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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ LOHANNA MACHADO INSPIRAÇÃO MACHADIANA, IRONIAS E ARDIS IMPLÍCITOS À NARRATIVA MEMORIALISTA DE LEITE DERRAMADO, DE CHICO BUARQUE.

Inspiração machadiana, ironias e ardis implícitos à narrativa memorialista de 'Leite derramado', de Chico Buarque

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Monografia apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Francês – Estudos Literários, no Curso de Letras, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN

LOHANNA MACHADO

INSPIRAO MACHADIANA, IRONIAS E ARDIS IMPLCITOS NARRATIVA MEMORIALISTA DE LEITE DERRAMADO, DE CHICO BUARQUE.

CURITIBA2013LOHANNA MACHADO

INSPIRAO MACHADIANA, IRONIAS E ARDIS IMPLCITOS NARRATIVA MEMORIALISTA DE LEITE DERRAMADO, DE CHICO BUARQUE.

Monografia apresentada como requisito parcial obteno do grau de Bacharel em Francs Estudos Literrios, no Curso de Letras, Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paran.

Orientadora: Profa. Dra. Sandra Mara Stroparo

CURITIBA2013RESUMO

Esta monografia tem como objetivos gerais revelar as artimanhas do autor implcito do romance Leite derramado, de Chico Buarque, responsveis pela ironia que rege a obra e que expe seu narrador involuntariamente ao ridculo, e, alm disso, apontar aproximaes pertinentes entre esse romance e os romances Memrias pstumas de Brs Cubas e Dom Casmurro, de Machado de Assis, que tm orientaes semelhantes e que parecem ter influenciado Buarque. Num trabalho com tal temtica, contemplando dois autores afastados por cerca de um sculo, fez-se necessrio analisar a figura de linguagem da ironia, diacronicamente, desde o sculo XVIII, onde a crtica tem concordado estar a matriz da ironia machadiana e tambm por ter sido nesse sculo que a ironia verdadeiramente passou a figurar na literatura. Romance recente sobre o qual ainda h muito a ser explorado, esta monografia pretende avaliar a ironia, em Leite derramado, em seu aspecto norteador da narrativa, num uso estruturante equivalente s obras citadas de Machado de Assis.

Palavras-chave: Ironia. Leite Derramado. Chico Buarque. Machado de Assis.

RSUM

Cette monographie a comme des objectifs gnraux rvler les artifices de l'auteur implicite du roman Leite derramado, de Chico Buarque, responsables par l'ironie que matrise l'oeuvre et qu'expose son narrateur involontairement au ridicule, et, en plus, noter les rapports pertinents entre ce roman et les romans Memrias pstumas de Brs Cubas et Dom Casmurro, de Machado de Assis, qui ont des orientations semblables et qui apparemment ont influenc Buarque. Dans un travail avec telle thmatique, qui contemple deux auteurs loigns par environ un sicle, il faut analyser la figure de style de l'ironie diachroniquement depuis le XVIIIme sicle, o la critique trouve la matrice de l'ironie machadienne et aussi parce que c'est dans ce sicle que l'ironie a pass figurer largement dans la littrature. Vu que l'oeuvre de Chico Buarque est un roman rcent qui a encore beaucoup des aspects explorer, cette monographie vise valuer l'ironie prsente dans Leite derramado dans son rle de principe directeur de la narration et dans son utilisation structurante, equivalentes aux possibilits explores aux ouvrages de Machado de Assis.

Mots-cls: Ironie. Leite Derramado. Chico Buarque. Machado de Assis.SUMRIO

I PRIMEIROS PASSOS ........................................................................................... 5II IRONIA DERRAMADA ....................................................................................... 19III INFLUNCIA E INDEPENDNCIA ................................................................... 35REFERNCIAS ........................................................................................................ 53

I - PRIMEIROS PASSOS

A publicao de Leite derramado pela editora Companhia das Letras em 2009 foi seguida (e antecedida) de ampla divulgao miditica, como habitual para com as novas produes de Chico Buarque, seja na literatura ou na msica. parte a polmica gerada pelo prmio Jabuti de Livro do Ano de Fico concedido pela Cmara Brasileira do Livro em 2010[footnoteRef:1], o livro teve boa aceitao acadmica, a comear por Leyla Perrone-Moiss, destacada terica e professora da USP, que foi responsvel pela orelha do romance. Neste texto, diminuto por natureza, Perrone-Moiss (2009) no deixou de destacar que [1: Na polmica se questionou como era possvel que um livro que recebeu a segunda colocao na subcategoria Romance (o primeiro lugar ficou para Edney Silvestre com o romance Se eu fechar os olhos agora) pudesse receber o prmio de maior grandeza de Livro do Ano de Fico.]

O discurso da personagem parece espontneo, mas o escritor domina com mo firme as associaes livres, as falsidades e os no-ditos, de modo que o leitor vai reconstruindo os acontecimentos e pode ler nas entrelinhas, partilhando a ironia do autor, verdades que a personagem no consegue enfrentar.O que Perrone-Moiss chama de ironia do autor/escritor o que chamaremos neste trabalho de ironia e ardil do autor implcito, conceito que ser esclarecido em tempo. Tambm o crtico Roberto Schwarz (2009), em resenha para a Folha Ilustrada logo aps o lanamento deste ltimo romance de Buarque, avaliou o livro como timo. Schwarz foi o primeiro a apontar semelhanas entre o mtodo narrativo de Leite derramado e os romances da segunda fase machadiana, assim como algumas semelhanas de enredo. Porm, os estudos sobre o romance, de que tenho conhecimento, ainda no trataram (quando muito em rpidos apontamentos) da ironia como um aspecto norteador desta narrativa contemplando uma leitura comparativa com os dois romances de Machado de Assis mais facilmente evocados por essa obra de Buarque: Memrias pstumas de Brs Cubas e Dom Casmurro. Este o objetivo deste trabalho: a anlise de como a ironia do autor implcito em Leite derramado estrutura a obra e a influncia de Machado na composio desse autor implcito. possvel que, na comparao entre os trs romances, o cotejo entre Memrias pstumas... e Leite derramado seja mais privilegiado por conta de serem ambos mais explicitamente irnicos e tambm, de certa forma, pela escolha da bibliografia terica, mas as aproximaes se esforaro sempre por explorar as trs obras. Dessa forma, esta monografia procurar esclarecer como Chico Buarque tirou proveito de seu distanciamento histrico e reelaborou as formas (principalmente a ironia) e os contedos (principalmente a crtica de classe) da segunda fase machadiana no romance Leite derramado. Quando eu sair daqui, vamos nos casar na fazenda da minha feliz infncia, l na raiz da serra. Voc vai usar o vestido e o vu da minha me, e no falo assim por estar sentimental, no por causa da morfina. (BUARQUE, 2009, p. 5) A abertura do romance Leite derramado, de Chico Buarque, veicula, sem que o leitor possa ainda bem compreender, algumas informaes importantes sobre a narrativa que se inicia e seu narrador. O lugar de onde ele espera sair o hospital onde o centenrio Eullio Assumpo foi internado, doente e caduco, pela filha e o tataraneto. O leitor compreender tambm que na penria financeira na qual Eullio se encontra, aps a perda de quase todos os seus bens, incluindo a fazenda na raiz da serra, compreensvel que o narrador lembre-se da infncia como uma poca feliz de sua longa histria, tendo sido o filho nico de um casal da aristocracia carioca no incio do sculo XX. Sua derrocada, e dos de seu nome, comea quando, com a morte do pai, fica a Eullio a funo de gerenciar os negcios da famlia, e coincide com seu casamento com sua primeira e nica esposa, Matilde. Sua inabilidade para os negcios que solapou o nome e os bens da famlia conseguiu ser menor que sua inabilidade como marido, e as consequncias disso foram ainda mais devastadoras. Sua tentativa derradeira de reparar os erros cometidos contra Matilde com uma das enfermeiras do hospital acabar por ser recebida pelo leitor com ar de mofa, assim como muitos outros de seus atos. Seu discurso caduco, irnico, sob o efeito de drogas e por vezes sentimental, confere complexidade formal obra. Essa complexidade se intensifica e ganha ares de fina ironia com a conduo ardilosa da narrativa por seu autor implcito.

Num trabalho com tal temtica, contemplando dois autores afastados por um sculo, faz-se necessrio analisar a figura de linguagem da ironia diacronicamente a partir do sculo XVIII, onde a crtica tem concordado estar a matriz da ironia machadiana[footnoteRef:2]. Em Georges Minois (2003, p. 393) lemos, a respeito do setecentos, que antes de o discurso irnico conquistar espao na literatura, havia, no incio do sculo XVIII, o romance cmico (ou burlesco) que praticava um humor mais escrachado e debochado. Na verdade, quando o autor tenta definir (2003, p. 396) o que o humor irnico e o burlesco, cai, muitas vezes, em adjetivaes cognatas. Por exemplo, tanto o burlesco quanto a ironia, no sculo XVIII, intencionavam desestabilizar a ordem em algum nvel, o que podemos considerar que seja a funo mesma do riso: instaurar o caos. [2: Mesmo porque, segundo Perrot (2006, p. 46), at o sculo XVIII a ironia era uma forma de oratria, no tendo um domnio especfico na literatura.]

