Contosfluminenses

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  • 1. Contos Fluminenses, de Machado de Assis Fonte: ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro : Nova Aguilar 1994. v. II. Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de So Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais. Texto-base digitalizado por: Ncleo de Pesquisas em Informtica, Literatura e Lingstica (http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/literat.html) Este material pode ser redistribudo livremente, desde que no seja alterado, e que as informaes acima sejam mantidas. Para maiores informaes, escreva para . Estamos em busca de patrocinadores e voluntrios para nos ajudar a manter este projeto. Se voc quer ajudar de alguma forma, mande um e-mail para e saiba como isso possvel.CONTOS FLUMINENSES Machado de Assis Miss Dollar Lus Soares A Mulher de Preto O Segredo de Augusta Confisses de uma Viva Linha Reta e Linha Curva Frei Simo

2. Miss Dollar Captulo Primeiro Era conveniente ao romance que o leitor ficasse muito tempo sem saber quem era Miss Dollar. Mas por outro lado, sem a apresentao de Miss Dollar, seria o autor obrigado a longas digresses, que encheriam o papel sem adiantar a ao. No h hesitao possvel: vou apresentar-lhes Miss Dollar. Se o leitor rapaz e dado ao gnio melanclico, imagina que Miss Dollar uma inglesa plida e delgada, escassa de carnes e de sangue, abrindo flor do rosto dous grandes olhos azuis e sacudindo ao vento umas longas tranas louras. A moa em questo deve ser vaporosa e ideal como uma criao de Shakespeare; deve ser o contraste do roastbeef britnico, com que se alimenta a liberdade do Reino Unido. Uma tal Miss Dollar deve ter o poeta Tennyson de cor e ler Lamartine no original; se souber o portugus deve deliciar-se com a leitura dos sonetos de Cames ou os Cantos de Gonalves Dias. O ch e o leite devem ser a alimentao de semelhante criatura, adicionando-se-lhe alguns confeitos e biscoutos para acudir s urgncias do estmago. A sua fala deve ser um murmrio de harpa elia; o seu amor um desmaio, a sua vida uma contemplao, a sua morte um suspiro. A figura potica, mas no a da herona do romance. Suponhamos que o leitor no dado a estes devaneios e melancolias; nesse caso imagina uma Miss Dollar totalmente diferente da outra. Desta vez ser uma robusta americana, vertendo sangue pelas faces, formas arredondadas, olhos vivos e ardentes, mulher feita, refeita e perfeita. Amiga da boa mesa e do bom copo, esta Miss Dollar preferir um quarto de carneiro a uma pgina de Longfellow, cousa naturalssima quando o estmago reclama, e nunca chegar a compreender a poesia do pr-do-sol. Ser uma boa me de famlia segundo a doutrina de alguns padres-mestres da civilizao, isto , fecunda e ignorante. J no ser do mesmo sentir o leitor que tiver passado a segunda mocidade e vir diante de si uma velhice sem recurso. Para esse, a Miss Dollar verdadeiramente digna de ser contada em algumas pginas, seria uma boa inglesa de cinqenta anos, dotada com algumas mil libras esterlinas, e que, aportando ao Brasil em procura de assunto para escrever um 3. romance, realizasse um romance verdadeiro, casando com o leitor aludido. Uma tal Miss Dollar seria incompleta se no tivesse culos verdes e um grande cacho de cabelo grisalho em cada fonte. Luvas de renda branca e chapu de linho em forma de cuia, seriam a ltima demo deste magnfico tipo de ultramar. Mais esperto que os outros, acode um leitor dizendo que a herona do romance no nem foi inglesa, mas brasileira dos quatro costados, e que o nome de Miss Dollar quer dizer simplesmente que a rapariga rica. A descoberta seria excelente, se fosse exata; infelizmente nem esta