retificar relaes intersubjetivas.
H tambm quem afirme que a filosofia, entendida literalmente como amor, apego,
nsia por sabedoria, no cincia. Em um artigo sobre a traduo de textos de
psicologia, psicanlise e filosofia, Marco Aurlio de Moura Matos (1984, p. 37) ressalta a importncia primordial da filosofia frente s cincias, j que aquela se constitui em
uma espcie de matriz de indagaes acerca das diferentes realidades que servem de base para as cincias propriamente ditas. Nesse processo, a filosofia atua de modo decisivo e
inabalvel, emprestando s cincias as necessrias categorias que desvelam para o mundo as diferentes realidades cientficas. Alm disso, o pesquisador supramencionado apresenta as seguintes consideraes sobre a traduo filosfica:
Tem pressupostos diferentes dos que informam a traduo literria e cientfica: seu vocabulrio
outro, seu enfocamento da realidade a conhecer outro, suas categorias so outras e sua finalidade,
outra. O pensamento filosfico o mais genrico e o mais universal de todos os tipos de pensamento,
uma vez que a filosofia a mais genrica e a mais universal das ocupaes da inteligncia do homem.
Sua histria e sua necessidade acham-se no ncleo inicial da civilizao do Ocidente na Velha
Grcia, basicamente, e nas civilizaes que herdaram seu patrimnio cultura (ibid.).
O fato de a filosofia ser uma ocupao genrica e universal permite-lhe possuir
muitos compartimentos, muitas especialidades e muitas segmentaes; isto resulta, amide, no surgimento de diferentes linguagens, jarges, vocabulrios e, por
conseguinte, na existncia de mtodos prprios para elucidar seus diferentes domnios. Assim sendo, o tradutor de textos filosficos necessitar dominar o
vocabulrio inerente s diferentes maneiras do pensar filosfico. Segundo Matos
(ibid.), o tradutor ter de dominar um vocabulrio genrico e, ao mesmo tempo se
for o caso um vocabulrio especfico, prprio de uma escola, para captar os
conceitos e as ideias centrais do pensamento filosfico tal como se firmou e se diversificou ao longo da sua histria da Histria da Filosofia.
Em uma obra de referncia em que se delineia a histria das tradues em lngua
francesa do sculo XIX, encontram-se estes comentrios sobre traduo e traduzibilidade de textos filosficos:
() A traduo sempre faz passar alguma coisa de uma lngua a outra, um sentido, uma
argumentao, um raciocnio, uma intuio, que permite s ideias circular e prosperar numa outra
lngua. (...) Poder-se-ia dizer, assim, que a traduo filosfica situa-se em um grau intermedirio da
traduzibilidade, entre, por um lado, o discurso potico e religioso, em que o sentido est
consubstancialmente ligado s palavras, tornando toda traduo, num caso extremo, um sacrilgio;
e, por outro lado, o discurso cientfico que em teoria, legitimamente, transponvel, por completo,
de uma lngua a outra. A traduo de um poema sempre corre o risco de uma perda (...), ao passo
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que a traduo de um texto cientfico, de uma demonstrao, constitui uma forma de validao e
contribui para reforar-lhe o carter universal. Entre esses dois polos da traduzibilidade, a filosofia
parece colocar-se num estgio intermedirio, na medida em que o texto original sempre contm um
excedente de sentido que justifica que se retorne a este sem cessar, que se tente sem cessar traduzi-
lo; e na medida em que, ao mesmo tempo, a prova da traduo mais do que nunca decisiva. Pode-
se at afirmar que a traduo, para um texto filosfico, um teste insubstituvel. E da esta atitude
dupla, uma idiossincrasia s vezes irritante dos textos filosficos, que consiste em se referir com frequncia a noes tomadas de emprstimo tais e quais lngua de origem (Dasein, logos), sem,
todavia, renunciar explicitao e ao comentrio, e, logo, apropriao e aclimatao (por exemplo Heidegger tratando de Logos, Moira e Aletheia em seus Essais et Confrences [Ensaios
e Conferncias], Gallimard, 19586 (DHulst & Lombez, 2012, p. 1009).
A partir das consideraes acima, possvel observar o alto grau de dificuldade que as
noes filosficas representam aos tradutores, justamente porque o discurso filosfico beira, segundo os autores citados, os discursos potico e religioso. Frisando-se, aqui, essa
margem de semelhana entre enunciaes da poesia e da filosofia, cumpre tambm realar a proximidade existente entre a filosofia e a arte em geral, e entre a filosofia e a arte potica, em particular. Tomem-se como exemplo algumas ideias de Jacques Derrida
(1930-2004), filsofo francs de origem magrebina que fundou a desconstruo7 na filosofia como forma de criticar as abordagens literrias, filosficas e polticas de seu
tempo, e que teceu sobre esse tema os seguintes comentrios:
Pode a filosofia ser adquirida pelo exerccio e pela aplicao? Ou ela , ao contrrio, um dom gratuito
(ein freies Geschenk), um poder inato (angeboren) enviado pelo destino (Schickung)? De certa maneira,
a resposta sim, h (es gibt) um dom ou um presente (Geschenk) dado, enviado, legado pelo destino
(Geschick); somos assim destinados filosofia na medida em que ela uma arte, uma arte de gnio
regulada por uma intuio intelectual que s pode ser dada e dar seu objeto ligando-se aqui ao gnio
de uma lngua natural. Dito isso, se o essencial da filosofia no se aprende, suas formas particulares
devem ser aprendidas. Que a filosofia seja um dom no significa que cada um a possua sem exerccio.
6 Texto original francs: () La traduction fait toujours passer quelque chose dune langue lautre,
un sens, une argumentation, un raisonnement, une intuition, qui permet aux ides de circuler et de
prosprer dans une autre langue. (...) On pourrait dire ainsi que la traduction philosophique se situe un
degr intermdiaire de traductibilit entre, dune part, le discours potique et religieux dans lequel le
sens est consubstantiellement li aux mots, ce qui rend la limite toute traduction sacrilge, et, dautre
part, le discours scientifique qui en thorie, en droit, est totalement transposable dune langue lautre.
La traduction dun pome court toujours le risque dune perte (...), alors que la traduction dun texte
scientifique, dune dmonstration constitue une forme de validation, et contribue en renforcer le
caractre universel. Entre ces deux ples de la traductibilit , la philosophie semble se placer un stade
intermdiaire, dans la mesure o le texte original contient toujours un excdent de sens qui justifie quon
y revienne sans cesse, que sans cesse on tente de le retraduire, et o, en mme temps, lpreuve de la
traduction est plus que jamais dcisive. On peut mme dire que la traduction, pour un texte philosophique,
est un test irremplaable. Do cette double attitude, une idiosyncrasie parfois irritante des textes
philosophiques, qui consiste se rfrer frquemment des notions empruntes telles quelles la langue
source (Dasein, logos), sans pour autant renoncer lexplicitation et au commentaire, et donc
lappropriation et lacclimatation (par exemple Heidegger traitant de Logos , Moira et Altheia dans ses Essais et Confrences, Gallimard, 1958). 7 Com base nas contribuies de Derrida no campo da desconstruo, tambm houve nos estudos da traduo
uma abertura para trabalhos sobre o binmio traduo e desconstruo, um ramo que se desenvolveu no
Brasil notadamente a partir das pesquisas e publicaes realizadas por Rosemary Arrojo (1993).
