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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa Universidade Federal da Paraíba 15 a 18 de agosto de 2017 ISSN 2236-1855 2695 CONSTRUINDO AS REDES DE SOCIABILIDADES NA TRAJETÓRIA E OBRA DE PRIMITIVO MOACYR 1 Raphael Ribeiro Machado 2 Rosana Areal de Carvalho 3 Nos últimos anos temos nos debruçado sobre os caminhos percorridos por Primitivo Moacyr ao longo de sua vida bem como de sua obra, a fim de entender sua inserção no universo da História da educação, do pensamento educacional e suas contribuições para a Historiografia da Educação. Perguntas inúmeras foram levantadas: como ele trabalhou suas fontes? Ele se perguntava ou apresentava alguma anotação sobre seu trabalho metodológico? Como ele se considerava: um escritor de histórias? Um arquivista? Um historiador? Jornalista? Um intelectual? Outras perguntas levantavam hipóteses sobre a produção, circulação e apropriação de sua obra. Ainda, questionamentos sobre seu itinerário e trajetória de vida, formação acadêmica, casamento, amizades, enfim, perguntas sobre como ele vivera sua vida e se constituíra como um dos primeiros produtores de obras sobre a História da Educação Brasileira. Estas perguntas e muitas outras ainda não foram esgotadas. Nem todas as questões históricas são respondidas, como já sabemos, mas as que conseguimos alcançar êxito estiveram em torno do olhar metodológico com o qual privilegiamos as nossas análises. Decidimos encarar a vida e a obra de Primitivo Moacyr como fonte e como objeto, seguindo os rastros teóricos de Sirinelli e Ângela de Castro Gomes, a fim de encontrarmos a trajetória de vida bem como a construção de suas redes de sociabilidades ao qual o intelectual se inseria e utilizava em suas relações sociais e profissionais como um todo. A trajetória de Primitivo Moacyr nos abriu um campo de possibilidades para a construção das redes de sociabilidades, pois nela encontramos os locais de atuação profissional, circulação social, os laços de amizade e os contatos diversos que uma vida na cidade do Rio de Janeiro, no início do século XX, poderia trazer para um sujeito dessa estirpe. Dentro dessas possibilidades privilegiamos, para este texto, a apresentação de alguns dados coletados e esmiuçados sobre a presença de Primitivo Moacyr nas revistas e jornais 1 Este trabalho conta com o apoio da FAPEMIG e do CNPq. 2 Mestre em Educação pelo CEFET-MG, professor das redes municipal de Ouro Branco e estadual de Minas Gerais. E-Mail: <[email protected]>. 3 Doutora em Ciências Humanas pela USP; professora associada do Departamento de Educação da Universidade Federal de Ouro Preto. E-Mail: <[email protected]>.

CONSTRUINDO AS REDES DE SOCIABILIDADES NA TRAJETÓRIA E OBRA DE … · 2018-04-02 · seguindo os rastros teóricos de Sirinelli e Ângela de Castro Gomes, a fim de ... profissional

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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 2695

CONSTRUINDO AS REDES DE SOCIABILIDADES NA TRAJETÓRIA E OBRA DE PRIMITIVO MOACYR1

Raphael Ribeiro Machado2

Rosana Areal de Carvalho3

Nos últimos anos temos nos debruçado sobre os caminhos percorridos por Primitivo

Moacyr ao longo de sua vida bem como de sua obra, a fim de entender sua inserção no

universo da História da educação, do pensamento educacional e suas contribuições para a

Historiografia da Educação. Perguntas inúmeras foram levantadas: como ele trabalhou suas

fontes? Ele se perguntava ou apresentava alguma anotação sobre seu trabalho metodológico?

Como ele se considerava: um escritor de histórias? Um arquivista? Um historiador?

Jornalista? Um intelectual? Outras perguntas levantavam hipóteses sobre a produção,

circulação e apropriação de sua obra. Ainda, questionamentos sobre seu itinerário e trajetória

de vida, formação acadêmica, casamento, amizades, enfim, perguntas sobre como ele vivera

sua vida e se constituíra como um dos primeiros produtores de obras sobre a História da

Educação Brasileira. Estas perguntas e muitas outras ainda não foram esgotadas. Nem todas

as questões históricas são respondidas, como já sabemos, mas as que conseguimos alcançar

êxito estiveram em torno do olhar metodológico com o qual privilegiamos as nossas análises.

Decidimos encarar a vida e a obra de Primitivo Moacyr como fonte e como objeto,

seguindo os rastros teóricos de Sirinelli e Ângela de Castro Gomes, a fim de encontrarmos a

trajetória de vida bem como a construção de suas redes de sociabilidades ao qual o intelectual

se inseria e utilizava em suas relações sociais e profissionais como um todo. A trajetória de

Primitivo Moacyr nos abriu um campo de possibilidades para a construção das redes de

sociabilidades, pois nela encontramos os locais de atuação profissional, circulação social, os

laços de amizade e os contatos diversos que uma vida na cidade do Rio de Janeiro, no início

do século XX, poderia trazer para um sujeito dessa estirpe.

Dentro dessas possibilidades privilegiamos, para este texto, a apresentação de alguns

dados coletados e esmiuçados sobre a presença de Primitivo Moacyr nas revistas e jornais

1 Este trabalho conta com o apoio da FAPEMIG e do CNPq. 2 Mestre em Educação pelo CEFET-MG, professor das redes municipal de Ouro Branco e estadual de Minas

Gerais. E-Mail: <[email protected]>. 3 Doutora em Ciências Humanas pela USP; professora associada do Departamento de Educação da Universidade

Federal de Ouro Preto. E-Mail: <[email protected]>.

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brasileiros na primeira metade do século XX, necessários para a construção da trajetória de

vida e das redes de sociabilidades. Estas revistas e jornais nos mostraram que a atuação

profissional e social de Primitivo Moacyr ia muito além das salas do Congresso Brasileiro –

enquanto redator da casa – e da sua produção historiográfica.

