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Entre filantropia e sociabilidades: o Asilo Nossa Senhora da Lapa em Campos dos Goytacazes (1864 -1874) Mariana Salvador da Silva 1 Este estudo propõe investigar as relações sociais e políticas estabelecidas pelos irmãos da Santa Casa de Misericórdia de Campos dos Goytacazes durante os anos de 1864 a 1874, período que compreende a primeira década de existência do Asilo Nossa Senhora da Lapa, instituição voltada para acolhimento de expostas e órfãs em situação de abandono e administrada pela Santa Casa. A pesquisa tem por intuito traçar as redes de sociabilidades estabelecidas por esses homens, a partir da configuração encontrada de seus casamentos com essas meninas no período compreendido entre 1866 a 1870, sendo possível observar os laços estreitos de apadrinhamento entre eles, interessados em alçar cargos políticos e sociais de prestígio, perante a estrutura social hierarquizada do Segundo Reinado. A fundação da Misericórdia campista é datada de 1792, sob a administração da Irmandade Nossa Senhora Mãe dos Homens, que recebe da Câmara um terreno para a construção da Santa Casa, esse processo envolve uma articulação política entre homens abastados da região e o Ouvidor da Capitania do Espirito Santo, Dr. José Pinto Ribeiro. Esse Ouvidor ocupou o cargo de 2º provedor, atuando juridicamente na formação da Santa Casa, demonstrando as trocas políticas que foram realizadas com subornos e favores na formação e gerencia dessa instituição (LAMEGO, 1951). Nesse retrato, os funcionários régios defendem interesses próprios, ao conceder cargos a um poderoso comerciante, fazendeiro ou negociante recebendo em troca vultosos valores e estabelecendo, em alguns casos, laços familiares via matrimônios, como forma de selar os compromissos sociais. A partir do século XIX, as relações políticas e sociais pouco se diferenciaram do período colonial. Dentre as atividades realizadas pela Santa Casa, as questões correspondentes aos expostos e órfãos ganham maiores atenções dos provedores, o abandono e as dificuldades em administrar o destino desses enjeitados são notificados nas 1 Mestranda do PPGHCS/Casa Oswaldo Cruz - Fiocruz e bolsista CNPq

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Entre filantropia e sociabilidades: o Asilo Nossa Senhora da Lapa em

Campos dos Goytacazes (1864 -1874)

Mariana Salvador da Silva1

Este estudo propõe investigar as relações sociais e políticas estabelecidas pelos

irmãos da Santa Casa de Misericórdia de Campos dos Goytacazes durante os anos de

1864 a 1874, período que compreende a primeira década de existência do Asilo Nossa

Senhora da Lapa, instituição voltada para acolhimento de expostas e órfãs em situação de

abandono e administrada pela Santa Casa. A pesquisa tem por intuito traçar as redes de

sociabilidades estabelecidas por esses homens, a partir da configuração encontrada de

seus casamentos com essas meninas no período compreendido entre 1866 a 1870, sendo

possível observar os laços estreitos de apadrinhamento entre eles, interessados em alçar

cargos políticos e sociais de prestígio, perante a estrutura social hierarquizada do Segundo

Reinado.

A fundação da Misericórdia campista é datada de 1792, sob a administração da

Irmandade Nossa Senhora Mãe dos Homens, que recebe da Câmara um terreno para a

construção da Santa Casa, esse processo envolve uma articulação política entre homens

abastados da região e o Ouvidor da Capitania do Espirito Santo, Dr. José Pinto Ribeiro.

Esse Ouvidor ocupou o cargo de 2º provedor, atuando juridicamente na formação da Santa

Casa, demonstrando as trocas políticas que foram realizadas com subornos e favores na

formação e gerencia dessa instituição (LAMEGO, 1951). Nesse retrato, os funcionários

régios defendem interesses próprios, ao conceder cargos a um poderoso comerciante,

fazendeiro ou negociante recebendo em troca vultosos valores e estabelecendo, em alguns

casos, laços familiares via matrimônios, como forma de selar os compromissos sociais.

