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CONTAR A VIDA E O QUE ESTÁ AO REDOR DELA: As Praias de Agnès, de Agnès Varda 1 Tainah Negreiros Oliveira de Souza 2 Orientador: Henri Pierre Arraes de Alencar Gervaiseau Área: Meios e Processos Audiovisuais Linha de Pesquisa: História, Teoria e Crítica Resumo A proposta do trabalho é analisar o filme “As Praias de Agnès” observando seu caráter autobiográfico e suas especificidades no cinema de Agnès Varda, nesse percurso em que ela põe em contato as suas memórias, seus filmes, seus registros e a história do seu tempo. O interesse do trabalho está em analisar os elementos que a diretora mobiliza nessa busca de uma forma cinematográfica para contar sua vida, com enfoque para o trabalho de montagem, que é aspecto fundamental nessa constante articulação entre aspectos pessoais e coletivos. Palavras-Chave: Agnès Varda; Memória; História; Autobiografia Abstract “To tell a life and what is around it: The Beaches of Agnès by Agnès Varda” The purpose of this study is to analyze the film “The Beaches of Agnès” noting its autobiographical particulars and its specificity in the cinema of Agnès Varda. In this film the director connects her memories, films, imagetic archive with the history of her time. The work is dedicated to analyze the elements Agnès Varda mobilizes in this search of a cinematic way to tell her life, focusing in editing, which is a fundamental aspect in the constant articulation between personal and colective matters. Key words: Agnès Varda; Memory; History; Autobiography “Se me abrirem, encontrarão uma praia”, diz Agnès Varda no início de As Praias de Agnès. Filme em que a diretora parte das praias que ela nos mostra e de suas paisagens interiores - as praias guardadas nas suas memórias - para nos contar sua vida. Varda nos encara, assume a subjetividade do que está por vir e nos convida a um percurso pelas suas memórias, pelo que decidiu contar em contato com suas criações e a história de sua época. É nessa ligação que reside o interesse desse trabalho pela obra da diretora. A proposta é analisar As Praias de Agnès observando seu caráter autobiográfico e os elementos que constituem o filme como tal, com enfoque para o trabalho de montagem. A estrutura do filme parte da presença de Agnès Varda, da sua narrativa em meio as paisagens que fazem parte da sua vida. A fala da diretora mobiliza materiais de arquivo, trechos de seus filmes, referências às suas obras e reencenações de vivências, criadas pela diretora para tratar de questões pessoais em contato com aspectos históricos que a constituem. As Praias de Agnès se volta para as primeiras memórias da diretora na Bélgica, onde nasceu, para a relação dela com a 1 Trabalho apresentado na IV Jornada Discente do Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais (PPGMPA-USP). Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, 05 de dezembro de 2014. 2 Doutoranda em Meios e Processos Audiovisuais com pesquisa voltada para a relação entre História e Memória na obra da cineasta Agnès Varda. Email: [email protected]

Contar a vida e o que está ao redor dela: As Praias de Agnès, de Agnès Varda

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  • CONTAR A VIDA E O QUE EST AO REDOR DELA: As Praias de Agns, deAgns Varda1

    Tainah Negreiros Oliveira de Souza2Orientador: Henri Pierre Arraes de Alencar Gervaiseau

    rea: Meios e Processos AudiovisuaisLinha de Pesquisa: Histria, Teoria e Crtica

    ResumoA proposta do trabalho analisar o filme As Praias de Agns observando seu carterautobiogrfico e suas especificidades no cinema de Agns Varda, nesse percurso em que ela pe emcontato as suas memrias, seus filmes, seus registros e a histria do seu tempo.O interesse do trabalho est em analisar os elementos que a diretora mobiliza nessa busca de umaforma cinematogrfica para contar sua vida, com enfoque para o trabalho de montagem, que aspecto fundamental nessa constante articulao entre aspectos pessoais e coletivos.

    Palavras-Chave: Agns Varda; Memria; Histria; Autobiografia

    AbstractTo tell a life and what is around it: The Beaches of Agns by Agns VardaThe purpose of this study is to analyze the film The Beaches of Agns noting its autobiographicalparticulars and its specificity in the cinema of Agns Varda. In this film the director connects hermemories, films, imagetic archive with the history of her time. The work is dedicated to analyze theelements Agns Varda mobilizes in this search of a cinematic way to tell her life, focusing inediting, which is a fundamental aspect in the constant articulation between personal and colectivematters. Key words: Agns Varda; Memory; History; Autobiography

    Se me abrirem, encontraro uma praia, diz Agns Varda no incio de As Praias de Agns.

    Filme em que a diretora parte das praias que ela nos mostra e de suas paisagens interiores - as praias

    guardadas nas suas memrias - para nos contar sua vida. Varda nos encara, assume a subjetividade

    do que est por vir e nos convida a um percurso pelas suas memrias, pelo que decidiu contar em

    contato com suas criaes e a histria de sua poca. nessa ligao que reside o interesse desse

    trabalho pela obra da diretora. A proposta analisar As Praias de Agns observando seu carter

    autobiogrfico e os elementos que constituem o filme como tal, com enfoque para o trabalho de

    montagem.