Construindo nosso aparato metodológico

Em primeiro lugar, nos pareceu evidente as incursões da obra e da figura de Primitivo

Moacyr na História da Educação brasileira, bem como na própria História do Brasil. Se a

educação fora lócus importante para a disseminação e efetivação de um modelo de Estado

nas décadas de 1930 e 1940, seu papel deve ser destacado, tanto pela obra que produziu

quanto por ser sujeito atuante na construção da história educacional nacional. Por isso,

entender o caminho de vida, suas redes de sociabilidades, mostraria o lugar de fala do

intelectual, o local da escolha das fontes, dos meios discursivos, de sua condição de sujeito

que, como redator na Câmara dos Deputados, além de organizar e sistematizar arquivos e

fontes publicou livros por destacadas instituições e desfrutou de amizades influentes.

Trajetórias são importantes para traçarmos um panorama de vida de um sujeito. No

caso de Primitivo Moacyr é importante para localizarmos o sujeito nos diversos momentos de

sua vida, buscando delinear as redes de sociabilidades a partir das relações estabelecidas por

ele.

De início, encontramos algumas informações no trabalho monográfico de Guaraci

Melo, no qual explorou a rede de relações e a vida social de Moacyr, buscando entender, por

um lado, sua ausência no Manifesto dos Pioneiros da Educação (1932) e, por outro lado, sua

relação com o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro - IHGB. Luiz Antônio Oliveira, na

tese defendida em 2014, utilizando a imprensa como base de pesquisa, esboçou um sujeito

ativo e articulado. Em consonância a esses trabalhos buscamos delinear o perfil e a trajetória

de Primitivo Moacyr, utilizando fontes menos usuais, como as revistas de entretenimento.

Entendendo-o como intelectual, buscamos pelo lugar de Primitivo Moacyr na sociedade

carioca e brasileira, entrelaçado aos debates próprios do campo. Para Carlos Vieira (2015) a

identidade social dos intelectuais está inegavelmente associada ao gosto e à familiaridade

com a cultura, mas também ao sentimento de missão ou de dever social. Em outras palavras

no enfoque que propomos, não basta ser sábio e erudito para ser identificado como intelectual, pois o intelectual é aquele que mobiliza o seu prestígio como especialista em favor de causas públicas, muitas delas completamente distantes das suas especialidades. Ainda que a educação e a pedagogia tenham dimensões técnicas, práticas e teóricas próprias, parte significativa

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das discussões que perpassam essas áreas estão associadas aos impactos produzidos pelos investimentos educacionais na sociedade. Nessa chave de leitura, o debate educacional ultrapassa o espaço dos especialistas, para se constituir em questão pública e política, estratégia para pensar as relações sociais em sentido ampliado (VIEIRA, 2015, p.8)

Ainda sobre o perfil do intelectual, mobilizamos a ideia/conceito proposta por Sirinelli:

o intelectual como produtor de conhecimento e mediador social e cultural. Os caminhos

metodológicos utilizados por este autor nos instigaram como referência analítica sobre o

caminho documental a ser perseguido. A ação dos intelectuais que é política estaria inscrita

na curta duração, se estendendo para a média ou até mesmo longa por meio de seus legados

intelectuais podendo, assim, influir nos acontecimentos em diferentes durações do tempo

caracterizando-os como elementos detentores de poder. Por isso mesmo as perguntas da

História dos Intelectuais, por sua vez, são de como as ideias vem a estes intelectuais, como

aparecem em determinada data, porque alguns permanecem na penumbra e outros não.

Sirinelli defende que a cultura política é apenas, em parte, elaborada pelo meio intelectual,

com o qual, algumas vezes, está de acordo (Sirinelli, 1996, p.237). Nesse sentido uma tradição

política compõe um grupo maior que é a cultura política.

Pode-se pensar a relação entre História Intelectual e História das Culturas Políticas

subordinando a primeira à segunda, pois os domínios destas disciplinas não são estranhos

entre si. Delineia daí um entendimento sobre o que é o intelectual:

Por esta última razão, é preciso, a nosso ver, defender uma definição de geometria variável, mas baseada em invariantes. Estas podem desembocar em duas acepções do intelectual, uma ampla e sócio-cultural, englobando os criadores e ‘mediadores’ culturais, a outra mais restrita, baseada na noção de engajamento. No primeiro caso estão abrangidos tanto o jornalista como o escritor, o professor secundário como o erudito. (SIRINELLI, 1996, p.242-243)

O autor conclui que o debate entre as duas definições é um falso problema, pois, os dois

elementos são de natureza sociocultural. Para resolver essa questão faz-se necessário as

abordagens a partir de conceitos como os de itinerário, geração e sociabilidade. Para o de

itinerário objetiva-se desenhar mapas dos grandes eixos de engajamento dos intelectuais,

tomando o gênero biográfico e a perspectiva de trajetórias cruzadas de forma a identificar os

‘despertadores’ de ideias e suas influências, em abordagem diacrônica. Desta maneira

procura-se analisar a procedência dos intelectuais a partir de seu lugar de formação no viés

da reconstituição crítica.

As sociabilidades se constituem no seio do ‘pequeno mundo estreito’ em torno da

redação de uma revista ou de um conselho editorial, ressaltando a importância do termo

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‘redes’ para captar tal fenômeno. Dessas redes também emergem as posições antagônicas e

pela análise destas é possível captar o movimento de ideias.

O conceito de gerações diz respeito à solidariedade de idade. O exemplo utilizado pelo

autor é a Revista dos Annales, a partir de duas razões: no meio intelectual os processos de

transmissão cultural são essenciais, pois, um intelectual se define sempre por referência a

uma herança, como intermediação, ou mesmo como ruptura, mas sempre em referência a

algo. A segunda razão está no papel explicativo de cada faixa etária diante de um fenômeno.