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O aspecto propriamente artstico dessa cincia filosfica (Schelling a chama arte dialtica) no
pode, sem dvida, ser aprendido, mas podemos exercitar-nos nele8 (Derrida, 2005, p. 163).
Apoiando-se no filsofo alemo Friedrich Wilhelm Joseph Schelling (1775-1854), representante do idealismo alemo, Derrida ressalta ser a filosofia no apenas um
pendor artstico, mas simultaneamente uma ddiva da natureza humana inerente a determinados indivduos. Tal dom no poderia ser aprendido em sua essncia, mas seus domnios segmentados certamente poderiam ser apreendidos. O filsofo franco-
magrebino ainda afirma:
No se pode, portanto, separar filosofia e poesia, afirmao repetida por Schelling; devemos somente
traduzi-las uma na outra, mesmo se o potico (enraizado na particularidade de uma lngua) situa
aquilo mesmo que limita a tradutibilidade, que, apesar disso, ele reclama (Derrida, 2005, p. 161).
V-se, tambm aqui, uma tentativa de mostrar os laos que unem poesia e filosofia: aquela com suas razes fincadas no mago da lngua em que produzida, e esta, como saber essencial do gnio humano, realizada primeiramente como linguagem genrica e
universal, mas tambm passvel de ser pormenorizada em vocabulrios especficos e, por isto, de estar vinculada a linguagens igualmente particulares. Dentro dessa perspectiva,
o criar potico seria um dom que caberia a alguns humanos; e estes, em suas criaes, fariam uso dessa ddiva para exprimirem, atravs da poesia, seus sentimentos ntimos e
especficos. E tais sentimentos, por fim, poderiam qui ser alcanados por um grupo de leitores mais ou menos amplo e genrico, de acordo com cada situao dada.
Em uma obra dedicada a conceitos de filosofia, o jurista e filsofo Willis Santiago Guerra Filho, ao examinar o legado do sbio grego Anaximandro, sublinha a
conotao potica dos primeiros discursos filosficos:
Esse ltimo [Anaximandro], alis, teria sido o primeiro sbio grego (sophos) a dispensar a forma
versificada de organizar seu discurso, escrevendo em prosa. E no de se estranhar essa aliana
originria da filosofia com a poesia, levando em conta a tarefa atribuda ao poeta por um deles, dos
maiores de nossa poca, Stphane Mallarm: donner un sens plus pur aux mots de la tribu. Sim, porque
o nomear potico confere um sentido todo prprio s palavras, autentificando-as, de forma que elas
aparecem carregadas com a emoo que o poeta experimentou, na sua experincia direta e imediata da realidade. Cabe-lhe, portanto, compartilhar com os demais o que sente, subjetivamente, por ser o
que sentem tambm em relao ao dado objetivamente, mas no conseguem expressar de modo
inteligvel, intersubjetivamente (Guerra Filho, 1996, p. 42).
Nos destaques feitos em seu texto, Guerra Filho, apoiando-se agora em Mallarm, aponta o papel que a forma potica exercia nos primrdios do discurso filosfico grego.
Da se depreende que esta servia como canal auxiliar para que ocorresse um processo de comunicao intersubjetivo nas situaes em que, embora havendo fatos objetivos
comuns aos indivduos, no se lograva um discurso inteligvel; por conseguinte, era mister lanar mo das emoes atravs da criao potica. Outrossim, procedendo-se a
um cotejo dos gneros filosfico e potico, na busca de ressaltar as semelhanas existentes entre ambos, tambm se faz necessrio pensar no aspecto da beleza que tais
8 Traduo de Nicia Bonatti.
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textos originariamente possam ter, bem como no destino que se reservar ao Belo ao longo do processo de traduo. voz corrente que muito j se discutiu e se escreveu
sobre os esforos dispendidos para se tentar alcanar um equilbrio entre a manuteno do Belo e da fidelidade na traduo de textos literrios (p.ex. as belas infiis9). Essa questo tambm j foi objeto de registro por quem perscrutou o ato de traduzir pela tica
da verso de textos filosficos, como se pode ver a seguir:
Imagino, pois, uma forma de traduo que seja feia, como sempre o a cincia, que no tenha
pretenses de elegncia literria, que no seja fcil de ler, mas que seja muito clara, ainda que esta
clareza exija um grande nmero de notas de rodap. preciso que o leitor saiba de antemo que ao
ler uma traduo no estar lendo um livro literariamente belo, mas sim que estar fazendo uso de
um instrumento entediante, mas que verdadeiramente o far transmigrar para dentro desse pobre
Plato, que h quatro sculos se esforou, sua maneira, para manter-se na superfcie da vida10
(Ortega y Gasset, 2013, p. 68).
Como se pode depreender da passagem acima, o filsofo espanhol refere-se claramente
traduo de textos filosficos, mais especificamente a escritos de Plato vertidos por Schleiermacher, que para realizar seus trabalhos teria renunciado a fazer uma traduo
dita bela. Se, a partir desse caso ilustrativo, o Belo no parece ser o alvo principal a ser perseguido na verso de textos filosficos, necessrio refletir sobre qual deveria ser a preocupao maior subjacente a esse tipo de tarefa translatria:
Com efeito, o que realmente importa para o filsofo a verdade ou o significado; e como o
significado est antes ou alm da linguagem, da decorre ser ele traduzvel. A concepo da verdade
como a revelao do que est oculto, diferentemente da teoria da verdade como exatido ou
correspondncia, provavelmente a tarefa essencial da filosofia. A natureza da realidade e do
homem tanto oculta quanto revelada; ela tanto surge quanto deixa o campo de viso, no de forma
alternada, mas concomitante. Somente o pensar que est verdadeiramente envolvido, paciente e
disciplinado mediante longa prtica, pode vir a conhecer tanto a verdade oculta quanto revelada.
Verdade ou significado na filosofia, exatamente como na traduo, assume o papel de lder, e
consequentemente preciso ser capaz de estabelecer sua univocidade ou, seja como for, de dominar
sua plurivocidade. Se tal plurivocidade puder ser dominada, ento possvel a traduo, entendida
como transferncia ou transporte de um contedo semntico para outra forma significante. Neste
ponto, de certo modo poderamos dizer que no h filosofia, a menos que a traduo, neste ltimo
sentido, seja possvel. Portanto, a tese da filosofia a traduzibilidade nesse sentido razovel, isto ,
como transferncia de um significado de uma verdade de uma lngua para outra, sem que se produza
nenhum dano essencial11 (Amara, 1998, p. 51).