    A estrutura do filme parte da presena de Agns Varda, da sua narrativa em meio as

    paisagens que fazem parte da sua vida. A fala da diretora mobiliza materiais de arquivo, trechos de

    seus filmes, referncias s suas obras e reencenaes de vivncias, criadas pela diretora para tratar

    de questes pessoais em contato com aspectos histricos que a constituem. As Praias de Agns se

    volta para as primeiras memrias da diretora na Blgica, onde nasceu, para a relao dela com a

    1 Trabalho apresentado na IV Jornada Discente do Programa de Ps-Graduao em Meios e Processos Audiovisuais (PPGMPA-USP). Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo, 05 de dezembro de 2014. 2 Doutoranda em Meios e Processos Audiovisuais com pesquisa voltada para a relao entre Histria e Memria na obrada cineasta Agns Varda. Email: [email protected]

  • fotografia, se dedica tambm a mostrar a concepo dos seus primeiros filmes, a relao e a criao

    voltada para celebrar a memria do seu companheiro, o diretor Jacques Demy e, ainda, seguindo

    nesse percurso, pelo seu processo de criao e pelas questes histricas fundamentais para ela,

    como a relao com os movimentos sociais como os Panteras Negras e o Movimento Feminista.

    Mas eu no estava descobrindo algo sobre mim. Eu estava fazendo uma descobertasobre o cinema. Minha questo era: Eu poderia encontrar uma formacinematogrfica para contar uma vida e o que est ao redor dela? Quais as minhasferramentas? Como fazer disso cinema e no s recitar algo? Eu consegui o quequeria em alguns pontos, principalmente quando eu o concebi de forma vagamentefalsa. (VARDA, 2009)

    Nos perguntamos junto com ela sobre suas ferramentas, sobre os aspectos que foram

    fundamentais na concepo da obra e sobre seu desejo no somente de contar o vivido, atravs do

    filme, mas de evidenciar o que o movimento de se voltar para o passado exige dela e a estimula

    como artista. A proposta de fazer uma discusso inicial sobre os elementos que constituem a obra

    como autobiografia, discutir questes referentes fenomenologia da memria que nos ajudam a

    entender questes trabalhadas pela diretora, escolhas formais feitas por ela e, por fim, esse debate

    nos leva a uma abordagem mais detalhada do trabalho de montagem e o modo como ele

    representativo do movimento que Agns Varda engendra nessa busca por contar sua vida atravs do

    cinema.

    Colocar-se em cena

    Para tratar de As Praias de Agns, a ideia dialogar com trabalhos que tratem das

    especificidades da autobiografia no cinema. Philippe Lejeune (2014) tem grande relevncia na

    elaborao de uma definio para a autobiografia e no seu interesse nas variadas formas que ela se

    apresenta3. O autor demonstra muito cuidado ao falar da autobiografia no cinema pois concentrou

    muito do seu tempo na busca de uma definio para a autobiografia na literatura mas o cinema, por

    sua vez, tambm vem dizer eu (LEJEUNE, 2008, p. 274) e um tanto inevitvel que ele passe a

    fazer parte das preocupaes dos que se dedicam questo.

    Philippe Dubois, em estudo recente (2012), se insere no debate e se alinha a algumas

    questes que intrigaram autores como Philippe Lejeune e Elizabeth Bruss (1980), ao se perguntar:

    Podemos falar, verdadeiramente, de autobiografia no cinema? Como conciliar a autenticidade3 Em sua obra O pacto autobiogrfico, o autor explicita seu percurso at chegar a definio de autobiografia comosendo: Narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua prpria existncia, quando focalizaespecialmente sua historia individual, em particular a histria de sua personalidade. (LEJEUNE, 2008, p.58) Essadefinio demonstra uma pesquisa mais focada na literatura em prosa mas que, no decorrer do texto, ele vai tratando deampliar ao falar da autobiografia na poesia e no cinema.

  • subjetiva singular da autobiografia com o coletivismo sempre artificial e objetivante que impe a

    realizao de um filme? que distino fazer, nesse terreno, entre fico, documentrio e ensaio

    pessoal?(DUBOIS, 2012. p. 4) Partindo disso, tambm coloca:

    a autobiografia implica um olhar auto-reflexivo, ou seja, permite de certo modo umautoquestionamento do dispositivo: voltado para si mesmo, o sujeito no tem outraopo de exterioridade seno pondo-se em cena, logo tornando presentes suasprprias condies de existncia enquanto imagem; por outro lado, e talvezsobretudo, a questo da autobiografia posiciona a problemtica das imagens naordem explcita da subjetividade, na ordem da vida psquica e dos processos dememria. (DUBOIS, 2012, p. 4-5)

    Para esse trabalho, nos aproximamos de Philippe Dubois e no seu enfoque para as questes

    que dizem respeito ao documentrio autobiogrfico moderno. No seu percurso, em que trabalha

    com autores como Chris Marker, Hollis Frampton e tambm com a obra de Agns Varda, Dubois

    contribui para o entendimento tambm das particularidades do movimento da diretora ao se voltar

    para sua prpria histria atravs do cinema e, acima de tudo, de colocar no s sua histria mas sua

    imagem filmada e reencenada a servio desse contar.

