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UNIVERSIDADE DO MINHO Instituto de Estudos da Criança Instituto de Ciências Sociais CONTEXTOS E PRETEXTOS PARA NOVOS ESPAÇOS EDUCATIVOS Alberto Nídio Barbosa de Araújo e Silva Dissertação final elaborada sob a orientação do Professor Doutor Albertino Gonçalves, apresentada ao Instituto de Estudos da Criança e ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho, com vista à obtenção do grau de Mestre em Sociologia da Infância. BRAGA 2003

Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

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UNIVERSIDADE DO MINHO Instituto de Estudos da Criança

Instituto de Ciências Sociais

CONTEXTOS E PRETEXTOS PARA

NOVOS ESPAÇOS EDUCATIVOS

Alberto Nídio Barbosa de Araújo e Silva Dissertação final elaborada sob a orientação do Professor Doutor Albertino Gonçalves, apresentada ao Instituto de Estudos da Criança e ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho, com vista à obtenção do grau de Mestre em Sociologia da Infância.

BRAGA 2003

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

II

AGRADECIMENTOS Quero que estas primeiras palavras sejam a expressão da minha profunda

gratidão a todos quantos me ajudaram, directa ou indirectamente, a pôr de pé este

projecto.

Ao Professor Doutor Albertino Gonçalves que orientou todo o estudo de uma

forma amiga, dedicada e disponível, a que juntou sempre um grande espírito de abertura

e rigor científico, contribuindo desse modo, decisivamente, para o seu enriquecimento

global.

Ao Agrupamento de Escolas da Sede – Vila Verde:

• Ao seu Conselho Executivo, que nos abriu as portas dos

estabelecimentos de ensino proporcionando, assim, as condições

materiais indispensáveis para concretizar esta investigação;

• Aos Senhores Professores titulares das turmas onde se inseriam os

alunos investigados, pela sua colaboração empenhada;

• Aos alunos, sem a participação dos quais o nosso trabalho teria

soçobrado nos seus objectivos fundamentais.

Aos entrevistados, pela disponibilidade demonstrada, sinónimo da sua abertura

e sensibilidade para a temática equacionada.

Ao Professor Doutor Manuel Sarmento, respeitável e respeitoso amigo de

décadas, pelo incentivo que nos deu antes e pelo conselho sábio que nunca depois nos

enjeitou.

Finalmente e de um modo muito particular à minha família. À Fátima,

companheira de todas as horas e aos meus filhos, Nídio e Inês, também estudantes

universitários, agradeço terem partilhado solidariamente comigo esta longa e solitária

jornada. É a eles que, como preito da minha homenagem, ofereço e dedico este trabalho.

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III

OS SENHORES DO MUNDO NÃO PODEM IGNORAR

QUE………….

Pelos bordéis de Manila ou nas casas térreas do Yemen olhos tristes guiam

corpos e mãos emagrecidas de onde brota o prazer de alguns e a luxúria de uns outros.

Na África e no Oriente, médio ou distante, soldadinhos de carne trocam os de

chumbo por armas ou bombas que lhes retalham cruelmente o corpo e a alma.

Por toda a parte milhões de crianças vendem o seu trabalho escravo por um

quase nada amargamente sofrido e chorado, selado com as calosidades da carne

esmagada das mãos e com feridas que sangram e doem um raio de uma dor que

ninguém quer ver.

Estas não são as crianças que têm fome de pão e de amor, nem as que têm frio

por dentro e por fora, nem sequer as que morrem roídas pela doença que as mina às

vezes mesmo antes de nascer.

Aquelas são o que são mais isto que tantas vezes têm que ser, também.

Todas juntas são o exemplo cruel do “admirável mundo novo”, que trovas

inebriantes cantam ao ritmo de celestiais musicalidades que abafam os gritos de

sofrimento de tantas crianças ou lhes encobre o soluçar quando chorar já não remedeia a

desdita que lhes enegrece e atormenta o quotidiano.

O mundo que lhes proclamou os direitos vai soçobrando numa incapacidade

angustiante de os cumprir e fazer cumprir por toda a parte.

Enquanto a cidade dorme no regalo do seu bem-estar, milhões, muitos

milhões, de crianças há muito que deixaram de acreditar no Pai Natal vergadas à dureza

de uma vida cruel que lhes desencantou a magia dos verdes anos e esmagou o sonho de

ser feliz.

E mesmo as que dormem em berços doirados, que acreditam no Jesus que as

protege, fazem com que doa ainda mais a desdita de todas quantas foram paridas no

lado errado do mundo.

Desgraçadamente.

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IV

INDICES

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V

INDICE GERAL

Agradecimentos ………………………………………………………….. II

Índices:

Geral ………………………………………………………….. V

Figuras ………………………………………………………….. XI

Gráficos ………………………………………………………….. XII

Quadros ………………………………………………………….. XIV

Anexos ………………………………………………………….. XV

Resumos:

Resumo em Português ………………………………………….. XVIII

Resumo em Francês ………………………………………….. XIX

Resumo em Inglês ………………………………………….. XX

Introdução:

Ao Tema ………………………………………………………….. 1

Ao Estudo ………………………………………………………….. 2

PRIMEIRA PARTE

ENQUADRAMENTO TEÓRICO

CAPITULO I

Reflexão em torno do processo socializador

1. Introdução …………………………………………………………. 5

2. Alguns legados da teoria clássica da socialização ………………….. 7

2.1. O Funcionalismo (Émile Durkheim) ………………………….. 8

2.1.1. A sociedade como construtora do indivíduo ………….. 8

2.1.2. Educar para construir o homem ideal ………………….. 9

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VI

2.1.3. Os elementos da moralidade ……………………………. 10

2.1.4. Como estabelecer nas crianças os elementos da moralidade … 12

2.2. O Interaccionismo Simbólico (George Herbert Mead) …………….. 15

2.2.1. Os indivíduos como construtores das suas próprias identidades .. 15

2.2.2. O I e o Me como construtores do Self …………………….. 17

2.3. Estrutura social ou acção humana como determinantes na emergência

do indivíduo? ……………………………………………………. 21

2.4. A socialização como construção social da realidade …………….. 22

2.5. A socialização através da interacção de gerações …………….. 27

3. Socialização em contexto institucional ……………………………. 29

4. Socialização em contextos informais ……………………………………. 32

4.1. Os grupos de pares ……………………………………………. 33

4.2. O jogo, o brinquedo e a brincadeira ……………………………. 34

4.3. A televisão no quotidiano das crianças e o lado perverso da violência …... 38

4.3.1. Breve bosquejo em torno das teorias dos efeitos ……………. 39

4.3.2. Variáveis determinantes dos efeitos da violência na TV ……. 41

5. A vez à voz das crianças …………………………………………… 44

CAPITULO II

Tempos e espaços sociais na infância

Sobre o Tempo …………………………………………………………… 47

Secção I

1.O tempo …………………………………………………………………… 48

2. Divisão social do tempo ……………………………………………. 49

3. Tempo livre e lazer ……………………………………………………. 51

3.1. Perspectiva histórica ……………………………………………. 51

3.2. Tipologia do tempo livre ………………………………………….. 52

3.3. Tempo de lazer ……………………………………………………. 54

4. O tempo livre e o lazer como problema social …………………….. 55

Secção II

1.Tempos sociais na infância ……………………………………………. 56

1.1. Tempo escolar ……………………………………………………. 57

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VII

1.2. Tempo livre e lazer …………………………………………………. 58

2. Ocupação dos tempos livres na infância ……………………………. 59

2.1. Considerações prévias ……………………………………………. 59

2.2. Orientações institucionais ……………………………………………. 61

2.3. Algumas respostas da sociedade civil ……………………………. 64

2.4. Tempo para vadiar ……………………………………………………. 65

CAPÍTULO III

Infância – A letra e a careta

1. Infância ……………………………………………………………. 68

1.1. Uma certa retórica falaciosa ……………………………………. 68

1.2. Problema social de ontem e de hoje …………………………….. 69

2. A letra ……………………………………………………………. 72

2.1. Cidadania da criança: um percurso longo e difícil ………………... 72

2.2. A criança e a protecção da lei …………………………………….. 75

2.2.1. No domínio nacional ……………………………………. 76

2.2.2. No domínio internacional …………………………….. 77

2.2.3. A lei das leis …………………………………………….. 78

2.3. Portugal e a Convenção dos Direitos da Criança …………………. 80

2.3.1. Nota introdutória …………………………………………….. 80

2.3.2. Breve clarificação conceptual …………………………….. 81

2.3.3. Aplicação da Convenção: II Relatório …………………….. 83

2.3.3.1. Finalidades dos relatórios …………………….. 83

2.3.3.2. Medidas gerais estruturantes …………………….. 84

2.3.3.3. Medidas gerais directoras da acção …………….. 85

2.3.3.4. Medidas sectoriais ……………………………. 87

2.3.4. Algumas notas conclusivas ……………………………. 88

2.4. Estatuto do Aluno – uma conquista relevante ……………………. 89

2.5. O direito ao tempo livre, ao lazer e ao prazer ……………………. 90

3. A careta

3.1. Considerações breves ……………………………………………. 92

3.2. Infância em Portugal – aspectos mais marcantes ………………… 92

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VIII

3.2.1. De carácter geral ……………………………………………. 92

3.2.2. A problemática do trabalho infantil ……………………. 94

3.2.3. A criança vítima e vitimadora ……………………………. 96

3.2.4. As crianças solitárias ……………………………………. 97

3.2.5. O abandono escolar ……………………………………. 98

3.3. Deficiências mais visíveis ……………………………………. 99

3.4. Algumas notas conclusivas ……………………………………. 100

SEGUNDA PARTE

ESTUDO EMPIRICO

CAPITULO IV

Perscrutando um naco da realidade

1. Definição do estudo e da amostra ………………………………….… 102

2. O objecto de estudo

2.1. Caracterização contextual ……………………………………. 104

2.2. O Agrupamento de Escolas da Sede – Vila Verde

2.2.1. Breve história e caracterização da estrutura …………….. 107

2.2.2. Recursos físicos ……………………………………………. 108

2.2.3. Corpo discente ……………………………………………. 109

2.2.4. Contexto familiar ……………………………………………. 112

2.3. O papel do projecto educativo ou o valor da aposta no trabalho de projecto ... 114

2.3.1. Génese da escola de projecto ……………………………. 114

2.3.2. Consagração da escola de projecto autónoma ……………. 115

2.3.3. Contextualização da temática ……………………………. 117

2.4. As actividades de ocupação de tempos livres ……………………. 117

3. Objectivos do estudo …………………………………………………… 118

4. Alguns pressupostos de onde podemos partir ……………………. 119

5. Recolha de dados: metodologia, fundamentação e tramitação processual ……….. 121

6. Informação recolhida: tratamento, ordenação e apresentação …………. 123

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IX

CAPITULO V

Análise, interpretação e discussão dos resultados

Breve introdução …………………………………………………………… 125

Análise dos resultados do inquérito

1. Caracterização do público-alvo ……………………………………. 126

2. Contexto familiar: aspectos sócio-demográficos ……………………. 128

3. Ocupações escolares das crianças ……………………………………. 131

4. Ocupações não escolares das crianças: alguns indicadores …………….. 131

5. Sentimento manifestado pelas crianças face às suas actividades

5.1. Actividades que mais as ocupam …………………………………….. 134

5.2. Gostos que lhes despertam …………………………………….. 135

5.3. Um olhar particular sobre o ATL …………………………….. 137

5.4. Companhias mais preferidas e desejadas…………………………….. 138

5.5. Companheiros de brincadeira …………………………………….. 139

5.6. Gostos e desgostos …………………………………………….. 139

6. Uma leitura dos resultados do inquérito …………………………….. 141

7. Duas particularidades ……………………………………………………. 147

CAPITULO VI

Análise das entrevistas

1. Tendências e lógicas de acção ……………………………………. 152

1.1. O valor e o uso do tempo livre ……………………………………. 154

1.2. Roda do tempo livre ……………………………………………. 156

1.3. Subsídios para uma solução do problema dos tempos livres …….. 159

1.4. Contributos institucionais ……………………………………. 161

1.5. Outros registos relevantes ……………………………………. 162

1.6. Apontamento final ……………………………………………. 164

2. Algumas notas conclusivas ……………………………………………. 164

CONCLUSÃO

Ocupação dos tempos livres – Contributos

1. O contexto como factor fundamental ………………………………….. 167

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X

2. A aprendizagem social e a perspectiva ecológica do desenvolvimento humano …. 168

3. Um papel determinante para três institutos dos tempos hodiernos …….. 171

3.1. O partenariado ……………………………………………………. 172

3.2. A comunidade educativa …………………………………………. 173

3.3. A escola de projecto autónoma ……………………………………. 175

4. Síntese final ……………………………………………………………. 176

Bibliografia:

Referências bibliográficas …………………………………….. 182

Sites na Internet …………………………………………….. 196

Normativos legais …………………………………………….. 198

Fontes de informação …………………………………………….. 201

Prolongamentos …………………………………………………………………. 203

Recomendações ……………………………………………………………. 205

Anexos ………………………………………………………………………….. 207

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XI

Índice de Figuras

Figura 1 – Organograma do tempo 50

Figura 2 – Localização geográfica do concelho do Agrupamento

de Escolas da Sede – Vila Verde no concelho de Vila Verde 107

Figura 3 – Roda do tempo livre 158

Figura 4 – Teia de Solidariedade 160

Figura 5 – Sustentação do tempo livre 163

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XII

Índice de Gráficos

Gráfico 1 – Freguesias do Agrupamento – evolução demográfica 105

Gráfico 2 – Evolução global 105

Gráfico 3 – Alunos do1.º ciclo 109

Gráfico 4 – Alunos do pré-escolar 109

Gráfico 5 – Distribuição dos alunos por idades 110

Gráfico 6 – Distribuição dos alunos por situação escolar 110

Gráfico 7 – Distribuição dos alunos por sexos 111

Gráfico 8 – Alunos matriculados – tendências evolutivas 111

Gráfico 9 – Distribuição parental por profissão 112

Gráfico 10 – Idades dos pais 113

Gráfico 11 – Habilitações dos pais 113

Gráfico 12 – Média de irmãos 113

Gráfico 13 – Distribuição da amostra por idades 126

Gráfico 14 – Distribuição da amostra por sexo 127

Gráfico 15 – O que gostavas de ser (raparigas) 127

Gráfico 16 – O que gostavas de ser (rapazes) 128

Gráfico 17 – Constituição dos agregados familiares 128

Gráfico 18 – Grau de escolaridade dos pais 129

Gráfico 19 – Profissão do pai 129

Gráfico 20 – Profissão da mãe 130

Gráfico 21 – Ocupação dos pais 130

Gráfico 22 – Actividades ocupacionais das crianças fora da escola 133

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XIII

Gráfico 23 – Actividades que ocupam mais tempo (globalmente e de

crianças com os pais empregados) 134

Gráfico 24 – Actividades que ocupam mais tempo (por sexos) 135

Gráfico 25 – Actividades que mais gostam de fazer 136

Gráfico 26 – Actividades que menos gostam de fazer 137

Gráfico 27 – Afazeres no ATL 137

Gráfico 28 – Com quem gostavam de passar mais tempo 138

Gráfico 29 – O que gostam de fazer com essas pessoas 139

Gráfico 30 – Com quem brinca 139

Gráfico 31 – O que faz e não gosta de fazer 140

Gráfico 32 – O que gostava muito de fazer nos tempos livres 140

Gráfico 33 – Ocupação institucional 142

Gráfico 34 – Actividades nunca praticadas (indicadores mais elevados) 143

Gráfico 35 – Actividades menos praticadas 144

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XIV

Índice de Quadros

Quadro 1 – Características diferenciadoras entre socialização primária e

socialização secundária 25

Quadro 2 – Características distintivas das sociedades tradicionais modernas 28

Quadro 3 – Divisão do tempo livre 53

Quadro 4 – Alguns indicadores da situação da infância no mundo 70

Quadro 5 – Títulos de notícias referentes a crianças 71

Quadro 6 – Caracterização dos direitos convencionados 82

Quadro 7 – Medidas sectoriais aplicadas entre 1995 e 1998 88

Quadro 8 – Número de crianças atendidas, por idades, nas CPM 93

Quadro 9 – Problemáticas que mais atingem as crianças 94

Quadro 10 – Cumprimento da componente lectiva 131

Quadro 11 – Actividades praticadas e preferências 145

Quadro 12 – Escolha das actividades 146

Quadro 13 – Sinopse das actividades praticadas e oscilações mais visíveis 147

Quadro 14 – Actividades com particular significado 148

Quadro 15 – Contextualização da violência na TV 150

Quadro 16 – Resultados globais da presença da violência no

espectro televisivo português 151

Quadro 17 – Valorização do tempo livre por justaposição com o tempo escolar 154

Quadro 18 – Espaços institucionalizados de ocupação dos tempos livres 177

Quadro 19 – Espaços e actividades onde as crianças passam o tempo

entregues a si próprias 177

Quadro 20 – Acesso a meios educativos não escolares 178

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XV

Índice de Anexos

Anexo A – Concelho de Vila Verde: Agrupamentos de escolas criados

ao abrigo do disposto no Decreto-Lei n.º 115-A/98, de 4 de Maio 210

Anexo B – Concelho de Vila Verde: contextualização no distrito de Braga 212

Anexo C – Agrupamento de Escolas da Sede – Vila Verde:

contextualização geográfica no concelho de Vila Verde 214

Anexo D – Agrupamento de Escolas da Sede – Vila Verde: implantação

do movimento associativo por freguesias 216

Anexo E – Agrupamento de Escolas da Sede – Vila Verde: tipificação

dos edifícios onde funciona o 1.º ciclo do ensino básico 218

Anexo F – Agrupamento de Escolas da Sede – Vila Verde: tipificação

dos edifícios onde funciona a educação pré-escolar 220

Anexo G – Agrupamento de Escolas da Sede – Vila Verde: distribuição

por estabelecimentos de ensino dos alunos da educação pré-escolar 222

Anexo H – Agrupamento de Escolas da Sede – Vila Verde: distribuição

por estabelecimentos de ensino dos alunos do 1.º ciclo do ensino básico 224

Anexo I – Agrupamento de Escolas da Sede - Vila Verde: equipamentos

desportivos existentes nas freguesias 226

Anexo J – Matriz do questionário passado aos alunos 228

Anexo L – Pedido de autorização da investigação com os alunos feito

à Direcção Regional de Educação do Norte e respectiva concessão 233

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

XVI

Anexo M – Pedido de autorização de entrada nas escolas para proceder à

aplicação do questionário, feito ao Conselho Executivo do Agrupamento

de Escolas da Sede – Vila Verde 236

Anexo N – Apresentação do propósito investigativo e pedido de colaboração

aos docentes que leccionavam os alunos inquiridos 239

Anexo O – Comunicação aos Pais e Encarregados de Educação dos alunos

investigados para conhecimento da acção e consequente consentimento 241

Anexo P – Guião das entrevistas 243

Anexo Q – Cronograma da Pesquisa 247

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

XVII

RESUMOS

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

XVIII

RESUMO

A ocupação do tempo não escolar das crianças, principalmente o que fica entre

a escola e a família, constitui o ponto de partida para a presente investigação.

Problema social com grande vis ibilidade nos tempos que correm, mercê, por

um lado, da impossibilidade que à família se coloca na guarda dos filhos quando não

estão na escola, sobretudo a partir do momento em que o cônjuge feminino ingressou

maciçamente no mundo do trabalho, e, por outro, do eclodir de novas e perigosas

franjas de marginalidade envolvendo jovens cada vez mais novos, a ocupação daquele

que, também, é conhecido como tempo livre, consubstancia um bom pretexto para que

se encontrem novos contextos, que permitam fazer desse importante tempo social um

momento com significado relevante no processo de socialização das crianças, onde, em

segurança, haja lugar, simultaneamente, para novas aprendizagens e para o uso

espontâneo e discricionário de tempos que lhes proporcione a fruição de verdadeiros

momentos de lazer.

A investigação, que em torno desta candente problemática desenvolvemos no

seio de um Agrupamento de Escolas, disse-nos que a inexistência de uma política

sustentada de ocupação dos tempos livres subsiste como realidade, reconhecida e

assumida, também, por quem aí, para além da escola, carrega responsabilidades no

domínio da infância.

A escola, enquanto detentora de um saber especializado determinante para a

educação dos jovens, que não único, pode reorganizar-se e constituir-se como núcleo

central e, ao mesmo tempo, pólo congregador e dinamizador de programas locais de

ocupação de tempos livres, que persigam os objectivos que acima enumeramos,

transformando-se, assim, num verdadeiro espaço de vida das crianças, envolvendo, para

tanto, toda a comunidade onde se insere num projecto educativo comum.

Desta forma, a velha escola curricular e predominantemente instrutiva

estenderá a sua acção a novos e importantes domínios, assumindo-se como um

verdadeiro “centro local da infância”.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

XIX

RÉSUMÉ

L’occupation du temps non scolaire des enfants, surtout celui qui se déroule

entre l’école et la famille, constitue le point de départ de cette enquête.

C’est un problème social qui a acquis une grande visibilité dans nos jours,

fruit, d’un côté, de l’impossibilité avec laquelle la famille se débat à propos de la

protection de ses enfants, lorsqu’ ils ne sont pas à l’école, surtout avec l’entrée massive

du conjoint féminin dans le monde du travail et, d’autre côté, de nouveaux risques de

marginalité qui menacent des adolescents de plus en plus jeunes. L’occupation du temps

de loisir consubstantie un bon pretexte pour la découverte de nouveaux contextes qui

permettent de transformer ce temps social, si important dans un moment qui a une

signification fondamentale au niveau du procès de socialisation des enfants, où, en

sécurité, il importe qu’il y ait de la place aussi bien pour de nouveaux apprentissages

que pour l’utilisation spontanée et discritionnaire du temps de façon a leur assurer de

vrais moments de loisir.

L’enquête, développée autour de l’importance de l’ Agroupement d’Écoles,

nous révèle que l’absence d’une politique soutenue d’occupation des loisirs se maintient

comme une réalité, laquelle est reconnue et assumée par ceux qui, au-delà de l’école,

partagent des responsabilités dans le domaine de l’enfance.

L’école, qui détient un savoir spécialisé décisif pour l’éducation des jeunes,

peut s’organiser et se constituer comme noyau et, en même temps, comme pôle chargé

de centrer et dynamiser des programmes locaux d’occupation des loisirs suivant les

objectifs qu’on a déjà cité, devenant, de la sorte, un véritable espace de vie des enfants,

appelant, pour cela, à la participation de toute la communauté mobilisée par un projet

éducatif commun.

De cette façon, la vieille école curriculaire, notamment instructive,

développera son action à de nouveaux et importants domaines, en s’assumant comme un

vrai « centre local de l’enfance ».

Page 20: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

XX

ABSTRACT

The present research is based on the occupation of the time that the children

don’t spend at school, in particular that amount of time that exists between their life

with the family and their life at school.

This period of time is a serious social problem, for two main reasons: on one

hand, because it is almost impossible for the modern families to look after their

children, especially since the wives begun having a career and working outside the

home; on the other hand, because of the birth of dangerous criminal groups, involving

younger children.

The way how children occupy these periods of spare time is therefore an

important reason to find and create new environments, in order to turn this time into

safe, useful and leisurely periods in our children’s lives.

The current research, which was developed in a local Group of Schools, has

shown us that there isn’t a real and concrete policy regarding the occupation of the free

time, which should be created, developed and implemented by those people with

responsibilities in the educational area.

As a center of knowledge decisive for the children’s education and growth, the

school should be reorganized as a central and dynamic core of the local programs of

free times, in order to assure that these times are in fact an important part in the

children’s daily life, involving the entire school community.

This way, the traditional and mainly instructive school would extend its

intervention to new and important areas, as the real “childhood local center”.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

1

INTRODUÇÃO

AO TEMA São multifacetados os caminhos por onde vai crescendo cada criança e, naturalmente,

diferenciados os meios que a sociedade coloca ao serviço de tal processo, deles dependendo o

sucesso dessa tão delicada operação que consubstancia a construção social do indivíduo.

Durante muito tempo conseguiu a família prover grande parte dessa canseira, a que se

lhe juntou, mais tarde, a escola. Uma e outra repartiram entre si, quase que exclusivamente, a

tarefa de criar os homens de que a sociedade ia carecendo para que pudesse sobreviver sem

sobressaltos de maior e, simultaneamente, contribuíssem para lhe ir melhorando o quotidiano.

Entretanto, as coisas complicaram-se. A mãe teve necessidade de acompanhar o pai na

angariação do sustento do lar deixando aberta uma brecha importante na educação dos filhos e

a escola, positivamente entupida por todas as crianças que maciçamente a foram então

procurar e esgotada na sua função meramente instrutiva e curricular, não conseguiu responder

a esse novo desafio e ficou-se por um desempenho mediano, que deixa de lado a muita coisa

que o meio tempo em que funciona não permite realizar.

É, pois, num cenário de grande vazio espacio-temporal que a infância se encontra hoje:

entre o fim e o começo de cada dia no seio da família e o tempo em que está na escola, cada

criança tem à sua espera, cá fora, diferentes e cada vez mais complicados caminhos, por onde

vai, certamente, encontrar novos desafios e outros quadros de vida, que, inevitavelmente, lhe

marcarão, também, o seu crescimento, muitas vezes de uma forma positiva, é certo, mas

quantas outras de modo absolutamente irreversível para sempre, naturalmente conforme com

o grau de intensidade e o género das influências aí sofridas durante esta fase crucial do seu

processo socializador.

A ocupação dos tempos livres não escolares e não familiares constitui, pois, o grande

mote para o presente estudo, não numa perspectiva meramente de “armazenagem” segura de

crianças, mas enquanto espaço vasto e propício para ser trabalhado como locus, também

privilegiado, onde tal propósito se possa tornar num bom pretexto para oportunos momentos

educativos dos jovens, sem esquecer o valor que aí deveremos reconhecer ao lazer, o que

obrigará a relevar a necessidade de se rejeitar a imposição total de actividades que desrespeite

em absoluto os próprios desejos das crianças.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

2

AO ESTUDO

Para responder ao nosso desiderato, que decorre de um outro olhar sobre a infância, que

três décadas de docência e administração escolar e educacional nos desvendaram, porque

emergente de uma clara constatação da fragilidade da escola perante os cada vez mais

delicados problemas que às crianças se colocam, projectamos o presente estudo, que, para o

efeito, estruturamos em três partes distintas.

O primeiro grande espaço será ocupado com uma demorada incursão pelos domínios da

sustentação teórica de um conjunto de aspectos que se nos afiguram como relevantes para o

nosso propósito. Desde algumas das cambiantes reveladoras do valor do processo socializador

e da delicadeza do percurso que o enforma, sem esquecer que hoje vivemos um tempo em que

dar voz às crianças é reconhecer que a infância adquiriu, finalmente, o estatuto de grupo

social com especificidades próprias, passando por uma viagem ao interior do tempo e das suas

temporalidades, que nos marcam o quotidiano de uma forma indelével, até à exaltação de uma

infância que, hoje como nunca, tem lei que a defenda por inteiro, mas, paradoxalmente,

continua notícia com a actualidade dos seus profundos problemas sociais, procuraremos

construir um corpo teórico que fortaleça a nossa base de trabalho e, concomitantemente,

credibilize o intento com que partimos para e empreitada.

Num segundo momento desceremos ao domínio do estudo empírico, focalizando a

nossa atenção na descrição dos processos metodológicos que adoptamos no âmbito da

investigação e na definição da amostra, nos instrumentos de recolha e análise de dados

utilizados e pertinência da sua selecção, na descrição pormenorizada do investigado e, por

fim, na exposição e interpretação dos resultados daí emergentes.

Sendo o nosso campo de trabalho circunscrito a um estudo de caso, focalizado num

agrupamento de escolas criado bem no coração de um concelho rural do interior minhoto,

haveremos de formular uma caracterização sócio-cultural, económica e geográfica do

contexto, a que lhe juntaremos uma outra direccionada para a própria organização escolar

objecto deste nosso estudo, aqui com um particular enfoque, também, no domínio

institucional – escolar e não escolar – por forma a que, a seu tempo, melhor possamos

sustentar as posições que, por fim, não deixaremos de evidenciar.

Com a aplicação de um questionário perscrutaremos a voz das crianças, procurando,

com isso, sentir a sua opinião sobre a forma como está construído o seu quotidiano não

escolar e, simultaneamente, conhecer a estrutura que lhe subjaz como suporte, para que

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

3

possamos perceber a razão de ser do acerto e encaminhamento que o estado das coisas, neste

âmbito, nos deverá, provavelmente, suscitar que avancemos.

Inquiriremos, também, pessoas que no meio estudado desempenham relevantes cargos

junto de instituições que desenvolvem actividades com crianças ou que com elas têm

directamente a ver, buscando com isso contributos que nos permitam alicerçar a construção de

algumas ideias capazes de facultar mais alguns contributos que ajudem a encontrar uma boa

solução para a problemática que teremos em mãos.

Terminaremos avançando com uma proposta de trabalho teoricamente sustentada e

decorrente da prospecção feita no terreno, que se assumirá como uma, naturalmente entre

outras, possibilidade de resolução da questão que inspirou todo o estudo que agora damos a

conhecer.

À laia de notas complementares, deixaremos algumas reflexões que na esfera estudada

nos parecem pertinentes e que registaremos, umas como recomendações dirigidas a quem de

direito e outras como prolongamentos que este nosso trabalho poderá conhecer atinentes ao

aprofundamento de outros domínios da infância directamente relacionados com o que

constituiu aqui o nosso objecto de estudo.

Em resumo, centrando-se no tempo que as crianças passam fora da família e da escola e

nos contornos que este pode adquirir para a sua formação e crescimento, este trabalho de

investigação possui no seu título uma síntese daquele que é, na nossa perspectiva, o resultado

a que o estudo nos conduziu por fim: a ocupação dos tempos livres das crianças deve, mais do

que uma preocupação, constituir um pretexto para a emergência de contextos outros que se

assumam como verdadeiros espaços educativos.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

4

PRIMEIRA PARTE

ENQUADRAMENTO TEÓRICO

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

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REFLEXÃO EM TORNO DO PROCESSO SOCIALIZADOR CAPITULO I

1. INTRODUÇÃO

Quem somos nós quando nascemos?

Quem podemos vir a ser um dia?

Como? Com que meios?

Porque caminhos?

Provavelmente a humanidade nunca se conseguirá livrar da perversidade de alguns dos

seus membros, nem tão pouco das desigualdades que lhe marcaram a história e ensombram o

futuro, mas, simultaneamente, viverá a esplendorosa aventura criadora de muitos mais, que

nos continuarão a surpreender com descobertas fantásticas, que tornam o mundo cada vez

mais imprevisível e fascinante.

No meio desta constatação e daquele rol de questões que mais acima deixamos está o

ser humano, o mais poderoso dos animais que pisam o planeta e, paradoxalmente, o que

produz as crias mais frágeis, que vivem o mais longo período de crescimento e maturação até

que chegue a sua adultez.

Sabemos que, desde tempos imemoriais, os homens se procuraram retratar lendo através

dos comportamentos sociais de cada um no mais profundo do seu âmago ou interpretando de

uma forma singela a angélica candura dos seus membros debutantes.

Homo homini lupus, disse um dia Plauto1, descrevendo a forma bárbara como se

digladiavam nas mais sangrentas e brutais batalhas em que, então, permanentemente, viviam e

se envolviam os homens, naquela que é, porventura, a condição metafísica da espécie

humana, para muitos teóricos naturalmente má e com propensão para mal.

Mais recentemente, Thomas Hobes, filósofo inglês que viveu entre as duas metades

interligadas dos séculos XVI e XVII, defendia que o homem, no seu estado natural, é

unicamente movido pelo desejo e pelo temor, de que resulta uma guerra permanente – o

homem é um lobo para o homem, proclamou, também, Hobes à laia do que já houvera feito

Plauto séculos antes.

1 Mácio Plauto, poeta latino nascido em 254 a. c. na Ùmbria e falecido em Roma em 184 a.c. (Cf. Enciclopédia Larrousse, Vol. XVIII, pág. 5561).

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

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Em contraponto com tais representações do ser humano, Jean Jacques Rousseau

entendia que o “homem é naturalmente bom, nasce com instintos que o conduzem ao bem,

mas a civilização corrompe-o, porque desperta o luxo, a cupidez e o ódio” (1966).

Para John Locke (1632-1704) o espírito humano é como uma folha de papel em branco

onde as sensações por si mesmas se escrevem, uma tábua rasa no princípio, que se manteria

sempre passiva 2.

Esta ideia de passividade, consubstanciadora de uma unilateralidade do processo

socializador – as crianças são consideradas como objectos ou então como placas de cera sobre

as quais os adultos imprimem a cultura (Montandon, 2001: 52) – prevaleceu praticamente

intacta até aos nossos dias. Foi um tempo longo em que a criança era tida como algo de

maleável, que a educação moral e a autoridade moldariam de per si em conformidade com o

que estava socialmente determinado.

Não espanta, pois, que o conceito tradicional de socialização, em oposição ao que na

actualidade ganhou escola3, tenha, como refere Sarmento, “desprovido os actores sociais dos

níveis etários inferiores do estatuto de seres sociais plenos” (2000: 143), o que, hoje, face ao

que nos é dado saber, nos confronta com a dificuldade que a sociedade teve, durante

demasiado tempo, em perceber a verdadeira dimensão do processo socializador do indivíduo

e, naturalmente, com as consequências daí advindas para a sua própria estruturação e

evolução.

Só durante a segunda metade do século passado é que foi ganhando consistência,

cientificamente sustentada, a ideia da existência de uma outra infância, até então

desconhecida e, concomitantemente, ignorada, a quem é devido um olhar e uma acção

diferentes, que passam, objectivamente, pelo reconhecimento de que cada criança é portadora

de uma identidade própria 4, que se vai, paulatinamente, desenvolvendo e solidificando através

de um processo de construção social, onde lhe cabe desempenhar, de facto, o papel de “ actor

em sentido pleno e não simplesmente como ser em devir” (Sirota, 2001:19), supostamente

incapaz de intervir activamente no seu processo de crescimento, como foi tido até tempos

recentes.

2 cf. Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Vol. 30, pág. 520. 3 Giddens chama à socialização “o processo pelo qual as crianças indefesas se tornam gradualmente auto-conscientes, pessoas com conhecimentos, treinadas nas formas de cultura em que nasceram”, não sendo, contudo, uma espécie de programação cultural onde a criança assume o papel de ser passivo, que absorve, sem mais, o que lhe é transmitido pelas pessoas com quem interage, como se não fosse um ser activo (1987: 81). 4 A identidade de alguém é, no dizer de Dubar, aquilo que ele tem de mais precioso e a sua perda é sinónimo de alienação, de sofrimento, de angústia e de morte. A identidade é, acrescenta o autor, um produto de sucessivas socializações, já que não é dada no acto do nascimento, construíndo-se na infância e reconstruindo-se sempre ao longo da vida (1997: 13).

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

7

Nas páginas que se seguem intentaremos uma viagem ao interior de alguns postulados

que nos têm ajudado a compreender a complexidade desta matéria tão específica e decisiva

para a emergência do indivíduo e, concomitantemente, para a própria evolução da espécie e

do destino do mundo.

São contributos que nos transportam por entre algumas das tramas com que é tecida a

peça em que cada um de nós se poderá transformar um dia.

Naturalmente, não ignoramos que o acervo em matéria de socialização constitui um

imenso campo de estudo, o que nos obriga a tomar opções quanto às matérias que, entre tantas

outras, julgamos relevante abordar. Desta forma, parece-nos que as estruturas e as acções que,

isoladamente ou em paridade, vão contribuindo para a construção social do conhecimento

que cada indivíduo vai adquirindo do mundo que o rodeia, cada vez mais imprevisível e

susceptível de desencadear desenraízamentos sociais profundos, são bons caminhos para

lançar as bases da sustentação teórica deste nosso estudo, acrescentando- lhe, também, a

certeza de que valorizamos a criança actor, que carece de brincar e jogar, de aprender a viver

com o que entra porta dentro e lhe fica a um simples clique no comando de TV, que ela sabe,

porventura, manusear melhor do que os adultos com quem vive, enfim, para que, quem o não

profetiza, possa viver e crescer feliz, tal qual como o é, de facto e de direito – criança.

2. ALGUNS LEGADOS DA TEORIA CLÁSSICA DA SOCIALIZAÇÃO

A nossa primeira reflexão recai sobre duas correntes sociológicas, que abordam a

problemática da socialização e dos caminhos por onde ela se concretiza e consolida de uma

forma diferenciada, ou seja, os que a consideram uma construção social da identidade e os que

a vêem como uma construção social da realidade.

Somos criados pela sociedade ou somos seus construtores? Como acontece essa

construção?

No que à primeira corrente sociológica a abordar concerne, a funcionalista,

intentaremos uma incursão circunstanciada ao pensamento de Émile Durkheim, seu fundador,

que à problemática da socialização, que entendia como uma forte educação moral, dedicou

parte importante da obra que nos legou.

Da outra, o interaccionismo simbólico, procuraremos deixar uma súmula do que

teorizou o seu precursor George Herbert Mead.

Se em relação à opção pela primeira destas abordagens mais não poderemos dizer do

que tratar-se de uma mera preferência pessoal por um clássico que considero nuclear para a

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

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compreensão da temática em apreço – tal qual o serão, certamente, também, Karl Marx, Max

Weber, Norbert Elias e tantos outros, que à sociedade e ao indivíduo dedicaram o melhor do

seu saber e do seu labor científico – já a segunda se afigura no presente como incontornável a

qualquer abordagem que se faça em torno do processo de criação do indivíduo, tal é a

actualidade que os estudos de Mead hoje conseguem manter.

Seguidamente, deter-nos-emos na abordagem que a sociologia do conhecimento faz em

torno da construção social da realidade, designadamente no que se refere à sua vertente

subjectiva e consequente processo de interiorização.

Por fim, deixaremos uma referência ao papel que a interacção de gerações foi tendo na

emergência do indivíduo ao longo dos tempos e a forma quase radical como as coisas

evoluíram neste âmbito, a pontos de se ter invertido completamente o sentido da transmissão

do conhecimento e das aprendizagens do quotidiano entre velhos e novos, estes

definitivamente tidos como seres activos da sua formação e, como tal, parte interessada no

processo.

2.1. O Funcionalismo

2.1.1. A sociedade como construtora do indivíduo

A sociedade é determinante na emergência do

Indivíduo, fá-lo à sua maneira

Fazer uma abordagem teórica à corrente funcionalista, no seu todo ou, como

acontece no caso vertente, a algum dos seus aspectos mais particulares, tem que passar,

necessariamente, por uma incursão à obra de Émile Durkheim.

Este sociólogo francês, oriundo da escola da filosofia, ao proclamar que os factos

sociais devem ser estudados como coisas, procurou dar à sociologia um carácter científico,

possibilitando que as instituições sociais fossem estudadas com a mesma objectividade com

que os cientistas estudam a natureza.

Foi dentro deste princípio que desenvolveu os seus estudos, onde procurou

escalpelizar as funções que uma prática social ou uma instituição podem ter enquanto

contributos para a continuidade da sociedade em geral (Giddens, 1997: 837).

Uma das teses mais marcantes emergente dos estudos de Durkheim refere-se ao

dualismo da natureza humana. “As nossas alegrias nunca podem ser puras; há sempre uma

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

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dor que se mistura, visto que não saberemos satisfazer simultaneamente os dois seres que

estão em nós “ (Durkheim, 1975: 294).

No ser humano há, de facto, uma dualidade estruturante da sua pessoa, que

constitui a verdadeira essência do homem: é ao mesmo tempo um ser individual e um ser

social, repartido entre si próprio e a vida em sociedade que marca o seu quotidiano. Segundo

Durkheim, “esta dualidade corresponde, em suma, à dupla existência que levamos

simultaneamente: uma puramente individual, que tem as suas raízes no nosso organismo; a

outra, social, que não é mais do que o prolongamento da sociedade” (idem).

Durkheim defende, também, que as actividades e as categorias intelectuais não

são inatas, mas socialmente aprendidas no processo de socialização, são determinadas pela

realidade social, e que, consequentemente, a acção social é determinada pela sociedade custe

o que custar. Esta, acrescenta o autor, tem uma natureza própria e, concomitantemente,

exigências que não são iguais às que povoam, implicitamente, a natureza do indivíduo. “Os

interesses de todos não são, necessariamente, os interesses da parte; por isso, a sociedade

não se pode formar nem manter sem reclamar de nós perpétuos sacrifícios que nos custam”

(ibidem).

É neste domínio do social sobre o individual que se funda todo o processo de

socialização desenvolvido por Durkheim (ibidem), que o classifica como uma educação

moral, basicamente alicerçada e assegurada na transmissão à criança de um forte espírito de

disciplina, que não desdenha de recorrer a sanções para a impor, reprimindo tudo quanto

possa ofender o que de forte e definido comporta o sentimento colectivo. Para a prossecução

deste objectivo o autor entende que só a educação o poderá assegurar, enquanto garante e

veículo daquilo a que chama socialização metódica da geração jovem.

2.1.2. Educar para construir o homem ideal

“Cada sociedade tem para si um certo ideal do homem, daquilo que ele deve ser,

tanto do ponto de vista intelectual, como físico e moral. Esse ideal é, em certa medida, o

mesmo para todos os cidadãos” (Durkheim, 1984: 16) e, por isso, forma o núcleo forte da

coesão grupal ou societária.

É em torno deste ideal que, segundo Durkheim (1984), deve gravitar todo o

processo educacional do indivíduo, enquanto construtor na criança de estados de espírito e

mentais que a sociedade ou o grupo social entende deverem enformar todos os seus membros.

Como já anteriormente referimos, cada um de nós contém dois seres inseparáveis

e ao mesmo tempo distintos: o que tem a ver com a nossa individualidade, os nossos estados

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

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mentais e tudo o mais que se relaciona com a nossa vida pessoal e o ser social possuidor de

sentimentos e hábitos (crenças religiosas, práticas morais, credos, tradições, etc), que

comunga com os demais elementos do grupo a que pertence e, portanto, se constituem como

elos de ligação entre os indivíduos.

É à construção desse ser social que a educação terá que responder de uma forma

cabal, enquanto veículo capaz de “suscitar e desenvolver na criança um certo número de

condições físicas, intelectuais e morais que dela reclamam, seja a sociedade política no seu

conjunto, seja o meio especial a que ela se destina particularmente” (idem: 17).

Para Durkheim (1984:17,32,71) a educação deve constituir, fundamentalmente,

um momento de sobreposição da autoridade, opondo ao ser individual e insociável que somos

ao nascer, um outro inteiramente novo, constituído por tudo quanto de melhor há em nós, por

tudo quanto possa valorizar e dignificar a nossa existência.

Educar é, pois, neste contexto, construir em cada indivíduo o ser social que a

sociedade reclama e tal desiderato só será atingido através de uma educação forte e

autoritária, que seja capaz de fazer triunfar junto da criança o domínio da moral e das regras

que lhe são inerentes sobre tudo o mais, fazendo disso um dever a que o indivíduo se

encontra, indeclinavelmente, sujeito, através de uma prescrição emanada da sociedade a que

pertence. “Necessário se torna que, pelas mais rápidas vias, ao ser egoísta e insociável que

acaba de nascer, ela (sociedade) acrescente um outro, capaz de levar uma vida social e

moral”(idem: 71). Moral laica, acrescenta Durkheim, ou seja, despida de qualquer princípio

religioso, “apoiada exclusivamente em ideias, sentimentos e práticas sujeitas à jurisdição da

simples razão, numa palavra, uma educação puramente racionalista” (idem: 101).

Postas assim as coisas, o autor parte, então, para a fundação da moralidade que

perfilha e das consequentes bases sobre as quais ela se há-de erguer e sustentar ao longo do

ciclo vital do indivíduo, no pressuposto de que “o conjunto das regras morais forma,

verdadeiramente, ao redor de cada homem, uma espécie de barreira ideal, junto à qual a

vaga das paixões humanas vem morrer, sem conseguir ir mais longe” (idem: 143).

2.1.3. Os elementos da moralidade

O primeiro elemento da moralidade é, para Durkheim, o espírito de disciplina,

enquanto determinante do sentido da regularidade e do sentido da autoridade que hão-de fazer

a regra moral prevalecer sobre todas as outras. Será aqui que haveremos de encontrar a

possibilidade de moldar a criança, começando a traçar- lhe, desde logo, os objectivos para que

está socialmente destinada, onde o dever de respeito e escrupuloso cumprimento que a regra

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

11

lhe deve suscitar aparece como exemplo paradigmático, que ao educador cabe explicar e fazer

cumprir com autoridade.

A disciplina aparece, pois, como reguladora da conduta das crianças e

determinante dos seus fins, ensinando-as a querer o que devem querer, incutindo- lhe, assim,

hábitos de vontade, moderando- lhes os desejos e ensinando-as a resistir a elas mesmas e aos

seus impulsos naturais, que podem criar desequilíbrios indesejáveis no grupo a todo o

momento.

Para evitar que se caia em exageros, Durkheim acha oportuno lembrar que o facto

de se reconhecer a força necessária da disciplina e a imprescindibilidade da autoridade de que

devem estar investidas as regras, sob pena de ineficácia, não pode significar que se não

discutam, ou que se encarem como algo de sagrado e, concomitantemente, de intocável.

Aliás, neste sentido, o autor deixa uma curiosa e oportuna reflexão: Jesus Cristo

não teria afrontado o “status quo” do seu tempo e, com isso, provocado a revolução que então

desencadeou, se não estivesse imbuído de um certo espírito de marginalidade em relação às

regras que nessa altura imperavam. “Para ousarmos sacudir o jogo da disciplina tradicional,

necessário se torna que não lhe sintamos a autoridade com demasiada intensidade”

(Durkheim, 1984: 155).

No entanto, fica claro que para este autor é nas regras morais e na sua prática que

se há-de encontrar a força que nos domina, regula e protege das outras forças imorais,

constituindo-se, assim, no garante da nossa liberdade.

A adesão ao grupo social de que o indivíduo faz parte constitui para Durkheim o

segundo elemento da moralidade. Para si, como já vimos, o social prevalece sobre o

individual e com isso emerge a impessoalidade do que é global. Assim deve acontecer com a

moral, que é de todos e não pertence a ninguém em particular. Tal qual o organismo mental se

alimenta de ideias e sentimentos vindos da sociedade, esta, também é detentora de uma vida

mental e moral inatas à humanidade, que as possui e produz e com elas constrói a condição

humana.

Ora, o homem é indissociável dos múltiplos grupos em que vive (família, pátria,

grupo político, sociedade, humanidade). “A família envolve o indivíduo de uma forma muito

diferente da da pátria e responde a outras necessidades morais, tal qual acontece com a

humanidade. O homem só será moralmente completo quando submetido a esta tripla acção”

(idem: 177).

Durkheim (idem: 182) defende, então, que à educação moral está confiada a

missão de vincular a criança à sociedade em que está inserida, de uma forma imediata à

família, ficando para a escola o estabelecimento da ligação à pátria. No que concerne à

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

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família, diz o autor, ela própria é suficiente para transmitir aos seus membros os sentimentos

de que a sua existência carece, estando, no caso da pátria, tal tarefa acometida à escola,

enquanto único veículo moral através do qual a criança pode metodicamente aprender a

conhecê- la. É aqui que sobressai o papel que à escola cabe na formação moral do país, no

despertar do amor por um ideal social, que espelhe os grandes objectivos colectivos e se

constitua como congregador do grupo e potenciador da adesão a ele de todos os seus membros

de uma forma activa e criativa.

Finalmente, Durkheim pensa que “para agirmos moralmente não basta

mantermo-nos ligados a um grupo; necessário se torna, ainda, que, seja condescendendo

com a regra, seja devotando-nos a um ideal colectivo, nos consciencializemos, com a mais

límpida e completa consciência, das razões da nossa conduta” (idem: 224).

Isso vai ser determinante para a aceitação tácita e livre da regra, não como algo

que tem simplesmente que ser assim, mas porque há em torno dela um esclarecimento que a

torna inteligível, funcionando, deste modo, a inteligência como um elemento da moralidade,

no caso vertente como o seu terceiro elemento.

Nesta conformidade, resulta claro que, mais do que pregar a moralidade, é preciso

explicá- la. “Ora, recusarmos à criança qualquer explicação do género, não tentarmos fazer-

lhe compreender os motivos das regras que ela deve seguir, é condenarmo-la a uma

imoralidade incompleta e inferior” (ibidem), é pedir- lhe que acredite naquilo que não

compreende e isso é indesejável.

Só há, para o autor em causa, uma forma inteligente de transmitir a moral à

criança, por forma a que ela a compreenda e aceite: mostrar- lhe e explicar- lhe o seu país e as

necessidades que tem, começar a desvendar- lhe a vida que a espera, e motivá- la e prepará- la

para uma participação de verdade nas tarefas colectivas que a aguardam. Isso faz-se, como já

o referimos, pela prática disciplinada do dever, por um forte sentimento de adesão ao grupo,

que, mais do que um sacrifício para o indivíduo, se constituirá um motivo para a sua

realização como e enquanto homem. “A moralidade é coisa eminentemente humana,

porquanto ao incitar o homem a superar-se a si mesmo, nada mais faz do que incitá-lo a

realizar a sua natureza de homem” (idem: 228).

2.1.4. Como estabelecer na criança os elementos da moralidade?

Como já o afirmamos, Durkheim comete à escola a responsabilidade pela

educação moral das crianças.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

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Sabe-se que a acção que a escola vai exercer sobre elas o não será sobre uma

tábua rasa, dado que a criança tem natureza própria, embora móvel e de movimentos e

impulsos apaixonados, que a desgastam permanentemente, apesar de se lhe conhecer o gosto

pela actividade regular e moderada, como a que emerge do próprio jogo. É esta distância entre

a imprevisibilidade e a desordem que são inatas a cada criança, e a regularidade e moderação,

que amanhã a sociedade vai exigir dela, refere o autor (idem: 236), que à educação cabe

encurtar, isto é, fazer em alguns anos o que a humanidade levou, antes, séculos a alcançar.

Moderar na criança os intentos mais ou menos desalinhados com que nasce é, em

primeiro lugar, inculcar- lhe o espírito de disciplina. Apesar de chegar à escola com alguns

hábitos disciplinares que a família lhe transmite, é na disciplina escolar que encontraremos,

segundo o autor, o melhor meio para disciplinarmos a criança. Na escola a criança aprende a

frequentar as aulas com regularidade, a cumprir horários, a saber apresentar-se, a não

perturbar a ordem, a fazer as obrigações escolares. “É pela prática da disciplina escolar que é

possível vincularmos na criança o espírito de disciplina....é respeitando a regra escolar que a

criança aprenderá a respeitar as demais regras com que socialmente vai ser confrontada

mais tarde ou mais cedo, que se habituará a conter-se e a constranger-se, porque é seu dever

constranger-se e conter-se” (idem: 251-252).

Para este autor não é do exterior ou pelo receio que possa inspirar, que o mestre

deve exercer a sua autoridade, tão fundamental para impor as regras. O mestre deve impor-se

como fiel depositário da impessoalidade das regras, da superioridade delas em relação a si e,

consequentemente, da obrigação imperiosa que tem em as fazer cumprir, não as podendo

revogar ou alterar. Investido de autoridade e procedendo deste modo o mestre inculca na

criança o respeito pela regra e começa a despertar nela o princípio do respeito pela legalidade,

pela lei impessoal e, portanto, a todos dirigida e para por todos ser cumprida.

Todavia, para Durkheim, “não há regras sem sanções sendo absolutamente

necessário que exista uma relação entre a ideia de regra e a ideia de sanção e que esta sirva

de algum modo para o funcionamento daquela” (idem: 260).

O autor define duas espécies de sanções, as punições e as recompensas,

entendendo, também, que punições e disciplina caminham geralmente a par. Acha que é

necessário punir, não para fazer sofrer a criança, como forma de expiação reparadora do mal

ou preventiva da sua ocorrência futura, mas para reprovar energicamente o seu acto

infraccionário e, por isso, à pena deve estar necessariamente inerente um tratamento firme. “A

verdadeira razão de ser da pena reside na reprovação que ela implica....o essencial da pena

é a reprovação” (idem: 286).

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

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É aqui, atente-se, que Durkheim afirma a “absoluta proibição dos castigos

corporais” (idem: 287), antes aconselhando que uma punição passe, de uma forma graduada,

por proibições parciais do recreio, ou de nele brincar, censuras, reprimendas (individuais e

secretas, até às públicas). Para este sociólogo, importante é, também, que a punição “qualquer

que seja, e seja qual for a forma pela qual a pronunciemos, necessário se torna que, uma vez

decidida, ela seja irrevogável” (idem:309).

No que às recompensas concerne o autor considera-as, enquanto antítese lógica

das punições, mais um instrumento de cultura intelectual, que de cultura moral, consagrando o

êxito em vez do mérito moral, não revelando, por isso, grande simpatia por elas e mostrando,

até, alguma repulsa por se confundir com isso o mérito moral com o talento e recompensá- los

da mesma forma.

A adesão ao grupo, segundo elemento durkheimiano da moralidade, como vimos

atrás, há-de ser operacionalizada pela escola recorrendo à grande receptividade que a criança

tem às influências exteriores e no apego que demonstra para com as pessoas e as coisas, o que

lhe confere um certo sentido de altruísmo, que lhe é inato e que contrasta com o ser

puramente egoísta com que sempre nos foi apresentada.

É esse altruísmo inato à criança, sustenta Durkheim (1984), que a educação terá

de desenvolver e a escola potenciar, dando-lhe a conhecer os grupos sociais de que faz parte,

fazendo-a impressionar-se com eles, conquistar a sua confiança e construir um sentimento de

pertença. Conquistado o grupo social, remata o autor (idem), o espírito altruísta que há em

cada criança fará o resto, ou seja, a partilha, o ideal, os objectivos comuns, etc.

E haverá melhor que o meio escolar e a associação em que nele se encontram as

crianças, agrupadas em turmas, para desencadear e desenvolver o gosto por uma vida

colectiva mais extensa e mais impessoal do que a que as crianças trazem do seio familiar?

”Ideias comuns, sentimentos comuns, uma responsabilidade comum, eis, certamente, com que

alimentar a vida colectiva da classe.....a escola tem tudo o que necessita para despertar na

criança o espírito de solidariedade, o sentido de adesão ao grupo” (idem: 359 e 361) e a

adesão ao grupo é, para Durkheim, o fim último da educação moral.

Uma palavra final do autor para a importância dos ensinos ministrados na escola,

sobretudo para aqueles que possibilitam à criança a aquisição de um sentido inteligível para as

coisas, que a hão-de ajudar a tê- lo, também, em relação à inteligência da moral e à sua

concomitante razão existencial como factor de ordem, controlo e desenvolvimento social de

uma sociedade que é de todos e para todos e não apenas a soma dos indivíduos que a

compõem. Será o caso das ciências naturais, que ao falarem do pouco que é uma célula

isolada e do que de grandioso representa quando associada com outras, ajudam a perceber que

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

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o mesmo se passará no meio social, onde só a unidade de objectivos tem significado, ou o

caso da história que nos fala das sociedades e dos seus legados, que perduraram para além dos

homens e ao seu passamento sobreviveram.