Outra caracterstica comum entre o burlesco e a ironia no sculo XVIII o pessimismo, fruto de uma decepo com o homem e com a poca. Essa especificidade faz boa distino entre essas duas espcies de humor, no burlesco, o que est em jogo a liberdade de rir que os humoristas tentam recuperar aps um movimento, na virada do sculo XVII para o XVIII, da volta ao srio europeia, por conta das descobertas durante o Renascimento e das Reformas que levaram a Europa a um perodo de frenesi, se comparado aos sculos sisudos da Idade Mdia (MINOIS, 2003, p. 383-4). Quanto a isso, Minois explica (2003, p. 317) que a confiana no homem que marcara a primeira renascena soobrou no naufrgio das guerras de religio. De qualquer forma, parece-me que esse perodo de riso escrachado no incio do sculo XVIII foi importante para que, a partir da ltima metade deste mesmo sculo, a ironia, essa segunda espcie de humor, ganhasse terreno e desenvolvesse caractersticas mais refinadas, como um veculo de escrnio da sociedade e suas convenes, pensamentos etc., sendo a ironia mais contida que o burlesco, ainda que mais custica.Outra distino que convm ser feita entre a ironia pura e a stira, pois esta tambm se serve da ironia como figura de linguagem. Quanto a isso, Northrop Frye (1973, p. 219), em Anatomia da crtica, afirma queA principal distino entre ironia e stira que a stira a ironia militante: suas normas morais so relativamente claras, e aceita critrios de acordo com os quais so medidos o grotesco e o absurdo (...) sempre que um leitor no esteja certo de qual seja a atitude do autor ou de qual suponha ser a sua, temos ironia com relativamente pouca stira.Ou seja, dizer que algo irnico dizer que no se pode afirmar com certeza que o autor quis dizer o contrrio do que disse, causando uma sensao de desconforto na leitura. No entanto, como tratarei adiante, no podemos afirmar que a obra literria irnica no siga tambm normas morais, pois apontar o dedo para um problema j fazer um julgamento moral de que aquilo seja um problema. O que pode existir aqui, para marcar a diferena, o quanto essas normas morais esto explcitas no texto.Ao estudar a recepo de Rabelais na Frana do sculo XVIII, Mikhail Bakhtin (2002, p. 99-100) julga ter identificado o que teria sido a fraqueza e no a fora do Sculo das Luzes. Para que tenhamos outro ponto de vista sobre o riso neste sculo, visto que Bakhtin se refere tambm diretamente a Voltaire nessas pginas, o qual um autor muito aludido por Machado de Assis, cito:Os escritores das Luzes, com a sua falta de sentido histrico, seu utopismo abstrato e racional, sua concepo mecanicista da matria, sua tendncia generalizao e tipificao abstratas de um lado, e seu documentarismo de outro, eram menos capazes que quaisquer outros de compreender e apreciar corretamente Rabelais. (...) A atitude diante do riso mudou radicalmente. No sculo XVI, todos riam, lendo o livro de Rabelais, mas ningum o desprezava porque fazia rir. No sculo XVIII, o riso alegre tornou-se desprezvel e vil (...).Essa reduo mnima do riso leva ironia e tambm ao chamado riso voltairiano. Quanto a isso, Bakhtin (2002, p. 101) comenta que toda a sua fora e toda a sua profundidade residem na agudeza e no radicalismo da negao, enquanto que o aspecto renovador e regenerador est quase ausente (...). Esse aspecto renovador e regenerador o do riso desbragado de Rabelais que foi sendo escoimado de seus excessos medida que as sociedades burguesa e aristocrata agregavam valores opostos aos barbarismos que vinham da Idade Mdia. Isso pode ser percebido no livro Savoir-vivre & bonnes manires, do sculo XVIII, que trazia lies de bom comportamento na sociedade, mesa etc. Sobre o riso se diz (...) les ris doivent toujours tre moders : rire avec clats, cest grossiret; rire sans sujet, cest btise; rire de tout indiffrement, cest lgret et incirconspection. (LEFEBVRE, 2009, P. 199).Tambm podemos encontrar relaes entre o riso rabelaisiano e o riso carnavalesco em outra obra importante de Bakhtin (1981, p. 109), Problemas da potica de Dostoivski:O riso carnavalesco tambm est dirigido contra o supremo; para a mudana dos poderes e verdades, para os dois polos da mudana da ordem mundial. O riso abrange os dois polos da mudana, pertence ao processo propriamente dito de mudana, prpria crise. No ato do riso carnavalesco combinam-se a morte e o renascimento, a negao (a ridicularizao) e a afirmao (o riso de jbilo).Todas essas mudanas tiveram um reflexo na literatura e a enriqueceram das formas reduzidas do riso, como o humor, a ironia e o sarcasmo, que encontraro plena realizao literria no sculo XIX (BAKHTIN, 2002, p. 103).Considera-se que a ironia e o humor machadianos tenham inspirao principalmente inglesa, mas, se Minois (2003, p. 423-30) est certo em suas elucubraes sobre o tema do humor ingls e francs, creio que se possam encontrar boas doses das duas formas de mofar do mundo na obra de Machado de Assis. Na Histria do riso e do escrnio lemos que o humor ingls ganhou essa alcunha ainda no sculo XVIII. A palavra humor, alis, nasceu na Inglaterra nessa poca, ou, pelo menos, passou a ser mais utilizada, e de l se expandiu para o resto da Europa (MINOIS, 2003, p. 427-8). Para os ingleses que o praticavam, como uma espcie de filosofia de vida, humor e sentido de liberdade caminham juntos (2003, p. 423). Porm, quando esse humor muito pessimista ele se torna amargo, como era o caso de Swift (2003, p. 425). J, se os ingleses tinham o humor, os franceses tinham o esprito, que seria mais pessimista que aquele. A filosofia de vida correspondente dos franceses estaria mais ligada ao Zombar do mundo a nica maneira de superar o absurdo (2003, p. 430).

Na tese Machado de Assis e a ironia, de Andrea Czarnobay Perrot (2006), pode-se perceber que Machado, quando escolheu incorporar a ironia como uma figura de linguagem norteadora de seus romances que chamamos da segunda fase, estava trabalhando com um paradigma relativamente novo no cenrio literrio ocidental, pois a popularizao do uso pleno da ironia no discurso se deu apenas um sculo antes com autores como Swift, Voltaire e Sterne. Mas ainda que o prprio Brs Cubas nos diga que adotou a forma livre de Sterne e Xavier de Maistre, ele tambm acrescenta que no sei se lhe meti [ forma livre] algumas rabugens de pessimismo (ASSIS, 2007, p. 7). Esse maior pessimismo sintomtico da distncia temporal que afasta os trs escritores, pois Machado tambm o perfeito escritor de seu sculo, o XIX, que viu onde a sociedade burguesa chegou, aps sua subida ao poder no sculo anterior.Se o setecentos a raiz da ironia machadiana e essa ironia ilumina a compreenso do romance de Chico Buarque, poder-se-ia pensar que tal influncia se mostrasse inadequada com mais de um sculo separando as duas obras. No entanto, percebo que a ironia de Buarque autnoma em relao de Machado, ainda que tenha estabelecido no romance Leite derramado um dilogo cerrado com esse autor. Como o ttulo da resenha de Schwarz (2009) j indica, o livro Brincalho, mas no ingnuo. O crtico se referia relao desconcertante entre progresso e retrocesso que se estabelece na passagem do tempo do livro, mas creio que tambm seja possvel afirmar que Leite derramado seja brincalho, mas no ingnuo ao reelaborar formas e temas que ficaram clebres no Brasil pela mo mestra de Machado de Assis e que foram amplamente discutidos pela crtica e conhecidos pelo pblico como, por exemplo, o narrador no confivel, a ironia, a crtica de classe, o tema do cime e da objetificao da mulher etc. A questo que no se passa imune por um sculo como o XX que, segundo Minois (2003, 573), j da perspectiva do fim deste sculo, afirmaO sculo XX morreu. Viva o sculo XXI! O defunto, marcado pelo desencadeador de todos os excessos possveis, no ser muito lamentado. Tudo j foi dito sobre esse sculo e seus horrores. Mas este sculo, que custou para morrer, encontrou no riso a fora para zombar de seus males, que no foram apenas males de esprito (...) Entretanto, de ponta a ponta, uma longa gargalhada ressoou. O riso solto comeou aos 14 anos e no cessou mais. Transformou-se num riso nervoso, incontrolvel. O mundo rio de tudo, dos deuses, dos demnios e, sobretudo, de si mesmo. O riso foi o pio do sculo XX, de Dada aos Monty Pythons. Essa doce droga permitiu humanidade sobreviver a suas vergonhas. Ela insinuou-se por toda a parte, e o sculo morreu de overdose uma overdose do riso quando, tendo este se reduzido ao absurdo, o mundo reencontrou o nonsense original.Convm tambm lembrar que o romance de Buarque a saga do centenrio Eullio Assumpo, que cobre, justamente, quase todo o novecentos. Mas h um pequeno contrassenso em se afirmar que a ironia utilizada por Buarque uma ironia contempornea, mas tem inspirao machadiana, que por sua vez teria bebido da ironia dos filsofos e escritores do sculo XVIII. Talvez isso seja amenizado se pensarmos que Machado de Assis tomou os ironistas do setecentos como uma espcie de estmulo criatividade, mas para pensar o seu tempo e, creio, tambm mudanas que ele j previa que teriam lugar no novo sculo que se avizinhava, aproximando assim os dois escritores em seus movimentos para trs e para frente. Essa ironia que encontramos em Machado e em Buarque, ainda que com algumas naturais dessemelhanas, o que chamaremos aqui de ironia moderna. Essas dessemelhanas se do porque o esprito moderno mudou vertiginosamente aps sua passagem pelo sculo XX, ainda que tenha mantido suas caractersticas norteadoras.O esprito moderno coincide cada vez menos com o mundo; ele no se cola mais ao real; ironiza sobre tudo, porque tudo virtual, e a fronteira entre o virtual e o real est cada vez mais fluida. Assim, a atitude irnica torna-se quase obrigatria questo de sobrevivncia para o esprito humano, que deve destacar-se dessa nova vizinhana, para no ser absorvido por ela. Se tomssemos as coisas como elas realmente so, a vida moderna no comportaria mais nem absurdo nem ironia, escreve Witkin (1993). Mas ento seramos devorados pelo mundo; a ironia indispensvel para nos manter distantes em relao ao meio, cada vez mais virtual, que nos circunda. (MINOIS, 2003, p. 571).Em sua tese, Perrot (2006, p. 83) faz uma diviso entre o procedimento irnico que afastaria Machado de Assis da estrutura ficcional e impediria o envolvimento do leitor com a narrativa (quebra do pacto narrativo, a confiana autor-leitor) e, de outro lado, a maleabilidade semntica que, contraditoriamente, construiria cumplicidade com esse mesmo leitor, desde que ele use a ironia como chave de interpretao do texto. Ou seja, desde que o leitor conceda essa maleabilidade semntica ao texto. Podemos desfazer essa contradio, se entendermos que a virada moderna na literatura exige que se faa um novo pacto autor-leitor que compreenda, entre outras ocorrncias, a maior maleabilidade semntica. Machado sabia disso, mesmo que, como sublinha Perrot (2006, p. 83), acreditasse que seu pblico no estava preparado para essa nova proposta.Nesta monografia, como j foi mencionado, a ironia enquanto forma e crtica de classe se referir atitude ardilosa do autor implcito em Leite derramado que concede a fala personagem-smbolo da classe social que quer criticar para que, por meio do discurso de memrias, ela prpria, involuntariamente, faa sua denncia. Por autor implcito entendo a figura que est no limiar de um ser tangvel, pertencente ao mundo que conhecemos, que, ao posicionar-se diante desse nosso mundo, desdobra-se numa entidade que se oculta na tessitura da fico e ali fica, por trs do discurso, o alter ego do autor. (BOOTH, 1961, apud RAMOS, 2003)Vemos em Compagnon (2012, p. 148) que a terminologia inaugural de autor implcito feita por Wayne Booth foi acompanhada de um leitor implcito correspondente. Booth (1961, citado por Compagnon, 2012, p. 148) afirmava que o autor constri seu leitor, da mesma forma que ele constri seu segundo eu, e [que] a leitura mais bem sucedida aquela para a qual os eus construdos, autor e leitor, podem entrar em acordo.. Dessa forma, reitero que obras como Leite derramado, Memrias pstumas de Brs Cubas e Dom Casmurro exigem, por meio da atitude irnica e ardilosa do autor implcito e da maleabilidade semntica consequente (que afirma o sim querendo dizer o no), que o leitor implcito (ou ideal) tenha um novo posicionamento diante dessas obras: o da desconfiana. Segundo Terry Eagleton (2001, p. 200)(...) as obras literrias so, num certo sentido, menos enganosas do que outras formas de discurso, porque implicitamente reconhecem sua prpria condio retrica o fato de que aquilo que dizem diferente daquilo que fazem, de que todas as suas pretenses ao conhecimento funcionam atravs de estruturas figurativas que as tornam ambguas e indeterminadas. Poderamos dizer que elas tm uma natureza irnica. Outras formas de escrita so to figurativas e ambguas quanto ela, mas procuram passar por verdade inquestionvel.Northrop Frye (1973, p. 220), nesta mesma linha, afirma que a ambiguidade coerente com o prprio realismo da obra e com a supresso de qualquer atitude do autor, apesar de que a total supresso uma iluso. como se o realismo na literatura (no o Realismo enquanto escola literria, esteja claro) subentendesse algum tipo de ironia ou ambiguidade, j que tudo relativo. Dessa forma, podemos entender o romance irnico como um subgnero que quer levar s ltimas consequncias a ironia cujo realismo, que prprio do romance em si, subentende, compreendendo esse realismo no como contrrio do fantstico, mas como sinnimo de verossimilhana. interessante notar, segundo a tese de Perrot (2006, p. 73) (e nos auxiliar a pensar tanto os dois romances escolhidos de Machado de Assis quanto Leite derramado, de Buarque), que o uso da ironia na literatura no seria mera postura do autor, mas sim um modo de discurso particular estruturante, e veicularia a viso de mundo e o princpio filosfico do autor, portanto, o uso da ironia na literatura tambm esttico. Morier (1998, citado por Perrot, 2006, p. 65) acredita que a ironia acompanha tambm um sentimento de superioridade e falta de modstia. Esse autor v a ironia como algo que anseia por ordem e justia. O ironista seria um idealista, em algum grau, ele ansiaria por corrigir o que deforma a realidade. Essa maneira de interpretar o uso da ironia j teria levado muitos crticos, como Raymundo Faoro, em A pirmide e o trapzio (1975, citado por Waizbort, 2007, p. 18), a fazerem uma leitura moralista de Machado de Assis.Neste trabalho pretendo interpretar o uso da ironia em Chico Buarque e Machado de Assis no como um ato moralizante (mais comumente identificado com o uso que se faz dessa figura de linguagem nas stiras), mas como um ato hertico, ou seja, uma ao que quer contrariar a ordem estabelecida. Com isso no ambiciono marcar uma discordncia com a leitura moralizante do uso da ironia, apenas contorn-la, mas sem deixar de fazer a pergunta: a ironia um beco sem sada para a moral, ou seja, impossvel fazer uso da ironia sem se ser um moralista em algum nvel? Com essa discusso em mente, uma passagem de Histria do riso e do escrnio (MINOIS, 2003, p. 435) traz outro ponto de vista interessante:Mas ser que o riso sozinho consegue derrubar um preconceito, uma superstio, uma bobagem, uma crena estpida? Sculos de zombaria no eliminaram nem a astrologia nem os fundamentalismos religiosos. porque preciso um mnimo de esprito para apreciar o esprito, e aqueles que o tm j so convertidos; para os outros, o muro da estupidez constitui uma blindagem impermevel ironia. Portanto, a ironia para uso interno; ela mantm o bom humor, permite suportar a estupidez e absorver os golpes baixos da existncia.