nem as outras so exatas. A Miss Dollar do romance no a menina romntica, nem a mulher robusta, nem a velha literata, nem a brasileira rica. Falha desta vez a proverbial perspiccia dos leitores; Miss Dollar uma cadelinha galga. Para algumas pessoas a qualidade da herona far perder o interesse do romance. Erro manifesto. Miss Dollar, apesar de no ser mais que uma cadelinha galga, teve as honras de ver o seu nome nos papis pblicos, antes de entrar para este livro. O Jornal do Comrcio e o Correio Mercantil publicaram nas colunas dos anncios as seguintes linhas reverberantes de promessa: "Desencaminhou-se uma cadelinha galga, na noite de ontem, 30. Acode ao nome de Miss Dollar. Quem a achou e quiser levar rua de Mata-cavalos no..., receber duzentos mil-ris de recompensa. Miss Dollar tem uma coleira ao pescoo fechada por um cadeado em que se lem as seguintes palavras: De tout mon coeur." Todas as pessoas que sentiam necessidade urgente de duzentos mil-ris, e tiveram a felicidade de ler aquele anncio, andaram nesse dia com extremo cuidado nas ruas do Rio de Janeiro, a ver se davam com a fugitiva Miss Dollar. Galgo que aparecesse ao longe era perseguido com tenacidade at verificar-se que no era o animal procurado. Mas toda esta caada dos duzentos mil-ris era completamente intil, visto que, no dia em que apareceu o anncio, j Miss Dollar estava aboletada na casa de um sujeito morador nos Cajueiros que fazia coleo de ces.Captulo II Quais as razes que induziram o Dr. Mendona a fazer coleo de ces, cousa que ningum podia dizer; uns queriam que fosse simplesmente paixo por esse smbolo da fidelidade ou do servilismo; outros pensavam antes que, cheio de profundo desgosto pelos homens, Mendona achou que era de boa guerra adorar os ces. Fossem quais fossem as razes, o certo que ningum possua mais bonita e variada coleo do que ele. Tinha-os de todas as raas, tamanhos e cores. Cuidava deles como se fossem seus filhos; se algum lhe morria ficava melanclico. Quase se pode dizer que, no 4. esprito de Mendona, o co pesava tanto como o amor, segundo uma expresso clebre: tirai do mundo o co, e o mundo ser um ermo. O leitor superficial conclui daqui que o nosso Mendona era um homem excntrico. No era. Mendona era um homem como os outros; gostava de ces como outros gostam de flores. Os ces eram as suas rosas e violetas; cultivava-os com o mesmssimo esmero. De flores gostava tambm; mas gostava delas nas plantas em que nasciam: cortar um jasmim ou prender um canrio parecia-lhe idntico atentado. Era o Dr. Mendona homem de seus trinta e quatro anos, bem apessoado, maneiras francas e distintas. Tinha-se formado em medicina e tratou algum tempo de doentes; a clnica estava j adiantada quando sobreveio uma epidemia na capital; o Dr. Mendona inventou um elixir contra a doena; e to excelente era o elixir, que o autor ganhou um bom par de contos de ris. Agora exercia a medicina como amador. Tinha quanto bastava para si e a famlia. A famlia compunha-se dos animais citados acima. Na memorvel noite em que se desencaminhou Miss Dollar, voltava Mendona para casa quando teve a ventura de encontrar a fugitiva no Rocio. A cadelinha entrou a acompanh-lo, e ele, notando que era animal sem dono visvel, levou-a consigo para os Cajueiros. Apenas entrou em casa examinou cuidadosamente a cadelinha, Miss Dollar era realmente um mimo; tinha as formas delgadas e graciosas da sua fidalga raa; os olhos castanhos e aveludados pareciam exprimir a mais completa felicidade deste mundo, to alegres e serenos eram. Mendona contemplou-a e examinou minuciosamente. Leu o dstico do cadeado que fechava a coleira, e convenceu-se finalmente de que a cadelinha era animal de grande