A partir do século XIX, as relações políticas e sociais pouco se diferenciaram do

período colonial. Dentre as atividades realizadas pela Santa Casa, as questões

correspondentes aos expostos e órfãos ganham maiores atenções dos provedores, o

abandono e as dificuldades em administrar o destino desses enjeitados são notificados nas

1 Mestranda do PPGHCS/Casa Oswaldo Cruz - Fiocruz e bolsista CNPq

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páginas dos relatórios da instituição. Mais adiante, o estudo de caso analisará as expostas

e órfãs do Asilo da Lapa, fundado em 1864, com o intuito de cuidar e encaminhar essas

meninas para bons casamentos.

A historiografia mais recente reformula os debates sobre formação das redes de

sociabilidades, o historiador Alexandre Mansur Barata (2009) julga necessário estudar a

importância dos espaços associativos do século XIX, para melhor compreender a

formação das elites regionais e nacionais, ou seja, lugares de manifestação do fazer

política. As relações entre o Estado e a sociedade estão inseridas dentro de uma política

cultural, entendida como um “conjunto de discursos e práticas políticas simbólicas pelas

quais essas reivindicações são feitas” (BARATA, 2009:52). O autor detém-se aos

acontecimentos no cenário mineiro, advertindo que mais que uma continuação das

relações coloniais, presentes nas Irmandades e nas Misericórdias, desenvolve-se novas

práticas associativas no início do século XIX, com o surgimento das sociedades

filantrópicas. Essas sociedades formulam discussões políticas e sociais, empreendendo

fundações de bibliotecas e produções literárias que visavam a expansão de sabedoria para

povo.

As alegações acima são de extrema importância, por acrescentarem o advento dessas

sociedades filantrópicas, organizando os rumos das discussões políticas e patrióticas no

Brasil. Entretanto, a despeito da importância de instituições como a Misericórdia no

Oitocentos, o caso campista mostra-se deveras relevante. A Santa Casa de Campos

continua, ao que tudo indica nas documentações até aqui examinadas, um importante

epicentro de discussões e alianças políticas locais, para além de todo seu trabalho

assistencial. É oportuno discorrer sobre as relações políticas na Misericórdia campista, o

advogado e político José Fernandes da Costa Pereira alça ao posto de provedor (1868 –

1871) de forma rápida, demonstrando boas relações locais com o antecessor, o

Comendador Paraíba. Isso deve-se a sua experiência prestigiada como presidente de

província (ocupando esse cargo por cinco vezes) e ministro, o que demonstra o poder de

negociação e de mando, em termos locais, da própria instituição em si (LAMEGO,

1951:46-47).

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Em O império das províncias. Rio de Janeiro, 1822 – 1889, Fátima Gouvêa (2008)

traça um panorama dos principais aspectos da política imperial, voltando seu olhar para

os espaços políticos regionais e a dinâmica da vida política do Império nas províncias,

em especial a fluminense. A organização do recém-criado Estado contou com estratégias

políticas de diversos grupos, não sendo fácil identificar um único grupo no poder. Os

cargos administrativos não possuíam treinamento (mas eram status social) e havia uma

dependência da magistratura, principalmente, no controle do processo eleitoral para não

ameaçar os poderes integrados; os elos dos grupos locais e setores econômicos. A reforma

do judiciário é parte desse processo de construção e de perpetuação do Estado, esse setor

conectaria os interesses públicos e privados:

O surgimento de uma magistratura distrital “profissional” provou ser um dos

elos mais fortes estabelecidos entre o governo central – como qual tinha laços

institucionais – e as elites locais. Como argumentou Thomas Flory, isso

significou a recuperação de um importante aspecto da herança colonial do

Brasil, já que essa foi a estrutura administrativa mais importante engendrada

no Brasil colonial por Portugal. (GOUVÊA, 2008:76)

Outra questão, trata do aumento da burocracia, vista como medida que atrapalha a

eficiência da máquina administrativa, além do controle nas finanças de obras públicas.