9 Cf. Domingues, Joo (2012). 10 Imagino, pues, una forma de traduccin que sea fea, como lo es siempre la ciencia, que no pretenda
garbo literario, que no sea fcil de leer, pero s que sea muy clara, aunque esta claridad reclame gran copia
de notas al pie de la pgina. Es preciso que el lector sepa de antemano que al leer una traduccin no va a
leer un libro literariamente bello, sino que va a usar un aparato bastante enojoso, pero que le va a hacer
de verdad transmigrar dentro del pobre hombre Platn que hace veinticuatro siglos se esforz a su modo
por sostenerse sobre el haz de la vida. 11 (...) As a matter of fact, what really matters for the philosopher is truth or meaning, and since meaning
is before or beyond language, it follows that it is translatable. The conception of truth as the revealing of
what is concealed, in distinction to the theory of truth as correctness or correspondence, is probably
philosophys essential task. The nature of reality and of man is both hidden and revealed; it both appears
and withdraws from view, not in turn but concomitantly. Only the thinking that is truly involved, patient
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No trecho acima, o professor e pesquisador da Universit di Cagliari salienta os traos
comuns compartilhados pela filosofia e pela traduo, j que ambas tm como alvo maior desvelar a verdade oculta. Suas atenes esto voltadas, pois, primeiramente para
a aletheia12, para o desvelamento, para a busca de retratar a verdade, a realidade como
ela realmente . No caso dos tradutores de textos filosficos, preciso que estes encontrem a frmula que lhes mostre o caminho da univocidade entre o texto-fonte e o
texto-alvo. preciso, portanto, escapar do risco de se perder nos labirintos de discursos polifnicos como tentativa de desvelar a realidade do texto de partida. Na lgica
tradutiva proposta por Amara, a transferncia ou o transporte de um contedo
semntico para outra forma significante consiste em traduzibilidade; para tanto,
preciso que esse processo ocorra de forma razovel e sem perdas e danos. Isto ocorrendo, satisfaz-se tese filosfica de traduzibilidade. Com relao a essa questo de univocidade e plurivocidade em textos poticos, observem-se abaixo as ideias
concebidas por Octavio Paz:
Cada palavra encerra certa pluralidade de significados virtuais; no momento em que a palavra se
associa a outras para constituir uma frase, um desses sentidos se atualiza e se torna predominante.
Na prosa a significao tende a ser unvoca, ao passo que, segundo j se disse com frequncia, uma
das caractersticas da poesia, talvez a cardinal, preservar a pluralidade de sentidos. Na verdade,
trata-se de uma propriedade geral da linguagem; a poesia a acentua, mas, atenuada, se manifesta
tambm na fala corrente e ainda na prosa13 (Paz, 1983, p. 65).
Admitindo-se que h, com base nas exposies supracitadas, certa confluncia de
interesses e alvos entre a filosofia e a poesia; salientando-se, alm disso, que a filosofia uma arte, uma arte de gnio regulada por uma intuio intelectual, ou seja, a filosofia tambm abraa um contexto esttico; e, por ltimo, assumindo-se que a filosofia
e a traduo tambm buscam desvelar o que est oculto, isto , a verdade ou significado na filosofia, exatamente como na traduo, assume o papel de lder, sero apresentados
a seguir, entre os preceitos terico-prticos de Ji Lev esboados em sua obra Umni pekladu14, alguns aspectos-chave, mediante os quais se analisaro algumas decises
and disciplined by long practice can come to know either the hidden or disclosed truth. Truth or meaning
in philosophy, just as in translation has the commanding role, and consequently one must be able to fix
its univocality or, in any case, to master its plurivocality. If this plurivocality can be mastered, then
translation, understood as the transfer or the transport of a semantic content into another signifying form,
is possible. At this point, we could say in a way that there is no philosophy unless translation in this latter
sense is possible. Therefore, the thesis of philosophy is translatability in this common sense, that is, as the
transfer of a meaning or a truth from one language to another without any essential harm being done. 12 No termo Aletheia (), h o prefixo negativo - e o substantivo (lthe), que significa esquecimento. 13 Cada palabra encierra cierta pluralidad de significados virtuales; en el momento en que la palabra se
asocia a otras para constituir una frase, uno de esos sentidos se actualiza y se vuelve predominante. En la
prosa la significacin tiende a ser unvoca mientras que, segn se ha dicho con frecuencia, una de las
caractersticas de la poesa, tal vez la cardinal, es preservar la pluralidad de sentidos. En verdad se trata
de una propiedad general del lenguaje; la poesa la acenta, pero, atenuada, se manifiesta tambin en el
habla corriente y an en la prosa. 14 As referncias contidas neste artigo sero feitas a partir da edio em lngua inglesa intitulada The Art of
Translation (2011), traduzida por Patrick Corness e editada por Zuzana Jettmarov.
336 Romo, T. L. C.. / Consideraes sobre a traduo brasileira de Die Idee des Guten zwischen Plato und Aristoteles
de Hans-Georg Gadamer luz de preceitos tericos de Ji Lev
The Art of translation: Ji Lev (19261967) y la otra historia de la Traductologa
Mutatis Mutandis Vol. 9, N. 2. 2016, pp. 328-347
tomadas na traduo brasileira do livro Die Idee des Guten zwischen Plato und Aristoteles,
do filsofo alemo Hans-Georg Gadamer.
2. Alguns aspectos terico-prticos da traduo literria segundo Ji Lev
Em seu livro The art of translation, Ji Lev aborda diferentes aspectos tericos, metodolgicos e, de certo modo, tambm prticos considerando-se os muitos exemplos
apresentados da traduo, mais especificamente da traduo literria, pois ilustra seus preceitos tericos com exemplos de verses de textos de prosa, teatro e poesia. Os
ensinamentos apreensveis a partir das consideraes feitas por Ji Lev inserem-se, portanto, inequivocamente na esfera da traduo literria. Porm, levando-se em conta o exposto na primeira parte deste captulo sobre a traduo dos gneros discursivos de
natureza filosfica e potica, os ensinamentos de Ji Lev certamente podero servir de guia, para que se apresentem em seguida algumas discusses sobre o cotejo de excertos originais do livro Die Idee des Guten zwischen Plato und Aristoteles e sua verso brasileira.
Aqui se parte do pressuposto de que tais excertos encerram desafios que muito se
assemelham aos obstculos normalmente enfrentados por tradutores literrios em geral
e de poesia em particular. Elencar-se-o, a seguir, alguns temas discutidos por Ji Lev, que sero usados como ferramentas para o debate sobre a traduo brasileira do livro de
Hans-Georg Gadamer.