estimao da parte de quem quer que fosse dono dela. - Se no aparecer o dono, fica comigo, disse ele entregando Miss Dollar ao moleque encarregado dos ces. Tratou o moleque de dar comida a Miss Dollar, enquanto Mendona planeava um bom futuro nova hspede, cuja famlia devia perpetuar-se na casa. O plano de Mendona durou o que duram os sonhos: o espao de uma noite. No dia seguinte, lendo os jornais, viu o anncio transcrito acima, prometendo duzentos mil-ris a quem entregasse a cadelinha fugitiva. A sua paixo pelos ces deu-lhe a medida da dor que devia sofrer o dono ou dona de Miss Dollar, visto que chegava a oferecer duzentos mil-ris de gratificao a quem apresentasse a galga. Conseqentemente resolveu restitu-la, com bastante mgoa do corao. Chegou a hesitar por alguns instantes; mas afinal venceram os sentimentos de probidade e compaixo, que eram o apangio daquela alma. E, como se lhe custasse despedir-se do animal, ainda recente na casa, disps-se a lev-lo ele mesmo, e para esse fim preparou-se. Almoou, e depois de averiguar bem se Miss Dollar havia feito a mesma operao, saram ambos de casa com direo a Mata-cavalos. Naquele tempo ainda o Baro do Amazonas no tinha salvo a independncia das repblicas platinas mediante a vitria de Riachuelo, nome com que depois a Cmara Municipal 5. crismou a Rua de Mata-cavalos. Vigorava, portanto, o nome tradicional da rua, que no queria dizer cousa nenhuma de jeito. A casa que tinha o nmero indicado no anncio era de bonita aparncia e indicava certa abastana nos haveres de quem l morasse. Antes mesmo que Mendona batesse palmas no corredor, j Miss Dollar, reconhecendo os ptrios lares, comeava a pular de contente e a soltar uns sons alegres e guturais que, se houvesse entre os ces literatura, deviam ser um hino de ao de graas. Veio um moleque saber quem estava; Mendona disse que vinha restituir a galga fugitiva. Expanso do rosto do moleque, que correu a anunciar a boa nova. Miss Dollar, aproveitando uma fresta, precipitou-se pelas escadas acima. Dispunha-se Mendona a descer, pois estava cumprida a sua tarefa, quando o moleque voltou dizendo-lhe que subisse e entrasse para a sala. Na sala no havia ningum. Algumas pessoas, que tm salas elegantemente dispostas, costumam deixar tempo de serem estas admiradas pelas visitas, antes de as virem cumprimentar. possvel que esse fosse o costume dos donos daquela casa, mas desta vez no se cuidou em semelhante cousa, porque mal o mdico entrou pela porta do corredor surgiu de outra interior uma velha com Miss Dollar nos braos e a alegria no rosto. - Queira ter a bondade de sentar-se, disse ela designando uma cadeira Mendona. - A minha demora pequena, disse o mdico sentando-se. Vim trazer-lhe a cadelinha que est comigo desde ontem... - No imagina que desassossego causou c em casa a ausncia de Miss Dollar... - Imagino, minha senhora; eu tambm sou apreciador de ces, e se me faltasse um sentiria profundamente. A sua Miss Dollar... - Perdo! interrompeu a velha; minha no; Miss Dollar no minha, de minha sobrinha. - Ah!... - Ela a vem. Mendona levantou-se justamente quando entrava na sala a sobrinha em questo. Era uma moa que representava vinte e oito anos, no pleno desenvolvimento da sua beleza, uma dessas mulheres que anunciam velhice tardia e imponente. O vestido de seda escura dava singular realce cor imensamente branca da sua pele. Era roagante o vestido, o que lhe aumentava a majestade do porte e da estatura. O corpinho do vestido cobria-lhe todo o colo; mas adivinhava-se por baixo da seda um belo tronco de mrmore modelado por escultor divino. Os cabelos castanhos e naturalmente ondeados estavam penteados com essa simplicidade caseira, que a melhor de todas