Entendendo que atravs de certos textos da fortuna crtica de Machado de Assis podemos melhor compreender o romance Leite derramado, de Chico Buarque, trago tambm discusso a primeira parte do livro Um mestre na periferia do capitalismo, de Roberto Schwarz. Nesta seo, que se chama Uma desfaatez de classe, o autor apresenta sua cerrada leitura do romance Memrias pstumas de Brs Cubas e essa leitura, alm de ser um horizonte de prtica produtiva na interpretao dos romances que compem este trabalho, levanta questes capitais sobre a ironia na narrativa, mesmo sem falar nesses termos diretamente.Schwarz chama volvel o narrador machadiano de Memrias pstumas... A volubilidade de Brs Cubas seria um mecanismo narrativo em que est implicada a ambivalncia ideolgica do Brasil no sculo XIX. Chico Buarque retoma essa ambivalncia principalmente sob o aspecto da aristocracia/burguesia e vai alm do sculo XIX, atravessa o XX at o XXI onde Eullio, o narrador de Leite derramado, com seus valores e histria familiar, parece uma pattica pea de museu de um passado derrotado. Isso ser sublinhado por Schwarz (2009) em sua resenha: A dissonncia entre a autoimagem e a imagem que a histria fixaria deles [os Assumpo e os de sua classe] em seguida mas ser que fixou? impregna a narrativa de comicidade politicamente incorreta do comeo ao fim.. Comicidade que se d, em grande parte, por Eullio insistir na afetao aristocrtica mesmo que, como ele admitir em raros momentos:(...) todo o dia isso, acordo com o sol na cara, a televiso aos berros, e j compreendi que no estou em Copacabana, foi-se o chal h mais de meio sculo. Estou nesse hospital infecto, e a no vai inteno de ofender os presentes. No sei quem so vocs, no conheo seus nomes, mal posso virar o pescoo para ver que cara tm. Ouo suas vozes, e posso deduzir que so pessoas do povo, sem grandes luzes, mas minha linhagem no me faz melhor que ningum. Aqui no gozo privilgios, grito de dor e no me do meus opiceos, dormimos todos em camas rangedoras. Seria at cmico, eu aqui, todo cagado nas fraldas, dizer a vocs que tive bero. Ningum vai querer saber que porventura meu trisav desembarcou no Brasil com a corte portuguesa. (BUARQUE, 2009, p. 49-50).Essas passagens, ainda que raras, complexificam a afetao que ele imposta ou insiste em ter, como quem no reconhece sua nova posio na sociedade, como quem no percebe a ironia. Essas passagens provam que ele tem essa conscincia, e podem indicar que ele insiste em sua afetao de classe provavelmente por estar velho demais para mudar, ou que essa mudana arruinaria sua j precria coeso interior.O conceito de um autor implcito ardiloso tambm foi importado de Schwarz (2000, p. 82), num momento de seu texto em que ele evoca, justamente, o outro romance de Machado que nos interessa aqui, Dom Casmurro:A estrutura a mesma de Dom Casmurro: a denncia de um prottipo e pr-homem das classes dominantes empreendida na forma perversa da auto-exposio involuntria, ou seja, da primeira pessoa do singular usada com inteno distanciada e inimiga (comumente reservada terceira). A chave deste procedimento est na insuficincia calculada dos pontos de vista do narrador em relao aos materiais que ele mesmo apresenta. (...) A prpria escolha do pseudomemorialismo um lance de insdia, pois embora a moldura biogrfica atenue a gravidade das acusaes, diluindo-as na contingncia de um percurso individual, finge-lhes tambm o estatuto irretorquvel da confisso. como se, movido pela volubilidade, um prcer nacional abrisse visitao pblica, na prpria pessoa, os vcios de sua classe.A respeito de nossa fico contempornea, o professor e crtico literrio Karl Erik Schllhammer (2011) no se restringiu a concordar com a definio j banalizada de que a literatura contempornea heterognea, plural, e arriscou definir os limites dessa heterogeneidade concedendo, assim, ao leitor, distines mais palpveis. Com isso no intenciono dizer que o autor tenha esgotado o tema, mas que alcanou feito louvvel, pois nos d dados concretos os quais podemos reelaborar, mesmo que para apontar suas falhas por no contemplar certas caractersticas encontradas em certos autores e obras contemporneas. Leite derramado, por exemplo, no se assenta espontaneamente nas definies ousadas por Schllhammer, das quais trataremos em seguida, mas estas nos do um horizonte confivel de anlise da obra e do autor num cotejo entre seus pares considerados nesse ensaio crtico.Identificamos essa obra de Chico Buarque dentro do que Schllhammer chama de uma retomada realista na literatura contempornea. Porm, no acompanhando a grande produo desta retomada, que de carter verista. Leite derramado faz parte das obras que se colocam na contramo desta demanda, joga com ela por meio de seu narrador memorialista. Em discursos de memrias o leitor comum espera encontrar a verdade (real) e o que Eullio traz so confuses, delrios, omisses, a indefinio que no permite que se fale em verdade, e pe o real exposto nas memrias em dvida. A ironia do autor implcito, por fim, no consente que o leitor crie um pacto de confiana com o narrador, o que pode tornar a leitura desconfortvel, no apaziguada, se no se estabelecer o pacto irnico. Chico Buarque marca sua diferena tambm ao dialogar com um autor do sculo XIX, enquanto seus contemporneos, em boa parte, lidam com os novos clssicos, especialmente, da segunda metade do sculo XX. No entanto, curiosamente, um ano antes da publicao de Leite derramado houve a publicao do romance Heranas, de Silviano Santiago (2008), tambm premiado e aclamado pela crtica, e que tambm tem inspirao machadiana no que diz respeito configurao de seu narrador. Mas ainda que seja um bom romance, comparativamente ao de Chico Buarque, Santiago deixa a desejar. Como j disse, Chico no se limitou a copiar o estilo de Machado, no trouxe esse estilo para o presente somente para atualiz-lo nossa maior liberdade de expresso e esprito ps-modernista, e sim para reformul-lo luz do vanguardismo esttico/formal do sculo XX e XXI.No extrato seguinte, Schllhammer (2011, p.54) define a natureza desse novo realismo de maneira aberta e democrtica, dando espao para que incluamos Leite derramado entre seus pares contemporneos:(...) o novo realismo se expressa pela vontade de relacionar a literatura e a arte com a realidade cultural e social da qual emerge, incorporando essa realidade esteticamente dentro da obra e situando a prpria produo artstica como fora transformadora. Estamos falando de um tipo de realismo que conjuga as ambies de ser referencial, sem necessariamente ser representativo, e ser, simultaneamente, engajado, sem necessariamente subescrever nenhum programa poltico ou pretender transmitir de forma coercitiva contedos ideolgicos prvios.Partindo desse princpio, podemos localizar mais exatamente a obra de Chico Buarque nos perguntando como todas essas produes realistas atuais, nesses padres, diferem entre si e o que, novamente, parece diferenciar Chico Buarque o fundamento irnico de seu texto. Ou seja, uma parte da produo contempornea estaria tentando reformular o realismo (principalmente o dos anos 70) em busca de efeitos literrios e estticos, privilegiando o aspecto performtico e transformador da linguagem em detrimento de uma escrita demasiadamente verista que se julga j ter sido esgotada.Schllhammer (2011, p. 15) tambm afirma que A literatura que hoje trata dos problemas sociais no exclui a dimenso pessoal e ntima, privilegiando apenas a realidade exterior; o escritor que opta por ressaltar a experincia subjetiva no ignora a turbulncia do contexto social e histrico. Leite derramado parece ser um exemplo apropriado dessa outra tendncia, diz-se, contempornea de mesclar de forma balanceada histria social e subjetiva. No h como negar que a inteno do narrador , especialmente, contar/rever sua histria pessoal/ntima/subjetiva, mas, atravs de muitas das suas histrias pessoais o leitor pode entrar em contato com a histria social do Brasil nos sculos XIX, XX e XXI (principalmente), mesmo que revelia do narrador.