2.1. Valores semnticos e contedo ideo-esttico do texto-fonte
Todo autor, ao criar e formular seu texto original a partir de material objetivo, normalmente alcana seu alvo mediante escolhas estabelecidas por ele segundo suas
idiossincrasias, suas noes estilsticas, estticas e ideolgicas. A este respeito, pondera o terico tcheco:
Uma obra de arte criada como resultado de seleo subjetiva e transformao da realidade objetiva;
para ser mais preciso, um determinado contedo ideo-esttico realizado atravs da verbalizao.
Aqui se devero distinguir duas coisas que frequentemente so confundidas: (1) o texto da obra e (2)
os valores semnticos do texto, que, por falta de um melhor termo, poderamos chamar de obra no
sentido estrito do termo15 (Lev, 2011, p. 25).
Como no ser possvel, por motivos de espao, pormenorizar extensamente as questes
referentes a valores semnticos e contedo ideo-esttico do livro de Gadamer, sero apresentados a seguir apenas alguns trechos ilustrativos que dizem respeito ao texto da
obra, mas tambm aos valores semnticos ressaltados subjetivamente pelo seu autor. Cumpre destacar, porm, que os termos gregos contidos no texto alemo, sendo este
claramente reconhecido como de natureza filosfica, trazem uma forte carga histrica e semntica, que precisa encontrar, tambm na traduo brasileira, correspondentes compatveis com o universo helnico de onde foram extrados. Neste caso bem
15 As the outcome of subjective selection and the transformation of objective reality, a work of art is created;
more precisely, a certain ideo-aesthetic content is realized in verbal material. Two different things which are
frequently confused should be distinguished here also: (1) the text of the work and (2) the semantics values of
the text, which for lack of a better term we might call the work in the narrow sense of the word.
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especfico, caberia tambm a mxima de Antoine Berman (2013, p. 25), segundo quem,
ao discorrer sobre a traduo e a letra, a tradutologia, mesmo no sendo uma filosofia da traduo, precisa fincar razes no pensamento filosfico. A seguir, sero
apresentados exemplos originais da obra de Gadamer e contrastados com os trechos traduzidos, seguidos de comentrios:
In der praktischen Philosophie geht es nicht um eine Idee des Guten oder um die Polis der
vollendeten Gerechtigkeit, auch wenn Aristoteles das Denkmittel eines idealen Staatsmodells in
seiner Politik nicht verschmht. Auf alle Weise geht es ihm um das Tunliche. So ist die wahre
Arche, wie er mit verblffender Radikalitt sagt, das Da ( EN 1095b6, 1098b2). Damit ist gemeint: es ist von der Praxis selbst auszugehen und dem in ihr lebendigen Bewutsein dessen, was
gut ist () (Gadamer, 1978, p. 95).
Na filosofia prtica, no se trata de uma ideia do Bem ou da plis da perfeita justia, mesmo que
Aristteles no desdenhe a ideia de um modelo de Estado ideal em sua Poltica. De qualquer
maneira, importa, para ele, o Oportuno. Desse modo, a verdadeira arkh, como chega a afirmar
com espantoso radicalismo, o que ( EN 1095b6, 1098b2). Com isso, quer dizer o seguinte: deve-se partir da prpria prtica e da conscincia nela viva daquilo que bom
() (Gadamer, 2009, p. 158).
Na concepo e realizao subjetiva de seu texto, Gadamer recorre a estratgias objetivas normalmente utilizadas na lngua alem para a redao de textos filosficos
em que h referncias a fontes, elementos, obras etc. da filosofia grega. Procedimento semelhante foi seguido, mutatis mutandis, pelo tradutor brasileiro. Observem-se os
diferentes usos que Gadamer faz, na lngua alem, de termos de origem grega, e os
correspondentes propostos pelo tradutor em portugus do Brasil:
a) Termo grego j aclimatado: Polis plis; b) Termo grego transliterado: Arche arkh;
c) Termo traduzido: Politik Poltica16;
d) Termo original: .
Como se pode concluir pelos exemplos, as estratgias seguidas pelo autor do original e
pelo tradutor foram idnticas, de modo que a verso brasileira tenta manter os valores semnticos e o contedo ideo-esttico, obedecendo ao modelo apresentado pelo filsofo
alemo. Diferenas h, sobretudo, no tratamento dado aos substantivos alemes, que 16 Note-se a diferena existente entre os exemplos contidos nos itens a) e c). Em relao aos exemplos
contidos em a), o termo grego , ao ser aclimatado respectivamente na lngua alem e no portugus brasileiro, simplesmente foi acomodado em cada novo mbito lingustico conforme as regras de transliterao vigentes em cada um dos idiomas. Desta forma, o vocbulo Polis contido no texto original
de Gadamer, forma transliterada em alemo do vocbulo grego , precisou ser vertido em portugus brasileiro como plis, para, deste modo, fazer jus s regras brasileiras de transliterao. Ressalte-se que os
termos aclimatados Polis/plis encontram-se inclusive dicionarizados em obras de consulta de vocabulrio
geral de ambos os idiomas, o que no ocorre com termos apenas transliterados ad hoc (como p.ex.
Arche/arkh). J em c), ao apresentarmos o exemplo Politik Poltica, cabe, aqui, recorrermos ao termo
grego original , que d ttulo ao livro de Aristteles. Como se pode depreender a partir deste raciocnio, na lngua alem simplesmente se traduz o termo como Politik, enquanto no portugus
brasileiro, por Poltica. Neste segundo caso no se trata, portanto, de uma mera obedincia a regras de
transliterao, mas sim de uma traduo literal do termo grego em cada uma das lnguas.
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sempre tm inicial maiscula, e nas respectivas transliteraes dos termos gregos, uma vez que estas devem fazer jus s normas prprias do respectivo idioma que acolhe os
termos estrangeiros. Para manter os mesmos valores de obra filosfica per se, a traduo
tambm conservou os termos grafados por Gadamer no alfabeto grego, atendendo
tambm expectativa de pblico-alvo a que a obra se destinava: leitores afeitos a esse tipo de contedo sofisticadamente filosfico.