Sem perder de vista o papel da legislatura, essa fora responsável por gerar homogeneidade

política entre os grupos, ou seja, a ideia não era burocratizar e, sim, prevalecer os

interesses políticos locais. As estruturas hierárquicas dentro da organização político-

administrativa eram implementadas de maneira que “as diferenças econômicas e

geográficas desapareciam em face de novas estratificações, baseadas no poder político

em contraposição ao poder econômico” (GOUVÊA, 2008:98), logo, o conceito de

igualdade empregado pelos políticos não posto em prática.

As reflexões apresentadas pela autora mostram o destaque da cidade de Campos e as

querelas das décadas 1860 e 1870 – recorde geográfico e temporal – que contribuem com

a compreensão das relações políticas e sociais deste projeto. A partir dos anos 60, em

meio as divisões políticas, os liberais exercem forte representação dos poderes locais, na

Assembleia Provincial; enfraquecendo a influência dos principais setores econômicos. Os

debates em torno da centralidade ou não da política brasileira, tem duas tentativas de

modificação do sistema municipal, mas o que prevalece é a relação hierárquica das

Câmaras, reconhecida pela vulnerabilidade que essas estavam submetidas diante das

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decisões da administração provincial, incluindo a interferência do governo provincial nos

municípios (GOUVÊA, 2008:111).

Durante a segunda metade do século XIX, a arrecadação de impostos realizada pela

Câmara campista está associada a taxação da produção do açúcar, uma das maiores

cobranças registradas na província (GOUVÊA, 2008:39). A decisão de ajuda financeira

dada pelo governo provincial aos municípios, nos anos de 1870, não incluiria a cidade de

Campos, a justificativa era que disponha de uma renda elevada, se comparada com as

demais cidades fluminenses (GOUVÊA, 2008:112-115). Todavia, cabe uma reiteração

diante dessas conclusões, as informações do relatório da Misericórdia de Campos

contradizem esse cenário, pois há o relato de suplica por recursos financeiros, que seriam

destinados a criação dos expostos e aos cuidados das órfãs do Asilo da Lapa, dirigido a

Câmara, responsável pela devidas providencias para o bem do município. De modo geral,

a Santa Casa de Campos administrava suas ações com dificuldades financeiras, são

inúmeros relatos de déficit orçamentário, seja para o trato dos doentes, obras do hospital,

custeio dos expostos, despesas com funcionários, etc. 2

Ao longo do século XIX, as relações políticas e sociais pouco se diferenciaram do

período colonial, resquícios das práticas clientelares estavam presentes na sociedade

campista. Dentre as atividades realizadas pela Santa Casa de Misericórdia de Campos, a

questão dos expostos e órfãos ganha mais atenção dos provedores, pois o abandono e as

dificuldades em administrar o destino desses enjeitados são notificados nas páginas dos

relatórios dos anos 1840, as reclamações protestam os subsídios fornecidos pela Câmara

municipal e as leis orçamentárias da Província estão em vários trechos desses

documentos, pedidos de ajuda são feitos em nome da Misericórdia para auxílio aos

expostos e as demais atividades assistenciais, pois parte considerável das pessoas

atendidas no hospital vinham de outros municípios da região3.

¹ Relatório d’administração da Santa Casa de Misericórdia da Cidade dos Campos dos Goytacazes no anno

de 1844 - 1845; 1846 – 1847; 1847 – 1848. Arquivo da Santa Casa de Misericórdia de Campos dos

Goytacazes 3 Relatório d’administração da Santa Casa de Misericórdia da Cidade dos Campos dos Goytacazes no

anno de 1844 - 1845; 1846 – 1847; 1847 – 1848. Arquivo da Santa Casa de Misericórdia de Campos dos

Goytacazes.

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A importância de pertencer e participar de instituições de caridade no século XVIII

está atrelada ao dever moral das elites para com os pobres. Na virada do século XIX, a

ideia de filantropia permeia as atividades assistenciais de forma laica, ou seja, os bons

costumes e a civilidade estão amparados na cientificidade e não, somente, nos valores

religiosos. Para além, de uma ação caritativa, fez-se dever das elites o cumprimento de

uma “obrigação cívica”, “os mais afortunados que tomariam para si a missão altamente

prestigiosa de fundar e administrar instituições que procurassem dar cabo do que

consideravam degenerescência e pobreza” (FRANCO, 2005:6).