Eullio Assumpo, o narrador de Leite derramado, e Bentinho e Brs Cubas, que dispensam as apresentaes, no se assemelham apenas no que diz respeito presena dos autores implcitos ardilosos que os expem continuamente ao ridculo. Mesmo porque esta uma tcnica narrativa bastante explorada na literatura moderna, que foi inaugurada no Brasil (ao menos de forma plena e bem acabada) por Machado de Assis, mas que no lhe pertence. Ou seja, no o uso da ironia como aspecto norteador da narrativa o que aproxima Buarque de Machado, e sim uma srie de semelhanas de enredo (como nas biografias desses trs narradores), semelhanas formais entre as narrativas (como o uso de narradores esdrxulos: em Memrias pstumas... um defunto autor e em Leite derramado um centenrio gag) e uma semelhana intencional, que seria, justamente, expor esses personagens ao ridculo e, por extenso, todos os de sua classe. Sobre isso, segundo Schwarz (2009),Os Assumpo, que passam de acompanhantes de D. Joo VI a bares negreiros, a aproveitadores do abolicionismo e a traficantes de influncia na Repblica Velha, so antes uma categoria social do que uma famlia e importam menos do que o tempo que os atravessa.Eullio, Bentinho e Brs experimentam um processo de passar a vida a limpo (como comum em narrativas em 1 pessoa), ou, como escreveu Bentinho, narram para atar as duas pontas da vida (ASSIS, 2006, p. 12). Em geral, esses trs narradores no se do conta da incongruncia de seus atos e pensamentos ficando a percepo da ironia dessa disparidade entre o dizer e o fazer por conta do leitor. O leitor ideal desse tipo de narrativa seria aquele que conseguisse identificar essas ironias plantadas pelo autor implcito nas entrelinhas desses discursos monopolizadores da palavra. Com isso no insinuo que os prprios narradores no possam tambm ser irnicos, pois o so, principalmente Brs e Eullio, e no apenas para com os outros, mas consigo mesmos, numa autoironia complacente. Porm, nos trs romances existem certas falhas que os narradores no podem ousar admitir, quanto menos confessar, sob o risco de perderem sua coeso interior.O narrador de Leite derramado o mais desafiador entre os trs, at mesmo pela contemporaneidade da obra. O quanto este narrador est realmente caduco? O quanto ele est dopado? O quanto ele est troando de seus ouvintes e, por extenso, de ns, leitores? O que ironia e o que ingenuidade? No parece ser possvel afirmar nada a respeito com certeza, a no ser adotar uma interpretao pendular: ele est e no est caduco e/ou dopado, ele e no irnico e/ou ingnuo, por turnos ou ao mesmo tempo, com o agravante da autopercepo e, por conseguinte, da autoironia. O relato em forma de texto impresso nem mesmo parece verossmil, visto que Eullio se encontra numa cama de hospital, estertorante, capaz apenas de balbuciar seus monlogos, lamentos, imprecaes. Aparentemente nenhum de seus diferentes ouvintes, da forma como so descritos pelo narrador, parecem estar interessados em escrever suas memrias, com exceo, talvez, de uma das enfermeiras, permanecendo a dvida quanto ao revezamento desses ouvintes[footnoteRef:3]. A organizao da narrao outro caso parte. Como j foi dito, Eullio, com mais ou menos detalhes, conta a histria de sua famlia (desde o sculo XV), mas no de forma linear e sim aos volteios, repetindo dois passos para frente e um para trs. Essa forma trpega de narrar diz respeito a seu estado caduco, entregue a uma forma de funcionar caprichosa da memria: [3: H a possibilidade, claro, da utilizao de um gravador, no entanto, prefiro manter o efeito de incerteza e inexatido da obra, tal qual na narrativa de Eullio, em relao a sua prpria publicao, enquanto livro fsico.]

A memria deveras um pandemnio, mas est tudo l dentro, depois de fuar um pouco o dono capaz de encontrar todas as coisas. No pode algum de fora se intrometer, como a empregada que remove a papelada para espanar o escritrio. Ou como a filha que pretende dispor minha memria na ordem dela, cronolgica, alfabtica, ou por assunto. (BUARQUE, 2009, p. 41).Os captulos tm estruturas parecidas de descarga mental entre um remdio e outro, uma adormecida e outra, uma visita e outra. Os assuntos se repetem e vo tendo detalhes acrescentados ou alterados nas repeties. Em um dos captulos finais Eullio faz uma insinuao curiosa, se dirigindo, provavelmente, enfermeira-interlocutora principal: Mas voc perdeu lances fundamentais da minha vida. Do jeito que anda relapsa, quando voc compilar minhas memrias vai ficar tudo desalinhavado, sem p nem cabea. Vai parecer coisa de maluco (...) (BUARQUE, 2009, p. 155). Mas, de qualquer forma, essa provocao ao leitor de que o estilo desalinhavado da narrativa no culpa do narrador, mas de quem compilou suas memrias, de difcil aceitao. O texto d provas suficientes de que a memria de Eullio mesmo admiravelmente confusa e caprichosa.Sem mais delongas, passemos segunda parte deste trabalho. Feita esta longa, mas basilar introduo, adentremos nesse terreno incerto da memria senil representado em Leite derramado. Aceitemos, leitores, o convite da mo que implicitamente conduz a narrativa, desvendemos seus ardis, reflitamos sobre suas ironias.

II - A IRONIA DERRAMADA

Estou pensando alto para que voc me escute. E falo devagar, como quem escreve, para que voc transcreva sem precisar ser taqugrafa, voc est a? (BUARQUE, 2009, p. 7).

Northrop Frye (1973, p. 230) afirma que muitos dos artifcios utilizados nas fices irnicas giram em torno da dificuldade de comunicao. Leite derramado o romance das memrias de um idoso passando a vida a limpo. Seria tradicional, no fosse irnico. No seria irnico no fosse o autor implcito que age ardilosamente contra a personagem, que a expe ao ridculo, carrega sua fala de ambiguidade e explicita a no confiabilidade de um discurso baseado na memria que, inconscientemente ou no, pode ser tendenciosa. O principal carter de novidade formal do romance, a meu ver, est mesmo relacionado grande deturpao do que seja um discurso de memrias. Com isso podemos fazer um paralelo com o comentrio de Santos (2010, p. 49) a respeito do narrador de Leite derramado, que lembraria o narrador tradicional de Benjamin, mas ao mesmo tempo em que aparecem traos da tradio, o autor desconstri esses elementos, criando uma narrativa paradoxal entre o tradicional e o contemporneo, num constante ir e vir..Em termos clnicos, podemos, quem sabe, afirmar que Eullio tem a doena ou mal de Alzheimer, em algum estgio leve ou intermedirio. O certo que h algum tipo de demncia senil. As caractersticas esto em boa parte do texto. Esquecimentos, confuso mental, chega a mal reconhecer a prpria filha (BUARQUE, 2009, p. 10). Curioso o comentrio de Eullio sobre a presena de um velho do Alzheimer (BUARQUE, 2009, p. 19) instalado no mesmo quarto que ele, como se se tratasse de uma situao diferente da sua, mas, certamente, o autor implcito no se decidiu, entre tantos problemas mdicos, por um companheiro de quarto com o Alzheimer (alm de um paraplgico) sem querer insinuar algo. De certa forma, podemos talvez afirmar que Leite derramado um romance de memrias afetadas pela demncia e pelo esquecimento. Isso interfere no discurso por meio do jogo de desconstruo e construo que se forma pela confuso mental do narrador (SANTOS, 2010, p. 63), gera a dificuldade de comunicao comentada por Frye e instaura a ironia como aspecto fundante do texto, atacando o senso comum a respeito do que seja um texto memorialista.Se Machado de Assis escandalizou a crtica literria brasileira, pouco mais de cem anos antes, por escrever o livro das memrias de um defunto, Chico inova por desqualificar ao mximo a prpria memria do personagem memorialista. No s pelo tendenciosismo da memria, mas pela senilidade que a afetou de tal forma que em alguns momentos como se Eullio fosse uma vtima dos caprichos dela. como um castigo, pois a memria uma vasta ferida (BUARQUE, 2009, p. 10) da qual no se pode escapar. Esse estar-se merc da memria influencia diretamente o andamento oscilante do enredo que, como arrisquei explicar na primeira parte dessa monografia, como se avanasse do passado para o presente no ritmo de dois passos para frente e um para trs. J os captulos vm em forma de blocos, mais ou menos intercambiveis, de fluxo de conscincia.As confuses mentais de Eullio so inmeras e tm diferentes efeitos, algumas so mais cmicas, Mas nem assim voc me d os remdios, voc meio desumana. Acho que nem da enfermagem, nunca vi essa sua cara por aqui. Claro, voc a minha filha que estava na contraluz, me d um beijo. (BUARQUE, 2009, p. 10), outras tm um efeito mais dramtico como quando Eullio desaba num loop mental ao receber uma carta do Dr. Blaubaum, nico que sabia do paradeiro de sua mulher, dizendo queEva j se adaptava frica, depois de intenso frio na Indochina etc. e tal, e embora profcua, a temporada na Indochina ficaria para sempre turvada pela notcia da trgica desapario de Matilde, trgica desapario de Matilde, trgica desapario, sempre turvada pela trgica desapario de Matilde. O mdico se desculpava pelo tom de sua carta anterior, escrita no calor da hora sob forte emoo, e disse que no se cansava de orar pela trgica desapario de Matilde, desapario, no se cansava de orar pela memria de Matilde, muito afetuosamente, Daniel Blaubaum. (BUARQUE, 2009, p. 188).Outra falha da memria que garante comicidade obra (e, na mesma via, leveza, j que a matria de que se trata , na verdade, densa e intrincada) so as recorrentes confuses de Eullio com os Eullios que vieram depois dele (nome antigo da famlia que tambm passou para neto, bisneto e tataranetos, e at para a filha de Eullio, Maria Eullia). Ele se explica:(...) agora no sei direito se o rapaz era meu neto ou tataraneto ou o qu. Ao passo que o futuro se estreita, as pessoas mais novas tm de se amontoar de qualquer jeito num canto da minha cabea. J para o passado tenho um salo cada vez mais espaoso (...) Veja s, neste momento olho pra voc, que toda noite est comigo to amorosa, e fico at sem graa de perguntar seu nome de novo. (BUARQUE, 2009, p. 14).As repeties tambm so caractersticas do modus operandi da memria desse ancio. Mas se com a idade a gente d para repetir certas histrias, no por demncia senil, porque certas histrias no param de acontecer em ns at o fim da vida. (BUARQUE, 2009, p. 184) e a histria mais repetida a do dia em que conheceu Matilde e da grande agitao que ela lhe causou.Mas a ironia desse romance comea j pelo ttulo. O ttulo Leite derramado carregado de ambiguidade e se balana entre a leveza do ditado popular e a referncia cena crucial (e obscura) de Eullio encontrando Matilde derramando seu leite materno sobre a pia, tendo o negado filha (BUARQUE, 2009, p. 136). Eullio chora esse leite, porm no da maneira convencional, culposa e penitente, mas comiserativamente. J Schwarz (2009) extrapola essa interpretao e afirma, ainda na mesma linha da justificao da no ingenuidade do romance comentada na primeira parte desta monografia, que como se o presente continuasse a informalidade do passado patriarcal, multiplicando-a por mil, dando-lhe a escala das massas, para melhor ou para pior. Talvez seja isso o leite derramado que no adianta chorar: persistiu a desigualdade, desapareceram o decoro e a autoridade encasacada, e no se instalaram o direito e a lei. o que no interregno entre antigamente e agora se chamava modernizao sem revoluo burguesa.Tambm vemos ambiguidade e ironia no ttulo Dom Casmurro, de Machado de Assis. Como se sabe, a palavra Casmurro tem dois sentidos. Bentinho insiste que o sentido de sua alcunha apenas o de indivduo calado e metido consigo. Mas um ttulo sempre diz muito sobre uma obra, e escolha do autor, antes de tudo. Sendo assim, o outro sentido da palavra, o de pessoa teimosa, j a primeira chave que nos dada para desconfiar deste narrador. Pois justamente uma teima o que tem Bentinho. A teima em seu cime, a teima em que Ezequiel filho de Escobar etc. Mas j no primeiro captulo vemos que o narrador no reconhece que seja turro e explica a alcunha apenas como sinnimo de sua recluso. Memrias pstumas de Brs Cubas tambm apresenta ambiguidade no ttulo, pois no so memrias que foram apenas publicadas postumamente, e sim escritas postumamente.