2.2. A funcionalidade do texto-alvo
Em seus preceitos tericos, Ji Lev salienta o aspecto da funo que o texto traduzido deve assumir ao cabo do processo de traduo. Deve-se ressaltar aqui que
principalmente a partir dos anos oitenta, com o surgimento do livro Grundlegung einer
allgemeinen Translationstheorie [Fundamentao de uma Teoria Geral da Translao], da
autoria de Hans J. Vermeer e Katharina Rei (1984; 1991), surgiria um interesse maior pela questo da funo do texto de partida e do texto de chegada. Segundo a teoria do escopo concebida por Vermeer e Rei (1991, p. 29, p. 96), no processo translatrio deve-
se dar prioridade funcionalidade, funo, ao objetivo que encerra cada ao translatria. As ideias formuladas por Vermeer e Rei encontrariam seguidores, entre os
quais Christiane Nord, que elenca, em seu livro Textanalyse und bersetzen (1988),
diversos fatores externos e internos relevantes para a traduo. Vale destacar que
diferentes textos de Lev so citados nas referncias bibliogrficas de Vermeer & Rei e de Nord17. Sobre a funcionalidade do texto traduzido, Lev (2011) faz, entre outras, as
seguintes consideraes:
O processo de traduo no termina com a criao do texto traduzido; tampouco o texto dever ser
o alvo derradeiro do tradutor. Alm disso, uma traduo somente se torna funcional numa sociedade
quando lida. Novamente, agora pela terceira vez, transforma-se material objetivo subjetivamente;
atravs do texto da traduo, os leitores formam sua prpria (terceira) concepo da obra.
Primeiramente, o autor formou uma interpretao da realidade; em segundo lugar, o tradutor
formou uma interpretao da obra original, e em terceiro lugar o leitor formou uma interpretao da
traduo. Assim como o ponto de partida do tradutor no deveria ser o texto do original, mas os
valores ideolgicos e estticos que este contm, o objetivo do tradutor tambm no deveria ser um
texto, mas sim um certo contedo que o texto para comunicar ao leitor. Isso significa que o tradutor
dever levar em conta o leitor para quem a traduo est sendo escrita. Deste modo, por exemplo,
em uma traduo direcionada a crianas, ser dada mais ateno inteligibilidade da linguagem do
que em uma traduo para um crculo sofisticado de leitores, onde ser mais importante preservar
todas as sutilezas da fonte. O texto de uma pea ter de ser imediatamente compreensvel quando
ouvido. Ademais, muito do que no fosse apreendido em um texto literrio pode ser elucidado em
uma produo encenada18 (Lev, 2011, p. 30).
17 Vermeer & Rei fazem, por exemplo, esta citao: bersetzen ist Mitteilen. Genau gesagt entschlsselt der
bersetzer die Mitteilung, die in dem Text des Originalautors enthalten ist, und formuliert (chiffriert) sie in
seine Sprache um. (Levy, 1969, p. 33) [ Traduzir comunicao. Mais precisamente, o tradutor decodifica a
mensagem contida no texto do autor original e reformula-a (codifica-a) em sua prpria lngua]. 18 The process of translation does not end with the creation of the translated text; nor should the text be
the translators ultimate goal. A translation, too, becomes functional in the society only when it is read.
Once again, for the third time now, objective material is subjectively transformed; through the text of the
translation, readers form their own (third) conceptions of the work. Firstly the author formed an
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Considerando-se as palavras de Lev relativas ao momento em que est concluda a
traduo, legtimo afirmar que a traduo brasileira de Die Idee des Guten zwischen Plato
und Aristoteles foi realizada com um olhar voltado para o leitor final da edio brasileira,
que, como j se deu a entender acima, no seria um pblico leigo. Para cumprir sua tarefa, o tradutor estava preocupado no apenas com o texto em si, mas com um certo
contedo que o texto e que deveria comunicar ao leitor. E nessa sua tarefa tentou ater-se tambm a certas sutilezas contidas no texto. Veja-se o trecho original do livro de Gadamer e o trecho correspondente na verso brasileira:
Es hngt wohl damit zusammen, da Plato nur den Ausdruck , nie fr das gebraucht. Denn wenn auch die Austauschbarkeit beider Worte im damaligen Griechisch wie im
Sprachgebrauch der Philosophen nicht zu leugnen ist, da Plato nie vom redet, zeigt an, da der Idee des Guten ein eigentmlicher Charakter zukommt. meint immer nur das Objekt, wie es dem Neutrum entspricht. Die Femininform dagegen kann zwar, wie oder , dem natrlichen Objektivismus unseres Denkens folgend, ebenfalls das Objekt bezeichnen, lt aber im Anblick das Blicken strker mit anklingen als das Aussehen, und so
liegt nicht so sehr der Anblick des Guten als der Ausblick auf das Gute hin, wie die zahlreichen Wendungen des etc. zeigen (Gadamer, 1978, p. 20s.).
Com certeza existe uma relao com o fato de Plato utilizar apenas a expresso , nunca , para o . Afinal de contas, embora no se possa negar a permutabilidade entre essas duas palavras no grego da poca e no uso da lngua pelos filsofos, o fato de Plato nunca falar de indica que conferida ideia do Bem um carter singular. O termo sempre se refere apenas ao objeto, correspondendo ao gnero neutro. Por sua vez, a forma feminina , da mesma maneira que ou , embora tambm possa caracterizar o objeto seguindo o objetivismo natural de nosso pensamento, deixa soar mais forte no termo alemo Anblick a ao de
Blicken do que no termo Aussehen; e dessa forma em encontra-se menos a Anblick do Bem que a Ausblick* (olhar) em direo ao Bem, como mostram as inmeras expresses do
(sic!) etc. (Gadamer, 2009, p. 29).
Graas s peculiaridades semntico-morfolgicas existentes na obra de Gadamer com respeito a termos alemes compostos por prefixao, o tradutor resolveu recorrer a uma
nota de rodap. importante adiantar que a lngua de Goethe possui uma incontestvel
flexibilidade para compor vocbulos por prefixao, que abrigam grandes e muitas
vezes decisivas sutilezas semnticas. Ao recorrer nota explicativa, o tradutor o fez pensando no consumidor final da obra de Gadamer em portugus do Brasil. Seu foco
era esse determinado leitor brasileiro afeito a textos filosficos, e tambm tinha conscincia de que, por um lado, o texto de Gadamer ostentava um contedo muito
interpretation of reality; secondly thee translator formed an interpretation of the original work and thirdly
the reader formed an interpretation of the translation. Just as the translators point of departure should be
not the text of the original but the ideological and aesthetic values it contains, so also the translators goal
should be not a text but a certain content which the text is to communicate to the reader. This means that
the translator has to take into account the reader for whom the translation is written. Thus, for example,
in a translation intended for a childrens publication, more attention will have to be given to the
intelligibility of the language than in a translation for a sophisticated readership, where it will be more
important to preserve all the subtleties of the source. The text of a play must also be immediately
intelligible when heard. Also, much that would not be apprehended in a literary text can be elucidated in
a stage production.
