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http://www.pedagogiaemfoco.pro.br/ 28-12-04 Contos do Vigário Pedro Demo Sempre me intrigou que próceres da mudança sejam, freqüentemente, os que mais resistem a ela. A pedagogia fala, todo dia - toda - hora -, em “transformação social”. Temo que sequer ela saiba o que seja isso, pois se tivesse alguma autocrítica, não prometeria o que está tão astronomicamente distante dela. Torres (1998, p. 133) aponta para a análise da pedagogia crítica, por esta apresentar-se, muitas vezes, como “pedagogia transformativa em geral”, apenas genérica, desligada dos movimentos sociais, longe da política concreta, no fundo, domesticada. É desolador receber esse tipo de censura, porque, na prática, o que se faz, é atirar contra esta pedagogia usando a sua própria arma. Pode-se confundir teoria com prática: pedagogia seria, em teoria, proposta transformadora. Mas, até pelo uso de termo tão forte - transformar não é qualquer mudança, mas aquela que vai além dos parâmetros vigentes -, tenho a impressão de que se fala tanto em transformação para evitá-la. O discurso é feito para desviar a atenção. Parece contraditório, porque, na linguagem usual, ao falarmos de algum assunto, estamos nos referindo a ele. Aqui, a exegese aponta para outra direção: a insistência teórica é feita para evitar a prática. Enquanto se afirma, a torto e a direito, o poder transformador da pedagogia, estamos dispensados de colocá-la na berlinda, refazer-lhe o currículo, mudar a aprendizagem, reconstruir a didática, redefinir os professores e assim por diante. Como “quem muito prega a moral, mais dela precisa”, faço aqui o esforço de decifrar preliminarmente este enigma, que em Lógica, podemos chamar de contradição performativa: fazer discurso que se destrói a si mesmo.

Contos Do Vigario - Ironias Da Educ - Ext - Pedro Demo

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http://www.pedagogiaemfoco.pro.br/ 28-12-04

Contos do Vigário

Pedro Demo

     Sempre me intrigou que próceres da mudança sejam, freqüentemente, os que mais resistem a

ela. A pedagogia fala, todo dia - toda - hora -, em “transformação social”. Temo que sequer ela

saiba o que seja isso, pois se tivesse alguma autocrítica, não prometeria o que está tão

astronomicamente distante dela. Torres (1998, p. 133) aponta para a análise da pedagogia crítica,

por esta apresentar-se, muitas vezes, como “pedagogia transformativa em geral”, apenas genérica,

desligada dos movimentos sociais, longe da política concreta, no fundo, domesticada. É desolador

receber esse tipo de censura, porque, na prática, o que se faz, é atirar contra esta pedagogia

usando a sua própria arma. Pode-se confundir teoria com prática: pedagogia seria, em teoria,

proposta transformadora. Mas, até pelo uso de termo tão forte - transformar não é qualquer

mudança, mas aquela que vai além dos parâmetros vigentes -, tenho a impressão de que se fala

tanto em transformação para evitá-la. O discurso é feito para desviar a atenção. Parece

contraditório, porque, na linguagem usual, ao falarmos de algum assunto, estamos nos referindo a

ele. Aqui, a exegese aponta para outra direção: a insistência teórica é feita para evitar a prática.

Enquanto se afirma, a torto e a direito, o poder transformador da pedagogia, estamos dispensados

de colocá-la na berlinda, refazer-lhe o currículo, mudar a aprendizagem, reconstruir a didática,

redefinir os professores e assim por diante.

     Como “quem muito prega a moral, mais dela precisa”, faço aqui o esforço de decifrar

preliminarmente este enigma, que em Lógica, podemos chamar de contradição performativa: fazer

discurso que se destrói a si mesmo. Pedagogia transformadora deveria, para ser minimamente

coerente, primeiro, transformar-se a si mesma. Pois é impossível ser transformadora mantendo-se

sempre a mesma. Entretanto, é tudo o que a pedagogia faz: avalia, mas não aceita ser avaliada;

questiona, mas detesta ser questionada; quer inovar, mas não se inova. Tem-se, então, a maior

ironia de todas: os profissionais da aprendizagem, por vezes, são os que menos sabem aprender.

Vivem dando aula, mas de modo reprodutivo, demonstrando que são o oposto da aprendizagem

adequada. Todos, em torno da escola, falam que educação e conhecimento são fatores centrais

das mudanças, mas a escola continua a mesma. Pior: os professores organizam-se, não para

potencializar as mudanças e direcioná-las educativamente, mas para coibi-las. Sempre são contra.

Não são apenas contra as transformações neoliberais, mas são contra qualquer mudança, porque

consideram a escola território intocável. Temem a mudança, em vez de exercitar o que dizem na

teoria: a educação é o princípio decisivo da mudança, com a vantagem de portar em si, se bem

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entendida, também o princípio ético-político. Por isso Kerchner et alii (1997, p. 15), fazendo

vibrante defesa da escola pública nos Estados Unidos, não se furtam de dizer que é extremamente

constrangedor constatar que as escolas se tornaram centros de resistência e ocupação. É

fundamental manter atitude crítica diante do capitalismo, do estado, do governo e dos burocratas,

mas muito mais fundamental, é garantir a aprendizagem dos alunos, que deveria ser ponto de

partida e de chegada.