Algo admirvel na obra lrica de Chico Buarque so suas letras que versam, em diversos aspectos, sobre a condio da mulher (como em Mulheres de Atenas, Valsinha, Minha histria e tantas outras). Se o romance Leite derramado construdo de forma irnica, fazendo uso at de alguns momentos, de bom gosto, cmicos, na histria de Matilde que ele se adensa e seria at dramtico no fosse a narrao defensiva de Eullio que sufoca a voz da esposa para que esta no o comprometa para com os outros e para consigo. Isso chega a gerar interpretaes como a de Dusilek (2010, p. 7) que afirma que o romance a histria do sofrimento feminino. J Schwarz (2009) consegue identificar, no jogo do amor e do cime alimentados pela desigualdade de classe e de cor entre o narrador e Matilde, caractersticas do que chamou de plena comdia brasileira.Essa comdia tipicamente brasileira, no aspecto romntico, tambm foi retratada de forma muito semelhante nos dois romances de Machado de Assis que sero cotejados aqui, Memrias pstumas de Brs Cubas e Dom Casmurro. Nos trs romances temos como personagens principais os nicos filhos vares de famlias burguesas e bem abastadas que, invariavelmente e contra os esforos das famlias, consagraram seus primeiros amores a: uma moa de cor (Eullio e Matilde), a uma prostituta de luxo (Brs e Marcela) e a uma moa sem recursos e sem nome (Bento e Capitolina). Schwarz (2009) ressalta as semelhanas entre os dois autores no trato com a matria do amor:Aqui ainda estamos em guas machadianas, onde tambm a fibra amatria a exceo que escapa a certo rebaixamento genrico e derrisrio imposto pela condio de ex-colnia s elites brasileiras. Com marca local, a desproporo entre a intensidade da vida amorosa e a irrelevncia da vida do esprito uma caracterizao profunda, com alcance histrico, a que o romance de Chico Buarque acrescenta uma figura.Matilde a personagem mais obscurecida do romance. Ao final, ela ser uma incmoda interrogao que no permitir que o leitor feche o livro apaziguado. preciso procurar respostas entre as omisses e no ditos do narrador. A resposta definitiva no existe, mesmo aps outras leituras, apenas a podemos supor com mais ou menos certeza. uma provocao do autor implcito: entre o leitor e a verdade est Eullio que se nega a abrir a carta que trazia o motivo da desapario da esposa, certamente amedrontado de confirmar sua culpa. A respeito disso, Eullio ainda acrescenta que Mas ao deixar a carta intacta em seu envelope lacrado, creio ter feito a vontade de Matilde, que quis sair da minha vida como desaparecem os gatos, com pudor de morrer vista do seu dono. (BUARQUE, 2009, p. 190). Ou seja, alm da metfora que o coloca paralelamente na posio de dono de Matilde, ele ainda tenta fazer com que o leitor creia que por respeito mulher que ele no abre a carta, e no por covardia. No ltimo captulo, Eullio deixa escapar: (...) saibam os senhores que, s da minha mulher, ainda tenho na cabea um ba repleto de reminiscncias inditas. (BUARQUE, 2009, p. 185) algo de que o leitor j no ter dvidas tamanhas as omisses que perpassam todo o romance. A fuga de Matilde um mistrio para todos. Ainda que a cidade toda cochichasse hipteses, o abandono de uma criana ainda lactente era incompreensvel. No final, se a fora desse mistrio prova algo, o tamanho da confuso mental que Eullio causou a Matilde, o que ele jamais admitir.Tambm no so inocentes os comentrios como Minha mulher, sim, suava bastante, mas ela j era de uma nova gerao e no tinha a austeridade de minha me. (BUARQUE, 2009, p. 5). A insistncia de Eullio em pintar a esposa como uma morena afogueada tambm a insistncia de Eullio em no ver sua mulher como algum alm de um corpo sensual. Chega a julg-la vulgar e ser tomado por um sentimento obscuro entre a vergonha e a raiva de gostar de uma mulher que vive na cozinha (BUARQUE, 2009, p. 66) ainda que fosse difcil insultar minha mulher sem me ferir mais ainda (BUARQUE, 2009, p. 156) - mas quem sabe ele gostasse de se ferir assim. Eullio at mesmo se assusta com a potncia de seu desejo fsico por ela quando se d conta de que como se o desejo que seu libidinoso pai tinha por todas as mulheres, tivesse se concentrado, nele, por Matilde (BUARQUE, 2009, p. 33). Se o leitor compreender, apesar do palavrrio do narrador, que Matilde antes uma pessoa que um corpo de carnes quentes, est desfeito o encantamento e derrubada a mscara. Mas no se fecham as cortinas, no o fim do espetculo, e sim uma das vias do incio de uma leitura esclarecida da obra, estabelecido o pacto irnico.No ltimo captulo de Dom Casmurro, Bentinho se dirige ao leitor da seguinte forma, a respeito de Capitu:O resto saber se a Capitu da Praia da Glria j estava dentro da de Mata-Cavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito de algum caso incidente. (...) Mas eu creio que no, e tu concordars comigo; se te lembras bem da Capitu menina, hs de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca. (ASSIS, 2006, p. 189).O processo o mesmo. Ambos os narradores caracterizaram as esposas com as cores de suas imaginaes negando a defesa das rs ao leitor, aps terem negado a defesa das rs aos juzes-maridos. Schwarz (2000, p. 24) assevera, a respeito de Memrias pstumas..., que A relao narrativa desleal, e a ltima palavra, privada embora de autoridade, quem tem sempre o narrador.. Se voz de Eullio tambm se conferiria pouca autoridade por conta de sua condio de pessoa arruinada fsica e socialmente, sabemos que na crtica literria a respeito de Dom Casmurro foram precisos sessenta anos e uma crtica americana, Helen Caldwell (1960, citada por Schwarz, 2006), para quebrar a leitura comum colada ao universo ideolgico do narrador e para que se percebesse a falta de confiabilidade deste.Eullio e Bentinho precisam, para conquistar a derradeira paz da inocncia, convencer o leitor da culpa, ou culpa potencial, de Matilde e Capitu. Mas as semelhanas no so totais. Bentinho expulsou Capitu do lar, convencido da traio, e nunca demonstrou arrependimento pelo ato. Eullio, ainda que tenha transformado a vida da esposa num inferno terreno por conta da desconfiana gerada pelo mesmo cime patolgico de Bento, teve a vida perpetuamente arrasada aps a fuga de Matilde. Mas bem antes da doena e da velhice, talvez minha vida j fosse um pouco assim, uma dorzinha chata a me espetar o tempo todo, e de repente uma lambada atroz. Quando perdi minha mulher, foi atroz. (BUARQUE, 2009, p. 10). Depois da perda, preferia pensar que ela estivesse com outro homem do que imagin-la num sanatrio, assim teria chances de rev-la (BUARQUE, 2009, p. 164). Mas a verdade que, se a encontrasse com outro, isso justificaria seu cime, ou, de outro modo, se seu cime acabasse sempre por se demonstrar uma iluso violenta que tivesse culminado na loucura ou doena da esposa, ele teria que se admitir culpado.Sobre Matilde sabemos apenas o que o narrador nos conta de boa vontade, em pouca quantidade e de contedo suspeito. uma personagem de gestos e no de falas. A sua fala direta aparece rarissimamente, como na repetida frase Eu vou, Eullio, muito concertada com a imagem sexualizada que Eullio tem, e que tenta implantar no leitor, de sua mulher. No mais, sua fala aparece apenas em forma de discurso indireto, aps passada pelo filtro do narrador. Eullio simula pudor ao citar um possvel dilogo que o mdico teria lhe contado ter tido com Matilde: esta parte nem precisa constar das minhas memrias, porque trata de fatos incertos que no presenciei. (BUARQUE, 2009, p. 163) o que muito irnico visto que Eullio era ciumento a um nvel alucinatrio e o que h de mais incerto no romance so suas prprias lembranas de Matilde e de como as coisas entre os dois se passaram. Dessa forma, Eullio um narrador muito mais monopolizador que Bentinho, que at mesmo se permitiu reproduzir a fala cabal de Capitu Pois at os defuntos! Nem os mortos escapam aos seus cimes! (ASSIS, 2006, p. 180). Creio que isso se d pelo motivo j comentado: Bentinho teve certeza da traio e por isso expulsou Capitu de casa, e nunca demonstrou arrependimento. J Eullio sempre acabava por perceber que o que ele enxergava eram apenas alucinaes e nada mais, ainda que, at essa percepo, tenha feito coisas horrveis que ele no conta, mas que o leitor tem terreno livre para imaginar. Dessa forma, Bentinho no tem medo de conceder a fala a Capitu (at certo ponto), j Eullio no deixa escapar nada, pois no pode dar espao para que o velado sentimento de culpa se confirme na boca de Matilde.Eullio sentia raiva quando a mulher ficava feliz por outro motivo que no fosse estar com ele e ser dele (BUARQUE, 2009, 12). O cime patolgico, que gera o sentimento de posse, pode ser inferido at mesmo dos atos carinhosos de Eullio para com Matilde. A maneira como Eullio abordava a esposa nos momentos de desejo, uma de suas lembranas mais frequentes, j denuncia a posse, como se insinua especialmente nesta passagem: Imaginei que abra-la de surpresa, para ela pulsar e se debater contra o meu peito, seria como abafar nas mos o passarinho que capturei na infncia. (BUARQUE, 2009, p. 21). Alm disso, Eullio praticamente mantinha Matilde presa em casa. Tenta enganar o leitor dando a entender que era por conta da criana e que Matilde no se importava por conta de seu esprito leve, ou que era para seu bem, como nessa passagem:Eu cogitara mesmo em lev-la recepo da embaixada, e para a ocasio havia feito as unhas e separado um vestido cor de laranja. Mas conclu que no valia a pena, Matilde ficaria encabulada naquele meio. Poltica no lhe interessava, negcios, muito menos, amava fitas de caubi, mas no sustentaria uma conversao sobre literatura. (BUARQUE, 2009, p. 44-5).Mas essas tentativas so vs porque a fora de vida e a alegria de Matilde escapam por entre os dedos da mo cerrada desse narrador apreensivo. Sua insistncia na ignorncia da mulher tambm diversas vezes desmentida nas entrelinhas de seu discurso, pelo ardil do autor implcito (como em BUARQUE, 2009, p. 110).Ainda que Matilde tenha sido o primeiro e nico amor de Eullio, no foi a primeira a lhe despertar os desejos do corpo. Apesar de que, quando Eullio encasquetou que precisava enrabar Balbino (o negro da famlia de idade semelhante do narrador, cupincha de sua infncia) isso era antes um desvio de comportamento do que uma motivao sexual. Numa das passagens mais antolgicas do romance (BUARQUE, 2009, p. 19-20), em que o narrador ri de seu carter desfrutvel tal qual Brs Cubas (SCHWARZ, 2000, p. 20), vemos outro aspecto da comdia romntica/concupiscente brasileira, ou tragicomdia, dependendo do ponto de vista.O reconhecimento de que no tinha necessidade de enrabar Balbino e de que o desejo sexual veio apenas aps o plano j em execuo, a formulao de uma possvel explicao para convencer Balbino a ceder sua vontade, explicao que passava pela tradio senhorial e direitos de primcias, ponderaes to acima de seu entendimento, que ele j cederia sem delongas (BUARQUE, 2009, p. 20). Tudo isso atesta uma falha moral que, posta no romance, sintomtica. a crtica de classe de que falamos. Nesse caso, burguesia tropicalmente europeizada que conservava e exercia o racismo caucasoide, mas que era alimentada pelo leite materno de seios negros, tinha relaes sexuais com negros, eram negros os empregados mais ntimos da famlia, do interior da casa etc. Ou at mesmo tem remotos parentes negros no admitidos, como o caso da poderosa famlia da me de Eullio, os Montenegro. Sobre isso, Schwarz (2000, p. 42) sinaliza, a respeito da sociedade retratada em Memrias pstumas..., mas que certamente ainda vlido no incio do sculo XX em que a vida familiar de Eullio retratada, que a vida brasileira impunha conscincia burguesa uma srie de acrobacias que escandalizam e irritam o senso crtico. (...) Para quem cuidasse da coerncia moral, a contradio seria embaraosa..Eullio frisa que essa convivncia ntima com Balbino fez dele um adulto sem preconceitos de cor (BUARQUE, 2009, p. 20), o que, claro, passa longe da verdade. Uma das provas do contrrio so os louvores do narrador a seu av abolicionista, que o leitor no deixar de notar ser um abolicionismo bem diverso daquele de um Castro Alves ou de um Cruz e Sousa.Muitos de vocs, se no todos aqui, tm ascendentes escravos, por isso afirmo com orgulho que meu av foi um grande benfeitor da raa negra. Creiam que ele visitou a frica em mil oitocentos e l vai fumaa, sonhando fundar uma nova nao para os ancestrais de vocs. (...) Conquistou o apoio da Igreja, da maonaria, da imprensa, de banqueiros, de fazendeiros e do prprio imperador, a todos parecia justo que os filhos de frica pudessem retornar s origens, em vez de perambularem Brasil afora na misria e na ignorncia. (BUARQUE, 2009, p. 50-51).Se integr-los dignamente nova sociedade brasileira que se ambicionava no era uma opo, se ia contra a prpria ideia dessa nova sociedade (capitalista, moderna, europeizada), a melhor soluo era que voltassem para a frica. O que Eullio no percebe, ou finge no perceber, que sob o disfarce de um ato caridoso est a ideologia do mercado. Os negros eram mercadoria usada e ultrapassada, uma mercadoria viva da qual no se pode se livrar pelo uso da lixeira, mas ainda uma mercadoria, no um sujeito passvel de se tornar um cidado. A questo, claro, vai muito alm disso e no cabe aqui, de qualquer forma, mais um dos aspectos irnico-crticos do texto. Eullio, no fundo, reconhece apenas o preconceito dos de sua classe que o atinge: por no se assemelhar ao pai que s tinha preferncia pelas loiras e ruivas, nem me que ao me ver arrastando asa para Matilde , de sada me perguntou se por acaso a menina no tinha cheiro de corpo. S porque Matilde era de pele quase castanha (...) (BUARQUE, 2009, p. 20).O leitor arguto reconhecer nessas passagens citadas, por todo o texto, o riso escarninho e denunciador do autor implcito. J no caminho contrrio, esse mesmo autor construiu essa personagem altamente criticvel de forma tal que preciso que o leitor se policie para no ser seduzido pelo espirituosismo de Eullio, por sua narrao divertida e que tem a pretensa inofensividade dos que j viveram muito, mas que, est claro, no tem nada de inocente. No entanto, o humor do autor implcito sempre soa mais alto, pois dele a cartada final de condenar Eullio situao to lamentvel em que s resta mesmo rir e fazer blague de si, de tudo, de todos. E ainda assim, mesmo todo cagado nas fraldas (BUARQUE, 2009, p. 50), Eullio no se mostra disposto a se atualizar sobre sua nova posio e abrir mo de sua nobreza, ele vai acreditar nela at ao final, at ao ridculo.O humor moderno menos descontrado que o de sculos passados, porque incide no mais sobre este ou aquele aspecto da vida, mas sobre a prpria vida e seu sentido, ou sua ausncia de sentido. Quanto ironia, aos olhos de muitos indispensvel, em nossos dias, nas questes sociolgicas.Vladimir Janklvitch, em uma obra clebre [L'Ironie ou la bonne conscience,1936], distingue bem a ironia do riso: o ironista tem conhecimento dos riscos, porque o ridente apressa-se a rir para no ter de chorar, como esses poltres que interpelam ruidosamente a noite profunda para ter coragem; eles acreditam que evitaro o perigo nomeando-o e fazem-se de fortes para ganhar tempo. A ironia, que no teme surpresas, brinca com o perigo. Desta vez o perigo est numa jaula, a ironia vai v-lo, imita-o, provoca-o, torna-o ridculo e o entretm com recreao. Como o humor, a ironia no pode realmente ser apreciada se no estiver acompanhada de um sentimento de segurana que nunca absoluto. (MINOIS, 2003, p. 569).No caso, podemos dizer que o ironista o autor implcito de que tratamos aqui, que pe Eullio e o que ele representa na jaula da fico para rir dele e provocar a todos.