as modas conhecidas; ornavam-lhe graciosamente a fronte como uma coroa doada pela natureza. A extrema brancura da pele no tinha o menor tom cor-de-rosa que lhe fizesse harmonia e contraste. A boca era 6. pequena, e tinha uma certa expresso imperiosa. Mas a grande distino daquele rosto, aquilo que mais prendia os olhos, eram os olhos; imaginem duas esmeraldas nadando em leite. Mendona nunca vira olhos verdes em toda a sua vida; disseram-lhe que existiam olhos verdes, ele sabia de cor uns versos clebres de Gonalves Dias; mas at ento os olhos verdes eram para ele a mesma cousa que a fnix dos antigos. Um dia, conversando com uns amigos a propsito disto, afirmava que se alguma vez encontrasse um par de olhos verdes fugiria deles com terror. - Por qu? perguntou-lhe um dos circunstantes admirado. - A cor verde a cor do mar, respondeu Mendona; evito as tempestades de um; evitarei as tempestades dos outros. Eu deixo ao critrio do leitor esta singularidade de Mendona, que de mais a mais preciosa, no sentido de Molire.Captulo III Mendona cumprimentou respeitosamente a recm-chegada, e esta, com um gesto, convidou-o a sentar-se outra vez. - Agradeo-lhe infinitamente o ter-me restitudo este pobre animal, que me merece grande estima, disse Margarida sentando-se. - E eu dou graas a Deus por t-lo achado; podia ter cado em mos que o no restitussem. Margarida fez um gesto a Miss Dollar, e a cadelinha, saltando do regao da velha, foi ter com Margarida; levantou as patas dianteiras e ps-lhas sobre os joelhos; Margarida e Miss Dollar trocaram um longo olhar de afeto. Durante esse tempo uma das mos da moa brincava com uma das orelhas da galga, e dava assim lugar a que Mendona admirasse os seus belssimos dedos armados com unhas agudssimas. Mas, conquanto Mendona tivesse sumo prazer em estar ali, reparou que era esquisita e humilhante a sua demora. Pareceria estar esperando a gratificao. Para escapar a essa interpretao desairosa, sacrificou o prazer da conversa e a contemplao da moa; levantou-se dizendo: - A minha misso est cumprida... - Mas... interrompeu a velha. Mendona compreendeu a ameaa da interrupo da velha. 7. - A alegria, disse ele, que restitu a esta casa a maior recompensa que eu podia ambicionar. Agora peo-lhes licena... As duas senhoras compreenderam a inteno de Mendona; a moa pagou-lhe a cortesia com um sorriso; e a velha, reunindo no pulso quantas foras ainda lhe restavam pelo corpo todo, apertou com amizade a mo do rapaz. Mendona saiu impressionado pela interessante Margarida. Notava-lhe principalmente, alm da beleza, que era de primeira gua, certa severidade triste no olhar e nos modos. Se aquilo era carter da moa, dava-se bem com a ndole de mdico; se era resultado de algum episdio da vida, era uma pgina do romance que devia ser decifrada por olhos hbeis. A falar verdade, o nico defeito que Mendona lhe achou foi a cor dos olhos, no porque a cor fosse feia, mas porque ele tinha preveno contra os olhos verdes. A preveno, cumpre diz-lo, era mais literria que outra cousa; Mendona apegava-se frase que uma vez proferira, e foi acima citada, e a frase que lhe produziu a preveno. No mo acusem de chofre; Mendona era homem inteligente, instrudo e dotado de bom senso; tinha, alm disso, grande tendncia para as afeies romnticas; mas apesar disso l tinha calcanhar o nosso Aquiles. Era homem como os outros, outros Aquiles andam por a que so da cabea aos ps um imenso calcanhar. O ponto vulnervel de Mendona era esse; o amor de uma frase era capaz de violentar-lhe afetos; sacrificava uma situao a um perodo arredondado. Referindo a um amigo o episdio da galga e a entrevista com Margarida, Mendona disse que poderia vir a gostar dela se