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denso. Isso se devia no apenas temtica, mas tambm ao frequente recurso aos termos gregos transliterados, aclimatados ou mantidos no original helnico. O tradutor tambm
se deu conta, por outro lado, de que no poderia operar com termos correspondentes em portugus do Brasil para tentar realizar os mesmos malabarismos que o autor original conseguiu ao trabalhar com os termos Anblick, Blicken, Aussehen e Ausblick. Assim
pensando, usou como recurso a seguinte nota do tradutor, dirigindo-se aos leitores:
H.-G. Gadamer recorre aqui riqueza semntico-morfolgica das seguintes palavras alems: blicken
= ver, olhar, mirar; Anblick = vista, aspecto, quadro (vista ou viso que est na superfcie do objeto);
Aussehen (aparncia, aspecto); Ausblick = vista, panorama (vista ou viso a partir do objeto em direo
a algo) (Gadamer, 2009, p. 29).
Como se pode ver no cotejo dos dois trechos mais acima, ocorreu, na edio brasileira,
uma falha de grafia do vocbulo , que foi equivocadamente substitudo por . Se no implica necessariamente em significativo atentado contra os valores semnticos
do texto, de certo modo influi no mnimo negativamente no contedo esttico da obra lanada no Brasil.
2.3. Condicionamento lingustico, forma lingustica e contedo ideo-esttico
Conforme o ponto de vista defendido por Lev (2011, p. 29), o grau de
condicionamento lingustico de uma obra varia de autor para autor, dependendo tambm da natureza da prpria obra. Quanto mais intenso o condicionamento
lingustico, mais problemtica se torna a traduo19. No caso do livro objeto deste estudo, j ficou claro que se trata de um texto filosfico exigente, em que o autor original recorre a diferentes termos gregos retirados da filosofia clssica, alm de produzir alguns
jogos de palavras e de sentidos entre termos gregos e vocbulos alemes. Examinem-se tambm estas palavras de Lev:
A estreita relao entre a verbalizao e uma ideia, entre um texto e seu contedo, no deveria faz-
los ser considerados idnticos, porque isso significaria a perda das prprias relaes entre forma
lingustica e contedo que so fundamentais para a traduo. vital fazer uma distino entre forma
lingustica e seu valor ideolgico e esttico. A tarefa do tradutor traduzir o contedo ideo-esttico,
para o qual o texto apenas o veculo. Como o prprio texto condicionado pela lngua em que a
obra est estilizada, muitos valores precisam ser expressos na traduo de diferentes modos de
verbalizao20 (Lev, 2011, p. 26).
19 The extent of the linguistic conditioning of a work varies from author to author, depending also on the
nature of work itself. The more intensive the linguistic conditioning, the more problematical translation
becomes. 20 The close relationship between a verbal expression and an idea, between a text and its content, should
not cause them to be considered identical, because this would mean the loss of those very relationships
between linguistic form and content which are fundamental to translation. It is vital to distinguish
linguistic form from its ideological and aesthetic value. The task of the translator is to translate the ideo-
aesthetic content, for which the text is merely the vehicle. Because the text itself is conditioned by the
language in which the work is stylised, many values have to be expressed by different verbal means in
translation.
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Para alm da problemtica dos termos gregos e seus possveis correspondentes alemes,
Gadamer ainda traz tona outro contedo ideo-esttico embutido em uma forma lingustica muito especial. O filsofo alemo emprega termos gregos que encontram
correspondentes na lngua alem, ressaltando-se que eles mantm entre si certas semelhanas no tocante sua etimologia. Para o leitor alemo, trata-se, nesse caso, de uma feliz coincidncia, que por certo se deve aos laos indo-europeus ainda
relativamente presentes nas razes ou na estrutura morfolgica dos termos de ambas as lnguas. Ocorre que o tradutor brasileiro se viu em uma aporia perante alguns desses
exemplos, pois a mesma relao no se mostra to presente na relao entre os idiomas
grego e portugus. Viu-se ento compelido a fazer uma mediao lingustica triangulada,
pensando em assim facilitar o caminho da compreenso para os leitores brasileiros. A ttulo de ilustrao, tomem-se estes trechos:
In dieser Richtung enthlt bereits der Phaidros einen entscheidenden Wink, wenn er in seinem
groen Mythos ber die gttliche Gabe des Eros der Schnheit eine besondere Auszeichnung
verleiht: sie ist das Einzige, was etwas von dem alten Glanz der Idee auch nach dem Sturz in diese
Erdenwelt bewahrt. Sie leuchtet hier bei uns auf. Sie ist am meisten herausleuchtend und am meisten
zur Liebe reizend ( , Phaidros 250c1). Sie weckt so in dem Liebenden das Verlangen und die Sehnsucht nach dem Hheren. Das ist natrlich keine
begriffliche Antwort auf das Problem der Teilhabe des Einzelnen am Allgemeinen. Aber es ist doch
eine bedeutsame Auszeichnung des Schnen, da es herausscheint. Denn das heit ja, da es im
Sichtbaren darin ist. In der Tat ist das Schne, das das Geliebte ist, in eminentem Grad reine
Schnheit. Es steht in der vollsten Sichtbarkeit seines Glanzes. Schnsein heit ja berhaupt: sich
sehen lassen knnen (vgl. ber das Hliche Philebos 65e). So begreift sich auch vom Phaidros
her der Sinn des Satzes, da das, was das Gute zu sein vermag, seine Potenz, im Schnen seine
Erscheinungsweise hat. Es ist von sich aus, seiner eigenen Natur nach ( Phaidr. 250d7)21 Erscheinen, Aufscheinen, Herausscheinen () (Gadamer, 1978, p. 71).
Nesse sentido, o Fedro j d um aceno decisivo nessa direo quando, em seu grande mito sobre o
dom divino de Eros, empresta um destaque especial beleza: ela a nica que mantm algo do
antigo brilho da ideia, mesmo aps a queda nesse mundo terreno. Ela cintila aqui entre ns. a mais
reluzente e mais encantadora para o amor ( , Fedro 250c1). Desperta nos amantes o anseio e o desejo pelo mais sublime. Isso certamente no uma resposta conceptual
ao problema da participao do individual no geral. Mas j um destaque significativo do Belo, seu
evidenciar-se. Pois isso significa, na verdade, que est contido no visvel. Com efeito, o Belo que
o Amado a pura Beleza em grau eminente. Encontra-se na mais perfeita visibilidade de seu brilho. Afinal de contas, Ser-Belo significa: poder deixar-se ver (cf. acerca do Feio, Filebo 65e). Dessa
maneira, a partir do Fedro, tambm se entende o sentido da frase segundo a qual o que o Bem pode
ser tem sua potncia, tem sua forma de manifestao no Belo. , por si s, consoante sua prpria
natureza, surgir, cintilar, reluzir () (Gadamer, 2009, p. 117).