O recorte estabelecido para análise é de 1864 a 1874. Neste período, de acordo com

as fontes, são recebidas 49 meninas, sendo 40 expostas e 9 órfãs. Desse grupo 30 casam,

2 falecem e as outras são encaminhadas para companhia de famílias locais ou se retiram

(não há maiores informações). Este livro de registro traz descrições da vida das expostas,

como idade, habilidades domésticas, datas de seus casamentos, o nome dos noivos e

padrinhos e/ou o nome das famílias que algumas foram encaminhadas.4 Os sete primeiros

casamentos dessas jovens (todas expostas) foram com os irmãos da Santa Casa, ou têm

eles como testemunhas da cerimônia, esses homens compunham um rol seleto no cenário

social campista, essas proximidades reforçam as relações políticas com vínculos pessoais

entre seus semelhantes (ou aspirantes) naquela sociedade hierarquizada imperial.

Rede 1 – Relações das expostas, dos noivos e dos padrinhos.

4 Registro de Órfãs e Recolhidas ao Asilo de N. S. da Lapa (1864 – 1962). Arquivo da Santa Casa de

Misericórdia de Campos dos Goytacazes

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Padrinho e Irmão da Santa Casa de Misericórdia de Campos

Noivo

Exposta

Noivo, Padrinho e Irmão da Santa Casa de Misericórdia de Campos

Fonte: Registro de Órfãs e Recolhidas ao Asilo de N. S. da Lapa (1864 – 1962)

Em seus escritos, Alberto Lamego (1951) sublinha que alguns desses nomes

exerciam funções dentro da Misericórdia e, com a pesquisa aos relatórios, tal afirmação

pode ser confirmada5. A centralidade dessa rede está nas figuras do tesoureiro e do médico

adjunto da Misericórdia. O primeiro noivo e padrinho, Antonio Pereira da Rocha, era

tesoureiro (na administração do Dr. Paraíba6), seus padrinhos são Rufino Gomes de

Oliveira, que ocupava o cargo de mordomo do hospital; e Dr. José Fernandes da Costa

Pereira, advogado da instituição. O segundo noivo e padrinho, Dr. Antonio Secioso

Moreira de Sá, médico adjunto do hospital, tem como padrinhos o provedor Paraíba e o

5 Relatório d’administração da Santa Casa de Misericórdia da Cidade dos Campos dos Goytacazes no anno

de 1863 e 1864. Arquivo da Santa Casa de Misericórdia de Campos dos Goytacazes 6 Provedor da Santa Casa entre os anos de 1860 a 1868, ver: LAMEGO, A. História da Santa Casa de

Misericórdia de Campos. Rio de Janeiro, 1981.

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tesoureiro Rocha; uma exposta também foi encaminhada para companhia de sua família

em 1868.

Mostra-se interessante a posição privilegiada desse médico, além de ser padrinho

de mais duas cerimonias (Zelinda Rosa Octaviana e Joaquim Gonçalves Vianna;

Geraldina Carolina das Dores e Antonio dos Santos Queiróz), consegue ter como

padrinho de seu casamento o próprio provedor Paraíba, homem de grande prestígio social

na Misericórdia e em Campos; e o Dr. José Fernandes da Costa Pereira, bacharel formado

em Direito pela faculdade de São Paulo, que se tornou o provedor seguinte na

administração da Santa Casa (1868-1871), dedicado também à política. O Dr. José

Fernandes era campista e representou “sua Província em duas legislaturas provinciais e

fora presidente das Províncias do Espírito Santo, do Ceará, de S. Paulo, do Rio Grande

do Sul e de Pernambuco”, exerceu o cargo de Ministro da Agricultura, participava do

Conselho do Imperador e era Cavalheiro da Ordem de Cristo (LAMEGO, 1951:47).