    Um dos aspectos que mais chama ateno em As Praias de Agns a presena da diretora em

    cena: Agns Varda se filma aos 80 anos, suas rugas, suas marcas, seu jeito de falar e sua comoo.

    Talvez essa seja uma das chaves da relevncia do estudo sobre a autobiografia no cinema: a

    problematizao da imagem da diretora colocada em cena enquanto articula suas memrias e

    questes histricas que fazem parte da sua formao. Sobre essa caracterizao, Phillipe Dubois

    acrescenta a questo da mise en scne do sujeito feita por si prprio (DUBOIS, 2012, p. 4). Em

    As Praias de Agns, antes de qualquer informao ou crdito, vemos uma praia no fim do dia ou ao

    amanhecer, e passamos a ver Agns Varda de corpo inteiro enquanto caminha em marcha r. O

    filme se inicia com essa mulher enquanto anda para trs e j anuncia o movimento que far por todo

    filme, seu exerccio de se voltar ao passado. Em uma sequncia logo depois dessa, Varda inicia uma

    espcie de investigao ou contemplao inicial da sua prpria imagem.

    Passamos a ver Agns Varda junto com sua equipe de filmagem enquanto coloca uma srie de

    espelhos na areia da praia. Varda d as orientaes para as posies e vemos alguns serem

    colocados de frente para o mar, outros em frente de outros espelhos. Vemos a diretora e sua equipe

    refletidos neles, no que parece um esforo inicial de um autorretrato. Um autorretrato que, a

    diretora j deixa claro de incio ao mostrar sua equipe enquanto a ajuda, ser construdo com a

    colaborao e o trabalho de outras pessoas. A questo entre a individualidade e a coletividade da

    construo de uma autobiografia no cinema j nos colocada de incio de forma bastante bem

    resolvida para diretora, como se nos dissesse: Vou falar de mim mas, para isso, preciso dos

    outros. Ou como ela diz, de fato, nessa primeira parte do filme: Fao o papel de uma velhota que

  • conta sua vida mas, no entanto, o que me interessa so os outros.

    A partir dessas questes postas, Agns Varda expe suas indagaes e proposies sobre que

    imagem ela quer fazer dela mesma antes de iniciar essa histria em que se colocar em cena.

    Passamos a ver a diretora refletida nesses espelhos enquanto diz quero ser filmada em velhos

    espelhos manchados e velada por lenos. Essa sequncia inicial de As Praias de Agns dialoga

    diretamente com as colocaes de Phillipe Dubois no esforo de delimitar o lugar da autobiografia

    no cinema, que seria dessa relao do diretor com sua prpria exterioridade ou com sua prpria

    imagem em cena. Essa obrigatria reflexidade implcita em tudo isso.

    Varda desejar se ver ornada por um leno com uma de suas cores preferidas, na paisagem que

    a constitui nesse autorretrato que ela deseja criar. Como contar a vida como imagem? Conforme a

    definio de Philippe Lejeune: (no autorretrato) a organizao temtica e analgica suplantam a

    narrao e, segundo o autor, a maior parte dos textos autobiogrficos (regidos por um pacto

    autobiogrfico) comporta, em propores e hierarquizaes diferentes, uma parte autobiografia

    (narrativa) e uma parte autorretrato (organizao temtica) (2014, p.64). difcil elaborar essa

    separao rigorosa dessas duas formas de inveno de si, mas esse filme de Varda se aproxima da

    observao de Lejeune sobre essa convivncia das duas maneiras.

    Podemos afirmar que, nesse incio, preciso para a diretora elaborar um autorretrato para

    iniciar um percurso narrativo. preciso um estudo da sua imagem por ela mesma antes de se lanar

    nas suas memrias e compartilh-las. Esse aspecto um ponto de partida que pontuar o filme e

    colocar em questo a sua imagem filmada atravessar a obra.

    Enquanto coloca os espelhos na praia junto de sua equipe, Agns Varda e sua trupe passam a

    ser vistos tambm atravs do reflexo deles. A partir desse cenrio mostrado de vrios ngulos e

    possibilidades, a diretora inicia uma narrativa feita por ela em cena, e comea tambm a fazer as

    associaes que permearo todo o filme ao comentar, movida pela aparncia de um dos espelhos

    que coloca na areia, que um deles lembra os mveis que haviam na casa de seus pais em Bruxelas.

    Passamos a ver a diretora enquanto percorre com as mos as laterais dos espelhos buscando

    comparaes entre eles e os antigos mveis que fazem parte das suas memrias.