Parte da situao lamentvel na qual o narrador se encontra originou-se pela sua pouca esperteza e pulso firme para com os negcios e o dinheiro. At o final da vida perdeu tudo o que ganhou de graa da famlia, o que era muito. Em um trecho inacreditvel, no fosse fico, Eullio resume o porqu de sua falncia:Mas eu no tinha dvida de que, para mim, a porta certa se abriria sozinha. De trs dela, me chamaria pelo nome justamente a pessoa que eu procurava. E esta me anunciaria com presteza pessoa influente, que desceria as escadas para me buscar. E me abriria seu gabinete, onde j me aguardariam vrias chamadas telefnicas. E pelo telefone, poderosas pessoas me soprariam as palavras que desejavam ouvir. E de olhos fechados, eu molharia pelo caminho as mos que meu pai molhava. (BUARQUE, 2009, p. 43-44).Eullio no percebe que o pai trilhou seu caminho e que no o recebeu simplesmente de braos cruzados, ainda que tenha recebido diversas facilidades. Essas facilidades, o dinheiro, o sobrenome, no garantem a continuidade da prosperidade se no se buscar por onde em nossa sociedade que no olha mais ttulos e sim o capital. Eullio no soube fazer-se necessrio como o pai sabia. Ele mesmo reconhece, despreocupadamente e de passagem, que no tinha tino comercial (BUARQUE, 2009, p. 80). Achava que era apenas pr uma das gravatas do pai e andar por onde ele andava que conseguiria substitu-lo ou achar seu prprio caminho. Aps o crack da bolsa de Nova York que fez ruir os investimentos da famlia e que coincidiu com a perda de Matilde, a queda de Eullio foi sem volta. Perdeu-se a estrutura onde j no havia fibra.Acima disse que essa atitude de Eullio seria inacreditvel, no fosse fico, e acrescento que isso no sinnimo de inverossimilhana. (...) a ambio do crtico mostrar como o recado do escritor se constri a partir do mundo, mas gera um mundo novo, cujas leis fazem sentir melhor a realidade originria (CANDIDO, 1993, apud WAIZBORT, 2007), ou seja, a criao de personagens, de certa forma, fantsticos, inacreditveis ou extravagantes como Eullio e Brs Cubas, um efeito potencializador da realidade com um fim retrico-crtico.Mas Eullio no se tornou o homem extravagante que foi de maneira espontnea. Ainda que um pouco de temperamento pessoal possa vir a influenciar, Eullio reflexo daquele tipo de educao tradicional da aristocracia que consistia em no educar os prprios filhos. Entre a carncia do contato materno e o mau exemplo paterno, dessa terra e desse estrume que nasceu essa flor (ASSIS, 2007, p. 23). Foi uma criana malcriada e mimada no pelo carinho, mas pela posio. Eullio diz, recordando um desrespeito da infncia contra a me, que:(...) acho que j estava mesmo afim de levar uns tapas na cara. Como tambm, de quando em quando, acho que sentia falta de baixar as calas para meu pai me surrar com o cinto. Depois gostava de subir no banco do banheiro, em soluos, para ver no espelho da pia as marcas da fivela em minhas ndegas. E quando mame se levantou da cabeceira, marchando na minha direo, antecipei-me ao golpe e desatei a chorar e a me mijar. (BUARQUE, 2009, p. 74). como se a prpria criana pedisse, inconscientemente, pelos limites que s lhe eram fornecidos em regime de exceo, em consequncia de uma arte muito grande, e em forma de violncia fsica.O autor implcito verte boa parte de sua crtica de classe atravs dos pais de Eullio. Eles tambm so expostos ao ridculo em meio ao palavrrio do filho. No por ser a sua inteno, mas pelo que ele diz. O que Eullio revela de forma natural e sem julgamentos a respeito de seus pais no deveria passar sem crtica pelo leitor.A me, Maria Violeta, o exemplo perfeito da burguesia fidalga em decadncia. Vinda da famlia Montenegro, ainda mais rica que os Assumpo, sua decadncia talvez tenha comeado justamente no casamento com o pai de Eullio, um Casanova de que falarei adiante. Maria Violeta era uma mulher afetada, sria e pouco afvel, nunca aceitou o casamento do filho com uma moa de cor, nunca aceitou bem a neta filha desse casamento que foi seu desgosto. Sua relao distanciada com o filho gerar na criana uma carncia feminina e uma idealizao da me que o acompanhar pela vida adulta e se configurar como um entrave plena realizao amorosa. Em alguns trechos (como em BUARQUE, 2009, p. 194), a carncia de Eullio lembra o menino Marcel de Du ct de chez Swann, de Proust (1927).Ao final de sua vida, viva e louca aps a falncia, o leitor encontrar Maria Violeta vivendo quase maritalmente com o chofer francs da famlia, o qual mandou vestir com as roupas do falecido. Situao vexatria aps termos visto toda a sua presuno la dame franaise expatriada. No entanto, como acontecer com Maria Eullia, mesmo que o autor implcito exponha tambm as mulheres ao ridculo, ainda parecem mais poupadas ou vitimadas que os homens. Elas so como vtimas da criao que receberam. O marido de Maria Violeta no soube ensinar seu mtier ao filho que tornou-se um homem sem fora de vontade que assistiu passivamente perda de todos os bens da famlia. Maria Violeta chega a tentar intervir, mesmo sendo mulher e vinda de uma sociedade em que as mulheres no intervinham nos negcios dos homens. Tamanha era a lassido do filho que ela chegou a pensar precisar ser ela o homem da casa. Morre quando Eullio vende sua manso em mais um mau negcio.J o pai de Eullio, o Casanova, foi um homem exclusivamente criticvel como pai, marido e homem de negcios. Como pai foi um pssimo exemplo, marcado no imaginrio do filho como um homem concupiscente. Tambm enquanto pai, iniciou o filho vida adulta levando-o para a Europa, o fazendo experimentar cocana e lhe oferecendo prostitutas; como marido, foi escandalosamente infiel; como homem de negcios, foi um estelionatrio. Aps sua morte polmica, o nome da famlia Assumpo no parou de cair, at porque, como j foi dito, Eullio no soube intervir nessa queda, tendo at contribudo para sua ligeireza. Numa das passagens mais explicitamente irnicas do romance podemos ver a trajetria do ltimo grande nome da famlia Assumpo:Pai, Eullio Ribas Assumpo, como aquela rua atrs da estao do metr. Se bem que durante dois anos ele foi uma praa arborizada no centro da cidade, depois os liberais tomaram o poder e trocaram o seu nome pelo de um caudilho gacho. A senhora j deve ter lido que em 1930 os gachos invadiram a capital, amarraram seus cavalos no obelisco e jogaram nossas tradies no lixo. Tempos mais tarde um prefeito esclarecido reabilitou meu pai, dando seu nome a um tnel. Mas vieram os militares e destituram papai pela segunda vez, rebatizaram o tnel com o nome de um tenente que perdeu a perna. Enfim, com o advento da democracia, um vereador ecologista no sei por que cargas-dgua conferiu a meu pai aquela rua sem sada. (BUARQUE, 2009, p. 77).De praa arborizada no centro rua sem sada, eis a histria da queda da famlia Assumpo. Como retrato poltico, mostra tambm como o nome da famlia foi perdendo posio na medida em que outros nomes da situao iam surgindo. Os Assumpo nunca voltaram ao topo de onde despencaram. Alm disso, a passagem tambm mostra a volubilidade dessas homenagens em forma de nomeao de espaos pblicos e seu carter de veculo ideolgico.Quanto filha de Eullio, podemos dizer que se Matilde foi vtima direta dos cimes do marido, Eullia foi a vtima indireta do pai. Maria Eullia no poupada da ironia, como Matilde, mas vejo que a ironia que cai sobre ela e tenta ridiculariz-la mais uma ironia do narrador, ou seja, do prprio pai, que do autor: Voc nunca me convenceu em seus dias de glria, cabelos ao vento no Bentley esporte do seu namorado. (BUARQUE, 2009, p. 36). De certa forma, isso se configura em outro ataque do autor implcito ao narrador que, ao perder a mulher, praticamente perdeu os laos afetivos que o ligavam filha, na medida em que ela lembrava cada vez menos a me (BUARQUE, 2009, p. 94-95), e repetiu (com as devidas adaptaes) a educao aristocrtica distanciada e fria que recebeu de seus pais. Abandonada pela me e pelo marido, ignorada pelo pai e pela av, em suas tentativas desajeitadas de exibir felicidade, Eullia era como uma coruja que sasse ao sol, sem entender direito o que se espera dela (BUARQUE, 2009, p. 125). Nunca soube o real motivo da fuga/abandono da me, assim como no o saber o leitor, e, assim como ele, no deixar de imaginar os motivos, ainda que de uma maneira caricata, beirando a loucura no fim da vida (BUARQUE, 2009, p. 192).A sucesso de Eullios aps Eullia (cada um sempre tendo apenas um filho) o fim da famlia Assumpo. Ao menos o fim de qualquer respeito ao nome da famlia. O autor implcito orquestra uma srie de comportamentos desviantes (do que seria prprio de uma elite) que culminaro num tataraneto traficante de drogas. A barafunda expressa, bem maneira confusa de Eullio, nesse trecho, que segue tambm como mais um exemplo do funcionamento tortuoso de sua memria:Agora imagine a sua av o que diria, neta casada com filho de imigrante e bisneto comunista da linha chinesa. Esse seu filho engravidou outra comunista, que teve um filho na cadeia e na cadeia morreu. Voc diz que ele prprio morreu nas mos da polcia, e com efeito tenho uma vaga lembrana de tal assunto. Mas lembrana de velho no confivel, e agora estou seguro de ter visto o garoto Eullio ainda outro dia, forte toda a vida. Ele at me deu uma caixa de charutos, mas que besteira a minha, o que morreu era outro Eullio, um que parecia o Amerigo Palumba mais magro. O Eullio magro que virou comunista, porque j nasceu na cadeia e dizem que teve desmame precoce. Da fumava maconha, batia nas professoras, foi expulso de todas as escolas. Mas mesmo semianalfabeto e piromanaco, arranjou trabalho e prosperou, outro dia me deu uma caixa de charutos. (...) S sei que Eullio dAssumpo Palumba Jnior foi batizado e criado por ns, hoje esse garoto que a leva pra andar de carro e me d charutos cubanos. Veio aqui em casa outro dia com uma namoradinha de alfinete no umbigo, que no parece nada comunista. Nem o garoto tem jeito de quem distribui panfletos contra a ditadura. Voc deve estar fazendo confuso com o outro, aquele Eullio mais moreno, namorador, que teve um caso com uma japonesa e engravidou a prima. Mas aquele, se no me engano, era filho desse Eullio garoto com a moa do umbigo, minha cabea s vezes fica meio embolada. (BUARQUE, 2009, p. 38-39).Depois de um ancestral que desembarcou com a corte portuguesa no Brasil, ntimo da rainha, um tataraneto traficante. Eullio ainda denuncia a sujeira na qual o dinheiro do tataraneto (que paga seu plano de sade) est envolvido, ao contrrio do dinheiro de sua famlia que veio a ele atravs do pai, um dinheiro que seria limpo (BUARQUE, 2009, p. 78). Risvel cegueira do narrador em no ver que o dinheiro dos Assumpo dinheiro de explorao. Basta notar que um antigo e valioso chicote o bem tradicional da famlia, passado de gerao em gerao. O chicote, evidente, serviu apenas para cometer atrocidades. Como denuncia Schwarz (2009), os Assumpo sempre fizeram tudo fora da lei: traziam escravos e os mandavam de volta, cobravam e torravam comisses ilegais. Para Eullio, o dinheiro era limpo porque era dinheiro de quem no precisa de dinheiro (BUARQUE, 2009, p. 78). Mas agora ele precisa, sua vida depende do dinheiro sujo do tataraneto, e a ironia se completa.