A noção de rede de sociabilidades indica um acordo na realização de um projeto

político cultural e, no caso, tendo como ponto nodal a educação. Evidentemente, não retira da

noção de sociabilidade o aspecto afetivo, mas faz com que esta adquira, também, um sentido

engajado nas redes de relações em que o sujeito estava envolvido. Tal noção teórica indica um

caminho semelhante na construção de nossa metodologia ao que Vieira aponta:

Na experiência brasileira do final do século XIX até o século XX, muitas das iniciativas dos intelectuais engajados na cena pública estiveram associadas, direta ou indiretamente, a projetos educacionais. Tais iniciativas visavam à ampliação e ao aprimoramento da escola nos seus mais diversos níveis ou ao desenvolvimento de redes públicas e privadas de formação, envolvendo a organização de empreendimentos editoriais, redes de museus, teatros, cinemas e bibliotecas, atividades artísticas, esportivas e de lazer, entre outras políticas e ações culturais. Sendo assim, se entendemos a educação como uma questão que detém uma ampla dimensão política, somos obrigados a refletir sobre os agentes dessa política, aqueles que ocupam posições de prestígio e de poder. (VIEIRA, 2015, p.8)

Entre estes agentes estão os intelectuais que ocuparam a cena pública brasileira em

diferentes tempos da História. Um exemplo disso são os que gravitaram em torno do

Manifesto dos Educadores de 1932, capaz de exemplificar essa atitude de manifestação dos

intelectuais em torno de projetos educacionais. Também, tal contexto de atuação de

intelectuais nos instiga a pensar as diferentes manifestações e locais de tomada de poder

destes atores sociais que, no contexto das décadas de 1930 e 1940 no Brasil, atuaram em

postos políticos estratégicos para viabilizar seus projetos. Reconhecemos a disputa das elites

intelectuais por espaços e poder e, no caso brasileiro, a produção intelectual e a ação política

e sociocultural são maneiras de intervir na sociedade, tendo na educação o lugar de

convergência de tais ações. E por isso mesmo, o intelectual é um ser político por essência.

Portanto, um estudo sobre a obra moacyrniana e sobre o próprio sujeito produtor da

mesma perpassa o entendimento de como o governo Vargas (1930-1945) estabeleceu os

pilares de suas políticas estatais mais gerais e estruturou a educação nacional, em

conformidade com a lógica da modernidade e do “novo”. Em paralelo, a publicação da obra

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moacyrniana pela Editora Nacional, pelo INEP e pelos órgãos de imprensa deixou a marca

intelectual histórica do autor no cenário brasileiro.

Por meio da leitura da obra moarcyrniana descobrimos certas raízes e filiações do

indivíduo, restituindo a este as coerências do seu comportamento, estabelecendo uma lógica

do preferível na argumentação, de sua adesão a determinados grupos organizados à volta de

uma cultura. Grupos, porque esta chave de leitura nos permite pensar de forma mais coesa o

coletivo em que o individual se apresenta, pois, a adesão a determinada visão de mundo

perpassa escolhas partilhadas. Assim, essa visão de mundo, esse senso comum partilhado, é o

lócus comum de onde os indivíduos retiram seus meios argumentáveis, feitos de forma

individual. Um estudo sobre os argumentos retóricos utilizados por Moacyr para construir

suas obras, sua visão sobre a educação e sua escrita histórica nos mostra possível de ser

entendido como parte de uma escolha de visão de mundo, de gestos, valores e crenças postos

na e para a coletividade bem como construtora da mesma. Argumentos retóricos que são

extraídos de um repertório, como nos adverte Ângela Alonso, partindo das formulações de

Charles Tilly e Ann Swindler, que são compostos por padrões analíticos, por noções,

argumentos, conceitos, teorias, esquemas explicativos, formas estilísticas, figuras de

linguagem e metáforas, não importando a consistência teórica entre seus elementos, pois,

respondem a necessidades históricas e práticas. Para Alonso, repertório pode ser definido da

seguinte maneira:

um conjunto de recursos intelectuais disponível numa dada sociedade em certo tempo. É composto de padrões analíticos; noções; argumentos; conceitos; teorias; esquemas explicativos; formas estilísticas; figuras de linguagem; metáforas (SWINDLER, 1986 apud ALONSO, 2002, p.39-40). [...] são criações culturais aprendidas, mas elas não descendem de uma filosofia abstrata ou ganham forma como resultado de propaganda política; eles emergem da luta [...] e designam [...] um conjunto limitado de esquemas que são aprendidos, compartilhados e postos em prática através de um processo relativamente deliberado de escolha. (TILLY, 1993, p. 264 apud ALONSO, 2002, p.39-40). (ALONSO, 2002, p.40).

Acrescenta a autora que os repertórios funcionam como “caixas de ferramentas” às

quais são acessadas de forma seletiva, respondendo às necessidades de compreensão e ação.

Portanto, um estudo sobre intelectuais recai sobre problemas políticos, listados de forma

dialética, racional e por meio de argumentos que buscam a persuasão, na lógica do preferível,

para a construção de um modelo cultural e social a ser seguido no e pelo Estado Republicano

Brasileiro nos anos de 1930 e 1940. A associação a questões sociológicas e à História das

ideias e dos conceitos também pode estar presente. Por conseguinte, estudos sobre os

intelectuais demandam que existam no contexto de análise indivíduos que reclamem essa

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identidade ou definidos como tais dentro de um grupo que se proclama intelectual, assim

como outros grupos sociais que reconheçam e reiterem essa representação.

Por fim, para além da identificação dos atores da vida intelectual, é necessário precisar

o potencial de poder político dos intelectuais em relação aos demais grupos sociais e

compreender os objetivos, as estratégias e as posições ocupadas pelos intelectuais no interior

do campo cultural, entendendo-os na perspectiva das diferentes posições e hierarquias entre

os mesmos incluindo os outsiders.