    Ainda nessa sequncia, passamos a ouvir a narrao em off da diretora sobre as imagens da

    colocao dos espelhos na praia. Ela segue falando da casa de sua infncia, dos seus pais, das

    msicas que costumavam ouvir l. Uma delas, a Sinfonia Inacabada de Schubert, passa a ser ouvida

    no filme, enquanto seguimos nesse movimento inicial dos espelhos que mostram a imagem da

    diretora, sua equipe e outros espelhos. A praia ponto de partida para a diretora colocar o registro

    da sua prpria imagem em questo, para narrativa e para reinveno do vivido que vai compor toda

    a obra.

  • O que se v tentativa de inventar formas de explorar lugares que se ligam svezes por tnues linhas de conexo. Ou seja: Varda reivindica para si o filme. Suacmera parece ter uma existncia prpria. Talvez, dessa impresso de umasubjetividade sempre presente, venha a sensao de que seus filmes tm um teor deautobiografia: no porque falam de narrativas de um suposto mundo real dacineasta, mas porque ela faz uso desse poder da observao, da manifestao doseu olhar. Mais do que isso. Podemos pensar nos espelhos estendidos na praia. Alitemos algum que assiste as imagens, temos algum que fabrica imagens, e algumque atua nessas imagens. Ator, espectador e realizador em um mesmo dispositivo epessoa algo que j marcava Os Catadores e Eu, um filme irmo deste As Praias.(BEZERRA, 2009)

    A colocao de Julio Bezerra contribui para que, nessa primeira parte do texto, consigamosum esboo do que seria a autobiografia no cinema de Agns Varda. Se no clebre conceito de

    Philippe Lejeune, em que se refere basicamente literatura, ele considera a autobiografia como uma

    narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua prpria existncia, quando focaliza

    especialmente sua histria individual, em particular a histria de sua personalidade. (2014, p.58)

    aqui podemos falar do trabalho de Agns Varda pensando uma narrativa cinematogrfica em que

    esses elementos do conceito esto presentes mas com o acrscimo da reflexo sobre sua prpria

    imagem colocada em cena feita pela diretora, daquela que atua, que assiste e fabrica atravs das

    possibilidades oferecidas pelo cinema, como a de colocar uma cano ouvida na infncia ligada s

    imagens de espelhos voltados para o mar. Todos elementos compe essa criao de uma mise en

    scne de si, ou seja, uma organizao da sua presena atual, ou reinventada, dentro de determinados

    espaos e momentos que fazem parte do percurso das suas memrias.

    J nesse incio, a diretora vai desnudando uma srie de procedimentos que sero fundamentais

    e fazem parte da composio de todo o filme. O colocar-se em cena de Agns Varda o ponto de

    partida para que ela promova associaes, articulaes, para que ela elabore uma costura entre o

    que se narra, o que a narrativa mobiliza e conecta: suas memrias, seus arquivos, suas lacunas e

    tambm, sua capacidade de reinveno a partir desse conjunto.

    Reencenaes e imagens de vrias pocas em um mesmo plano

    Ao mencionarmos a mise en scne de si como sendo uma aspecto importante da

    autobiografia no cinema, isso estimula que observemos um pouco mais como Agns Varda trabalha

    no filme sua presena atravs de sua imagem atual, em que ela aparece como narradora, e tambm

    as criaes feitas de imagens dela do passado, nas reencenaes das suas memrias.

    Como parte dessa sua concepo, Varda faz um movimento que tambm relevante de ser

    tratado nessa anlise com enfoque em aspectos autobiogrficos e na questo da montagem: o modo

    como a diretora insere vrias temporalidades em um mesmo plano.

  • Um dos aspectos a ser observado o modo como Agns Varda trabalha com encenaes de

    suas lembranas, principalmente as da infncia e juventude, sem grandes preocupaes de

    fidelidade, adotando uma postura antimimtica, como afirma Claire Boyle em texto sobre o filme

    (2012). Sempre quando o filme se dedica s reconstrues, Varda se coloca em cena. No incio do

    filme, ainda enquanto vemos a praia que introduz a obra, Varda conta de passeios s praias de sua

    infncia. E para falar disso, Varda recorre s encenaes imperfeitas, muito mais interessadas no

    que o contar representa e em evidenciar a relao que a diretora tem no reestabelecer dessas

    conexes. No incio de As Praias de Agns, para deixar isso claro, vemos algumas crianas em uma

    espcie de reconstituio de um dia de infncia da diretora na praia. No plano est tambm Agns

    Varda acompanhando e participando dessa feitura (fig.1). Enquanto aparece no plano a diretora

    afirma No sei, no sei o que reconstituir.. E dessa forma estabelece um tateamento do que seria

    esse esforo de contar sua vida atravs do cinema. Agns Varda destaca a imperfeio e inexatido

    desse gesto, principalmente quando deseja reencenar experincias. um modo de lembrar a todos

    de que se trata de um filme sobre o que ela conta mas, acima de tudo, sobre o ato de contar, suas

    possibilidades e sobre a relao que a diretora estabelece com suas lembranas.