No fundo, Émile Durkheim desfraldou uma bandeira, que competiria à escola içar

e fazer respeitar sem reservas. Socializar uma criança é educá- la moralmente e isso é tarefa

que só à instituição escolar compete fazer, porque só ela contém os ingredientes e possui os

meios para levar a bom termo tamanha empreitada. A criança para chegar à sociedade como

seu membro de pleno direito e, nessa medida, para nela se integrar com sentido e proveito

mútuos, carece de saber respeitar e pautar-se por regras, de ser disciplinada, possuidora de um

grande espírito de grupo e capaz de entender o que dela é exigido.

Para tanto precisa de ser escolarizada, punida se e quando se desviar do caminho,

sendo certo que à irrevogabilidade da norma não corresponderá um silêncio perpétuo sobre a

sua questionabilidade ou não.

Mas sempre com a ideia de que punir para regular sim, mas com moral, sem

recurso a violências físicas e com grande cuidado e sentido de justiça. “Deixar a falta impune

é coisa grave; castigarem-se inocentes, é cruel” (idem: 358).

Para que a criança de hoje não seja amanhã um cidadão castrado e a sociedade a

que pertencer, então, um corpo impregnado de astenia moral, possuidor de uma disciplina tão

rígida que lhe mata a cada momento o seu ideal de vida.

Este é, no essencial, o legado que nos deixou Durkheim e a teoria funcionalista

que fundou no concernente à socialização do indivíduo.

2.2. O Interaccionismo Simbólico

2.2.1. Os indivíduos como construtores das suas próprias identidades

Não é tudo determinado pela sociedade, mas,

também, pela interacção do indivíduo.

George Herbert Mead foi um filósofo e psicossociólogo norte-americano que

nasceu em Massachusets em 1863 e faleceu em Chicago em 1931.

Pioneiro da psicologia social, ficou imortalizado pela obra “Mind, Self &

Society”, publicada em 1934 mercê do esforço e cuidado de um grupo de seus antigos alunos,

que compilaram o essencial das aulas que Mead lhes leccionou, constituindo,

inquestionavelmente, o texto fundador do interaccionismo simbólico.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

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Com Mead nasceu, pois, uma nova teoria sociológica – o Interaccionismo

Simbólico – que enfatiza o papel central dos símbolos e, particularmente, da linguagem em

toda a interacção humana, e coloca o indivíduo como referente principal de toda a

problemática da relação indivíduo - sociedade, realçando, pois, muito mais a acção individual,

activa e criativa, do que qualquer outra abordagem teórica o fizera até então.

A valorização dos símbolos e do papel que eles representam na interacção dos

indivíduos e o sentido que a eles pode ser atribuído, quer pela própria experiência do

indivíduo, quer, também, pela experiência dele com os outros (a flor, por exemplo, pode

servir para cheirar, para alindar uma jarra ou para oferecer a alguém por afecto), constituem,

inegavelmente, a questão central da teoria de Mead.

Neste âmbito, Mead releva de sobremaneira a linguagem, enquanto expressão

simbólica da capacidade reflexiva dos indivíduos, possibilitadora do estabelecimento de uma

distinção clara entre as formas comportamentais que diferenciam humanos e infra – humanos,

em suma, que delimitam a fronteira entre o que é comportamento animal (motivado pelos

estímulos) e o que de diferente contém o comportamento humano (capacidade interpretativa

da linguagem).

O modo como Mead desenvo lveu a sua teoria explicativa da forma como o

organismo humano se transforma em pessoa, gravitou em torno de duas interrogações

fundamentais:

- Como se forma e desenvolve o “self”, pelo qual os indivíduos adquirem a

consciência reflexiva (mind), e de que modo a actividade social (society) é

essencial a essa construção? (Cf. Ferreira, 1996: 297)

Mead defende que é na linguagem simbólica que se deve procurar resposta para as

questões precedentes, pois, no seu entender, é com os símbolos e pelos símbolos que os

indivíduos interagem e atribuem sentido à sua própria experiência com os outros objectos

sociais que os rodeiam.

Mead entende, por fim, que é nas características do processo de socialização, ou

seja, pela aquisição de linguagens, através das quais os indivíduos apreendem normas, regras,

valores e crenças, que balizam a sua possibilidade de viver em sociedade, que se deve

procurar resposta para a necessidade de se assegurar a universalidade dos símbolos, que

possibilite, pela interacção social, a emergência de consensos, que funcionem como garantia

da existência e da continuidade dessa sociedade, afinal fim último inerente à preservação da

espécie humana, que tem marcado o seu incontável tempo existencial.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

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Posto, em traços necessariamente muito breves, um resumo do que de essencial

Mead nos quis legar através da sua obra notável e notada pela comunidade científica setenta

anos depois da sua morte, onde deixou de uma forma indelével outras abordagens ao que

constitui o complexo processo de construção do indivíduo, desde o seu nascimento até que se

apresente perante a sociedade como seu membro de pleno direito, possuidor e ciente da sua

individualidade, mas, também, consciente do seu papel de parte de um todo, de simples peça

de uma grande e complicada engrenagem, impõe-se, agora, que se faça uma incursão,

naturalmente sucinta, ao interior dos seus estudos, buscando neles elementos que nos

possibilitem perceber com mais pormenor o entendimento que lhe mereceu o processo de

emergência do indivíduo socialmente relevante.

Outrossim, ficará implícito todo o perigo que representará uma má formação do

indivíduo e concomitante construção desajeitada da sua identidade, o que, obviamente, se

reflectirá no seio do grupo, e, provavelmente, o arrastará numa espiral que levará à própria

desconstrução da sociedade onde se insere.

2.2.2. O I e o Me como construtores do Self

O modelo do processo de socialização da criança que Mead propõe contempla três

momentos, que constituem os estádios pelos quais, segundo o autor, o organismo humano se

vai transformando em pessoa, através da paulatina construção de um “self”, que congrega em

si mesmo o ser bifacetado que há em cada um de nós, isto é, possuidor de uma

individualidade e, simultaneamente, parceiro de outras individualidades que connosco

formam a sociedade onde interagimos quotidianamente, segundo uma ordem e debaixo de um

conjunto de normas e valores que harmonizam as nossas condutas.

Num primeiro estádio, a que poderemos chamar de preparação, aquele ser que

antes fora desajeitado, difícil de perceber e lidar, uma amálgama de desejos e necessidades

espontâneas, absolutamente dependente de outrem mais velho, começa a imitar personagens

que lhe são próximos (mãe, pai, irmãos), ou seja, os outros significativos, reproduzindo

gestos, sons, palavras de que muitas vezes nem sabe o significado. Nesta fase, a criança não

tem capacidade para dar uma interpretação organizada, com sentido, à linguagem simbólica; é

o tempo da brincadeira, do “faz de conta”, onde emerge o “eu” do indivíduo, constituído

simplesmente por uma organização bilateral de atitudes individuais, que, embora de uma

forma ainda ténue e indefinida, vai fazendo despontar o primeiro sentido da individualidade,

começando a moldar a sua personalidade. “Na brincadeira as crianças brincam aos pais e às

mães, aos professores – personalidades vagas que pairam sobre elas, que as influenciam e

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

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nas quais elas confiam. Estas são as personalidades que as crianças adoptam, os papeis que

elas desempenham e que até certo ponto ditam o desenvolvimento da sua personalidade”

(Mead, 1964: 164).

O jardim-de- infância tem, aqui e dentro deste ponto de vista doutrinário, um papel

deveras importante, já que “pega nas personalidades destes seres indefinidos e integra-os em

relações sociais uns com os outros, bem organizadas, o que acaba por formar o carácter

dessas crianças” (idem).

À fase da brincadeira, segue-se um outro estádio, o do jogo, que coincide com a

emergência na criança de capacidade para interpretar, que lhe advém da aquisição da

linguagem, agora com sentido e já não dispersa e normalmente desconexada, difusa, como

acontecia no patamar anterior da sua socialização.

É o momento de trocar a brincadeira pelo jogo, onde os papeis que aprende a

representar emanam de experiências muito concretas e diferentes da brincadeira, onde à

imitação do pai e da mãe não correspondia uma noção abstracta na criança desse significado

de ser pai ou mãe. Na verdade, diz Mead (Ibidem), aqui o “eu” é constituído não só por uma

organização das atitudes individuais, mas, também, por uma organização das atitudes sociais

do “outro generalizado”5 ou do grupo social como um todo ao qual o indivíduo pertence.

O jogador de futebol (de basebol para Mead) determina cada um dos seus actos

(jogadas) pela concepção que tem da acção dos outros jogadores. Tudo quanto faz é ditado

pelo facto de ele ser, ao mesmo tempo, cada um dos outros jogadores, pelo menos no que se

refere ao efeito das atitudes deles sobre a sua própria resposta. É aqui, sustenta Mead

(ibidem), que emerge a figura do outro, a figura de um outro que é uma organização das

atitudes de todos os outros envolvidos no mesmo processo.

Mais uma vez, estamos perante um autor que não desdenha em alcandorar o jogo

a um patamar elevadíssimo do complicado processo a que obedece o crescimento do ser

humano, aparecendo como um verdadeiro “clic”, capaz de funcionar como um autêntico

cordão umbilical, que faz a ponte entre a individualidade que cada um de nós é de facto e o

ser social que deveremos, necessariamente, constituir, sob pena de exclusão ou grave

disjunção da sociedade a que pertencemos e queremos integrar de pleno direito.

De facto, à individualidade desagregada que foi, a fase do jogo permite que a

criança lhe acrescente uma outra mais organizada, um actor social que conhece o seu papel e

o dos outros e, concomitantemente, sabe entrar e estar em cena no momento próprio.

5 No entendimento de Mead, a comunidade organizada ou grupo social, que fornece ao indivíduo a sua unidade de ser, pode ser chamado o “outro generalizado” – na equipa de futebol, a equipa é o “outro generalizado” no que respeita à experiência pessoal de cada um dos seus membros individuais.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

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“O jogo tem uma lógica que torna possível a organização do “eu”, ilustrando

situações de onde emerge uma personalidade organizada. A partir do momento em que a

criança adopta a atitude do outro e permite que essa atitude determine o que ela irá fazer em

relação a um objecto comum, ela torna-se num membro orgânico da sociedade” (idem: 166)

Durará, certamente, uma meia dúzia de anos este processo de socialização da

criança sustentado por Mead, desde que nasce até encontrar um sentido social para a sua

individualidade, isto é, até que esteja mentalmente capaz de interiorizar o outro e com isso

aprenda a organizar a sua própria experiência e a experiência dos outros, que saiba comunicar

consigo próprio e com os outros, a interpretar as diversas linguagens e a conhecer e distinguir

as mais diversas situações que o dia a dia lhe coloca pela frente, em suma, no seu

reconhecimento como membro das comunidades, nas quais se identifica progressivamente

com o outro generalizado, sendo certo que tal reconhecimento implica que a criança não seja

somente tida como um membro passivo do grupo, que apreenda os seus “valores gerais”, mas

que seja um actor que desempenha ou capaz de desempenhar no grupo um papel relevante e

reconhecido por todos os restantes actores como tal. Estará, então, cumprido aquele a que

Mead chamou o terceiro estádio do processo de socialização da criança, o estádio da

representação, onde, reafirme-se, o jogo tem uma importância capital. “ O jogo representa a

passagem na vida da criança da adopção do papel dos outros na brincadeira, para o papel

organizado que é essencial para a sua auto-consciência” (Mead b), 1961: 830).6

Ficará, naturalmente, por esta altura, bem delineado aquilo que Mead designou

por um “self”, que se constitui como a soma da nossa individualidade, da subjectividade, da

criatividade e da dinâmica que há em cada um de nós (I), com o “eu socializado”, isto é,

possuidor de um conjunto de atitudes organizadas que nos permitem reconhecer as

expectativas dos outros e o que das suas acções pode resultar (Me). O I e o Me funcionarão,

por assim dizer, por um lado, como garantes da unidade da personalidade, e, por outro, face às

suas naturezas contraditórias e conflitantes até, como expressão da liberdade de cada um de

nós. O I reage aos problemas (bons ou maus), competindo ao Me a sua socialização em

função de cada realidade concreta. Mead, na leitura de Ferreira (1996: 300), afirma que “o me

ao exprimir na estrutura da personalidade o outro generalizado, constitui-se como elo de

ligação entre o indivíduo e a sociedade”.

Estará, também, por esta ocasião formada para Mead aquilo que ele chama de

consciência plena do indivíduo (antes apenas a tinha de si próprio, a que lhe foi dada pela

experiência), reflexiva, própria e singular, mas fiel ao espírito da comunidade onde se integra

(Mind), que o autor defende em contraponto com a ideia tradicional da psicologia que a

6 Os estudos de Mead acentuam o contributo do jogo para o desenvolvimento da sociabilidade do indivíduo

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

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entendia como uma característica biológica própria dos seres humanos, demonstrando, assim,

que a consciência não é uma característica inata, mas uma dimensão dos seres humanos que

só pode existir nos e pelos processos sociais em que o indivíduo se integra (Cf. Ferreira, 1996:

299). Neste particular, é esta consciência que permite ao indivíduo penetrar, integrar-se e

apropriar-se subjectivamente do mundo social, da própria consciência ou espírito que norteia

esse mundo e lhe acalenta o sonho, isto é, manter-se fiel à filosofia de vida do grupo de que

faz parte, aprendendo a jogar com eficácia o desafio da vida quotidiana, porque, na verdade,

aprendeu antes a identificar-se com o papel que aí lhe cabe desempenhar e partilhá- lo com

outros papeis de actores diferentes, sabendo que tal não o despoja da sua própria identidade.

“Da mesma forma sócio - psicológica que o ser humano se torna consciente de si próprio, ele

também adquire a consciência da existência dos outros indivíduos” (Mead b, 1961: 739); e o

ter consciência de si e, simultaneamente, dos outros, tem um papel relevante no seu auto-

desenvolvimento e no desenvolvimento da própria sociedade ou grupo social organizado a

que pertence e onde se integra, então, plenamente.

É a partir daqui, então, que, reafirme-se, o ser humano adquire o sentido de auto-

consciência, da sua própria identidade, e, com ele, a capacidade de assumir as “atitudes

sociais organizadas do grupo social a que pertence, em relação aos problemas sociais de

vários tipos com que esse mesmo grupo é confrontado num dado momento e que derivam dos

diferentes projectos ou tarefas sociais cooperativas em que o grupo se encontra empenhado.

É, como participante individual nesses projectos ou tarefas sociais cooperativas, que o

indivíduo orienta o seu próprio comportamento em conformidade” (Mead, 1961: 165).

Desta forma, fácil nos é concluir que aquilo a que chamamos auto - consciência

mais não é do que “um despertar em cada um de nós do conjunto de atitudes que nós

despertamos nos outros, em especial quando é um importante grupo de respostas que são

dirigidas aos membros da comunidade”(idem: 168) .

Como se depreende da leitura de Mead, não é possível dissociar o indivíduo da

sociedade (society), isto é, do conjunto dos outros indivíduos com quem vai interagir

quotidianamente, e que uma qualquer sociedade só pode ser construída por e com indivíduos

socializados (self), imbuídos do mesmo espírito (mind) de comunidade.

A vida dos povos faz-se, pois, de encontros e desencontros de “selves”, dos

nossos e dos outros, e tudo gravita em torno da interligação e consequentes interacções que

entre eles se venham a fazer (para o bem e para o mal). Não pode, diz Mead (ibidem), ser

traçada uma linha intransponível entre os nossos “eus” e os “eus” dos outros, dado que os

nossos “eus” existem e fazem parte da experiência apenas na medida em que os “eus” dos

outros existem e entram, também, na experiência.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

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No fundo, é no domínio do racional que havemos de encontrar a razão de ser dos

diferentes e diferenciados “eus” que povoam qualquer estrutura societária. “O indivíduo

possui um “eu” apenas em relação aos “eus” dos outros membros do grupo social e a

estrutura do seu “eu” expressa ou reflecte o padrão de comportamento geral do grupo a que

ele pertence” (ibidem).

Resulta de tudo quanto neste âmbito fo i dito que o “self” é, para Mead, acima de

tudo, um produto social, onde o cognitivo emerge como uma realidade que ofusca claramente

a natureza emocional e afectiva que marcam, também, de uma forma indelével, a vida

psíquica e social das pessoas.

A nossa vivência é, indubitavelmente, um corrupio de interacções, um cruzar

incessante de caminhos, uma teia de encruzilhadas onde a vida vai dando nós, que é preciso

desatar a cada momento, para que a desordem não se instale na cidade e, quantas vezes, por

arrastamento, no próprio mundo.

Mas neste cenário, onde urge sempre que os homens se entendam, também há

emoções, também se trocam afectos, também tem que haver algum tempo para o “eu” da

nossa intimidade, que o “self” não pode nunca castrar, sob pena de aniquilamento da nossa

própria individualidade.

Mead não valorizou esta importante parte de cada um de nós, onde estão as

“coisas do coração”. Despertá- las e realizá-las é algo de inerente à própria condição humana,

que acompanha o indivíduo ao longo do seu ciclo vital, mas que, todos aceitamos, tem a sua

expressão mais sublime, porque pura e bela, quando corporizada na espontaneidade de uma

criança.

2.3. Estrutura social ou acção humana como determinantes na emergência do indivíduo?

O que para trás fica escrito coloca em confronto aberto duas teorias sociológicas

diferentes e encerra em si mesmo um dos dilemas teóricos básicos da sociologia, que, no caso

vertente, diz respeito à estrutura social e à acção humana, e ao papel que a cada uma delas é

atribuído enquanto instituições em torno das quais se constroem as sociedades e o quotidiano

dos povos que as formam e lhes dão vida.

No fundo, trata-se de saber até que ponto nos constituímos como actores humanos

criativos, que controlam activamente as condições e os sentidos que as suas vidas têm ou que

lhes querem imprimir, ou se muito daquilo que fazemos nos é determinado exteriormente e,

por conseguinte, escapa ao nosso controlo.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

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A sociedade é determinante na emergência do indivíduo, fá- lo à sua maneira, ou,

pelo contrário, não é tudo determinado pela sociedade, mas, também, pela interacção dos

indivíduos?

Nunca os sociólogos se entenderam em torno desta questão. No que a este trabalho

concerne, percebemos que para os interaccionistas, aqui na pessoa de Mead, os componentes

activos e criativos do comportamento humano prevalecem sobre a estrutura social, enquanto

para o funcionalismo, que personificamos em Durkheim, se passa exactamente o contrário,

isto é, as nossas acções são fortemente condicionadas e determinadas pelas influências

sociais. Para o funcionalismo a sociedade releva sobre o indivíduo, sobrepõe-se-lhe, é muito

mais do que a soma das acções individuais. De acordo com o interaccionismo simbólico o

indivíduo não é uma criatura que a sociedade moldou à sua semelhança e à luz dos princípios

que a enformam, mas sim um seu elemento activo, capaz de a criar e recriar

permanentemente.

Giddens defende que “é pouco provável que esta controvérsia seja alguma vez

inteiramente resolvida” (1997: 846), pelo que, mais do que resolver o dilema teórico que trás

funcionalistas e interaccionistas de costas voltadas, importa retirar o que de cada um dos lados

possa contribuir para melhor compreender a estrutura social e as pessoas que nela agem e

interagem, e que beneficiam do seu desempenho ou lhe moldam o caminho.

Para Giddens, “a perspectiva de Durkheim, em certos aspectos, é claramente válida.

As instituições sociais precedem de facto a existência de qualquer indivíduo, sendo, também,

evidente que elas nos colocam restrições e constrangimentos” (idem). No entanto, como

defende Durkheim, se é verdade que a sociedade é formada por indivíduos, não lhes pode ser

exterior.

Sociedade e indivíduo são indissociáveis, como muito ligadas terão de andar sempre

a estrutura social que marca o nosso quotidiano e a acção humana que lhe dá vida. Se calhar

pouco importa quem vem primeiro, interessa que venham todos de mãos dadas, para que se

lhes não note a diferença. Giddens acredita que “a forma de ultrapassar a diferença entre a

abordagem “estrutural” e a da “acção” é reconhecer que nós construímos e reconstruímos

activamente a estrutura social no decorrer das nossas actividades diárias” (idem: 847).

2.4. A socialização como construção social da realidade

O que anteriormente dissemos coloca-nos perante uma realidade incontornável: a

sociedade e os indivíduos que lhe dão existência constituem dois eixos em torno dos quais

tudo gravita e sem a interacção destes jamais poderia existir.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

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Peter Berger e Thomas Luckmann desenvolveram um estudo através do qual nos

transmitem o essencial do seu pensamento em torno do processo que enforma a construção

social da realidade e onde a problemática da socialização, campo que interessa a este nosso

estudo, assume papel preponderante.

A sociedade subsiste ancorada na existência de uma dialéctica onde participam os

seus membros. Porém, o indivíduo quando nasce não vem já com o rótulo de membro da

sociedade, carece de passar por um processo que o conduza a tal, o que vai acontecer num

tempo e num espaço próprios. A fase principal deste processo é a interiorização, que Berger e

Luckmann definem como “a apreensão ou interpretação imediata de um acontecimento

objectivo como exprimindo sentido, isto é, como manifestação de processos subjectivos de

outrem, que assim se torna, em termos subjectivos, significativo para mim” (1999: 137).

É através desta interiorização que o indivíduo aprende, primeiro a compreender os

seus semelhantes e, posteriormente, o mundo que o rodeia como realidade social com

significado, o que lhe vai permitir assumir o mundo onde os outros vivem, que, desta forma,

se torna, também, no seu próprio mundo. Passa a haver um fio condutor entre o indivíduo e a

sociedade, que ele, entretanto, interiorizou e com a qual passa, então, a interagir com sentido,

constituindo-se a partir desse momento seu membro de pleno direito.

Todo este labiríntico percurso por onde cada indivíduo passa na sua longa caminhada

rumo à maior idade, a um tempo existencial onde já é capaz de apreender tudo o que o rodeia,

não é obra do acaso, antes consubstancia uma intrincada teia, que exige tempo e arte até que

esteja tecida. “O processo ontogénico pelo qual se realiza a interiorização é a socialização,

que pode ser definida como a completa e consistente introdução de um indivíduo no mundo

objectivo de uma sociedade ou de um sector da mesma” (idem: 138).

Segundo Berger e Luckmann o processo socializador acontece em duas fases

distintas: num primeiro momento o indivíduo é objecto de uma socialização primária, através

da qual se torna membro da sociedade, seguindo-se-lhe, subsequentemente, um outro

processo visando introduzir o indivíduo já, entretanto, algo socializado, noutros sectores da

sociedade, ministrando-lhe, para tanto, novas e mais complicadas competências, que lhe

adestrem a capacidade para o desempenho social que a todo o momento seja chamado a

exercer.

Na socialização primária, basicamente, está em jogo a apreensão pelo indivíduo

debutante do sentido do “outro generalizado”7 tão necessário ao seu próprio posicionamento

7 Ver na abordagem atrás feita ao interaccionismo simbólico de Mead a explicitação do conceito de “outro generalizado”.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

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na sociedade, sendo certo que tal terá muito a ver com o “outro significativo”8 que lhe vai

servir de mediador e modelo, e ajudar a dar tão transcendente passo para o seu futuro, aqui se

jogando muito em função das expectativas sociais desse mediador – centralizado na família e

predominantemente parental – das condições sociais em que a mediação ocorre e, quantas

vezes até, pelo cruzamento de posições contraditórias e mesmo antagónicas quando em cena

estão mediadores diferentes. “Como a criança não tem escolha na selecção dos seus outros

significativos, a sua identificação com eles é quase automática. Pela mesma razão, a

interiorização da realidade específica deles é quase inevitável” (idem: 141), o que nos

interpela e deve alertar para a transcendente importância desta fase da socialização e das

marcas indeléveis que dela, naturalmente, ficarão para sempre gravadas no pequeno ser que a

recebeu, sejam elas de que natureza forem.

A socialização primária, referem Berger e Luckmann, termina quando o conceito de

outro generalizado (e tudo quanto o acompanha) ficou estabelecido na consciência do

indivíduo (idem: 145), altura em que adquire o estatuto de membro efectivo da sociedade,

possuidor de uma personalidade e senhor de um mundo que, entretanto, interiorizou.

No que à socialização secundária concerne a sua emergência decorre da imperiosa

necessidade que os indivíduos têm de adquirir conhecimento de funções específicas e de

vocabulários próprios, um e outros directa ou indirectamente relacionados com o mundo

diverso e diversificado do trabalho. A socialização secundária, postulam Berger e Luckmann,

é a interiorização de submundos institucionais ou baseados em instituições. A extensão e

caracter destes, acrescentam estes autores, são, portanto, determinados pela complexidade da

divisão do trabalho e a concomitante distribuição social do conhecimento” (idem: 145-146).

Nesta altura estamos numa fase mais formal do crescimento do indivíduo, onde as

relações de proximidade com o outro significativo, ao contrário do que aconteceu no decurso

da socialização primária, se começam a esbater e o eu total e a realidade que lhe subjaz

conhece uma separação de um eu parcial, especificamente centrado na função e respectiva

realidade que a socialização secundária necessariamente comporta no contexto de cada um

dos já referidos submundos institucionais por onde se vai fazendo.

Se quisermos encontrar um exemplo de socialização secundária levada a cabo em

contexto institucional, teremos na educação escolar o melhor de todos e, sobretudo, aquele em

quem a sociedade vem depositando as melhores das expectativas para levar a bom termo tão

importante tarefa.

Pela negativa, o enfraquecimento contínuo que a posição da família relativamente à

socialização secundária vem sofrendo, constitui o mais preocupante exemplo da exigência que

8 Idem em relação ao conceito de “outro significativo”

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

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hoje se coloca a este nível, que torna impensável, porque irrealizável, que hoje, por exemplo,

a preparação para a vida se possa ensinar em contexto familiar, como aconteceu durante

milénios, onde os jovens aprend iam com os pais as profissões que lhes iriam garantir na

adultez um lugar na sociedade e o concomitante rendimento que daí advinha para o seu

sustento e dos que dele viessem a depender.

De facto, o mundo cada vez mais exigente em que vivemos reclama cidadãos bem

preparados, socialmente competentes e profissionalmente hábeis e competitivos. Nesta

realidade encontramos a explicação certa para a complexidade que progressivamente vai

adquirindo o processo que enforma a socialização secundária, capaz de durar hoje o mesmo

tempo que dura a vida activa do indivíduo. Poder-se-á dizer que vivemos uma época onde a

socialização secundária marca encontro com o indivíduo de uma forma permanente.

Quadro 1

Características Diferenciadoras entre Socialização Primária e Socialização

Secundária

SOCIALIZAÇÃO PRIMÁRIA SOCIALIZAÇÃO SECUNDÁRIA

Informal, onde o outro significativo aparece como mediador

Institucional, mais formal, onde o outro significativo aparece como mero funcionário institucional

O adulto aparece situado numa relação de grande proximidade e afecto, numa relação profunda (pais, ama....)

O adulto aparece como contigente: é este como poderia ser aquele, o que exige níveis menos aprofundados de identificação

Tem um horizonte temporal limitado – coincidente com a chegada à escola.

Não se esgota, prolonga-se pelo tempo que dura a vida do indivíduo e caminha para durar tanto quanto o seu ciclo vital como condição de enraizamento, para combater os sucessivos desenraizamentos que a vida hoje provoca nos indivíduos.

Quadro elaborado pelo autor a partir de Berger e Luckmann (1999)

Cada uma à sua maneira e com características muito próprias (quadro 1), as duas

etapas do processo socializador de que temos estado a falar são, como se infere pela prosa,

determinantes para a formação do ser humano. Para o seu sucesso Alves Pinto acha

fundamental que haja “coerência e compatibilidade entre as interiorizações realizadas ao

longo da socialização primária e as interiorizações supostas pelos diferentes momentos de

socialização secundária” (1995: 123). Aqui, ganha, desde logo, acuidade a forma como os loci

onde ocorre a socialização secundária conseguem absorver sem grandes rupturas o indivíduo

que lhe chega provindo de um contexto onde foi submetido a um processo de socialização

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

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primária carregado de especificidades e, portanto, muito distanciado dos formalismos que

enformam os contextos institucionais onde aquela acontece. Até que ponto, interroga Alves

Pinto a título exemplificativo, muitas crianças nas nossas escolas dispõem de pontes entre o

seu mundo significativo (com que chegam à escola) e o universo significativo que lhe é

proposto na socialização escolar? (idem: 124). Sabemos que para um universo muito alargado

de crianças a resposta à interrogação não é animadora, já que muitas delas “não dispõem de

‘dicionários’ que lhes facilitem as traduções e retroversões” (idem) de um “mundo” que lhe é

estanho e, para azar seu, está pouco preparado para lhe acudir na disfunção que lhe vai

atrapalhar a caminhada logo à partida.

Finalmente, cabe aqui uma pequena reflexão em torno de alguns aspectos

socioestruturais do sucesso da socialização ou que se podem constituir como grave

constrangimento à sua prossecução, tendo sempre presente a ideia de que não é provável que

exista uma socialização com sucesso total, como improvável o será, também, que qualquer

processo socializador resulte num rotundo insucesso.

Berger e Luckmann entendem por socialização bem sucedida “o estabelecimento de

um elevado grau de simetria entre as realidades objectiva e subjectiva” (1999: 170), o que a

não acontecer fará soçobrar o processo.

Factores como a deficiência física ou o nascimento fora da família nuclear, que

aparecem ainda socialmente estigmatizados, constituem entraves sérios à socialização

extrínsecos ao indivíduo, sendo verdade que impedimentos intrínsecos ao ser humano há que

a inviabilizam de todo, como é o caso da existência de grave deficiência mental.

No mais, como referem Berger e Luckmann (1999: 171-178), a heterogeneidade dos

mediadores do processo socializador, designadamente quando têm pontos de vista

diferenciados que são transmitidos ao indivíduo que está a ser socializado, a descrepância,

como já referimos, entre o contexto de socialização primária e o da secundária, onde não é

feito um esforço de adaptação, o antagonismo por vezes absoluto entre o contexto familiar e o

grupo de pares, que dão azo a expectativas sociais diferenciadas, onde o jovem pode ser

iniciado em formas de vida contraditórias, e a discordância entre a socialização primária e a

secundária, sobretudo quando a segunda não dá sequência às expectativas criadas na primeira

ou quando os ‘mundos’ de ambas são desconformes, quando não incompatíveis, constituem

outros tantos motivos capazes de tornar a socialização imperfeita. Conhecê- los é, antes do

mais, sobretudo para todos quantos arcam com a responsabilidade de mediar processos de

socialização, ter à mão um conjunto de possibilidades de acertar procedimentos e adaptar

contextos que minimizem tais obstáculos, possibilitando que o crescimento integral do

indivíduo se faça sem grandes rupturas. Qualquer espaço educativo, formal ou informal, está

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

27

constantemente confrontado com as grandezas e as desditas que qualquer socialização

comporta e, por isso, é exigido aos seus agentes saber constatá-las ou tentar corrigi- las,

quando for o caso.

2.5. A socialização através da interacção de gerações

Pela importância de que se reveste a interacção no processo socializador do

indivíduo, quer a provocada e objectivamente dirigida com uma finalidade pré-determinada,

quer a que resulta da relação entre as gerações que estruturam a sociedade, deter-nos-emos

agora um pouco na forma como ao longo do tempo novos e velhos se posicionaram

socialmente, em que sentido iam as influências que inevitavelmente se transmitiam entre eles

e que transformações se foram entretanto operando neste campo.

Durante milénios foram os pais e os adultos em geral os primeiros socializadores da

pequenada, sendo possível encontrar, ainda hoje, algumas formas desta cultura em alguns

pontos do planeta. Margaret Mead chama-lhe cultura pós-figurativa onde “as alterações são

ainda tão lentas e imperceptíveis que os avós que têm os seus netos nos braços não

conseguem conceber para as crianças um futuro diferente das suas vidas passadas” (1979: 38).

Nas culturas pós-figurativas prevalece a imutabilidade das formas de vida dos seus membros,

não há lugar à mudança, o presente e o futuro são passado reproduzido a cada instante de

novo. Numa cultura pós-figurativa “as crianças são criadas de forma a que a vida dos pais e

dos avós modele o curso das suas próprias vidas” (idem: 53).

Entretanto, o mundo evoluiu de uma forma verdadeiramente vertiginosa, que nos

inquieta a cada momento e nos chama a procurar formas de o entender e de com ele interagir.

O aparecimento do computador, as viagens cósmicas, a navegação por satélite e,

recentemente, a Internet e a genética, cortaram de uma forma drástica e irreversível o cordão

umbilical que ao longo dos séculos ligou as gerações. Hoje, diz Mead, as crianças enfrentam

um futuro que é tão profundamente desconhecido que não pode ser tratado como uma

mudança de geração controlada pelos anciãos e pelos pais (1979: 120). Muitos dos adultos

foram preparados para exercer profissões e professar valores que, muitos deles, se encontram

desajustados dos tempos modernos e, concomitantemente, de pouco servem a quem os possui

e muito menos para serem transmitidos a alguém. Neste sentido, a autora chama a uma parte

da nossa geração adulta, sobretudo à mais velha, “imigrantes no tempo que lutam para

apanhar as condições estranhas da vida numa nova era” (idem: 133)

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

28

Quadro 2

CARACTERISTICAS DISTINTIVAS DAS SOCIEDADES TRADICIONAIS E MODERNAS

SOCIEDADES TRADICIONAIS

(Pós-Figurativas)

SOCIEDADES MODERNAS

(Pré-Figurativas)

Centradas sobre elas mesmas Tendencialmente globalizadas, abertas e vulneráveis a influências exteriores

Os anciãos são tidos como referências culturais incontornáveis

Os anciãos tornam-se imigrantes no tempo e, não raras vezes desenraizados

Os jovens aprendem com os adultos Os adultos aprendem com os seus filhos e demais concidadãos mais novos

O universo dos mais velhos funciona como referencial orientador de comportamentos, formas de ser e de estar, valorizadas pelas sociedades que integram

Os adultos sentem que as definições, que outrora se apresentavam com uma plausibilidade que lhes dava segurança, são, actualmente, problemáticas

Existem e subsistem fronteiras relativamente estáveis, pouco susceptíveis de mudança

Têm fronteiras difusas, frágeis e, por isso, dificilmente detectáveis de forma precisa, porque em processos de mudança constantes

Desenvolvem processos socializadores pouco complexos e curtos, à medida da sua inércia.

Os processos socializadores têm maior complexidade e são de longa duração

Potenciam profundos enraizamentos à cultura que as caracteriza

Provocam desenraizamentos mais frequentes

São globalmente imutáveis em toda a sua dimensão Sofrem processos de transformação rápidos Quadro elaborado pelo autor a partir da leitura que de Mead faz Alves Pinto (1995: 124-125)

Nasceu, pois, um tempo novo na interacção de gerações. Um tempo em que os

jovens interagem em rede, partilham em todo o lado e por todo o mundo experiências que os

mais velhos nunca tiveram, nem tão-pouco sabem que existem e são inaptos para as iniciar.

As crianças de hoje crescem num mundo novo, que ninguém outrora sonhou como tal. Mead

chama a esta cultura “pré-figurativa, porque será o filho, e não o pai ou o avô, que representa

o que está para vir” (idem: 153), com toda a sua imprevisibilidade a reclamar cuidados e

atenção redobrados dos adultos e, sobretudo, uma grande capacidade de adaptação às

circunstâncias que a cada momento se colocam, ao contrário da previsibilidade inerente às

culturas pós-figurativas (quadro 2).

Nesta conformidade, Mead entende que “ devemos, de facto, ensinar a nós próprios

como alterar o comportamento adulto de modo a podermos desistir da educação pós-

figurativa e descobrir meios pré-figurativos de ensinar e aprender que mantenham o futuro

aberto” (idem: 159). Mais importante do que ensinar aos mais novos o que eles têm de

aprender é dizer- lhes como aprender, como mais significado terá ensinar-lhes o valor da

obrigação em vez da obrigação de fazer.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

29

Poder-se-á dizer, corroborando o pensamento de Mead, que é possível mudar para

uma cultura pré-figurativa de uma forma consciente e sem ser a tal constrangido criando

jovens desconhecidos para um mundo desconhecido. “Devemos colocar o futuro como uma

criança que está para nascer no ventre de uma mulher, numa comunidade de homens e

crianças, entre nós, que já aqui estamos, já pronta a ser alimentada, ajudada e protegida,

necessitando já de coisas para as quais, se não forem preparadas ao nascer, será demasiado

tarde. Portanto, como os jovens dizem, o FUTURO é AGORA” (Idem: 166).

É esta mudança de mentalidade que a quem tem a responsabilidade nos processos de

socialização hoje se exige, como pressuposto fundamental para que os jovens não se tornem,

também, a breve trecho, imigrantes no tempo, porque demasiado inaptos para lidar com o

mundo actual.

3. A SOCIALIZAÇÃO EM CONTEXTO INSTITUCIONAL

“Na idade média, nos tempos modernos, por mais tempo ainda nas classes populares, as crianças

confundiam-se com os adultos assim que se considerava que eram capazes de passar sem a ajuda da mãe ou da

ama, poucos anos após um desmame tardio, por volta dos sete anos de idade. Entravam, então, sem transição,

na grande comunidade dos homens, compartilhando com os seus amigos jovens ou velhos os trabalhos e os

divertimentos de cada dia” (Ariès, 1988: 319).

A citação precedente lembra-nos um tempo em que o indivíduo se construía crescendo

pelos caminhos da vida, interagindo com os seus iguais e os seus maiores desde muito cedo,

numa vivência pura e dura do quotidiano, sem sujeição prévia a qualquer processo formal de

aprendizagem fora de casa.

Até então era apenas e só no seio da família, predominantemente junto da mãe, que o

jovem em crescimento aprendia e uma forma direccionada o conjunto das competências com

que iria enfrentar o mundo desde muito cedo. “Instituição ancestral e universal, a família é o

fundamento da sociedade” (Leandro, 1994) e, também, inquestionavelmente, ainda hoje, o

lugar onde ancora a responsabilidade primeira pela socialização dos seus membros mais

pequenos. Giddens (1997: 98) chama à família a principal agência de socialização durante a

infância.

Falar, pois, em socialização em contexto institucional leva-nos, em primeira instância e

desde logo, ao encontro da mais antiga instituição social, a família, ainda hoje a célula nuclear

das nossas sociedades, cujo contributo continua a ser determinante para o seu futuro. Na

maioria das sociedades tradicionais, refere Giddens (idem: 99), a família em que uma pessoa

nasce determina, em grande medida, a posição social para o resto da vida, naturalmente ditada

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

30

pela qualidade da educação informal que aí receber e as expectativas com que o futuro que

querem para os seus novos membros é desde logo encarado.

De tais expectativas sofrerá de imediato os seus efeitos a escola. Diz Formosinho

(1987), na esteira de Bourdieu, que uma educação informal deficiente, fruto do baixo nível de

rendimento da família, que lhes dificulta o acesso a bens culturais (livros, revistas, cinema,

jornais....), lhes não proporciona um bom ambiente de estudo e, em muitos casos, os retira

precocemente da escola para o mundo do trabalho, influencia grandemente o seu (in)sucesso

escolar, sendo certo que o contrário potencia situações de progresso bem mais agradáveis.

É, de facto, inquestionável, como diz Leandro (1994), que a educação primária das

crianças é obra da família, tal qual como, entre nós, consagra o texto fundador da nossa Lei

Fundamental9. Porém, acentua, ainda, esta investigadora, “a família é levada a partilhar cada

vez mais essa tarefa com outras instituições”(idem), de entre as quais a escola desempenha

um papel determinante na emergência do indivíduo capaz de se constituir naquilo a que

Durkheim (1984) chamo de “ser social”.

Não tem muito tempo a preocupação das sociedades com a preparação da criança para o

tempo da sua adultez, que, inexoravelmente, um dia chegará.

Foi pelo fim do Século XVII, princípio do Século XVIII, que as ordens religiosas se

transformaram em ordens docentes e o ensino por elas ministrado deixou de se dirigir aos

adultos para se destinar essencialmente às crianças. Ficou definitivamente consagrada, a partir

de então, a ideia de que a criança não se encontrava, ainda, preparada para a vida e, como tal,

deveria “ser submetida a um regime especial, a uma quarentena, antes de lhe ser permitido

juntar-se aos adultos” (idem: 312). Era a postura social desse tempo, que colocou a família

perante a necessidade da dar aos filhos10 uma preparação necessária para a vida activa, que ao

tempo era feita exclusivamente nas escolas debaixo das mais rigorosas medidas disciplinares,

que os próprios tribunais e a polícia protegiam. Nascera, pois, então, a preocupação com uma

socialização institucional das crianças fora do contexto familiar, feita com objectivos

assumidos previamente e centralizada num organismo bem definido nos seus propósitos.

Terminou, assim, aqui, o monopólio da família na condução do processo de socialização da

criança.

Deste modo e durante mais de dois séculos a escola ganhou uma dimensão quase que de

exclusividade enquanto locus de socialização institucional fora da instituição familiar.

Durkheim achava mesmo que “o meio escolar e os diferentes ensinos que nele se ministram

9 “Os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos” – Artigo 36.º da Constituição da República Portuguesa 10 Num primeiro momento só o filho mais velho ia à escola para ser socializado, numa fase posterior iam todos os rapazes e só mais tarde tal medida social passou a abranger, também, as raparigas da família (cf. Áriès, 1988).

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

31

constituem os meios de que dispomos para agirmos sobre a criança” (1984: 340) e Giddens

(1997: 101) chama à educação escolar um processo formal onde as crianças são socializadas à

luz de um currículo pré-definido. Dentre as instituições para crianças, Montandon (2001: 142)

diz que a escola ocupa, evidentemente, o primeiro lugar.

Formosinho, olhando o papel crescente que a instituição escolar vem adquirindo no seio

da sociedade, entende mesmo que “ a escola ganhou um papel na educação da geração jovem,

que é um contributo específico do Século XX, visto que até aí a escola era sobretudo uma

instituição que recebia apenas quem queria estudar” (1985). Na verdade, é na segunda metade

do século passado que no mundo industrializado todas as crianças são obrigadas a uma longa

permanência na escola11 onde “são instruídas de forma sistemática, socializadas nos valores

dominantes e preparadas para a entrada na vida activa” (idem). Foi a afirmação da escola

curricular, formal, com carga horária e tempos lectivos legalmente definidos para cada

disciplina ou área de ensino.

Entretanto, paralelamente à escola curricular, estruturada em torno de uma componente

lectiva, começa, com o advento da Lei de Bases, a ganhar corpo a ideia de uma componente

não lectiva do currículo. Ao avançar com ela a Proposta Global de Reforma estipula que a sua

operacionalização se faça quer através da área-escola (desenvolvida a nível de turma, gerida

pelo professor, com horário fixo e de frequência obrigatória), quer por meio da escola-cultural

(situada a nível de escola, gerida por professores ou animadores, sem horário fixo e de

frequência livre. À primeira, diz Formosinho (1991: 35-36), cabe reflectir as preocupações

das disciplinas curriculares, enquanto à escola cultural estaria subjacente uma perspectiva de

ocupação dos tempos livres.

Há aqui uma clara intenção de sedimentar o papel da escola na formação dos jovens

indivíduos e o propósito de lhe confiar a ocupação significativa de outros tempos que as

crianças consomem de forma e por espaços às vezes pouco recomendáveis nesta fase da sua

formação social.

Algumas normas12 vieram abrir espaços à concretização daquelas ideias e com isso

procurar dar expressão a uma escola já não meramente curricular, mas suportada por um

modelo verdadeiramente pluridimensional13.

Estará por esta altura desenhado um espaço socializador institucional centrado na

escola, contexto onde se depositam ainda fortes e fundadas expectativas sociais, bem

espelhadas no relevante papel que a sociedade lhe continua a reservar e de quem espera os 11 Em Portugal a escolaridade obrigatória é de nove anos para todos os alunos que se matriculem no 1.º ano do ensino básico no ano lectivo de 1987-1988 e anos lectivos subsequentes – art.º 63.º, da Lei n.º 46/86, de 14 de Outubro – Lei de Bases do Sistema Educativo. 12 Despachos n.º 141/ME/90 e 141/ME/90, ambos de 1 de Setembro. 13 Patrício chamou-lhe Escola-Cultural e defendeu-a apaixonadamente (cf. Patrício, 1997).

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

32

melhores resultados, naturalmente consubstanciados em padrões educacionais para os seus

filhos, ou seja, que os prepare em conformidade com as exigências que a vida complicada lhes

reserva quando nas suas teias caírem um dia.

Recentemente, entre nós, adquiriu particular amplitude a educação pré-escolar que,

embora sem carácter obrigatório14 e integrando uma forte componente social de apoio à

família, está hoje perfeitamente enraizada como contexto institucional de educação para

crianças a partir dos três anos de idade, tendo a suportá- la uma Lei-Quadro15 que a define

como a primeira etapa da educação básica, favorecendo a formação e o desenvolvimento

equilibrado da criança, tendo em vista a sua plena inserção na sociedade como ser autónomo,

livre e solidário e tendo como objectivo a sua generalização a todo o universo da infância

portuguesa.

Em poucas décadas passamos de uma socialização institucional voluntária para uma

escolarização obrigatória longa, antecedida de uma outra consubstanciada na educação pré-

escolar, que, hoje, já reveste um carácter de quase obrigatoriedade, tal é a sua notória utilidade

para um bom lançamento do processo socializador da criança em contexto escolar, isto é,

como e enquanto “serviço educativo” (Formosinho e Sarmento, 2000: 13).

É, essencialmente, neste âmbito que hoje se situa a socialização em contexto

institucional pós-familiar, malgrado se conhecerem inúmeras e válidas iniciativas no domínio

da ocupação dos tempos livres e da educação não formal envolvendo o Estado, autarquias,

movimentos associativo, sindical e cívicos, que, no entanto, estão longe de assumir o papel

sistemático e curricular que uma socialização planeada dos jovens reclama.

4. SOCIALIZAÇÃO EM CONTEXTOS INFORMAIS

Procuraremos aflorar aqui alguns aspectos do processo de socialização do indivíduo

que, ao contrário do que acontece com a sua vertente institucional, anteriormente reflectida,

ocorre sem obediência a quadros e a regras objectivos e explícitos e, concomitantemente, se

realiza ao arrepio de qualquer formalidade socialmente imposta ou sistematicamente capeada

por um programa de socialização institucionalmente dirigido.

Valorizados, entre outros, por Piaget e G.H. Mead16, os grupos de pares emergem como

uma das formas mais conhecidas e, pelo que envolve, mais significativas, que no processo de

criação do indivíduo social ocorrem. Embora não tendo “o mesmo carácter estruturado e

14 A Lei de Bases do Sistema Educativo chama -lhe “educação não formal”. 15 Lei n.º 5/97, de 10 de Fevereiro. 16 Cf. anterior abordagem ao “Interaccionismo Simbólico” – pág. 15.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

33

institucionalizado da escola ou da família, nem por isso pode ser considerado menos

importante no desenvolvimento infantil” (Pinto, 2000: 73).

Referenciados e estudados por inúmeros autores – Brougère, Huizinga, Caillois, G.

Mead, Neto, entre outros – o jogo, os brinquedos e a brincadeira constituem, também, um

referencial incontornável do processo desenvolvimental do ser humano, enquanto verdadeiros

mediadores entre o indivíduo e a realidade ou meio privilegiado por onde ocorrem interacções

significativas fundamentais para o seu crescimento como ser social.

No âmbito do papel que hoje os media têm na socialização do indivíduo, a televisão

ganhou tamanha notoriedade e influência, que merece, indubitavelmente, a necessária

particularização. “Tanto a pesquisa como a própria evidência empírica dão conta do facto de

as crianças começarem a ver televisão cada vez mais cedo, dominarem com mestria o controlo

do aparelho desde tenra idade e consumirem com interesse programas não apenas a elas

especificamente destinados” (idem:71). Não podemos ignorar esta realidade nem o papel

determinante que ela hoje assume no quotidiano de todos, particularmente no das crianças.

É nestas três dimensões – grupo de pares, jogos e brincadeiras e comunicação social -

que situaremos a nossa perspectiva de socialização em contextos informais.

4.1. Os grupos de pares17

Os grupos de crianças amigas de idade similar constituem um importante veículo

socializador, que nos tempos que correm ganhou, quiçá, uma nova dimensão, mercê do

aumento considerável do número de horas diárias que as crianças passam juntas, como

consequência directa do crescimento da quantidade de mães que hoje fazem parte da força do

trabalho. O que veio encurtecer drasticamente o tempo de presença das crianças no seio

familiar.

Esta realidade veio potenciar a formação de grupos de amigos e, concomitantemente,

reforçar e revalorizar o papel que a esses grupos de pares cabe na socialização, dada a função

determinante que a interacção adquire na formação inicial do indivíduo e no estabelecimento

da sua posição perante a sociedade de que se vai tornando membro, como anteriormente

vimos quando nos detivemos naquilo que então julgamos ser o essencial do que G. H. Mead

postolou neste âmbito. É organizados em grupos coerentes e coesos, que, normalmente, as

crianças constituem de uma forma consistente, que os jovens indivíduos constróem as suas

brincadeiras e os seus jogos, que lhes hão-de dar a conhecer o sentido da regra, da partilha e

do esforço repartido, do saber ganhar e perder.

17 Giddens (1997) chama-lhe “agência de socialização”, à laia, aliás do que faz à escola, à família e aos média.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

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Giddens vai mesmo mais longe e afirma que “as relações entre pares são muitas

vezes importantes para o resto da vida da pessoa” (1997: 101), já que, nos casos onde a

mobilidade social é diminuta, a “claque informal formada durante a infância perdura para

além desse horizonte temporal, mantendo-se unida e assumindo usualmente uma grande

importância na formação das atitudes e comportamentos dos indivíduos no trabalho e em

outras situações” (idem).

É neste momento que releva esta vertente importante para o crescimento da criança,

que, no entanto, pode assumir contornos perversos, sobretudo quando os grupos descambam

para os domínios da delinquência e se tornam vitimizadores de outras crianças ou iguais,

matéria que abordaremos mais à frente.

4.2. O jogo, o brinquedo e a brincadeira

Aceitar a derrota como simples contratempo, a vitória sem embriaguez nem vaidade, essa distanciação, essa derradeira construção no que respeita à própria acção é a lei do jogo. Considerar a realidade como um jogo, ganhar mais terreno a certos costumes sociais que fazem recuar a mesquinhez, a cobiça e o ódio, é praticar um acto de cidadania” (Caillois, 1990: 17).

No prefácio à obra “Homo Ludens”, Huizinga afirma que “é no jogo e pelo jogo que

a civilização surge e se desenvolve” (1980) estando aqui claramente assumido o seu papel

incontornável em todos ao locais, em todos os campos e em todas as idades, na estruturação

do indivíduo e, concomitantemente, da sociedade em que se integra e interage como seu

membro. Na verdade, o jogo constitui uma autêntica escola de disciplina, de despoletar de

emoções e afectos, um espaço de liberdade que a criança livremente aceita e exercita, pondo à

prova as qualidades do jogador, designadamente, “a sua força e coragem e, igualmente, as

suas capacidades espirituais e a sua lealdade. Porque, apesar do seu ardente desejo de ganhar,

deve sempre obedecer às regras do jogo” (idem).

No que ao âmbito deste estudo concerne, o jogo adquire, quiçá, a sua expressão mais

decisiva, já que falamos do contributo que, à luz dos valores acima enumerados, ele potencia

no patamar primeiro da emergência do indivíduo. “Os jogos têm um papel vital na história da

auto-afirmação da criança e na formação da sua personalidade” (Caillois, 1990: 15).

É através do jogo que a criança aprende a conhecer a realidade do quotidiano, sente

até onde podem ir as suas capacidades e, nesse sentido, percebe as suas fragilidades, aprende

a superar-se, a ganhar e a perder, a não ver na derrota nenhuma fatalidade, antes aceitando-a

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

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serenamente. “O jogo permite-lhe descobrir o mundo, integrar-se na comunidade, efectuar as

suas próprias experiências” (Olivier, 1976: 24).

No caso particular da prática desportiva é bom ter sempre presente que o desporto,

sobretudo o organizado e em equipa, é um imenso campo gerador de novas amizades e

potenciador da aquisição de novas competências pessoais e sociais, onde as crianças

aprendem as regras da sã convivência e da cooperação entre si, a querer ganhar e a saber

perder, enfim a cultivar padrões de auto-estima que muito lhe aproveitarão vida fora.

Ignorar tudo isto é castrar de uma forma dramática e com consequências

imprevisíveis o desenvolvimento dos jovens.

É, efectivamente, pelo jogo, como diz Neto, que se “edificam as estruturas mentais e

a flexibilidade do corpo” (1998: 162). É aqui, acrescenta este autor (idem), que o jogo se

assume como uma das formas mais importantes do comportamento humano ao longo do seu

ciclo vital, absolutamente essencial na formação e estruturação do processo de

desenvolvimento do indivíduo. Até porque o pulsar da vida com que somos quotidianamente

confrontados é cada vez mais um intrincado jogo, cujo resultado final muito terá a ver com a

forma como o soubermos jogar, sobretudo com o recurso às competências que, para o efeito,

conseguimos, ou não, adquirir em tempo oportuno.

Umbilicalmente ligado à infância e ao jogo, o brinquedo18emerge, também, como

peça indissociável do complexo puzzle que constitui a socialização do ser humano. De facto,

crianças e brinquedos andaram sempre de mãos dadas e nesta relação de cumplicidade

afectiva muito se joga, também, da apropriação que os pequenos seres fazem do mundo com

que se vão confrontando. “A infância é um momento de apropriação de imagens e de

representações diversas que transitam por diferentes canais. As suas fontes são muitas. O

brinquedo é, com as suas especificidades, uma dessas fontes” (Brougère, 1995: 40).

No que à socialização da criança concerne, Brougère (idem: 63-66) atribui ao

brinquedo uma função tridimensional:

• Enquanto objecto o brinquedo introduz e adestra a criança para uma sociedade

onde o contacto com os objectos é permanente e até inerente ao seu próprio

funcionamento quotidiano. É através do brinquedo que a criança constrói as suas

relações com o objecto – de posse, de utilização, de abandono, de perda – que, no

fundo, constituem, igualmente, as interacções que ela realizará com outros

objectos futuramente no seu dia a dia. Familiarizar as crianças com o máximo de

18 Brougère distingue jogo de brinquedo. No que ao primeiro concerne “pressupõe a presença de uma função como determinante no interesse do objecto e anterior ao seu uso legítimo” ; quanto ao segundo, “trata-se, antes de tudo, de um objecto que a criança manipula livremente, sem estar condicionada às regras ou a princípios de utilização de outra natureza” (1995: 12-13).

