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Entre filantropia e sociabilidades: o Asilo Nossa Senhora da Lapa em
Campos dos Goytacazes (1864 -1874)
Mariana Salvador da Silva1
Este estudo propõe investigar as relações sociais e políticas estabelecidas pelos
irmãos da Santa Casa de Misericórdia de Campos dos Goytacazes durante os anos de
1864 a 1874, período que compreende a primeira década de existência do Asilo Nossa
Senhora da Lapa, instituição voltada para acolhimento de expostas e órfãs em situação de
abandono e administrada pela Santa Casa. A pesquisa tem por intuito traçar as redes de
sociabilidades estabelecidas por esses homens, a partir da configuração encontrada de
seus casamentos com essas meninas no período compreendido entre 1866 a 1870, sendo
possível observar os laços estreitos de apadrinhamento entre eles, interessados em alçar
cargos políticos e sociais de prestígio, perante a estrutura social hierarquizada do Segundo
Reinado.
A fundação da Misericórdia campista é datada de 1792, sob a administração da
Irmandade Nossa Senhora Mãe dos Homens, que recebe da Câmara um terreno para a
construção da Santa Casa, esse processo envolve uma articulação política entre homens
abastados da região e o Ouvidor da Capitania do Espirito Santo, Dr. José Pinto Ribeiro.
Esse Ouvidor ocupou o cargo de 2º provedor, atuando juridicamente na formação da Santa
Casa, demonstrando as trocas políticas que foram realizadas com subornos e favores na
formação e gerencia dessa instituição (LAMEGO, 1951). Nesse retrato, os funcionários
régios defendem interesses próprios, ao conceder cargos a um poderoso comerciante,
fazendeiro ou negociante recebendo em troca vultosos valores e estabelecendo, em alguns
casos, laços familiares via matrimônios, como forma de selar os compromissos sociais.
A partir do século XIX, as relações políticas e sociais pouco se diferenciaram do
período colonial. Dentre as atividades realizadas pela Santa Casa, as questões
correspondentes aos expostos e órfãos ganham maiores atenções dos provedores, o
abandono e as dificuldades em administrar o destino desses enjeitados são notificados nas
1 Mestranda do PPGHCS/Casa Oswaldo Cruz - Fiocruz e bolsista CNPq
páginas dos relatórios da instituição. Mais adiante, o estudo de caso analisará as expostas
e órfãs do Asilo da Lapa, fundado em 1864, com o intuito de cuidar e encaminhar essas
meninas para bons casamentos.
A historiografia mais recente reformula os debates sobre formação das redes de
sociabilidades, o historiador Alexandre Mansur Barata (2009) julga necessário estudar a
importância dos espaços associativos do século XIX, para melhor compreender a
formação das elites regionais e nacionais, ou seja, lugares de manifestação do fazer
política. As relações entre o Estado e a sociedade estão inseridas dentro de uma política
cultural, entendida como um “conjunto de discursos e práticas políticas simbólicas pelas
quais essas reivindicações são feitas” (BARATA, 2009:52). O autor detém-se aos
acontecimentos no cenário mineiro, advertindo que mais que uma continuação das
relações coloniais, presentes nas Irmandades e nas Misericórdias, desenvolve-se novas
práticas associativas no início do século XIX, com o surgimento das sociedades
filantrópicas. Essas sociedades formulam discussões políticas e sociais, empreendendo
fundações de bibliotecas e produções literárias que visavam a expansão de sabedoria para
povo.
As alegações acima são de extrema importância, por acrescentarem o advento dessas
sociedades filantrópicas, organizando os rumos das discussões políticas e patrióticas no
Brasil. Entretanto, a despeito da importância de instituições como a Misericórdia no
Oitocentos, o caso campista mostra-se deveras relevante. A Santa Casa de Campos
continua, ao que tudo indica nas documentações até aqui examinadas, um importante
epicentro de discussões e alianças políticas locais, para além de todo seu trabalho
assistencial. É oportuno discorrer sobre as relações políticas na Misericórdia campista, o
advogado e político José Fernandes da Costa Pereira alça ao posto de provedor (1868 –
1871) de forma rápida, demonstrando boas relações locais com o antecessor, o
Comendador Paraíba. Isso deve-se a sua experiência prestigiada como presidente de
província (ocupando esse cargo por cinco vezes) e ministro, o que demonstra o poder de
negociação e de mando, em termos locais, da própria instituição em si (LAMEGO,
1951:46-47).