    Para Varda, nenhum filme consegue registrar mais do que qualquer pintura arealidade do sujeito cujo retrato tem a tarefa de transmitir. () As especificidadesdo seu meio denotam que o cinema no captura uma imagem real de uma pessoa,gerando, em vez disso, uma proliferao de retratos isolados, cada um menosreal, cada um, inevitavelmente, em certo sentido, uma fico. (BOYLE, 2012, p.13)

    Assumir esse lugar de fico, ou de inveno, importante para Agns Varda pois d conta

    das impossibilidades da linguagem de recobrir o vivido. Diante disso, a diretora prefere refazer,

    recriar a partir das suas memrias e das lacunas que fazem parte dela. A diretora faz parte de uma

    gerao, muito marcada pelas experincias da Segunda Guerra Mundial e experincias de luta e

    violncia da segunda metade do sculo XX, que contribuem para esse pensamento sobre a relao

    entre experncia e linguagem em que se reconhece a dificuldade de abarcar o vivido. Aspecto que a

    diretora procura pincelar no filme evidenciando seus esforos imperfeitos de reconstituio.

    Para tratar dessa relao que a diretora tem com as lembranas e com sua obra, Agns Varda

    recorre tambm colagem. Atravs dessa sobreposio de imagens em um mesmo plano, Varda

    conecta pocas e lugares. Durante o filme, ela fala da sua vida na ocasio que se mudou para os

    Estados Unidos com Jacques Demy e, ao retornar ao pas, ao se deparar com um dos muros

    filmados por ela em seu filme Mur Murs (1981), mais uma vez ela se insere no quadro (fig. 2) em

    uma repetio do gesto antes por ela filmado. O modo como a diretora se insere no quadro remete

    ao seu desejo de lembrar sempre de que se trata de um filme sobre como ela se relaciona com as

    suas memrias e com as suas criaes.

  • (fig.1) (fig.2)

    . Aos poucos, enquanto acompanhamos o filme, os procedimentos de Agns Varda vo sendo

    mostrados com clareza mantendo esse senso de inexatido e inacabamento. O filme vai

    demonstrando o desejo de evidenciar esses desejos de composio. Agns Varda valoriza os

    artifcios que representam no a reconstituio, que ela no consegue conceber, mas o criar diante

    do modo como as memrias a constituem.

    Temos ento mais um importante elemento que caracteriza essa incurso autobiogrfica de

    Agns Varda. Um compromisso de fidelidade no com a repetio mas com suas impresses diante

    do passado. por elas que Agns Varda mobiliza sua fora criativa em que justape, recorta, cola,

    reinventa. Aos poucos, vai ficando cada vez mais claro que, para a diretora, decidir contar sua vida

    atravs do cinema uma deciso de experimentao.

    Cinema de evocao e busca

    Na busca de uma forma cinematogrfica para contar sua vida, Agns Varda decidiu estruturar

    seu filme a partir da ligao entre a sua narrativa, as reencenaes que faz do vivido, tudo isso em

    contato com sua obra, numa procura do que h nela dessas vivncias que fazem parte da sua

    formao. Entender esse movimento que Agns Varda elabora nos ajuda muito em uma incurso

    inicial sobre esse filme numa busca de delinear o que pode defin-lo como autobiogrfico. Isso no

    parece difcil de notar, mas notar a singularidade dos elementos utilizados por Varda nessa

    autobiografia feita para o cinema parece uma questo iluminadora e importante numa leitura sobre a

    obra.

    Atravs do trabalho que desenvolve em seu filme, a diretora evidencia, principalmente atravs

    da montagem, os procedimentos mnemnicos envolvidos em sua realizao. Observar o modo que

    As Praias de Agns foi estruturado nos faz pensar no esforo de Aristteles de uma distino de

    determinados estatutos da memria. Ou como aborda Paul Ricoeur: Ao traar, ento, uma linha

  • entre a simples presena da lembrana e o ato de recordao, Aristteles preservou para sempre um

    espao de discusso digno da aporia fundamental trazida luz pelo Teeteto, a da presena do

    ausente. (2007, p. 38) As Praias de Agns pode ser entendido a partir dessa constante convivncia

    entre o ato de recordao, que remete a um gesto mais ativo em relao lembrana e a sua simples

    presena, da lembrana como apario mobilizada pelo pelo presente, que nos textos de Aristotles

    que Ricoeur retoma, ser chamada de evocao. Entender o trabalho de Varda concebido em As

    Praias de Agns requer que entendamos a Busca e a Evocao.

    Em As praias de Agns, podemos apontar os dois plos colocados por Ricoeur, desde a

    constncia da evocao - desse fazer presente de um passado apreendido - at a busca, em que

    mais uma vez Ricoeur recorre aos gregos para definir como uma luta contra o esquecimento.