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

36

objectos é essencial para o processo de socialização e, concomitantemente, deve

merecer o devido cuidado das instituições que o têm a seu cargo;

• Como símbolo o brinquedo transmite às crianças, sobretudo às mais velhas, uma

imagem da sociedade ou de papeis sociais realistas ou futuristas, propondo um

olhar sobre o mundo de hoje e da forma como se prospectiva o de amanhã. Neste

particular e pelo facto de possuir materialidade e uma certa volumetria o

brinquedo coloca à criança que o detém situações de apropriação e torna-se ele

próprio, mercê destas especificidades, um convite à manipulação lúdica,

tornando, deste modo, o brincar quase que numa consequência lógica dessa

relação íntima que existe entre a criança e o brinquedo, que o conteúdo simbólico

deste torna de primordial importância no processo socializador;

• Ao propor acções no domínio sensório-motor, simbólicas ou baseadas num

sistema de regras, o brinquedo constitui-se como estimulador de condutas mais

ou menos abertas e estrutura comportamentos socialmente significativos na

criança. Neste campo, é a dimensão funcional do brinquedo a possibilitar a

transmissão de esquemas sociais que vão contribuir para a formação do

indivíduo.

Quer como objecto significativo, quer através das suas dimensões simbólica e

funcional, o brinquedo tem o seu lugar cativo junto da criança em crescimento e constitui uma

ponte importante entre ela e o mundo real, que ela vai descobrindo também a brincar.

No domínio dos brinquedos parece-nos, também, pertinente reflectir as propostas que

João Amado nos deixa no campo dos brinquedos tradicionais populares19, que considera

como reveladores dos “efeitos multidimensionais da descoberta e da conquista do mundo pela

criança através de tais objectos, cuja construção era já, em si, brincadeira ou jogo” (2002:

192).

Na verdade, refere Amado (idem: 192-193), a confecção e uso do brinquedo

tradicional popular proporciona uma “verdadeira introdução ao mundo”, já que permite

aprendizagens tão diferentes como a capacidade de andar sobre o mundo, que os carros de

rodas, as andadeiras e o jogo do arco propiciam, da capacidade de sobrevivência simbolizada

pelo arco e a flecha, do amor e do afecto que advêm do brincar com as bonecas, da linguagem

através do telefone de cordel, do empenho na vida pelo trabalho, que as miniaturas de alfaias

e carros de bois potenciam, das regras provenientes do jogo do pião, etc, etc. ”Produzindo e

utilizando estes brinquedos toda a criança foi equilibrista e pintora, ceramista e botânica,

19 Que João Amado define como “material lúdico, manufacturado pela própria criança ou pelos seus amigos ou familiares mais próximos e que faz parte das tradições locais” (2002: 11).

Page 57: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

37

arquitecta e caçadora, lavradora e escritora, tecedeira e investigadora....e tudo o mais quanto

pôde aprender na principal das suas escolas – a RUA!” (ibidem).

Num tempo em que a electrónica e as novas tecnologias tudo parecem querer

esmagar, este olhar sobre o imaginário infantil de tempos não muito distantes, que ainda

marcaram a nossa época de meninice no decurso do terceiro quarteirão do século passado,

merece uma cuidada reflexão e, quiçá, ocupar um espaço, por direito próprio e por valor, na

“memória infantil” de que fala Raul Iturra20, constituindo-se, de uma forma afirmativa, como

oficina onde, de facto, se voltem a fazer brinquedos de pau e de outros materiais provenientes

da natureza e se aprenda a brincar com eles, numa actividade complementar das que hoje se

têm como fundamentais num processo socializador adequado à época que vivemos e às

exigências dela emergentes, em vez de os relegar para um qualquer museu da socialização.

O apelo a escolas, associações e instituições de ocupação de tempos livres para que

promovam o estudo, mostrem e animem a reconstrução desse património lúdico de antanho,

parece-nos ajustado ao imenso manancial de aprendizagens que os brinquedos tradicionais

populares encerram, como importante instrumento de socialização das crianças. Ignorar esta

realidade é, como diz Amado, “pôr fim ao que de melhor resultou de milhares de anos de

hominização e de humanização” (2002: 194).

Finalmente e para completar este importante triângulo, inegavelmente ligado ao

processo de socialização, de que o jogo e o brinquedo constituem dois dos seus vértices, a

brincadeira21, a que Brougère (1995: 67) chama de interacção lúdica, emerge, apesar de

alguma controvérsia à sua volta, como um elemento com significado no processo

desenvolvimental da criança.

Podemos afirmar com segurança que, por norma, onde estiver uma criança está a

brincadeira. Anormal, porventura indiciador de que algo não está bem, é não querer brincar, já

que para ela “brincar é uma necessidade, precisa tanto disso como do ar que respira” (Olivier,

1976: 24).

Buhler, citado em Teles (1997: 17), define, quanto ao seu conteúdo social, três tipos

de brincadeiras: a brincadeira funcional, onde a criança observa os seus próprios movimentos,

que ocorre durante o primeiro ano de vida; a brincadeira imaginativa ou simbólica, período de

tempo que medeia entre os dois e os quatro anos de idade e caracterizado por brincadeira do

“faz de conta”; a brincadeira construtiva, que ocorre depois dos cinco anos e onde a criança se

predispõe de uma forma alegre a realizar algo, para a consecução de algum objectivo. 20 “.... formada pelo espaço, pelas actividades que desempenha segundo o ritmo sazonal, e pela exploração que faz com jogos e brinquedos, que lhe fornecem um capo experimental das actividades para as quais está a preparar-se como futuro membro adulto do seu grupo” (cit. Amado: 2002: 193). 21 Brincadeira, ao contrário do jogo, no sentido de uma interacção informal da criança, expontânea, incerta e não sujeita a regras pré-estabelecidas, nem obediência a um qualquer modelo tradicionalmente consagrado.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

38

No decurso destes momentos balizadores de formas diferenciadas de brincadeira, a

criança cumpre um conjunto variado de experiências lúdicas que lhe permitem o

aprofundamento da compreensão da realidade socia l em que ela deve e vai dessa forma,

paulatinamente, inserindo e aprendendo, concomitantemente, a lidar com o mundo e a

sociedade de onde emana.

Brougère (1995: 104) acha que a brincadeira pelo seu carácter aleatório, ambíguo e

incerto, não permite fundamentar um programa pedagógico preciso, já que quem brinca pode

evitar aquilo que lhe desagrada ou fazer disso um lugar de conformismo perante a cultura tal

qual como ela existe. Porém e malgrado tal desconfiança, este autor não deixa de encontrar

nesta actividade aspectos positivos, o que, como refere, não deixa de ser paradoxal. “Não

temos nenhuma certeza quanto ao valor final da brincadeira mas certas aprendizagens

essenciais parecem ganhar com o desenvolvimento da brincadeira” (idem).

Sem lhe retirar a espontaneidade e absoluta liberdade, “o educador pode, portanto,

construir um ambiente que estimule a brincadeira em função dos resultados desejados” (idem:

105) abrindo, com isso, espaços e corredores por onde passa o processo socializador do

indivíduo.

Completada, pois, esta trilogia inseparável do quotidiano das crianças – onde as

houver, o jogo, o brinquedo e a brincadeira lá estão, seguramente – deter-nos-emos, por fim,

num outro contexto de socialização informal, que nos dias de hoje marca presença indelével

no nosso dia a dia, já que ninguém consegue ficar insensível ao poder da televisão e,

particularmente, as crianças, que são positivamente enleadas pelo seu encanto, quais presas

aparentemente indefesas do fascínio da caixa mágica que um dia mudou o mundo e que,

volvidas muitas décadas, lhe continua a marcar a cadência, porventura como nunca antes o

houvera feito.

4.3. A televisão no quotidiano das crianças e o lado perverso da violência

Pinto (2000) chegou à conclusão de que os jovens, sobretudo os mais pequenos, usam muito do seu tempo a ver televisão e fazem-no com prazer.

Estima-se que, actualmente, mais de 98% dos lares portugueses possuam televisão22,

significando este número arrasador que a magia do pequeno écran se encontra praticamente

universalizada entre nós.

22 Dados retirados do Relatório Final da Comissão de Reflexão sobre o Futuro da Televisão em Portugal, 1996.

Page 59: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

39

Segundo dados de 1991, divulgados por Brederode Santos (1995), ronda os 95% a

percentagem de crianças que entre nós vêem televisão todos os dias ou quase todos os dias,

variando as suas idades, neste particular, entre os três e os sete anos.

Se ontem o papel dos media, particularmente da televisão, na socialização do

indivíduo, inquietou os teóricos desta problemática, ao ponto de Giddens considerar que “há

muito poucas sociedades, nos tempos correntes, mesmo entre culturas mais tradicionais,

imune à influência dos meios de comunicação” (1997: 102), hoje as coisas subiram

claramente de tom, já que os números quanto ao consumo diário da televisão entre nós

apontam para médias rondando as quatro horas por dia 23.

No que ao nosso estudo respeita, os números acima registados são verdadeiramente

eloquentes e relevantes em toda a linha. As nossas crianças “pregam-se” positivamente à

televisão e sofrem inexoravelmente um verdadeiro bombardeamento dos mais diversos e

diversificados programas, que vão influenciar o seu processo desenvolvimental de tal modo

que não atentar nesta realidade será, estamos certos, descuidar uma vertente do processo

socializador que mexe a sério com o seu curso.

Embora se reconheça que a televisão tem inúmeras potencialidades que ao

crescimento das crianças importam24, é, indubitavelmente, nos seus aspectos perversos que se

têm focalizado os mais variados estudos em torno da sua interferência no quotidiano da

infância, concentrando-se na busca de um conhecimento acerca dos efeitos que uma

exposição prolongada às emissões televisivas pode provocar nos telespectadores,

principalmente nas faixas etárias mais baixas.

Uma pesquisa, refere Giddens (idem), mostra que, se uma notícia de jornal é

diferente da notícia dada pela televisão, mais do dobro das pessoas acredita na versão

televisiva. É esse fantástico poder de persuasão da TV que lhe marca o encanto e a torna

numa arma perigosamente acessível ao simples gesto de premir o botão de um comando, que

cada criança sabe fazer de olhos fechados, expondo-se, para o bem e para o mal, à sua

influência social.

4.3.1. Breve bosquejo em torno das teorias dos efeitos

Diz Pinto (2000: 71) que, praticamente, todos os autores reconhecem a relevância

da experiência mediática (e mediatizada) na vida das pessoas e, especialmente, das gerações

mais novas.

23 Cf. Revista do semanário Expresso de 24 de Maio de 1997, artigo “Que Televisão Temos”. 24 A “Rua Sésamo ”, programa infantil que ocupou as manhãs do canal 1 da RTP durante vários anos, constituiu em tempos não muito idos um bom exemplo disto mesmo.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

40

Sabe-se, também, que os media em geral e a TV em particular estão intimamente

ligados ao desenvolvimento de orientações culturais, a múltiplas formas de ver o mundo e até

à construção de crenças em seu redor ou mesmo passíveis de serem conotadas com a própria

realidade quotidiana. Para piorar as coisas também sabemos que “esses mesmos media têm

aumentado de forma dramática a quantidade de conteúdos agressivos diariamente

consumidos pelas pessoas” (Groebel, 1999: 221).

Os estudos avaliativos dos efeitos da violência na televisão25 têm demonstrado “

que a relação entre a violência nos media e a vida real é interactiva: os media podem

contribuir para uma cultura agressiva” (id.: 235).

Os efeitos que, inegavelmente, os media têm sobre o comportamento dos seus

consumidores estiveram na origem de algumas teorias explicativas da amplitude e do

significado dessa envolvência e das possíveis consequências que daí podem advir para a

conduta social das pessoas, sejam elas adultas ou, particularmente, crianças.

Dessas teorias dos efeitos, Groebel faz uma síntese no enquadramento teórico de

um relatório contendo os resultados de um estudo da UNESCO sobre a violência nos media,

por ele orientado entre 1996 e 1997, numa pesquisa conjunta da Universidade de Utrecht e da

Organização Mundial do Movimento Escutista.

Para este autor, com a excepção da teoria catártica, desenvolvida por Feshbach,

defensora da perspectiva de que a observação da agressão pode diminuir a agressividade do

observador, todas as outras apontam num sentido, incontestavelmente, inverso. Assim

acontece com a teoria da transferência da excitação (Zullmann) –as pessoas tendem a reagir

mais agressivamente se excitadas e muito mais se forem espectadores frustrados; com a teoria

de frustração-agressão (Berkowitz)- o frustrado ou punido da vida toma a violência nos

media como um sinal para canalizar a sua frustração na agressão, explicando-se aqui porque

crianças de áreas degradadas são mais predispostas aos efeitos da agressão nos media; com a

teoria dos efeitos sobre a ansiedade (George Gerbner e Jo Groeble) – um mundo representado

na TV como ameaçador e perigoso leva a atitudes medrosas e cautelosas e a uma visão cheia

de ansiedade do mundo onde realidade e ficção se confundem; com a teoria da orientação (Jo

Groebel) – o receptor aprende as imagens à medida da sua estrutura sócio-cultural, isto é, em

função do seu padrão cultural e dos valores que o enformam; e com a teoria da aprendizagem

social (Bandura) – a observação de modelos pode influenciar o comportamento do observador

(Ibidem: 225-227). 25 Para além da TV, a questão da violência e da exposição e consumo exagerado pelas crianças de doses maciças de programas e seus efeitos perniciosos sobre elas estende-se a outros campos e a outras áreas do audiovisual. Um grupo de cientistas italianos afirma haverem constatado que os feitos luminosos produzidos por alguns videojogos podem desencadear crises de epilepsia em menores cujo cérebro é incapaz de controlar a resposta a estímulos de flashes luminosos ou imagens cintilantes (Cf. Educity, n.º 108, 1999).

Page 61: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

41

Esta última teoria, pela sua importância, tem ocupado alguns autores. Os estudos

de Bandura com crianças demonstraram que é possível a aprendizagem de novas respostas

observando simplesmente o comportamento dos outros. “As pessoas também aprendem,

segundo Bandura, imitando o comportamento de outros modelos, por modelagem ou por via

vicariante” (SPRINTHALL, 1993: 253).

Para além deste apanhado, naturalmente breve e sem pretensão de abarcar todo o

campo teórico dos efeitos da violência na TV, uma outra teoria merece, julgamos, uma

referência particular. Desenvolvida por Gerbner, a teoria da enculturação26 defende que,

entre outras, a cultura violenta da TV é passível de ser enxertada na cultura do quotidiano das

pessoas, de tal forma que se essa violência é permanente passa de um estranhamento para um

entranhamento posterior no telespectador.

Entretanto, um estudo feito pela revista Science27 demonstra que quanto mais

tempo passam diante da televisão28, mais os jovens mostram propensão para a agressividade,

independentemente das condições sociais em que vivem.

4.3.2. Variáveis determinantes dos efeitos da violência na TV

Quer de uma forma mais ou menos imediata, quer a longo prazo, parece

inquestionável que os quadros de violência que todos os dias entram pelas nossas casas

através da TV mexem de um modo geral com o comportamento dos vários públicos

consumidores, variando o grau de incidência em função das características de cada um deles.

Como refere Wilson, “a violência na televisão contribui para efeitos anti-sociais

nos espectadores e vê-la pode causar vários efeitos adversos nas crianças e até nos adultos”

(1999: 72).

Conhecem-se três tipos primários de efeitos resultantes da exposição à violência

na televisão: aprendizagem de atitudes e comportamentos agressivos, dessensibilização à

violência e desenvolvimento nas pessoas de sentimentos de medo e temor pela violência de

que, julgam, se podem vir a tornar potenciais vítimas.

Porém, nem todos os consumidores são atingidos pelo fenómeno da violência na

TV de uma forma uniforme, nem sequer linear. Pinto afirma que “ se há uma conclusão que é

possível extrair da multiplicidade de estudos sobre os efeitos é a de que, e cita Buckingham,

eles são indirectos, a longo prazo e dependentes de muitas variáveis intervenientes” (2000:

26 Tema que Pinto (2000: 103 e 104) aborda com alguma profundidade no estudo “A Televisão no Quotidiano das Crianças”. 27 Publicado na edição do diário Público de 30 de Março de 2002. 28 O estudo demonstra que mais de uma hora diária de TV conduz à violência e pode ser negativo na vida adulta.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

42

140). Para este autor essas “variáveis intervenientes respeitam, primeiramente, aos contextos

sociais e culturais da televisão, das audiências e da interacção televisão-audiências (id.).

No que às características do contexto concerne, Wilson (1997: 73-77) identificou

nove variáveis intervenientes na forma como o público responde à violência na televisão: a

natureza do perpetrador – se atraente ou pró-social pode tornar-se num modelo violento a

seguir; a natureza da vítima – se desperta empatia a violência sobre ela exercida é

potencialmente geradora de ansiedade e medo; a razão para a violência – se proclamada

poderá justificar a sua aprendizagem; a arma usada – armas de fogo ou brancas aumentam

mais o efeito agressivo no espectador do que a força; a extensão explicita – a violência

repetida pode aumentar a dessensibilização, a aprendizagem e o medo; o realismo – encoraja

mais os comportamentos agressivos nos espectadores do que as cenas ficcionais; as

recompensas e punições – aumentam as primeiras e diminuem as segundas os riscos de

aprendizagem dos comportamentos visionados; as consequências da violência – mostrar dano

ou dor na vítima é desencorajante da imitação; o humor – quando inserido em cenas violentas

potencia a aprendizagem do comportamento agressivo.

Não menos importantes são, também, as variáveis que influenciam o consumo de

televisão e que, concomitantemente, determinam a quantidade e a qualidade dos conteúdos a

observar, donde dependerá, naturalmente, o maior ou menor grau de exposição do

consumidor.

Pinto enumera dois grupos de variáveis directamente relacionadas com o consumo

e a forma como podem afectar os consumidores, sobretudo perante quadros de violência. Num

deles, que tem a ver com as audiências, a idade, o género, o nível sociocultural da família, o

meio sociocultural de pertença, a zona de habitação e os estilos de vida aparecem como

factores determinantes de diferentes formas de uso e de estar perante o aparelho de recepção

de televisão. Num outro, agora relacionado com a própria televisão, surgem a oferta televisiva

habitual e conjuntural como principais condicionantes das escolhas que aos consumidores são

proporcionadas (2000: 144).

Um olhar final para uma das variáveis relacionadas com as audiências que

consomem os produtos televisivos.

A idade do telespectador é, quiçá, a variável mais sensível de todas quantas se

assumem como determinantes da forma como é feito o consumo televisivo e, não raras vezes,

potenciadora de muitas delas, no sentido mais negativo e lesivo que as consequências que daí

advêm podem originar.

Adultos e crianças têm formas diferenciadas de ver e interpretar o fenómeno

televisivo, como têm, também, diferentes perspectivas interpretativas da realidade.

Page 63: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

43

Crianças com idades inferiores a 7 anos não distinguem ficção da realidade, tudo

lhes parecendo do domínio do verdadeiro.

Aqui e pelas razões subjacentes à especificidade do público em questão, os efeitos

da violênc ia nos media podem ser devastadores.

É dramático, como constatou Belloni (2000), que para muitos dos nossos jovens a

violência apareça como sinal de coragem, de valor, e a não-violência conotada como símbolo

de covardia e caminho para a derrota e frustração.

Tamanho exemplo da autêntica subversão de valores, que a questão da violência

mediática, particularmente televisiva, pode provocar, não haverá com toda a certeza.

É a construção, acrescenta aquela autora, de uma realidade (virtual e longínqua)

cheia de guerras, explosões, brigas e maus carácter, que a repetição incessante da violência

real e fictícia na TV acaba por construir (id.).

Mesmo desdramatizando um pouco e sabendo que a TV não é, concerteza, a mãe

de todos os males, mas, também, locus onde coisas boas acontecem, não podemos ignorar

que, no caso vertente, o público-alvo são jovens e estes, para uma sociedade que se preze,

devem ser tudo.

Aqui residirá a chave do problema que urge resolver, porque, provavelmente,

determinante da cidade e do mundo melhores que todos queremos ajudar a construir de facto.

Para tanto importa que os que carregam a tarefa medonha de pilotar o crescimento

dos nossos mais novos, não permaneçam indiferentemente cegos ao que a televisão é capaz de

fazer às crianças, ajudando a separar o trigo do joio, contribuindo, com isso, para afirmar no

contexto social a TV como uma das maiores conquistas da humanidade neste tempo de

modernidade e modernização aceleradas em que estamos a viver presentemente.

Ganha, desta forma, transcendente importância o desenvolvimento de processos

de mediação29 que se constituam como reguladores das experiências televisivas das crianças

e, concomitantemente, influenciem e potenciem o seu uso positivo por elas.

Nos primeiros anos de vida caberá à família assumir um papel mediador, que mais

tarde será repartido com outras instâncias por onde as crianças vão crescendo.

Chegados a este ponto está a ficar concluído o registo que acerca da envolvente

conceptual em torno do processo socializador nos propusemos levar a cabo no contexto deste

estudo.

Ao longo das páginas precedentes fomos evocando algumas das diferentes

perspectivas em que tem vindo a ser encarado o processo de construção social do indivíduo. 29 Que se entende como sendo o conjunto de processos através dos quais as crianças são ajudadas a filtrar, diluir, confrontar, interpretar e atribuir significado aos contextos televisivos (cf. Pereira, Sara (1998). A Televisão na Família. Braga: IEC-UM).

Page 64: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

44

Na esmagadora maioria delas o caminho é feito numa dimensão unidireccional, do adulto para

a criança, de uma forma tutelar, sempre no pressuposto de que qualquer inversão

improcederia face à fragilidade e imaturidade do pequeno ser em crescimento. Este discurso

está ferido de morte nos tempos que correm e a acção que o alimentou iniciou já um caminho

de regressão.

Ao deixarmos, para remate desta nossa viagem pelos caminhos por onde é feita a

socialização das crianças, uma particular atenção ao papel que aí a elas julgamos reservado,

move-nos o propósito de contribuirmos, com a modéstia das nossas convicções, para que se

cale e soçobre rapidamente a voz e a acção de todos quantos teimosamente continuam a

alimentar e querer legitimar a inaceitável crença de que as nossas crianças não sabem, não

podem, nem devem ter voz e, por isso, lhes deve ser imposto um cândido silêncio dos

inocentes.

Para que soe como um sentido protesto contra todos quantos ao longo dos séculos

secundarizaram as crianças, menorizando, porque o ignoravam, o contributo que emprestam

para o desenvolvimento do seu processo de maturação.

5. A VEZ À VOZ DAS CRIANÇAS

Durante longo tempo o conceito de socialização andou umbilicalmente ligado à ideia de

que o seu decurso encerrava um processo unilateral, onde os agentes sociais e as instituições

levavam a cabo um conjunto de actividades através das quais a criança assimilava um certo

número de conhecimentos que lhe iriam permitir ganhar as competências de que carecia para

se integrar na sociedade. Tal visão do fenómeno socializador “conduz a uma abordagem

enviesada das crianças, ou seja, são consideradas como objectos ou então como placas de cera

sobre as quais os adultos imprimem a cultura” (Montandon, 2001: 52).

Contra esta forma de ver e analisar o processo desenvolvimental do jovem indivíduo em

crescimento e a forma como ele interage em contexto social, insurgiu-se a perspectiva

interpretativa e construtivista, que, objectivamente, coloca a criança no centro do processo de

socialização, enquanto seu elemento principal e, também, primordial.

Segundo a abordagem interpretativa, sustenta Montandon (idem: 43), a socialização das

crianças não é uma questão de adaptação, nem de interiorização, mas um processo de

apropriação, de inovação e de reprodução. A criança deixa de ser vista como um ser

meramente passivo, que recebe do adulto as “luzes” da sabedoria que a hão-de guiar pelos

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

45

caminhos da vida, sem mais. “Interessando-se pelo ponto de vista das crianças, diz Corsaro30,

pelas questões que elas se colocam, pelas significações que elas atribuem, individual e

colectivamente, ao mundo que as rodeia, descobre-se como isso contribui para a produção e a

transformação da cultura dos grupos de pares, assim como da cultura adulta” (cit. Montandon,

2001: 43).

Afirma-se, aqui, um modelo de infância que se coloca numa posição claramente oposta

ao modelo clássico de socialização, ou seja, a assunção da infância como um grupo com

cultura própria e da criança como um produto que emerge de uma determinada cultura, mas

que, simultaneamente, também se constitui como contribuinte líquido e produtora dessa

mesma cultura. “As crianças são ao mesmo tempo produtos e actores dos processos sociais”

(Sirota, 2001: 19). É o advir de um novo tempo para a infância e as crianças que lhe dão cor,

em detrimento de um outro enorme espaço temporal de uma subalternidade que a

generalidade das teorias da socialização defenderam e procuraram justificar das mais variadas

formas até à exaustão, numa intolerante subalternização das crianças e da infância.

É a recusa da criança como ser vazio, tábua rasa, como projecto de um ser em porvir, e,

concomitantemente, “a afirmação da infância como construção social e um olhar sobre as

crianças que as considera também como sujeitos activos (produtores de práticas e de

representações) ” (Almeida, 2000: 27).

Nesta perspectiva, doravante, começa a deixar de fazer sentido todo e qualquer

movimento ou processo de socialização que marginalize o papel reconhecidamente activo e

interventivo que à criança aí é devido, como incompleto ficará qualquer estudo que passe por

cima do seu olhar em torno dessa problemática. “A introdução do ponto de vista do actor

torna-se, assim, um requisito crucial. As crianças, como sujeito e objecto das circunstâncias

que as rodeiam, são também construtoras da sua vida social e da daqueles que as envolvem”

(idem: 28).

Este novo olhar sobre a infância consubstancia, na verdade, o reconhecimento de que

ela não é, como refere Almeida, “uma realidade plana, vivida ou representada no singular”

(idem: 24), mas sim o produto de muitas outras realidades, algumas bem duras, que nos falam

da criança braço trabalhador da e para a família, que bem cedo abandona a escola, e de outras

bem mais agradáveis, que mostram a criança que estuda com sucesso e nalguns casos até

concluir o ensino superior, porque cresce num ambiente que tem para ela expectativas altas.

É, como sustenta Almeida (idem: 25), o cruzar, numa mesma época, de tempos de pré-

30 Corsaro desenvolveu o conceito de “reprodução interpretativa”. A sua tese é a de que as crianças participam da estabilidade e das mudanças das nossas sociedades mediante uma “reprodução interpretativa”, ou seja, se elas reproduzem elementos culturais existentes, essa reprodução não é cega ou automática, mas se remete a uma interpretação colectiva (Cf. Montandon, 2001: 53).

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

46

modernidade (criança-trabalhadora), com tempos de modernidade (criança-aluna, criança-

mimo planeada ao pormenor pelos pais, longamente socializada) e, também, com tempos de

pós-modernidade que colocam a criança na vanguarda da construção da sociedade de

informação, consumidora e capaz de utilizar com competência as novas tecnologias da

informação e comunicação e, simultaneamente, assumir-se como um lesto viajante do

ciberespaço, capaz de, através dele, chegar ao mais recôndito lugar do planeta e aí interagir

com o mais importante ou anónimo dos cidadãos.

O que fica dito lança, sobre todos quantos carregam a empolgante tarefa de

desempenhar o papel de mediadores do processo de socialização, um desafio de capital

importância, que é o de quebrarem as ancestrais grilhetas, que, desde sempre, mantiveram as

crianças amarradas ao velho paradigma que as tinha por sujeitos menores da empreitada

consubstanciadora do seu processo de crescimento.

Todos conhecemos a benevolência com que se foi olhando as crianças ao longo dos

tempos: com pingos de amor, com promessas de mais companhia paternal, com admiração

pela sua espontaneidade, com direito à primazia do poder político na tomada de decisões que

lhes garanta melhor escola, uma verdadeira educação para a cidadania e o melhor início de

vida possível. Paradoxalmente, refere Qvortrup (1999:3), a sociedade persegue um

planeamento familiar que diminui drasticamente a natalidade, cada vez proporciona menos

tempo e espaços para a convivência familiar e organiza a vida das crianças de uma forma

institucional cada vez mais alargada, poucas vezes coloca o seu interesse no centro das

decisões que toma e pouco espaço lhes proporciona para exercerem a sua cidadania, e nem

tão-pouco lhes reconhece como válido o contributo que dão para a reprodução de

conhecimentos.

É este estado contraditório em que a infância e as crianças hoje se movimentam, que

reclama um redobrar de esforços de forma a aproximá-las dos princípios que hoje defendem o

seu reposicionamento no contexto social. “As crianças não são simplesmente contributos

activos da sua própria socialização, são, também, um contributo para a produção e reprodução

da cultura” (Corsaro, 1992: 3).

É este chamamento para a emergência de um novo olhar sobre a infância que hoje nos

interpela. É pela resposta positiva que a ele saibamos dar que poderemos redimir séculos e

séculos de uma infância que começou por ser ignorada, peregrinou depois por caminhos e

processos unilateralmente impostos e busca hoje, no dealbar de um novo milénio, um lugar

que muitos já lhe reconhecem, mas muito poucos lhe proporcionam de facto.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

47

CAPITULO II

TEMPOS E ESPAÇOS SOCIAIS NA INFÂNCIA

Tempo....... E não haver nada, Ninguém, Uma alma penada Que estrangule a ampulheta de uma vez!

Miguel Torga31

SOBRE O TEMPO

No presente capítulo pretendemos fazer uma viagem ao tempo por onde vagueiam as

ilusões que marcam o destino dos homens e se vão construíndo e consumindo os sonhos que

fazem o mundo (des)andar.

Com o tempo limitamos as coisas e ao fazê- lo percebemos a intemporalidade que outras

coisas têm ou a eternidade do que é incomensurável.

Por tempos se constrói a harmonia que dá encanto ao trecho musical ou as rimas que

brotam da pena do poeta.

É no decurso de um tempo que se escrevem as páginas da história de cada um de nós, da

sociedade que integramos, da Pátria que muito amamos e do mundo que habitamos.

Um tempo compassado, contado ao segundo, aparentemente paulatino e lento, mas

incrivelmente veloz e que parece cada vez mais querer gastar-se num instante, despertando,

como em Torga, uma vontade indómita de parar a sua contagem, seja ela feita pelo modo que

for.

Um tempo contínuo também, é certo, mas espartilhado por pequenas temporalidades

quase estanques, que em cada dia se renovam por entre rotinas, que vão dando alguma ordem

à nossa existência, qual palimpsesto do nosso quotidiano rescrito a cada momento do ciclo

vital de cada um de nós.

Mas, ainda, um tempo inexorável e rigoroso, que o homem sempre procurou contar

como símbolo da ordem e do controlo das e sobre as coisas da vida, quer através das sombras

cadenciadas e repetitivamente iguais que o sol ia desenhando sobre pedras milenares, ou pelo

harmonioso transvaze dos vasos comunicantes da ampulheta, ou pela mítica clepsidra de

31 In Poesia Completa, edição do Círculo de Leitores (2001)

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

48

água, ou, ainda, pelo registo infalível de outras sofisticadas máquinas do tempo, hoje levadas

até ao limite da perfeição que o conhecimento torna atingível.

É destes tempos e de mais uns quantos, alguns imaginários até, que se vai tecendo toda

a nossa vida, que por força da condição mortal que carregamos também terá um tempo final.

Entretanto, fiquemo-nos pelo tempo por onde vão tendo lugar as tais temporalidades

que marcam o quotidiano do indivíduo ao longo do seu tempo existencial, tendo presente,

para o bem e para o mal, mas sobretudo para este, que do mar de incertezas em que o tempo

navega, emerge a realidade da impossibilidade do seu retorno, que permitisse, eventualmente,

recomeçar tudo de novo outra vez.

É, pois, de tempos reais do nosso dia a dia que nos importa aqui falar, de tempos

comensuráveis e, simultaneamente, ligados a espaços de uma forma intrínseca. De um tempo,

como nota Elias (1989: 11), que, de per si, não se pode sentir, nem escutar, nem degustar ou

cheirar, mas que, se o associarmos a algo concreto – uma jornada de trabalho, um eclipse da

lua ou o tempo que o corredor demora a correr cem metros – perde a sua invisibilidade

metafísica e ganha expressão real.

Por aqui é que vamos então.

SECÇÃO I

1. O TEMPO

Postas as antecedentes variações que a temática em apreço, com toda a sua carga

simbólica e alguma dose de magia, sempre suscita, iremos deter-nos, doravante, no tempo que

regula e rege a nossa vida quotidiana e no conjunto das temporalidades em que se divide e por

onde são construídos todos os dias da vida do mais comum dos mortais.

Pegando nas coisas ao contrário, digamos que, sem a noção e a marcação do tempo e

dos nacos por onde se encontra socialmente espartilhado, o dia a dia de cada um de nós e da

sociedade que integramos seria um caos onde a desordem estaria irremediavelmente instalada

e a anarquia imperava certamente.

Num tal quadro até o Olimpo se desassossegava e baralhava, confrontado com a

futilidade da obra dos seus deuses que criaram o tempo no tempo antes do tempo32.

32 Éter, Uranos, Pontos, Febria, Hisperion e Cronos – Deuses que, na Mitologia Grega, presidem à marcha universal das coisas e dos seres, o último dos quais, de quem se diz haver castrado o pai, nos aparece como a personificação do tempo (Cf. Grande Enciclopédia Portuguesa-Brasileira- Vol.XVII: 412).

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

49

Antes de tudo o mais assentaremos na ideia de que “o tempo tem como função principal

a coordenação e a integração”(Heinich, 2001: 70), ou seja, é pelo tempo e com o tempo que

nos situamos no espaço e aí construímos um rumo para as coisas, damos um sentido à nossa

existência.

Por isso, pela dinâmica que em todos os sentidos lhe está inerente, percebemos

claramente que “o tempo não é uma coisa, mas uma actividade que consiste, poderíamos dizê-

lo, em “fazer tempo” (idem), um tempo repartido e, como tal, quantificado e quantificável

instrumentalmente, para que se saiba ao certo às quantas anda cada um de nós.

Nesta linha de pensamento vai Elias (citado por Heinich, idem) sugerindo que um

verbo, “temporalizar”, por exemplo, deveria substituir o substantivo tempo. Para este autor

(ibidem) o tempo é um fenómeno socialmente construído pelos próprios instrumentos que o

medem.

É este, de facto, o ponto de chegada e, simultaneamente, de partida, que ao tema em

apreço queremos dar, porque consubstanciador da perspectiva de abordagem que se coaduna

com a ideia que subjaz a esta parte do nosso estudo - a dimensão social do tempo através do

qual o nosso quotidiano se estrutura.

Elias (ibidem) chama-lhe “tempo social”33 e define-o como um tempo que tem a

natureza de uma instituição social, de uma instância reguladora dos acontecimentos sociais,

de uma modalidade da experiência humana.

É em torno deste “tempo social” que nos iremos deter seguidamente com o detalhe que

o seu significado prático aqui, naturalmente, aconselha.

2. DIVISÃO SOCIAL DO TEMPO

Samuel, citado em Pinto (2000: 50), observa, na senda de Elias, que as práticas sociais

individuais ou colectivas, as actividades que resultam da interacção social, e constituem a

trama da vida social, produzem o “tempo social”, o qual, por sua vez, enquadra de seguida a

prática dessas actividades. Ora, aqui as coisas não acontecem de uma forma desordenada, mas

sim obedecendo a uma programação que lhes transmite homogeneidade e sequencialidade,

malgrado “cada grupo social ter o seu tempo específico: as crianças ou adultos, citadinos ou

rurais, trabalhadores por conta de outrem ou por conta própria, activos ou desempregados”

(Pinto, 2000: 51).

33 Este autor também define um outro tempo, a que chama tempo físico: “aspecto da “natureza física” como uma dessas variações imutáveis que os físicos medem e que desempenham o seu papel nas equações matemáticas consideradas como representações simbólicas das “leis da natureza” (Cf. Heinich, Nathalie (2001). A Sociologia de Norbert Elias. Lisboa: Temas e Debates – Actividades Editoriais, L.da (pág. 73).

Page 70: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

50

É dentro desse tempo social que acontecem e se desenvolvem, de uma forma bem

definida, novos e distintos espaços temporais consubstanciadores da vivência quotidiana de

cada um de nós e do próprio meio em que estamos inseridos. Aqui, emergem, desde logo,

duas temporalidades bem distintas, que existem por oposição entre si: tempo de trabalho e

tempo de não trabalho ou tempo livre absoluto pós laboral. São os dois espaços de maior

dimensão do nosso dia a dia, mas não os únicos, como a isso tantas vezes se quer reduzir as

questões da repartição do tempo. Para Malta (2000: 225), tempo de trabalho e tempo livre

absoluto são tempos limites de um tempo social total, que têm de permeio um emaranhado de

situações intermédias relacionadas com obrigações familiares e sociais, a que se deve associar

um outro tempo de que cada um de nós carece para si próprio, designadamente para satisfação

das suas necessidades fisiológicas e de higiene pessoal.

Os estudos desenvolvidos por Elias (1992) e Dumazedier (1997) em torno desta

verdadeira anatomia do tempo podem ser sintetizados no esquema que a seguir se deixa

registado (figura 1), a que poderemos chamar de “organograma do tempo”.

Figura 1 - Organograma do Tempo

Tempo de Trabalho

Provisão de NecesiadesFisiológicas

Casa e Família Voluntariado Formação

Tempo Comprometido Lazer(tempo descomprometido)

Tempo Livre Absoluto

Tempo Absoluto(tempo social total)

Quadro elaborado pelo autor a partir de Elias (1992) e Dumazedier (1997)

É por entre estes corredores de tempo e do tempo, que cada um de nós vai,

necessariamente, passando, num continuum que se repete, nesta ou naquela forma, ao longo

do nosso ciclo existencial.

Se é verdade que o tempo de trabalho emerge, por natureza, como o mais

inequivocamente definido, já o tempo livre absoluto desenvolve-se por entre um emaranhado

de actividades ocupacionais do indivíduo, que, pela sua especificidade, e, não raras vezes,

confusão conceptual até, tem merecido aturadas reflexões no seio da comunidade científica.

Necessidades

Page 71: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

51

3. TEMPO LIVRE E LAZER

3.1. Perspectiva histórica

A existência de um espaço na jornada de trabalho, que se constituísse como um

tempo de fazer outras coisas ou de pura e simplesmente não fazer rigorosamente nada, não é

de agora, é, como diz Sue (1993: 10), de todos os tempos e de todas as idades. São conhecidos

os momentos do ócio na Antiga Grécia, dedicados à prática voluntária da filosofia, das artes e

dos desportos, e sabemos que nas sociedades pré- industriais já pululavam algumas castas

ociosas, paralelamente com uma enorme massa humana virada para o trabalho, que desfrutava

de tempo livre apenas quando as condições climatéricas impediam o trabalho e,

consequentemente, impunham uma inactividade que era socialmente mal vista.

Foi a Igreja, sustenta Sue (idem: 3), que impôs os primeiros dias de férias,

coincidentes com as festas religiosas.

O Século XIX vê nascer as primeiras sociedades industriais e com elas o

aparecimento e rápido desenvolvimento de uma pressão esmagadora do trabalho sobre o

indivíduo, que não lhe deixava sequer um tempo mínimo para a reconstrução da sua força de

trabalho. Foi preciso, lembra Sue (ibidem), esperar pelo dia 24 de Março de 1841 para que

uma lei limitasse o trabalho das crianças dos 12 aos 16 anos a 12 horas por dia34, e,

posteriormente, pelo ano de 1884 pela publicação de uma outra lei que conferiu aos sindicatos

a liberdade de se constituírem, tendo a limitação do trabalho a 10 horas por dia surgido com

força legal apenas a 30 de Março de 1900. O mundo industrial vivia, então, sobre a obsessão

do trabalho, que aparece aos olhos da época “como um dever moral do indivíduo, não só para

a sua saúde pessoal, mas, também, para com o desenvolvimento harmonioso da sociedade”

(ibidem: 12). Não espanta, pois, que por esta altura o tempo de não trabalho fosse

severamente criticado, quer do ponto de vista económico, quer do da moral. É a época, lembra

Sue (ibidem), de uma sociedade de produção, onde o lazer é reprovado, por oposição à

sociedade de consumo que nós conhecemos, onde o lazer é encorajado, já que, aí, pode

assumir-se como factor de expansão.

Seguiu-se ao longo do século passado um período de lutas intensas pela redução do

horário de trabalho35 e consequente institucionalização de períodos mais longos de não

34 Compreende-se aqui a brutalidade do trabalho infantil nesses tempos. 35 Num século apenas, foi reduzido para cerca de metade – de 78 horas para 36 horas – e muito recentemente, em alguns sectores de actividade, para 35 horas semanais.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

52

trabalho, quer de descanso diário, quer semanal, ou mesmo pela consagração do direito a um

período de férias pagas que ronda, normalmente, um mês36.

Tais conquistas, que hoje continuam a merecer atenção por parte dos sindicatos,

visando o seu alargamento, vieram proporcionar a quem trabalha um considerável aumento do

seu tempo livre e, concomitantemente, abrir espaço a novas problemáticas sociais daí

emergentes. De um tempo livre, portanto, absoluto, que aparece, pois, como parcela de um

tempo total, que se justapõe a uma outra constituída pelo tempo não livre ou tempo de

trabalho.

São diversificadas as actividades que corporizam o tempo livre absoluto e cada uma

delas diz respeito a uma função social específica, quer respeite ao indivíduo em si, quer ao

grupo ou à sociedade a que pertence e onde se insere como seu membro activo.

3.2. Tipologia do tempo livre

Para Dumazedier “o tempo livre não é, em si próprio, uma categoria homogénea,

pois engloba usos distintos desse tempo, nomeadamente: tempos afectos aos núcleos das

obrigações familiares, religiosas, de participação social, de participação política e sindical e,

por fim, o tempo de lazer” (1962: 222). Nesta conceptualização do tempo ante e pós laboral

está contida toda a panóplia de actividades que nos ocupam e obrigam, mais ou menos em

função da disponibilidade com que atacamos diariamente o mundo que nos rodeia ou

enfrentamos as responsabilidades assumidas no contexto social, quer por laços de

solidariedade, quer, ainda, através do dever familiar.

Elias (1992: 148-149) penetrou de uma forma mais profunda nesta problemática e

desenvolveu uma análise mais alargada que aquela outra, a que chamou “o espectro do tempo

livre”, a partir da qual traçou um quadro de classificação, que descreve os principais tipos de

actividades de tempo livre nas nossas sociedades e que podemos resumir da forma que se

segue (quadro 3).

36 Tais direitos mereceram a devida consagração na Declaração Universal dos Direitos do Homem, que no seu art.º 24.º postula que “toda a pessoa tem direito ao repouso e aos tempos livres, sobretudo quanto à duração do trabalho e às férias pagas”.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

53

Quadro 3 Divisão do Tempo Livre

GRUPOS DE ACTIVIDADES

CLASSIFICAÇÃO DAS

ACTIVIDADES

ENUMERAÇÃO DAS

ACTIVIDADES Provisão pessoal (rotineiras)

Comer, beber, dormir, fazer amor, fazer exercício, lavar-se, ir às compras, tratar da saúde

ROTINAS37 DO TEMPO LIVRE

Governo da casa e rotinas familiares

Conservar e cuidar das rotinas da casa, da família e dos filhos (estudos, festas), pagar os impostos, àgua, luz, mediar os conflitos familiares, cuidar dos animais.

Trabalho particular para os outros (não profissional)

Voluntariado social (eleições, igreja, obras assistenciais e movimento associativo)

Trabalho particular para si – ligeiro (não profissional)

Fotografia amadora, coleccionismo (selos, moedas), bricolage, trabalhos manuais em madeira.

Actividades formativas muito exigentes

Estudos privados para progressão na carreira, passatempos técnicos exigentes (construção de rádios, astronomia)

Actividades formativas leves, voluntárias e acidentais

Ler jornais e outras publicações periódicas, ouvir debates, ver programas de televisão informativos

ACTIVIDADES INTERMEDIÁRIAS

DE TEMPO (Formação

necessária, auto-satisfação e

desenvolvimento) Actividades religiosas Rituais de culto

Formais – Casamentos, banquetes, jantarem na casa de um superior como convidado

Actividades pura ou simplesmente sociáveis Informais – Participar num convívio comunitário,

festas, encontros familiares, clubes de amigos.... Participar em actividades miméticas de elevado grau de exigência – teatro amador, clube de futebol... Participar, sem interferir nas suas rotinas concretas, em actividades miméticas muito organizadas – ver futebol

Actividades de jogo ou miméticas

Participar como actor em actividades miméticas menos organizadas – dança, montanhismo....

ACTIVIDADES DE

LAZER

Miscelânea de actividades (menos organizadas, capazes de destruírem de uma forma agradável a rotina

Banhos de sol, dar um passeio a pé, ir ao circo....

Quadro elaborado pelo autor a partir de Elias (1992)

Uma análise cuidada a esta divisão do tempo livre que Elias nos propõe permite-nos

constatar que muito dele é ocupado com actividades que acarretam um alto grau de exigência

no que ao esforço pessoal concerne e que, de facto, por isso, não constituem espaços

ocupacionais de que podemos dispor de uma forma discricionária. Conjuntamente com o

tempo de trabalho, todo o outro “tempo específico destinado à satisfação das necessidades

fisiológicas e às obrigações familiares e sociais deve ser objecto duma conceptualização como

tempo de vinculação” (Malta, 2000: 222).

Pelo que fica dito percebemos quão errado é chamar ao tempo de não trabalho um

tempo de lazer, já que, como veremos a seguir, este carrega uma especificidade que o

37 Elias (1992) define “rotinas” como sendo canais correntes de acção reforçada por interdependência com outras, e impondo ao indivíduo um grau bastante elevado de regularidade, estabilidade e controlo emocional na conduta, e que bloqueiam outras linhas de acção, mesmo que estas correspondam melhor à disposição, aos sentimentos, às necessidades emocionais do momento. Defende este autor que o grau de rotina pode variar e dá o trabalho profissional como exemplo de actividade muito rotineira.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

54

distingue claramente daquele e que tem a ver com a discricionaridade do seu uso por parte do

sujeito que dele usufrui.

3.3. Tempo de lazer

Descomprometimento, uso discricionário e prazer constituem elementos essenciais

que devem constar de uma caracterização ou apreciação que se faça de um tempo ou

momento de lazer.

Construir um espaço onde acontece o quebrar das rotinas, que nos sufocam e tornam

o quotidiano quantas vezes penoso, é o que se exige, para que o papel, que socialmente se

reconhece ao tempo de lazer, se cumpra de uma forma cabal. Tal como se infere da análise

descendente do quadro que atrás desenvolvemos em torno da divisão do tempo livre,

inspirados nos estudos de Norbert Elias já anteriormente referenciados.

Tais características intrinsecamente ligadas à noção de tempo de lazer fazem dele

algo de que não é possível uma qualquer apropriação por outrem, quer directa, quer

indirectamente, o que a acontecer perverteria comp letamente o seu significado e a função que

desempenha. Para Corbin (1995: 16-17), lazer é, essencialmente, um tempo que o indivíduo

tem para si, regido pelo prazer e pela realização espontânea, é, eminentemente, um tempo

pessoal.

Privilégio de uma minoria ao longo do tempo, o lazer conhece hoje uma significativa

expansão. Sue (1993: 15) identifica três características do lazer moderno: uma, material, que o

rotula como um tempo disponível e homogéneo para a prática dos lazeres38; outra, social, que

tem a ver com a generalização dos lazeres ao conjunto da população; uma terceira

característica que emana do reconhecimento do lazer como um direito, o que lhe confere um

verdadeiro estatuto institucional.

No que às funções do lazer concerne, Dumazedier (1997: 7-8) confere- lhe três

vertentes essenciais: a do repouso, emergindo aqui o lazer como reparador das deteriorações

físicas ou nervosas provocadas pelas tensões que resultam das obrigações quotidianas e,

particularmente, do trabalho (necessidade de repouso, de silêncio, de ócio e de pequenas

ocupações sem finalidade); a de divertimento, pura e simplesmente; a de desenvolvimento,

inerente ao espaço que o tempo de lazer abre para o aparecimento de novas formas de

aprendizagem voluntária ao longo de toda a vida. 38 Roger Sue (1993: 3-4) interroga-se: o ou os lazeres? Para este autor, no plural os lazeres designam aquelas actividades livremente escolhidas em função dos gostos e aspirações de cada um, enquanto no singular lazer pode ter dois sentidos: ser tempo de lazer como tempo livre, independentemente de qualquer actividade que o possa indisponibilizar como tal, ou ser tempo onde múltiplas obrigações nele parasitam (transporte de e para o trabalho, obrigações familiares, compromissos sociais, satisfação de necessidades fisiológicas...)

Page 75: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

55

Ao contrário de Dumazedier (1997), Elias pensa que “ninguém deve aceitar a

afirmação tradicional de que a função das actividades de lazer se destina a permitir que as

pessoas trabalhem melhor, nem sequer a ideia de que a função do lazer é uma função que só

existe na perspectiva do trabalho” (1992: 141). Para este autor (idem), o lazer e tudo quanto

lhe está inerente deve ser considerado como um fenómeno social por direito próprio,

interdependente de actividades de não lazer, mas, do ponto de vista funcional, de valor não

inferior, não subordinadas a elas. Aqui, está verdadeiramente implícito que a função do lazer

será aquela que cada indivíduo lhe queira atribuir segundo os seus gostos e desejos. O facto de

o significado que uma actividade de lazer pode ter para mim, não o ter, forçosamente, para

outrem, não permite, tal como postula Elias, catalogar as funções do lazer.

Já Sue (1993: 55-78) isola, à laia do que fez Dumazedier, mas indo mais além, outras

três funções do lazer:

• Funções psicosociológicas: descanso, divertimento e desenvolvimento;

• Funções sociais:

• Função de socialização: convívios de cafés, restaurantes, clubes, novas amizades,

novos conhecimentos;

• Função simbólica: afirmação de uma categoria ou estatuto social ou afirmação

pessoal perante os outros;

• Função terapêutica: o lazer como contributo para ajudar a preservar um bom

estado de saúde.

• Função económica: factor de melhoria de produção no trabalho e, simultaneamente,

gerador de uma zona económica que a indústria do lazer origina e potencia.

Seja como for, e a pertinência dos contributos acima vertidos é inquestionável face à

evidência das enunciações feitas em torno das funções que o lazer desempenha no quotidiano

da sociedade, a sua problemática consubstancia algo que não pode ser olhado de ânimo leve.

4. O TEMPO LIVRE E O LAZER COMO PROBLEMA SOCIAL

O direito ao lazer tornou-se uma reivindicação social fundamental. Paralelamente ao

aumento do tempo livre, fruto de uma recente redução significativa do tempo de trabalho,

aumentaram as práticas de lazer e o desejo dos indivíduos de a elas acederem. Despontam,

assim, as mais variadas formas de turismo (religioso, desportivo, cultural...) e pululam por aí

os mais diversificados passatempos, de entre os quais a TV atinge proporções

verdadeiramente esmagadoras, com toda a carga de susceptibilidade, de alienação, até, que

lhe é conhecida.

Page 76: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

56

Este estado de coisas tem efeito de bola de neve, com uma sociedade cada vez mais

ciosa do seu estatuto, vivendo mergulhada naquela a que Sue (1993) chama de “civilização do

lazer”.

Responder a tal desiderato, de uma vida ociosa, justaposta à actividade profissional,

constitui um problema social complicado, já que, às legítimas aspirações de cada um, se

sobrepõe uma impossibilidade cada vez mais latente da sociedade a todos poder atender e

satisfazer por igual, antes pelo contrário.

Como veremos mais adiante, esta problemática perpassa a sociedade de uma ponta a

outra, sendo, porventura, nos seus extremos, infância e velhice, que esta questão se põe com

mais acuidade, se mais não fora, pela especificidade destes públicos alvo.

É este um dos grandes desafios do nosso tempo, para que o tempo livre em geral e,

particularmente, o lazer cumpram o papel importante que se lhes reconhece ou, pelo menos,

que não se transformem em espaços de frustração, que venham complicar ainda mais a vida

dos indivíduos, sobretudo os de mais tenra idade e, por isso, mais vulneráveis, como em boa

verdade já vai acontecendo um pouco por todo o lado.

SECÇÃO II

1. TEMPOS SOCIAIS NA INFÂNCIA

É verdade, tal como já o referimos anteriormente, que o conceito de socialização

desproveu os actores sociais mais pequenos do estatuto de seres sociais plenos, o que,

concomitantemente, originou a secundarização dos papeis, dos espaços e dos tempos com que

e por onde se vai fazendo o seu desenvolvimento.

Mais atrás, Samuel, na citação de Pinto (2000: 50), falava-nos do “ tempo social” no

seio do qual ocorrem as actividades resultantes das trocas mútuas e permanentes que a vida

quotidiana impõe aos actores sociais. É por aqui, por entre as diversas temporalidades em que

o tempo social se subdivide, que a nossa geração mais pequena, à laia do que acontece,

também, com os adultos, caminha na busca de um sentido para a sua futura adultez, que lhe é

socialmente determinado, o que, desde logo, faz desse tempo algo de absolutamente

incontornável em qualquer um dos níveis etários em que a sociedade se estrutura,

salvaguardando-se, obviamente, as particularidades que cada um deles, naturalmente,

apresenta.

Na infância assim é. “As crianças constroem-se como ser sociais pelas actividades que

lhes estão consagradas” (Sarmento, 2000a: 125). Tais actividades têm o seu espaço e tempo

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

57

próprios, quantos deles verdadeiramente castradores do seu porvir com a consistência e a

dignidade que lhe é devida.

São desses tempos durante os quais as crianças desempenham papeis sociais

determinados e exclusivos, a que Sarmento (idem) chama o “ofício de criança”, que nos

vamos ocupar seguidamente. Cada um deles, à sua maneira e mercê da sua especificidade,

constitui o “ofício da criança” (ibidem), transportando, pelo seu cariz, uma ideia de infância,

quantas vezes negadora dos seus mais elementares direitos.

1.1. Tempo escolar

O tempo escolar emerge hoje, indubitavelmente, como o mais importante dos

espaços temporais que corporizam o dia a dia das crianças. Pela importância inquestionável

que a escola tem, hoje mais do que nunca, no contexto social, o desempenho das tarefas que

lhe estão confiadas constitui, como diz Sarmento (idem: 126), o essencial do ofício de criança,

aqui assumido como ofício de aluno e, por isso, tão velho quanto o é a escola pública.

O tempo escolar é algo de muito organizado, com sede própria, devidamente

dimensionado no tempo, através do qual os seus utentes vão progredindo. Nesta

conformidade, o tempo escolar pode ser colocado na senda do tempo de trabalho, como um

tempo de preparação para a vida, e, como tal, constituir um ponto fulcral da actividade

infanto-juvenil, a partir de onde emanam todas as outras temporalidades do seu quotidiano,

que àquela se encontram indelevelmente ligadas.

Nos dias que correm o tempo escolar das crianças do primeiro ciclo do ensino básico,

público-alvo da vertente empírica deste estudo, é de vinte e cinco horas semanais39, repartido

por cinco horas diárias de Segunda a Sexta-feira, cumpridas de manhã e de tarde ou, como é

mais comum, apenas em cada um destes turnos do dia, quando as instalações escolares não

permitem a primeira opção, que, apesar de ser a que está estabelecida como regra40, é muito

pouco praticada por inexistirem infraestruturas ao nível de instalações que permitam assegurar

uma desejável repartição do tempo escolar pela manhã e pela tarde de cada dia.

Em cada ano lectivo41 cumprem-se cento e oitenta dias de aulas entre Setembro e

Junho, o que equivale por dizer que em mais de metade dos dias do ano não há qualquer

tempo escolar e nos que há apenas cerca de um quinto do tempo é passado na escola em

actividades escolares.