Sob este ponto, Gomes (1999) revela o elo que necessitávamos para definir nosso

aparato metodológico. Encontramos a necessidade de captar a ambiência sócio-político-

cultural da cidade, para então mapear a dinâmica de articulação de seus vários grupos

intelectuais reunidos em lugares de sociabilidade por eles legitimados para o debate e a

propagação das ideias, indissociáveis de formas de intervenção na sociedade. Os estudos

sobre as sociabilidades concentram sua atenção na lógica de construção e estabelecimento de

seus grupos, postulando interdependência entre a formação de certas redes e os tipos de

sensibilidades desenvolvidos nestes locais. Este tipo de abordagem se mostrou interessante

porque concentrou nossa análise sobre os intelectuais, por “permitir uma aproximação das

obras dos intelectuais, através do privilegiamento das condições sociais em que foram

produzidas, enquanto constitutivas de um certo campo político-cultural.” (GOMES, 1999, 11).

Tal prática trás o reconhecimento da existência de um campo intelectual com vinculações

amplas,

porém com uma autonomia relativa que precisa ser reconhecida e conhecida. Isto poderia ser alcançado com uma investigação que acompanhasse as trajetórias de indivíduos e grupos; que caracterizasse seus esforços de reunião e de demarcação de identidades em determinados momentos; e que associasse tais eventos às características estéticas e políticas de seus projetos. (GOMES, 1999, p.11)

Nosso trabalho se concretizou pela construção da trajetória de Primitivo Moacyr que

nos trouxe um itinerário de vida do mesmo, bem como a possibilidade, por meio deste, de

construir redes de sociabilidades que ajudaram a demarcar sua identidade como intelectual e

a nos oferecer horizontes de inteligibilidade de sua obra e o lugar desta no momento de

produção e leitura da mesma.

Construindo redes de sociabilidades: a imprensa como local privilegiado

Baiano de Salvador, nascido em 1867, Moacyr teve seus primeiros contatos com a

instrução pública como professor de primeiras letras em Lençóis, no interior da Província da

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Bahia. Em seguida, transferindo-se para Recife, a convite do presidente da Província de

Pernambuco, trabalhou no Liceu da capital. Para coroar esse percurso evolutivo,

provavelmente instigado pelas experiências e pelo ambiente ali vivenciado, seguiu para o Rio

de Janeiro. Em 1894 diplomou-se em Direito pela Faculdade Livre do Rio de Janeiro.

O início do século XX já o encontrou funcionário da Câmara de Deputados. Na função

de redator e relator dos debates parlamentares dedicou mais de trinta anos de sua vida.

Ainda acadêmico de Direito, Moacyr apresentava uma personalidade atuante e envolvida

com questões jurídicas e nacionais. A partir de 1896 passou a ocupar o cargo de redator dos

debates parlamentares na Câmara Federal, lugar que lhe permitiu contatos e o

desenvolvimento do gosto pelos arquivos. É também a partir desse espaço, principal em sua

vida trabalhista, cultural e política, que teve a oportunidade de aprofundar as relações com

políticos, intelectuais, dentre os quais muitos educadores que, como ele, comungavam do

princípio indeclinável da instrução como formação do povo e responsabilidade do Estado.

Moacyr também ocupou um cargo na Procuradoria dos Feitos da Saúde Pública,

permanecendo de 1905 até 1911, quando foi exonerado por acúmulo de cargo.

Do ponto de vista social, Primitivo era presença certa nas festas particulares e oficiais,

nas homenagens, em concursos e eventos culturais. Outra atividade desenvolvida por Moacyr

e sobre a qual se encontrou o primeiro registro somente em 1929, refere-se à sua atividade

oficial como inspetor para os institutos particulares de ensino secundário. 4 Aposentou-se em

julho de 1933, na condição de redator de documentos parlamentares da Secretaria da Câmara

dos Deputados.

Conforme Luiz Antônio Oliveira (2014), a sistematização da produção do discurso da

instrução pública por parte de Moacyr insere-se em sua compreensão de República. A

história da instrução nas províncias e no Império é lida e demarcada por Moacyr à luz do

presente, de forma a evidenciar que a atualidade era responsável pela solução que se insistia

em impetrar ao passado. Concordamos com Oliveira no tocante ao debate mais premente em

Moacyr: a instrução primária sob a responsabilidade do Estado. Embora esteja presente em

todos os livros os demais níveis escolares, incluindo o ensino profissional.

Em 1916, Primitivo Moacyr já havia publicado O ensino público no Congresso

Nacional. Breve notícia, pela Imprensa do Jornal do Commércio, um trabalho que revelava o

interesse pelo assunto e a familiaridade com os documentos parlamentares que sua atuação

profissional possibilitava. Sobre o debut de Moacyr, Carvalho e Mesquita (2013) inferem que

4 Estas informações foram retiradas de OLIVEIRA (2014) e CARVALHO (2012, 2013, 2014).

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ao expor tal documentação, Primitivo Moacyr produziu elementos para uma crítica contundente à produção legislativa brasileira, cuja inoperância aparece em cada projeto, independente da qualidade e acerto deste. Assim, é possível justificar e cultivar uma descrença quanto ao futuro educacional se este dependesse, apenas, das ações legislativas. (CARVALHO; MESQUITA, 2013, p.52)

Este livro inaugura uma trajetória de dimensão inigualável que terá lugar entre os anos

de 1936 e 1942 quando, já desfrutando da aposentadoria, Moacyr dedicou-se quase

exclusivamente à escrita educacional. Nesse curto espaço de seis anos – tendo falecido em

outubro de 1942, publicou quinze livros tratando da educação brasileira no período imperial

e republicano até os anos 30 e mais dois trabalhos apresentados em congressos organizados

pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro - IHGB. Além disso, ao longo das décadas de

1920, 1930 e 1940 publicou quase que mensalmente no Jornal do Commercio do Rio de

Janeiro, no chamado “Mensário do Jornal do Commercio”, espaço de publicação de colunas

“jornalísticas” de diversos temas brasileiros como Medicina, História e Educação. Sujeitos

como Otto Prazeres, Affonso D. Taunay e Primitivo Moacyr eram figuras recorrentes nestas

colunas. Outros jornais da capital federal – como O Imparcial – e de São Paulo – como o

Correio Paulistano – foram locais de publicação e circulação de temas sobre a História da

Educação Brasileira pelas mãos de Moacyr.