Eullio termina a narrativa como comeou. No como aquelas personagens tradicionais que aprendiam uma lio ou se tornavam mais experientes. Por exemplo, no sexto captulo (BUARQUE, 2009, p. 29) Eullio ainda insiste em querer educar a enfermeira da mesma maneira como quis educar Matilde que, apesar de ter recebido uma educao rigorosa, no se portava aristocraticamente na sociedade. Sua personalidade era espontnea, sangunea. De qualquer forma, ainda o mesmo Eullio que quer transformar suas mulheres em sua imagem idealizada do feminino, muito ligada a de sua prpria me. Por fim, o medo de ficar s o far ser mais brando com a enfermeira, no terei vergonha de voc (BUARQUE, 2009, p. 61), diz ele. A ironia est posta, quem quis ter tudo (fcil e possessivamente) acabou mendigando as atenes do que ele, antes, chamava enfermeirinha, no diminutivo (BUARQUE, 2009, p. 8). Mas Matilde at o final no encontrar o pedido de perdo. Eullio chega a insinuar que algo como o destino, uma fatalidade exterior a si, foi quem tirou a vida de sua mulher. Nesse trecho vemos em sequncia essa insinuao e seu motivo: Eullio nunca superou a perda da esposa, o que seria dessa dor j to pungente se ele admitisse os erros cometidos contra Matilde de corao aberto?(...) gostaria sobretudo que Matilde me sobrevivesse, e no o contrrio. No sei se existe um destino, se algum o fia, enrola, corta. Nos dedos de alguma fiandeira, provavelmente a linha de vida de Matilde seria de fibra melhor que a minha, e mais extensa. Mas muitas vezes uma vida para no meio do caminho, no por ser linha curta, e sim tortuosa. Depois que me deixou, nem posso imaginar quantas aflies Matilde teve em sua existncia. Sei que a minha se alongou alm do suportvel, como linha que se esgara. Sem Matilde, eu andava por a chorando alto, talvez como aqueles escravos libertos de que se fala. Era como se a cada passo eu me rasgasse um pouco, porque minha pele tinha ficado presa naquela mulher. (BUARQUE, 2009, p. 55-56).Outro aspecto irnico do texto a dificuldade em se estabelecer uma relao de respeito com Eullio por conta de sua idade avanada, tanto por ele no corresponder sapincia que se espera dessa idade, quanto por seu esnobismo fora de hora e lugar. Para Santos (2010, p. 50), Eullio tenta passar sua experincia de ancio centenrio, mas ningum o quer ouvir, para os jovens hoje seu discurso seria intil, pois as geraes no se comunicam mais como antes, ou talvez possamos dizer tambm que isso se d por Eullio representar uma classe social derrotada e ser em si uma derrota. As pessoas no se do ao trabalho de escutar um velho, e por isso que h tantos velhos embatucados por a, o olhar perdido, numa espcie de pas estrangeiro. (BUARQUE, 2009, p. 78). Expandindo um pouco mais a dimenso dessa discusso, Santos (2010, p. 13) comenta que o narrador oscila entre a tradio oral, daquele que narra sua experincia de vida e aconselha e aquele que, fragmentado, tem sua identidade diluda entre o que seu, o que lembra e o que esquece, nos vazios e lacunas, sem a autoridade daquele que sabe. a natureza fragmentada do narrador fragmentaria tambm o discurso (SANTOS, 2010, p. 36). Tudo isso confere maleabilidade semntica ao texto, alm do que podemos chamar de constncia da inconstncia e universalidade do egocentrismo, como disse Schwarz (2000, p. 53), ainda que se referisse s partes filosofantes de Memrias pstumas... o comentrio cabe bem aqui.Adriana Dusilek (2010, p. 1) inicia seu artigo Memrias em desalinho comentando sobre uma aparente despretenso de Leite derramado, assim como a unio, essa pretendida, entre simplicidade e domnio lingustico. Creio ser uma confuso no mais desculpvel na crtica literria hoje tomar como despretensioso, mesmo que primeira vista, um romance como Leite derramado. Nem concordo que a unio de domnio lingustico se d com simplicidade, j que no h simplicidade ali. No h nem mesmo a escusa de um comeo despretensioso ou simples que durante a leitura se desenganaria, visto que desde a primeira pgina o leitor aturdido pelo discurso incomum e complexo, retalhado, desse narrador. Schwarz (2009), por outro lado, considera o padro da fala em suas palavras brilhante.Por um lado, a fala de Eullio salpicada de expresses um pouco fora de uso, indicando idade e privilgio social; por outro, a sua leveza e alegria so netas do modernismo e de uma esttica contrria afetao. Assim, a fala no a de Eullio, ou melhor, ela uma imitao cheia de humor, impregnada de senso crtico. (...) Esquematizando, digamos que os termos antigos ora so de gente grada, marcando autoridade ou truculncia, ora so familiares, marcando a informalidade tambm tradicional. Esta segunda vertente envelheceu menos e guarda parentesco de fundo com a familiaridade sem famlia de nossos dias.Eullio, arrisco-me a dizer e a contrariar, uma das construes de narrador mais positivamente pretensiosas dos ltimos anos em nossa literatura, como espero demonstrar at o final desse trabalho. Nos falta ainda um passo para isso, nos dedicarmos mais detidamente ao estabelecimento das relaes possveis entre essa obra de Buarque e a do primeiro mestre da ironia brasileira, Machado de Assis, especialmente em seus dois romances mais clebres, Memrias pstumas de Brs Cubas e Dom Casmurro.