Nas últimas décadas, as discussões acerca da noção de sociabilidade ganharam

contornos mais realistas para as análises da formação do Estado e nação brasileira no

século XIX. Essa categoria é incluída na pesquisa história de forma crítica e inovadora

pelo historiador francês Maurice Agulhon, com a publicação de Pénitents et francs-

maçons de d’ancienne Provence, concebendo que a compreensão das sociabilidades

implica na existência de associações e suas transformações, dada em uma configuração

circunscrita com dimensões geográficas e temporais, acrescentando ser pertinente as

identidades culturais na observação de determinados grupos regionais e suas aspirações

políticas no campo social (MOREL, 2001:5).

Para Marco Morel (2001), o desafio dos pesquisadores brasileiros em realizar uma

tipologia das sociabilidades no cenário imperial torna-se complexo, devido as diferenças

das associações e a dificuldade em classificar grupos tão distintos. Ao empregar um

modelo metodológico rígido, as diferenças poderiam ser camufladas, ou em

contrapartida, na falta de critérios poderia particularizar o caso e comprometer o estudo.

Por isso, é importante ter em mente que essas associações não são necessariamente

unifuncionais, essas estavam em diferentes configurações na sociedade, ou seja,

caracterizadas como multifuncionais. O encontro das dimensões política, filantrópica e

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cultural podem dar esse caráter multifacetado, no entanto, alguns casos são marcados por

especificidades. Em particular, a dimensão filantrópica é distinta da caridade cristã, pois

tocada pelo espírito das Luzes, entende-se que se faz necessário ajudar aos despossuídos,

seria “uma forma de expansão da civilização ocidental e, ao mesmo tempo, um meio

eficaz de criar redes de poder e laços de clientela” (MOREL, 2001:6).

A caridade cristã mediava as relações entre ricos e pobres, marcada pela visão

organicista de Antigo Regime e caracterizada pela naturalização das diferenças na

organização socioeconômica. Os estamentos sociais evidenciam a dinâmica dessas

relações de reciprocidade, não havia condenação na riqueza material, desde que ajudasse

aos desvalidos, tecendo as redes de obrigações interpessoais, como indica Renato Franco

(2011). A fundação das Santas Casas de Misericórdia está atrelada à institucionalização

da caridade, administradas por irmandades leigas, que juntamente com as Câmaras locais,

realizariam ações de auxílios aos pobres. É importante ressaltar seu caráter laico, as

atividades assistenciais, ainda que inspiradas em preceitos católicos, eram realizadas de

maneira autônoma e sem hierarquias, não havendo interferência eclesiástica nos assuntos

administrativos (RUSSELL-WOOD, 1981).

De acordo com Russell-Wood, os princípios caritativos são firmados pelo

Compromisso, datado de 1516, de praticar sete obras espirituais e sete obras corporais,

isso servirá de modelo para as demais Misericórdias criadas nas colônias portuguesas:

Espirituais: 1- Ensinar os ignorantes; 2- Dar bom conselho; 3- Punir os

transgressores com compreensão; 4- Consolar os infelizes; 5- Perdoar as

injúrias recebidas; 6- Suportar as deficiências do próximo; 7- Orar a Deus pelos

vivos e pelos mortos. Corporais: 1- Resgatar cativos e visitar prisioneiros; 2- Tratar dos doentes; 3-

Vestir os nus; 4- Alimentar os famintos; 5- Dar de beber aos sedentos; 6-

Abrigar os viajantes e os pobres; 7- Sepultar os mortos. (RUSSELL-WOOD,

1981: 14).

Dentre os serviços oferecidos pelas Misericórdias estavam a administração de

hospitais, boticas, cemitérios, rodas de expostos e recolhimentos para órfãos. De acordo

com Maria Luiza Marcílio, a preocupação com o atendimento às crianças abandonadas,

pode ser vista pelos decretos vinculados às Ordenações Manuelinas que centralizavam e

padronizavam medidas administrativas para a proteção dos ditos enjeitados, sendo as

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Câmaras responsabilizadas em conceder subsídios para criação dessas crianças.