Em O império das províncias. Rio de Janeiro, 1822 – 1889, Fátima Gouvêa (2008)
traça um panorama dos principais aspectos da política imperial, voltando seu olhar para
os espaços políticos regionais e a dinâmica da vida política do Império nas províncias,
em especial a fluminense. A organização do recém-criado Estado contou com estratégias
políticas de diversos grupos, não sendo fácil identificar um único grupo no poder. Os
cargos administrativos não possuíam treinamento (mas eram status social) e havia uma
dependência da magistratura, principalmente, no controle do processo eleitoral para não
ameaçar os poderes integrados; os elos dos grupos locais e setores econômicos. A reforma
do judiciário é parte desse processo de construção e de perpetuação do Estado, esse setor
conectaria os interesses públicos e privados:
O surgimento de uma magistratura distrital “profissional” provou ser um dos
elos mais fortes estabelecidos entre o governo central – como qual tinha laços
institucionais – e as elites locais. Como argumentou Thomas Flory, isso
significou a recuperação de um importante aspecto da herança colonial do
Brasil, já que essa foi a estrutura administrativa mais importante engendrada
no Brasil colonial por Portugal. (GOUVÊA, 2008:76)
Outra questão, trata do aumento da burocracia, vista como medida que atrapalha a
eficiência da máquina administrativa, além do controle nas finanças de obras públicas.
Sem perder de vista o papel da legislatura, essa fora responsável por gerar homogeneidade
política entre os grupos, ou seja, a ideia não era burocratizar e, sim, prevalecer os
interesses políticos locais. As estruturas hierárquicas dentro da organização político-
administrativa eram implementadas de maneira que “as diferenças econômicas e
geográficas desapareciam em face de novas estratificações, baseadas no poder político
em contraposição ao poder econômico” (GOUVÊA, 2008:98), logo, o conceito de
igualdade empregado pelos políticos não posto em prática.
As reflexões apresentadas pela autora mostram o destaque da cidade de Campos e as
querelas das décadas 1860 e 1870 – recorde geográfico e temporal – que contribuem com
a compreensão das relações políticas e sociais deste projeto. A partir dos anos 60, em
meio as divisões políticas, os liberais exercem forte representação dos poderes locais, na
Assembleia Provincial; enfraquecendo a influência dos principais setores econômicos. Os
debates em torno da centralidade ou não da política brasileira, tem duas tentativas de
modificação do sistema municipal, mas o que prevalece é a relação hierárquica das
Câmaras, reconhecida pela vulnerabilidade que essas estavam submetidas diante das
decisões da administração provincial, incluindo a interferência do governo provincial nos
municípios (GOUVÊA, 2008:111).
Durante a segunda metade do século XIX, a arrecadação de impostos realizada pela
Câmara campista está associada a taxação da produção do açúcar, uma das maiores
cobranças registradas na província (GOUVÊA, 2008:39). A decisão de ajuda financeira
dada pelo governo provincial aos municípios, nos anos de 1870, não incluiria a cidade de
Campos, a justificativa era que disponha de uma renda elevada, se comparada com as
demais cidades fluminenses (GOUVÊA, 2008:112-115). Todavia, cabe uma reiteração
diante dessas conclusões, as informações do relatório da Misericórdia de Campos
contradizem esse cenário, pois há o relato de suplica por recursos financeiros, que seriam
destinados a criação dos expostos e aos cuidados das órfãs do Asilo da Lapa, dirigido a
Câmara, responsável pela devidas providencias para o bem do município. De modo geral,
a Santa Casa de Campos administrava suas ações com dificuldades financeiras, são
inúmeros relatos de déficit orçamentário, seja para o trato dos doentes, obras do hospital,
custeio dos expostos, despesas com funcionários, etc. 2
Ao longo do século XIX, as relações políticas e sociais pouco se diferenciaram do
período colonial, resquícios das práticas clientelares estavam presentes na sociedade
campista. Dentre as atividades realizadas pela Santa Casa de Misericórdia de Campos, a
questão dos expostos e órfãos ganha mais atenção dos provedores, pois o abandono e as
dificuldades em administrar o destino desses enjeitados são notificados nas páginas dos
relatórios dos anos 1840, as reclamações protestam os subsídios fornecidos pela Câmara
municipal e as leis orçamentárias da Província estão em vários trechos desses
documentos, pedidos de ajuda são feitos em nome da Misericórdia para auxílio aos
expostos e as demais atividades assistenciais, pois parte considerável das pessoas
atendidas no hospital vinham de outros municípios da região3.