Perscrutando-se o trecho acima, nota-se que h no contedo alemo uma srie de
palavras que giram em torno dos sentidos de parecer e brilhar. Tais vocbulos so usados por Gadamer no contexto acima partir da noo contida no vocbulo
(o mais reluzente), que em sua origem derivado de / 22 (fazer brilhar, encher de luz, alumiar, fazer aparecer, tornar visvel, brilhar, luzir surgir,
21 Observe-se que se cometeu o lapso de no fazer constar na edio brasileira a seguinte informao contida
no original: ( Phaidr. 250d7). 22 Cf. Malhadas, 2010, p. 195. Obs.: Etimologicamente, est presente na palavra fenmeno em portugus.
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vir ao mundo, parecer, ser manifesto etc.). Saliente-se que os verbos correlatos em alemo tm a mesma raiz schein- (scheinen, erscheinen), o que no ocorre em portugus,
como mostra a nota do tradutor que foi utilizada na verso brasileira: Em alemo, todos os termos usados por H.-G. Gadamer nesse contexto tm uma raiz verbal comum
oriunda do verbo scheinen, que significa brilhar, parecer (Gadamer, 2009, p. 117).
2.4. Minimizao de dificuldades
No texto original de Gadamer, como j se viu em exemplos anteriores, apresentam-se algumas dificuldades relativas aos valores semnticos e contedos ideo-estticos que
precisaram ser minimizadas durante o processo tradutivo, para que pudesse acontecer a dupla concretizao do contedo objetivo da obra. Em um trecho especfico, Lev trata
da questo da minimizao de dificuldades por parte do tradutor:
Em suma, o cerne das questes relativas ao processo atravs do qual uma traduo criada reside
na inter-relao entre trs entidades representantes de totalidades estruturais: (a) o contedo objetivo
do trabalho e sua dupla concretizao da maneira como realizada pelo (b) leitor do original e (c)
pelo leitor da traduo respectivamente. As trs estruturas diferenciar-se-o de certo modo entre si,
dependendo especificamente do grau de envolvimento dos dois fatores diferenciadores de sua
constituio (isto , as lnguas e a conscincia social dos dois crculos de leitores). A minimizao
dessas dificuldades a preocupao essencial do tradutor, e as principais questes tericas surgem a
partir da tentativa de analisar ou at mesmo definir em termos normativos as inter-relaes entre as
trs entidades23 (Lev, 2011, p. 30s).
Um exemplo flagrante desse tipo de ao que se espera seja adotada por parte do tradutor
pode ser constatado na seguinte nota de rodap escrita pelo prprio autor original e, no contraste, na verso brasileira da nota, ampliada por uma explicao bastante
elucidativa:
50 Dies Un-Wort, das besser als jeder andere Ausdruck fr den hier entscheidenden Punkt trifft, hat W. Schadewald vorgeschlagen (Gadamer, 1978, p. 101).
50 Esta palavra inexistente (em alemo: Bestheit = melhoridade), que aqui alcana, melhor do que
qualquer outro termo, o alvo decisivo para a traduo de , foi sugerida por W. Schadewald. (N. do T.: Para conservar a possibilidade do neologismo, evitou-se utilizar o termo excelncia, que se encontra na traduo brasileira de tica a Nicmaco [trad. Mrio da Gama Kury, Editora da
UnB, 2001], criando-se o termo melhoridade, que segue literalmente a construo neolgica do
termo alemo.) (Gadamer, 2009, p. 168s.)
Verifica-se que na traduo da nota de Gadamer o tradutor acrescentou uma explicao sobre os motivos que o levaram, tambm ele, a criar um neologismo, embora soubesse
23 In summary, the crux of the issues regarding the process by which a translation is created lies in the
interrelationship between three entities representing structural wholes: (a) the objective content of the work
and its twofold concretisation as performed by (b) the reader of the original and (c) the reader of the
translation respectively. The three structures will differ from one another somewhat, depending in
particular on the extent of involvement of two differentiating factors in their constitution (i.e. the languages
and the social consciousness of the two readerships). The minimization of these difficulties is the
translators cardinal preoccupation, and the main theoretical issues arise out of the quest to analyse or
even define in normative terms the interrelationships between the three entities.
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da existncia, em uma verso brasileira j consagrada do livro tica a Nicmaco, de uma
traduo para o termo , a que muitos j se afeioaram. Se houve uma maximizao do trabalho do tradutor, por outro lado, ele conseguiu, com sua estratgia, fazer o leitor brasileiro perceber algo semelhante quilo apreendido pelo leitor alemo ao se deparar
com o termo Bestheit.
2.5. Reestilizao do texto-fonte
Ao abordar a questo da estilizao em textos-alvo, Boase-Beier (2011, p. 5) considera que o estilo na traduo dever ser considerado a partir de pelo menos quatro pontos de
vista potenciais:
i) O estilo do texto-fonte como uma expresso das escolhas do autor; ii) O estilo do texto-fonte em seus efeitos sobre o leitor (e sobre o tradutor como
leitor);
iii) O estilo do texto-alvo como uma expresso de escolhas feitas por seu autor (que o tradutor);
iv) O estilo do texto-alvo em seus efeitos sobre o leitor24.
As ideias de Lev podem ser entendidas como aspectos complementares queles
considerados por Boase-Beier, como se verificar a seguir:
Do autor original esperamos uma estilizao artstica da realidade, e do tradutor esperamos uma
reestilizao da fonte. Tradutores conseguem, com a maior facilidade, empregar seu talento na
estilizao lingustica, de modo que o dom do estilo aquilo de que mais necessitam. Questes
lingusticas na traduo esto relacionadas principalmente aos seguintes aspectos:
1. A inter-relao entre os dois sistemas lingusticos; 2. Vestgios da lngua do original na estilizao da traduo;
3. Tenses no estilo da traduo decorrentes de transformaes de ideias na lngua-alvo diferentemente do modo como foram concebidas na lngua-fonte25 (Lev, 2011, p. 47s.).
Recorrendo-se s explanaes de Lev e de Boase-Beier, lcito afirmar que alguns dos exemplos precedentes, retirados do texto original de Gadamer e de sua traduo brasileira,
apresentam exemplos da reestilizao do texto-fonte que tm impacto direto sobre os leitores da traduo. Dentre tais exemplos, mencione-se a utilizao das notas explicativas
sobre as questes semntico-etimolgicas comuns ao grego e ao alemo. Aqui tambm caberia como ilustrao o seguinte trecho alemo com sua respectiva traduo:
24 i) The style of the source text as an expression of its authors choices; ii) The style of the source text in its
effects on the reader (and on the translator as reader); iii) The style of the target text as an expression of
choices made by its author (who is the translator); iv) The style of the target text in its effects on the reader. 25 From the original author we expect an artistic stylization of reality, and from the translator we expect
an artistic re-stylisation of the source. Translators can most readily apply their talent to linguistic
stylisation, so the gift of style is what they need above all. Linguistic issues in translation relate principally
to the following: 1. The interrelationship between the two language systems; 2. Traces of the language of
the original in the stylisation of the translation; 3. Tensions in the style of the translation arising out of the
rendering of ideas in a language other than in which they were conceived.