A obra moacyrniana se insere no processo de construção da História da Educação

brasileira, bem como sua proposição, estipulada pelo próprio produtor como subsídio para as

produções posteriores. Insere-se numa lógica maior do que sua própria intencionalidade.

Suas marcas ao longo do tempo deixaram vestígios distintos em cada momento e por cada

leitor que dela fez uso. Ao longo do século XX, fora palco de discussões historiográficas

acaloradas acerca de seu papel, ora como fonte da História da educação brasileira, ora como a

própria história escrita, ora ainda como produto de uma forma positivista ou “antiquada” de

se produzir História. Sua incursão no tempo histórico possibilitou à mesma se tornar

presente em diferentes propostas de estudos, desde a formatação da história da educação no

Brasil. Por isso, nossa proposta recaiu sobre um olhar metodológico que privilegiou os

estudos sobre a trajetória e a construção de redes de sociabilidades para encontrar respostas

sobre as condições de produção de sua obra. Como objeto, sua vida nos trouxe importantes

contribuições neste caso. E na imprensa encontramos condições de tal análise.

Quando a imprensa começou a ser vista como fonte histórica, os jornais e revistas

foram sendo usados para analisar um determinado período histórico, para entender a

sociedade, economia e pensamentos que eram comuns ao tempo estudado. Para entender a

importância da imprensa na época e porque deste tipo de fonte para a construção da

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trajetória de vida e as redes de sociabilidades de Primitivo Moacyr, utilizamos da ideia de

Monica Velloso (2004) que analisa o jornalista como mediador social e de grande

importância para a formação da sociabilidade moderna, “ditando a moda, padrões de

comportamento, formando gostos, opinião e sensibilidades, a imprensa busca traduzir o

almejado espírito do moderno.” (VELLOSO, 2004, p.21). Desvela a cartografia urbanística do

pertencimento, “fixando o lugar de cada grupamento étnico-cultural, o novo projeto

urbanístico determina também padrões de conduta e sociabilidade.” (VELLOSO, 2004, p.49).

A cartografia urbanística é importante para o grupo em que Primitivo fazia parte, uma

vez que para cada grupo social, a legitimidade do espaço em que se está, há a necessidade de

uma conduta social, por isso a cada espaço em que estes intelectuais ocupavam tinha uma

conduta adequada, o qual Moacyr teria de seguir para estar dentro do padrão do lugar. Pode-

se observar este padrão e a tentativa de legitimidade de um espaço para estes intelectuais nos

encontros que aconteciam aos domingos no jardim do high-life ou fazer parte, como sócio

honorário, de duas Sociedades de Alienistas Allemães5 junto com Afrânio Peixoto.

Para mapear os principais sujeitos ligados à trajetória de Primitivo Moacyr elaboramos

uma lista a partir daqueles citados por Oliveira (2014) e Melo (2012) composta por vinte e

três nomes. Destes, selecionamos doze sujeitos com destacadas posições políticas e sociais:

Anísio Teixeira, Afrânio Peixoto, Carlos Peixoto Filho, Fernando de Azevedo, Francisco de

Paula Rodrigues Alves, Francisco Venâncio Filho, Gustavo Capanema, Lourenço Filho, Luiz

Vianna, Max Fleiuss, Miguel Calmon e Tavares de Lyra. Estes nomes foram utilizados na

busca pela trajetória de Primitivo Moacyr nas revistas Fon-Fon! e Careta, revistas de ampla

circulação na sociedade carioca.

A revista FON-FON! foi lançada no ano de 1907, com circulação semanal, aos sábados,

com informações da vida social e, por vezes, privada de pessoas influentes – políticos,

artistas, profissionais liberais, socialites. Encerrou suas atividades em 1958. Careta foi

lançada em julho de 1908 e encerrou suas atividades em outubro de 1960, também de

periodicidade semanal, saindo aos sábados. As edições tinham volume variado, de 19 a 80

páginas, sendo as maiores edições aquelas que divulgavam grandes eventos do jet-set carioca

por meio de muitas imagens: inaugurações, carnaval, recepções, dentre outros. As

propagandas também ocupavam muitas páginas: medicamentos, anúncios imobiliários,

produtos de beleza, vestuário e calçados para homens e mulheres, etc.

5 Revista FON-FON! 1908, 26ª edição. p 25. “Raio-X”

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Os números da revista Fon-Fon! 6 e Careta7 estão disponíveis online, mas, infelizmente,

não há instrumentos de busca automática. Procuramos localizar Primitivo Moacyr e os

sujeitos listados anteriormente para traçar alguns laços de amizade, filiações intelectuais,

locais de sociabilidade e outros dados necessários à construção das redes de sociabilidades.

Tais dados também são úteis para delinear algo do repertório utilizado pelo intelectual na

construção de si e de sua obra.

Na revista FON-FON! identificamos algumas colunas mais afins com a pesquisa tais

como Vida da Mulher e Vida ultra-chic, dedicadas a noticiarem o vai-e-vem de pessoas

socialmente reconhecidas, incluindo os intelectuais, e produzir informações do tipo “com

quem”, “onde” e “o que” estavam fazendo. Outras informações tinham origem em entrevistas

e, claro, informações que agradavam o público e garantiam a tiragem da revista. Outra coluna

trazia o sugestivo nome de Raio-x: a coluna funcionava como um aparelho radiológico

direcionado, especialmente, para as “celebridades”. A coluna tinha “capacidade”, por

exemplo, de enxergar o que traziam nos bolsos ou junto ao corpo.