39 Decreto-Lei n.º 6/2001, de 18 de Janeiro. 40 Despacho n.º 373/2002, de 27 de Março. 41 Diferente do ano escolar, que vai de 1 de Setembro a 31 de Agosto de cada ano – n.º 1 e n.º 2, do artigo 4.º, do

Decreto-Lei n.º 6/2001, de 18 de Janeiro.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

58

Por oposição ao tempo escolar podemos, então, falar de um tempo não escolar e

defini- lo como todo o tempo liberto pela escola, multifacetado, por onde a criança se estende

em múltiplas tarefas.

1.2. Tempo livre e lazer

Diversos autores, como Olivier (1976), Chombard de Lawe (1980), Pronovost

(1989), Belloni (1994) e Pereira e Neto (1997 e 1999), entre outros, enfatizam o papel do

tempo livre e do lazer na infância, enquanto espaço onde e por onde é possível encontrar e

desenvolver novas e diferentes aprendizagens e recreações libertadoras das tensões do

quotidiano ou perder o que, porventura, se vai conquistando na família ou na escola.

Se é bem verdade que as actividades sociais que a criança desempenha

essencialmente no seio da família e de mais umas quantas que fora dela é induzida pelos pais

a praticar42 lhe absorvem um naco importante do seu tempo não escolar, também colhe a

vantagem que advém daí para ela do gozo de uns bons momentos de lazer, e das

aprendizagens que aí vai, certamente, tendo fazendo.

Porém, nem sempre esta problemática é espreitada com a devida consideração. Como

não gostamos de perder tempo, diz Olivier (1976: 10), temos dificuldades em perceber que os

nossos filhos precisam de muita mais liberdade. De uma liberdade que lhes permita dar

“expressão às suas imensas aptidões físicas e artísticas” (Pronovost, 1998: 124), numa

proveitosa pausa do seu tempo escolar, que, assim, funcionará como retemperadora das

tensões e desgastes acumulados no dia a dia da escola.

Na verdade, todos temos consciência de que é “limitada a margem de autonomia que

é proporcionada às crianças para tomarem as suas próprias decisões” (Belloni, 1994: 256). No

que à problemática dos tempos livres e da escolha da esmagadora maioria das actividades que

os corporizam concerne assim acontece, o que, de todo, frustra qualquer possib ilidade de se

construírem verdadeiros e necessários espaços de lazer, porque inexiste o respeito pela

vontade das crianças na sua determinação. “A escolha reside muitas vezes mais na família, ou

seja, nos pais, do que na criança, revestindo-se, indubitavelmente, para esta, de um carácter

obrigatório” (idem).

Como anteriormente já vimos para a generalidade dos indivíduos adultos que

exercem uma profissão, também aqui não nos parece desajustado falar de um tempo livre

absoluto na infância, que está depois da escola, que engloba actividades de cariz pessoal 42 Segundo Pinto (2000: 56) as actividades ditas de tempos livres (música, línguas, dança, natação, desporto...) são resultado de uma estratégia parental de investimento no futuro dos filhos ou de acerto e compatibilização de horários e não de uma livre escolha dos filhos.

Page 79: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

59

(satisfação de necessidades fisiológicas) e de índole social, especialmente familiar (fazer

pequenos recados, olhar por irmãos, ajudar nas lides domésticas....), e que deve conter,

também, um tempo de lazer, a gosto da criança, só para ela, o que, naturalmente, obriga a

reformular conceitos tutelares absolutos, que, ainda, pairam sobre a infância, e a quebrar

velho tabus, que encarceraram as crianças durante séculos em prisões que os adultos

pensaram para elas como espaços de liberdade.

Parece-nos que neste domínio há ainda um longo caminho por e para percorrer. É

que, entretanto e porque tarda que se definam e se operacionalizem percursos, vários são os

caminhos por onde vagueiam as nossas crianças nos seus tempos livres, muitos deles ínvios e,

entre outras perversidades, configurando a “transmutação do ofício de criança em trabalho

infantil” (Sarmento, 2000a: 130), para não falarmos da problemática que emerge do crescente

acentuar de casos de pedofilia, abuso sexual, prostituição infantil e bandos violentos de jovens

organizados, que se dedicam a actividades cada vez mais perigosas para eles, para outras

crianças que vitimizam e até para a própria sociedade.

Posta esta incursão teórica ao domínio do tempo livre na infância, através de uma,

pensamos que ajustável, transposição do essencial do pensamento genérico que sobre esta

matéria está postulado por, entre outros, Dumazedier e Israel (1997) e Sue (1993),

anteriormente lembrados, deter-nos-emos seguidamente nos aspectos que temos por

essenciais em matéria de uso e gestão dos tempos livres na infância e no papel capital que à

escola está aí legalmente consignado.

2. OCUPAÇÃO DOS TEMPOS LIVRES NA INFÂNCIA

2.1. Considerações prévias

A ocupação dos tempos livres na infância engloba duas vertentes essenciais ao seu

estudo e compreensão: a gestão e o uso.

Pereira (1999: 93) refere quatro paradigmas de gestão de tempos livres: as crianças

ficam em casa ou na rua entregues a si próprias, longe do controlo dos pais e de outros

adultos, um pouco ao “Deus dará”, usando de uma perigosa e insegura liberdade; as crianças

ficam em casa debaixo da alçada dos pais e com o seu apoio, longe da solidão e da

insegurança da rua; os jovens são colocados numa instituição de promoção de actividades de

tempos livres, onde permanecem em segurança, mas com a liberdade de movimentos

devidamente controlada; as crianças frequentam actividades extracurriculares (explicações,

natação, inglês, computadores, desporto, etc.), que, normalmente, escolheram de livre

Page 80: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

60

vontade, mas que, porém, pela densidade de tempo que ocupam pouco espaço deixam ao

jovem para a brincadeira espontânea.

Este quadro encerra, genericamente, um conjunto de situações que configuram uma

certa tipologia caracterizadora de algumas formas de encarar e atacar a problemática que a

ocupação dos tempos não escolares das crianças encerra e que constitui, indubitavelmente, um

problema social muito sério, mercê de tudo quanto isso representa de significativo para o

crescimento sustentado da nossa geração mais pequena.

Naturalmente, que a todos deve inquietar, de sobremaneira, qualquer cenário que,

nesta vertente da ocupação dos tempos não escolares na infância, nos confronte com a mancha

cada vez maior das crianças que passam muito desse tempo “por aí”, quantas vezes, muito

provavelmente, encalhadas entre alguns dos inúmeros escolhos que ao dobrar de cada esquina

o lado mais perverso da sociedade contemporânea lhe coloca.

No que respeita ao uso que as crianças fazem ou gostavam de fazer dos seus tempos

livres, Pinto (2000) chegou à conclusão que os jovens, sobretudo os mais pequenos, usam

muito do seu tempo a ver televisão e fazem-no com prazer, e Pereira (1997: 260), para além

disso, constatou que as crianças gostam de brincar com brinquedos comerciais, realizar jogos

tradicionais e que no meio rural são os alunos do ensino básico os que mais realizam as

práticas desportivo-recreativas. No entanto, esta autora verificou, também, que “há elevada

percentagem de crianças que não realiza como primeira prática a sua actividade

prioritariamente preferida” (idem: 261).

Num outro estudo, Neto e Pereira, ao enaltecerem o valor do jogo, referem que

“qualquer que seja a atitude do adulto face ao jogo da criança, ela continuará sempre a jogar

apenas porque é criança (citado em Pereira e Neto, 1994: 230), ficando aqui verdadeiramente

vincada a presença incontornável desta prática, que marca lugar, de uma forma indelével, no

quotidiano dos nossos jovens. Todos sabemos que o jogo, seja de que tipo for, é indissociável

das práticas lúdicas da infância, confundindo-se positivamente com elas, de tal forma que a

indiferença que uma criança manifeste perante o jogo, ou a falta de entusiasmo e prazer que

para com a sua prática demonstre, soará sempre como um alarme para a mais que provável

existência de algo de sério a atrapalhar a sua vida, merecedor, concomitantemente, de

preocupação imediata.

Posta esta abordagem em torno das formas ocupacionais dos tempos livres no que

aos seus aspectos de (não) controlo e às actividades nesse contexto desenvolvidas concerne,

focalizaremos agora a nossa atenção no conjunto das orientações que institucionalmente a

problemática em apreço conhece, designadamente e por força do peso que adquiriu hoje na

Page 81: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

61

sociedade, as que respeitam à escola43, e na abordagem ao rol das respostas que para além

dela as estruturas sociais vão desencadeando e potenciando com maior ou menor convicção,

aqui se incluindo com total propriedade e acuidade, face aos constrangimentos que se

conhecem, a necessidade imperiosa de pugnar por uma generalizada e urgente política de

urbanismo, que atente numa cuidada preservação e, quando for o caso, reposição de zonas

verdes, onde possam nascer espaços polivalentes para a prática do desporto e de outros

lazeres.

Lembraremos, por fim, um “certo” espaço de liberdade que as ruas e os campos

encerram, onde as crianças podem “vadiar”44 por aí de uma forma sadia e pura e, dessa forma,

construir belas amizades e encontrar um lugar ideal para dar lugar às fantasias que povoam as

suas mentes ávidas de espaço e tempo apropriados para crescerem. Se, para tanto, forem (re)

criadas as necessárias condições.

2.2. Orientações institucionais

A transformação radical que Portugal sofreu a partir de Abril de 1974

consubstanciou, entre outros, um amplo movimento reformista no campo educacional, que

varreu o nosso país de norte a sul a partir da segunda metade da década de oitenta, e que

conheceu a sua expressão determinante com a aprovação da Lei de Bases do Sistema

Educativo45, documento que mereceu um consenso muito alargado no seio dos representantes

eleitos do e pelo povo português e que foi considerada por Pires “uma espécie de carta magna

da educação para os próximos lustros” (1987: 108), um, na verdade, revolucionário

instrumento estruturante de todo o nosso sistema de ensino e da filosofia que lhe está

subjacente, de uma rara qualidade e de extraordinárias potencialidades. Os governos, refere

Campos (1987: 11), que queiram e sejam capazes de se inspirar nas inúmeras virtualidades

dinâmicas contidas nesta lei e no quadro que ela institui, estarão em posição de liderar uma

real e autêntica reforma do sistema educativo a implementar de modo amplamente

participado.

43 “O papel da escola pode tornar-se mais estratégico, em concorrência com o papel chave que a família deve ter nos tempos livres, na transmissão de normas culturais, na educação e na auto-educação” (Pronovost, 1998: 123) 44 Vadiar – andar ociosamente de uma parte para outra. Brasileiro : andar em pagodeiras; brincar; divertir-se (Morais Silva, António (1987). Novo Dicionário Compacto da Língua Portuguesa – V Volume. Lisboa: Editorial Confluência, L.da. 45 Lei n.º 46/86, de 14 de Outubro, que foi votada e aprovada pelo plenário da Assembleia da República em 24 de Julho de 1986, com a abstenção do MDP/CDE, partido hoje extinto, e o voto contra do então CDS, agora também chamado de Partido Popular.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

62

A importância de que se reveste para o desenvolvimento harmonioso do ind ivíduo a

existência de uma política sustentada de ocupação de tempos livres não passou ao lado da

reforma do nosso sistema educativo.

Nos seus princípios organizativos, diz a Lei de Bases que o sistema educativo se

estrutura de forma a “contribuir para a realização pessoal e comunitária dos indivíduos, não só

pela formação para o sistema de ocupações socialmente úteis, mas ainda pela prática e

aprendizagem da utilização criativa dos tempos livres” (Cf. alínea f), do art. 3.º).

Concretizando, refere, resumidamente, mais adiante o artigo 48.º, deste normativo legal, que a

ocupação dos tempos livres, conjuntamente com o desporto escolar, podem revestir a forma

de actividades de complemento curricular46, da iniciativa da escola ou de um grupo de

escolas, valorizando a participação e o envolvimento das crianças e dos jovens na sua

organização, desenvolvimento e avaliação. Significativo é, ainda, o postulado pelo art.º 39.º

da Lei de Bases do Sistema Educativo, apontando o seu n.º 2 para a necessidade de a estrutura

dos edifícios escolares ter em conta, para além das actividades escolares, o desenvolvimento

de actividades de ocupação de tempos livres.

No desenvolvimento dos estudos preparatórios e demais reflexões tendentes à

operacionalização da doutrina contida na Lei de Bases, a problemática dos tempos livres

continuou a merecer uma particular atenção. Para além do reafirmar da importância que deve

ser dada à implementação de condições nas escolas para a ocupação dos tempos livres, a que

já aludimos, Patrício (1997: 62), na formulação de uma concretização dos objectivos que

devem presidir a uma “escola cultural”, que aí defende como indo para além da curricular,

mas integrando-a, refere-se, especificamente, à tarefa, que à escola deve incumbir, de “ocupar

educativamente os tempos livres dos jovens”. É neste sentido que a Proposta Global de

Reforma (1998) propunha que se avançasse, ao defender a institucionalização de um modelo

de escola pluridimensional, onde, para além das actividades lectivas, os alunos possam ocupar

o seu tempo de uma forma orientada, atendendo ao seu interesse manifesto, devendo a escola

estar preparada para ter em mãos uma oferta em recursos materiais e humanos capaz de

responder a tal desiderato reformista.

Sem podermos afirmar que o espírito da Lei de Bases e o propósito contido na

Proposta Global de Reforma, atrás explicitados, hajam conhecido a expressão de uma de uma

concretização prática de grande visibilidade, não podemos deixar de constatar, contudo, que a

questão em torno da ocupação dos tempos livres não tem andado arredada das preocupações

institucionais. 46 “As actividades de complemento curricular visam, nomeadamente, o enriquecimento cultural e cívico, a educação física e desportiva, a educação artística e a inserção dos educandos na comunidade” (Cf. art.º 48.º, n.º2, da Lei de Bases do Sistemas Educativo).

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

63

É o que acontece com zonas mais problemáticas do território nacional à volta das

quais emergiram os, por isso, chamados territórios educativos de intervenção prioritária 47,

onde a ocupação dos tempos livres aparece como prioridade na concepção e organização dos

seus projectos educativos. Do mesmo modo, a recente reorganização curricular do ensino

básico48 não ignorou esta matéria, prescrevendo que “as escolas, no desenvolvimento do seu

projecto educativo, devem proporcionar aos alunos actividades de enriquecimento do

currículo, de carácter facultativo e de natureza eminentemente lúdica, incidindo,

nomeadamente, nos domínios desportivo, artístico, científico e tecnológico, de ligação da

escola ao meio, de solidariedade e voluntariado e da dimensão europeia da educação” (Cf. art.

9.º). Todavia, e ao contrário do que acontecia no anterior normativo49, a reforma curricular em

vigor para o ensino básico não se refere, como se vê, expressamente à ocupação dos tempos

livres, acreditando-se que tal esquecimento se deva a uma mera distracção hermenêutica do

legislador para com um tema que prevalece no espírito e na letra da Lei de Bases do Sistema

Educativo, quiçá, com maior acuidade do que nunca.

Para além da escola, onde estão depositadas fortes expectativas no que respeita aos

contributos e atributos que lhe estão confiados e se lhe reconhecem enquanto locus apropriado

para a sua prossecução, as orientações institucionais estendem-se, ainda, a outras estruturas

legalmente vocacionadas e, concomitantemente, vinculadas à criação de espaços dedicados à

ocupação dos tempos livres das crianças. É o caso das entidades promotoras de actividades de

tempos livres50, quase sempre instituições particulares de solidariedade social, que vão tendo

alguma expressão em alguns contextos locais, constituindo, indubitavelmente, um meio com

potencialidades para ajudar a resolver a questão em apreço. Merecem, finalmente, registo os

programas desenvolvidos pelo Instituto Português da Juventude, especialmente o intitulado

“Férias em Movimento”, que pelo seu valor ocupacional merecia, indubitavelmente, outros

meios financeiros que lhe dessem maior visibilidade no terreno, e, concomitantemente, lhe

alargasse o campo de acção, estendendo-o a um público mais numeroso e o arrancasse dos

números de abrangência quase residuais que lhe marcam a existência, face ao imenso raio de

acção que a ocupação dos tempos livres comporta.

Entretanto, posta esta incursão ao que no domínio institucional aparece como

indicador de uma preocupação latente com o sentido a dar ao tempo não escolar dos nosso

47 Os TEIP - Territórios Educativos de Intervenção Prioritária – foram instituídos através do Despacho n.º 147 – B/ME/96 e visam acudir a situações de crianças que em contextos específicos se encontram em situações de risco de exclusão social e escolar. 48 Aprovada pelo Decreto-Lei n.º 6/2001, de 18 de Janeiro. 49 O Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de Agosto, falava no seu art. 8.º da “utilização criativa e formativa dos tempos livres dos educandos”. 50 Reguladas pelo Decreto-Lei n.º 133-A/97, de 30 de Maio, e apoiadas pelo Estado, através dos Centros Regionais de Segurança Social.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

64

jovens, é oportuno lembrar, agora a outro nível, algumas realidades que pela sua expressão

prática nos lembram que o tema em que temos estado centrados não passa despercebido à

chamada sociedade civil.

2.3. Algumas respostas da sociedade civil

São conhecidos alguns contributos provindos de organizações não governamentais, a

maioria das quais sobrevive sem apoios oficiais (algumas recebem ajudas públicas,

provenientes, essencialmente, do Poder Local, pouco mais do que simbólicas para o volume

de serviço social que produzem), valendo a carolice de associações cuja actividade é

assegurada pelo mais puro e desinteressado voluntariado e sustentada por quotizações entre

associados ou comparticipações dos seus utentes e utilizadores dos serviços.

Sem pretendermos ser exaustivos, é justo que lembremos o trabalho valioso que com

crianças desenvolve o movimento escutista51 e guidista52, as confissões religiosas53 e o

movimento associativo em geral, dentro do qual pululam, quantas vezes, escolas de música,

grupos infantis de folclore, escolas de desporto e clubes de informática, só para citar os mais

frequentes, que ocupam, de uma forma significativa e a contento, inúmeras franjas de jovens,

que, doutra forma, poderiam procurar caminhos complicados onde pudessem gastar o tempo

que depois da escola e de casa lhes fica vazio.

Não carecemos, na verdade, de sustentação diferente da que no- lo é ditada pela

realidade que o quotidiano nos revela sobre estes contributos, que todos conhecemos e

reconhecemos como imprescindíveis, para sabermos que deles a sociedade hoje não pode

abdicar de forma nenhuma, sob pena de no seu seio emergir um novo problema, para o qual

poderá não haver uma resposta com a prontidão que a matéria exige. Importa, sim,

porventura, que lhes sejam melhoradas as condições em que prestam a sua importante missão

social e acrescentados novos contributos para que os seus desempenhos sejam melhorados e

novos espaços possam surgir para alargar o leque de opções a utilizar nos programas

ocupacionais dos tempos livres das nossas crianças.

Todavia, também importa ter sempre presente que, paralelamente, se assiste ao

florescer de uma oportunista mercantilização dos tempos livres das crianças, onde o lema é,

essencialmente, “armazená- las” e o objectivo o lucro proveniente das comparticipações

oficiais e dos pais, que, à falta de alternativas, se têm de sujeitar ao que aparecer. Talvez o

surgimento de diversas e diversificadas ofertas institucionais de qualidade consiga suster este 51 Sob a tutela do Corpo Nacional de Escutas. 52 Sob tutela do Movimento das Guias de Portugal. 53 A Igreja Católica, pela sua dimensão social, desempenha aqui papel relevante.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

65

negócio, que a todos parece aproveitar, menos às crianças a quem se destina em primeira

instância.

2.4.Tempo para vadiar....

.........e tudo o mais quanto pôde aprender na principal das suas escolas – a RUA! (Amado, 2002: 193)

Ocupamo-nos até aqui a recordar algumas formas e contributos socialmente

pensados e construídos com o objectivo de prover a ocupação de algum do tempo do

quotidiano das crianças, especificamente do que fica entre a escola e a casa.

No fundo, ao falarmos no uso que socialmente está prescrito para esse tempo meeiro,

de que nem a instituição escolar, nem a família de hoje se podem ocupar, entregue, por isso, à

consignação de novéis instituições do nosso tempo, mais não fazemos do que registar o

emergir de uma verdadeira e deliberada institucionalização do dia a dia da vida das crianças,

que vai preocupando todos quantos se interessam pelas questões da infância. “Encontrei no

meio urbano, refere Pinto54, uma situação preocupante do ponto de vista das crianças, que é o

tempo que passam institucionalizadas. De manhã na escola e à tarde numa instituição de

ocupação de tempos livres que funciona com a mesma lógica”.

Este quadro, que nos evidencia um cenário de clara clausura em que se está a tornar,

de uma forma generalizada e cada vez mais abrangente (hoje já não apenas confinado ao meio

citadino), o quotidiano da nossa geração mais pequena, positivamente controlada na

esmagadora maioria das actividades que vai desenvolvendo ao longo da cada um dos seus

dias de vida, para não dizer nelas todas, reclama, inquestionavelmente, que se olhe para ele

com uma nova perspectiva, alicerçada numa vontade firme de lhe alterar o sentido, que,

entretanto, adquiriu de uma forma que se poderá tornar perversa para o crescimento

harmonioso dos nossos concidadãos mais pequenos. Esta realidade, de facto, “constitui um

dos mais fortes inibidores do desenvolvimento de um pensamento autónomo, que é suposto (e

desejável) ocorrer na infância” (Sarmento, 2000b: 24).

Não espanta, pois, que se comece, recorrendo-se, não raras vezes, a recordações

nostálgicas de um tempo de má memória, de onde brotavam todos os medos e

constrangimentos ao livre pulsar da vida e que criavam a vã ilusão de uma sociedade

sossegada, a sentir a necessidade de recolocar no quotidiano das crianças a possibilidade de

usufruir de tempo e espaço que lhes permita aceder, como refere Nabhan (1994), “à vida

54 Entrevista inserta no n.º 423, da Revis ta Notícias Magazine, apensa ao n.º 47948 do Diário de Notícias, de 2 de Julho de 2000.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

66

selvagem” (cit. em Sarmento: 2000b: 24), capaz de as libertar das amarras do regime de

prisão institucional a que hoje estão socialmente condenadas.

É, por assim dizer, o assegurar de um tempo de que a criança possa dispor para dar

expressão a uma certa ideia de vadiagem, no sentido mais puro e livre, ou seja, de um tempo

para não fazer nada, em que ninguém, para além dela manda, de que dispõe a seu belo prazer,

para, nas ruas ou nos campos, conjuntamente com os seus pares, ser dona do mundo, explorá-

lo e manipulá- lo livremente, fazer dele e com ele a festa da vida e construir, conjuntamente

com os companheiros de cada aventura, as mais singelas e, por isso, perenes amizades.

Esta necessidade latente de devolver a criança às ruas e aos campos tem conhecido

alguns públicos e notórios cuidados, que permitem acalentar fundadas esperanças futuras

quanto ao êxito do propósito.

Os programas de cariz ambiental, que, para além da preservação, potenciam o

usufruto sustentado desse bem inestimável que constitui um ambiente puro e saudável,

inegavelmente o primeiro dos patrimónios da humanidade, tão velho como o mundo,

constituem um impulso que tem frutificado, recanalizando as crianças para o contacto com a

natureza e obrigando, concomitantemente, quem de direito a criar as condições para que esta

nova realidade se concretize e alargue rapidamente.

O mesmo parece querer assentar arraiais na cidade, locus onde se concentra a fatia

maior da população e onde, por força disso, têm sistematicamente minguado os espaços para

as pessoas.

Um pouco por todo o mundo vai ganhando expressão um amplo movimento que visa

contribuir para a construção de políticas de urbanismo tendentes a devolverem a cidade aos

seus residentes.

“The Internacional Association of Education Cities” foi instituída como

congregadora dessa vontade, tendo em 1990 aprovado em Barcelona a Carta das Cidades

Educadoras, que na sua introdução refere :”a cidade será educadora quando reconheça,

exercite e desenvolva, além das suas funções tradicionais (económica, social, política e de

prestação de serviços) uma função educadora, quando assuma a intencionalidade e

responsabilidade cujo objectivo seja a formação, promoção e desenvolvimento de todos os

seus habitantes, começando pelos jovens” (sublinhado nosso).

Concerteza que, aqui, ganhará expressão o desenvolvimento de políticas que atentem

à problemática em torno da infância, onde a devolução do uso aleatório de espaços atractivos

e seguros por parte das crianças se constitua como imagem de marca dessa nova ordem.

Portugal não ficará, certamente, indiferente a esta nova forma de pensar e construir a cidade,

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

67

como comprova o facto de já integrar a já referenciada Associação Internacional das Cidades

Educadoras, precisamente através da sua cidade capital do país.

Será na conjugação deste binómio “crianças – ruas e campos” e na

bidireccionalidade relacional que entre eles se (re) estabeleça com solidez, que conseguiremos

encontrar espaço para a emergência, que a vida telecomandada em que hoje a infância se

realiza tornou latente, de um espaço renovado, para aí se consumar uma temporalidade

verdadeiramente incontornável para a construção de uma estrutura de uso do tempo de cada

dia em que, também, haja lugar a momentos onde a criança seja verdadeiramente livre à sua

maneira.

Ao longo da reflexão que temos estado a realizar e à laia de “ponto da situação”,

chegados que estamos ao meio do que idealizamos para a sua sustentação teórica, podemos

assentar já em duas grandes ideias basilares:

• A criança não pode crescer ao arrepio da sociedade onde está inserida, no seio da

qual se desenvolve o seu processo de socialização, não unidireccional, como foi

tido praticamente desde sempre, mas, sabêmo-lo hoje, que atente na capacidade que

ela tem para nele ser parte activa, “não só para se tornar numa parte da cultura

adulta, como também contribuir para a sua reprodução através das negociações com

os adultos e da produção criativa de séries de culturas de pares com outras crianças”

(Corsaro, 2002: 113).

• Para crescer a criança terá de ter no valor, no uso e na gestão que puder atribuir e

fazer das temporalidades em que o tempo se divide e é consumido por ela

diariamente, uma mão amiga que lhe marque o rumo certo e pugne para que ele

nunca seja factor de desagregação ou de distorção da sua formação, mas,

essencialmente, a sua verdadeira estrela do norte, o caminho por onde se foi e vai

“construindo a criança” (Jenks, 2002: 185).

Afirmadas estas realidades à volta de um mesmo sujeito, agora objecto de estudo e

aclamado em retóricas que, em alguns casos, roçam o limiar do endeusamento, num discurso

feito de uma lamentável contradição, quando confrontado com o que a prática nos demonstra,

parece-nos ser, também, tempo de olhar esse imenso e ainda frágil campo onde se espraia a

infância, cantada hoje em tons que, porventura, não têm paralelo nos anais da sua, ainda,

imberbe história, mas que, visivelmente, muito chão rugoso tem ainda para percorrer e que,

muitas vezes lhe há-de, ainda, toldar o caminho.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

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CAPITULO III INFÂNCIA – A LETRA E A CARETA

1. INFÂNCIA

1.1. Uma certa retórica falaciosa

“Às crianças é atribuído o futuro do mundo num presente de opressão” (Sarmento e Pinto, 1997: 12)

Cresce diariamente uma certa prática discursiva exaltadora da criança como ser

objecto de toda a atenção e preocupação permanente da acção dos adultos. Porém, se

compararmos a dialéctica com a realidade rapidamente constatamos que algo não bate certo,

dada a evidente contradição entre ambas. As circunstâncias e condições de vida das crianças,

dizem Sarmento e Pinto (1997:11), são, contemporaneamente, enquadráveis naquilo que tem

sido uma das mais constantes facetas da infância: o carácter paradoxal como elas são

consideradas pela sociedade dos “adultos”.

De facto e pegando uma vez mais no que diz Qvotrup (1999: 3), é verdade que os

adultos concordam que se deve proporcionar o melhor início de vida possível às crianças, mas

a realidade diz-nos que elas pertencem a um dos grupos menos privilegiados da sociedade. É

certo, também, que todos concordamos que se deve ensinar às crianças o significado da

liberdade e da democracia, mas a sociedade limita-se a oferecer preparação em termos de

controlo, disciplina e administração. Não é verdade, ainda, que se apregoa, por aí, aos quatro

ventos, que a infância, mais do que importa aos pais, se deve constituir como um problema da

sociedade e, feitas as contas, verificamos que é essa mesma sociedade que deixa os custos que

a sua resolução comporta por conta dos pais das crianças?

O mesmo poderemos dizer em relação à questão dos direitos das crianças. É ou não

verdade que, apesar da aprovação da Convenção dos Direitos da Criança ter constituído um

importante esforço que envolveu quase todo o mundo político, no intuito de acudir à situação

dramática de milhões de crianças, constatamos, angustiados e estupefactos, que os indicadores

nos mostram um incompreensível crescimento das desigualdades e que continua a

discriminação contra as crianças, mesmo dentro de países do dito primeiro mundo?

Infelizmente, aquelas e esta verdade são inquietantes e devem constituir motivo para

desassossegar a consciência de todos nós.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

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A infância e as crianças não merecem que a luxúria das palavras com que são

enleadas se atole com frequência na mais abjecta das realidades, que pela sua cruel frieza nos

perturba e interpela a cada instante.

E mesmo sabendo-se que há um lado da infância claramente ganhador, que nos fala

de enormes avanços na afirmação deste outrora anexo da família e da sociedade, nos permite

ficar indiferentes ao quadro negro que a outra face nos revela ainda em toda a sua pobre

nudez.

É que, enquanto houver crianças a crescer pelas sarjetas da vida, devotadas ao

ostracismo, usadas e abusadas pelos seus maiores, não poderemos falar de uma infância

definitivamente instalada no seio da sociedade, com o seu espaço e apta a desempenhar o seu

próprio papel, porque aí lhe é reconhecido e estimulado.

1.2. Problema social de ontem e de hoje

“A nossa mocidade, Senhor, carece de ser protegida eficazmente para se

robustecer…”55

“Os Estados-Parte tomam todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e

educativas adequadas à protecção da criança contra todas as formas de violência física ou

mental, dano ou sevícia, abandono ou tratamento negligente, maus-tratos ou exploração,

incluindo a violência sexual….”56

“…o tempo, que é o nosso tempo, é, também, o tempo de muitas crianças cuja voz

não deve ser silenciada.” (Rocha, 2000: 121)57

Estas três citações estão separadas por pouco mais de um século, lapso de tempo

insignificante face à incontável temporalidade que o Mundo comporta desde a sua longínqua

existência, mas, em simultâneo, suficientemente longo para consumir, entretanto, três ou

quatro gerações de indivíduos. Apesar disso, há entre elas um sujeito e uma preocupação

comuns – a criança. Da primeira das citações transparece um piedoso suplicar de protecção,

que na segunda se transforma numa determinação peremptória, para, na última,

consubstanciar um sentido apelo a favor do direito das crianças a ser ouvidas pelos adultos, 55 Preâmbulo da primeira lei portuguesa de regulamentação do trabalho infantil, publicada em 14 de Agosto de 1891. 56 Artigo 19.º, n.º 1, da Declaração Universal dos Direitos da Criança, aprovada pela Assembleia-geral das Nações Unidas em 1959. 57 Magistrada do Ministério Público e Curadora de Menores

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

70

no respeito pelo lugar que na sociedade ocupam, de facto. Todavia, por detrás de cada uma

delas está latente o reconhecimento de que uma parte da infância e muitíssimas crianças

permanecem, ainda, verdadeiramente em apuros e, por isso, historicamente distantes do

reconhecimento pleno de um estatuto próprio no seio da sociedade que integram, malgrado o

rumo ascendente que neste âmbito as coisas têm conhecido e que, de facto, aceite-se, é

possível realmente sentir em múltiplos aspectos.

Na verdade, como lembra Sarmento (2002a: 9), o mundo em que vivemos é

dominado pela imagem da criança em crise e, concomitantemente, por uma infância que se

nos apresenta como sendo a geração mais afectada pela pobreza, pela violência, pela doença e

pela exploração desenfreada.

Quadro 4

Alguns indicadores da situação da infância no mundo

CARACTERIZAÇÃO DA SITUAÇÃO CRIANÇAS AFECTADAS

ESTIMATIVA

Formas Duras de Trabalho Infantil 8,4 Milhões

Trabalho Forçado 5,7 Milhões

Negócios de Pornografia e Prostituição 1,8 Milhões

Tráfego de Droga e Outras Actividades Ilícitas 0,6 Milhões

Recrutamento Para Conflitos Armados 0,3 Milhões

Quotidiano de Exploração Económica 246 Milhões

Trabalho Infantil Precoce (5 – 14 anos) 186 Milhões

Quadro elaborado pelo autor a partir de dados avançados pela OIT58

Os números falam por si (quadro 4) e revelam-nos que subsiste, ainda, um estado da

infância à escala mundial salpicado de inúmeros quadros que nos mostram grandes manchas

de uma verdadeira tragédia que a ninguém deve deixar indiferente.

Outro testemunho eloquente do estado problemático em que a criança continua a

permanecer nos tempos hodiernos é-nos transmitido quotidianamente pela imprensa.

“Vivemos um tempo em que o sofrimento das crianças se tornou assunto mediático de 1.ª

página” (idem).

Constatar esta realidade nem se torna um exercício muito complicado, a necessitar de

um qualquer estudo exaustivo.

58 Trazidos à estampa nas edições de 12/06/2002 do Jornal “Público” e de 13/06/2002 do Jornal “24 horas” OIT – Organização Mundial do Trabalho

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

71

O quadro sinóptico demonstrativo da permanência de situações difíceis e por demais

evidentes no domínio da infância, que nos é revelado pela imprensa, no caso em apreço a

escrita (quadro 5), é fruto de uma recolha feita a partir de jornais, três de cariz nacional e um

de âmbito regional, durante pouco mais de um mês, tempo que demoramos a proceder à

revisão de literatura e redacção desta parte do estudo que temos estado a desenvolver.

Circunstancialmente e por amostragem puramente aleatória reuniu-se um conjunto de títulos

de notícias que põem a nu um lastimável e lamentável estado de grave enfermidade que atinge

enormes franjas da nossa população mais pequena um pouco por todo o lado.

Quadro 5

Títulos de Notícias Referentes a Crianças

TITULO PERIÓDICO DATA

“Abandono escolar precoce longe de ser extinto Público 19-05-2002

“A face triste da infância” Correio do Minho 01-06-2002

“Há 150 mil crianças em risco em Portugal” Público 01-06-2002

“Uma em cada seis crianças trabalha em vez de ir à escola” Público 12-06-2002

“Temos cada vez mais crianças a trabalhar” 24 Horas 13-06-2002

“Prostituição e venda de crianças” Diário de Notícias 13-06-2002

“As crianças das notícias são estudantes e vítimas” Público 23-06-2002

Quadro elaborado e compilado pelo autor

Apesar destes e de outros persistentes sinais alarmantes que teimam em pairar

permanentemente sobre a infância, não poderemos ignorar, como nota Sarmento (ibidem),

que são importantes os progressos que se conhecem na consagração jurídica de direitos das

crianças, na definição de políticas públicas orientadas para o seu bem-estar e na multiplicação

de iniciativas oficiais e da sociedade organizada em associações e organizações não

governamentais centradas na promoção do melhor interesse da criança.

Porém, também sabemos quantas barreiras se levantam para colocar no terreno a

bondade da lei, quantas resistências é preciso quebrar a cada momento para que as coisas

avancem no sentido do rumo traçado para elas.

O que atrapalha no meio de tudo isto é sentirmos que muitas das vezes, para não

dizermos quase sempre, a letra não bate com a careta.

É desta confrangedora realidade que nos ocuparemos doravante, conscientes de que a

urgência com que todos vemos a necessidade de legitimação de uma verdadeira cidadania da

infância soçobrará se a ela não estiver associada uma inequívoca correspondência entre o que

a norma consagra e o que a vida quotidiana das crianças nos revelar.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

72

Entretanto, como veremos, é sob o signo de um imenso rol de contrastes e, até, de

contradições, que as crianças vão vivendo e crescendo, à espera que a infância seja

verdadeiramente instituída à dimensão do significado e valor transcendentes que carrega na

sua verdadeira essência, que permita enterrar definitivamente velhos conceitos e atitudes que

durante séculos a reduziram à mais insignificante das dimensões e, concomitantemente,

devotaram os mais pequenos a um papel absolutamente secundário no seio da sociedade que

integravam.

2. A LETRA

2.1.Cidadania da criança: um percurso longo e difícil

“A raça humana teria perecido se o homem não tivesse

sido primeiro uma criança” (Jean Jacques Rousseau)

Quando falamos em cidadania estamos a proclamar uma condição ou qualidade

respeitante a um cidadão, membro de uma sociedade no pleno gozo dos seus direitos,

políticos e cívicos, e, também, com deveres para cumprir59.

É óbvio, que a mesmíssima terminologia e significação teremos que usar sempre e

em qualquer momento do ciclo vital do indivíduo, se o queremos permanentemente investido

da qualidade de cidadão.

No que às crianças concerne, uma incursão ao interior da história (Monteiro, 2002:

16-24) revela-nos diferentes e estranhos olhares que marcaram o posicionamento dos adultos

para com os seus menores60, quantas vezes consubstanciado em brutais tratamentos

relacionais.

No longínquo Egipto dos Faraós havia o bárbaro costume de sacrificar crianças em

nome das crendices de então, quer por afogamentos no Nilo, como sinal premonitório das

cheias que fertilizavam os campos, quer como oferenda aos crocodilos com o intuito de

sossegar esse terrível, para a época, deus do mal. Também por aqui ficou conhecida a história

do filho de Moisés que, fugido para Madain, se salvou de um infanticídio generalizado dos

primogénitos hebreus ordenado pelo faraó Ramsés.

59 Confere Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da autoria da Academia das Ciências de Lisboa, que a Verbo editou em 2001. 60 Conceito de criança e de menor: “criança é todo o ser humano menor de 18 anos, salvo se nos termos da lei que lhe for aplicável, atingir a maioridade mais cedo” – Art. 1.º da Convenção Mundial dos Direitos da Criança. O Código Civil Português segue este princípio.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

73

De Israel chegam-nos, pelo relato de Planella (2000), testemunhos que emergiram de

descobertas realizadas em Canã, onde os arqueólogos encontraram vasilhas cheias de ossos de

recém-nascidos nas fundações de edifícios, para obter, segundo se julga, protecção divina para

os alicerces das construções, tradição que, por incrível que pareça, persistiu até ao Século

XVII.

Os gregos fizeram das crianças sãs propriedade do estado, sob a alçada e

responsabilidade de quem recebiam a educação, já que as portadoras de deficiência eram

abandonadas à sua sorte, ficando à mercê de depredadores. Apenas as crianças fortes e

perfeitas eram alimentadas. Em Atenas a existência de uma família numerosa era tida como

uma desgraça, já se aplicando por aí o ainda hoje popularizado adágio “muitos filhos fazem

um pai pobre”, dado que, como no caso em apreço, tal condenava o património familiar a

fragmentar-se. Aristóteles, na citação de Monteiro (idem), entendia que sobre o abandono e a

criação de filhos, a lei devia proibir que se criasse alguém que fosse aleijado e que um filho e

um escravo são propriedade dos pais e nada do que se faça com o que se possui é injusto, não

podendo haver injustiça com a propriedade de alguém.

Com o Império Romano, percursor de tantas inovações no quotidiano dos povos que

um pouco por todo o lado dominaram, nada de importante aconteceu no domínio da infância.

Poder absoluto dos “pater famílias” que prevalecia mesmo para além da maioridade dos

filhos. Desse tempo existem relatos de crianças que foram mutiladas com fins de

mendicidade. Símbolos de um certo estado da infância constituem Rómulo e Remo, duas

crianças, suporta a lenda, abandonadas pelos pais, criadas por uma loba e que acabaram por

fundar a que ainda hoje é conhecida como a cidade eterna – Roma.

O advento do Cristianismo trouxe consigo a primeira lufada de ar fresco sobre o

estatuto social da criança. Constantino ordenou a proibição dos infanticídios, a venda de

menores para a escravatura e a prática da mutilação para a mendicidade. Nasce, por esta

altura, a noção de deveres para com os filhos, a par da de direitos que sempre imperou de uma

forma absoluta e, tantas vezes, radical, e, registe-se, também como novidade, a emergência de

uma relação pai- filho suportada por sentimentos de afeição e de grande respeito por todos os

nascidos no matrimónio.

No decurso da Idade Média pouco evoluíram as coisas, antes pelo contrário.

Instituiu-se a oblação no seio da família, que consistia na obrigatoriedade de entregar uma das

suas crianças de tenra idade a um mosteiro, para que fosse criada como membro de uma

ordem religiosa. Era habitual as famílias pobres entregarem os seus filhos a outras mais

abastadas para aí serem criados. Por esta altura, uma em cada cinco crianças nascidas morria e

as que sobreviviam eram tratadas por coisas, despidas de alma, fruto da vontade de Deus e

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

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dela dependentes para continuarem entre o reino dos vivos, o que, se não acontecesse, pouca

compaixão despertava junto dos adultos, o que ilustra bem quão distantes estávamos, então,

de uma compreensão da criança como um ser humano em estado de desenvolvimento

diferente do estado adulto. Era um tempo onde o castigo corporal ou moral infligido às

crianças, quer por parte dos pais, quer dos professores, era encarado com naturalidade.

Do Renascimento ao Iluminismo, sustenta Demause (1991), persistem as práticas

agressivas dos pais para com os seus filhos e, em paralelo com a Revolução Industrial e por

força dela, emergem severas restrições ao bem-estar das crianças mercê do surgimento de

manchas enormes de exploração desenfreada do trabalho infantil. Porém, como refere Áriès

(1988), é por esta altura que se começa a admitir que a criança não estava madura para a vida,

pelo que era necessário submetê-la a um regime especial de tratamento mais favorável, antes

de ela entrar no mundo dos adultos. Surge, assim, de um forma institucional, a escola, que

enclausurou a criança debaixo de um regime disciplinar cada vez mais rigoroso, de internato e

sujeito a maus-tratos (chicote e palmatória). Com sentido manifestamente positivo para a

infância é o aparecimento neste período da figura da ama, a abertura das misericórdias às

acções de protecção e acolhimento de crianças, o nascimento das casas da Roda e a criação

dos primeiros Asilos de Infância (Magalhães, 1997: 121).

É com a chegada do Século XIX que surgem as primeiras tentativas firmes e

sustentadas de protecção da criança, consubstanciadas no aparecimento de normas

protectoras. Aparecem, lembra Monteiro (2002: 22 e 23), a Sociedade Nova-Iorquina para a

Reforma dos Delinquentes Juvenis (1825), a Sociedade para a Prevenção da Crueldade com

as Crianças nos Estados Unidos (1871) e, com igual objecto, uma outra em Liverpool (1883)

e nasce em Chicago o primeiro Tribunal Tutelar de Menores (1899). Começa, por esta altura,

a construção do edifício da infância.

Pelo muito que foi produzido em termos legislativos, com o intuito de orientar e

acautelar os particulares interesses da infância, o Século XX é considerado por muitos o

século da criança, sobretudo porque ao longo dele se avançou-se para caminhos de protecção

da infância por onde nunca antes a humanidade ousara penetrar.

Foi um longo e doloroso percurso através do qual se procurou, com um confrangedor

arrastar por tempo demasiado, um rumo certo e seguro para as crianças, que, contudo,

permanece muito longe de ser uma obra acabada, se é que, pela sua especificidade, o possa vir

a ser um dia.

O adultocentrismo, a complexidade das condições societais e familiares, a lenta

visibilidade social dos problemas da infância e a persistência no seio da sociedade de

representações dominantes sobre as crianças, têm, como refere Vilarinho (2000: 96 e 97),

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

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impedido a consagração do direito à participação das crianças e do seu reconhecimento como

actores que, tendo uma vida própria, produzem acções culturais, jogos, linguagens, regras de

governo das suas sociedades infantis, que vão muito além do que é possível analisar através

dos quadros instituídos pelos adultos.

Tudo isto, que na verdade encerra um salto de gigante para a sociedade, passa pelo

reconhecimento de que, como sustenta Sarmento (1999: 19), a cidadania das crianças é hoje

um desafio à mudança das estruturas políticas e sociais, à transformação das instituições e à

renovação cultural, no sentido de garantir três coisas que estão intimamente ligadas: as

condições estruturais para uma inclusão social plena de todas as crianças, instituições

respeitadoras do melhor interesse das crianças e a aceitação da voz das crianças como

expressão legítima de participação na “cidade”.

É por aqui que teremos que construir, paulatinamente, uma verdadeira cidadania das

crianças, não só pela afirmação dos princípios e valores que a tal conduzirão, como, não se

pode esquecer, também, pela incontornável necessidade de se proceder “à desocultação dos

factores que afectam a plena assunção das crianças como actores sociais plenos” (idem).

A promoção de uma verdadeira cidadania das crianças, que hoje conhece um

delicado equilíbrio no contexto social, mas que, indubitavelmente, já conseguiu ganhar um

lugar visível na agenda que marca o nosso quotidiano, não pode, todavia, ficar-se pelo

domínio dos conceitos, mas sim afirmar-se pela e na construção de um quadro normativo-

legal que, simultaneamente, lhe dê forma e consistência e contenha a força suficiente para que

os propósitos que encerra se cumpram na verdade. Sem este princípio bem definido e sempre

presente, as normas, de que nos ocuparemos seguidamente, jamais passarão da letra morta que

lhes dá a forma, e a criança-cidadã que queremos construir de verdade mais não será, como

sustenta Sarmento, do que “apenas mais uma imagem de retórica” (ibidem).

Entretanto, os escolhos que, ontem e hoje, sempre apareceram a barrarem o caminho

à emergência dessa cidadania da infância irão subsistir e exigir de todos nós esforços

redobrados para que o propósito triunfe um dia, que, espera-se, não demore muito mais.

2.2. A criança e a protecção da lei

Há hoje, reconhecidamente, uma bateria de diplomas legais, que, na sua essência,

constituem excelentes âncoras para acudir a uma infância que continua a navegar por águas

extraordinariamente turvas e turbulentas.

Apesar de se saber, como sublinha Gersão (2000: 55), que a lei mais não é do que um

quadro geral de intervenção, que por si só tem muito pouca força para agir sobre a realidade,

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

76

também não ignoramos que é a norma que regula as relações no seio da sociedade, que impõe

a obrigatoriedade de se observarem regras, de se cumprir com obrigações e de se usufruir de

direitos.

É no pressuposto da necessidade imperiosa da existência de um corpo legislativo,

que sustente no terreno uma ideia ou projecto com um fim objectivo, que boas práticas hão-de

colocar ao serviço do público a quem é dirigido, que nos propomos, seguidamente, registar

aquilo que, para tanto, temos por fundamental, quer no domínio internacional, quer nacional,

como existente em matéria de grandes eventos no domínio das leis, tendo como público-alvo

as crianças, deixando uma apreciação mais cuidada à volta do seu cumprimento no terreno

para momento posterior.

2.2.1. No domínio nacional

Sem dúvida que os grandes suportes legislativos em que hoje se escora a infância

em Portugal estão ligados de uma forma indelével ao último quarto do Século XX, logo após

a restauração da democracia em Abril de 1974.

É na Constituição da República Portuguesa (CRP), enquanto mãe de todas as leis

da nossa República, que encontramos a primeira grande determinação directamente dirigida

para as crianças: “as crianças têm direito à protecção social e do Estado com vista ao seu

desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de

discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas

demais instituições” – art. 69.º da CRP. De grande significado, também, a consagração nesta

sede do direito de um vastíssimo conjunto de obrigações directamente ligadas ao ensino, de

onde sobressai a que incumbe o Estado de “assegurar o ensino básico universal, obrigatório e

gratuito” para todos, com garantia do direito de igualdade de oportunidades de acesso e êxito

escolar – art. 74.º da CRP.

Daqui emanada, a Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE) aparece em 14 de

Outubro de 198661 com o propósito bem vincado de dar tradução prática a essa ideia,

consagrada na nossa lei fundamental, de assegurar às crianças o direito à educação, na base da

igualdade de acesso e de oportunidade para todas, sem qualquer excepção de cor, raça,

género, condição física ou religiosa, suportada por uma estrutura escolar sequencial e

abrangente. “A educação escolar, parte integrante do sistema educativo, conjuntamente com a

educação pré-escolar e a educação extra-escolar compreende: os ensinos básico, secundário e

superior; integra modalidades especiais e inclui actividades de ocupação de tempos livres” –

61 Alterada pela Lei n.º 115/97, de 19 de Setembro.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

77

art. 4.º da LBSE. Verdadeira Magna Carta da educação nacional, a Lei de Bases do Sistema

Educativo é tida ainda hoje como um normativo de grande potencial para a prossecução dos

objectivos que encerra e de que atrás fizemos eco na parte que mais interessa ao essencial

deste nosso estudo.

Para completar aquele que consideramos o triangulo por onde passa o mais

importante do que entre nós se produziu no último quarto de século em matéria de normativos

por onde se poderá estruturar e construir uma autentica cidadania da criança, fica uma

referência global a toda a imensa panóplia de diplomas legais que marcam a luta que a

sociedade vem travando contra o flagelo da exploração de trabalho infantil, suportados na

norma base de onde todos emanam, o Regime Jurídico do Trabalho e Emprego de Menores62.

2.2.2. No domínio internacional63

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, que a Assembleia-geral das

Nações Unidas aprovou pouco antes do Natal de 1948 (10 de Dezembro), constitui,

indubitavelmente, a mais emblemática das normas mundialmente consagradas ao respeito e

protecção que ao ser humano são devidos, e onde, inevitavelmente, a criança tem que ser

incluída. Infelizmente, as condições políticas, que imperaram em Portugal durante metade do

século passado, determinaram que só trinta anos depois da sua aprovação tivéssemos

ratificado64 esse grandioso evento, que constituiu, de facto, um marco transcendente na

história da humanidade.

Em 16 de Dezembro de 1966 a Assembleia-geral das Nações Unidas dá

novamente corpo a uma grande decisão ao fazer aprovar o Pacto Internacional sobre Direitos

Civis e Políticos, documento que Portugal ratificou através da publicação da Lei n.º 29/78, de

12 de Junho. No que à infância concerne, este Pacto consagra no seu artigo 24.º que “todas as

crianças, sem nenhuma discriminação de raça, cor, sexo, língua, religião, origem nacional ou

social, propriedade ou nascimento, têm direito, da parte da sua família, da sociedade e do

Estado, às medidas de protecção que exija a sua condição de menos”.

Estando Portugal integrado como membro de pleno direito na Comunidade

Europeia, importa aqui registar a importância de que para nós se reveste a aprovação da Carta

dos Direitos Fundamentais da União Europeia como herdeira legítima da Declaração

62 Decreto-Lei n.º 396/91, de 16 de Outubro e Lei n.º 53/99, de 30 de Junho, que aprimoraram o Decreto-Lei n.º 49408, de 24 de Novembro de 1969, que ensaiou, timidamente, os primeiros ataques à problemática da exploração do trabalho de menores. 63 Está determinado pelo art. 8.º da Constituição da República Portuguesa que as normas e os princípios de direito internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito português. 64 Aviso do Ministério dos Negócios Estrangeiros publicado no Diário da República de 9/3/1978.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

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Universal de 1948, que a assume de uma forma mais clara e actual, constituindo uma síntese

do essencial daquilo que ao longo de inúmeros pactos, cartas e convenções foi dito e tido

como fundamental à preservação e promoção da dignidade humana. É, por isso, normal que a

carta em apreço dedique um espaço nobre aos direitos das crianças – art. 24.º. Estão aí

consagrados o direito à protecção e aos cuidados necessários ao bem-estar da criança, à livre

expressão e opinião, sobretudo nos assuntos que lhe digam respeito, para além da

obrigatoriedade a que as entidades públicas e privadas estão sujeitas no que respeita ao

interesse superior da criança, que na prática de actos com elas relacionados deve ser

devidamente salvaguardado.

Porque nos parece merecedor de um particular enfoque, deixamos para agora uma

referência à moldura normativa estritamente relacionada com as crianças e que, no fundo,

constitui a base a partir da qual tem irradiado a enorme teia por onde se vai hoje tentando

construir uma cidadania da criança.

2.2.3. A lei das leis

Ao longo do século há pouco findo vários são os marcos que a história regista

como conquistas significativas no domínio dos direitos das crianças, podendo-se afirmar que

foi durante este tempo que a infância conquis tou a sua maioridade normativo- legal.

Em 1923, em Genebra, nasce a Primeira Declaração dos Direitos da Criança, que

no seu curto texto, organizado em dez princípios, consagra sete deles a outros tantos deveres

da humanidade para com as crianças, emergindo de uma análise de todo o corpus da

declaração uma clara preocupação com a sua protecção e auxílio (Soares, 1997: 79). Portugal

adoptou-a em1927.

O nascimento em 1946 da UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância –

potencia a adopção e implementação no terreno, sobretudo junto dos países e povos pobres,

de políticas visando melhorar a vida das crianças, proporcionando- lhes serviços de saúde e

educação, desencadeando campanhas alimentares junto de populações famintas com crianças

subnutridas, que constituem as primeiras vítimas mortais das maiores e mais aterradoras

tragédias da nossa era, enfim, trabalhando denodadamente para que algum bem-estar para as

crianças chegue a zonas do globo de onde, ainda hoje, nos aparecem, porta dentro, imagens

inacreditáveis de sofrimento e provações.

Emanada directamente da aprovação em 1948 da Declaração Universal dos

Direitos do Homem, sobretudo da necessidade de atender às especificidades próprias da

infância, naturalmente com características bem diferenciadas das dos adultos, nasce em 1959

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

79

a Declaração Universal dos Direitos da Criança, que mereceu a unanimidade do plenário da

Assembleia-geral das Nações Unidas que a aprovou. Este documento acrescentou ao seu

congénere de 1923 alguns aspectos inovadores, sobretudo os que se relacionam com a

identidade, nomeadamente o direito ao nome e à nacionalidade, para além do direito a brincar

e a desenvolver-se numa atmosfera de paz e amizade. Alargou-se, claramente, o campo de

atendimento dos problemas das crianças, que na Convenção de Genebra se focalizavam quase

que exclusivamente nos deveres de protecção.

Aqui chegados, importa acentuar que os avanços conseguidos no domínio dos

direitos da criança até à aprovação da Convenção de 1959 eram muito periclitantes, dada a

inexistênc ia de força vinculativa das declarações referidas junto dos Estados que as

subscreveram. Como refere Soares (1997: 80) os direitos da criança não passavam de um

slogan em busca de uma definição que ultrapassasse as dimensões de uma mera declaração.

Foi preciso esperar três longas décadas para que, finalmente, a Declaração desse lugar à

Convenção dos Direitos da Criança, fazendo do ano de 1989, quiçá, o mais significativo dos

que marcam a história da infância.

Porque ao conhecer a ratificação por um Estado adquire logo aí força de lei, a

Convenção dos Direitos da Criança, que nessa forma vigora na nossa ordem jurídica desde 21

de Outubro de 1990, constitui o primeiro grande instrumento legal abrangente, ponto de

partida para um conjunto vastíssimo de medidas visando directamente as crianças. São

cinquenta e quatro artigos que responsabilizam cada Estado para com cada criança nos

domínios dos direitos civis, económicos, sociais e culturais, aqui se incluindo os direitos mais

elementares como o são o direito à vida, à saúde, alimentação, educação, higiene, protecção

contra o abandono e negligência, direito à privacidade, direito de associação, expressão e

pensamento, reconhecendo, simultaneamente, a individualidade e personalidade de cada

criança, sendo salvaguardada quer a sua protecção, quer a sua liberdade (idem: 81).