¹ Relatório d’administração da Santa Casa de Misericórdia da Cidade dos Campos dos Goytacazes no anno
de 1844 - 1845; 1846 – 1847; 1847 – 1848. Arquivo da Santa Casa de Misericórdia de Campos dos
Goytacazes 3 Relatório d’administração da Santa Casa de Misericórdia da Cidade dos Campos dos Goytacazes no
anno de 1844 - 1845; 1846 – 1847; 1847 – 1848. Arquivo da Santa Casa de Misericórdia de Campos dos
Goytacazes.
A importância de pertencer e participar de instituições de caridade no século XVIII
está atrelada ao dever moral das elites para com os pobres. Na virada do século XIX, a
ideia de filantropia permeia as atividades assistenciais de forma laica, ou seja, os bons
costumes e a civilidade estão amparados na cientificidade e não, somente, nos valores
religiosos. Para além, de uma ação caritativa, fez-se dever das elites o cumprimento de
uma “obrigação cívica”, “os mais afortunados que tomariam para si a missão altamente
prestigiosa de fundar e administrar instituições que procurassem dar cabo do que
consideravam degenerescência e pobreza” (FRANCO, 2005:6).
O recorte estabelecido para análise é de 1864 a 1874. Neste período, de acordo com
as fontes, são recebidas 49 meninas, sendo 40 expostas e 9 órfãs. Desse grupo 30 casam,
2 falecem e as outras são encaminhadas para companhia de famílias locais ou se retiram
(não há maiores informações). Este livro de registro traz descrições da vida das expostas,
como idade, habilidades domésticas, datas de seus casamentos, o nome dos noivos e
padrinhos e/ou o nome das famílias que algumas foram encaminhadas.4 Os sete primeiros
casamentos dessas jovens (todas expostas) foram com os irmãos da Santa Casa, ou têm
eles como testemunhas da cerimônia, esses homens compunham um rol seleto no cenário
social campista, essas proximidades reforçam as relações políticas com vínculos pessoais
entre seus semelhantes (ou aspirantes) naquela sociedade hierarquizada imperial.
Rede 1 – Relações das expostas, dos noivos e dos padrinhos.
4 Registro de Órfãs e Recolhidas ao Asilo de N. S. da Lapa (1864 – 1962). Arquivo da Santa Casa de
Misericórdia de Campos dos Goytacazes
Padrinho e Irmão da Santa Casa de Misericórdia de Campos
Noivo
Exposta
Noivo, Padrinho e Irmão da Santa Casa de Misericórdia de Campos
Fonte: Registro de Órfãs e Recolhidas ao Asilo de N. S. da Lapa (1864 – 1962)
Em seus escritos, Alberto Lamego (1951) sublinha que alguns desses nomes
exerciam funções dentro da Misericórdia e, com a pesquisa aos relatórios, tal afirmação
pode ser confirmada5. A centralidade dessa rede está nas figuras do tesoureiro e do médico
adjunto da Misericórdia. O primeiro noivo e padrinho, Antonio Pereira da Rocha, era
tesoureiro (na administração do Dr. Paraíba6), seus padrinhos são Rufino Gomes de
Oliveira, que ocupava o cargo de mordomo do hospital; e Dr. José Fernandes da Costa
Pereira, advogado da instituição. O segundo noivo e padrinho, Dr. Antonio Secioso
Moreira de Sá, médico adjunto do hospital, tem como padrinhos o provedor Paraíba e o
5 Relatório d’administração da Santa Casa de Misericórdia da Cidade dos Campos dos Goytacazes no anno
de 1863 e 1864. Arquivo da Santa Casa de Misericórdia de Campos dos Goytacazes 6 Provedor da Santa Casa entre os anos de 1860 a 1868, ver: LAMEGO, A. História da Santa Casa de
Misericórdia de Campos. Rio de Janeiro, 1981.
tesoureiro Rocha; uma exposta também foi encaminhada para companhia de sua família
em 1868.