III INFLUNCIA E INDEPENDNCIA

Desde o incio desta monografia venho assinalando semelhanas formais e de enredo entre Chico Buarque e Machado de Assis. Entro finalmente neste tema, a fim de aprofund-lo, de tal forma a encaminhar o encerramento de nossa trajetria. Schllhammer (2011, p. 143-144) dedicou algumas linhas a essa questo da influncia na literatura contempornea, as quais transcrevo agora:Literatura sobre literatura continua sendo um caminho frequentado na produo brasileira contempornea; reescrever as obras da tradio um de seus atalhos favoritos. Como j foi visto, no h nada de novo nesse procedimento e, na maior parte dos casos, o gesto traz embutido o reconhecimento, mais ou menos humilde, dependendo do escritor, de que todos os que escrevem so leitores antes de se tornarem autores, anes sobre ombros de gigantes que, ao incluir em suas literaturas suas referncias literrias, pagam um tributo modesto. Hoje, entretanto, vivendo numa cultura de cpia, em que a aura da origem h muito se perdeu, o exerccio desse procedimento exige um cuidado maior, pois, em vez de possibilitar um recuo e uma apropriao produtiva, pode tender a capturar o autor numa reverncia parasitria e na sacralizao que esvazia a potncia de compreenso e de crtica.Na primeira parte do presente trabalho insisti no ponto de que o que Buarque pegou de emprstimo de Machado ele no s o atualizou como reelaborou, criando algo novo que chamar de cpia ou pasticho seria fazer m leitura. J Bakhtin (1981, p. 91) traz outro ponto de vista sobre essa questo dos emprstimos literrios, marcadamente anterior do ponto de vista temporal em relao ao de Schllhammer:Por sua natureza mesma, o gnero literrio reflete as tendncias mais estveis, perenes da evoluo da literatura. O gnero sempre conserva os elementos imorredouros da archaica. verdade que nele essa arcica s se conserva graas sua permanente renovao, vale dizer, graas atualizao. O gnero sempre e no o mesmo, sempre novo e velho ao mesmo tempo. O gnero renasce e se renova em cada nova etapa da literatura e em cada obra individual de um dado gnero. Nisto consiste a vida do gnero. Por isto, no morta nem a archaica que se conserva no gnero; ela eternamente viva, ou seja, uma arcaica com capacidade de renovar-se. O gnero vive do presente mas sempre recorda o seu passado, o seu comeo. o representante da memria criativa no processo do desenvolvimento literrio. precisamente por isso que tem a capacidade de assegurar a unidade e a continuidade desse desenvolvimento.Logo, a referncia buscada por Buarque no podia ser mais justa, visto que foi Machado de Assis o primeiro mestre brasileiro da ironia enquanto subgnero do romance. possvel contra-argumentar que Bakhtin talvez no mantivesse essa opinio se tivesse em mos realizar um estudo sobre a literatura contempornea, como Schllhammer, mas certamente esse trecho ao menos fala bem a essa obra de Buarque.Schwarz (2008), em uma entrevista comemorativa aos trinta anos de lanamento de Ao vencedor as batatas (1977), comenta que tem a impresso de que essa ironia de Machado de Assis muito brasileira e que diz muito sobre a histria do Brasil. Creio que seja possvel mesmo dizer que Buarque, na verdade, no emprestou nada de Machado, e sim tomou licena para reelaborar, luz de toda a revoluo esttico-formal do sculo XX, a ironia que envolve os diversos aspectos da formao social do pas.Voltando ironia de Machado, o que me impressionou particularmente foi o vai e vem entre uma certa coisa um pouco empertigada, a linguagem ultracorreta, a finura analtica, muita citao clssica, e, de outro lado algo que no era isso, que vinha das relaes sociais caractersticas do pas. Enfim, um tom de classe marcado que entretanto no costumava ser visto como tal. a arte de Machado. Procurei, ento, caracterizar essa arte como sendo a combinao de um tom de classe cosmopolita aos desvios caractersticos da sociedade brasileira. (SCHWARZ, 2007).Como o que podemos observar, por exemplo, nas relaes sociais baseadas no aparentar ser o que no se , muito evidentes em Memrias pstumas... Esse querer aparentar ser atinge todas as classes, neste romance, no sendo uma crtica exclusiva burguesia, apesar de ser especialmente. interessante notar que certos parmetros da burguesia europeia, bem adaptados ou no ao Novo Mundo, acabam por dominar no s a nossa burguesia transplantada como a nossa burguesia tropical nascente e todas as outras classes. A burguesia a referncia em matria de comportamento civilizado, e quem transgredir esse padro pode ter de se submeter a situaes degradantes para preservar as aparncias, para no cair na m lngua da opinio pblica. Por conta disso, h uma crtica velada do autor implcito leviandade de grande parte das personagens, incluso o narrador, que no so fiis a seus sentimentos, moral e natureza em nome da manuteno de uma imagem social forjada.A permanncia da escravido ou, melhor dizendo, a viso das classes abastadas sobre as relaes senhor-escravo, tambm foi um assunto caro aos dois autores. No o poderia deixar de ser, visto que a convivncia e a dependncia dos negros, seja j nos estertores ou mesmo depois do fim da escravido, era um desses desvios caractersticos da sociedade brasileira mais vis e irnicos em nossa burguesia/aristocracia, como vemos nessa passagem de Leite derramado (BUARQUE, 2009, p. 102): O Balbino nem era mais escravo, mas dizem que todo dia tirava a roupa e se abraava num tronco de figueira, por necessidade de apanhar no lombo. E vov batia de chapa, sem malcia na mo, batia mais pelo estalo que pelo suplcio.. J em Memrias pstumas... tem-se, por exemplo, a clssica cena em que Brs encontra seu negro alforriado Prudncio a maltratar um outro negro no meio da rua. Brs observa: Exteriormente, era torvo o episdio do Valongo; mas s exteriormente. Logo que meti mais dentro a faca do raciocnio achei-lhe um miolo gaiato, fino, e at profundo. Era um modo que o Prudncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, - transmitindo-as a outro. (ASSIS, 2007, p. 83). A naturalidade da observao, tratando o fato apenas como uma curiosidade, denuncia a total falta de empatia e de sentimento de responsabilidade desse estrato da sociedade representado em Brs em relao a seus escravos e ex-escravos.

A motivao dos trs narradores para a escrita de suas memrias bastante semelhante entre si e em relao boa parte das motivaes das narrativas memorialistas. Podemos resumi-la como um desejo de passar a vida a limpo. O que aproxima esses trs narradores e os afasta de outros a forma irnica que estrutura os trs romances de maneira que o leitor recebe criticamente esses discursos: percebemos que h omisses, insinuaes e distores utilizadas para esconder aquelas verdades que nem mesmo num discurso de memrias podem ser reveladas, ou verdades que nem os prprios narradores conhecem a respeito de si ou que no ousam admitir.Os narradores de Machado, Bentinho e Brs Cubas, so narradores mais sinceros que Eullio. Brs por sua condio de defunto autor, livre das inconvenincias de um corpo vivo (ou mesmo senil), com quem ningum poder tirar satisfaes, apesar de frequentemente titubear em sua fala. Na maioria das vezes decide-se por no esconder nada, mesmo se causando malefcio a si ou a outrem. Porm, isso no acontece sempre, s vezes titubeia e decide-se por no falar e fica ao leitor apenas a sugesto (sempre suficiente para os fins do autor implcito). Schwarz (2000, p. 60) chama ateno para a pouca diferena que existe, no fundo, entre o morto e os vivos. No que Brs no tenha o que temer por estar morto e possa falar tudo, o que j disse que, de fato, no acontece. Brs, segundo Schwarz, um vivssimo defunto. H muita farsa na situao, de maneira que no h grandes diferenas entre os sentimentos, mesquinhez e vaidade dos vivos e do morto. Por exemplo, mesmo depois de morto, Brs continua insistindo que o segundo filho de Virglia seu, pois admitir que possa ser do marido continua algo humilhante para o amante mesmo aps a morte (ASSIS, 2007, p. 105).A respeito de Bentinho tambm possvel afirmar que ele seja um narrador mais sincero que Eullio, porque sua narrativa mais verossmil, cronolgica e tem pretenses declaradas de contar tudo. Mas Eullio, aparentemente, narra de acordo com o que lhe solicita a memria, como se estivesse sujeito a ela, e sua memria, como j foi discutido, caprichosa e caduca. Ainda assim, aparentemente ele tem alguma autonomia para esconder informaes importantes sobre como era a vida de casado com a esposa e de como seus cimes chegavam at Matilde, se que isso tambm no um processo de autodefesa ligado sua autocrtica memria.Se a ironia nos trs livros comea j pelo ttulo, em Memrias pstumas... h ainda um comunicado Ao leitor antes do romance em si, mas onde j o narrador que adverte da inabitual natureza da narrativa. H tambm uma perturbadora epgrafe: Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadver dedico com saudosa lembrana estas memrias pstumas. (ASSIS, 2007, p. 6). Como se sabe, esse tipo de paratexto era bastante comum na literatura do sculo XIX, mas no caso de Memrias pstumas... serve para vincular mensagens as mais estranhas: que o autor um defunto, um pessimista, que a obra difusa e escrita com a pena da galhofa e a tinta da melancolia (ASSIS, 2007, p. 7) e que seu autor promete um piparote ao leitor que no gostar do livro. perceptvel a alternncia da narrativa entre esses dois estados, o da galhofa e o da melancolia. Pode-se dizer que ele comea galhofeiro e vai se tornando melanclico na soma de suas decepes. Ou pode-se dizer que a mo que escreve tem intenes galhofeiras, mas a matria de que se fala, a tinta, melanclica.Parece-me que o uso de narradores esdrxulos como Eullio e Brs, para alm da intensificao da ridicularizao dos mesmos, tem tambm a funo de alertar o leitor, por meio de situaes e atitudes que beiram o absurdo, de que ele deve ter mais desconfiana durante a leitura. Lembrando que o uso de um narrador menos extravagante em Dom Casmurro resultou em dcadas de m interpretao do romance, como exposto na segunda parte desta monografia o que, evidentemente, no desvaloriza o uso desse tipo de narrador mais discreto, mas ainda criticvel, cada vez mais comum na literatura moderna.Alm disso, comentei na primeira parte deste trabalho que a prpria constituio fictcia de livro de memrias acabado em Leite derramado beira o inverossmil. Em Memrias pstumas... a apario de um defunto autor causa ainda mais espanto, e o narrador tambm se abstm de explicar como pde ter o livro publicado. Ambos os recursos so deveras interessantes, pois nada melhor para a constituio de uma obra norteada pela ironia do que pr em dvida sua prpria constituio como obra possvel.

O menino pai do homem, disse Machado. Para nosso relativismo ps-estruturalista esse verso de Wordsworth pode parecer demasiadamente determinista, mas de qualquer forma impossvel negar que a frase encontra eco nos trs romances analisados aqui. difcil e provavelmente no devamos ignorar que os trs narradores receberam excesso de mimos na infncia, seja pelo conforto da posio social de elite, pelo excesso de carinho ou mesmo a unio desses dois dados, e que muito possvel que isso tenha contribudo na formao do carter dos adultos egostas em que os trs se tornaram. Quando meninos, Eullio e Brs eram dados a fazer maldades com os criados, usufruindo j da conscincia de sua posio privilegiada naquela sociedade domstica (como em ASSIS, 2007, p. 21-22). Depois de adultos, essa conscincia de classe e o sentimento conjugado de poder tudo ser motivo de boa parte de suas atitudes mais reprovveis, mas tambm de suas frustraes quando, por conta de suas caractersticas pessoais inadequadas, no conseguem atingir tudo o que desejam e que lhes foi prometido no bero.Ainda chamo ateno para a insistncia de Eullio em marcar a diferena entre si e seus interlocutores por conta da educao que recebeu e do bero fino em que nasceu, o que provoca o riso de todos dada sua condio atual, pois o narrador faz figura sempre de inferior: algo nas suas vitrias no convence, e a srie delas configura uma completa derrota. (SCHWARZ, 2000, p. 44). Como marionetes nas mos ardilosas do autor implcito, na nsia da fala pouco policiada, seja pelo pouco tempo de vida, seja pelo descompromisso de um morto, Eullio e Brs recorrentemente se expem ao ridculo. Ao contrrio do que se esperaria, a morte em Memrias pstumas... no trouxe consigo as respostas para todas as perguntas. Inclusive as certezas duvidosas de Brs em vida continuaram com ele depois da morte. Se Eullio no tem a autoridade dos ancies, Brs no conquistou a sapincia de quem viu a vida passar diante dos olhos. Mesmo depois de morto ainda capaz de lembrar de Eugnia, a flor da moita, sem remorsos pela desgraa que a abateu, ao passo que pela pratinha que ofereceu por conta do salvamento de sua vida por um almocreve simplrio, por essa ele sentiu remorsos, ao perceber que a simples pratinha j havia causado grande satisfao ao homem e que por isso havia sido prdigo, sendo que, num primeiro momento ainda levado pelo susto, pensou pagar-lhe trs moedas de ouro (ASSIS, 2007, p. 39-40).So diversas as aes duvidosas em vida que depois da morte ainda encontraro o mesmo Brs que as praticou. Quando relembra a pa