Sem dúvida que, pela sua força e abrangência, a convenção assume um papel

determinante, funcionando como mola impulsionadora do desabrochar e consequente

desenvolvimento de políticas que em cada país irão dar expressão prática a essa ideia de uma

verdadeira cidadania da criança, que ao longo do corpo do texto por onde se estende o seu

vasto articulado fica, claramente, expressa.

Dessa corrente positiva, que, acreditamos, há-de tocar os quatro cantos do mundo,

com o intuito de, um dia, erradicar o sofrimento das crianças, a Convenção é,

inquestionavelmente, o seu elo mais forte, porque representa hoje, ratificada que está por

todos os países do mundo, uma esperança para as crianças e para a própria humanidade, que

será sempre, para o bem e para o mal, avaliada em função do estado em que se encontrar a

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

80

infância, que a cada instante assegura o futuro de todos nós. Mesmo que esta esperança possa

cheirar a utopia, vale a pena acreditar que ela é realizável, como forma de destruir a ignomínia

que neste dealbar de um novo milénio se contínua a abater sobre centenas de milhões de

crianças sujeitas às formas mais brutais de exploração e de miséria existencial.

Importa, por isso, que a Convenção não se fique pelas intenções, mas sim conheça

uma implementação firme junto do seu objecto. Para dar conta da forma como estão a prover

esta necessidade imperiosa, os Estados estão obrigados a produzir quadrienalmente relatórios

demonstrativos e explicativos do ponto da situação em matéria de aplicação da Convenção

nos respectivos países.

Em Portugal assim tem acontecido. Em 1994 e 1998 foram produzidos dois

relatórios sobre a aplicação da Convenção dos Direitos da Criança. Da análise detalhada do

segundo destes importantes documentos ficar-nos-á uma ideia muito mais pormenorizada dos

avanços que se produziram na matéria em apreço entre nós, servindo, ainda, para

complementar o que já mais atrás registamos no tocante a medidas legislativas produzidas por

cá em benefício da criança.

É desta questão que nos ocuparemos de seguida.

2.3. Portugal e a Convenção dos Direitos da Criança

2.3.1. Nota introdutória

Portugal ratificou a Convenção dos Direitos da Criança através da Resolução n.º

20/90, da Assembleia da República, pub licada no Diário da República n.º 211, I Série, de 12

de Setembro, um ano depois de a Organização das Nações Unidas ter proclamado a

universalidade dessa importantíssima conquista da infância, convidando, então, todo o mundo

a ela aderir65, gesto que apenas não foi seguido pelo Sudão e pelos Estados Unidos da

América, que só anos mais tarde a ela se ligaram.

Muito embora conhecedores da força legal de uma convenção, não ignoramos de

todo a imensa teia de normativos legais que é necessário construir para lhe dar tradução

prática, para além das inevitáveis decisões políticas que nos mais variados campos se torna

imprescindível tomar, tantas vezes condicionadas por outros interesses que ainda vão

prevalecendo sobre os das crianças.

65 Portugal participou na elaboração da Convenção.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

81

Mesmo assim, vamos sentindo uma paulatina visibilidade em torno da

implementação de medidas atinentes à aplicação da Convenção dos Direitos da Criança entre

nós.

Procurando, por um lado, dar público testemunho e transmitir um (re)

conhecimento mais profundo da forma como entre nós vai evoluindo a aplicação da

Convenção, e, por outro, responder a uma obrigação que emana directamente do seu próprio

acto ratificativo, foram publicados em 1994 e 1998 relatórios contendo, no essencial, o que de

mais significativo se foi fazendo nas várias áreas onde é necessário actuar nesse sentido.

É do segundo, que foi dado à estampa precisamente quando estava decorrida a

primeira década sobre a aprovação pela ONU da Convenção Universal dos Direitos da

Criança, que nos propomos fazer uma análise circunstanciada, já que, neste âmbito, nenhum

outro referencial tão abrangente e minucioso nos parece existir publicado desde então.

Incidiremos a nossa apreciação, depois de uma necessária apresentação do

documento, agrupando os diversos temas de análise em três grandes categorias por onde se

estendem os direitos convencionados e que respeitam à provisão de necessidades básicas, à

protecção contra o uso e o abuso que impendem sobre as crianças e à participação como um

imperioso e inalienável direito de cidadania.

Antes, porém, deixaremos uma breve clarificação em torno da abrangência que

esses três direitos configuram, que nos possibilitará arrumar e sistematizar toda a análise que

o relatório em apreço nos suscita e avançar, de uma forma organizada e coerente, as

conclusões que da sua apreciação atenta nos parece ser possível extrair.

O carácter compacto com que estruturamos a apreciação crítica que nos merece o

II Relatório de Portugal sobre a Aplicação da Convenção dos Direitos da Criança, mais não

pretende do que despir o comentário de enumerações longas e, por isso, fastidiosas.

Como toda a análise pessoal, também esta reflecte um olhar sempre discutível

sobre uma matéria tão vasta e sensível, que, naturalmente, poderá ser vista de ângulos

diferentes e conduzir a resultados desiguais.

2.3.2. Breve clarificação conceptual

Seguindo o que ficou teorizado por Hammarberg, o articulado da Convenção dos

Direitos da Criança pode ser categorizado em três grandes áreas: provisão, protecção e

participação (Quadro 6). No seu conjunto, fica referenciado todo um vastíssimo leque de

campos de intervenção especificamente direccionados para a infância, condição sine qua non

para que se possa vir a falar um dia da existência de uma verdadeira cidadania da criança.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

82

Na primeira dessas áreas, direitos de provisão, estão consagrados direitos sociais,

que constituem, no fundo, a base e o garante do crescimento físico e psíquico da criança de

uma forma harmoniosa. Estão consubstanciadas, aqui, aquelas que são, indubitavelmente, as

condições mínimas de sobrevivência de qualquer mortal.

Na verdade, é, inquestionavelmente, na saúde, segurança social, nos cuidados

físicos, numa vida familiar saudável, no acesso à cultura e a actividades que assegurem uma

efectiva prática de lazer e tempos livres, que encontraremos caminho firme para prepararmos

agora os cidadãos de amanhã. Uma sociedade que não promova e assegure estas condições

básicas que são devidas aos seus membros debutantes, demite-se da mais elementar das

responsabilidades e coloca em sério risco a sua própria sobrevivência.

Quadro 6

Caracterização dos Direitos Convencionados

Direitos Domínios Envolvidos

Provisão

Saúde, educação, segurança social, cuidados físicos, vida familiar, recreio e cultura.

Protecção Contra a discriminação, abuso físico e sexual, exploração, injustiça e conflito.

Participação

Direitos da criança ao nome e identidade, a ser consultada e ouvida, a ter acesso à informação, à liberdade de expressão e opinião e a tomar decisões em seu proveito.

Quadro elaborado pelo autor a partir da tipologia desenvolvida por Hammarberg

Se a provisão assume importância relevante, não menos a tem a protecção no que

concerne aos abusos físicos e sexuais, à exploração, injustiça e conflito, ou seja, a todas as

formas de discriminação que ainda hoje martirizam as crianças em todo o mundo e povoam o

nosso imaginário com quadros dantescos, feitos de um permanente contacto com as mais

abjectas formas de humilhação, de que toda a humanidade dita civilizada se deveria de

envergonhar nesta tão badalada viragem de milénio. Aqui, muito para além da sobrevivência,

joga-se o essencial da dignidade humana, o respeito que é devido a quem, frágil e,

concomitantemente, indefeso, é presa fácil de gente perversa e cruel, que ousa atentar contra o

nosso semelhante mais pequeno, que, não raras vezes, se encontra absolutamente

desprotegido.

Finalmente, será nos direitos relativos à participação que deveremos situar os que

abarcam o direito da criança a uma identidade e a um nome, o direito de acesso à informação,

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

83

o direito a ser consultada e a ser ouvida, o direito à livre expressão e opinião e o direito a

tomar decisões que impliquem consigo própria e delas possa retirar o devido e, quantas vezes,

necessário respeito. É neste campo que, claramente, se inserem aqueles que são para nós os

mais importantes dos princípios e valores consubstanciadores do exercício da verdadeira

cidadania a que as crianças, também, têm, indubitavelmente, direito de acesso. Mesmo que

bem provida e protegida, uma criança só ficará totalmente realizada na plenitude do seu ser

quando, à medida da sua capacidade específica, tomar parte activa no governo da cidade.

É com base nesta separação que analisaremos o II Relatório de Portugal sobre a

aplicação da Convenção dos Direitos da Criança, procurando, assim, conhecer,

sectorialmente, o que por cá vai sendo feito nesta matéria.

2.3.3. Aplicação da Convenção – II Relatório

2.3.3.1. Finalidade dos Relatórios

Os relatórios sobre a aplicação da Convenção dos Direitos da Criança

constituem uma espécie de observatório periódico que vai servindo de barómetro indicador do

estado em que se encontra a problemática no terreno, ou seja, nas medidas implementadas

para dar tradução prática aos propósitos que ficaram convencionados.

É através deles, também, que a própria Organização das Nações Unidas vai

sabendo o que se passa nos diversos países que ratificaram a convenção, contando, para o

efeito, com um “Comité dos Direitos da Criança”, constituído por dez peritos altamente

qualificados, que, entre outras tarefas, têm por missão analisarem exaustivamente os relatórios

que de todo o mundo lhes vão chegando às mãos, facilitando, com isso, a intervenção

internacional onde subsistem situações delicadas, sobretudo através do trabalho meritório que

a UNICEF tem desenvolvido de há décadas a esta parte.

Para além disso, os relatórios servem, também, para prestação de contas

internamente sobre a forma como se está a cumprir uma obrigação legal livremente assumida,

abrangendo um campo social vital para o futuro de qualquer nação, contribuindo tal

visibilidade que ao problema dão para confrontar a sociedade civil com o ponto em que as

coisas se encontram, suscitando, com isso, a sua posição crítica conforme, e contribuindo para

o desencadear de pressões que podem constituir um contributo sério para corrigir faltas ou

acelerar procedimentos que vão tardando por parte das entidades públicas.

Nesta prestação de contas bidimensional está, ainda, o espelho do que em cada

país se (não) faz pela aplicação, de facto, da Convenção dos Direitos da Criança e,

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

84

provavelmente, um bom motivo para questionar as políticas desenvolvidas e os mentores que

por detrás delas (não) estiveram.

Em Portugal, como referimos, foram já produzidos dois documentos sobre a

aplicação da Convenção entre nós, à razão de um relatório por cada quatro anos da sua

vigência, como, aliás, faz parte integrante do compromisso a que cada país se obriga desde

que a ratifica66.

Do que foi publicado em Abril de 1999, abrangendo o período de 1995 a 1998,

iremos, então, procurar tirar um retrato, à laia de síntese, que transmita o que de mais

significativo ele contém em termos de realizações, adoptando, para o efeito, o seu

escalonamento nas três categorias sectoriais de que anteriormente traçamos os seus aspectos

conceptuais, sem antes, porém, deixarmos de fazer uma necessária abordagem às medidas

gerais de implementação da Convenção e aos princípios gerais directores que nortearam e

suportaram a tomada das decisões nos seus mais variados sectores de abrangência.

Naturalmente, traremos à colação os aspectos que julgamos serem os mais

marcantes de um documento com perto de duas centenas e meia de páginas, que procurou ser

exaustivo e foi muitas vezes repetitivo em relação ao que o antecedeu.

2.3.3.2. Medidas gerais estruturantes

O Relatório em apreço consagra um conjunto de grandes decisões,

nomeadamente a nível da criação de estruturas e equipas de âmbito nacional e, portanto,

abrangente, de onde emanarão todas as intervenções no terreno, designadamente:

§ Nomeação de uma Comissão de Revisão das Penas e Medidas a aplicar a

menores (adequação aos princípios enunciados na Convenção);

§ Projecto de Apoio à Família e à Criança (verificação de maus tratos no seio

da família e intervenção na problemática);

§ Programa Ser Criança (apoio a projectos que visem a integração familiar e

sócio - educativa de crianças em situação de risco e de exclusão social e

familiar);

§ Programa Educação Para Todos – PEPT 2000 (combate ao abandono e

insucesso escolares);

§ Comissão Nacional de Combate ao Trabalho Infantil;

66 Dada a manifesta dificuldade de que se reveste a feitura dos relatórios foi constituída em 13/12/96 a Comissão Nacional dos Direitos da Criança com o fim de, não só elaborar os relatórios, mas, também, funcionar como órgão de acompanhamento das medidas legislativas de aplicação da Convenção e sua execução prática e de informação sobre os direitos da criança.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

85

§ Comissão Nacional de Saúde da Mulher e da Criança;

§ Programa Escola Segura;

§ Pacto Estratégico para o ano 2000 (visando responder com soluções

inovadoras aos problemas dos jovens);

§ Programa de Apoio às Associações Juvenis;

§ Criação do Gabinete de Apoio, de Estudo e Planeamento (recolha de dados

que possibilitem o conhecimento da realidade juvenil);

§ Lançamento do Observatório Permanente da Juventude Portuguesa (visando

trabalhar os dados recolhidos pelo Gabinete de Apoio de Estudo e

Planeamento);

§ Criação da Comissão Nacional dos Direitos da Criança;

§ Criação da Comissão Nacional Para a Protecção das Crianças e Jovens em

Risco (com o objectivo de dinamizar as Comissões de Protecção de

Menores);

§ Criação da Linha Verde Recados da Criança (aconselhamento técnico e

humano sobre os direitos da criança e sua efectivação);

O Relatório em apreço consagra algum espaço à intervenção que Portugal

logrou levar a efeito junto da Comunidade dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa

no âmbito dos programas de cooperação que vem mantendo com essas nossas antigas

colónias.

Nesta conformidade, refere, designadamente:

§ Cooperação Internacional (PALOPS):

o Programa Educacional de Emergência para as crianças vítimas da

guerra em Angola;

o Crianças com NEE’s nos outros PALOPS;

o Apoio às ONG’s que socorrem os Meninos de Rua de Cabo Verde e

Angola.

Paralelamente, o Relatório refere a divulgação da Convenção dos Direitos da

Criança por todas as escolas do país e autarquias locais através da difusão de vasta literatura

apropriada, para além do recurso amiudado aos média com tal intuito.

2.3.3.3. Medidas gerais directoras da acção

Lutar contra a pobreza e a exclusão social é um dever indeclinável e inadiável

de toda a sociedade que se reclame de defensora da igualdade entre os seus.

Page 106: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

86

Aqui, está contido um outro conjunto de medidas entretanto tomadas que

encerram valores de que um país livre e democrático jamais poderá abdicar, nomeadamente as

que respeitam a:

A – Não Discriminação:

• Criação do Alto – Comissário para a Imigração e Minorias Étnicas;

• Criação de um Grupo de Trabalho para a Igualdade e a Inserção dos

Ciganos;

• Programa Nacional de Luta Contra a Pobreza;

• Criação do Rendimento Mínimo Garantido;

• Criação de serviços no âmbito do Instituto de Apoio à Criança:

• Serviço SOS Criança (apoio a crianças em risco);

• Programa de Educação para o Desenvolvimento (sensibilização dos jovens

relativamente ao respeito pela diversidade cultural);

• Plano Especial de realojamento (eliminação das barracas).

B – Interesse Superior da Criança:

• Criação da Comissão Nacional de Protecção das Crianças e Jovens em

Risco;

• Programa de Inserção Social;

• Alargamento das Comissões de Protecção de Menores a todo o país;

• Criação e Implementação do Programa Adopção 2000;

• Programas Especiais de Realojamento;

• Instituição dos Programas INTEGRAR (visando promover a integração

económica e social dos grupos mais desfavorecidos), URBAN e de

Intervenção Operacional Urbana (requalificação de zonas degradadas

visando a integração de grupos sociais mais pobres, principalmente os

residentes em bairros de lata).

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

87

C – Direito à Vida, à Sobrevivência e ao Desenvolvimento:

• Programa de Promoção e Educação para a Saúde;

• Criação de um Grupo de Trabalho de Prevenção de Acidentes;

• Criação da Comissão para a Educação Rodoviária;

• Implementação do Programa Escola Segura.

D – Respeito Pelas Opiniões da Criança:

• Em termos de medidas concretas no período em apreço, o relatório limita-

se a constatar que “o conhecimento da opinião da criança tem tido

sobretudo consequências ao nível da influência” (pág. 72), e dá conta da

realização de uma sessão que teve lugar na Assembleia da República no dia

1 de Junho de 1997, concretizando um projecto de envolvimento de

crianças em processos de participação directa – O Parlamento das Crianças,

iniciativa que teve um particular destaque na imprensa escrita e falada e de

que resultou um grande impacto na opinião pública portuguesa.

2.3.3.4. Medidas sectoriais

Sectorialmente e no domínio dos direitos de provisão, protecção e participação,

o relatório particulariza um conjunto de decisões entretanto tomadas a nível governamental, a

seguir esquematizadas (quadro 7), que, no fundo, constituem os verdadeiros indicadores dos

avanços que a aplicação da Convenção dos Direitos da Criança conheceu entre nós no

quadriénio em apreciação, já que representam o universo das medidas colocadas no terreno, e

que dão tradução prática ao que ficou convencionado fazer-se em 21 de Outubro de 1990.

De um imenso rol de medidas elencadas ao longo do Relatório, focalizaremos a

nossa atenção em torno das que estão efectivamente implementadas, não se tendo relevado,

por isso, as que aí são referenciadas ainda como um propósito à espera de melhor

oportunidade de concretização

Page 108: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

88

Quadro 7 Medidas sectoriais aplicadas entre 1995 e 1998

Direitos Medidas

Provisão Vida Familiar: • Exercício Conjunto da Autoridade Parental; • Licença de Maternidade de 98 dias; • Generalização do Rendimento Mínimo Garantido; • Execução do Programa Nacional da Luta Contra a Pobreza; • Implementação do Programa Ser Criança; • Dinamização das Comissões de Prot. de Menores; • Consagração do Direito de Protecção Especial (Estado) a

todas as crianças sem meio familiar; • Implementação do Projecto de Apoio à Família e à Criança; • Implementação do Programa Adopção 2000.

Educação, Saúde e Bem-Estar: • Apoios Educativos a Crianças com NEE; • Apoio a 85 ONG’s de ensino e apoio a deficientes; • Criação de CAO’s – Centros de Actividades Ocupacionais

para Deficientes Graves; • Expansão e Desenvolvimento da Educação Pré-Escolar; • Criação de TEIP’s; • Currículos Alternativos; • Programa para Integrar Jovens na Vida Activa (F.P. II); • Programa Educação Para Todos – PEPT 2000; • Projecto Ir à Escola (Mediadores Ciganos); • Ensino Precoce de uma Língua Estrangeira; • Desporto Escolar – Todo o 1.º Ciclo até 2000.

Protecção • Estudo da Revisão de Penas e Medidas a Aplicar a Menores;

• Luta Conta o Trabalho Infantil; • Agravação das Penas dos Crimes Sexuais Cometidos Contra

Crianças. Participação • Implementação do Programa Internet na Escola – direito ao

acesso a uma informação adequada que abrange todas as escolas dos 2.º e 3.º ciclos.

Quadro elaborado e compilado pelo autor a partir do Relatório

2.3.4. Algumas notas conclusivas

Não seria justo dizer-se, face ao conjunto de medidas tomadas, quer sectoriais,

quer de carácter genérico, que atrás foram enunciadas com algum pormenor, que durante o

quadriénio em apreço não foram dados passos importantes no sentido de se começar a prover

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

89

o vasto conjunto de direitos que a sociedade reconhece à criança e que legalmente assumiu a

responsabilidade de cumprir e fazer cumprir.

Poder-se-á afirmar mesmo, que, em relação ao Relatório precedente, foi possível

limar algumas arestas e suprir lacunas em torno da divulgação da Convenção à sociedade, que

se avançou para políticas de família no sentido de combater os maus-tratos a crianças no seu

seio, que se atacou a problemática do trabalho infantil e se lançaram importantes intervenções

no domínio da luta contra a pobreza e a exclusão social. Notam-se, na verdade, avanços

animadores na área da provisão, indicador de que as nossas crianças vão tendo condições para

crescer melhor.

O relatório regista, ainda, a intervenção activa de organizações de protecção da

criança a nível nacional – Comité Português para a UNICEF, Comissão Nacional para os

Direitos da Criança, Comissões de Protecção de Menores – algumas já referenciadas no I

Relatório, cujo objectivo primordial da sua acção se encontra focalizado na salvaguarda,

protecção e encaminhamento de crianças, o que vem demonstrar a existência de sensibilidade

e empenhamento para dar respostas cada vez com maior acuidade às necessidades da criança,

sobretudo às que se encontram em grave dificuldade. Esta realidade, quanto mais não seja,

tem o condão animador de nos evidenciar que já há muita gente preocupada com os direitos

da criança, o que, convenhamos, nos permite pensar que, nesta matéria, já não falta tudo.

Percebe-se, no fundo, que as políticas sociais para a infância melhoraram e as

outras talvez venham a avançar mais um dia destes.

2.4. Estatuto do Aluno: uma conquista relevante

Coincidindo com a conclusão do II Relatório de Portugal sobre a Aplicação da

Convenção dos Direitos da Criança veio a lume um documento, em forma de lei – Decreto-

Lei n.º 270/98, de 1 de Setembro – definindo aquele que é, indubitavelmente, com esta

expressão normativa, o primeiro Estatuto do Aluno, no caso em apreço confinado às crianças

que frequentam os estabelecimentos públicos dos ensinos básico e secundário.

Reconhecendo no seu preambulo que “as crianças e jovens são sujeitos de direitos e

deveres, os quais, enquanto conquistas sociais e civilizacionais, devem ser interpretados,

explicitados e sistematicamente reiterados pelos adultos em todos os contextos de interacção

social”, a norma em questão constitui um verdadeiro passo de gigante para a nossa população

escolar, desde sempre secundarizada no contexto escolar, com as políticas aí desenvolvidas a

passarem apenas pela mão dos adultos, com o consequente prejuízo de um papel mais activo e

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

90

interventivo das crianças e jovens, sobretudo nos aspectos do quotidiano consigo mais

directamente relacionados.

No que respeita aos direitos consagrados – art. 4.º - o respeito que ao aluno é devido

por qualquer membro da comunidade, a salvaguarda da integridade física e segurança, o

direito à confidencialidade dos elementos constantes do seu processo individual, o direito a

participar, através dos seus representantes, no processo de elaboração do projecto educativo e

do regulamento interno, o direito de apresentar críticas e sugestões relativas ao funcionamento

da escola, o direito a ser ouvido em todos os assuntos que lhe digam directamente respeito, o

direito a eleger e ser eleito para cargos (delegado e subdelegado de turma e outros) e o direito

de organizar e participar em iniciativas que promovam a sua formação, constituem um

vastíssimo campo onde de uma forma extensiva se corporiza um verdadeiro acesso das

crianças a múltiplas formas de intervenção em matérias que lhe dizem directamente respeito.

O Estatuto do Aluno é merecedor aqui, pelo que fica dito, de uma particular

referência, já que encerra um conjunto de potencialidades capazes de permitirem levar a cabo

iniciativas onde a voz das crianças se faça sentir e seja ouvida nos mais variados aspectos da

vida da escola. Neste particular, as Assembleias de Alunos podem constituir bons ensaios para

a construção junto das crianças de uma forte cultura democrática, quer através do processo da

sua própria constituição, que através dos debates que enformarão, necessariamente, o seu

funcionamento, quer, ainda, por força das questões que cada “pequeno senador” possa trazer

do seio da sua escola ou turma e das discussões que aí para tanto se desencadearam.

Sabemos que nenhuma norma valerá se não houver uma vontade férrea de a cumprir.

Assim queiram as comunidades educativas e o Estatuto do Aluno muito poderá valer para a

construção plena da cidadania da infância de que temos vindo a falar com tanta insistência.

2.5. O direito ao tempo livre, ao lazer e ao prazer

O valor formativo desta componente importante de qualquer processo socializador,

com particular relevância para o presente estudo e a que já nos referimos com alguma

amplitude, tem perpassado de uma forma objectiva todo o edifício normativo entretanto

construído, o que reflecte uma preocupação inequívoca da sociedade para com o aspecto

lúdico e recreativo que a infância naturalmente deve comportar com regularidade, a que se

deverá juntar o uso discricionário pela criança de tempo livre para dar largas à sua imaginação

e saudável irrequietude.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

91

As crianças, postula o art. 31.º da Convenção dos Direitos da Criança, devem ter

tempo livre onde caiba o direito a brincar e a descansar, a criar, descobrir e divertir-se, sendo-

lhe possibilitado poder participar em jogos e actividades que sejam para a sua idade.

A própria Constituição da República Portuguesa reserva um espaço – art. 70.º - à

defesa de um regime de protecção especial dos jovens para a efectivação dos seus direitos

sociais e culturais, designadamente no que ao aproveitamento dos tempos livres concerne.

A esta matéria de refere, também, de uma forma inequívoca, o Estatuto do Aluno dos

estabelecimentos públicos dos ensinos básico e secundário, reconhecendo como um dos

direitos gerais do aluno o de “organizar e participar em iniciativas que promovam a sua

formação e ocupação de tempos livres”67.

No mesmo sentido apontam os normativos que sustentam a organização pedagógica

da escola básica, reconhecendo-se aí o papel determinante das actividades extra-curriculares

na educação das crianças, muitas delas pelo seu valor educativo apropriadamente chamadas

de actividades de complemento curricular.

Aliás, quer o Estatuto do Aluno, quer a consagração das actividades que estão para

além da estrutura curricular, mais não encerram, neste âmbito, do que extensões

regulamentadoras da Lei de Bases do Sistema Educativo68, que à matéria em apreço dá o

devido acolhimento, reconhecendo, com isso, a sua transcendente importância na formação do

indivíduo.

Não será, pois, por falta de enquadramento legal que a sociedade se irá demitir da

responsabilidade que lhe cabe na prossecução de políticas que tenham como meta

fundamental prover a efectiva existência de tempos livres na infância, que se constituam

como verdadeiros espaços de lazer e prazer para as crianças e, concomitantemente, como

contributos importantíssimos para que o seu crescimento se faça à medida da sua dimensão de

ser em crescimento, que deve, por isso, ser preservado de formas de uso que coloquem em

causa o seu desenvolvimento e não atente nas suas naturais fragilidades.

Á laia de nota de rodapé refira-se que, quando nos encontrávamos na fase de

conclusão deste estudo, foi publicada a Lei n.º 30/2002, que aprova o Estatuto do Aluno do

Ensino não Superior e, consequentemente, revoga o antecedente. No seu corpus o novo

documento mantém o essencial sobre tudo quanto referimos neste âmbito.

67 Alínea j), do n.º 1, do art. 4.º, do Decreto-Lei n.º 270/98, de 1 de Setembro. 68 Artigos 39.º e 48.º

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

92

3. A CARETA

3.1. Considerações breves

Ao longo da secção antecedente procuramos trazer à colação aquilo que nos parece

constituir o essencial do que hoje se encontra regulado em matéria de defesa dos direitos da

criança, sobretudo e por via da aprovação da Convenção dos Direitos da Criança, aceitando

que este nosso olhar sobre matéria tão sensível esteja, provavelmente, eivado de imprecisões e

valorizações temáticas com que se possa, eventualmente, estar em desacordo.

Todavia, e aqui poderá obter-se um consenso alargado, o que descrevemos

anteriormente, em alguns casos de uma forma minuciosa e, simultaneamente, apaixonada,

pode conduzir à vã ilusão de que a infância vai bem, porque todas as crianças vivem felizes e

nada lhes falta. É óbvio que não enjeitaríamos a oportunidade de proclamar o milagre.

Infelizmente, a realidade é bem diferente e à bondade da letra não corresponde, nem

de perto, nem de longe, a careta que o quotidiano nos apresenta.

No preâmbulo deste capítulo evidenciamos, em breves pinceladas, a existência de

uma longa e permanente crise da infância, de uma infância que vive paradoxalmente entre o

céu com que é pintada e o inferno que lhe marca de uma forma tantas vezes brutal o seu

quotidiano.

Da situação da infância em Portugal aqui ficam alguns registos extraídos e

reflectidos a partir de alguma investigação já existente em torno desta matéria tão candente,

que pela sua extensão evidencia o muito que ainda está por fazer no âmbito do cumprimento

dos direitos da criança, desconstruindo-se, desta forma, liminarmente, essa ideia ilusória de

uma infância cor-de-rosa em que a teia normativa montada ao seu redor nos pode às vezes

querer induzir.

É que, como facilmente perceberemos mais à frente, a letra não condiz com a careta.

3.2. Infância em Portugal – aspectos mais marcantes

3.2.1. De carácter geral

Não abundam entre nós grandes levantamentos estatísticos que nos permitam

abordar com objectividade a situação da infância em Portugal. Há, porém, alguns indicadores

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

93

sectoriais que nos ajudam a fazer uma radiografia do problema em alguns dos seus aspectos

mais marcantes.

“Portugal tem-se caracterizado por uma lenta, e por vezes contraditória,

transformação das políticas e práticas familiares e institucionais relativas à infância”

(Sebastião, 2000: 115). Apesar da evidente melhoria da situação a partir de meados da década

de setenta do século passado, onde a criação do Serviço Nacional de Saúde69 e o aumento da

escolaridade obrigatória emergem como dois bons exemplos de políticas que beneficiaram

claramente as crianças, o fenómeno da delinquência e da marginalidade infanto-juvenil, com

maior incidência nos meios urbanos e suburbanos, não dá sinais de abrandar, muito embora

também não se tenha agravado (idem, 2000: 118-123). Segundo este autor, a delinquência no

seio das camadas jovens está directamente relacionada com as situações de exclusão social e

pobreza vividas por alguns grupos sociais.

Quadro 8

Número de crianças atendidas, por idade, nas CPM

Idade N.º de Crianças

Dos 0 aos 3 anos 444

Dos 4 aos 6 anos 376

Dos 7 aos 10 anos 585

Dos 11 aos 13 anos 573

Dos 14 aos 17 anos 651

Total 2629

Quadro elaborado pelo autor a partir de dados fornecidos pela CNPCJR (1999)

Preocupantes são, indubitavelmente, os dados que permanecem hoje como os

mais actuais no que ao número de crianças em risco atendidas nas Comissões de Protecção de

Menores – CPM70 espalhadas pelo país diz respeito.

Se considerarmos que cerca de metade do país não tem ainda em funcionamento

Comissões de Protecção de Menores, aqui se incluindo ainda hoje a capital do país, talvez

percebamos melhor o que deve por aí andar em matéria de crianças e jovens em perigo e a

necessitarem de uma mão amiga que lhes possa acudir enquanto é tempo. 69 A assistência no parto em hospital passou de 18,4% em 1960 para 98,8% em 1994 e, concomitantemente, a mortalidade infantil desceu de uns assustadores 77,5%o em 1960 para 6%o em 1998 (Barreto, 2001) 70 Que têm como principais funções o encaminhamento de situações que envolvam risco para crianças e jovens até aos 18 anos de idade.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

94

Quadro 9 Problemáticas que mais atingem as crianças

PROBLEMÁTICAS MAIS FREQUENTES N.º DE CASOS

• Negligência 750

• Outras situações de perigo (desestruturação familiar, prostituição, toxicodependência ou alcoolismo dos pais, falta de condições de habitabilidade, orfandade, etc.)

586

• Absentismo Escolar 468

• Maus-tratos Físicos e Psicológicos 407

Quadro elaborado pelo autor a partir de dados fornecidos pela CNPCJR71 (1999)

Certamente, que, quando o país estiver todo coberto por CPM a funcionar em

pleno, os valores de que nos falam os registos constantes dos quadros 8 e 9 subirão em flecha,

dando ainda mais amplitude aos dramas que cada um deles encerra, atingindo crianças de

todas as idades, com a preocupante particularidade de se situarem nas faixas etárias mais

baixas o maior número de jovens que necessitaram de auxílio – três em cada quatro crianças

atendidas nas Comissões de Protecção de Menores tinham menos de treze anos!

Estamos, com toda a certeza, a falar de muitos milhares de crianças vítimas desta

ou daquela forma de violência, física e/ou moral, quanta dela traduzida em maus-tratos,

fenómeno que, hoje por hoje, vai assumindo proporções alarmantes e uma visibilidade tal que

faz dele um verdadeiro “problema social” (Martins, 2002: 17).

Falar de estatísticas referindo-se a crianças mal tratadas é, refere Soares (2000:

426- 427), falar de crianças que morrem todos os dias um pouquinho. Mas, falar é preciso,

para que a cidade não descanse sobre os escombros de uma franja da infância ainda

vilipendiada e ultrajada por uma sociedade incapaz de encontrar uma resposta global para os

seus problemas.

Posto isto, deter-nos-emos, doravante, em aspectos mais particulares da imensa

teia de problemas que envolvem a infância e em que, nalguns casos, a infância se encontra

completamente envolvida.

3.2.2. A problemática do trabalho infantil

Em 1991 a Anti-Slavery International investiga e denuncia a existência de

duzentas e cinquenta mil crianças trabalhadoras em Portugal, milhares delas vítimas de

exploração.

71 CNPCJR – Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Risco.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

95

Apesar do apertado cerco legislativo que neste âmbito tem sido montado desde

então, a problemática da exploração do trabalho infantil entre nós emerge como um drama

social de proporções absolutamente gigantescas, que nos envergonha e menoriza como país

do chamado primeiro mundo.

Se é verdade que não estamos a falar das crianças envolvidas nas sweatshops de

material desportivo no subcontinente asiático, nas minas de ouro da Amazónia ou nos bordéis

tailandeses, isto é, na presença de trabalho infantil e da ignomínia das suas formas opressivas

(Sarmento, 2000c: 44), não menos é a de que no nosso país se estima que cerca de quarenta e

sete milhares de crianças estão actualmente sujeitas a formas exploratórias de trabalho

infantil, o que, segundo refere a Confederação Nacional de Acção Sobre o Trabalho Infantil

(CNASTI)72, significa um aumento de 17,5% de casos em relação aos dados anteriores

datados de 1999. Convenhamos que não estamos perante uma situação muito agradável,

apesar de não atingir a proporção gigantesca daquela outra.

Mesmo assim, estamos a falar de uma enorme mancha da nossa população mais

jovem que é sujeita a formas de trabalho que atentam de uma forma indigna contra as suas

condições físicas e psíquicas, para além de, quase sempre, ser remunerado de uma forma

absolutamente vergonhosa. “O trabalho é um bem precioso que, no terceiro milénio, terá que

ser bem partilhado, como a água, para chegar para todos. A exploração de qualquer pessoa

através do trabalho é um crime; se essa pessoa é uma criança, é um crime contra a sociedade”

(Pestana, 2000: 97).

Bem sabemos que dentro de princípios que salvaguardem os mais elementares

direitos da criança, o desempenho de trabalhos que se coadunem com a especificidade de um

ser em formação, não transgridam a lei e não causem “sofrimento ou desgosto notório a quem

o pratica” (Sarmento e tal. 1999: 62) não contém nada de transcendente para o jovem, antes

pelo contrário. Aliás, diz a sabedoria popular, que “o trabalho de rapazes é pouco, mas quem

não o aproveita é louco”.

Porém, quando tal trabalho é causa de dor, de grave incómodo, sofrimento ou

mesmo contrariedade junto das crianças que os executam, então o quadro altera-se e passa a

configurar formas indignas e atentatórias da sua dignidade.

São conhecidas algumas das causas deste flagelo, emergindo a incapacidade da

escola em inverter o rumo da sua experiência acumulada de insucesso escolar, conjugada com

as pressões para a entrada precoce no mercado de trabalho, através da obtenção de empregos

precários mal remunerados e clandestinos, ligados à situação de sobre-exploração de mão-de-

obra infantil, como as mais frequentes e visíveis, a que não são alheios, certamente, os

72 In Correio do Minho de 1 de Julho de 2002

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

96

quadros de exclusão social que ainda povoam a nossa realidade quotidiana. Não ignoramos

que, “às crianças e famílias em situação de exclusão, a alternativa muitas vezes se coloca

apenas entre a frequência desesperançada de uma escola promotora de insucesso apreendido e

a oportunidade precária de ingresso no mundo do trabalho infantil” (Sarmento et al., 1997:

267).

Todavia, conhecido o diagnóstico e prescrito o tratamento a problemática em

apreço não só subsiste como, inexplicavelmente, se agudizou recentemente.

3.2.3. A criança vítima e vitimadora

Enquadram-se aqui, entre outras, situações que acontecem no dia-a-dia e que, por

um lado, provocam grande sofrimento às crianças vítimas de violência de outras crianças e,

por outro lado, potenciam nos jovens vitimadores a formação de personalidades deslocadas e

a constituição de grupos desviantes, que, entretanto, já vão emergindo com alguma

preocupação no seio da sociedade.

Fenómeno preocupante e merecedor de especial atenção é, sem dúvida, o

bullyng73, que, segundo Pereira (2002: 16 e 17), à semelhança de outros comportamentos

agressivos, se identifica pela intencionalidade de magoar alguém, que é vítima e alvo de acto

agressivo, enquanto os agressores manifestam tendência a desencadear, iniciar, agravar e a

perpetuar situações em que as vítimas estão numa posição indefesa. Ainda, segundo esta

autora, “ o sofrimento da vítima pode ser físico, psicológico ou ambos, podendo ser o

resultado de formas de agressão como bater, empurrar, tirar dinheiro, chantagear ou ameaçar,

chamar nomes, contar histórias amedrontadoras, praxar violentamente e excluir sob a forma

de marginalização social” (idem).

Whitney e Smith (1993) e Pereira et al. (1996) demonstraram que o bullyng é

mais frequente no recreio do que em qualquer outro espaço do contexto escolar ou fora dele e

se afirma como um elemento perturbador da tranquilidade e da felicidade de inúmeras

crianças e laboratório de ensaio para, provavelmente, iniciativas mais arrojadas da parte das

que se dedicam à prática de sevícias contra os seus iguais.

Com a certeza de que este fenómeno tem vastos espaços por onde se possa

estender e alastrar – contextos onde crianças hoje coexistem e interagem diariamente durante

longos períodos de tempo – e que existe de uma forma velada, quantas vezes escondido na

angústia e na brutalidade em que se transforma o quotidiano de muitas crianças vítimas do

bullyng, importa, como sustenta Pereira (2002: 300), intervir enquanto os direitos

73 Termo inglês que os dicionários não referenciam e que, portanto, não tem tradução à letra.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

97

democráticos de cada criança não forem respeitados, impedindo a sua humilhação repetida

neste âmbito.

Também aqui encontramos bons motivos para o desenvolvimento de um trabalho

profundo e aturado em matéria de direitos das crianças, aproximando a letra da careta.

Enquanto muitas soçobrarem na sua dignidade às mãos de outras portadoras de desvios

comportamentais que carecem de decidida correcção, os direitos das crianças estarão por estas

bandas, também, severamente questionados.

3.2.4. As crianças solitárias

Malgrado proliferarem por aí um sem número de estruturas que, para além da

escola, se ocupam de crianças e lhes guardam os passos que a irreverência da idade tantas

vezes faz destrambelhar, são ainda incontáveis as crianças que passam uma grande parte do

dia sem a companhia de um adulto, absolutamente entregues à sua sorte.

Com o intuito de conhecer com profundidade esta problemática dos nossos dias,

que afecta, sobretudo, as famílias onde e desde que o elemento feminino da estrutura parental

ingressou no mercado do trabalho, investigadores do Philip Morris Institute e da Fundação

Alma Mater deitaram mãos a um gigantesco trabalho investigativo envolvendo cerca de oito

mil crianças na Alemanha, Itália e Portugal, que foi levado a cabo durante o Verão de 2001.

E a verdade é que os resultados deste estudo74 vieram confirmar os dados que já

pairavam no ar: os nossos miúdos estão muito tempo sozinhos. De facto, os números apontam

para patamares preocupantes, sobretudo quando indicam que, em média, cada criança entre os

dez e os quinze anos passa duas horas ou mais por dia sem a supervisão de um adulto e que no

nosso país uma em cada três crianças não tem um adulto à sua espera em casa.

Tal situação, geradora de um ambiente de pânico entre pais aterrorizados segundo

os resultados da investigação em apreço, com o medo de que a vadiagem primeiro e a droga

depois apanhem os filhos, constitui hoje um sério problema social, também ele a reclamar

medidas que lhe acudam com eficácia.

Por muito que se aceite a ideia de que as crianças também carecem de um tempo

para elas, para serem crianças por conta própria e para aprenderem a estar sozinhas, não

podemos ignorar os inúmeros perigos que na rua as espreitam permanentemente e as chamam

e conduzem por caminhos de perdição, quantas vezes de onde dificilmente regressarão. E a

verdade, diz ainda o estudo em apreço, é que todo o mundo – pais, professores e adultos em

geral – vivem o espectro desta realidade pungente da marginalidade infanto-juvenil e anseia

74 Divulgados na edição do jornal diário “24 horas” de 11 de Novembro de 2001.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

98

por políticas interventivas que lhe ponham cobro. Da ideia de ficar sozinhos, remata o estudo,

apenas os pequenos investigados nada têm a opor, antes pelo contrário.

Também por aqui não podemos falar de um apetrechamento estrutural da

sociedade que permita atacar com sucesso a dimensão desta realidade, que se nos apresenta

com valores de deficiência elevados e que, concomitantemente, irão, ainda, demorar na sua

resolução plena.

3.2.5. O abandono escolar

“As crianças e jovens que abandonam precocemente o sistema de

ensino são o universo humano privilegiado de recrutamento para

o trabalho infantil” (Pestana, 2000: 97)

Rubem Alves chama à escola “fragmento do futuro” e entende-a como um

“espaço onde se servem às nossas crianças os aperitivos do futuro, em direcção ao qual os

nossos corpos se inclinam e os nossos sonhos voam…” (2000: 167-173). Também somos dos

que ainda acreditamos – e parece que neste patamar se encontra, para já, a esmagadora

maioria do corpo social – que sem a escola o futuro fica e está seriamente comprometido para

todos quantos, por esta ou por aquela razão, passaram ao seu lado. Pelas mesmas razões, um

país que não educa na escola os seus filhos jamais se afirmará plenamente, vivendo a

permanente tormenta de uma auto-mutilação dos seus recursos mais valiosos, os humanos, e

de uma demissão penosa da responsabilidade de promover o direito inalienável que todas as

crianças têm a receber uma escolarização básica obrigatória, tal qual consagram as normas

internacionais e, no nosso caso, as nacionais – Constituição da República Portuguesa e Lei de

Bases do Sistema Educativo.

Apesar de em matéria de abandono escolar Portugal não apresentar os números

indignos que a problemática globalmente assume à escala planetária – uma em cada seis

crianças trabalha em vez de ir à escola 75 – não podemos afirmar que a questão do abandono

precoce da escola seja um assunto resolvido entre nós, antes pelo contrário.

Segundo um estudo elaborado pela Comissão Europeia76 Portugal apresentava em

1997, no contexto da Comunidade Europeia a que pertence, a mais alta taxa de desistência ao

75 Dados avançados na 90.ª Conferência Anual sobre o Trabalho, que decorreu em Genebra em Junho de 2002 e divulgados no site da OIT. 76 Estudo feito a partir de dados retirados do EUROSTAT de 1997, trazidos a lume pelo Diário de Notícias na edição de 6/6/2000.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

99

nível da frequência e cumprimento da escolaridade obrigatória (40,7%), o que é tido como um

factor que em nada ajuda a luta contra a marginalização e a exclusão social.

Um outro estudo77 focalizado numa análise estatística abrangendo os anos de

1993 a 1997 revelou que, durante esse período, quarenta mil alunos abandonaram anualmente

o sistema de ensino sem concluírem a escolaridade obrigatória. Descendo mais ao pormenor,

os dados apurados indicam que mesmo no 1.º ciclo e apesar de a taxa média de abandono não

chegar a 3%, casos há onde os números variam entre os oito e os dezassete por cento, o que é

totalmente inaceitável num país desenvolvido. E a verdade é que, sustenta, ainda, o estudo em

apreço, não se verifica uma tendência inequívoca para a queda destas taxas de abandono e que

é a pobreza a grande responsável pelo fenómeno. Também nesta vertente que à infância

respeita temos um problema, que, embora não sendo muito grave, está por resolver,

engrossando, entretanto, o rol das lacunas que entre nós ainda vão problematizando a situação

da infância.

3.3. Deficiências mais visíveis

Enunciado que ficou mais atrás o que de positivo nos revela o II Relatório de

Portugal da Aplicação da Convenção dos Direitos da Criança, parece-nos oportuno e ajustado,

nesta altura, a ele voltar de novo e reflectir sobre a apreciação que aí mereceu acolhimento no

que ao caminho que ainda está por andar na matéria em apreço diz respeito, no sentido

expresso de reforçar e acentuar a inversão do rumo que as coisas estão, eventualmente, a levar

ou acelerar as que conhecem, ainda, uma lenta mutação.

Não é, certamente, por acaso que uma boa parte do Relatório é gasto em

considerações tendo como referencial medidas tomadas no quadriénio anterior e abordadas já

com a devida amplitude no I Relatório respeitante ao período 1991-1994.

São inúmeras as comissões criadas a que o Relatório se refere, mas, ainda, pouco

visíveis os resultados de muitas delas, sobressaindo aqui como caso paradigmático a

inexistência da reforma do sistema de execução das penas e medidas aplicadas a menores,

cujo estudo se arrasta desde 1996.

Constata-se a ausência de medidas visando a implementação de um programa de

formação de professores no âmbito dos Direitos da Criança, que funcione como despertador

para tão importante problemática. Esta realidade pode ser estendida às magistraturas judiciais

77 Divulgado no jornal Público, edição de 19 de Maio de 2002, encomendado pelo Observatório do Emprego e Formação Profissional e coordenado por João Ferrão e Fernando Honório.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

100

e à própria formação inicial de juristas carecidas de formação específica nesta área (Rocha,

2000: 116).

São quase imperceptíveis no Relatório as referências às conquistas das crianças no

domínio dos seus direitos relativos à participação, pressuposto incontornável para a sua

afirmação como grupo social autónomo. Persiste uma inexplicável relutância em dar voz às

crianças ou recolher a sua opinião em matérias que a elas importem.

Continuam minguados, à luz da apreciação feita, os avanços no campo da protecção,

onde a problemática do trabalho infantil nos continua a menorizar no contexto europeu e a

angustiar todos quantos por cá gostam de ver as crianças na escola, o que, de todo, ainda não

atingiu plena satisfação.

Apesar de tudo, notam-se avanços animadores revelados na área da provisão,

indicador de que as nossas crianças vão tendo condições para crescer melhor. No fundo, o

Relatório dá conta do avanço que as políticas sociais para a infância conheceram e vaticina

para as de protecção melhores dias num futuro próximo.

3.4. Algumas notas conclusivas

Subsistem fortes razões para, infelizmente, continuarmos a pensar que “a infância

ocupa, ainda, uma posição marginal na agenda política e económica” (Sgritta, 1997).

A uma certa sanha legislativa não tem correspondido igual vontade de mudar a

realidade e o sentido das coisas, que, uma cultura, hoje inexistente, deveria, porventura,

determinar, podendo-se afirmar com toda a propriedade que em matéria e à volta da defesa

dos direitos das crianças persiste um gigantesco paradoxo: cantada e proclamada por toda a

parte em uníssono como único garante do futuro do mundo, a criança permanece hoje

devotada a um inexplicável e confrangedor adiamento provisional, abandonada em

muitíssimas situações à sua sorte e silenciada por adultos que teimam em não lhe reconhecer o

direito à palavra.

Ainda não podemos, para nosso lamento, dizer que a letra condiz com a careta, tal é,

na verdade, a discrepância existente entre estas duas palavras, que o povo juntou no seu léxico

tão peculiar como forma figurada de expressar a sua opinião crítica sobre as coisas da vida.

Posto que está o que até aqui planeamos como dizível e, concomitantemente, tivemos

por pertinente aflorar como sustentação teórica deste nosso estudo, encetaremos seguidamente

o trabalho investigativo, que irá ocupar a próxima parte. Em contexto real, junto dos actores,

vamos ao encontro da realidade, procurar percebê- la e tentar encontrar um sentido para o que

ela nos revelar de menos apropriado aos nossos propósitos.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

101

SEGUNDA PARTE

ESTUDO EMPIRICO

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

102

CAPITULO IV Perscrutando um naco da realidade

1. DEFINIÇÃO DO ESTUDO E DA AMOSTRA A presente etapa do percurso que inicialmente traçamos para o trabalho que temos

vindo a desenvolver é totalmente dedicada à descrição da construção da estrutura conceptual

que suportou o estudo empírico que nos conduziu aos resultados que mais à frente traremos à

colação.

Como muitas outras, também a realidade em torno da problemática dos tempos não

escolares dos nossos jovens vive envolta num conjunto de preconceitos enraizados no senso

comum da sociedade de hoje. É verdade, como refere Silva (1986: 29-50), que as visões do

mundo de senso comum por serem interpretações não científicas da realidade não significam

que sejam anti-científicas. Todavia, tal não significa que deixemos de proceder à sua

verificação através da construção de objectos de análise, que nos possam conduzir à produção

de conhecimento científico capaz de nos fornecer a medida certa das “evidências do senso

comum” (idem), propondo-nos os parâmetros em que se fundamentará uma eventual ruptura

que com elas se tenha objectivamente de fazer.

É, pois, na questão da cientificidade da pesquisa que repousa a nossa preocupação

primeira, para que ela seja, como sustenta Eco (1998: 51-52), útil aos outros, porque capaz de

nos dizer sobre o objecto de estudo coisas que não tenham sido já ditas ou rever com uma

óptica diferente coisas que já foram ditas.

São inúmeros os caminhos que as ciências sociais validam como meio importante para a

concepção e construção de objectos de análise da realidade que nos rodeia e reclama um

entendimento sustentado dos seus problemas, que possa ajudar à sua solução (Erasmie e

Lima, 1989: 15).

No que a este trabalho respeita, a nossa opção recaiu num estudo de caso, tendo como

contexto um agrupamento de escolas78. “O ambiente escolar, com as suas características de

acessibilidade, pode fornecer um canal de contacto com as outras dimensões da vida social e

privada das crianças” (Saramago, 2001). No domínio em que o estudo em apreço se insere,

parece-nos que estaremos perante um bom campo para a prossecução dos objectivos que nos

propomos atingir e que se ajusta de uma forma que nos parece apropriada à opção que

fizemos pelo estudo de caso e à consequente selecção do campo de estudo a que, para tal,

tivemos de proceder.

78 Estrutura organizacional da escola pública (Educação Pré-Escolar e Ensinos Básico e Secundário) instituída à luz do disposto no Decreto-Lei n.º 115-A/98, de 4 de Maio.

Page 123: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

103

“Os estudos de caso, de comunidades, de relatos de vida ou de acontecimentos,

assentam numa démarche metodológica específica. Antes de mais, os casos são estudados,

normalmente, enquanto tais e não como meras expressões do geral” (Gonçalves, 1998: 86).

Mais do que generalizar, pretendemos contribuir com algumas achegas para a resolução de

uma problemática que marca, inquestionavelmente, a agenda da infância nos dias de hoje e se

constitui como um verdadeiro problema social.

Sabemos que um todo, por norma, se pode dividir em várias partes e,

concomitantemente, constituir-se apenas por interacção delas. É esse o caminho que

buscamos para o trabalho que estamos a desenvolver, sendo nosso propósito com isso ajudar a

construir um bocado de um todo que, naturalmente, muitos como nós perseguem, conscientes

de que “muitos dos processos e lógicas de foro geral foram descortinados não a partir de

vastos estudos extensivos mas no decorrer de apurados estudos intensivos de casos” (idem:

87).

São estas, basicamente, algumas das razões que nos levaram a optar por um estudo de

caso, para além de que, parece-nos, só ele poderá responder com clareza ao desejo que nos

move de realizar a nossa investigação empírica sobre a temática central do estudo em apreço

no contexto onde exercemos a nossa actividade profissional há quase três décadas e a quem,

por força disso, gostaríamos de emprestar o nosso contributo para a resolução de alguns dos

problemas que hoje aí se colocam a todos quantos mantêm um estado de vigília sobre as

crianças, tarefa de que ninguém no seio da comunidade se deve demitir.

Posto isto, importa definir o público-alvo da nossa acção investigativa e referir e

justificar a opção por recolhas de informação complementares que permitam sustentar com

mais objectividade as conclusões que o estudo naturalmente nos suscitará. Este vai incidir, de

uma forma mais acentuada, sobre crianças que frequentam o primeiro ciclo do ensino básico e

será complementado com a audição de um conjunto de personalidades que trabalham

directamente com crianças ou têm para com elas responsabilidades institucionais em matéria

de ocupação de tempos livres.

No que à constituição da amostra das crianças a investigar concerne, quer no que

respeita à idade, quer ao número, não podemos deixar de atentar na especificidade do sujeito,

por um lado, e na dimensão do objecto, por outro.

No que se refere às crianças importava, antes do mais, que o grupo a estudar estivesse

suficientemente preparado para enfrentar um questionário, percebendo-o de tal modo que a

ele pudesse responder de uma forma significativa. Montandon (1997) defende como

aconselhável o período que decorre entre os 11 e os 12 anos para fazer investigação com

crianças e Corsaro (1997) alarga este leque de idades para um intervalo entre os 7 e os 13

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

104

anos. Saramago (2001) encontra na interacção entre o sistema escolar e as acções de

protagonismo das crianças enquanto actores sociais um meio de delimitar o campo etário dos

observáveis recrutáveis no grupo da infância e postula que o seu universo deve incidir sobre

crianças com idades compreendidas entre os 9 e os 10 anos, a frequentar o 4.º ano do primeiro

ciclo do ensino básico. Foi por aqui que, face ao que atrás dissemos, decidimos encaminhar a

parte mais significativa do nosso estudo, procurando conhecer o pensamento das crianças

sobre uma matéria que directamente lhes importa e, enquanto tal, deve merecer o respeito pela

opinião que sobre ela hão-de, naturalmente, ter.

Delimitado o campo havia que decidir o tamanho da amostra. Gonçalves (1998) entende

que o investigador deve edificar a amostra à medida do seu projecto. No caso vertente, o

projecto é do tamanho de um agrupamento de escolas e, nesta conformidade, foi nessa medida

que nos detivemos. Daí que o universo das crianças da investigação englobe todas as que

frequentavam o quarto ano de escolaridade do Agrupamento de Escolas da Sede – Vila Verde

no ano lectivo de 2001-2002, o que, face à obrigatoriedade da frequência escolar a este nível,

nos permite falar da constituição de um verdadeiro recenseamento contemplando todos os

elementos do universo que construímos e delimitamos da forma que acima sustentamos, ou

seja a totalidade da população jovem finalista do 1.º ciclo da escolaridade obrigatória

pertencente a todo o espaço geográfico por onde se estende o nosso estudo de caso.