Mostra-se interessante a posição privilegiada desse médico, além de ser padrinho
de mais duas cerimonias (Zelinda Rosa Octaviana e Joaquim Gonçalves Vianna;
Geraldina Carolina das Dores e Antonio dos Santos Queiróz), consegue ter como
padrinho de seu casamento o próprio provedor Paraíba, homem de grande prestígio social
na Misericórdia e em Campos; e o Dr. José Fernandes da Costa Pereira, bacharel formado
em Direito pela faculdade de São Paulo, que se tornou o provedor seguinte na
administração da Santa Casa (1868-1871), dedicado também à política. O Dr. José
Fernandes era campista e representou “sua Província em duas legislaturas provinciais e
fora presidente das Províncias do Espírito Santo, do Ceará, de S. Paulo, do Rio Grande
do Sul e de Pernambuco”, exerceu o cargo de Ministro da Agricultura, participava do
Conselho do Imperador e era Cavalheiro da Ordem de Cristo (LAMEGO, 1951:47).
Nas últimas décadas, as discussões acerca da noção de sociabilidade ganharam
contornos mais realistas para as análises da formação do Estado e nação brasileira no
século XIX. Essa categoria é incluída na pesquisa história de forma crítica e inovadora
pelo historiador francês Maurice Agulhon, com a publicação de Pénitents et francs-
maçons de d’ancienne Provence, concebendo que a compreensão das sociabilidades
implica na existência de associações e suas transformações, dada em uma configuração
circunscrita com dimensões geográficas e temporais, acrescentando ser pertinente as
identidades culturais na observação de determinados grupos regionais e suas aspirações
políticas no campo social (MOREL, 2001:5).
Para Marco Morel (2001), o desafio dos pesquisadores brasileiros em realizar uma
tipologia das sociabilidades no cenário imperial torna-se complexo, devido as diferenças
das associações e a dificuldade em classificar grupos tão distintos. Ao empregar um
modelo metodológico rígido, as diferenças poderiam ser camufladas, ou em
contrapartida, na falta de critérios poderia particularizar o caso e comprometer o estudo.
Por isso, é importante ter em mente que essas associações não são necessariamente
unifuncionais, essas estavam em diferentes configurações na sociedade, ou seja,
caracterizadas como multifuncionais. O encontro das dimensões política, filantrópica e
cultural podem dar esse caráter multifacetado, no entanto, alguns casos são marcados por
especificidades. Em particular, a dimensão filantrópica é distinta da caridade cristã, pois
tocada pelo espírito das Luzes, entende-se que se faz necessário ajudar aos despossuídos,
seria “uma forma de expansão da civilização ocidental e, ao mesmo tempo, um meio
eficaz de criar redes de poder e laços de clientela” (MOREL, 2001:6).
A caridade cristã mediava as relações entre ricos e pobres, marcada pela visão
organicista de Antigo Regime e caracterizada pela naturalização das diferenças na
organização socioeconômica. Os estamentos sociais evidenciam a dinâmica dessas
relações de reciprocidade, não havia condenação na riqueza material, desde que ajudasse
aos desvalidos, tecendo as redes de obrigações interpessoais, como indica Renato Franco
(2011). A fundação das Santas Casas de Misericórdia está atrelada à institucionalização
da caridade, administradas por irmandades leigas, que juntamente com as Câmaras locais,
realizariam ações de auxílios aos pobres. É importante ressaltar seu caráter laico, as
atividades assistenciais, ainda que inspiradas em preceitos católicos, eram realizadas de
maneira autônoma e sem hierarquias, não havendo interferência eclesiástica nos assuntos
administrativos (RUSSELL-WOOD, 1981).
De acordo com Russell-Wood, os princípios caritativos são firmados pelo
Compromisso, datado de 1516, de praticar sete obras espirituais e sete obras corporais,
isso servirá de modelo para as demais Misericórdias criadas nas colônias portuguesas:
Espirituais: 1- Ensinar os ignorantes; 2- Dar bom conselho; 3- Punir os
transgressores com compreensão; 4- Consolar os infelizes; 5- Perdoar as
injúrias recebidas; 6- Suportar as deficiências do próximo; 7- Orar a Deus pelos
vivos e pelos mortos. Corporais: 1- Resgatar cativos e visitar prisioneiros; 2- Tratar dos doentes; 3-
Vestir os nus; 4- Alimentar os famintos; 5- Dar de beber aos sedentos; 6-
Abrigar os viajantes e os pobres; 7- Sepultar os mortos. (RUSSELL-WOOD,
1981: 14).