Outra sugestiva coluna era Caixa de Gazolina, geralmente nas últimas páginas da

revista, na qual eram publicados trechos de correspondências trocas entre políticos, convites

para café da tarde nas residências de intelectuais e políticos como Carlos Peixoto8 e Afrânio

Peixoto9. Reproduzia elogios e homenagens, fatos e livros publicados; e, como não podia

deixar de ter, os capítulos de novelas. Como uma parcela da sociedade do Rio de Janeiro

ainda era analfabeta, como explica Ana Luiza Martins (2008), a FON-FON! publicava

ilustrações e fotos para atender a esse público.

As páginas da Careta, em grande parte, eram preenchidas com propagandas de

produtos. Algumas sessões eram voltadas para o público feminino. Os capítulos de novelas

vinham, geralmente, no final da revista; alguns trechos no meio da revista com continuação

nas ultimas páginas. O futebol tinha coluna fixa, com fotos, comentários e os resultados. As

charges10 sempre estavam presentes, expressando assuntos de política e parlamentares.

Levantamos a hipótese de que a revista recebia doações públicas, ou mesmo particulares,

pois as charges, ao longo dos anos, alteravam a acidez das críticas. As tirinhas, assim como as

charges, não tinham autoria, mas garantiam a dose de humor em cada edição.

6 http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/fonfon/fonfon_anos.htm 7 http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/careta/careta_anos.htm 8 Revista FON-FON! 1908, 28ª edição, p.14. 9 Revista FON-FON! 1908, 32ª edição. p 24. 10 Revista Careta 1926, edição 926, p. 18.

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Voltaire (nome ou codinome?) assinava as reportagens de cunho político da Careta:

noticiava as sessões parlamentares, recheava com explicações e críticas, ora apoio, as

decisões tomadas. Na revista FON-FON! o noticiário político não incorporava opiniões.

A coluna de correspondências na Careta, aberta ao público, não anunciava remetentes

ou destinatários. Em geral, o conteúdo das cartas era de opiniões sobre a política; por vezes

eram convites para festas e banquetes. A revista ainda contava com uma sessão cinema – A

influência poderosa dos “astros”, tratando de atores e atrizes de sucesso, os filmes por eles

estrelados, etc.

Na revista FON-FON! Primitivo Moacyr aparece, seja em citações ou cartas, vinte e três

vezes entre 1907 e dezembro de 1942 (ano de sua morte). Observamos que foi citado entre

1908 e 1912 e volta a aparecer em 1916 e, por fim, em 1919. Moacyr enviava cartas para a

coluna Caixa de Gazolina, da qual obtinha resposta: “O Dr. Miguel Calmon continua a residir

no Hotel dos Estrangeiros. Porque nos faz essa pergunta?”11. A coluna Raio-x revela que

Moacyr “levava cuidadosamente o cartucho de bon-bons francezes que havia comprado,

meia hora antes, de sociedade com o Dr. Eloy de Souza.”12.

A festa de aniversário de Carlos Peixoto Filho, que morava com Primitivo Moacyr, foi

notícia na coluna “Nota da Semana” da revista FON-FON!, com traços de ironia:

Foi toda de Alegrias intimas e effusões sinceras de longa e cuidadosa amizade. Não teve a consagração da Rua, nem as inconveniências da popularidade, mas a ternura encantadora de corações que se querem, que se compreendem e se acompanham unidos na viagem penosa pelos sarçais da Vida. [...] Foi toda sentimental e intima a <<nota>> predominante da semana, apanhada pela nossa decidida argucia de repórter e agora transmitida indiscretamente à curiosidade terrível dos leitores, nestas poucas linhas. Fazia annos Carlos Peixoto Filho (Perdôe-nos S. Ex., a liberdade com que o tratamos, mas é pra conservar na descripção a mesma feilçao familiar da scena). Depois de ter sofrido todos os supplicios da manifestação officiaes ; depois de ter recebido, com aquele seu cellebre sorriso histórico, os abraços, os apertos de mão, as felicitações, os cumprimentos de uma multidão incalculável que lhe foi <<desejar a continuação de sua preciosa saúde>> e fazer <<votos pela sua prosperidade>>, S. Ex. recolheu-se a seu sumptuoso 66 e ahí reuniu meia dúzia de velhas amizades para os regalos de uma ceia elegante e magnifica. Foram convivas desta deliciosa festa, desconhecida cá fora, o João Luiz Alves, o Camillo Soares de Moura, o Gastão da Cunha, o Afrânio Peixoto, o Calmon, e mais alguns, rapazes do tempo e do gênio do festejado. [...] Serviu-se um chá delicioso, que fazia esquecer completamente aquelle celebre cosimento, acompanhado de pão de queijo, que era o legado das noitadas da casa do Peres, na legendaria Laranjeiras do Piques, em São

11 Revista FON-FON! 1908, edição 16, p.16 12 Revista FON-FON! 1910, edição 2, p.12.

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Paulo, de onde o Camillo com seu bello ar de mosqueteiro, ao retirar-se noite alta, perguntava infallivelmente ao afável Julião: Julião, que horas são? E o Julião curvando respeituosamente o dorso, respondia infallivel: São meia-noite, seu doutô. [...] Z.(FON-FON! (1908, edição 25, p.20, grifos no original)

A notícia provocou reações, como podemos apreciar pela carta enviada por Moacyr,

intitulada “Uma rectificação” publicada pela mesma revista:

Senhor Redactor do Fon-Fon. Saudações amistosas. No seu numero de sabbado passado, Fon-Fon publica uma nota da semana, descrevendo a festa íntima realizada em nossa residência, por occasião do aniversário natalício do meu illustre amigo, Dr. Carlos Peixoto Filho. Posso affiançar-lhe Sr. Redactor, que o Fon-Fon foi mal informado, ou melhor, abusaram da má fé do seu elegante semanário. Como deve saber, o 66, que se refere a citada nota, é o vistoso palacete da rua dos Voluntários da Patria, onde eu, o Dr. Carlos Peixoto, e o Dr. Affranio, também, Peixoto, armamos o nosso sossegado tugúrio de celibatários. Na mencionada noite do aniversário do Dr. Carlos Peixoto, o meu illustre amigo, depois de ter assistido a brilhante manifestação que lhe fez o Centro Mineiro, comemorando tão auspiciosa data, recolheu-se pacatamente á casa, no bonde das 11 horas mais ou menos. O chá que houve, foi o chá costumeiro, de todas as noites, sem accrescimo, sequer, de um simples biscouto mineiro, e, não havia mais ninguém, se não os moradores do 66, eu, Dr. Affranio e o Dr. Carlos. A meia-noite estávamos todos recolhidos e a casa completamente fechada. Já vê Sr. Redactor, que a informação que lhe transmitiram, não é verdadeira.’ (FON-FON! 1908, edição 25, p.20.)