No que respeita à selecção dos entrevistados a sua escolha foi feita intencionalmente a

partir do universo dos responsáveis pelas instituições que no espaço geográfico envolvente do

campus por onde se desenvolve o nosso estudo de caso se ocupam das crianças, naturalmente

para além da escola, mas sem deixar esta de fora. Daí que tivéssemos seleccionado oito

personalidades a entrevistar, num universo de quarenta repartidas por autarcas, directores

associativos, gestores escolares e animadores de tempos livres, atenta a relevância do papel

desempenhado por cada um deles enquanto actores sociais exercendo funções institucionais

em domínios cruciais para o desenvolvimento de políticas que podem importar ao nosso

estudo.

2. O OBJECTO DE ESTUDO

2.1. Caracterização Contextual

O Agrupamento de Escolas da Sede – Vila Verde, objecto sobre o qual vai incidir o

nosso estudo de caso, é um dos sete agrupamentos de escolas em que está estruturada a

Educação Básica e Pré-Escolar em Vila Verde (Anexo A), um dos catorze concelhos em que

se divide administrativamente o distrito de Braga (Anexo B).

Page 125: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

105

São treze as freguesias por onde se estende o Agrupamento em estudo, espalhadas ao

redor da sede do concelho que lhe deu o nome em 12 de Junho de 2000, data em que foi

oficialmente criado, e onde se centralizam, também, os órgãos de administração e gestão desta

estrutura escolar (Anexo C).

Numa caracterização muito sumária podemos dizer que este pedaço do concelho de

Vila Verde é, pela sua centralidade e pela proximidade da cidade de Braga, onde é fácil

chegar através da moderna e funcional ligação que a renovada EN 101 agora oferece, um pólo

em franco e rápido crescimento no seu núcleo urbano (freguesias de Barbudo e Vila Verde) e

uma quase estagnação nas restantes doze freguesias, por onde sopram fortes, mais a norte, os

ventos da desertificação, que varrem toda essa vasta zona do município vilaverdense.

Na verdade, ao crescimento vertiginoso da população na sede do concelho e na

freguesia que lhe está mais próxima (Barbudo), hoje de tal modo interpenetradas pelas suas

áreas urbanas que praticamente se confundem, não corresponde igual realidade nas demais

freguesias, verificando-se, apesar de um muito lento crescimento geral, uma diminuição

populacional em alguns casos (gráfico 1). Porém e como o demonstra a evolução dos dois

últimos censos (gráfico 2) o conjunto da população das treze freguesias constituintes do

Agrupamento de Escolas que estamos a

estudar cresceu de uma forma

verdadeiramente significativa no

último decénio (17,09%), apontando os

índices que sobressaem das inúmeras

construções que emergem no eixo que

liga Vila Verde a Braga e a sua rápida

Gráfico 1 - Freguesias do Agrupamento - Evolução Demográfica

26,10%

3,80%6,80%

3,60%

11,60%7,80%

2,60%4,70% 4,80% 6,50%

46,20%

-1,60% -2,40%

Barbud

o

Dossã

os

Esqu

eiros

Gême

Gondiã

esLa

nhas

Loure

ira

Nevog

ilde

Saba

riz

Soute

lo

Trava

ssós Tu

riz

Vila V

erde

1991/2001

11460

13419

1991 2001

Gráfico 2 - Evolução Global

População

Fonte: INE

Fonte: INE

Page 126: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

106

comercialização, para um contínuo aumento populacional, o que, naturalmente, colocará

novos desafios em toda a linha.

No que concerne aos aspectos sócio-económicos, o sector primário é, claramente, o

mais representado na estrutura produtiva da zona concelhia em apreço.

Segundo números avançados pelo PDMVV – Plano Director Municipal de Vila

Verde – mais de 40% da população activa vilaverdense que exerce uma profissão fá- lo no

sector primário, designadamente no ramo agro-florestal, pomares, vinha, horto-floricultura e

criação de gado, apesar de se conhecer hoje um acumular destas actividades com a de

trabalhos sazonais na construção civil, o que vai contribuindo, paulatinamente, para a

sobreposição desta àquelas outras.

Olhando, ainda, para os dados do PDM verifica-se que o sector secundário conheceu

um importante incremento no concelho nas duas últimas décadas, graças, sobretudo, à

construção civil. É, de resto, neste ramo que mais gente se ocupa, situando-se nas indústrias

têxtil do vestuário e alimentar os outros dois ramos mais importantes.

No sector terciário, hoje também em franco crescimento, cabe ao comércio a retalho,

aos restaurantes, à administração pública central e local e defesa nacional o estatuto de

alguma notoriedade.

Se o conjunto de actividades ligadas aos sectores primário e secundário se

desenvolve um pouco por todo o universo geográfico que estamos a caracterizar, já as que

respeitam ao sector terciário concentram-se, na sua esmagadora maioria, na zona urbana de

Vila Verde, que abrange, como já referimos, as freguesias de Barbudo e Vila Verde.

No domínio das infra-estruturas, a zona geográfica em apreço está cem por cento

coberta pelo fornecimento de energia eléctrica e recolha de lixos, bem como, na generalidade,

pelo abastecimento de água. A rede de saneamento básico cobre a totalidade da zona urbana.

Uma boa rede viária, composta pelas Estradas Nacionais 101 e 305 e inúmeras vias

municipais, assegura uma rápida mobilidade dentro das freguesias e, como já o dissemos, um

rápido acesso à cidade de Braga.

No campo assistencial, um novo centro de saúde e o hospital da Misericórdia

garantem um bom serviço de cuidados, que a já propalada célere ligação a Braga deixa

complementado com os recursos que neste âmbito aí estão instalados.

No domínio da protecção, uma unidade da Guarda Nacional Republicana e um Corpo

de Bombeiros Voluntários asseguram um serviço de segurança de pessoas e bens a contento

da comunidade que servem.

No referente à educação e cultura, desporto e tempos livres, o nosso objecto de

estudo oferece-nos algumas realidades que se podem revestir de grande utilidade (Anexo D).

Page 127: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

107

Na verdade, um considerável número de estruturas associativas ou similares oferecem campos

de acção e intervenção importantes para a prossecução dos objectivos norteadores do estudo

que temos em mãos, se potenciados e direccionados para a assunção de um papel mais

interventivo junto do estrato populacional mais pequeno.

Fica, deste modo, feita, ao correr da pena, uma caracterização abrangente do espaço

sociodemográfico que corporiza o nosso estudo de caso e dos organismos socioculturais

existentes no seu seio, que no seu todo constituem peças importantes para a construção de

uma engrenagem, que ajude a colocar em movimento um projecto que seja capaz de dar

resposta às inquietações que, particularmente, aqui carregamos.

2.2. O Agrupamento de Escolas da Sede – Vila Verde

2.2.1. Breve história e caracterização da estrutura

O Agrupamento Horizontal de Escolas da Sede – Vila Verde é constituído por 32

estabelecimentos de Ensino da rede pública (17 do Ensino Pré-Escolar e 15 do 1.º Ciclo do

Ensino Básico) das freguesias de Barbudo, Dossãos, Esqueiros, Gême, Gondiães, Lanhas,

Loureira, Nevogilde, Sabariz, Soutelo, Travassós, Turiz e Vila Verde (figura 2).

Vila Verde

Loureira

Soutelo

Turiz

Barbudo

Esqueiros Travassós Nevogilde

Gondiães Dossãos

Gême Lanhas

Sabariz

Fig.2 – Localização geográfica

Concelho de Vila Verde

Page 128: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

108

Esta estrutura organizacional da Escola Básica do 1.º Ciclo e da Educação Pré-

escolar públicos foi construída à luz dos princípios, e demais pressupostos, contidos no

Decreto-Lei n.º 115-A/98, de 4 de Maio, que se assume como documento amplo e matricial,

respeitador de todos os projectos de agrupamento de estabelecimentos de ensino da Educação

Pré-Escolar e do Ensino Básico que emanem de vontades localmente contextualizadas e que

sejam, também, a expressão de um desejo colectivamente assumido.

No caso em apreço, tal vontade consubstancia uma decisão que envolveu

docentes, autarcas e pais, ou seja, o essencial da comunidade educativa que o enforma.

2.2.2. Recursos Físicos

O parque escolar é formado por 31 edifícios que, de um modo geral, apresentam

estruturas satisfatórias, mas em situação confrangedora ao nível dos equipamentos que os

apetrecham. Está em fase de projecto a concepção e construção a breve trecho de um grande

empreendimento escolar na sede do concelho, que contemplará duas dezenas de salas para a

educação pré-escolar e 1.º ciclo do ensino básico e equipamentos conexos – campos

desportivos, pavilhão polivalente e salas de apoio às expressões – que constituirá,

indubitavelmente, um importante pólo de onde poderão emanar projectos de intervenção

extra-escolar junto dos alunos que a irão frequentar capazes de proporcionar uma boa resposta

à problemática dos tempos livres das crianças que irão constituir a sua população discente.

Nos 15 edifícios do 1º Ciclo do Ensino Básico, encontramos vários tipos de

construções que vão desde o Plano Centenário (PC), o Rural até ao Outro Tipo (OT) (Anexo

E), circundadas por logradouros quase sempre térreos e descobertos.

Relativamente aos edifícios onde estão localizados os Jardins de Infância

encontramos construções do tipo Associado, Outro Tipo (OT) e Isolado, sendo alguns deles

pré-fabricados em madeira (Anexo F).

Globalmente, estamos perante um conjunto de cinquenta e três salas que se

encontra desaproveitado 185 dias por ano e nos restantes 180 dias lectivos apenas conhece, na

maioria dos casos, ocupação durante a metade matinal de cada jornada.

Nesta conformidade, os 32 espaços públicos (salas, logradouros e demais

equipamentos) constituem um imenso manancial de recursos que, criteriosamente

aproveitados, podem tornar-se um valioso contributo para a emergência de locais que,

devidamente recontextualizados nas funções que podem ajudar a desempenhar, contribuirão

para a resolução de alguns dos problemas que hoje nos colocam os tempos não escolares dos

jovens.

Page 129: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

109

165

252

207 214

1.º ano 2.º ano 3.º ano 4.º ano

Gráfico 3 - Alunos (1.º ciclo)

Alunos

56

127145

1

3 anos 4 anos 5 anos 6 anos

Gráfico 4 - Alunos (pré-escolar)

Alunos

2.2.3. Corpo Discente

1167 são os alunos que frequentam as 62 turmas dos 32 estabelecimentos de

ensino pré - primário e do 1º Ciclo da estrutura onde vai incidir o nosso estudo (Anexos G e

H). A análise da sua distribuição por idades na educação pré-escolar ( Gráfico 4 ) e por anos

de escolaridade no primeiro ciclo ( Gráfico 3 ), permite-nos algumas leituras no que à

evolução da população escolar concerne, sendo que os dois primeiros patamares da

educação pré-escolar devem ser relativizados pois constituem áreas ainda não muito

procuradas pelo meio.

Fonte: AESVV (Agrupamento de Escolas da Sede -Vila Verde)

Fonte: AESVV

Page 130: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

110

O decréscimo de alunos matriculados à medida que se desce na idade, mostra-nos,

numa primeira leitura (Gráficos 3 e 5), que o corpo discente tende a reduzir-se num futuro

próximo79. No entanto, se forem consideradas as perspectivas de crescimento emergentes da

melhoria das acessibilidades à cidade de Braga, tornando Vila Verde num local mais

apetecível para fixação de novos residentes, poder-se-á, com alguma segurança, pensar que

essa tendência estatística não perdurará por muito mais tempo.

Não considerando os

alunos matriculados no ensino pré

- escolar, por não serem alvo de

retenção, verifica-se que o corpo

discente apresenta uma faixa de

alunos em situação de retenção

(Gráfico 6), que não sendo muito

elevada (11%), nem por isso

poderá deixar de ser motivo de

preocupação, no sentido de serem

79 Esta consideração centra-se apenas no 1.º ciclo do ensino básico, nível congregador dos primeiros quatro anos de escolaridade obrigatória e, concomitantemente, lugar por onde passam todas as crianças nessa idade escolar, ao contrário do que acontece na educação pré-escolar que ainda vive muito das necessidades da família, com a componente social a sobrepor-se à escolar.

55

127

148

147

174

166

160

48

14

5

1

3ANOS

4ANOS

5ANOS

6ANOS

7ANOS

8ANOS

9ANOS

10ANOS

11ANOS

12ANOS

13ANOS

Gráfico 5-Distribuição por Idades

Gráfico 6 - Distribuição por Situação Escolar

87%

2% 11%

SEM RETENÇÃO

COM APOIO

COM RETENÇÃO

Fonte: AESVV

Fonte: AESVV

Page 131: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

111

pesquisadas respostas, que, em primeira instância, deverão ser procuradas dentro da própria

escola, mas que se não esgotam aí, podendo constituir mais um acicate para a já proclamada

vantagem que da emergência de novos espaços educativos no domínio da ocupação do tempo

não escolar pode resultar para as crianças em geral e, particularmente, para as que disso mais

carecem, designadamente, as provenientes de meios familiares mais necessitados de onde

emergem, também, as situações de fraco aproveitamento escolar.

Reconheça-se, apesar disso, que o valor de 87% correspondente aos alunos em

situação de progressão normal constitui um indicador demonstrativo de alguma qualidade já

existente no processo de ensino –

aprendizagem proporcionado nos

estabelecimentos de ensino do

agrupamento. A este nível novas e

diferenciadas preocupações devem

nortear os planos de intervenção

junto das crianças no que respeita às

suas ocupações não escolares.

Em relação à distribuição

por sexo (Gráfico 7), esta aproxima-

se, no universo dos alunos do

agrupamento, de um equilíbrio.

Embora a percentagem dos

alunos do sexo masculino seja maior, a diferença fica-se apenas por dois pontos percentuais.

Finalmente, a evolução global do número de matriculados no universo do

agrupamento nos últimos cinco anos (Gráfico 8) evidencia um decréscimo muito significativo

(16,7%), que o recente aumento populacional revelado pelos censos de 2001 (gráfico 2) fará,

Gráfico 8 - Alunos matriculados (tendências)

916763

887 892 849

1998

-1999

1999

-2000

2000

-2001

2001

-2002

2002

-2003

Alunos matriculados

Gráfico 7-Distribuição por Sexo

51%

49%

MASCULINO

FEMININO

Fonte: AESVV

Fonte: AESVV

Page 132: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

112

provavelmente, inverter a breve trecho, sobretudo na zona urbana (gráfico 1) e no eixo

rodoviário para Braga.

2.2.4. Contexto familiar

O espaço geográfico das treze freguesias do concelho de Vila Verde que fazem

parte deste Agrupamento de Escolas caracteriza-se por ser bastante populoso a sul e com

fortes perspectivas de crescimento se atendermos à melhoria dos acessos à cidade de Braga.

Num território repartido entre o rural e o urbano, não será estranho constatar que a

ocupação profissional dos pais dos nossos alunos se estende por um leque bastante alargado

de actividades, com predominância nos operários, serviços e comércio (Gráfico 9). As

actividades ligadas ao sector produtivo e serviços são, portanto, aquelas que mais ocupam

profissionalmente os pais dos alunos deste agrupamento de escolas.

Por seu lado, apesar da existência de uma larga faixa de mães que trabalha fora de

casa em actividades ao nível dos serviços e da produção, a maioria dedica-se a actividades

domésticas, o que poderá significar que um grande número de alunos pode ter

acompanhamento familiar fora dos tempos lectivos.

0

50

100

150

200

250

300

350

400

AG

RIC

ULT

OR

/DO

ST

ICA

OP

ER

ÁR

IO

SE

RV

IÇO

S

CO

RC

IO

EM

PR

ES

ÁR

IO

IND

US

TR

IAL

INA

CT

IVO

RE

FO

RM

AD

O

OU

TRO

Gráfico 9 – Distribuição por Profissão

PAISMÃES

Fonte: AESVV

Page 133: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

113

Mais de metade dos pais tem idades compreendidas entre os 25 e os 35 anos e

apenas uma faixa muito reduzida apresenta idades superiores a 46 anos (Gráfico 10).

Apesar deste facto, constata-se um elevado número de pais com escolarização

baixa, situando-se a maior faixa nos intervalos compreendidos entre o 4.º e 6.º anos de

escolaridade (Gráfico 11).

Não contrariando a tendência nacional e europeia de redução da taxa de natalidade,

verifica-se que perto de dois em cada três dos alunos tem só um irmão (Gráfico 12)

<4º

4º 6º 9º 11º

12º

C.M

ÉD

IO

C.S

UP

ER

IOR

Gráfico 11- Habilitações dos Pais

PAIMÃE

Gráfico 12 – Média de Irmãos

Gráfico 10 – Idades dos Pais

Fonte: AESVV

Fonte: AESVV

Fonte: AESVV

Page 134: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

114

2.3. O Papel do Projecto Educativo ou

O Valor da Aposta no Trabalho de Projecto

Pela importância que hoje lhe é reconhecida na definição das políticas de intervenção

educativa de uma forma contextualizada e não apenas confinada à vertente curricular e

lectiva, o projecto educativo pode revestir-se de transcendente importância para a resolução

de algumas problemáticas da infância. No estudo de caso em apreço assim acontece, já que

toda a vida do Agrupamento de Escolas da Sede – Vila Verde é norteada pelos princípios

consagrados no seu Projecto Educativo e na prossecução das metas nele traçadas, onde o

essencial da problemática em estudo lá cabe por inteiro, conferindo- lhe um valor e uma

oportunidade inquestionáve is.

2.3.1. Génese da Escola de Projecto

No último quarteirão do século passado, o mundo ocidental conheceu, no campo

empresarial, o desenvolvimento da gestão estratégica, privilegiadora dos projectos de empresa

e da ampla participação dos trabalhadores em áreas tão diversificadas como a definição dos

objectivos e prioridades a atingir, onde a racionalização de recursos e a preocupação com a

qualidade ganham estatuto de grande importância na prossecução das finalidades subjacentes

à vida da organização.

Obviamente, a escola não ficou indiferente a este movimento em torno das

organizações e dos princípios que subjazem ao seu funcionamento.

Nos EUA, Dewey e o movimento da Educação Nova lançam as primeiras

experiências pedagógicas baseadas no trabalho de projecto, e o relatório Colemans espalha a

polémica ao questionar a validade do contributo da escola para se constituir como capaz de

fazer a diferença ao nível do sucesso dos alunos.

Na Europa, lança-se na Grã-Bretanha a ideia de uma nova sociologia da educação

centrada na escola e no currículo e os franceses promovem a descentralização administrativa e

propõem um modelo de escola caracterizado pela autonomia e pela participação da

comunidade.

Este movimento de renovação dos processos de gestão constitui-se, naturalmente,

como elemento impulsionador da necessidade de se definir, para as escolas, uma política

própria, que reflicta a sua individualidade.

Page 135: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

115

“O projecto educativo é o instrumento encontrado para levar cada escola a

harmonizar as suas acções internas e a aumentar a sua visibilidade, apresentando uma imagem

de funcionamento finalizado e coerente e promovendo, simultaneamente, a participação de

todos os intervenientes directa ou indirectamente relacionados com o processo educativo” (

Curado, 1994).

É a tentativa da organização das escolas acompanhar a evolução natural das

organizações em geral e encontrar os instrumentos de gestão capazes de dar tradução real a

esse desejo.

O projecto educativo de escola nasce, assim, da “conjugação da evolução da

investigação na área da sociologia da educação e da gestão empresarial, com as correntes

pedagógicas que se reclamam do trabalho de projecto” (Canário, 1992).

Portugal, também, não fica indiferente a esta vaga reformadora do planeamento e

da gestão das nossas escolas e, embora de uma forma lenta e tímida, todos nós vamos

adquirindo essa nova cultura de projecto, imbuída de uma concepção de escola radicalmente

diferente da que marcou entre nós os três primeiros terços do último século do segundo

milénio.

2.3.2. Consagração da Escola de Projecto Autónoma80

A tradução política desta nova concepção e dos princípios que lhe devem estar

subjacentes começa a obter merecimento entre nós por alturas da elaboração da proposta

global de reforma, depois vertida para a Lei de Bases do Sistema Educativo, que no seu artigo

43º consagra os princípios da democraticidade, participação e da descentralização, só

possíveis de operacionalizar com o projecto educativo de escola.

O Decreto-Lei n.º 115-A/98, de 4 de Maio, ao estabelecer o regime de autonomia,

administração e gestão dos estabelecimentos da educação pré-escolar e dos ensinos básico e

secundário, trouxe para a agenda educativa a escola de projecto e com isso o início de um

percurso que agora parece querer conduzir-nos para novos patamares de autonomia, onde esta

se poderá realizar de uma forma nunca antes permitida.

“A autonomia constitui o principal pressuposto para a formulação de um projecto

de escola” (Carvalho, 1993). Ambos são elementos indissociáveis deste tempo onde se tenta

afirmar e firmar uma nova escola - a escola de projecto.

80 Para além dos autores citados, encontramos em Alves (1992), Barroso (1993 e 1994), Canário (1994a , 1994b e 1997), Castro (1993), Costa (1992), Costa (1994), Macedo (1994), Madeira (1994) e Silva (1994), importantes contributos para entendermos a dimensão e o valor do projecto educativo.

Page 136: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

116

Esta constatação não nos pode levar à conclusão fácil de que uma norma qualquer

basta para trazer autonomia às nossas escolas.

Barroso (1996) diz que “a descentralização pode ser decretada, mas a autonomia

da escola constrói - se em grande parte, no local e com base na inovação organizacional.

Nem doutro modo poderia ser, já que, como atrás dissemos, o projecto educativo

se constitui como factor de realização da autonomia em cada escola, não fazendo, pois,

qualquer sentido “estandardizar” um modelo igual para todo o país, mas sim garantir o

preenchimento do espaço de autonomia que cada escola deve possuir e usar livremente.

“A autonomia afirma - se como expressão da unidade social que é a escola e não

pré - existe à acção dos indivíduos. Ela é um conceito construído social e politicamente, pela

interacção dos diferentes actores organizacionais, numa determinada escola” ( idem ).

O exercício de uma autonomia suficientemente ampla, para expressão de

verdadeiros projectos locais, não se consegue por meras intenções burocráticas e acções de

desconcentração administrativa. Como sustenta Sarmento “ a autonomia da escola é, antes de

mais, a cultura da autonomia” (1993: 42), constituindo esta perspectiva uma questão fulcral e

de afirmação da capacidade de aplicação de um projecto educativo, sem a qual este nunca

passará de uma mera declaração de intenções.

O exercício da autonomia em moldes que possibilite o nascimento de projectos

educativos verdadeiramente contextualizados, com a implicação dos diferentes interessados

no processo educativo, também reclama destes o uso de margens de autonomia própria.

Assim sendo, “a lógica que preside à descentralização da educação poderá

implicar a descentralização noutros sectores, e isso exige, depois, que a integração inter -

sectorial se faça a nível local, o que, aliás, poderá ser um caminho para a resolução de certos

problemas” ( Azevedo, 1996 ).

Efectivamente, quantos mais forem os parceiros autónomos que intervêm no

processo educativo e na construção do seu projecto em cada contexto, maior e mais

abrangente será essa autonomia.

Desta forma, tudo em geral e a educação em particular muito poderão ganhar

quando Portugal conhecer uma ampla reforma descentralizadora.

Doutro modo, a autonomia e os projectos a ela inerentes transportarão sempre

grandes limitações.

Entretanto, e apesar desta constatação, o tempo urge e importa, agora, que se

projecte o futuro usando as armas que temos, apesar de tudo poderosas e capazes de nos

ajudarem a construir uma nova escola.

Page 137: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

117

2.3.3. Contextualização da Temática

O Projecto Educativo do Agrupamento de Escolas da Sede - Vila Verde ao

proclamar a sua identificação com os princípios doutrinários atrás vertidos, assume-se como

co-construtor de uma escola outra, pretendendo constituir-se como centro gerador de uma

educação de qualidade onde o processo de ensino aprendizagem se faça com sucesso, mas,

também, capaz de ir mais além da sua função lectiva e curricular. Nesta última vertente cabe

por inteiro a problemática que nos ocupa, significando isso que a escola se abre, desse modo,

não só à comunidade onde se insere, mas essencialmente, à resolução dos problemas com que

esta se confronta no quotidiano.

Esta nova faceta com que a escola hoje nos aparece será, cremos, determinante

para o sucesso de novas políticas sócio-educativas para a infância por aí emergentes.

A construção de uma escola cada vez mais assumida como pólo de dinamização

local, elemento essencial no seio de cada comunidade onde se insere, capaz de equacionar e

ajudar a atacar os seus aspectos mais carenciados, será, quiçá, determinante para a sua própria

sobrevivência.

A sociedade, provavelmente, não tolerará muito mais tempo que a escola se

alheie das questões que hoje se colocam à e na infância e não se predisponha a emprestar o

seu saber à sua resolução a breve trecho.

A esta ameaça pode, estamos seguros, responder uma escola de projecto

autónoma e contextualizada, onde educar seja a palavra de ordem permanente.

2.4. As Actividades de Ocupação de Tempos Livres

À visibilidade que, neste domínio, nos sugere o considerável número de estruturas

potencialmente vocacionadas para o trabalho com crianças (Anexo D) não corresponde, como

veremos mais à frente de uma forma sustentada aquando da análise dos dados recolhidos

nesta vertente, igual realidade quanto ao número de jovens nelas envolvidos, nem tão pouco

delas emergiu ainda uma estrutura que possa promover a sua articulação com a dimensão e as

necessidades do meio onde se inserem.

No que às escolas básicas do primeiro ciclo concerne a realidade não é muito

diferente, antes pelo contrário. Nos planos de actividades por nós consultados respeitantes a

cada uma das quinze escolas do 1.º ciclo da estrutura em apreço inexiste qualquer

Page 138: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

118

planeamento de actividades extracurriculares e pós- lectivas para os seus alunos e, até, para os

próprios recreios de cada uma delas nada se regista em termos ocupacionais ou sequer de

mera gestão de espaços de liberdade para serem ocupados discricionariamente pelos alunos.

Aliás, os próprios espaços físicos exteriores (logradouros) e interiores poucas

potencialidades oferecem em matéria de equipamentos, constituindo, desde logo, o primeiro

grande impedimento ao desenvolvimento de muitas das actividades de ocupação de tempos

livres, sobretudo as que se inscrevem na vertente lúdica e desportiva, quiçá, neste âmbito, as

de maior valor educativo nas idades onde se situa o público-alvo do nosso estudo.

Não exageramos se dissermos que três ATL’s81, um curso de inglês de uma hora

semanal para cada criança82, cinco núcleos escutistas83 e uma escola de música para todas as

idades são um parco contributo para acudir a um enorme número de crianças em idade

escolar, que de uma maior abrangência dessas estruturas e da criação de outras quantas muito

poderiam, naturalmente, beneficiar.

Certamente que os indicadores de que mais à frente falaremos haverão de nos

confrontar com esta realidade, mostrando-nos a magreza do contingente de crianças que

ocupa o seu tempo para além da escola em contextos formais.

O reduzido número de equipamentos desportivos (Anexo I) constitui, finalmente,

mais uma dificuldade que se coloca no domínio da implementação de políticas e programas

de ocupação de jovens fora do contexto escolar.

3. OBJECTIVOS DO ESTUDO

O que já se disse acerca da actualidade de que se reveste toda a envolvente que subjaz

aos problemas que hoje socialmente se levantam em torno da (não) ocupação do tempo que

para além da escola e da casa os jovens têm que consumir em cada dia que passa e que

constitui, indubitavelmente, uma das problemáticas com que a infância ainda hoje se debate,

quiçá, uma das mais pertinentes, porque potenciadora de outras de índole mais grave, não

passará de mera retórica de circunstância se não procurarmos encontrar no terreno formas

sustentadas de lhe dar um encaminhamento consentâneo com as expectativas socialmente

depositadas num crescimento integral das nossas crianças que delas faça bons cidadãos

amanhã.

81 Localizados nas freguesias da Loureira e Vila Verde (2). 82 Que deixa de fora por falta de instalações duas freguesias (Gondiães e Sabariz). 83 Que das treze freguesias cobrem apenas cinco (Barbudo, Esqueiros, Loureira, Turiz e Vila Verde.

Page 139: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

119

Antes do mais, importará saber, com clareza e pela expressão da sua própria voz, por

onde, como e com quem andam os jovens da nossa pesquisa, sobretudo quando não estão na

escola ou em casa. Indagaremos, também, se gostam do que fazem ou se não fazem o que

gostam, e se quando o fazem o é na companhia de quem mais querem.

De caminho procuraremos perceber o grau de atenção que no campo institucional é

dispensado ou o que se perspectiva promover para responder a uma questão emergente e, por

isso, carecida de uma resposta social rápida e significativa, que se não fique por uma mera

intenção que, habitualmente, deixa tudo como está, senão pior porque desajustada no tempo.

Com tudo isto escalpelizado com minúcia intentaremos descortinar novos caminhos a

que pessoas comprometidas e empenhadas emprestarão, através de público testemunho, o seu

poder e saber, por forma a que possamos construir uma ideia que seja, simultaneamente, uma

achega capaz de dar um sentido a muito do tempo que os nossos jovens perdem

quotidianamente “por aí ” e, concomitantemente, o de apontar uma via para o nascimento de

novos espaços educativos concretos onde o tempo livre e o lazer existam de facto e se

cumpram com o sentido e valor adequados. Para além, obviamente, da consagração que tal

significará do cumprimento do efectivo direito ao lazer e ao prazer que a cada jovem a

organização dos adultos jurou pela lei fazer cumprir.

Basta-nos isto para considerarmos atingidos os objectivos que projectamos, ou seja, que

se constitua uma resposta a um problema socialmente pertinente no domínio da infância, sem

embargo de que reconheçamos que alguns outros nele caberiam também e que constituirão

certamente matéria que não deixaremos de registar quando em tempo oportuno nos

detivermos na definição de alguns prolongamentos que julgamos o presente estudo merecer

no futuro.

4. ALGUNS PRESSUPOSTOS DE ONDE PODEMOS PARTIR

O domínio do hipotético84 é susceptível de nos fornecer pistas que se podem mostrar

importantes para encontrar caminhos que nos ajudem a aportar a campos por onde seja

possível espraiar de uma forma significativa o conjunto de resultados a que chegamos e que

nos propusemos colocar por inteiro ao serviço de um propósito previamente assumido, que,

como no caso vertente, consubstancie a vontade expressa de contribuir para a resolução de

uma problemática atempadamente delineada e delimitada ao domínio infância.

84 Hipotético – que apenas existe como hipótese; hipótese – aquilo que é possível que aconteça ou se verifique, tendo em vista certas circunstâncias (cf. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, editado pela Verbo em 2001)

Page 140: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

120

Quivy e Campenhoudt defendem que “ a organização de uma investigação em torno de

hipóteses de trabalho constitui a melhor forma de a conduzir com ordem e rigor” e que, por

isso, “um trabalho não pode ser considerado uma verdadeira investigação se não se estruturar

em torno de uma ou várias hipótese” (1998: 119).

Tendo em consideração os objectivos que ao nosso estudo subjazem, tal qual o

afirmamos e enformamos noutro local, e a importância atribuída e reconhecidamente

dicotómica nos resultados a que pode conduzir no que respeita ao uso que dos tempos não

escolares é feito ou (não) proporcionado às crianças e, consequentemente, do que com isso e

para tanto poderá ser delineado no terreno, ajudará que ao percurso investigativo se arrolem, à

partida, algumas perspectivas que no domínio das hipóteses deixem transparecido algum

sentido que no final, acreditamos, a investigação nos possa conduzir. “A hipótese traduz, por

definição, este espírito de descoberta que caracteriza qualquer trabalho científico. O

investigador que a formula diz, de facto: ”Penso que é nesta direcção que é necessário

procurar, que esta pista será mais fecunda” (idem). Tal é, na realidade, o nosso desígnio.

Assim sendo, o estudo que nos propomos aqui desenvolver assenta num conjunto de

pressupostos que podemos sintetizar da maneira que se segue:

v O tempo que fica livre depois de as crianças irem à escola é por elas ocupado de

uma forma pouco significativa, quando não usado com fins inconfessáveis pelos

adultos ou até pelas próprias crianças. Como tal, a situação carece de um

planeamento e de uma consequente recontextualização;

v Há um consenso alargado junto da sociedade, quer no domínio institucional, quer

no da família, de que a problemática em estudo carece e merece uma abordagem

determinada, firme e urgente;

v O problema é de todos, porque a todos respeita, e, por isso, todos nele devem ser

envolvidos de uma forma activa e participante. Para problemas sociais reclamam-se

respostas sociais, que no caso que nos ocupará envolverão uma comunidade pré-

determinada;

v É pertinente ter sempre presente que se corre o risco de, perante tantas

preocupações, se conduzir a infância para uma institucionalização maciça, o que,

provavelmente, abrirá caminho ao crescimento de um negócio para outros em

prejuízo de uma resolução sustentada do problema;

Page 141: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

121

v Tudo ponderado, é possível avançar com uma ideia fulcral, contextualizada numa

realidade concreta, que seja a síntese do que atrás se disse, isto é, que consubstancie

uma proposta de resolução estruturada e potencialmente sólida do problema em

aberto, que faça da questão que a ocupação dos tempos não escolares dos jovens

coloca um pretexto para a emergência de novos espaços educativos e que possa, no

seu papel específico de estudo de caso, aproveitar a outros contextos e actores;

v Dada a diversidade de instituições públicas e privadas que se ocupam de crianças e,

concomitantemente, a forma desgarrada e avulsa com que a sua acção tende a fazer-

se sentir junto delas, afirma-se a necessidade de alterar este estado de coisas, por

forma a que nesta área tudo possa funcionar de uma forma mais articulada e

consistente;

v Apesar de tudo, a escola ainda emerge como uma organização credível junto da

sociedade e, por isso, como peça fundamental a ter na devida conta;

v Começa a estar enraizada na sociedade a ideia de que não é boa política, nem tão

pouco resulta, esperar que outros de fora venham, eventualmente, tentar resolver

problemas que localmente subsistem carecidos de uma resposta no terreno.

Será, pois, com base neste conjunto de pressupostos que nos propomos conhecer e

analisar a realidade em estudo e avançar com algumas ideias que temos como susceptíveis de

constituírem contributos para a resolução da problemática antes equacionada.

5. RECOLHA DE DADOS: Metodologia, sua Fundamentação e Tramitação

Processual

Perante a necessidade de explorar um terreno sobre o qual, na sustentação de Pinto

(1997: 185), não abundam ainda grandes dados, designadamente no que respeita às

actividades quotidianas, à brincadeira, ao acesso e frequência de instituições que promovam a

ocupação dos tempos livres, optamos por recorrer ao inquérito por questionário de

administração directa, por nós supervisionada, junto do universo de crianças anteriormente

referido, conscientes de que, assim, conseguiríamos obter o número suficiente e significativo

Page 142: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

122

de dados capazes de corresponder às nossas expectativas. Este instrumento de observação

(Anexo J) que nos permitirá, como referem Quivy e Campenhoudt (1998: 189), quantificar

uma multiplicidade de dados e proceder, por conseguinte, a numerosas análises de correlação,

foi concebido a partir de um questionário tradicional, formulando-o, todavia, numa linguagem

acessível ao público a quem é dirigido, alargando de uma forma significativa leques de

possíveis respostas e revestindo-o com motivos icónicos do agrado dos pequenos inquiridos,

por forma a torná-lo apelativo e, consequentemente, motivador.

Para a implementação e execução desta parte do estudo empírico houve necessidade de

montar uma logística complexa, dada a envergadura de meios que envolvia85.

Antes do contacto com as crianças, endereçamos ao Director Regional de Educação do

Norte um pedido formal por escrito (Anexo L), apresentando sumariamente os objectivos da

investigação e requerendo autorização para contactar as escolas frequentadas pelos alunos

envolvidos no estudo.

Obtido o assentimento oficial enviamos uma carta ao órgão de gestão do Agrupamento

a manifestar o nosso interesse em desenvolver uma investigação, apresentada como tendo por

objectivo a elaboração de um estudo sobre a vida quotidiana das crianças (Anexo M) e

acompanhada de um calendário das tarefas a desenvolver com as crianças dos vários

estabelecimentos de ensino.

Como última etapa deste percurso de preparação do terreno para chegar junto do

público-alvo, apresentamo-nos com o nosso propósito junto de cada um dos docentes que

leccionavam as dezoito turmas por onde se distribuía todo o universo dos alunos que iríamos

inquirir (Anexo N) e endereçamos a todos os seus pais e encarregados de educação uma

comunicação (Anexo O) dando conta do nosso propósito e, simultaneamente, solicitando a

necessária autorização para o concretizar.

Não poderemos nunca justificar algum eventual aspecto menos conseguido dos nossos

intentos com engulhos no caminho, tal foi a pronta e aberta colaboração com que da parte de

todos os envolvidos contamos nesta fase crítica do trabalho.

Posto isto, pudemos, finalmente, descer ao terreno, sem que antes tivéssemos aferido o

instrumento de recolha de dados com crianças não pertencentes ao nosso universo, onde nos

foi possível perceber que estávamos na posse de um recurso investigativo capaz de

desempenhar o papel que lhe cabe e, desse modo, responder aos nossos intentos.

85 15 escolas do 1.º Ciclo do Ensino Básico disseminadas por treze freguesias, 18 docentes do 4.º ano de escolaridade e cerca de 200 alunos e respectivos pais e encarregados de educação.

Page 143: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

123

No que às entrevistas concerne toda a estruturação dos procedimentos que tal acarretava

consubstanciou, naturalmente, diferentes cambiantes e preocupações das que nos ocuparam

anteriormente.

Desde logo o modelo a aplicar. Pensamos que o modelo de entrevista estruturada seria o

que melhor poderia corresponder ao que projectamos obter neste âmbito. Construímos um

guião (Anexo P) que distribuímos antecipadamente a cada um dos entrevistados, por forma a

que aquando do registo magnético cada um deles tivesse uma perspectiva clara do que se lhe

exigia. A abertura que, propositadamente, introduzimos na última das questões previamente

elencadas visou dar livre voz aos nossos interlocutores desta parte do estudo empírico,

procurando com isso colher as representações espontâneas que cada um deles se permitia

adiantar à volta da temática em apreço, consubstanciadoras da assunção de algumas opções

que nos pudessem indiciar pistas para as proposições que lá mais para o fim avançaremos

como achegas para a resolução da questão que nos vem ocupando.

Será na conjugação dos dados obtidos através destes dois instrumentos de recolha –

inquérito por questionário e entrevista – que procuraremos respostas para as inquietações

latentes ao longo do estudo numa área tão sensível para o crescimento dos nossos jovens.

Parece-nos, como sustenta Ferreira (1986: 195), que só a multiplicidade de fontes empíricas,

cada uma com a validade que lhe é própria, pode devolver-nos a multidimensionalidade das

relações sociais e com isso adquirir a capacidade de que necessitamos para moldarmos a

resolução das situações carecidas de acerto, aproveitando as sinergias que cada uma das partes

envolvidas comporta e que se podem tornar numa fonte importante de respostas certas e

apropriadas a cada circunstância ou permitir formar caminho que a tal nos possa conduzir.

6. INFORMAÇÃO RECOLHIDA: Tratamento, Ordenação e Apresentação.

O vasto conjunto de questionários preenchidos, perto de duas centenas, impôs o recurso

a uma análise estatística. Para o feito, o material recolhido foi tratado utilizando a ferramenta

de cálculo que enforma o programa informático de gestão e de análise de dados SPSS –

Statistical Package for the Social Sciences.

Os mais de nove mil registos que o total dos questionários aplicados contem foram

tratados em duas vertentes: uma centrada na particularidade de cada questão colocada e uma

outra nos diversos cruzamentos que as informações recolhidas sugerem, por forma a que se

encontrem pontos de intercessão convenientes aos nossos objectivos investigativos.

Page 144: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

124

Para se perceber e poder, assim, produzir uma análise interpretativa do essencial da

informação veiculada pelo conjunto das entrevistas, procedemos a uma análise do conteúdo

do corpus, que Berelson e Lazarsfeld definem como uma “técnica de investigação que visa a

descrição objectiva, sistemática e quantitativa do conteúdo manifesto da comunicação” (cit.

Gonçalves, 1998: 51). Não há modelos, sustenta Vala (1986: 104), em análise de conteúdo.

Segundo este autor as regras do processo inferencial que subjazem à aná lise de conteúdo

devem ser ditadas pelos referentes teóricos e pelos objectivos do investigador86. Assim o

fizemos em relação ao nosso trabalho, ou seja, intentámos direccionar a análise da informação

recolhida por forma a que os resultados daí apurados possam responder às inquietações que

estiveram na génese das questões que lhes deram origem, procurando, por isso e com isso,

novos caminhos para a problemática que nos tem absorvido desde o início do presente

trabalho.

No que se refere à ordenação de toda a informação recolhida, o processo a tal

conducente respeitou, num primeiro momento, a especificidade e objectivo próprios de cada

um dos instrumentos de recolha de dados utilizados e os consequentes resultados daí obtidos,

e procurou, num outro, as necessárias confluências que na oportunidade nos ajudaram na

obtenção dos resultados que do estudo empírico esperávamos colher.

O conjunto dos resultados a que chegámos após o estudo estatístico dos inquéritos será

seguidamente apresentado de uma forma descritiva e sistemática, recorrendo à expressão

gráfica dos dados e das consequentes conclusões que eles, naturalmente, permitirão avançar.

Sempre que se mostre conveniente, não enjeitaremos a oportunidade de adornar os

comentários emergentes da análise ao conteúdo das entrevistas com ilustrações, recorrendo a

figuras metafóricas que consubstanciem aquela que é a interpretação que alguns conteúdos

das informações nos parecem evidenciar em relação a alguns campos de análise.

Posto que ficou o essencial do que nos pareceu dever dizer-se acerca da estrutura que

suporta o estudo empírico desde a concepção até à conclusão passando pela sua

contextualização e implementação no terreno, deter-nos-emos, doravante, nos resultados que

conseguimos apurar.

86 Neste mesmo sentido aponta Bardin ao defender que “a intenção da análise de conteúdo é a inferência de conhecimentos relativos a.........” (1997: 38).

Page 145: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

125

CAPITULO V

ANÁLISE, INTERPRETAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Breve introdução

Quivy e Campenhoudt (1998: 216-222) sustentam que uma análise das informações

recolhidas deve passar por três operações:

v Preparação dos dados, que deve conter uma descrição onde nos é apresentada a sua

distribuição com a ajuda de quadros e/ou gráficos, e a agregação que deve

promover o seu agrupamento por subcategorias;

v Análise das relações entre as varáveis;

v Comparação dos resultados observados com os resultados esperados à luz dos

pressupostos de partida e a interpretação das diferenças.

Seguindo estes princípios norteadores, os passos que se seguem têm a pretensão de

trazer a lume todo o vasto conjunto de resultados a que nos conduziu o estudo empírico em

apreço, com as sua conexões e ilações que são possíveis de inferir a partir da análise cruzada

dos dados ou mesmo da sua extrapolação para campos que não eram perceptíveis, desde logo,

a partir de uma interpretação simplista das respostas às questões que lhes estiveram na

origem.

Naturalmente, que os resultados a que o estudo nos conduz não se aplicam senão ao

grupo estudado, embora se possa admitir que, para populações de características similares, o

estudo avance com análises e interpretações que podem constituir hipóteses passíveis de ser

aplicadas e prosseguidas em futuras investigações ou juntar-se a outras quantas que no género

venham a ser feitas, para, todas em conjunto, ajudarem a aclarar o mundo ainda obscuro que

envolve a problemática que nos vem ocupando como objectivo central deste trabalho de

investigação.

ANÁLISE DOS RESULTADOS DO INQUÉRITO

Na formulação do questionário com que inquirimos o universo desta vertente da

pesquisa foi nosso propósito delimitar, à partida, o espaço temporal que nos importava

Page 146: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

126

estudar, ou seja, o que, para além da escola, comporta o conjunto das actividades que nos

aparecem “como um lado visível da interacção social” (Pinto, 2000: 191) e, por isso, relevam

de sobremaneira para o fim último da investigação. Não desconsiderando a relevância do

papel particular de que para cada indivíduo se revestem as actividades que visam a provisão

de necessidades pessoais, tais como comer, dormir ou cuidar da higiene corporal, é nas

demais que encontramos os espaços de atritos mais acentuados e onde a acção socializadora

pode conhecer um sentido mais determinante, para o bem e para o mal.

A informação recolhida junto de todos os alunos do último ano do 1.º Ciclo do Ensino

Básico do Agrupamento de Escolas da Sede – Vila Verde baseia-se, como já o referimos, na

resposta a um questionário administrado a 198 crianças87. O objectivo da aplicação deste

instrumento de recolha de dados não era proporcionar descrições cronometradas e rigorosas

da ocupação do tempo, mas, tão-somente, referências para a construção de um mapa do

conjunto das actividades por onde as crianças vão gastando as longas horas que ainda lhes

sobejam entre as cinco que passam na escola e as de que necessitam para dormir e acudir às

suas necessidades fisiológicas.

1. CARACTERIZAÇÃO DO PÚBLICO-ALVO

Gráfico 13 - Distribuição da amostra por idades

124

56

9

1

8

0 50 100 150

8 anos

9 anos

10 anos

11 anos

12 anos

Fonte: Questionário

O universo das crianças a quem passamos o inquérito tem idades compreendidas entre

os oito e os doze anos, centralizando-se o seu núcleo mais numeroso nas de nove anos (124),

87 O leitor mais atento encontrará uma discrepância entre o número de alunos do 4.º ano de escolaridade referenciados no mapa caracterizador do corpo discente do Agrupamento (Anexo H) e o número investigado (198). Tal diferença corresponde ao número de crianças com deficiências comprovadas ou necessidades educativas especiais tais que, apesar de matriculadas no 4.º ano por imperativos de prover a sua evolução em matéria de aquisição de competências sociais, não são capazes de responder de uma forma significativa ao inquérito em questão.

Page 147: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

127

seguido do de oito anos (56), totalizando esta faixa etária um pouco mais de 90% de todo o

grupo (gráfico 13).

Gráfico 14 - Distribuição da amostra por sexo

rapazes54%

raparigas46%

Fonte: Questionário

A repartição por sexos, contrariamente ao sugerido pelos indicadores de caracterização

de todo o universo de alunos do Agrupamento, é claramente dominada pelo número de

rapazes, superior em oito pontos percentuais ao de raparigas (Gráfico 14).

Malgrado a proveniência de meios familiares de baixa condição social, como a seguir

perceberemos quando abordarmos o universo das ocupações profissionais dos pais, não deixa

de nos merecer um olhar curioso o que as raparigas projectam para o futuro quando são

chamadas a manifestar a sua preferência por uma profissão (Gráfico 15).

Gráfico 15 - O que gostavas de ser

5,6

24,4

15,6

7,8

30

2,2

Médica

Veter

inária

Cabele

ireira

Ed. In

fância

Profes

sora

Enfer

meira

Raparigas

Fonte: Questionário

Já os rapazes (Gráfico 16) não fogem ao inevitável desejo, para a sua idade, de virem a

ser jogadores de futebol, repartindo-se os demais por um enorme elenco de actividades

profissionais, muitas delas correlacionadas com o trabalho que os seus pais desenvolvem

quotidianamente.

Se é verdade que neste domínio a expressão das crianças é condicionada pelo

imaginário infantil e pelo universo do seu mundo da fantasia e das brincadeiras do dia a dia,

não deixará, também, de constituir um bom ponto de partida para lhes conquistar o empenho e

Page 148: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

128

o gosto pelo trabalho educativo, que a satisfação das suas elevadas expectativas reclama e

requer como pressuposto incontornável para lá chegarem um dia.

Gráfico 16 - O que gostavas de ser

5,6

19,7

7,45,6

4,65,6

3,7 3,7 3,72,8 2,8 2,8 2,8 2,8

Bom

beiro

Joga

dor

Méd

ico

Pol

ícia

Trol

ha

Mec

ânic

o

Téc

n.C

ompu

t.3,7

Car

pint

eiro

Cav

alei

ro

Pro

fess

or

Ser

ralh

eiro

Mot

oris

ta

Eng

enhe

iro

Arq

uite

to

Rapazes

Fonte: questionário

Se mais não fora, o valor motivacional destes desejos futuros quanto à profissão que

gostariam de ter na adultez constitui matéria que importa conhecer na realidade.

2. CONTEXTO FAMILIAR: ASPECTOS SÓCIO-DEMOGRÁFICOS

Gráfico 17 - Constituição dos agregados familiares

93,40%

99,50%

86,30%

21,80%

6,60%

Pai

Mãe

Irmãos

Avós

Tios

Fonte: questionário

Uma análise do gráfico 17 indica-nos claramente que predomina no espectro familiar

do universo em estudo, de uma forma acentuada pela grandeza dos números que envolve, o

tipo de família nuclear, com a persistência de uma ainda significativa presença de lares com

evidente pendor de família alargada aos ascendentes e, em menos número, aos parentes

colaterais.

Page 149: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

129

Verificamos, também, a existência de lares monoparentais, por falecimento de um dos

progenitores ou, como acontece na maior parte dos casos, por divórcio (doze dos catorze

casos apurados).

Ao nível da escolarização parental (gráfico 18) constata-se uma acentuadíssima mancha

formada pelo elenco dos que possuem a escolaridade obrigatória (4.ª classe e 6.º ano) e um

apreciável número com formação escolar ao nível do 9.º ano.

Gráfico 18 - Grau de escolaridade dos pais

Analfab

etos

4.ª Clas

se6.º

Ano

9.º A

no

11.º A

no

12.º A

no

Bacha

relato

Licec

nciatu

ra

Pai

Mãe

Fonte: questionário

Ao pouco significativo número dos pais que não possuem qualquer escolarização

corresponde igual realidade no que concerne ao seu patamar superior, podendo-se afirmar

que, neste âmbito, os extremos se tocam quanto ao panorama que nos apresentam.

Gráfico 19 - Profissão do pai

39,90%

7,10%4,50% 3,50% 2% 3% 3% 3%

7%11,50%

1,50% 1%

13%

Trolha

Comerc

iante

Motoris

ta

Serra

lheiro

Lavra

dor

Emp.F

abril

Mecân

ico

Feira

nte

Func

. Púb

lico

Emp. C

omérc

io

Metalur

gico

Fotóg

rafo

Outros

%

Fonte: questionário

Page 150: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

130

Gráfico 20 - Profissão da Mãe

13,10%8,60% 6,60% 4% 3% 2% 1,50% 3,50%

17,30%

40,40%

Costur

eira

Emp. F

abril

Comerc

iante

Emp. B

alcão

Empre

gada

Adminis

trativa

Profes

sora

Jorna

leira

Func

. Púb

lica Outros

Domés

tica

Fonte: questionário

Uma leitura dos gráficos 19 e 20 permite-nos conhecer com detalhe o universo das

profissões onde os pais promovem a angariação dos meios de subsistência familiar. A

esmagadora maioria dos pais são trabalhadores por conta de outrem, com uma presença muito

acentuada no sector da construção civil e alguma visibilidade no domínio da actividade

comercial.

Quanto às mães constata-se que dois quintos delas são domésticas e as demais estão

profissionalmente repartidas por inúmeras actividades, onde a ligação ao emprego fabril

aparece à cabeça. Número curioso é a percentagem das que trabalham por conta própria, quer

como costureiras, quer, ainda, como comerciantes, sendo que estas últimas são essencialmente

feirantes, mas que, ao contrário dos pais, os filhos não referenciaram como tal na forma como

nas respostas aos questionários descreveram a profissão da mãe.

Fonte: questionário

Globalmente, a realidade mostra-nos (gráfico 21) que em quarenta por cento dos lares

de onde provêm as crianças investigadas a mãe não exerce nenhuma profissão, o que, de certo

Gráfico 21 - Ocupação dos pais

Ambos com emprego

60%

Mãe Doméstica40%

Page 151: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

131

modo, se pode constituir como um elemento de incontornável significado para o nosso estudo,

sobretudo, porque, neste caso, o imperativo de guarda das crianças não subjaz como razão

principal para uma ocupação a todo o preço do tempo que as crianças têm livre para além da

escola.

3. OCUPAÇÕES ESCOLARES DAS CRIANÇAS

Os 180 dias que dura o ano lectivo das crianças questionadas, que se estende de meados

de Setembro até fins de Junho, não são preenchidos de uma forma uniforme no que respeita

ao seu uso quotidiano (quadro10).

Quadro 10 Cumprimento da componente lectiva

Turno Frequência %

Manhã 113 57,7%

Tarde 42 21,2%

Normal (manhã e tarde) 43 21,7%

Fonte: Agrupamento de Escolas da Sede – Vila Verde

Mais de três quartos das crianças só têm escola num dos turnos, sendo que destas mais

de 72% (113) vão às aulas durante o período da manhã.

Significa isto que 155 das 198 crianças investigadas têm metade do dia livre durante

metade do ano e o tempo todo liberto das ocupações escolares durante a outra metade.

A pertinência destes números constitui um inegável reforço dos contornos que

enformam a problemática que está debaixo da nossa mira investigativa, deles decorrendo a

dimensão que a questão em aberto adquire.

4. OCUPAÇÕES NÃO ESCOLARES DAS CRIANÇAS: ALGUNS INDICADORES

São diferentes os espaços que enformam os quadros de vida dos indivíduos. Em termos

da organização da vida quotidiana, sustentada em ritmos temporais – diários, semanais ou

anuais – poderemos considerar, antes de tudo, que, normalmente, uma parte do dia a dia das

crianças é ocupada de uma forma significativa em casa com o sono e a provisão das suas

Page 152: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

132

necessidades fisiológicas (alimentação, dormir e cuidados do domínio corporal), através das

quais promove o seu restabelecimento para outras tarefas do quotidiano. Esta ocupação pode,

como sustenta Pinto (2000: 192), compreender, em média, um gasto de tempo entre nove e

doze horas diariamente, embora com variações ao longo da semana.

Paralelamente a estas actividades, a escola, tornada obrigatória nas sociedades

modernas, ocupa as crianças, como já vimos, efectivamente, cinco horas em cada dia útil.

O que se segue consubstancia a apresentação de alguns indicadores acerca das

actividades ocupacionais das crianças estudadas, destacando as que estão além das

anteriormente focadas, ou seja, as que ocorrem para lá da escola e do tempo que cada criança

gasta para prover as suas necessidades pessoais mais elementares.

Uma leitura atenta do gráfico 22 mostra-nos, desde logo, uma outra realidade marcante

do quotidiano dos jovens investigados, multifacetada e repartida de uma forma muito

diversificada por um considerável universo de actividades por onde se estende cada um dos

seus dias.

À laia do que já confirmaram outros estudos, Sarmento (1999) e Pinto (2000), entre

outros, a brincadeira assume um dos lugares de destaque nos resultados que a pesquisa aqui

nos revela. Terreno privilegiado na autonomização das crianças e interacção com os seus

pares, a brincadeira porque, normalmente, englobando um vasto conjunto de actividades

autodeterminadas pelas crianças e decorrendo num espaço de liberdade onde não existe a

acção directa dos adultos e num tempo usado de uma forma discricionária, assume-se, aqui,

como um importante espaço de lazer, com toda a carga positiva que tal representa para o

processo desenvolvimental dos seus usurários. Note-se que apenas três das crianças inquiridas

nos disseram que, de facto, nunca brincavam. Em termos percentuais a brincadeira é apenas

suplantada pela actividade “Fazer TPC”, que colherá tal destaque, quiçá, como consequência

directa do contexto em que ocorreu a passagem dos inquéritos em apreciação. Registo

importante para o apreciável número que brinca habitualmente na rua, sobretudo para os que

referem fazê- lo “muitas vezes”, já que é a este nível que grande parte da problemática da

ocupação dos tempos livres se coloca de uma forma mais preocupante nos tempos que

correm.