Dentre os serviços oferecidos pelas Misericórdias estavam a administração de
hospitais, boticas, cemitérios, rodas de expostos e recolhimentos para órfãos. De acordo
com Maria Luiza Marcílio, a preocupação com o atendimento às crianças abandonadas,
pode ser vista pelos decretos vinculados às Ordenações Manuelinas que centralizavam e
padronizavam medidas administrativas para a proteção dos ditos enjeitados, sendo as
Câmaras responsabilizadas em conceder subsídios para criação dessas crianças.
(MARCÍLIO, 2010:21-22)
O modelo português de assistência fora transferido para as conquistas coloniais, as
primeiras Santas Casas decorriam da associação entre a Coroa e as elites locais para a
aplicação dessa organização assistencial na América portuguesa. A partir do século
XVIII, a elite dirigente é alterada pela presença de comerciantes e homens de negócios, a
atuação desses homens estava vinculada às garantias de sociais locais, os cargos
concedidos eram hierarquizados entre seus membros conforme interesses e ditames
regionais (FRANCO, 2005:28-29).
Os interesses locais ditavam os rumos da saúde na colônia, podendo ser
exemplificados pela fundação da Santa Casa de Misericórdia de Campos dos Goytacazes
que é datada de 1792, sob a administração da Irmandade Nossa Senhora Mãe dos
Homens, o processo envolveu uma articulação política entre homens poderosos da região
e o Ouvidor da Capitania do Espirito Santo, Dr. José Pinto Ribeiro, que ocupou o cargo
de 2º provedor, atuando juridicamente na formação da Misericórdia (LAMEGO, 1951:14-
15). Nesse ponto, torna-se nítido a força do poder local e as alianças que acabavam
surgindo fora do poderio régio, pois era fundamental ter boas relações com os dirigentes
locais, tanto via de benefícios econômicos como de poder mando, ou seja, para se fazer
cumprir os interesses da Coroa portuguesa.7
Com estudos reconhecidos sobre assistência e Santas Casas de Misericórdia, a autora
Laurinda Abreu (2015) explica que ocorre mudanças nas atividades assistenciais, para
além da ação caritativa de motivações religiosas vistas ao longo dos Setecentos, será a
partir das ideias empreendidas por Pina Manique, intendente-geral da polícia portuguesa
(1780-1805), que o Estado assume as responsabilidades dos investimentos para as
melhorias aos mais necessitados no século XIX. E, acrescenta, que as práticas
assistenciais passam por uma lenta mudança do sistema tradicional das Misericórdias para
uma ideia de obrigação humanitária, incumbida em corrigir as desigualdades
socioeconômicas, na “França revolucionária, a filantropia tornou-se sujeito do discurso
7 Para maiores informações sobre as relações entre o poder local e os ouvidores régios ver: ATALLAH,
Claudia C. A. Da justiça em nome d’ElRey: Justiça, ouvidores e inconfidência no centro sul da
américa portuguesa. RJ: Eduerj/Faperj, 2016.
moral e social estruturado sobre os valores da razão e justiça, que se fez acompanhar de
um manual de instruções a ser usado pelo ‘homem de Estado filantrópico’” (ABREU
2015:7).
Segundo Renato Franco (2015), a importância de pertencer e participar de
instituições de caridade no século XVIII está atrelada ao dever moral das elites para com
os pobres. Na virada do século XIX, a ideia de filantropia permeia as atividades
assistenciais de forma laica, ou seja, os bons costumes e a civilidade estão amparados na
cientificidade e não, somente, nos valores religiosos. Para além, de uma ação caritativa,
fez-se dever das elites o cumprimento de uma “obrigação cívica”:
Também é no século XIX, seriam, sobretudo, os mais afortunados que
tomariam para si a missão altamente prestigiosa de fundar e administrar
instituições que procurassem dar cabo do que consideravam degenerescência
e pobreza. (FRANCO, 2015: 6)
Na obra História da Santa Casa de Campos, Alberto Lamego compila resumos de
documentações acerca das atividades realizadas pela Misericórdia, sem maiores
preocupações com discussões acadêmicas ou historiográficas, indica as principais
benfeitorias realizadas pelos primeiros 56 provedores da instituição. O autor memorialista
descreve a gestão do 40º provedor, o Dr. José Gomes da Fonseca Paraíba, destacando a
questão das expostas que foram agraciadas com a fundação do Asilo da Lapa, em 1864.