À essa carta a revista responde:

Embora nos mereça toda a consideração, a affirmação do illustrado Dr. Moacyr, não podemos deixar de estranhal-a, porquanto a nota, que publicamos foi colhida em uma conversa ouvida num bond do Largo dos Leões, entre o Dr. Affranio Peixoto e Celso Bayma que por sinal, lamentava profundamente, não ter assistido à festa descripta por nós. (FON-FON! 1908, edição 25, p.20.)

Este episódio revela Primitivo Moacyr como alguém de visibilidade social. Ainda sobre

o, porque era seguido, junto com amigos íntimos, para saber sobre a vida pessoal deles. Duas

edições depois, encontramos a notícia da mudança de Carlos Peixoto Filho para a Rua das

Laranjeiras 12713, feita com a ajuda do amigo Moacyr.

13 Revista FON-FON! 1908, edição 27, p.26.

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A presença em festas e peças teatrais também era noticiada: Afrânio Peixoto e Primitivo

foram flagrados pela revista com metade do bilhete no bolso do fraque, no caso de Afrânio, e

na carteira, no caso de Moacyr, para a tournée Ferandy-Brandés14.

Na coluna Notas Mundanas, da revista FON-FON!, encontramos notícias dos chás

oferecidos por Moacyr, em sua residência, para um seleto grupo do mundo político. Esses

encontros eram concorridos e a presença era reservada aos solteiros, sendo proibido falar da

vida alheia15.

Na coluna Raio-X, algo pitoresco, dirigido a Moacyr: “Singular o que vimos. Porque S.

S. teria calçado, naquele dia, as meias de seu amigo Eloy de Souza?”16. Não encontramos

réplica a essa informação.

Moacyr viajou várias vezes à Europa, acompanhado dos filhos17. Na revista FON!FON!

as viagens foram noticiadas com fotografias, como na edição de setembro de 1910: os filhos

de Moacyr – Carlos e Primitivo, Agenor de Roure Filho, Francisco Valadares e a Madame

Fonseca Hermes, acompanhados de Madame Brunel, diretora do Colégio Chateau de

Laucy18. Outra dessas viagens feitas à Europa foi publicada na coluna “Noticiario”. Nesta

viagem, a bordo de um navio a vapor da Mala Real Ingleza19, estava com os amigos Octavio de

Souza Leão, Jayme Darcy e Humberto Gottuzo. Outra foto, numa edição de 1912, tem como

legenda: “alunos brasileiros no Chateau de Lancy em Genebra, Carlos Moacyr, Primitivo

Moacyr, Hilton Nabuco de Castro, Agenor de Roure e José de Alencar”. Neste caso, Primitivo

Moacyr é Primitivo Bueno Moacyr, filho de Primitivo Moacyr; assim como Agenor de Roure é

Agenor de Roure Filho.

Com as informações levantadas nessas revistas construímos, parcialmente, a rede de

sociabilidades formada em torno de Primitivo Moacyr, composta por políticos e intelectuais.

Dessas redes emanam pensamentos e ideias; têm lugar intercâmbios e debates, projetos e

ações. Os vínculos que formam essas redes se estabelecem em espaços públicos e de âmbito

privado, em festas pessoais e/ou encontros casuais; nos salões da Câmara de Deputados, nos

teatros e calçadas, nas cafeterias e bares, ou seja, em lugares legitimados pelos grupos. Além

daqueles com relação direta, Primitivo Moacyr também tem contato com pessoas que

pertencem à rede de sociabilidades de seus amigos, ampliando as interpretações, as

compreensões, o olhar de mundo.

14 Revista FON-FON! 1908, edição 26, p.25. 15 Revista FON-FON! 1908, edição 30, p.12. 16 Revista FON-FON! 1909, 45ª edição. p. 23. 17 Revista FON-FON! 1909, edição 16, p.18. 18 Revista FON-FON! 1910, edição 37, p.28. 19 Revista FON-FON! 1911, edição 34, p.19.

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Na revista Careta encontramos apenas uma referência a Moacyr, apesar de muitas

informações sobre sujeitos de seu relacionamento. A referência encontra-se na coluna

Folhinha da Careta, uma reprodução irônica dos calendários religiosos. Neste caso, tratando

da Igreja Positivista: “dia 18 de julho, segunda-feira, (...) S. Primitivo Moacyr, apóstolo

saudável.”20 18 de julho seria o aniversário de Moacyr? Filiado à Igreja Positivista?

Com esses dados foi possível esboçar uma rede de sociabilidades relativamente

complexa, envolvendo Primitivo Moacyr e um conjunto de intelectuais que, por sua vez,

estabelecem outras relações. Não havendo outras referências a Moacyr na revista Careta,

buscamos pelos sujeitos a ele relacionados na revista FON!FON! o que nos permitiu ampliar

a rede. Por exemplo: Miguel Calmon e Tavares de Lyra são referenciados na Careta com

vários outros sujeitos tais como: David Campista (deputado federal), Almirante Alexandrino

(ministro da marinha), José Marcelino (senador), Afonso Penna21 (presidente do Brasil) e

João Francisco. Moacyr ainda poderia ter sido amigo de Ruy Barbosa (conhecido de

Fernando de Azevedo, Miguel Calmon e Tavares de Lyra22), Nilo Peçanha (conhecido de

Rodrigues Alves e Fernando de Azevedo23), Marechal Hermes (conhecido de Miguel Calmon,

Tavares de Lyra24, Afrânio Peixoto e Carlos Peixoto Filho), Rio Branco (conhecido de Carlos

Peixoto Filho, Miguel Calmon e Tavares de Lyra25) e Eloy de Souza (conhecido de Fernando

de Azevedo e Tavares de Lyra26).