(MARCÍLIO, 2010:21-22)

O modelo português de assistência fora transferido para as conquistas coloniais, as

primeiras Santas Casas decorriam da associação entre a Coroa e as elites locais para a

aplicação dessa organização assistencial na América portuguesa. A partir do século

XVIII, a elite dirigente é alterada pela presença de comerciantes e homens de negócios, a

atuação desses homens estava vinculada às garantias de sociais locais, os cargos

concedidos eram hierarquizados entre seus membros conforme interesses e ditames

regionais (FRANCO, 2005:28-29).

Os interesses locais ditavam os rumos da saúde na colônia, podendo ser

exemplificados pela fundação da Santa Casa de Misericórdia de Campos dos Goytacazes

que é datada de 1792, sob a administração da Irmandade Nossa Senhora Mãe dos

Homens, o processo envolveu uma articulação política entre homens poderosos da região

e o Ouvidor da Capitania do Espirito Santo, Dr. José Pinto Ribeiro, que ocupou o cargo

de 2º provedor, atuando juridicamente na formação da Misericórdia (LAMEGO, 1951:14-

15). Nesse ponto, torna-se nítido a força do poder local e as alianças que acabavam

surgindo fora do poderio régio, pois era fundamental ter boas relações com os dirigentes

locais, tanto via de benefícios econômicos como de poder mando, ou seja, para se fazer

cumprir os interesses da Coroa portuguesa.7

Com estudos reconhecidos sobre assistência e Santas Casas de Misericórdia, a autora

Laurinda Abreu (2015) explica que ocorre mudanças nas atividades assistenciais, para

além da ação caritativa de motivações religiosas vistas ao longo dos Setecentos, será a

partir das ideias empreendidas por Pina Manique, intendente-geral da polícia portuguesa

(1780-1805), que o Estado assume as responsabilidades dos investimentos para as

melhorias aos mais necessitados no século XIX. E, acrescenta, que as práticas

assistenciais passam por uma lenta mudança do sistema tradicional das Misericórdias para

uma ideia de obrigação humanitária, incumbida em corrigir as desigualdades

socioeconômicas, na “França revolucionária, a filantropia tornou-se sujeito do discurso

7 Para maiores informações sobre as relações entre o poder local e os ouvidores régios ver: ATALLAH,

Claudia C. A. Da justiça em nome d’ElRey: Justiça, ouvidores e inconfidência no centro sul da

américa portuguesa. RJ: Eduerj/Faperj, 2016.

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moral e social estruturado sobre os valores da razão e justiça, que se fez acompanhar de

um manual de instruções a ser usado pelo ‘homem de Estado filantrópico’” (ABREU

2015:7).

Segundo Renato Franco (2015), a importância de pertencer e participar de

instituições de caridade no século XVIII está atrelada ao dever moral das elites para com

os pobres. Na virada do século XIX, a ideia de filantropia permeia as atividades

assistenciais de forma laica, ou seja, os bons costumes e a civilidade estão amparados na

cientificidade e não, somente, nos valores religiosos. Para além, de uma ação caritativa,

fez-se dever das elites o cumprimento de uma “obrigação cívica”:

Também é no século XIX, seriam, sobretudo, os mais afortunados que

tomariam para si a missão altamente prestigiosa de fundar e administrar

instituições que procurassem dar cabo do que consideravam degenerescência

e pobreza. (FRANCO, 2015: 6)

Na obra História da Santa Casa de Campos, Alberto Lamego compila resumos de

documentações acerca das atividades realizadas pela Misericórdia, sem maiores

preocupações com discussões acadêmicas ou historiográficas, indica as principais

benfeitorias realizadas pelos primeiros 56 provedores da instituição. O autor memorialista

descreve a gestão do 40º provedor, o Dr. José Gomes da Fonseca Paraíba, destacando a

questão das expostas que foram agraciadas com a fundação do Asilo da Lapa, em 1864.

O relatório escrito pelo provedor, refere-se à educação das expostas que recebiam apenas

as primeiras letras (gramática nacional), ensino religioso e costura. Nota-se a preocupação

e o interesse de transformar esse asilo em um colégio modelo, para a educação feminina,

lugar este que as filhas das famílias abastadas pudessem estudar em Campos (LAMEGO,

1951:40-41).