     A universidade, por sua vez, resiste bravamente, em parte à esquerda, porque imagina que toda

mudança venha das bandas neoliberais, em parte à direita, porque teme perder as aulas, ter de

estudar sempre e produzir sistematicamente. Enquanto o mercado anda em ritmo cada vez mais

veloz por conta dos processos informatizados (GLEIK, 1999), a universidade permanece onde

sempre esteve, contemplando impassível a cena, por cima, sem perceber que está totalmente por

baixo. Não consegue vislumbrar nada de cima, porque se alojou no porão da História. Esta

pergunta me intriga: Por que seria a universidade instituição tão reacionária? Os alunos precisam

aprender de verdade, se quiserem ter alguma chance, mas é isto o que menos se faz, porque a

instituição não sabe aprender. Está repleta de teorias vanguardistas, mas para os outros. Ela

mesma é a primeira a não usar suas teorias de mudança. Que sentido teria tamanha hipocrisia?

Diante dos desafios do futuro, essa resistência é inútil, ignorante mesmo, porque apenas retira a

universidade do fulcro histórico, tornando-a cada vez menos relevante.

     Ao mesmo tempo, assume facilmente “modismos”, revelando pouca solidez em seus

posicionamentos. Sobreveio a “qualidade total”, e ela foi, muitas vezes, ardorosamente adotada,

sem se perceber que tratava-se, em grande parte, de arapuca neoliberal. Agora, cultiva-se o

“planejamento estratégico”, idéia em si pertinente, mas levada de maneira subalterna, porque, em

vez de estar a serviço da estratégia da autonomia, torna-se apenas outra forma de controle e

alinhamento externo (SANDERS, 1998). Absorvem-se rapidamente idéias que perambulam pelo ar,

como pós-modernismo, interdisciplinaridade, construtivismo, mas sem a devida calma para

reconstruí-las com mão própria. Por exemplo, é comum entrar em discussões acaloradas sobre

especialização e seus males, sem perceber que estamos combatendo a “disciplinarização” do

conhecimento, não tanto sua especialização, já que todo conhecimento mais aprofundado será

interdisciplinar, mas não menos especializado. Ninguém consegue tornar-se antropólogo,

economista, biólogo, sem especializar-se. Mas pode fazê-lo sem reduzir o mundo à sua disciplina.

Portanto, queremos alargar a base horizontal da aprendizagem, sem prejudicar necessariamente a

base vertical. Explodem, então, discursos solenes de repulsa à especialização feitos por

professores altamente especializados.

     Quase todas as instituições educacionais indicam mais o atraso do que a capacidade de

acompanhar os tempos. Deveriam, em si, direcionar os tempos. Os conselhos de educação

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tendem, de modo alarmante, a postar-se como entidades policialescas, preocupadas apenas em

manter a ordem, a letra, o texto. Enquanto capricham em salamaleques nas sessões, como se

todos os nobres colegas estivessem ali para garantir a aprendizagem dos alunos e da sociedade,

além da própria, por trás, viceja o submundo dos interesses escusos. As secretarias de educação

continuam palanques políticos, e o Ministério, ponta de lança do Banco Mundial e plataforma do

governo. Apesar de sobreviver em plena era do ensino, mais parece o posto avançado do

treinamento nacional. Ofertas de teleducação apressam-se em facilitar as coisas, esquecendo que

aprender é fenômeno bem diferente daquele de transmitir informação. Enfeitar a aula não muda

nada, mesmo com toda a parafernália eletrônica. E continuamos todos dando aula, aquela de

sempre, numa roda-viva de repetição constante, para que tudo fique como dantes, em nome da

inovação. O mundo avançado usa, sem pudor, conhecimento para dinamizar o mercado, inovando

para o mercado. É moralista diante de sexo e de outros pretensos bons costumes, é racista,

colonialista; é resistente nestas coisas, porém, não ante o mercado. Nós ainda preferimos a

ignorância do mercado, em nome, muitas vezes, do discurso ético. Vamos de um extremo a outro:

somos totalmente contra o mercado, mas não tomamos a sério a relação inevitável entre educação

e mercado, sobretudo em sociedades capitalistas. Por isso, não passamos do discurso,

apreciamos o charme da crítica, declaramo-nos avançados, para encobrir o fato de que não temos

qualquer compromisso com a práxis. Inúmeros PhDs não desenvolvem obra científica própria e

preferem pós-doutorado a produzir conhecimento, porque continuamos vivendo na sociedade

cartorial, não do conhecimento. Na defesa patética da educação, também na esquerda, esconde-

se, quase sempre, formidável projeto de imbecilização conjunta. Que mais o neoliberalismo haveria

de querer?

DEMO, Pedro, Contos-do-Vigário. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. Primeira Parte, p. 11-15: Ironias

da educação: mudança e contos sobre mudanças. 2. ed.