Além desses, Moacyr teve oportunidade de conhecer outros tantos, por intermédio de

Afrânio Peixoto e Carlos Peixoto Filho, com os quais dividiu moradia: Euclydes da Cunha27,

Felix Pacheco, Araripe Junior, Paulo Barreto, Souza Bandeira28, Oswaldo Cruz, James Darcy,

Dantas Barreto, Joaquim Nabuco29 e Joaquim Sales30. Por ora ainda não obtivemos provas

efetivas tais como correspondências, atividades em conjunto, para subsidiar essa rede de

sociabilidades. A questão aqui é pensar que tais relações se estabeleciam porque estes

sujeitos faziam parte de um grupo social, elitizado, que pensava e fazia o Brasil na primeira

metade do século XX e suas atuações conformaram as relações políticas e intelectuais de sua

20 Revista Careta, 1910, edição 111, p.21 21 Revista Careta, 1908, edição 7, p. 16 “[...] mundanas”. 22 Revista Careta, 1908 edição 3, p.16 “O momento político”. 23 Revista Careta, 1913, edição 246, p. 35 “No campo da ‘megéra’”. 24 Revista Careta 1912, edição 194, p. 13. 25 Revista Careta, 1908, edição 7, p. 16 “[...] mundanas”. 26 Revista Careta, 1908, edição 5, p. 6 “Careta parlamentar”. 27 Revista Careta, 1913, edição 243, p. 22. 28 Revista Careta 1913, edição 273, p. 13 “Academia brasileira de lettras”. 29 Revista Careta, 1913, edição 266, p. 20 “Academia brasileira de lettras”. 30 Revista Careta, 1910, edição 91, p. 26 “Telegrapho sem fio”.

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época junto a outros grupos, em conflito e/ou comunhão, e que conferiram ao intelectual

analisado aqui o grau de mediador por sua vida e obra.

Em paralelo, realizamos uma pesquisa no site da Hemeroteca da Biblioteca Nacional

com o nome de Primitivo Moacyr. O resultado da empreitada, entre os anos de 1890 e 1950,

foram 1019 ocorrências em jornais de 12 estados diferentes. Tais achados apresentam

informações sobre a vida pessoal, profissional, social e até mesmo política do intelectual, o

que nos possibilitará ampliar as informações para confirmar as redes de sociabilidades e

possibilitar a verificação de seu repertório intelectual a serviço da História e da Educação

brasileiras.

Dentre os jornais de ampla circulação na sociedade brasileira e, em especial, na carioca,

lócus de atuação privilegiado do intelectual Primitivo Moacyr, identificamos sua presença em

O Paiz (RJ), O Estado de Pernambuco (PE), O Imparcial(RJ), O Estado(PR), Jornal do

Commercio(RJ) e Correio Paulistano(SP). São jornais que circularam, cada um com sua

temporalidade de existência, tiragem e localidade de circulação próprios, apresentando

acontecimentos de âmbito nacional e internacional nos quais figuras do alto escalão político,

social e intelectual desfilavam entre uma ou outra notícia. Jornais que noticiavam a grande

pluralidade existente na composição das cidades, em especial a capital federal, tanto em

camadas sociais, de origem nacional ou regional, etnia e gênero, adaptando seus conteúdos

para que toda essa diversidade social fosse alcançada e consumissem os jornais. Divulgavam

acontecimentos passados na capital federal, possuindo seções que retratavam a vida nos

Estados, fatos mundanos, vida da mulher, classificados e ensaios fotográficos, para assim

disseminar o modo de vida e os valores cariocas, já que a cidade era o eixo administrativo,

econômico e cultural do país.

Alguns jornais estavam ligados a grupos políticos, como o Correio Paulistano, jornal

oficial do Partido Republicano Paulista ou o Jornal do Commercio, veículo de viés comercial

e propagandista da economia nacional. Sob os diversos tipos de jornais e suas localidades, a

figura de Primitivo Moacyr fez parte de suas páginas de forma efetiva, ora como participante

de eventos sociais, ora como autor de suas obras, ou ainda, como um brasileiro no exterior e

sendo citado por outros intelectuais e membros da sociedade brasileira por seus feitos como

intelectual.

Considerações por ora...

Nossa missão era trazer um pouco do caminho que temos nos debruçado nos últimos

anos em nossas pesquisas acerca da vida e da obra de Primitivo Moacyr. O intuito era

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mostrar como pensamos nosso objeto e como definimos nossos horizontes metodológicos. A

construção da trajetória de Primitivo Moacyr nos permitiu identificar suas origens, seu

itinerário e suas redes de sociabilidade. Essas conformaram sua atuação de vida nas áreas

pessoais e profissionais bem como o campo de possibilidades de sua atuação como intelectual

e a produção de sua obra. Mais do que produtor de textos histórico ou historiador, Primitivo

Moacyr é um intelectual de seu tempo. Um intelectual mediador que utilizou dos meios que

tinha em mãos para conduzir seus passos. Assim, a fronteira entre a história das ideias

políticas e a historia dos intelectuais, ou o da aculturação dessas ideias no meio dos

intelectuais, por meio dos estudos sobre itinerários de vida e as redes de sociabilidades de

intelectuais se abriram. E a exploração desse campo pode ser feita pela reinserção destas

ideias no seu ambiente social e cultural, e por sua recolocação em situação num contexto

histórico. Neste caminho cabe-nos pensar agora como a obra de Primitivo Moacyr e suas

ideias, bem como dos grupos com os quais caminhou, vão da intelligentsia à sociedade civil e

seus sobressaltos na comunidade nacional e pela cultura política da época.

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