    Buscamos aquilo que tememos ter esquecido.4 Varda dirige sua fora criadora nesses dois

    sentidos, h o que inevitavelmente vem, ou que convocado, e o trabalho, a recordao, a busca

    sobre o que no pode ser esquecido e precisa ser mostrado atravs do seu cinema.

    interessante que observemos esses aspectos importantes dos estudos da fenomenologia da

    memria no prprio filme, buscando entender em que momento Varda deseja representar essa

    associao quase involuntria entre o que se comenta e o que se lembra (evocao) ao ato de

    recordar como um trabalho (busca), um esforo de construo representado pelo prprio filme

    como um todo.

    Varda coloca-se em cena para percorrer os lugares que mobilizam as suas memrias. As praias

    so o ponto de partida mas Varda passar pela Blgica, pela casa em que cresceu, por Ste, cidade

    em que passou a infncia durante a Segunda Guerra at os anos escolares na Escola do Louvre. A

    construo, do filme tal qual vemos, pode ser entendida pela lgica da busca, do trabalho, da

    confeco das memrias atravs de uma luta contra o esquecimento, a luta de quem cria.

    Partindo da lgica da busca, o filme inteiro atravessado pela lgica do remetimento, da

    evocao. Enquanto Agns Varda narra, como se as imagens fossem aparecendo, sendo chamadas,

    convocadas a compor um conjunto. E mais uma vez, atravs das possibilidades de articulao que

    o cinema lhe oferece que ela vai encontrando caminhos para elaborar sua escrita de si.

    Enquanto conta de suas viagens praia com Jacques Demy e a filha Rosalie, Varda observa as

    ostras e as ondas e diz: Quelle belle vague! o que basta para que o filme remeta Nouvelle

    Vague. Vemos imagens recentes de Varda, em sua casa, andando de costas, como faz por vrias

    4 Paul Ricoeur elabora essa polarizao em seu esboo fenomenolgico da memria e na busca decompreender certos aspectos que a constituem: Entendamos por evocao o aparecimento atual de umalembrana. esta que Aristteles destinava o termo mneme, designando por anamnesis o que chamaremos,mais adiante, de busca ou recordao. E ele caracterizava a mneme como pathos, como afeco: ocorre quenos lembramos disto ou daquilo, nesta ou naquela ocasio; ento, temos uma lembrana. Portanto, emoposio busca que a evocao uma afeco. Enquanto tal, em outras palavras, desconsiderando suaposio polar, a evocao traz a carga do enigma que movimentou as investigaes de Plato e Aristteles,ou seja, a presena agora do ausente anteriormente percebido, experimentado, apreendido.(2007, p. 45)

  • vezes no filme - deixando clara necessidade de voltar, sempre, continuamente. Passamos a ver uma

    fuso entre essa Varda em marcha r e a personagem Clo, de Clo de 5 s 7 (1962), caminhando

    pelas ruas de Paris, seguindo em seu dia angustiado que a diretora trata no filme. Enquanto vemos

    cenas dessa obra, Varda conta de sua feitura, de suas inspiraes.

    Em As praias de Agns, vamos de Clo de 5 s 7 a Salut les Cubans (1963) em um salto. Sim,

    enquanto fala do sucesso de Clo j podemos ouvir a msica cubana ao fundo. Clo de 5 s 7

    contribuiu para que a diretora viajasse pelo mundo e uma dessas paradas, Cuba, tambm virou

    filme, um filme feito inteiramente de fotografias em preto e branco do cotidiano da ilha ps-

    revolucionria. Tudo isso para pensarmos o movimento que Varda elabora, da narrativa sobre o

    vivido que vai convocando seus trabalhos, suas fotografias, as cenas dos seus filmes e a narrativa

    sobre eles que remete a outros filmes.

    O movimento segue por toda a obra e no de maneira nica, as evocaes so bastante

    improvveis, como o trabalho da memria. Nem sempre fazemos idia sobre que imagem

    chamar outra, ou sobre como as palavras da sua narrao podem evocar certos temas, certas

    questes e certos registros. Interessa observar como se do essas atualizaes e como contribuem

    para esse conjunto curioso que revela o que voltar exige da diretora e sua criao. O fragmento,

    ento, j no um detalhe, uma representao (AMIEL, p.50) Vemos dois trechos de filmes da

    obra de Varda que se aproximam no por aspectos temticos ou estticos mas por associao

    comparativa aos movimentos mentais das lembranas, das convivncias, das associaes

    incessantes elaboradas pela diretora enquanto se volta para sua vida e suas obras.

    Dessa forma, Agns Varda desenvolve seu filme atravs de uma montagem narrativa

    permeada por composies tambm discursivas que do conta dessa relao que a diretora

    estabelece com o passado. Trata-se de um filme de tateamento sobre as possibilidades de contar o

    vivido, sobre as conexes que a diretora deseja fazer, sobre a imagem de si que deseja mostrar,

    sobre as memrias que deseja compartilhar e as possibilidades de fazer tudo isso.