Um outro aspecto que ressalta da análise em apreço tem a ver com a elevadíssima

percentagem de crianças que refere ver TV “muitas vezes”, sendo sintomático que neste

campo nenhuma criança refira que “nunca” o faz.

Deveras significativo é, também, o número de crianças que frequenta de uma forma

assídua a catequese, naturalmente fruto da forte presença da Igreja Católica no quotidiano das

Page 153: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

133

famílias nesta zona, onde são conhecidas as maiores taxas de participação e práticas religiosas

do país.

Fonte: questionário

Alguma referência merecem, sem dúvida, os números indicadores das crianças que se

ocupam “muitas vezes” de tarefas domésticas, quer na ajuda directa no trabalho de casa, quer,

também, nos cuidados dispensados aos animais aí existentes.

Significativa, ainda, a quantidade de crianças com uma presença acentuada nos seus

quadros de vida de espaços para passear e ouvir música, actividades de que referem ocupar-

se, também, “muitas vezes”.

Em domínios que podemos reputar como portadores de algum “deficit” no que concerne

à percentagem de crianças neles envolvidas, a prática desportiva e a aprendizagem de uma

língua surgem-nos como as actividades ainda com alguma expressão, caindo redondamente

esta apreciação para indicadores muito baixos quando nos detemos no panorama que é

oferecido pela frequência com que as crianças se ocupam com actividades tão importantes

Gráfico 22 - Actividades ocupacionais das crianças fora da escola

4,50%

44,30%

22,80%

6,10%

25,30%

76,30%

79,80%

10,60%

82,30%

27,80%

32,30%

1,50%

36,80%

7,10%

40,90%

17,70%

3%

2%

46,30%

50,30%

47,50%

46,50%

6,60%

26,80%

7,10%

33,30%

50%

23,70%

24,70%

49,50%

63,60%

4,50%

38,90%

28,30%

46,50%

52%

9,30%

26,90%

46,50%

28,30%

21,70%

16,60%

62,60%

10,60%

38,90%

45,50%

43,90%

73,70%

13,60%

29,30%

95,50%

20,20%

71,70%

35,90%

44,90%Ajudar Trabalho de Casa

Tratar dos Animais

Ver TV

Jogar Computador

Fazer TPC

Ler Livros

Ler Jornais ou Revistas

Brincar em Casa

Ir ao Inglês

Passear

Praticar Desporto

Ir à Música

Ir à Catequese

Ir aos Escuteiros

Ir ao ATL

Brincar na Rua

Ouvir Música

Ver Desporto

Ir ao Cinema

Nunca

Poucas Vezes

Muitas Vezes

Page 154: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

134

como o são ler, jogar computador ou ir ao cinema, já para não falarmos na muito reduzida

expressão que adquire a percentagem das que frequentam espaços institucionais (escutismo,

ATL, música e inglês).

5. SENTIMENTO MANIFESTADO PELAS CRIANÇAS FACE ÀS SUAS ACTIVIDADES

5.1. Actividades que mais ocupam as crianças

Gráfico 23 - Actividades que ocupam mais tempo

0,00%

2,00%

4,00%

6,00%

8,00%

10,00%

12,00%

14,00%

16,00%

18,00%

20,00%

Faze

r TPC

Aj. Cas

aVer

TV

Ir Cate

ques

e

Prat.

Desp.

Ouvir M

úsica

Ler L

ivros

Brinca

r

Brinca

r na R

uaPa

ssea

r

Joga

r Com

putad

or

Dados globais

Pais empregados

Fonte: questionário

Quando chamados a pronunciar-se acerca das actividades que lhes ocupam o quotidiano

fora do contexto escolar, os nossos pequenos interlocutores dividiram-se na forma como

abordaram a questão e na valorização que a cada uma das suas componentes entenderam dar

(gráfico 23).

No que respeita à sensação que tinham quanto às actividades que lhes ocupavam mais

tempo – aqui importava mais este princípio do que a simples contagem cronometrada do

tempo realmente gasto – a generalidade das crianças indicou, logo à cabeça, as tarefas de

fazer os deveres e de ajudar no trabalho de casa, aparecendo logo a seguir o consumo de

televisão. A catequese e os jogos de computador aparecem, também, com registos a ter em

Page 155: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

135

conta, logo depois do tempo que as crianças dizem ocupar a ouvir música. Estranhamente, ou

talvez não face à imensidão de ocupações que têm de cumprir, as crianças não valorizaram

muito o tempo que gastam a passear, a praticar desporto e a brincar.

Gráfico 24 - Actividades que ocupam mais tempo

0

510

15

2025

30

3540

Fazer osdeveres

Aj.Trab.Casa

Ver TV PraticarDesporto

Tratar dosAnimais

Ir àCatequese

Ir ao Inglês OuvirMúsica

Masculino

Feminino

Fonte: questionário

Introduzindo na análise duas varáveis potencialmente interferentes no apuramento de

resultados88 – género das crianças e o emprego dos seus pais – os resultados (gráficos 23 e 24)

não sofrem variações muito acentuadas no tipo das actividades referidas como as que mais

tempo consomem às crianças, com um ligeiro aumento na ajuda em casa por parte das

crianças com ambos os pais empregados e, ainda, uma quebra no tempo tido como gasto a

ouvir música, mantendo-se os demais dados apurados muito próximos uns dos outros. O

mesmo não acontece quando apenas colocamos em confronto os dados por sexos (gráfico 24).

Aqui, há uma clara supremacia das raparigas face aos rapazes no tempo gasto a “a ajudar em

casa” e a “ver TV”, contrariamente aos demais itens onde a situação se inverte, com alguma

expressão, até, na prática desportiva.

5.2. Gostos que despertam nas crianças

Brincar e praticar desporto são as actividades que as crianças referem como as que mais

gostam de fazer, seguidas em paridade pelo ver televisão, ouvir música, ir ao cinema e

passear, ou seja, por actividades onde a livre recreação está presente de uma forma indelével,

com o “fazer TPC” a aparecer de permeio como elemento que as crianças não desdenham de

todo. Significativa a baixa estima que os pequenos inquiridos manifestam por algumas das

actividades de cariz institucional – inglês, escuteiros e música – e, neste âmbito, a reduzida

expressão que o gosto pela frequência do ATL tem junto das crianças (gráfico 25).

No demais, ficam os dados que a partir da separação dos sexos apresentam as

oscilações que o gráfico 25 evidencia, com os rapazes a sobrepor-se às raparigas no gosto pela

prática desportiva e pelo jogo do computador e estas a eles nas horas que passam em frente ao

pequeno écran, a fazer os deveres escolares, a passear e a frequentar o escutismo. Constatou- 88 Que referiremos sempre e só quando os valores em apreço nos pareçam possuir significado a não depreciar.

Page 156: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

136

se, ainda, nesta área, que os valores não oscilavam entre os lares onde as mães não têm

trabalho e os restantes.

Fonte: questionário

O mesmo se poderá dizer quanto à apreciação nega tiva que as crianças manifestam a

propósito das actividades de que se ocupam no dia a dia. Aqui (gráfico 26), é novamente o

género que discrimina os valores apurados, que não a hierarquia das actividades menos

preferidas, que tem valores semelhantes seja qual for a variável que se lhes aplique. Todos os

valores nos demonstram alguma disparidade entre os sexos, com acentuada separação quando

falamos em “ver desporto”, onde as raparigas se sobrepõem aos rapazes, enquanto estes lhes

ganham no maior enfado que lhes causa “tratar dos animais” ou “ir à catequese”. No resto, é

semelhante o pouco apreço que uns e outros manifestam pela leitura, ajudar no trabalho de

casa e ir ao inglês, mais naqueles do que neste. Paradoxalmente, aparecem algumas crianças a

declarar o seu pouco gosto pela brincadeira, em casa ou na rua.

0

5

10

15

20

25

30

35

PraticarDesporto

Brincar JogarComputador

Ouvir Música Ver TV Fazer TPC Passear Ir Escuteiros Ir ao ATL

Gráfico 25 - Actividades que mais gostam de fazer Rapaz

Rapariga

Page 157: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

137

0

5

10

15

20

25

Ler Jornais eRevistas

Ajudar Trab.Casa

Tratar Animais Ir à Catequese Fazer TPC Brincar em Casa Ver Desporto Brincar na Rua Ir ao Inglês

Gráfiico 26 - Actividades que menos gostam de fazer

Rapazes Raparigas

Fonte: questionário

5.3. Um olhar particular sobre o ATL

Pela particular importância que hoje lhes está atribuída, as “actividades de tempos livres

(ATL’s) ”, que são desenvolvidas no seio do movimento associativo, quase sempre da

responsabilidade de organismos com o estatuto de instituição particular de solidariedade

social (IPSS), mereceram-nos um particular interesse como matéria a questionar.

Gráfico 27 - Afazeres no ATL

Outras

Jog. Vídeo

Prat. Desp.

Brincar

TPC

Fonte: questionário

Os resultados do inquérito evidenciam que apenas 43 dos 198 meninos do nosso

universo de investigação frequentam normalmente o ATL (21,7%). Aí, o essencial das

actividades desenvolvidas (gráfico 27) reparte-se pelo sempre presente “TPC e pela

Page 158: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

138

brincadeira em larga escala e, com menos amplitude, pela prática desportiva e jogos de vídeo.

Refira-se, por que com particular significado, que desta pequena percentagem de crianças que

frequenta o ATL (16%) só uma pequena fatia (4%) diz fazê- lo com gosto (gráfico 25).

37,40%

34,30%

24,70%

17,90% 17,20%

Pai Mãe Amigos Irmãos Primos

Gráfico 28 - Com quem gostavam de passar mais tempo

Fonte: questionário

5.4. Companhias mais preferidas e desejadas

Invariavelmente e em qualquer um dos cenários estudados (género e emprego dos pais),

os nossos pequenos interlocutores manifestaram um firme desejo de ter mais tempo para

passear com os seus progenitores (gráfico 28) e dentre estes, embora de forma não muito

expressiva, com o pai, provavelmente fruto da presença mais frequente da mãe em casa em

função da existência de um elevado número de domésticas. Entre os pais e os irmãos e

primos, estes ocupando a cauda da hierarquia aqui estabelecida, aparecem os amigos a

conquistar a preferência de um quarto das crianças investigadas enquanto pessoas com quem

estas gostariam de passar mais tempo. De qualquer modo, registe-se o significativo papel que

à família é consignado nas interacções do quotidiano, mas que hoje se encontra, por motivos

já aflorados, em alguma perda, a compaginar com o lugar de destaque que adquiriu nos

desejos manifestados pelas crianças, aqui plenamente demonstrado.

Instadas a pronunciar-se sobre o que gostavam de fazer com as pessoas com quem

haviam manifestado desejo de passar mais tempo, as meninas colocaram o “passeio”, “a

brincadeira” e o “ouvir música” no topo das suas preferências, enquanto que os rapazes deram

uma substancial primazia ao “jogar à bola” e ao “andar de bicicleta”, actividades que as

meninas referiram de uma forma quase residual (gráfico 29). Interessante, ainda, o valor

baixíssimo que os rapazes atribuem ao “ir ao cinema”, aqui tão do agrado do público

feminino.

Page 159: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

139

Gráfico 29 - O que gostavam de fazer com essas pessoas

0% 20% 40% 60% 80% 100%

Brincar

Passear

Jogar à Bola

Andar Bicicleta

Ir ai Cinema

Rapazes

Raparigas

Fonte: questionário

5.5. Companheiros de brincadeira

Dados relevantes, face à inegável importância que no desenvolvimento do indivíduo

tem a relação interpares, constituem, naturalmente, os que se referem à tipificação dessa

presença incontornável na vida da criança que é a brincadeira e os companheiros com quem a

criança a partilha.

0

50

100

Só Irmãos Pai Mãe Amigos Primos

Gráfico 30 - Com quem brinca Rapazes

Raparigas

Fonte: questionário

O gráfico 30 evidencia-nos o lugar de destaque que amigos e primos ocupam nesta

vertente, aparecendo, também, com pendor acentuado o núcleo familiar mais chegado. De

registar o significativo número de meninas e meninos que nos disseram brincarem sozinhos e

a grande proximidade que todos os valores apresentam quanto à sua distribuição por sexos.

5.6. Gostos e desgostos

Uma outra realidade que os dados nos revelam prende-se com as actividades que os

jovens fazem a contragosto e que, por isso, se constituem como momentos de grande tensão

diária, mas, também, disciplinadores de comportamentos e atitudes que ajudam a criança a

crescer num mundo onde nem sempre podemos fazer o que queremos.

O trabalho em casa emerge de uma forma esmagadora como rei das actividades

malquistas pelas crianças investigadas, no caso em apreço envolvendo três quintos delas.

Segue-se, a considerável distância, o “TPC” que obriga o quotidiano de cerca de um quinto

Page 160: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

140

dos jovens inquiridos. Curiosos os quase 5% de crianças que não gostam de se levantar cedo e

a meia dúzia delas que vai à escola a contragosto (gráfico 31).

Gráfico 31 - O que faz e não gosta de fazer

59,60%

18,10%

4,80%

3%

1,20%

1,20%

1,20%

1,20%

1,20%

8,50%

Trabalhar em casa

Fazer TPC

Levantar cedo

Ir à escola

Brincar em casa

Brincar só

Ver TV

Jogar à bola

Praticar desporto

Outros

Fonte: questionário

Os demais indicadores apresentam valores quase sem expressão e o conjunto de todos

eles não evidencia oscilações significativas quando analisados e confrontados os resultados

emergentes da introdução das variáveis “sexo” e “emprego dos pais”.

Finalmente, um olhar sobre o grau de satisfação que o quotidiano e as actividades que o

enformam provocam nas crianças, sobretudo face às respostas que vai dando ao imaginário de

cada uma delas e aos desejos que lhe estão subjacentes.

Fonte: questionário

Os dados que corporizam o gráfico 32 mostram-nos que, grosso modo, as crianças não

dispõem de tanto tempo quanto queriam para um conjunto de actividades que, apesar de

praticadas com a dimensão já anteriormente evidenciada, aparecem aqui no topo das citadas

0% 2% 4% 6% 8% 10% 12% 14% 16% 18%

Brincar

Praticar desporto

Jogar computador

Passear

Andar de bicicleta

Gráfico 32 - O que gostava muito de fazer nos tempos livres

Page 161: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

141

como ainda desejadas numa hipotética auto-escolha do que “gostavam muito de fazer nos

tempos livres”.

De resto fica confirmada uma espécie de núcleo duro das actividades que fazem a malta

mais feliz, com a novidade de “andar de bicicleta”, hoje tão na moda junto dos miúdos e dos

graúdos.

6. UMA LEITURA DOS RESULTADOS DO INQUÉRITO

Os dados atrás apresentados espelham aquilo que nos pareceu ser o essencial que o

tratamento estatístico dos registos saídos do inquérito permitiu extrair de mais sólido à luz da

consistência dos números recolhidos e apurados.

Olhando, agora, em profundidade para o quadro geral que temos, assim, traçado, é

possível vislumbrar, escondidas por detrás da aparente linearidade e singularidade das

realidades antes narradas, outras imagens do quotidiano das crianças que inquirimos, que,

desocultadas, permitem perceber com mais clareza a realidade que nos interpela e, enquanto

tal, nos convocou para esta empreitada de lhe procurar uma resposta, que se assuma como

contributo válido para resolver os problemas que lhe subjazem.

Uma primeira leitura decorrente dos resultados que apresentamos centra-nos, desde

logo, no contexto familiar. O panorama coloca-nos, à partida, perante um quadro fortemente

dominado por lares onde se adivinha uma baixa condição social, que os padrões de

empregabilidade e os quarenta por cento de lares só com um dos cônjuges a trabalhar

indiciam. Como sustenta Formosinho (1987: 17) a posição social dos alunos influencia

grandemente o seu (in) sucesso escolar, sobretudo quando são provenientes de famílias de

condição sócio-económica pouco desafogada, no seio das quais se desenvolve uma educação

informal deficiente e onde, por isso, minguam as preocupações com a promoção e a elevação

do nível educacional dos seus filhos. É claro que esta perspectiva não deve ser focalizada

somente na escola, colocando-se, naturalmente, no campo da educação extra-escolar, quiçá

aqui com maior acuidade ainda, dada a sua condição de não obrigatoriedade, sendo sensato

admitir-se que não devemos esperar das famílias maior empenhamento na resolução da

problemática dos tempos livres do que aquele que a sua condição sócio-económica sustenta

ou a mera necessidade de guarda dos filhos de muitas delas reclama. Se é verdade, como diz

Leandro (1994), que cabe à família o papel de primeiro educador, também não o é menos que

o desempenho de tal estatuto estará sempre umbilicalmente ligado à sua capacidade para o

poder exercer convenientemente, o que, como se percebe, nem sempre é possível, quantas

vezes, também, mais por omissão do que por falta de vocação. É que, tão ou mais importante

Page 162: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

142

do que educar é saber promover a educação, ou seja, procurar os caminhos que a isso podem

conduzir, o que não é possível acontecer se tal não corresponder às aspirações e anseios que

as famílias depositam na preparação dos seus jovens membros para a vida89.

Ainda dentro do contexto familiar parece-nos ser de reter o facto de um em cada cinco

dos lares de onde provêm as crianças estudadas albergar no seu seio avós, o que, por si,

justificará alguma despreocupação que aí se possa sentir à volta da ocupação dos tempos não

escolares dos jovens, que não, porventura, do seu valor educativo, que é a perspectiva que

mais interessa ao nosso estudo.

Se o quadro familiar traçado é, genericamente, como o defendemos, merecedor de um

olhar atento, particularmente no que concerne à sua sensibilização para o envolvimento em

projectos que, como atrás o sustentamos, extravasam o seu horizonte em relação ao que

perspectivam para a formação integral dos seus filhos, o panorama que nos oferece a situação

real, à luz dos indicadores com que descrevemos o quotidiano das crianças estudadas fora da

escola, conduz-nos, também, a algumas leituras, que constituem outras tantas caracterizações

da situação no terreno que temos andado a pisar.

43,90%

55,10%

10,60%

11,90%

13,60%

17,80%

21,70%28%

Inglês

Música

Escuteiros

ATL

Gráfico 33 - Ocupação institucional

dados globais Pais empregados

Fonte: questionário

Conhecendo-se o papel que as actividades institucionalizadas desempenham na

ocupação dos tempos não escolares, o que neste âmbito o estudo nos revela é deveras

preocupante face à míngua dos números apurados (gráfico 33), que atingem, pela negativa,

dimensão significativa, sobretudo quando nos detemos na natureza das estruturas de onde

emana a oferta das actividades, onde apenas uma (ATL) pode ser considerada de carácter

regular e permanente ao longo dos cinco dias úteis de cada semana. Sem discutirmos a forma, 89 A este nível, se constatamos, como sustenta Segalen, que até a própria escola aparece à cabeça como um entrave ao “projecto de uma rápida entrada das crianças no mundo do trabalho” (1999:195), o que acontecerá ao colocar-se a questão de projectar a ocupação dos tempos não escolares como espaço, também, educativo?

Page 163: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

143

podemos afirmar que apenas uma em cada cinco crianças estudadas usufrui de uma actividade

institucionalizada diariamente, ficando as demais a maior parte do tempo (des) ocupadas em

casa, algum tempo um dia por entre outro na música, no inglês, nos escuteiros ou na catequese

e, não raras vezes, por aí....

O cruzamento de dados que o gráfico 21 contém confirma a importância de que as

instituições que se ocupam de jovens se revestem para as famílias onde ambos os pais têm

emprego, dado o maior significado que os dados adquirem quando se lhes introduz esta

variável.

No domínio da oferta institucional o caso em estudo apresenta-nos um quadro de grande

debilidade, nada condizente com um cenário onde, como referimos, há inúmeras crianças que

brincam na rua, sozinhas em casa ou estão privadas de poder aceder a formas diferentes de

educação que se podem assumir como importante mais-valia para a fase do seu processo de

formação em que se encontram.

Gráfico 34 - Actividades nunca praticadas (indicadores mais levados)

40,90%

82,30%

79,80%

76,30%

43,40%

Jog. Comp

Ir à música

Ir aos Escuteiros

Ir ao ATL

Ir ao Cinema

Fonte: questionário

É que, diz-nos o gráfico 34, duas em cada cinco das crianças estudadas nunca vão ao

cinema, nem jogam computador. Este número sobe para quatro em cada cinco se nos

detivermos nas actividades no âmbito do escutismo ou falarmos de frequência de ATL ou

escola de música, ou seja, fica-nos revelado que apenas uma das actividades (jogar

computador) escapa ao domínio das institucionalizadas, que no seu conjunto representam as

que passam esmagadoramente ao lado da vida quotidiana dos nossos jovens em estudo.

Page 164: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

144

Gráfico 35 - Actividades menos praticadas

20,20%

29,30%

13,60%

10,60%

13,60%

21,70%

9,10%

Jog Comp.

Ler Livros

Ler Jornais

Ir à música

Ir Escuteiros

Ir ao ATL

Ir ao Cinema

Fonte: questionário

Dando de barato os resultados intermédios que o estudo nos evidencia (respostas

correspondentes à indicação “poucas vezes” – questão 10. do inquérito (anexo J) e gráfico 22)

a realidade dos números diz-nos, ainda, que, para um conjunto de práticas extra-escolares

extravasando a esfera institucionalizada, que podemos considerar com um certo peso e valor

educativos, o panorama se complica ainda mais (gráfico 35), formando um bloco onde se

quantificam conclusões apontando para níveis que, na verdade, dão que pensar face à

baixíssima percentagem de crianças que acedem às actividades que no gráfico em apreço

integramos como susceptíveis de reunir o potencial que atrás lhe reconhecemos e,

concomitantemente, ao enorme contingente das que estão impossibilitadas de a elas e à sua

acção chegarem de facto.

Pela importância que, naturalmente, terá enquanto indicador do grau de satisfação das

crianças face aos quadros de afazeres que lhes marcam a vida quotidiana, parece-nos,

também, pertinente uma reflexão à volta do valor que as crianças atribuem às suas práticas do

dia-a-dia. Dizer-se, como já antes o afirmamos, que, hoje, às crianças é reconhecido, legal e

socialmente, o direito à felicidade e ao prazer e que, para tanto, importa que a sua voz se faça

ouvir na determinação das actividades de ocupação dos tempos livres, não pode constituir

mera retórica de circunstância, mas implicar um conhecimento aprofundado dos seus desejos

e gostos, que tantas vezes estão em contradição com as práticas que os adultos lhes impõem

de uma forma unilateral.

Page 165: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

145

Quadro 11

Actividades – práticas e preferências

Actividades que ocupam mais tempo

N

(MV)

Actividades que mais gostam de

fazer

N

(MV)

Actividades que menos gostam de

fazer

N

(MV)

Fazer TPC 69 Brincar 46 Ler 41

Ajudar em casa 54 Praticar desporto 44 Ajudar trabalho de casa 41

Ver TV 44 Ver TV 34 Tratar animais 27

Ir à catequese 27 Jogar computador 36 Ir à catequese 20

Praticar desporto 25 Ouvir música 29 Fazer TPC 20

Fonte: questionário (N = crianças envolvidas; MV= Muitas Vezes; Total da frequência = 198)

Os dados que enformam o quadro 11 induzem-nos a algumas conclusões a que não

poderemos deixar de atribuir significado. Do conjunto das actividades que mais tempo

ocupam às crianças o maior número não encaixa no rol das que foram referenciadas como

sendo as que mais gostavam de praticar, estando mesmo integradas no elenco das

consideradas por muitos dos jovens inquiridos como as que menos gostam de fazer. Apesar de

a vida conter aspectos multifacetados, onde se cruzam o gosto e o desgosto pelas coisas,

convenhamos que não é agradável, como se constata aqui, que uma parte importante da sua

vivência se estenda por espaços e actividades onde pior do que não fazer o que dá prazer é

fazer o que nos desconsola.

Importantes para o indivíduo, como se defendeu antes, são os tempos de lazer e,

naturalmente, a busca de espaços que lhes dê existência. Na infância a questão não perde

pertinência e aparece mesmo como determinante para a formação e crescimento das crianças,

sobretudo quando se constitui como espaço emergente de actividades lúdicas

autodeterminadas e executadas de forma arbitrária e a coberto de um uso discricionário do

tempo, distante de tutelas de adultos que se revelem como castradoras da espontaneidade

desses momentos de criação e maturação dos jovens. No geral, muito disto se joga na

determinação das actividades a desenvolver e no equilíbrio com que, neste âmbito, nos

aparecem configuradas as acções mais marcantes do dia a dia das crianças.

Page 166: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

146

Quadro 12

Escolha das actividades

Actividades heterodeterminadas Actividades autodeterminadas

Tipificação n.º crianças

envolvidas

% Tipificação n.º crianças envolvidas

%

ATL

Escuteiros

Catequese

Música

Inglês

Ajudar trabalhos casa

43

27

124

21

87

88

21,70%

13,60%

62,60%

10,60%

43,90%

44,90%

Ver desporto

Ouvir música

Brincar na rua

Praticar desporto

Brincar em casa

Jogar computador

Ver TV

53

92

56

77

146

40

142

26,90%

46,50%

28,30%

38,90%

73,70%

20,20%

71,70%

Fonte: questionário ( Total da frequência = 198; Tipo da Frequência = Muitas vezes)

No quadro 12 encontramos sintetizado o conjunto mais representativo das actividades

praticadas por um número apreciável de crianças. Entre as heterodeterminadas e as

autodeterminadas e com a excepção da “catequese” nas primeiras e do “brincar em casa” nas

segundas, há, ainda, um longo caminho a percorrer para que no universo das crianças

estudadas se possa falar na prática quotidiana de um conjunto harmonioso de actividades, que

para além de promoverem a ocupação do seu tempo livre se assumam, também, como

importantes momentos de lazer.

Finalmente, um olhar demorado sobre o quadro 13 permite-nos, para além da

identificação e visão de conjunto em relação ao que se disse até aqui, perceber que é na

distribuição por sexos que encontramos, quer de forma positiva, quer negativa, o maior

número de variações acentuadas das percentagens apresentadas pelas várias categorias de

actividades elencadas, com as excepções que, pela expressão dos números, constituem o

“Fazer o TPC” e “ver TV”, onde a elevada cotação das frequências se estende de um ponto ao

outro da análise dos dados, independentemente das variáveis consideradas.

Page 167: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

147

Quadro 13

Sinopse das actividades praticadas e oscilações mais visíveis

Distribuição por sexos Dados Globais Ambos os Pais a Trabalhar

Masculino Feminino

Actividade

N MV N MV N MV N MV

Ir ao Cinema 44,30% 9,30% 42,20% 12,90% 48,50% 10,50% 39,30% 7,90%

Ver desporto 22,80% 26,90% 22,90% 27,10% 12,00% 39,80% 36,00% 11,20%

Ouvir música 6,10% 46,50% 7,60% 47,50% 4,60% 50,00% 7,80% 42,20%

Brincar na rua 25,30% 28,30% 23,70% 27,10% 19,40% 33,30% 32,20% 22,20%

Ir ao ATL 76,30% 21,70% 69,50% 28,00% 74,10% 24,00% 78,90% 17,80%

Ir aos escuteiros 79,80% 16,60% 77,10% 17,80% 83,30% 13,90% 75,60% 13,30%

Ir à catequese 10,60% 62,60% 11,00% 69,50% 12,00% 65,70% 8,90% 58,90%

Ir à música 82,30% 10,60% 79,70% 11,90% 83,30% 9,30% 81,10% 12,20%

Praticar desporto 27,80% 38,90% 22,00% 44,10% 17,60% 47,20% 40,00% 28,90%

Passear 4,50% 45,50% 5,10% 50,00% 3,70% 49,10% 5,60% 41,10%

Ir ao inglês 32,30% 43,90% 22,90% 55,10% 37,00% 43,50% 26,70% 44,40%

Brincar em casa 1,50% 73,70% 2,50% 73,70% 1,90% 78,70% 1,10% 67,80%

Ler jorn. ou revistas. 36,80% 13,60% 35,60% 15,30% 40,70% 12,00% 32,20% 15,60%

Ler livros 7,10% 29,30% 5,1% 37,10% 9,30% 21,30% 4,40% 38,90%

Fazer TPC - 95,50% - 96,40% - 94,40% - 96,70%

Jogar computador 40,90% 20,20% 33,10% 25,40% 36,10% 23,10% 46,70% 16,70%

Ver TV - 71,70% - 73,70% - 72,20% - 71,10%

Tratar dos animais 17,70% 35,90% 19,59% 39,80% 19,40% 37,00% 15,60% 34,40%

Ajudar trab. de casa 3,00% 44,90% 3,40% 48,30% 4,60% 28,70% 1,10% 64,40%

Fonte: questionário ? variação positiva ? variação negativa ( N = nunca; MV = muitas ve zes)

7. DUAS PARTICULARIDADES

“Fazer os trabalhos de casa” e “ver televisão” constituem, indubitavelmente, pela

dimensão que a quantidade das crianças envolvidas atinge (quadro 14) e porque estamos

perante duas actividades muito regulares e que se atravessam no seu quotidiano, de uma

forma intensa a primeira e literalmente a segunda, duas particularidades90 merecedoras, a

90 Do vasto conjunto de actividades questionadas às crianças quanto à frequência da sua realização (questão 10. do questionário – Anexo J), “Fazer TPC” e “Ver TV” aparecem como as únicas onde a classificação “nunca” não obteve qualquer registo (quadro 13).

Page 168: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

148

nosso ver, de algum destaque do conjunto de comentários, que nos parece interessante,

entretanto, trazer à colação.

Quadro 14

Actividades com Particular Significado

Número de crianças envolvidas

% ACTIVIDADE

PV MV PV MV

Fazer TPC 9 189 4,5% 95,50%

Ver TV 56 142 28,30% 71,70%

Fonte: questionário (PV = poucas vezes; MV = muitas vezes; Total de Frequência = 180)

A frequência com que os trabalhos de casa ocupam as crianças não destoa do que

acontece por esse mundo fora. Um relatório recentemente divulgado pela OCDE sobre o

sistema educativo dos países que integram esta organização – “Education at a Glance 2002” –

mostra que esta questão, embora transversal, constitui para os jovens portugueses a que no

contexto estudado representa o maior gasto de tempo. O problema em si mesmo parece

pacífico e não virá mal nenhum ao mundo pelo seu uso, antes pelo contrário. Problemático

será quando o proveito que daí pode advir não é percepcionado pelas crianças, sobretudo

quando os trabalhos de casa não são objecto de análise correctiva por parte de quem os

ordenou ou quando povoam e absorvem o essencial das tarefas desenvolvidas nas instituições

que promovem actividades de ocupação de tempos livres e, concomitantemente, as enformam,

assim, com uma lógica de escola, que lhe vai, certamente, distorcer o fim e o valor educativo

que podem propiciar aos seus usufrutuários e que é, naturalmente, distinto do escolar. O

estudo em apreço revela que os portugueses gastam no “TPC”, em média, cinco horas por dia

(crianças dos 9 aos 11 anos). Estes números, que ao nível do nosso estudo não aparecem

quantificados com este pormenor temporal, merecem, todavia, reflexão e, sobretudo,

planeamento que acautele a visível dureza da sua dimensão.

Questão mais pertinente, ainda, é a que se centra em torno da “caixa que mudou o

mundo”. A televisão constitui um fenómeno que a tudo e todos hoje toca de muito perto, que

noutra parte deste estudo acolheu já o destaque que julgamos merecer, designadamente no que

pode representar para a (de) formação do indivíduo a exposição que sofrer face aos

incontáveis programas televisivos onde se “vende” violência barata, que tem no pequeno

espectador um natural e muito atento consumidor, com as nefastas consequências que daí

Page 169: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

149

podem advir numa fase crucial da sua formação. É dramático, como constatou Belloni (2000),

que para muitos dos nossos jovens a violência apareça como sinal de coragem, de valor, e a

não-violência conotada como símbolo de covardia e caminho para a derrota e frustração. Se a

esta realidade associarmos a de que crianças de tenra idade, como as do nosso estudo, não

distinguem ficção da realidade, perceberemos melhor a atenção redobrada que esta temática

nos deve merecer.

Os dados disponíveis no tocante à problemática da violência na televisão datam de 1999

e são fruto de um estudo promovido pela Alta Autoridade para a Comunicação Social91 onde

se procurou perceber a sua real dimensão entre nós, tendo em conta os naturais cuidados que

tão pertinente temática por parte de todos em geral deve merecer, e, muito particularmente,

por quem tem em mãos a importante função de acompanhar o processo de crescimento das

crianças, desenhando percursos que acautelem aspectos que, à partida, são conhecidos como

susceptíveis de lhes atrapalhar o caminho.

As conclusões que uma análise demorada do estudo da Alta Autoridade para a

Comunicação Social acima referenciado permite extrair (quadros 15 e 16) constituem matéria

cuja divulgação aqui nos parece ajustada aos objectivos que perseguimos, sobretudo porque

ajudará a olhar esse aparentemente banal exercício de ver TV de uma forma mais atenta e

criteriosa, especialmente quando o público é muito pequeno.

A programação recreativa aparece, de longe, como a que comporta mais violência,

sendo que as suas variáveis mais significativas – violência justificada, violência sem denotar

gravidade, violência não punida, agressores bons ou assumindo papel de heróis humanizados

e contextos próximos da realidade – surgem potenciadas pelo lado mais negativo e, por isso,

como um excelente meio facilitador da sua aprendizagem, sobretudo pelas crianças, já que é

aos programas a elas dirigidos que o estudo atribui, desgraçadamente, os maiores índices de

frequência e densidade das interacções violentas.

Embora numa escala muito inferior em relação à programação recreativa, também na

publicidade podemos encontrar alguns motivos de preocupação face aos dados apresentados.

Também, aqui, se constata que a violência exibida não tem consequências graves.

Infelizmente, é, novamente, na relação que o produto publicitado tem com as crianças

que o cenário da violência é mais gravoso. Neste campo releva o facto de a violência

detectada ter uma grande ligação com a publicidade dirigida aos próprios programas dos

canais, o que é indiciador de estarmos perante uma violência programada para uma audiência

própria que se revê e satisfaz com ela.

91 Conduzido por uma equipa de investigadores do ISCTE – Instituto de Ciências do Trabalho e da Empresa – dirigida por Jorge Vala.

Page 170: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

150

Quadro 15

Contextualização da Vi olência

PROGRAMAÇÃO ESTUDADA PRINCIPAIS CONCLUSÕES

Recreativa92

• 85% dos programas contêm violência;

• É a programação infantil que regista maiores índices de frequência e densidade da violência;

• Mais de metade dos factores que estão na origem da violência aparecem como justificáveis;

• 60% da violência apresentada não o é como grave;

• Em dois terços da violência não há punição;

• O agressor é, normalmente, bom (herói humanizado), com predominância nos programas infantis;

• Contextos da violência próprios da realidade.

Publicitária93

• Violência moderadamente presente, mas, mesmo assim, mais na publicidade dirigida ás crianças;

• Quase metade dos factores geradores não são justificáveis, nem têm consequências graves para o agressor;

• A violência ocorre mais na publicidade própria ao canal.

Informativa94

• Metade da informação contém uma cena violenta;

• Três quartos dos noticiários gerais contêm violência;

• A frequência dos actos violentos é maior no conjunto da programação analisada.

Fonte: estudo da Alta Autoridade para a Comunicação Social (AACS)

Para a programação informativa, violenta quanto baste, fica o papel de construtora de

um mundo de medos, absolutamente maluco, sobressaltado e em permanente conflito.

De tudo isto resulta que aos olhos de uma criança agredir é bem feito, pois os agressores

que as imagens lhe mostram são adultos ou heróis humanizados que, supostamente, sabem o

que fazem. Os cenários de violência, que parecem tirados da realidade, tal é a identificação

que com ela têm, fazem crer aos mais incautos – e os mais incautos são, certamente, os mais

pequenos – que o mundo à sua volta é assim mesmo, um rodopio de pancadaria, bombas e

corpos despedaçados, onde a regra de sobrevivência parece querer aconselhar o uso de tais

armas.

92 Foram estudados 392 programas recreativos (176 para adultos e 216 para crianças) correspondentes a 187 horas de emissão (124 h para adultos e 63h para crianças). 93 Analisaram-se 50 h de publicidade (1141 peças publicitárias). 94 Pesquisados 225 programas (84 h de programação – 83% de noticiários gerais ou temáticos e 17% de documentários ou “talk-shows”).

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

151

Por outro lado, nessa violência, quantas vezes injustificada e não punida, também se

constroem medos que marcam de uma forma angustiante o quotidiano de muita gente e de

uma forma determinante o das crianças.

Quadro 16

Resultados globais da presença da violência no espectro televisivo português

Prog. Rec. Crianças Publicidade Canal

P F D P F D

RTP1 85 11,1 7,1 3,9 0,09 0,9

RTP2 52,4 4,4 2,4 6,6 0,16 0,8

SIC 82,7 20,1 12,3 6,6 0,19 1,3

TVI 100 23,7 13,4 9,1 0,22 1,7

Média 80 15 9 7 0,2 1

Fonte: AACS P – Presença; F – Frequência; D – Densidade.

Por fim, a constatação de que os resultados são, no geral e no que é comparável, muito

idênticos aos dos EUA, com o senão da percentagem de violência física, das interacções

violentas justificáveis e sem consequências da programação recreativa, que por cá levam a

palma aos pesquisados pelo National Television Violence Studies.

A abordagem crítica que fizemos incidir sobre as conclusões a que o estudo em análise

nos conduziu, embora pertinente, deve ser entendida no seu sentido próprio e não tomada

como um libelo acusatório contra a televisão, que é de facto, também e de sobremaneira, um

campo com enormes potencialidades formativas.

Se é verdade, como diz Chalvon, “que a televisão pode fornecer formas de uso a quem

tiver, de todo o modo, intenção de passar ao acto (19991: 140), não menos o é a de que “não

há uma relação unidireccional, de causa-efeito, entre TV e vida quotidiana: a TV contribui

para estruturar as rotinas quotidianas, mas o seu uso é também condicionado pelo quadro de

normas e de valores do contexto de recepção (Pinto, 2000).

Significa isto que, pegando no que diz Brederode Santos, a ideia de uma televisão como

“bode expiatório de todos os males societais deve evoluir para uma outra de co-

responsabilização que envolva os agentes televisivos, a família e o gosto das audiências”

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

152

(1995: 29-30), e, no fundo, todos quantos em cada comunidade local desenvolvem actividades

que os colocam, também, dentro dessa esfera de responsabilidade.

Os dados que aqui ficam registados consubstanciam, julgamos nós, um importante

referencial que permite um olhar crítico sobre a problemática televisiva e,

concomitantemente, um alerta para a necessidade de perceber os perigos que as programações

podem comportar, o que, convenhamos, não é tarefa fácil.

Todavia, se não se teimar num esforço continuado para promover a diversos níveis uma

permanente mediação televisiva, ajudando as crianças na escolha dos programas que possam

corresponder aos seus gostos, se não se insistir numa educação para o uso crítico da televisão,

é muito provável que a TV nunca venha a ser um bom contexto educativo e recreativo, antes

pelo contrário.

A dimensão da violência na televisão e a grandeza dos números evidenciada na nossa

pesquisa no que concerne à amplitude da presença do pequeno écran no rol das actividades

mais constantes da vida das crianças estudadas, a ninguém pode deixar indiferente.

Aparentemente, diz Pinto (2000: 39), nada de mais natural do que uma criança ou a

infância e nada mais óbvio e transparente do que ver televisão. Porém e como procuramos

evidenciar, nada de mais ilusório.

CAPITULO VI

ANÁLISE DAS ENTREVISTAS

As entrevistas visam mais “a apreensão de lógicas e processos

sociais do que a inferência e a generalização estatística”

(Gonçalves, 1998: 45).

1. TENDÊNCIAS E LÓGICAS DE ACÇÃO

Suportadas no conteúdo do guião que construímos para esta vertente do nosso estudo

empírico (Anexo P), realizamos um conjunto de entrevistas através das quais intentamos

apreender as perspectivas que em torno da problemática em equação alguns responsáveis

locais têm, quer porque lidam directamente com os jovens a quem nos dirigimos em

particular, quer, também, porque desempenham cargos institucionais de relevante importância

para o delinear de políticas no terreno, visando uma saída concreta para tudo o que se

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

153

encontra em aberto e, consequentemente, por resolver no que concerne à matéria em apreço.

As entrevistas visam mais “a apreensão de lógicas e processos sociais do que a inferência e a

generalização estatística” (Gonçalves, 1998: 45). É neste sentido que perspectivamos a sua

realização e com tal pressuposto que procuraremos fazer a sua análise.

Pela sua abrangência no domínio da intervenção social junto da comunidade local,

seleccionamos para as entrevistas um conjunto de oito pessoas assim distribuídas: Vereador

do Pelouro da Educação da Câmara Municipal de Vila Verde, um Presidente de uma das

Instituições Particulares de Solidariedade Social que mantêm em funcionamento ATL’s, um

Chefe Escutista, o Delegado Regional de Braga do Instituto da Juventude, o Técnico Superior

de Serviço Social da Câmara Municipal de Vila Verde responsável pela implementação do

“Programa Rede Social”95 no concelho de Vila Verde, um Presidente de um Conselho

Executivo de um dos demais Agrupamentos de Escolas do Concelho de Vila Verde, uma

Educadora de Infância responsável pedagógica pelo prolongamento de horário num dos

Jardins de Infância do Agrupamento de Escolas do nosso estudo de caso e uma animadora

social de um dos ATL’s também aí existentes.

Dado que uma entrevista resulta do encontro de duas pessoas geralmente estranhas ou

pouco conhecidas, procuramos, aquando da sua efectivação, criar mecanismos de

descontracção e empatia, para além de uma grande discrição no uso do instrumento de registo

magnético das conversas e dos apontamentos que ao longo dos cerca de sessenta minutos que

demorou, em média, cada diálogo fomos tirando, de modo a diluir qualquer forma de

constrangimento, se bem que, em alguns casos, estivéssemos perante pessoas perfeitamente

familiarizadas com este tipo de situação e, consequentemente, que se apresentaram como

entrevistados perfeitamente descontraídos.

Postas estas considerações prévias e olhando a mais de meia centena de páginas que a

transcrição das cerca de oito horas de conversas que gravamos originou, que constituem o

corpus da informação, ficaram-nos como determinantes e relevantes para o nosso estudo as

conclusões que seguidamente se sistematizam e que, por isso, constituirão, a par dos outros

dados saídos do inquérito às crianças, um importante recurso para a finalização deste nosso

trabalho.

95 O “Programa Rede Social” foi criado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 197/97, de 18 de Novembro e, reconhecendo o papel das tradições de entreajuda familiar e de solidariedade mais alargada, pretende, com base nos valores associados a estas tradições, fomentar uma consciência colectiva e responsável dos diferentes problemas sociais e incentivar redes de apoio social integrado de âmbito local.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

154

1.1. O valor e o uso do tempo livre

Quadro 17 Valorização do tempo livre por justaposição com o tempo escolar

Quanto à Forma Quanto ao Uso

Tempo não Escolar Tempo de (Re) Produção

Tempo Livre Tempo Complementar

Fonte: entrevistas

Num primeiro momento e quando convidados a reflectir sobre a problemática da

ocupação do tempo que os jovens alunos da escola primária passam fora da escola e da

família, os nossos interlocutores, apesar de divergirem no modo como entendem o tempo em

questão quanto à forma e ao uso e, nessa conformidade, o classificarem diferentemente – o

entendimento balança, por um lado, quanto à forma, entre o tempo não escolar e o tempo

livre, onde tudo o que ocupa se centra na escola e o que ocorre fora dela é livre, e, por outro

lado, no que ao uso concerne, entre os que consideram o tempo livre um espaço de produção

de novas coisas e de reprodução de uma certa lógica escolar e os que o entendem como um

tempo complementar do da escola e, concomitantemente, também com o seu valor educativo

(Quadro 17) – deixaram-nos um vasto conjunto de reflexões deveras expressivo de um

entendimento abrangente, inequívoco e valorativo da temática em apreço.

Citações extraídas das entrevistas ilustrativas da valorização do tempo livre:

(1) “o tempo não escolar das crianças é crucial para o seu desenvolvimento pessoal

em termos relacionais, de convivência e afectividade e, nessa medida, deve ser

estudado e avaliado da mesma maneira como se passa com a escola” (entrevista

A) ;

(2) “- a problemática da ocupação dos tempos livres.....reveste-se de inquestionável

importância na formação integral das nossas crianças, quiçá o espaço

privilegiado por excelência para formatar o relacionamento interpessoal e

potenciar a socialização” (entrevista D) ;

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

155

(3) “- o tempo livre deve ser entendido como um tempo complementar do processo de

aprendizagem” (........) “ o tempo livre não pode ser uma reprodução do sistema

formal de ensino, mesmo aquele tempo livre que está sob a responsabilidade da

escola” (........) (entrevista H) ;

Citações que reflectem o olhar dos entrevistados em torno do uso que do tempo

livre deve ser feito:

(4) “ – a ocupação de tempos livres não pode, nem deve, ser estruturada como a

continuidade da lectividade do aluno, mas sim como a interacção da criança com

os seus pares para a socialização em comum” (........) “ A forma como está

institucionalizada a figura dos tempos livres é completamente adversa aos fins

que a mesma se propõe” (entrevista B) ;

(5) “- ... dever-se-ia sensibilizar a comunidade para a importância da família” (.......)

“compete, de forma inalienável, à família em primeiro lugar e à comunidade

educativa em segundo, estimular, acarinhar, desenvolver e criar todas as

condições para que o espaço de tempo livre possa ser concretizado de forma

consciente e responsável” (entrevista E) ;

(6) “:......é necessário encarar a problemática da ocupação das crianças nas

situações em que não seja possível estas serem acompanhadas pela família (.......)

que deve poder optar por uma ocupação pós-lectiva para os filhos que liberte os

pais para o trabalho” (entrevista F) ;

(7) “..... as actividades de ocupação de tempos livres dos jovens alunos deverão

obedecer a princípios de organização de actividades não rotineiras e não

obrigatórias” (........) ” uma organização das actividades que prolongue

artificialmente o horário escolar pode tornar-se factor de exclusão social das

crianças na relação de amizade e vizinhança e até de convívio familiar” (........) “

actividades dessas, planeadas e orientadas pelo adulto, dentro de espaço escolar,

durante longas horas, cortam a criatividade pessoal e reduzem a capacidade

futura de organização autónoma da vida quotidiana” (entrevista G) ;

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

156

Este conjunto de transcrições que fomos buscar ao interior das entrevistas, transmite-

nos, também e além do mais, a confortável sensação de que, no campo institucional e, dentro

deste, no domínio da acção concreta, se pode contar com uma abrangente sensibilização em

torno da problemática e de um olhar equilibrado sobre o uso que dela e com ela se pode

efectivamente fazer. Ninguém é, efectivamente, indiferente ao valor inequívoco de que se

reveste o tempo livre, sobretudo na faceta que adquire fora do contexto familiar e, em muitos

caos, como seu substituto absoluto, e não ficaram por responder as inquietações emergentes

de um eventual direccionar da resolução da questão recorrendo a vias que subalternizem o

papel da família ou que redundem na institucionalização total da infância com uma inaceitável

lógica de escola.

Ademais, parece-nos ser de sustentar, à laia de conclusão e a partir de uma visão

global desta parte do corpus das entrevistas, que o universo em estudo consubstancia

potencialidades, quer ao nível do poder de planeamento, quer no domínio da decisão, capazes

de possibilitar a afirmação local de uma base de sustentação sólida quanto à forma de resolver

o problema emergente, o que, por si só, se pode constituir como uma certa garantia da

possibilidade de aí se conceber uma solução para atacar a problemática em apreço com

alguma probabilidade de sucesso.

1.2. Roda do tempo livre

Quando pedimos aos nossos entrevistados que nos falassem da solução ou soluções

que se lhes afiguravam como susceptíveis de responder com sucesso à questão da ocupação

dos tempos livres das crianças, sobretudo daquelas que têm pais que trabalham todo o dia fora

de casa e, por isso, ficam à mercê do que cada contexto lhes possa oferecer, fomos

contemplados com um conjunto de informações muito homogéneo, que nos permite definir

com clareza o modo como os nossos interlocutores configuram os cenários por onde

entendem dever rodar o problema em equação.

O papel da família, sempre que no seu seio seja possível encontrar o necessário apoio

logístico, continua a merecer anotações sólidas. “Apesar das dificuldades actuais, da situação

da sociedade moderna, algumas famílias continuam a proporcionar às suas crianças

experiências básicas de vida e de responsabilidade” (entrevista E).

Malgrado constatarem que as “associações não lucrativas, devido à inexistência no

seu seio de recursos humanos qualificados para a função, não estão habilitadas, hoje, a

prestar grandes serviços no domínio das actividades de ocupação de tempos livres das

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

157

crianças” (Entrevista D), há no corpo das entrevistas o claro reconhecimento de que, apesar de

tudo, passará por elas, renovadas e apetrechadas para o efeito, uma boa parte da resolução da

questão em aberto.

Num outro campo, ganha, também, um estatuto determinante no contexto da

temática que nos envolve, o papel que às autarquias locais deve caber. A Câmara Municipal a

um nível macro e as juntas de freguesia num plano de maior proximidade a cada local em

concreto não se podem excluir deste lado marcante do quotidiano das comunidades que

representam e que, concomitantemente, estão obrigados a defender e a ajudar na resolução

dos seus problemas mais prementes. Aliás, para além das competências próprias que em

matéria de tempos livres as câmaras municipais têm, é imenso o campo de intervenção

propiciados pela autonomia e pelos meios de que dispõe o poder local, naturalmente mais às

câmaras do que às juntas de freguesia, com isso a abrir caminho para que, caso a caso, seja

possível a sua participação na construção de soluções ajustadas às necessidades que no

domínio da ocupação dos jovens para além dos contextos familiar e escolar se colocam à

sociedade em cada dia que passa.

De uma forma quase unânime foi o papel reservado pelos entrevistados à escola no

que ataque ao problema em aberto diz respeito, podendo-se afirmar, seguramente, que, numa

cadeia e consequente encadeamento de responsabilidades acometidas a outros níveis

institucionais, como os atrás já referidos, a escola assume um papel absolutamente central,

constituindo, inquestionavelmente, o seu elo mais decisivo.

Entre um sem número de sinais claros do que acima se diz, registamos algumas

citações elucidativas (destaques nossos):

(1)“..... poderão, também, ser aproveitados determinados recursos e instituições

existentes (as próprias associações) que, por vezes, devido à falta de recursos

humanos não funcionam tão bem mas que com a parceria da escola poderão ser

rentabilizados” (entrevista A) ;

(2)“ deveria existir um complemento de horário da lectividade, apoiado por

profissionais qualificados e dependentes hierarquicamente do núcleo escolar, de

apoio às actividades escolares e de promoção de actividades lúdicas” (entrevista

B) ;

(3)“ uma situação ideal seria aquela em que os pais deixassem os filhos na escola

pela manhã e os fossem buscar no final do dia, sendo esta responsável pela

componente lectiva e não lectiva” (.....) “ a escola, no seu interior, disporia de

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

158

um centro de actividades de tempos livres e estudo que se ocuparia das crianças

durante o período não lectivo”( entrevista F) ;

(4)“ a escola deve assumir a responsabilidade da ocupação do tempo livre

conjugando o que puder desenvolver no seu seio com a oferta local que seja

possível mobilizar para o empreendimento” (entrevista H) ;

Num comentário em jeito de remate a este lado das entrevistas que realizamos,

podemos dizer que os espaços por onde os nossos interlocutores gostavam de ver rodar o

tempo livre, ou mesmo entendem ser por aí que as coisas têm de ser encaminhadas, deverá

conhecer uma resposta quadripartida (Figura 3): no interior da família, sempre que possível;

com uma forte participação do poder local dentro das suas responsabilidades legais e

institucionais; com o apoio do movimento associativo, como forma de rentabilizar recursos

locais já existentes; com o contributo decisivo e determinante da escola.

À escola fica reservado, infere-se das entrevistas e das citações delas respigadas que

acima registamos, um papel de liderança seja qual for a solução a construir, sendo clara a

visão tridimensional como a tal respeito a sua intervenção deve ser tida: a de,

simultaneamente, promotora, parceiro-mor e hospedeira da resposta que, esperam, se projecte

colocar em prática atinente à resolução da questão em aberto.

Figura 3 – Roda do tempo livre

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

159

1.3. Subsídios para uma solução do problema dos tempos livres

Por esta altura introduzimos no diálogo um elemento que tínhamos por essencial aos

nossos propósitos: era importante saber o que cada um dos nossos interlocutores achava como

prioritário fazer para que a problemática em torno dos tempos livres fosse efectivamente

atacada em toda a sua dimensão.

Sem dúvida que a preocupação primeira foi para a necessidade de busca de uma

união de esforços no seio da comunidade e do seu contexto, no pressuposto de que ninguém,

nem nenhuma instituição de per si conseguirá dar uma resposta plena ao que se pretende e,

muitas vezes, até, verá dispersado o seu contributo por acções avulsas que teriam,

naturalmente, outro significado se devidamente integradas num planeamento objectivamente

dirigido.

Parece importante, disse-nos um dos entrevistados, introduzir aqui o conceito de rede

para assinalar a necessidade que as instituições sentirão cada vez mais de um trabalho

integrado, complementar e em parceria. Rede, acrescentou, para designar as teias de

solidariedade que é preciso estabelecer nesse espaço de ocupação do tempo livre das crianças.

Neste sentido e com uma complementaridade notória, foi o que nos avançou um

outro interlocutor: “parece-me indispensável apostar numa organização racional da “ocupação

dos tempos livres” que passa, acima de tudo, por uma lógica de intervenção cooperativa, bem

como pela mudança de mentalidade da comunidade educativa e de outros actores sociais

intervenientes no processo”..... “é urgente que quem de direito invista seriamente na criação

de uma rede de qualidade de “centros de ocupação de tempos livres”.....e “que os pais e

encarregados de educação, as autarquias, as associações, quiçá, os agrupamentos de escolas,

assumam em definitivo a sua quota-parte de co-responsabilidade na dinamização do

processo”.