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de Hans-Georg Gadamer luz de preceitos tericos de Ji Lev
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So ist die wahre Arche, wie er mit verblfffender Radikalitt sagt, das Da ( EN 1095b6, 1098b2). Damit ist gemeint: es ist von der Praxis selbst auszugehen und dem in ihr lebendigen
Bewutsein dessen, was gut ist () (Gadamer, 1978, p. 95).
Desse modo, a verdadeira arkh, como chega a afirmar com espantoso radicalismo, o que ( EN 1095b6, 1098b2). Com isso, quer dizer o seguinte: deve-se partir da prpria prtica e da
conscincia nela viva daquilo que bom () (Gadamer, 2009, 158).
Na reestilizao do trecho acima, o tradutor viu-se obrigado a recorrer a uma nota de
rodap, a fim de explicar o sentido de = Da, para que o leitor brasileiro tivesse certeza do verdadeiro sentido do que abordado no texto, j que o vocbulo que em
portugus bastante polissmico. Eis a nota do tradutor utilizada: O que a que se refere Gadamer a conjuno integrante que (em alemo, dass/da). Ainda em
outro trecho o tradutor tambm utiliza uma nota explicativa para apoiar a reestilizao do texto original, j que um determinado termo em portugus (o vocbulo comum)
poderia gerar algum problema de compreenso:
Schwierig steht es mit dem zweiten Argument (1218a1-15). Hier kann der Text von EE nicht in
Ordnung sein. Es geht darum, da das Gute kein Gemeinsames und Frsichseiendes sein kann
( ) (Gadamer, 1978, p. 84).
A dificuldade toma forma em relao ao segundo argumento (1218a1-15). Aqui o texto da EE pode
no estar em ordem. Trata-se do fato de o Bem no poder ser Comum* e Essente-Para-Si ( ) (Gadamer, 2009, p. 139).
A nota do tradutor utilizada para dirimir o problema destacado no trecho acima foi esta:
O termo comum usado aqui e nas pginas seguintes desse texto no sentido de pertencente maioria, a todos os seres ou coisas e no no sentido de usual, habitual,
ordinrio. Frise-se que o termo do original (Gemeinsames) no gera nenhum
problema de polissemia em alemo. Quanto ao termo , proveniente do verbo (colocar parte; separar uma coisa; afastar-se, distanciar-se etc.; cf. Malhadas et al. 2010, p. 255), pode ser traduzido como que existe separadamente; separado; abstrato.
Note-se que o termo correspondente em alemo e utilizado por Gadamer em forma
substantivada Frsichseiendes, um termo concebido conforme os modelos de construo
vocabular usados notadamente por Heidegger e Gadamer. O tradutor, neste caso, tomou a liberdade de seguir, em portugus do Brasil, a mesma construo do termo alemo, recorrendo, para tanto, ao termo marcadamente latino essente26.
3. Consideraes finais
Considerando-se que traduzir filosofia pode ser entendido como desvelar a verdade oculta; que traduzir um texto filosfico um teste insubstituvel; que a filosofia uma arte de gnio, uma ddiva regulada por uma intuio intelectual; que a poesia e a filosofia tm
uma aliana originria milenar; que a tese da filosofia a traduzibilidade em um sentido
26 Com relao ao adjetivo , , , aqui em sua forma nos 3 gneros, verifique-se tambm seu significado no Dicionrio Liddell & Scott: http://perseus.uchicago.edu/cgi-
bin/philologic/getobject.pl?c.82:6:178.LSJ (ltimo acesso em 26/09/2016).
http://perseus.uchicago.edu/cgi-bin/philologic/getobject.pl?c.82:6:178.LSJhttp://perseus.uchicago.edu/cgi-bin/philologic/getobject.pl?c.82:6:178.LSJ
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razovel de transferncia de significados de uma lngua para outra; que a verdade ou o
significado tanto na filosofia quanto na traduo assume um papel de lder; ento lcito afirmar que sem sombra de dvidas existem muitos pontos em comum entre a traduo
de textos filosficos e a traduo de textos literrios. E isto ocorre, embora tambm ainda imperem, entre os estudiosos envolvidos nessas dessas duas reas do agir tradutrio, diferentes ideias sobre como abordar, por exemplo, questes referentes univocidade e
plurivocidade nos dois gneros discursivos em questo, e sobre como lidar com a manuteno do Belo e com a busca de fidelidade durante o ato tradutrio em ambos os
campos. Afinal de contas, se no h um nico discurso filosfico reinante, assim como
tambm no h uma nica teoria da traduo predominante, existem grandes margens de
possibilidades reais para a confluncia de interesses entre esses dois importantes campos da criao e da recriao de textos, e notadamente no domnio da traduo e da crtica de traduo de textos desses dois gneros discursivos.
Com base nesses pressupostos, fez-se uma incurso na obra The Art of Translation, da
autoria de Ji Lev, e mediante alguns recortes selecionados foi possvel recorrer a alguns dos muitos conceitos e preceitos tericos, prticos e metodolgicos abordados pelo terico tcheco no mbito da traduo literria. Com a ajuda desses conceitos e preceitos, foi igualmente possvel examinar algumas estratgias empregadas no processo
tradutrio da obra Die Idee des Guten zwischen Plato und Aristoteles, de Hans-Georg
Gadamer, que originou a verso brasileira intitulada A ideia do Bem entre Plato e
Aristteles, realizada pelo autor deste artigo. Durante esse exame, recorreu-se, portanto,
a uma parte do arcabouo terico de Ji Lev e, no recorte proposto neste artigo, foram apresentados e comentados os seguintes aspectos dignos de relevncia: a) valores
semnticos e contedo ideo-esttico do texto-fonte; b) funcionalidade do texto-alvo; c) condicionamento lingustico, forma lingustica e contedo ideo-esttico; d) minimizao
de dificuldades; e por ltimo e) reestilizao do texto-fonte. Por meio do cotejo entre trechos do texto-fonte e do texto-alvo, logrou-se examinar, luz desses conceitos e
preceitos propostos por Ji Lev, a utilizao, por parte do tradutor da obra de Gadamer, de diferentes estratgias tradutrias: a) notas do tradutor; b) explicaes
inseridas diretamente no corpo do texto-fonte ou em notas do texto-fonte; e c) certos malabarismos semnticos em diversas perspectivas lingustico-culturais.
Uma vez realizado o exame proposto neste trabalho, pde-se concluir que os fundamentos tericos, metodolgicos e prticos concebidos e debatidos em The Art of
Translation, e inequivocamente ilustrados por Ji Lev mediante trechos de obras literrias cotejados em diferentes lnguas-fonte e lnguas-alvo, tambm se prestam para perscrutar o caminho percorrido durante a traduo de uma obra claramente inserida no
gnero e no discurso filosfico.
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