    Memria, Histria e Montagem

    Ao tratarmos dos elementos mnemnicos que mobilizam Agns Varda na construo de As

    Praias de Agns, eles nos levam a uma discusso mais longa sobre o uso da montagem feito pela

    diretora no filme. J vimos que Varda organiza a obra a partir de sua fala bastante subjetiva

    colocada em cena e, dessa forma, reencena experincias do passado e promove ligaes entre o que

    diz, suas reflexes e como certos aspectos j estiveram presentes em sua obra. Todo esse

    movimento estimula que faamos uma reflexo sobre o trabalho de montagem e no que ele

  • importante nessa composio de uma obra autobiogrfica em sua constante articulao entre

    aspectos da vida pessoal e da vida coletiva.

    O itinerrio de As Praias de Agns movido pela vida de Agns Varda e pelo ritmo do seu

    pensamento que ela deseja compartilhar com o espectador. Das memrias de infncia, da concepo

    dos filmes s suas experincias de luta na vida pblica.

    Agns Varda e sempre foi ligada aos movimentos sociais nos mais variados momentos da

    sua vida. Em As praias de Agns, ela torna evidente o seu olhar curioso e fascinado pelos Panteras

    Negras na sua passagem pelos Estados Unidos na dcada de 1960. Para falar desse contato, ela

    recorre ao seu filme Black Panthers (1968), feito na poca obra composta de registros que deixam

    claro o olhar tocado da diretora pelo movimento. Ela dedica tambm uma parcela importante do seu

    filme sua relao com o movimento feminista. Ao tratar dessa experincia, de sua presena no

    movimento, inevitvel remeter s suas obras que tratam da luta das mulheres e nessa passagem

    do filme que possvel observar claramente esse trabalho com a montagem que visa explicitar essa

    conexo entre ntimo e coletivo - entre questes de poca que a mobilizaram e questes bastante

    pessoais que a empurraram para luta e motivaram a concepo de suas obras. possvel notar,

    ainda, o lugar da montagem como elemento para dar forma a essas reflexes.

    Para falar da experincia de Agns Varda no movimento feminista necessrio ouv-la e

    preciso tambm convocar alguns de seus filmes que lidaram com essa questo como L'Une Chante,

    L'Autre pas (1977) e Sem Teto e Sem Lei (1982). O primeiro filme, primeira vista, pode ser visto

    como algo didtico, ou at mesmo romntico, sobre o feminismo em formao. O filme lida com a

    tomada de conscincia de duas mulheres mas singular, principalmente, pelo seu ponto de partida:

    o olhar sobre o percurso de Pauline e Suzanne. Varda as acompanha na sua amizade solidria, nas

    suas experincias de dor, de difceis escolhas, de solido e de comunidade, principalmente na

    partilha de experincias com outras mulheres. O segundo conta a histria de Mona, uma mulher que

    decide largar o emprego, a famlia e sua casa para viver uma experincia de extrema liberdade

    como andarilha, sem contatos ou vnculos. Essa histria contada atravs do que aqueles que

    cruzaram com Mona tem a dizer sobre ela. No momento em que conta de sua experincia no

    movimento feminista, em As praias de Agns, esses dois filmes so trazidos tona.

    Nos deteremos em um momento revelador do filme de 1985 que estar presente em As

    Praias de Agns na passagem em que a diretora intercala seu depoimento e trechos de Sem Teto e

    Sem Lei. Vemos primeiro Agns Varda, como em uma continuidade da narrativa que vinha fazendo

    por todo o filme, em primeiro plano, frente a uma manifestao de rua: Procurei ser uma feminista

    alegre mas sentia-me muito zangada. Nesse momento, h um corte para uma cena do filme de

    1985 em que vemos a protagonista Mona caminhando ao ar livre e o momento exato em que ela

    chuta uma lata. Voltamos a ver Varda na mesma cena anterior e ela diz: A violao, as mulheres

  • agredidas, as remoes de cltoris... e voltamos a ver Mona em Sem Teto e Sem Lei, dessa vez

    batendo em um porto de loja semi-aberto. Segue esse movimento entre o depoimento de Varda e as

    cenas do filme em que a diretora constri um conjunto que trate dessa impossibilidade dessa alegria

    diante de tantas indignaes no que se refere violncia contra as mulheres (Seq. 1).

    (Seq.1)

    Ainda nessa passagem do filme, a diretora segue com esse movimento de remetimento

    constante e, mais uma vez, traz tona a protagonista de Sem Teto e Sem Lei. Dessa vez, vemos uma

    insero dela em outros de seus filmes. Trata-se do momento em que a diretora, em As praias de

    Agns, fala e mostra a montagem elaborada por ela entre imagens da atriz Sandrine Bonnaire, como

    Mona, no seu filme As Cento em Uma Noites (1995), em que vemos a personagem libertria,

    interpretada pela atriz no filme Sem Teto e Sem Lei, ser transformada em Joana D'Arc.

    Curiosamente, papel que a atriz havia feito um ano antes no filme de Jacques Rivette, Jeanne la

  • Pucelle (1994). Essa sequncia ainda tem o peso da fala de Varda sobre sua experincia no

    movimento feminista e sobre o modo como ela quer falar dela com seu cinema. A diretora v nessa

    ligao feita atravs da montagem, a possibilidade de representar esses duas presenas femininas

    em sua luta por afirmao, e o lugar dessa militncia em sua obra.