Na segunda metade do século XIX, a chamada boa sociedade será alicerce para se

difundir o papel civilizador europeu, criando padrões de comportamento, valores e o

sentimento de identidade entre seus adeptos, ou seja, a introdução da elite para esses

referenciais de ordem e civilização. A sociedade imperial era constituída por uma elite

hierarquizada, a posição de privilégio demarcada por seus membros incluía os cuidados

em termos educacionais, como meio de formação dos futuros cidadãos brasileiros, o

interesse pela aquisição de conhecimentos não incluía críticas políticas aos valores morais

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da época. Os novos valores de prestígio social não buscavam igualdade e, sim, reconhecer

a hierarquização daquela sociedade. (MUAZE, 2003:63-64).

A consolidação do Estado imperial dependia da manutenção da ordem senhorial,

como diz Ilmar R. de Mattos (1987), entendendo que tal processo de formação social

apresentava duas linhas: de restauração, representada pelas elites agrárias; e de expansão,

representada pelos profissionais liberais que correspondiam à elite branca e proprietária.

Ambos os grupos solidificavam o governo imperial, não somente em termos políticos,

mas reafirmavam valores sociais difundidos naquele período:

Assim, pelas “capacidades e habilidades” de seus membros, sempre “brancos”,

a “boa sociedade” tende a se confundir com a sociedade política – “a parte a

mais importante da nacionalidade”. Por ser portadora de liberdade e

propriedade, a ela compete governar, isto é, “dirigir física ou moralmente”, nos

termos mesmos em que já aparecia no Dicionário de Morais, em 1813.

Governar é “reger bem”, quer a Casa – “regulando a sua economia e

administração”, quer o Estado – “dando Leis, e fazendo-as executar”. ”.

Diremos, desde agora, que a boa sociedade constituía o mundo do governo, um

mundo que não apenas se via como tendendo a ser naturalmente ordenado, mas

também portador da incumbência de ordenar o conjunto da sociedade

(MATTOS, 1987:114)

O livro de Registro de Órfãs e Recolhidas ao Asilo de N. S. da Lapa (1864 – 1962)

foi peça inicial para captar a sociabilidade em Campos dos Goytacazes. Outra

documentação imprescindível, nessa primeira análise, foi o relatório da Misericórdia,

notificando as atividades realizadas entre o ano de 1863 e 1864, escrito pelo então

provedor Dr. José Gomes da Fonseca Paraíba. Assim, com leitura mais atenta das atas

camarárias, é possível encontrar nomes significativos dos membros da Misericórdia e

suas relações políticas, pois alguns exerciam atividades na Câmara municipal da cidade,

constatando-se as trocas de informações e obrigações públicas entre ambas instituições8.

Considerando as prerrogativas apresentadas sobre sociabilidades e filantropia,

proponho investigar as relações tecidas pelos membros da Santa Casa de Campos dos

Goytacazes, no Asilo N. S. da Lapa, a partir da segunda metade do século XIX.

Reconheço a importância da assistência institucional atada aos ditames sociais e políticos

locais, desde os tempos coloniais. E, tendo em vista, a escassez de estudos sobre a

8 Relatório d’administração da Santa Casa de Misericórdia da Cidade dos Campos dos Goytacazes no anno

de 1863 e 1864. Arquivo da Santa Casa de Misericórdia de Campos dos Goytacazes. E as Atas das sessões

camararias, Livro 16 – 1857 – 1865. Arquivo da Câmara municipal de Campos dos Goytacazes

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Misericórdia campista, já citada em trabalhos de Renato Franco (2011) e Sheila de Castro

Faria (1998), trago documentações inéditas e pouco exploradas, referentes aos relatórios

da Santa Casa e as atas de sessões da Câmara municipal, que confirmam as relações

estreitas entre essas instituições no Oitocentos.

Referências bibliográficas:

ABREU, Laurinda. Prefácio. In: SANGLARD, Giseli et allii. Filantropos da nação:

sociedade, saúde e assistência no Brasil e em Portugal. Rio de Janeiro: FGV Editora,

2015. p. 7.

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