Confrontada com o teor das reflexões que neste âmbito estão contidas nas demais

entrevistas, a ideia de construção de “teias de solidariedade” abrangentes, cuja estruturação a

figura 4 procura traduzir, emerge como uma saída mobilizadora e potencialmente capaz de

reunir sinergias suficientes para acreditarmos no seu sucesso.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

160

Aliás, algumas achegas pertinentes que podem funcionar como escoras de suporte

aquela ideia da “teia de solidariedade”, é possível destacar desta análise ao material recolhido

das entrevistas, como sejam a defesa de “uma reestruturação global da rede escolar de forma a

que fique dimensionada para possibilitar, também, um funcionamento como complemento

não lectivo de tempos livres”, a necessidade vislumbrada no “reforço dos equipamentos de

suporte de actividades ocupacionais dos jovens (salas de leitura, bibliotecas, ludotecas e salas

de informática, por exemplo) ”, a emergência de uma entidade “que coordene” as ofertas de

actividades não escolares em cada contexto, e, até, uma profissão de fé no papel que os

agrupamentos de escolas podem desempenhar, que se defende ao postular-se que “os

agrupamentos de escolas são um exemplo paradigmático do que se pode fazer neste âmbito

(da coordenação), já que se podem constituir como centros geradores de parcerias que

promovam uma ocupação significativa dos tempos livres dos jovens alunos”.

Sintetizando, poder-se-á dizer que há uma generalizada profissão de fé nas

virtualidades e hipóteses de sucesso em programas interventivos no campo em estudo, que

privilegiem o trabalho de parceria devidamente feito e enquadrado à medida específica de

cada contexto, naturalmente suportada na ineficácia que a paisagem espartilhada das respostas

que vão subsistindo no terreno tem demonstrado desde sempre, em prejuízo latente das

crianças e jovens carecidos de apoio a este nível.

Figura 4 – Teia de Solidariedade

OCUPAÇÃO DOS TEMPOS LIVRES DOS JOVENS

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

161

1.4. Contributos Institucionais

Posto o alinhamento do que nos pareceu ser o essencial da informação recolhida no

tocante à postura que os nossos entrevistados assumem perante a problemática, sobretudo na

forma como a valorizam, contextualizam e entendem dever ser operacionalizada no terreno,

focalizaremos agora a análise que temos estado a desenvolver em mais dois aspectos: no

posicionamento assumido quanto à disponibilidade e a um eventual contributo que, no âmbito

das suas responsabilidades institucionais, cada um estaria disposto a colocar ao serviço da

resolução da problemática em questão, e no comentário que lhes sugeria uma sempre possível

exagerada institucionalização da infância em que se poderá cair entretanto.

No tocante à primeira parte desta análise e se bem que a responsabilidade assacada

ao Estado nesta matéria esteja registada no corpus que temos vindo a dissecar, com eventual

transferência de competências para as autarquias locais, no geral ficou espelhado, também,

um intuito declarado de disponibilidade para um envolvimento empenhado, cada qual,

obviamente, no domínio do que pode e sabe fazer.

Assim, “melhorar as instalações”, “intervir ao nível da formação de animadores

educativos”, “dinamizar um projecto educativo de parcerias institucional”, “exercer uma

acção essencialmente organizacional das actividades de tempos livres”, “apoio na

sistematização e planeamento das actividades”, “oferta de actividades”, são alguns bons

exemplos de um certo estado de espírito, que, globalmente, nos pareceu indiciador de que a

seara contém os ingredientes necessários para que as sementes que nela venham a ser

lançadas germinem e venham um dia a dar bons frutos.

Complementarmente ao que acima está transcrito, colocamos, num segundo

momento, em cima da mesa a pertinente questão de se estar, eventualmente, a caminhar para

uma institucionalização absoluta da infância, que pode originar um nefasto enclausuramento

das crianças.

Os contributos que, nesta vertente, subjazem nos depoimentos que recolhemos são,

também, demonstrativos de uma consciência muito clara da dimensão da problemática, apesar

de colher alguma aceitação a ideia de que a institucionalização da infância é um “mal

necessário”. No demais, emerge um sentido desejo de que tal não aconteça, devendo-se

procurar, para tal, “uma organização racional dos tempos livres” “onde a criança possa ter,

também, o seu tempo de lazer” e nunca se enverede “por formas mitigadas da “teoria do

homúnculo” que não deixe “a criança ser criança”.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

162

“In medium virtus est” emerge, pois, como base para a solução tida por razoável para

a implementação de uma política de ocupação de tempos livres onde haja espaço para o jovem

ser livre sem que tenha de ser libertino, apostando na diversidade sustentada e com um fio

condutor previamente definido. “O jovem tem que ter oportunidade para criar, descobrir por

sua livre iniciativa, escolhendo espontaneamente as brincadeiras”.

São estes os sinais transmitidos: construir espaços onde cada criança possa crescer

como criança, com os seus espaços de liberdade definidos e assumidos por quem tiver em

mãos as rédeas da resolução do problema da ocupação do seu tempo livre da escola e da casa;

rejeição, concomitantemente, de uma certa ideia de “prisão dourada das crianças”.

1.5. Outros Registos Relevantes

Reservamos para remate das entrevistas uma questão aberta onde deixamos espaço a

cada entrevistado para formulação do comentário que tivesse por conveniente fazer acerca do

tema central que esteve em cima da mesa e que o carácter fechado das questões anteriores não

possibilitara formular.

O registo final mais marcante é aquele que, depois da panóplia de achegas

anteriormente sistematizadas, nos surge como que a recentralizar o objecto de toda a temática,

lembrando que “o fim pretendido com a ocupação dos tempos livres é a criança e não as

instituições”.

Nos restantes registos que se podem extrair do conteúdo da informação em análise há

o reafirmar, mais uma vez e com o valor que tal representa, de ideias e propósitos anteriores e

o espreitar desconfiado para uma espécie de pecado de omissão e de desperdício que

transparece da escola para a sociedade.

No que se refere ao primeiro aspecto os nossos entrevistados retornam à necessidade

de, dizem, uma “ mobilização de potencialidades humanas e materiais” para a resolução de

um problema que “sendo global, merece respostas globais”. Respostas que se hão-de procurar

no domínio institucional, onde à escola estará reservado um papel determinante, que não

exclusivo, salvaguardando-se, também, o espaço que à família cabe por direito próprio e que

ninguém pode ou deve ocupar, porque absolutamente insubstituível.

Para a escola vai, como segundo elemento aqui perscrutado, um verdadeiro toque de

despertar de um longo sono que a fechou a cada um dos mundos restritos onde se insere,

portador de pequenos-grandes problemas, que a ela com o seu saber lhe cabe ajudar a

resolver.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

163

A escola, constata-se, é tida como um espaço demasiado oneroso para estar fechado a

maior parte do tempo, devendo, pois, abrir-se, podendo, dessa forma, contando com a

participação dos professores, ter um papel central na resolução do problema da ocupação dos

tempos não escolares em colaboração com as demais forças vivas de cada comunidade.

Dir-se-á, como comentário e em tom de registo final, que aos nossos interlocutores é

comum uma preocupação, aliás latente nas reflexões que fizeram e que fomos registando, com

a sustentabilidade dessa tão importante, quão difícil, tarefa de assegurar um plano organizado

e significativo de ocupação do tempo livre das crianças, que entendem dever estender-se a um

conjunto alargado de entidades, com coerência e respeito pelo peso de cada uma delas no seio

da sociedade que enformam.

Nessa pirâmide de sustentação do tempo livre (Figura 5), aceite-se a metáfora,

acamar-se-ão de forma ascendente, a partir da base e em primeiro lugar, o envolvimento de

toda a comunidade, como condição sine qua non para se encontrar a tal resposta global,

depois o comprometimento institucional na prossecução dos objectivos em equação e, a partir

deste, seguidamente, o reconhecimento de um particular papel por parte da escola e o respeito

pela instituição familiar e pelo desempenho que lhe cabe junto dos seus filhos, e, por fim, a

assunção da defesa dos legítimos interesses da criança, consagrando-lhe, por isso, o lugar de

topo onde, neste desenho, é colocada.

CRIANÇA

FAMÍLIA

ESCOLA

INSTITUIÇÕES

ENVOLVIMENTO COMUNITÁRIO

Figura 5 – Sustentação do Tempo Livre

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

164

1.6. Apontamento Final

O que para trás fica registado como produto essencial do conjunto das entrevistas que

realizamos parece-nos ser susceptível de algumas ilações, que se podem constituir como

elementos essenciais para a construção de projectos de trabalho de aplicação prática capazes

de produzirem respostas válidas e de valor formativo significativo para os jovens a quem se

dirigem, carecidos de um outro rumo para a ocupação do seu tempo não escolar.

Subjaz em toda a extensão do corpus de análise aqui sintetizado uma evidente

sensibilidade para a necessidade urgente de se olhar o problema com seriedade e conduzi- lo já

para o domínio da acção prática, ou seja, inverter o percurso soluçante que hoje conhece,

muito mais ancorado no interesse das instituições do que no das crianças.

Todos reconhecem que ninguém, isoladamente, conseguirá responder a este

chamamento, apesar de colocarem a escola no centro da problemática, vendo-a como um

timoneiro capaz de levar o barco a porto seguro, tendo como primeiro parceiro da caminhada

a família96.

O tempo livre não é mais, pois, um tempo qualquer, vadio, usado e abusado de toda a

maneira. Nesta constatação, subjacente às preocupações vertidas pelos nossos interlocutores,

está contida uma valorização do tempo não escolar, que impõe um olhar diferente acerca do

seu uso e, concomitantemente, das redes que em cada comunidade urge tecer para, de uma

forma sustentada, lhe dar uma resposta à medida da dimensão que hoje, de facto, adquiriu.

2. ALGUMAS NOTAS CONCLUSIVAS

Ao longo dos dois capítulos precedentes dissecamos, de uma forma apurada, o vasto

espólio de dados que foi possível obter a partir da aplicação que no terreno fizemos dos dois

instrumentos que utilizamos: o inquérito aos alunos e a entrevista a outros actores sociais.

Da análise simples e, em muitos casos, cruzada, das variáveis atinentes ao questionário

aplicado às crianças emergiu uma radiografia do seu quotidiano, atravessado por um mundo

de afazeres consubstanciados em actividades de toda a ordem, que lhes marcam, de uma

forma positiva ou negativa, o ânimo e o sonho com que vão crescendo.

96 Da transcendente importância do envolvimento parental e das dificuldades que a sua concretização tem conhecido ao longo do tempo falam os estudos desenvolvidos por Benavente et al. (1992), Davies (1989, 1993 e 1994), Marques (1993 e 1994), Pourtois et al.(1994) e Silva (1994).

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

165

O estudo revelou, para além do que já dissemos, um desequilíbrio latente entre

actividades de ocupação de tempos livres institucionalizadas, ou com tal espírito, e as

cumpridas sem a supervisão de um adulto, destacando-se no conjunto das actividades

praticadas pelas crianças uma forte presença do trabalho doméstico. À esmagadora maioria

das crianças investigadas falta uma política sustentada e equilibrada de ocupação de tempos

livres, que lhe abra o caminho para aceder a coisas tão importantes e determinantes dos

tempos de hoje como o são as novas tecnologias, a prática desportiva, a aprendizagem de uma

língua, entre outras, bem como a tempos e a espaços onde possa brincar livremente em

segurança.

Esta realidade não passa despercebida à comunidade dos adultos, sobretudo daqueles

que têm responsabilidades institucionais neste domínio. Os dados facultados pelas entrevistas

mostram-nos uma clara sensibilização de todos perante a problemática em estudo e a noção de

que esta constitui um campo determinante para a formação dos jovens, onde, está, ainda,

muita coisa por fazer para que possa adquirir, efectivamente, o peso educativo que se lhe

reconhece. Nesse sentido, pudemos perceber, a partir das considerações dos entrevistados,

uma predisposição para um apoio efectivo às acções que no terreno se venham a desenvolver

para a implementação de estruturas, físicas e humanas, que garantam uma abordagem

diferente da temática em apreço, de modo a superar os desequilíbrios e as omissões de que

hoje enferma, constituindo-se, acima de tudo, como um importante instrumento de formação

dos jovens.

É com estes elementos que construímos a nossa própria visão sobre os caminhos que,

também, nos permitimos equacionar como capazes de abrirem novos horizontes a todos

quantos, de uma ou de outra forma, vivem quotidianamente a angústia de verem crianças

errantes no tempo que sobra entre os tempos da família e da escola, tempo este onde, muitas

vezes, quase nada se ganha e se corre o risco de tudo se poder perder.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

166

CONCLUSÃO

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

167

OCUPAÇÃO DOS TEMPOS LIVRES – CONTRIBUTOS

1. O CONTEXTO COMO FACTOR FUNDAMENTAL

O presente estudo permitiu-nos reunir um conjunto alargado de informação susceptível

de nos ajudar a pôr em pé algumas ideias em relação à problemática da ocupação dos tempos

não escolares das crianças, vulgarmente designados como tempos livres, ideias essas que se

possam assumir como contributos válidos para a sua compreensão e resolução, sendo que nos

interessa, aqui, muito mais o aproveitamento significativo desse tempo do que a contabilidade

rigorosa do seu uso puro e simples, sem qualquer objectivo pré-definido, por onde, desse

modo, crescimento e desenvolvimento andam muitas vezes desencontrados, se não mesmo em

contradição quanto aos objectivos a atingir.

É o que intentaremos fazer doravante ancorados no princípio, determinante para o

processo socializador da criança, de que o (in) sucesso desta etapa primeira e fundamental da

sua formação está umbilicalmente ligado à estrutura dos contextos por onde necessariamente

terá que passar.

Esta perspectiva muito focalizada em torno do papel nuclear que as estruturas sociais

desempenham na formação do indivíduo, que mais atrás abordámos à luz dos fundamentos

que neste domínio são sustentados pela doutrina funcionalista, tem encontrado eco junto de

outros teóricos que, entretanto, a não dissociam do não menos importante significado de que,

por esta altura da formação do indivíduo, se revestem as relações interpessoais, como

sublinham os sociólogos do Interaccionismo Simbólico.

“A criança desenvolve-se em contacto com o que a rodeia, sofrendo a influência dos

meios que a envolvem. A relação criança-sociedade estabelece-se pelas práticas e pelas

identificações com os seus modelos” (Chombard de Lauwe, 1980: 39). Quer no seio da

família, quer na escola, quer nas instituições e lugares por onde ocupa os seus tempos não

escolares, a criança vive o seu processo de socialização, que “é um dos factores constitutivos

da sua personalidade” que se faz pela “inter-relação recíproca entre ela e o meio que a rodeia”

(id. 37).

Alguns psicólogos sociais ajudaram a fortalecer e a dar maior expressão à importância

de que esta realidade se reveste e avançaram algumas teorias, através das quais procuram

sustentar princípios que defendem como sendo determinante para o desenvolvimento do

indivíduo, sobretudo na relação directa que com isso têm as pessoas e o meio com quem e

onde cada criança cresce. Pela pertinência de que, parece-nos, esta abordagem se reveste para

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

168

o trabalho em apreço, especialmente nesta sua fase conclusiva, deixaremos a seguir uma breve

reflexão à volta de duas teorias que nos despertaram particular interesse neste âmbito.

2. A APRENDIZAGEM SOCIAL E A PERSPECTIVA ECOLÓGICA DO

DESENVOLVIMENTO HUMANO

Albert Bandura, proeminente psicólogo contemporâneo, sustenta, retomando elementos

tanto dos comportamentalistas como dos cognitivistas e na esteira de James97 e da teoria da

aprendizagem por ele avançada há mais de um século, que uma parte significativa daquilo que

o indivíduo aprende ocorre através da imitação ou da modelagem. “As pessoas são, até certo

ponto, produto do seu meio, aprendem imitando o comportamento de outros” (cit. Sprinthall,

1993: 253).

Esta aprendizagem de cariz eminentemente social evidencia-nos a importância que tem

para o jovem observador tudo aquilo que lhe é dado presenciar ou as interacções em que

participa nos contextos por onde acontecem os processos de inter-relação com outros

significativos.

Não poderemos, desta forma, esperar muito do processo de socialização de uma criança

quando uma parte significativa do seu quotidiano é passada em contactos em que imperam

quadros de vida onde as interacções ocorrem de uma forma descontrolada e ao arrepio, até, do

próprio percurso escolar, quantas vezes feitas por caminhos ínvios por onde se realizam

“filmes” com “heróis” que não são propriamente bons modelos para as crianças.

Um planeamento descuidado das actividades de ocupação dos tempos não escolares dos

jovens ou a inexistência de uma mediação à distância dos espaços informais de sua livre

fruição (brincar, ver TV, jogar, etc.), de que eles, naturalmente, também carecem, constituem

outros tantos campos onde as aprendizagens por modelagem que aí possam acontecer não

serão, muito provavelmente, coisa de grande monta.

Numa outra perspectiva, Gabriela Portugal (1992) deu-nos a conhecer o que, em matéria

de desenvolvimento humano, procuram evidenciar os estudos levados a cabo por Urie

Bronfenbrenner, que sustentam aquilo a que este psicólogo social chamou de perspectiva

ecológica do desenvolvimento humano, a seguir sintetizada.

Para Bronfenbrenner pessoa e meio são indissociáveis e determinantes um para o outro.

Assim, é na interacção que se há-de estabelecer entre estas duas partes, que muitos dos

resultados, positivos ou negativos, se ancorarão. 97 William James (1842-1910). Psicólogo norte-americano que defende serem as crianças meras amálgamas de hábitos e que toda a aprendizagem deve ter subjacente a ela este princípio (cf. Sprinthall, 1993: 8).

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

169

Particularizando e por ordem da ligação directa que o sujeito tem com cada um dos

sistemas delineados por Bronfenbrenner98, o microsistema aparece como aquele que mais

pode influenciar esse sujeito, já que tem a ver com o contexto ou contextos onde ocorrem o

maior número de actividades, o desempenho do maior número de papeis e se estabelecem

relações interpessoais, enfim, onde entre os indivíduos podem ocorrer interacções face a face.

O lar, a escola, o infantário, a catequese e o agrupamento de escuteiros representam contextos

onde essas relações interpessoais podem acontecer, com influência significativa no

desenvolvimento do sujeito.

Por isso, Bronfenbrenner deu um tratamento especial às actividades que o sujeito

desempenha a nível microsistémico, nomeadamente as actividades molares, muito

importantes na evolução do sujeito e que se podem caracterizar como formas

comportamentais contínuas, com movimento próprio, persistentes ao longo do tempo e

capazes de resistir à interrupção enquanto a actividade não for concluída.

Nesta conformidade, o desenvolvimento da criança vai-se fazendo à medida que a sua

capacidade de desempenhar actividades molares, que lhe permitam participar activamente no

ambiente ecológico que a rodeia, for aumentando, contribuindo assim, também, para que essa

competência interventiva resulte, ainda, numa função de inovação da criança face ao

ambiente, capaz mesmo de contribuir para a sua alteração.

Assim sendo, diz Bonfenbrenner, o desenvolvimento da criança deverá reflectir-se na

capacitação que ela vai adquirindo para o desempenho de actividades molares cada vez mais

complexas e, concomitantemente, que apelam para um grau de abstracção cada vez mais

complexo e que ela sabe usar de “per si”, sem necessitar da acção ou instigação de outros.

Este autor atribui muito significado às actividades molares em que o sujeito presta atenção ao

outro, porque facilitadoras da aprendizagem por observação, e releva extraordinariamente as

que impliquem a participação activa do sujeito, designadamente, brincar, jogar e fantasiar.

Finalmente, e para concluir o estudo em torno das ocorrências que a nível

microsistémico são determinantes para o desenvolvimento do sujeito, Bronfenbrenner

centraliza os seus estudos à volta dos papéis que socialmente somos chamados a desempenhar

ao longo do processo de acomodação à vida social e da sua importância para a evolução do

indivíduo.

98 Bronfenbrenner dividiu o ambiente ecológico que nos rodeia em 4 sistemas: • Microsistema - o lar, a escola, o infantário, a catequese, os escuteiros, enquanto contextos específicos onde

o sujeito interage e se desenvolve; • Mesosistema - As relações entre os contextos microsistémicos onde o sujeito interage em cada um deles; • Ecosistema - Contextos em que o sujeito já não participa e, portanto, não interage directamente ( os mass

media, p. ex.); • Macrosistema - Contexto lato que pode abarcar o próprio estilo de vida de uma sociedade ou do próprio

Estado, os seus valores e crenças.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

170

O desempenho de determinados papéis, em diferentes situações e graus de

complexidade, é, indubitavelmente, factor de desenvolvimento para o sujeito, como o será a

interacção que esse sujeito em desenvolvimento tiver com outros sujeitos que desempenham

outros papéis. Na realidade, a aprendizagem faz-se não só na experimentação, mas também na

observação ou na interacção com terceiros.

Malgrado o seu potencial hereditário, o ser humano carece de interagir com o mundo

para que o verdadeiro e profícuo fenómeno desenvolvimental aconteça.

A “teoria da aprendizagem social” de Bandura e a “teoria ecológica do desenvolvimento

humano” de Bronfenbrenner deixam-nos, cada uma à sua maneira, um imenso campo de

actuação que deve ser tido sempre em devida conta na acção quotidiana de todos quantos têm

em mãos a delicada missão de facilitar a ocorrência de processos de socialização de crianças,

que se pretendam significativos. Casá- las com tudo quanto dissemos anteriormente em

relação à problemática da ocupação dos tempos livres da e na infância, da sua gestão e uso

nos aspectos mais particulares, é perceber que quantos mais ricos forem os contextos onde

ocorrerem as actividades não escolares e mais significativos forem os papéis que as relações

interpessoais desencadeiem, tanto mais importantes e sólidas serão as competências que a

criança vai, paulatinamente, adquirindo. E isso acontecerá sempre, quer através das

actividades que realiza, quer das que observa e, sobretudo, do conteúdo daquilo que é

observado e praticado, que tanto se pode constituir como um contributo valoroso para o

desenvolvimento do jovem, como prejudicá- lo de uma forma quantas vezes danosa para a sua

formação pessoal e social.

Bandura e Bronfenbrenner bastam-nos, no fundo, para demonstrar que a problemática

dos tempos livres na infância é um caso sério, não só pelo muito que de determinante

representa para o normal desenvolvimento dos jovens, mas, sobretudo, pelos eventuais riscos

que para o seu crescimento pode acarretar, se não a agarrarmos desde já, impedindo com isso

que as nossas crianças se metam pelas encruzilhadas que a vida de hoje lhes reserva em cada

esquina do quotidiano.

Para tanto, urge que lhe melhoremos “os caminhos” por onde andam, que lhes

edifiquemos novas e enriquecedoras vias de acesso a uma adultez sólida e que saibamos

construir- lhes espaços onde a sua espontaneidade e espírito criador possam acontecer em

plena liberdade.

Ainda que os propósitos se situem, porventura, no domínio da utopia, aceitemos o

desafio com a esperança de que é possível realizá- los plenamente um dia destes.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

171

3. UM PAPEL DETERMINANTE PARA TRÊS INSTITUTOS DOS TEMPOS

HODIERNOS

A tão propalada e por aqui já lembrada crise da escola de massas, o insuficiente,

disperso e descoordenado número de organizações não oficiais a trabalhar com crianças ou

com tal propósito no seu objecto constitutivo e o ingresso em força da mulher no mundo do

trabalho, têm remetido, necessariamente, a sociedade para a procura de formas cooperativas

na busca da solução para os problemas com que se debate nos mais diferentes domínios, fruto

de políticas inconsequentes de protecção da infância, sobretudo no preenchimento do tempo

que medeia entre o aconchego do lar e a obrigação de ir à escola.

A intervenção comunitária na procura de uma saída para as questões que no seu seio

reclamam uma resposta emerge, a nosso ver, como algo de incontornável face, por um lado, à

incapacidade que o Estado tem demonstrado para responder cabalmente per si pelo bem-estar

social e, por outro lado, à necessidade de implicar a sociedade na construção de políticas que

tenham como objectivo fulcral preencher lacunas que vão conturbando o seu normal

funcionamento.

Assim tem acontecido, nomeadamente e entre outras, com a intervenção comunitária na

protecção de crianças e jovens em perigo (Gersão, 2000) e com o envolvimento do meio com

a sua escola e o consequente reconhecimento da relevância das aprendizagens para os alunos,

que a conquista de novos ambientes de ensino não formal no interior das comunidades

potencia (Martin-Moreno, 1989).

É claro que todo este envolvimento reclama aproximações institucionais e abertura

suficiente das instituições para a prossecução de políticas interventivas no domínio da

infância partilhadas e protocoladas, onde a figura da escola, enquanto detentora de

ferramentas essenciais, emerge, quiçá, como núcleo congregador desse espírito comunitário,

onde, por natureza e dever de função, se integra.

Será pela concorrência efectiva destes factores que se poderão traçar novos horizontes

para uma abordagem diferente da problemática em equação, que, julgamo-lo, ajudará a

resolver com algum proveito.

Por isso, parece-nos propositado que nos detenhamos com algum pormenor e

demora em torno de três institutos dos tempos hodiernos, consubstanciadores, no essencial, de

tudo quanto mais atrás ficou dito e, desta forma, potencialmente capazes de suportarem com

sucesso a árdua missão de se constituírem como uma resposta adequada às preocupações

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

172

emergentes do estudo em questão e, consequentemente, ficarem como um contributo para

futuras intervenções contextualizadas.

3.1. O Partenariado

A palavra partenariado (em inglês partnership e em francês partenariat) serve para

designar uma situação de colaboração entre membros de organizações diferentes, assumindo-

se como educativo quando o objecto de tal relação de colaboração inter- institucional visa

objectivos educacionais, escolares ou extra-escolares.

Na sustentação de Barbier, o partenariado baseia-se “na constatação pelas diferentes

partes da sua convergência de interesses no lançamento de uma acção, no reconhecimento de

objectivos comuns, na identificação dos meios que uns e outros são susceptíveis de utilizar

em conjunto e na construção de projectos comuns, mas portadores de significações múltiplas

(cit. Canário, 1995: 152).

Estes princípios enformaram no mundo ocidental imensas ligações entre escolas e

empresas visando facilitar a integração dos jovens no mundo do trabalho e, segundo um

relatório da OCDE de 1992, as parcerias entre escolas e empresas estavam, por essa altura,

fortemente disseminadas em Inglaterra e nos Estados Unidos.

A partir do final da década de oitenta, os partenariados escola-empresa conhecem um

novo impulso e extravasam a relação de integração profissional que os caracterizou e passam,

como refere Canário (1995: 153), a ter objectivos mais amplos, constituindo-se em instâncias

permanentes de articulação entre escola e sociedade, a nível local, alargando-se, desse modo,

o conceito de parceiro, que passa a abranger os pais, os diferentes organismos que aí se

ocupam de crianças e jovens, as autarquias, as associações e os mais diversos elementos da

comunidade, com reconhecimento da centralidade do papel da escola enquanto detentora de

um saber único sobre as necessidades das crianças e famílias.

É, naturalmente, dentro deste domínio que o partenariado poderá reunir um conjunto

de parceiros potencialmente apetrechados e, como tal, capazes de construir projectos de

intervenção poderosos, envolvendo escolas entre si, escolas pais e alunos, escolas e outras

instituições ou elementos da comunidade ou mesmo todos enleados em verdadeiras cadeias de

solidariedade activa. Naturalmente, que um lugar importante terá que, em qualquer dos casos,

ficar reservado ao poder local por razões de poder, estratégia e meios facilmente

descortináveis.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

173

Finalmente, reconheça-se ao partenariado a possibilidade, que diríamos única, de

permitir que uma grande variedade de parceiros intervenha com uma coerência de conjunto

para resolverem questões que a todos interessam.

Para a instituição e consequente rentabilização das vantagens que de um partenariado

com fins educativos pode advir, é possível, hoje, recentralizar a temática em torno de uma

outra forma de organização comunitária, que nos aparece firmada pela norma, o que lhe

confere uma efectiva força, que a pode transpor com sucesso para o domínio do concretizável.

3.2. A Comunidade Educativa99

Até há muito pouco tempo atrás – publicação do DL n.º 115-A/98, de 4 de Maio – e

por muito que se dirimissem argumentos justificativos do contrário, a verdade é que a escola

básica do primeiro ciclo viveu um longo tempo de exclusividade no domínio da gestão e

administração da instrução pública dos jovens, sendo, praticamente, inexistente qualquer

espaço para uma intervenção activa de outros actores ou clientes interessados no processo.

Desta forma, as questões emergentes da complexidade do processo educacional

foram tratadas longe de uma sociedade que foi olhando a escola mais como uma parte dos

problemas dos jovens, do que como um meio privilegiado para a sua resolução.

Algumas tentativas para em cada escola mudar o rumo das coisas estiveram sempre

condicionadas “às lógicas de acção em presença” (Sarmento, 2000c: 508), que condicionaram

a atitude do meio escolar perante as pressões que do exterior vinham no sentido de uma

abertura e de um efectivo envolvimento da escola com a comunidade que a rodeava e que

reclamava para si um papel cada vez mais interventivo numa matéria que, de sobremaneira,

lhe interessava. À falta de um fio condutor, a desejada entrada da comunidade na escola ficou

sempre, como constata Sarmento (idem), à mercê das distintas interpretações que em cada

contexto era dado a tal desiderato e, por isso, condicionada nas consequências desejadas à

dimensão que o espaço de penetração que lhe era reservado permitia efectivamente alcançar.

Hoje, as coisas têm uma configuração diferente e apresentam margens de progressão

susceptíveis de produzirem resultados diferentes em matéria de políticas de cooperação

institucional no seio de cada comunidade visando áreas de interesse comum, onde,

naturalmente, a educacional adquire grande preponderância.

99 Para a compreensão desta nova realidade subjacente à escola de hoje muito contribuíram alguns estudos, designadamente, os desenvolvidos por Formosinho (1989), Sarmento e Formosinho (1995), Sarmento e Ferreira (1995a), Sarmento e Ferreira (1995b).

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

174

Na verdade, a nova organização da escola básica e secundária pública emergente da

publicação e entrada em vigor do normativo legal acima citado, consagrou a figura da

Assembleia de Escola ou Agrupamento de Escolas100, órgão deliberativo que congrega no seu

seio representantes dos professores, funcionários, pais, câmara municipal e das actividades de

carácter cultural, artístico, ambiental e económico, ou seja, institui uma verdadeira e efectiva

comunidade educativa, que, no fundo, mais não é do que uma outra instituição dentro da

instituição escolar, representativa e com poderes para definir políticas educativas locais de

grande alcance, mesmo para além da necessária expressão curricular que a escola está

obrigada a prosseguir em primeira instância, com natural relevância, pelo alcance de que se

reveste, para o projecto educativo.

É, pois, natural que com este novo e variado leque de interessados no processo

educativo cheguem, também, outros problemas que extravasem o âmbito lectivo e venham

engrossar o rol das preocupações que hoje mais visivelmente atravessam o mundo da infância.

Porém, se antes falávamos da fragilidade da presença comunitária no centro de

decisão do processo educativo, agora estamos perante um instituto fortalecido pela força da

lei, que lhe deu este novo estatuto e, nessa medida, o alcandorou a um lugar de destaque na

sociedade de hoje.

Bem sabemos que a lei, por si própria, não basta para que o potencial que aqui se

atribui à comunidade educativa triunfe de imediato. Todavia, reconhecer- lhe o valor e o

alcance de que se pode revestir para o processo educativo dos jovens, escolar e extra-escolar,

é o melhor contributo para que a sua instituição, mais do que um mero imperativo legal,

constitua, efectivamente, uma outra abordagem à forma de fazer escola hoje, onde a educação

dos jovens não se esgota nas aulas curriculares e os tempos não escolares se assumem,

também, como espaços de formação que urge valorizar e aproveitar.

Dir-se-á que com a instituição de comunidades educativas activas e actuantes, porque

instituídas de poderes específicos alargados101, ganhará expressão redobrada a instituição de

partenariados, pois tal ocorrerá num contexto formal especificamente vocacionado para a

concepção e implementação de políticas educacionais locais, contextualizadas e direccionadas

para um público já conhecido em todas as suas dimensões, centradas e projectadas a partir da

escola, que, deste modo, adquire, também, uma nova dimensão sócio-comunitária.

100 Art. 8.º, do Decreto-Lei n.º 115-A/98, de 4 de Maio. 101 Art. 10.º, do Decreto-Lei n.º 115-A/98, de 4 de Maio.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

175

3.3. A Escola de Projecto Autónoma

Para completar o que podemos chamar de triângulo operativo no domínio da

construção de políticas de intervenção local focalizadas na infância e de forte cariz

comunitário, falta que nos demoremos um pouco em torno do novo conceito de escola básica,

hoje um processo de construção social, posta que ficou a sua consagração normativa pela

entrada na ordem legal do já citado DL n.º 115-A/98, de 4 de Maio.

A escola de projecto, é disso que nos ocuparemos agora, consubstancia, para além

do que à volta do conceito já dissemos noutro local deste estudo, os ingredientes necessários

para a assunção de um papel central na congregação de todas as energias que no interior da

comunidade onde se integra pululam à espera de quem as reúna e faça rumar num mesmo

sentido.

É aqui que o projecto educativo, enquanto instrumento poderoso de autonomia102,

emerge como o ponto de encontro das aspirações e anseios que marcam localmente cada

comunidade em particular, com as suas especificidades e problemas próprios, e lhe abre o

espaço de que carece para dar livre expressão e tradução prática a políticas de intervenção que

estão para além das obrigações de índole curricular nacional. Como sustenta Antunez et al., o

projecto educativo “é um contrato que compromete e vincula todos os membros da

comunidade educativa numa finalidade comum sendo o resultado de um consenso a que se

chega depois de uma análise de dados, de necessidades e de expectativas” (cit. Leite, 2001:

12).

Desta forma, a integração comunitária, enquanto pressuposto para que a instituição

escolar se insira numa realidade social concreta, vai permitir redimensionar a escola na

sociedade, que passa, assim, a servir, não como ancestral meio de instrução, mas como um

moderno espaço onde se concentram todas as forças que em cada lugar comungam objectivos

e partilham preocupações que desejam resolver em conjunto.

O projecto educativo será, no fundo, o espelho das expectativas de vida de cada

comunidade de onde emana e, concomitantemente, a medida da sua capacidade para as

102 “Entende-se por autonomia da escola a capacidade de elaboração e realização de um projecto educativo em benefício dos alunos e com a participação de todos os interessados no processo educativo” (n.º 1, do art. 2.º, do Decreto-Lei n.º 43/89 – Regime Jurídico da Autonomia da Escola. Este normativo legal passou a valer para o 1.º Ciclo do Ensino Básico e Educação Pré-Escolar por força do determinado pelo Decreto-Lei n.º 115-A/98, de 4 de Maio). “A autonomia da escola concretiza-se na elaboração de um projecto educativo próprio, constituído e executado de forma participada, dentro de princípios de responsabilização dos vários intervenientes na vida escolar e de adequação a características e recursos da escola e às solicitações e apoios da comunidade em que se insere” (Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 115-A/98, de 4 de Maio).

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

176

concretizar, constituindo “uma imagem antecipada do caminho a seguir para intervir

positivamente numa dada realidade” (Leite, 2001: 13).

No que particularmente nos interessa, o projecto educativo reúne condições essenciais

para se assumir como um instrumento de planeamento onde cabe a esperança de se poder

encontrar novas respostas para velhos problemas que se colocam no seio da comunidade

educativa, convocando para participar na empreitada parceiros que, entretanto, de uma forma

desgarrada e pouco consequente, se têm, eventualmente, desgastado num subaproveitamento

de potencialidades hoje de todo inaceitável.

À escola caberá, aqui, relembre-se, um papel fundamental como núcleo duro da

estrutura comunitária com fins educativos assim montada à sua volta, incumbindo- lhe a

importante missão de fazer andar toda a engrenagem de uma forma harmoniosa, de modo que

a caminhada se faça sem sobressaltos, não defraudando as expectativas que sobre ela recaem.

4. SÍNTESE FINAL

Chegados ao fim do trabalho, retomamos o tema de fundo a partir do qual todo o estudo

foi estruturado: a ocupação do tempo não escolar dos jovens que medeia entre a escola e a

família, coincidente, não raras vezes, com o tempo em que os pais estão nos seus empregos.

Reconhecido o valor do tempo livre e do tempo de lazer na formação das crianças e,

simultaneamente, o perigo que para elas representa a sua ocupação desregrada e desajustada,

conhecida, ainda, a necessidade e a dificuldade que hoje se coloca a grande número de

famílias em encontrar um abrigo para os filhos enquanto trabalham, a questão em apreço

assevera-se como um problema social com grande visibilidade. Que novos caminhos se

poderão traçar e abrir para se lhe poder responder?

No contexto estudado a situação que encontramos no terreno revelou-nos duas

realidades distintas até agora desconhecidas, mas que bem conjugadas nos podem conduzir a

resultados interessantes para a prossecução dos nossos propósitos.

A primeira dessas realidades pudemos desvendá- la a partir dos encontros e desencontros

a que os resultados do inquérito feito às crianças nos conduziram. O meio estudado apresenta,

para além da escola, uma fraca presença de instituições dedicadas às crianças e,

consequentemente, nota-se nele, com a excepção da catequese e do inglês, um escasso

envolvimento de jovens em actividades institucionalizadas sob a supervisão de adultos

(quadro 18), o que potencia fortemente a emergência de inúmeros espaços onde a maioria das

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

177

crianças passa o tempo entregues a si próprias, muitas das vezes sozinhas em casa e/ou na rua,

a ver TV e a brincar (quadro 19).

Quadro 18

Espaços Institucionalizados de Ocupação dos Tempos Livres

Espaço N.º de Crianças Envolvidas %

ATL Escuteiros Catequese Música Inglês

43 27 124 21 87

21,70% 13,60% 62,60% 10,60% 43,90%

Fonte: Questionário (Total Frequência = 198)

Para além disto, o mundo não escolar das crianças investigadas não é, propriamente,

composto de coisas que lhes despertem um particular interesse, mas é recortado por

temporalidades onde o que por lá se passa lhes causa desgosto (quadro 11 – pág. 145),

enquanto actores principais desses filmes do quotidiano aí repetidos indefinidamente.

Quadro 19

Espaços e actividades onde as crianças passam o tempo entregues a si próprias

Espaço/Actividade N.º de Crianças Envolvidas %

Brincar na rua Brincar em casa Ver TV Ouvir Música

56 146 142 92

28,30% 73,70% 71,70% 46,50%

Fonte: Questionário (Total da Frequência = 198)

O panorama fica ainda mais ensombrado quando percebemos que muito do que ajuda

a construir a educação do nosso e para o nosso tempo, a que a escola não pode por si só

responder, passa completamente ao lado da maioria dos inquiridos. Não ter acesso a uma

aprendizagem no domínio das novas tecnologias e, dentro destas, ao já popular e, quase que o

podemos afirmar, banal computador ou não poder aprender uma língua, não conseguir aceder

aos benefícios da educação musical (quadro 20), são exemplos reveladores de algo deveras

inquietante, que menoriza o crescimento de toda esta plêiade de jovens debutantes que

estudamos.

Page 198: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

178

Quadro 20

Acesso a meios educativos não escolares

Meio Educativo N.º de Crianças Envolvidas %

Computador

Inglês

Música

40

87

21

20,20%

43,90%

10,60%

Fonte: Questionário (Total da Frequência = 198)

O resultado de conjunto mostra-nos um quadro de vida entre a família e a escola

caracterizado por uma forte dispersão das actividades das crianças, notando-se a inexistência

de um bloco abrangente capaz de dar um sentido a este lado do processo socializador.

Uma outra realidade é a que emerge do essencial a que nos reportou a informação

veiculada a partir das entrevistas. Paradoxalmente, responsáveis locais por instituições que

têm responsabilidades no domínio da infância, a quem se poderá assacar alguma passividade

perante o pobre panorama atrás descrito em matéria de oferta de actividades de ocupação de

tempos livres, aparecem-nos verdadeiramente despertos para a problemática e com uma visão

integrada do caminho que entendem dever seguir-se para a sua abordagem numa perspectiva

de sucesso.

Fomos, aqui, confrontados com a defesa da ideia, alargada à maioria dos entrevistados,

de que a envergadura da questão em apreço não pode ser resolvida de uma forma isolada, e,

ainda, com a convicção de todos de que ninguém, nem nenhuma estrutura no seio de cada

comunidade, é reconhecidamente tida como suficientemente forte para a encarar e resolver

sozinha.

Há, assim, deste lado importante do contexto, uma fo rte percepção de que só uma

política de intervenção coordenada, que a todos envolva num mesmo propósito, poderá

responder com eficácia ao que se pretende. Neste sentido, a escola é unanimemente

reconhecida como locus privilegiado para congregar todas as sinergias locais e pilotar a

elaboração e a execução de projectos que tenham como finalidade resolver a questão que

temos mantido em aberto desde o princípio deste estudo.

Acreditamos e, por força desta crença, apostamos na escola como entidade com

vocação, competência e meios suficientes para concentrar à sua volta todos quantos se

mostram predispostos a emprestar o seu contributo empenhado para a construção de um

projecto de ocupação dos tempos não escolares dos jovens multifacetado e rico no seu

conteúdo, onde, naturalmente, à família, enquanto primeiro responsável pela condução da

Page 199: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

179

educação dos filhos e ao poder local, como detentor da capacidade de decidir politicamente

muito do que se pode fazer no terreno, estão reservados papéis de primordial importância.

A consistência deste caminho parece-nos insuspeita. A escola de hoje congrega à sua

volta todos os interessados no seu serviço público consubstanciado no processo de ensino-

aprendizagem dos alunos que a sociedade esperançosamente lhe confia. A par disto, está

legalmente obrigada a organizar-se em torno de um projecto educativo e de toda a filosofia

que lhe está subjacente, através do qual realizará a sua autonomia, afirmando uma imagem de

marca em cada local onde se insira, que passará, inevitavelmente, por uma demonstração de

que está atenta às grandes questões que hoje se colocam na esfera da infância e que

extravasam a dimensão curricular que tem marcado a sua história existencial desde sempre.

E será por aqui que apostamos, também, na construção de uma política de ocupação dos

tempos não escolares e não familiares dos jovens planeada em moldes que salvaguardem

aspectos que antes evidenciamos como lacunares, com uma particular incidência nos

necessários e retemperadores espaços de lazer, onde as crianças, possibilitadas de fazer o que

gostam e podendo usar discricionariamente de um tempo, darão expressão à sua criatividade e

espontaneidade.

Caberá à escola levar a cabo, no seu interior e no das instituições que congregará no

desenvolvimento do projecto, processos de mediação para actividades tão importantes, mas

deles tão carecidas, como, de uma forma paradigmática, é o caso do consumo de televisão.

Desta forma, a escola constituir-se-á como um verdadeiro espaço de vida das crianças,

naquilo que poderemos designar apropriadamente como centro local da infância, que em cada

agrupamento de escolas e, dentro deles, no coração de cada aldeia, se assuma como sede

própria de onde emane o plano de intervenção atinente a uma ocupação segura e significativa

dos tempos livres dos seus alunos.

Investida neste novo papel a escola adquirirá uma outra dimensão para além da sua

secular função instrutiva, obrigando-a a uma reorganização que lhe permita responder aos

novos desafios que se lhe colocarão a partir daqui, catapultando-a para novos contextos no seu

interior, ou a partir dele, onde será chamada a desempenhar diferentes funções e

responsabilidades, que se assumem, na verdade, como bons pretextos para a construção de

novos espaços educativos.

Um apontamento final para uma emergência hoje incontornável no domínio da infância:

a necessidade de ouvir as crianças.

Nada do que se disse acima terá sentido se não se suportar em decisões que contem,

também, com uma forte participação prévia das crianças na sua construção, sobretudo no que

Page 200: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

180

respeita às políticas e programas de ocupação de tempos livres a implementar no terreno e ao

elenco das actividades que lhes darão expressão prática.

É chegado o momento de virar a página da história que nos fala de um tempo em que a

infância se construiu à medida e imagem dos adultos que lhe guiavam o caminho e onde os

mais pequenos não tinham voz. Por isso, não é difícil encontrar quadros que nos mostram

crianças pouco satisfeitas com muito do que fazem no dia-a-dia, sendo evidentes, a este

propósito, alguns dos dados revelados pelo nosso estudo.

Saibamos que nunca poderemos fazer as crianças verdadeiramente felizes se não

soubermos escutá- las, se não conseguirmos estar calados o tempo suficiente para que a sua

voz se ouça na cidade.

Num tempo em que a humanidade deambula entre o fantástico e a barbárie, em que

novos medos pairam sobre a terra inteira, deixamos, por fim, quiçá, como caminho para a

edificação de uma nova era, o apelo feito pela Directora Executiva da UNICEF, Carol

Bellamy, aquando da apresentação do relatório anual de 2001 sobre a Situação Mundial da

Infância, na cidade do México:

“Num mundo marcado por conflitos e dividido pela pobreza, é absolutamente

essencial que as crianças e os jovens sejam chamados, ouvidos e que lhes seja dado um

papel activo na construção de um futuro melhor para eles próprios.”

Para que, acrescentamos nós, cada criança seja, de facto, um sujeito de direitos em toda

a sua plenitude.

Page 201: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

198

NORMATIVOS LEGAIS

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

199

Constituição da República Portuguesa

Declaração dos Direitos da Criança – Ratificada por Portugal em 21/10/1990.

Lei n.º 46/86, de 14 de Outubro – Lei de Bases do Sistema Educativo.

Lei n.º 30/2002, de 20 de Dezembro – Aprova o Estatuto do Aluno do Ensino não Superior.

Decreto-Lei n.º 43/89, de 3 de Fevereiro – Aprova o Regime Jurídico da Autonomia da

Escola.

Decreto-Lei n.º286/89, de 29 de Agosto – Organização Curricular do Ensino Básico

Decreto-Lei n.º 147/97, de 11 de Junho – Programa de Expansão e Desenvolvimento da

Educação Pré-escolar.

Decreto-Lei n.º 133-A/97, de 30 de Maio – Actividades de Tempos Livres

Decreto-Lei n.º 153-A/97, de 30 de Maio – Promoção de Actividades de Tempos Livres.

Decreto-Lei n.º 115-A/98, de 4 de Maio – Aprova o regime de autonomia, administração e

gestão dos estabelecimentos públicos da educação pré-escolar e dos ensinos básico e

secundário, bem como os respectivos agrupamentos.

Decreto-Lei n.º 270/98, de 1 de Setembro – Estatuto dos Alunos dos Estabelecimentos

Públicos dos Ensinos Básico e Secundário.

Decreto-Lei n.º 6/2001, de 18 de Janeiro – Reorganização Curricular do Ensino Básico.

Despacho n.º 141/ME/90, de 1 de Setembro – Aprova o Modelo de Apoio à Organização das

Actividades de Complemento Curricular.

Despacho n.º 142/ME/90, de 1 de Setembro – Área-Escola.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

200

Despacho n.º 147-B/ME/96, de 8 de Julho – Territórios Educativos de Intervenção Prioritária.

Despacho Normativo n.º 373/2002, de 27 de Março – Distribuição de Turmas, Horários de

Funcionamento e Matrículas.

Page 221: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

201

FONTES DE INFORMAÇÃO

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

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PDM – Plano Director Municipal do Concelho de Vila Verde

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PORTUGAL. Instituto Nacional de Estatística (1981). XII Recenseamento Geral da

População. II Recenseamento Geral da Habitação. Lisboa: Serviços Centrais;

PORTUGAL. Instituto Nacional de Estatística (1991). Censo Geral da População de 1991.

XIII Recenseamento Geral da População. III Recenseamento Geral da Habitação. Lisboa:

Serviços Centrais;

PROJECTO EDUCATIVO do Agrupamento de Escolas da Sede – Vila Verde;

REGULAMENTO INTERNO do Agrupamento de Escolas da Sede – Vila Verde.

Page 223: Contextos e Pretextos Para Novos Espaços Educativos

Contextos e pretextos para novos espaços educativos

203

PROLONGAMENTOS

Não abundam, ainda, dado o recente eclodir do fenómeno, estudos em torno das

problemáticas que povoam o(s) mundo(s) da infância nas suas mais variadas dimensões.

O estudo que acabamos de dar à estampa insere-se, quiçá, numa das áreas com maior

“deficit” investigativo e, consequentemente, a reclamar dos cientistas sociais uma atenção

muito especial.

Conscientes de que o contributo que emprestamos com este nosso trabalho está muito

longe de produzir o conhecimento suficiente para que se possa dominar com alguma

segurança a problemática que emerge da ocupação do tempo que as crianças têm que passar

entre a escola e a família, não queremos terminar a nossa tarefa sem deixar algumas ideias que

podem constituir-se como mote para prolongamentos do estudo que agora terminamos.

De interesse relevante para o aprofundar do campo atrás estudado seria estender a

investigação para dentro das instituições que têm a seu cargo o desenvolvimento de

actividades com crianças e procurar conhecer a dimensão da sua acção, nomeadamente, se

elas contribuem para a felicidade dos seus utentes, se têm projectos centrados no interesse das

crianças ou se perseguem uma lógica de escola ou de mera guarda dos jovens que as

frequentam. Sairiam daqui, muito provavelmente, achegas interessantes, algumas

naturalmente provenientes da voz das próprias crianças, que permitiriam acautelar o perigo

que a sociedade corre de, num futuro próximo, enclausurar positivamente os seus mais

pequenos e, quiçá, quebrar- lhes de vez o ânimo que a longa jornada que o seu crescimento

encerra carece para que chegue ao fim com o sucesso que todos desejam.

De alcance incomensurável para a afirmação de uma política de participação das

crianças seria o desenvolvimento de um estudo de investigação-acção que acompanhasse a

implementação e avaliação continuada da instalação e funcionamento de uma assembleia de

alunos representativa de todos os estabelecimentos de ensino de um agrupamento de escolas e

perceber, assim, até que ponto a sua acção, fruto e produto de um trabalho prévio em cada

escola, se assumirá como determinante na vida do organização escolar no que concerne à

escolha das temáticas de estudo curricular, à elaboração dos planos de actividades e, até, no

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

204

âmbito da construção do próprio projecto educativo. Porque acreditamos que é por aqui que se

poderá construir uma escola onde as crianças também gostem de ir às aulas tanto como, sabe-

se, gostam de ir à escola, colocamos nesta sugestão de prolongamento do nosso trabalho uma

particular simpatia, já que, também, aí poderá constituir-se como determinante para a

implementação de políticas de ocupação de tempos livres de que as crianças gostem e, como

tal, se assumam como espaços significativos de outras aprendizagens e de momentos de lazer

tão do seu agrado.

Centrado apenas no domínio do lazer, visto como um inalienável direito das crianças,

parece-nos poder revestir-se de interesse promover uma investigação que nos revelasse com

pormenor o elenco das actividades que as crianças elegeriam para ocupação do seu tempo fora

da escola. Certamente que iríamos, em complemento do que antes fizemos, perceber se o

quotidiano que os adultos constroem para as crianças corresponde às suas aspirações e anseios

ou se não passa de uma absoluta “chatice” que lhes vai tornando o passar do tempo penoso e,

desta maneira, sem o devido proveito.

No fundo, o que se deixa recomendado mais não representa do que o desejo que nos

move de que se avance, sem delongas, com a implementação de políticas interventivas que

promovam processos de participação, directa ou indirecta, das crianças na construção dos seus

percursos de vida, numa clara assunção da infância como grupo social independente de todos

os demais e, concomitantemente, com direito a ter voz em tudo quanto lhe disser directamente

respeito.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

205

RECOMENDAÇÕES

As conclusões do estudo que levamos a cabo estão construídas na perspectiva de uma

espécie de mobilização geral, que a nível local se defende como caminho firme para se

promover a implementação de políticas sustentadas direccionadas para a infância,

particularmente para os problemas com que hoje continua confrontada e de que a temática que

desenvolvemos constitui exemplo paradigmático.

Na altura apropriada enfatizamos o papel deveras importante que, na nossa perspectiva

de mobilização comunitária para a resolução de problemas, cabe ao poder local em geral e, de

um modo muito particular, às câmaras municipais enquanto detentoras de meios políticos e

financeiros determinantes para o sucesso de uma qualquer intervenção.

Notamos, porém, que vai faltando, um pouco por todo o lado, salvaguardadas as

habituais excepções, alguma coragem aos municípios para avançarem decididamente com a

tomada de medidas que se constituam como verdadeiros motores na emergência de

intervenções continuadas no domínio da infância.

Sendo os jovens, predominantemente, o grupo etário mais numeroso e aquele por onde

passa o futuro próximo de cada comunidade, não deveriam as câmaras, para além de na sua

estrutura organizacional terem serviços apropriados e especificamente virados para os mais

novos, instituir um pelouro da infância? E, dada a premência com que os problemas das

crianças aparecem diariamente em catadupa, não aproveitaria muito à sua cuidada e célere

resolução se na dependência da presidência da câmara funcionasse um gabinete para a

infância, que apenas das questões aí centradas se ocupasse?

Ainda no domínio municipal, pensamos que a ideia de uma assembleia municipal

jovem, a quem se garantisse, à partida, um ampla representatividade local e um

funcionamento regular, para além de um belo exercício de cidadania e de um excelente

laboratório de ensaio para a consolidação junto dos jovens participantes do espírito de uma

verdadeira democracia representativa e participativa, poderá constituir um fórum de onde

emane um conjunto de propostas de todo válidas para a construção das políticas locais

direccionadas para a infância, onde a voz das crianças encontraria, assim, algum eco.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

206

Numa outra vertente, a escolar, constata-se que apenas um dos sete agrupamentos em

que se organiza no concelho de Vila Verde a escola pública não superior instituiu uma

“assembleia de alunos”, que vai reunindo regularmente para dar as achegas que os pequenos

membros entendem interessar- lhes em matérias que vão desde os casos particulares de cada

estabelecimento de ensino, passando pelo tema à volta do qual se desenvolverá o projecto

curricular do agrupamento, até à sugestão de actividades a integrar no plano anual, tudo isto

antecedido de prévios debates em cada uma das escolas e jardins representados nesse órgão

consagrado no regulamento interno.

A participação das crianças na definição das políticas que lhes digam directamente

respeito é uma questão verdadeiramente incontornável para a afirmação de uma infância com

direito a ter voz. Esta necessidade imperiosa carece de tradução prática, reclamando, por isso,

acções concretas por parte de todos quantos se ocupam e preocupam com as crianças.

Nesta conformidade e enquanto locus privilegiado e exclusivamente vocacionado para

as questões da infância, não pode a escola e a estrutura que hoje lhe dá outra dimensão, o

agrupamento, alhear-se desta realidade e, concomitantemente, continuar fechada ao

desenvolvimento de campos de intervenção onde os alunos tenham voz de verdade, como é,

incontestavelmente, o caso das assembleias de alunos.

Às câmaras municipais e aos agrupamentos de escolas fica, pois, a nossa viva

recomendação de que, enquanto entidades charneira no domínio da promoção de políticas

direccionadas para a infância, não protelem mais a implementação de medidas atinentes a

uma efectiva valorização do papel interventivo das crianças em matérias que lhes digam

respeito, tal qual como, concretamente, atrás o sugerimos.

A infância vive hoje, inquestionavelmente, um tempo de viragem significativa em

relação à forma como até aqui tem sido olhada, o que se tem traduzido num avanço efectivo

da sua situação social.

Todavia, todos reconhecemos subsistirem, ainda, muitos e delicados problemas para e

por resolver e que, nessa medida, ainda há muito caminho para andar, que pequenos e seguros

passos, como os que aqui recomendamos, ajudará a encurtar, por forma a que não tarde muito

até que se lhe consiga ver o fim.

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Contextos e pretextos para novos espaços educativos

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ANEXOS