O relatório escrito pelo provedor, refere-se à educação das expostas que recebiam apenas
as primeiras letras (gramática nacional), ensino religioso e costura. Nota-se a preocupação
e o interesse de transformar esse asilo em um colégio modelo, para a educação feminina,
lugar este que as filhas das famílias abastadas pudessem estudar em Campos (LAMEGO,
1951:40-41).
Na segunda metade do século XIX, a chamada boa sociedade será alicerce para se
difundir o papel civilizador europeu, criando padrões de comportamento, valores e o
sentimento de identidade entre seus adeptos, ou seja, a introdução da elite para esses
referenciais de ordem e civilização. A sociedade imperial era constituída por uma elite
hierarquizada, a posição de privilégio demarcada por seus membros incluía os cuidados
em termos educacionais, como meio de formação dos futuros cidadãos brasileiros, o
interesse pela aquisição de conhecimentos não incluía críticas políticas aos valores morais
da época. Os novos valores de prestígio social não buscavam igualdade e, sim, reconhecer
a hierarquização daquela sociedade. (MUAZE, 2003:63-64).
A consolidação do Estado imperial dependia da manutenção da ordem senhorial,
como diz Ilmar R. de Mattos (1987), entendendo que tal processo de formação social
apresentava duas linhas: de restauração, representada pelas elites agrárias; e de expansão,
representada pelos profissionais liberais que correspondiam à elite branca e proprietária.
Ambos os grupos solidificavam o governo imperial, não somente em termos políticos,
mas reafirmavam valores sociais difundidos naquele período:
Assim, pelas “capacidades e habilidades” de seus membros, sempre “brancos”,
a “boa sociedade” tende a se confundir com a sociedade política – “a parte a
mais importante da nacionalidade”. Por ser portadora de liberdade e
propriedade, a ela compete governar, isto é, “dirigir física ou moralmente”, nos
termos mesmos em que já aparecia no Dicionário de Morais, em 1813.
Governar é “reger bem”, quer a Casa – “regulando a sua economia e
administração”, quer o Estado – “dando Leis, e fazendo-as executar”. ”.
Diremos, desde agora, que a boa sociedade constituía o mundo do governo, um
mundo que não apenas se via como tendendo a ser naturalmente ordenado, mas
também portador da incumbência de ordenar o conjunto da sociedade
(MATTOS, 1987:114)
O livro de Registro de Órfãs e Recolhidas ao Asilo de N. S. da Lapa (1864 – 1962)
foi peça inicial para captar a sociabilidade em Campos dos Goytacazes. Outra
documentação imprescindível, nessa primeira análise, foi o relatório da Misericórdia,
notificando as atividades realizadas entre o ano de 1863 e 1864, escrito pelo então
provedor Dr. José Gomes da Fonseca Paraíba. Assim, com leitura mais atenta das atas
camarárias, é possível encontrar nomes significativos dos membros da Misericórdia e
suas relações políticas, pois alguns exerciam atividades na Câmara municipal da cidade,
constatando-se as trocas de informações e obrigações públicas entre ambas instituições8.
Considerando as prerrogativas apresentadas sobre sociabilidades e filantropia,
proponho investigar as relações tecidas pelos membros da Santa Casa de Campos dos
Goytacazes, no Asilo N. S. da Lapa, a partir da segunda metade do século XIX.
Reconheço a importância da assistência institucional atada aos ditames sociais e políticos
locais, desde os tempos coloniais. E, tendo em vista, a escassez de estudos sobre a
8 Relatório d’administração da Santa Casa de Misericórdia da Cidade dos Campos dos Goytacazes no anno
de 1863 e 1864. Arquivo da Santa Casa de Misericórdia de Campos dos Goytacazes. E as Atas das sessões
camararias, Livro 16 – 1857 – 1865. Arquivo da Câmara municipal de Campos dos Goytacazes
Misericórdia campista, já citada em trabalhos de Renato Franco (2011) e Sheila de Castro
Faria (1998), trago documentações inéditas e pouco exploradas, referentes aos relatórios
da Santa Casa e as atas de sessões da Câmara municipal, que confirmam as relações
estreitas entre essas instituições no Oitocentos.
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