    A magia reflexiva da montagem flmica a de tratar o espao-tempo fsico aparentesegundo as modalidades (associativas) do mundo das idias; e, inversamente, poder darcorpo (um corpo aparentemente real) s nossas fantasmagorias e aos fantasmas queassombram nossa histria. (NINEY, 2009, p.92)

    Agns Varda destaca em seus filmes uma postura inquieta em relao aos documentos que

    tem em mos e tem com eles desafios de montagem, modos variados de explicitar sua viso da

    histria e das mltiplas memrias que pode construir. Nas obras da diretora, a montagem elemento

    fundamental na articulao entre aspectos pessoais e coletivos, entre questes referentes ao seu

    tempo histrico e aspectos de suas memrias. Nesse filme de Agns Varda, a ordem da montagem

    tambm a ordem do pensamento. (AMIEL, 2007, p.53) na montagem posta de forma radical e

    evidente que a diretora encontra caminho para falar da sua indignao e de uma experincia

    marcante e formadora.

    Agns Varda organiza essas sequncias destacadas aqui a partir de algo que Vincent Amiel

    colocou como sendo o fragmento como princpio (2007, p. 50) O modo como os trechos dos seus

    filmes, colocados como unidades significativas, se relacionam com a sua fala e a sua presena na

    tela promovem uma inquietao. como um movimento das suas reflexes que nos so

    apresentados e permeiam a narrativa. Aspecto j to comentado e observado por estudiosos da

    montagem sovitica e que est muito presente em documentrios modernos e filmes ensaios. Amiel

    menciona essa herana notria nos filmes de Alain Resnais e coloca que o diretor no deixou de

    experimentar o cinema como arte da montagem, na qual cada imagem, exposta a encontros

    surpreendentes, se afirma primeiramente como um fragmento do mundo. (idem, p.67)

    Caracterstica que tambm podemos atribuir Agns Varda. Tambm h na diretora essa vocao

    para conceber a montagem como possibilidade de encontros - Encontros entre o que se diz e sua

    obra, entre um sentimento do presente e uma imagem do passado, entre personagens dos seus filmes

    que ela desloca pelo tempo e espao. Varda demonstra-se muito disposta a colocar o cinema, e a

    montagem como cinema, a servio dos movimentos do pensamentos, dos itinerrios da memria.

    Esse momento do filme ilumina uma srie de questes que nos so colocadas sobre as

    escolhas de Agns Varda para contar sua vida para film-la, conceb-la como cinema. Entramos

    aqui na seara no s da autobiogrfia, do autorretrato, do ensaio, de todos esses aspectos que

    envolvem essa auto-reflexidade, mas tambm das especificidades do olhar feminino sobre opercurso. Do olhar de uma diretora mulher sobre sua vida e sobre questes importantes na sua

  • formao que estaro presentes na sua obra. De acordo com Michelle Citron, em sua anlise da

    autobiografia a partir de sua dimenso de gnero: O ato autobiogrfico historicamente

    significante para mulheres e todos aqueles que no tiveram voz ou frum pblico para seu discurso.

    () um trabalho autobiogrfico arrisca expor aquilo que a cultura quer silenciar. (1999, p. 242-

    243) Agns Varda, assim como outras importantes autoras da literatura e do cinema, compreende

    esse lugar de mulher que conta, e toda essa passagem do filme dedicada s suas experincias de

    luta, e forma como essas experincias aparecem em seus filmes, demonstram um esforo em

    evidenciar essa relao que pode ser compreendida como algo que se estabelece entre as memrias

    e a histria. A montagem ferramenta importante nesse cinema autobiogrfico de Agns Varda para

    essa demarcao de lugares, de posturas, como esse elemento discursivo em meio a narrativa sobre

    sua vida.

    Por todo o filme, em meio a narrao sobre suas experincias, Agns Varda vai buscando

    dar corpo sua relao com o passado. Algo que pode ser entendido tambm como a

    cinescritura vardaniana - conceito elaborado pela diretora sobre seu cinema, que para ela se trata

    de uma espcie de escrita diretamente cinematogrfica que se pratica desde os reprages at a

    montagem, um argumento que se escreve durante a realizao do filme (VARDA, 1993, p.38). Em

    outras palavras, a cinescritura proposta por Varda seria um itinerrio autoral e estilstico do filme

    feito das escolhas nas mais variadas instncias da criao. Em As Praias de Agns, a cinescritura

    adquire a dimenso de uma cinescritura de si, em que todo esse movimento mobilizado a

    servio do ato de contar a vida dela. No filme, Agns Varda se v diante do seu passado, das

    narrativas possveis de serem feitas dele, dos registros e das suas criaes e tem, diante de tudo,

    exigncias e motivaes para lidar com esse conjunto. Diante disso, h um esforo em dar uma

    forma cinematogrfica no somente ao passado mas tambm ao ato de contar, ao olhar, ao modo

    que a diretora se lana sobre tudo isso.

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