no tivesse olhos verdes. O amigo riu com certo ar de sarcasmo. - Mas, doutor, disse-lhe ele, no compreendo essa preveno; eu ouo at dizer que os olhos verdes so de ordinrio nncios de boa alma. Alm de que, a cor dos olhos no vale nada, a questo a expresso deles. Podem ser azuis como o cu e prfidos como o mar. A observao deste amigo annimo tinha a vantagem de ser to potica como a de Mendona. Por isso abalou profundamente o nimo do mdico. No ficou este como o asno de Buridan entre a selha dgua e a quarta de cevada; o asno hesitaria, Mendona no hesitou. Acudiu-lhe de pronto a lio do casusta Snchez, e das duas opinies tomou a que lhe pareceu provvel. Algum leitor grave achar pueril esta circunstncia dos olhos verdes e esta controvrsia sobre a qualidade provvel deles. Provar com isso que tem pouca prtica do mundo. Os almanaques pitorescos citam at saciedade mil excentricidades e senes dos grandes vares que a humanidade admira, j por instrudos nas letras, j por valentes nas armas; e nem por isso deixamos de admirar esses mesmos vares. No queira o leitor abrir uma exceo s para encaixar nela o nosso doutor. Aceitemo-lo com os seus ridculos; quem os no tem? O ridculo uma espcie de lastro da alma quando ela entra no mar da vida; algumas fazem toda a navegao sem outra espcie de carregamento. Para compensar essas fraquezas, j disse que Mendona tinha qualidades no vulgares. Adotando a opinio que lhe pareceu mais provvel, que foi a do amigo, Mendona disse 8. consigo que nas mos de Margarida estava talvez a chave do seu futuro. Ideou nesse sentido um plano de felicidade; uma casa num ermo, olhando para o mar ao lado do ocidente, a fim de poder assistir ao espetculo do pr-do-sol. Margarida e ele, unidos pelo amor e pela Igreja, beberiam ali, gota a gota, a taa inteira da celeste felicidade. O sonho de Mendona continha outras particularidades que seria ocioso mencionar aqui. Mendona pensou nisto alguns dias; chegou a passar algumas vezes por Mata-cavalos; mas to infeliz que nunca viu Margarida nem a tia; afinal desistiu da empresa e voltou aos ces. A coleo de ces era uma verdadeira galeria de homens ilustres. O mais estimado deles chamava-se Digenes; havia um galgo que acudia ao nome de Csar; um co dgua que se chamava Nelson; Cornlia chamava-se uma cadelinha rateira, e Calgula um enorme co de fila, vera-efgie do grande monstro que a sociedade romana produziu. Quando se achava entre toda essa gente, ilustre por diferentes ttulos, dizia Mendona que entrava na histria; era assim que se esquecia do resto do mundo.Captulo IV Achava-se Mendona uma vez porta do Carceller, onde acabava de tomar sorvete em companhia de um indivduo, amigo dele, quando viu passar um carro, e dentro do carro duas senhoras que lhe pareceram as senhoras de Mata-cavalos. Mendona fez um movimento de espanto que no escapou ao amigo. - Que foi? perguntou-lhe este. - Nada; pareceu-me conhecer aquelas senhoras. Viste-as, Andrade? - No. O carro entrara na Rua do Ouvidor; os dous subiram pela mesma rua. Logo acima da Rua da Quitanda, parara o carro porta de uma loja, e as senhoras apearam-se e entraram. Mendona no as viu sair; mas viu o carro e suspeitou que fosse o mesmo. Apressou o passo sem dizer nada a Andrade, que fez o mesmo, movido por essa natural curiosidade que sente um homem quando percebe algum segredo oculto. Poucos instantes depois estavam porta da loja; Mendona verificou que eram as duas senhoras de Mata-cavalos. Entrou afouto, com ar de quem ia comprar alguma cousa, e aproximou-se das senhoras. A primeira que o conheceu foi a tia. Mendona cumprimentouas respeitosamente. Elas receberam o cumprimento com afabilidade. Ao p de Margarida estava Miss Dollar, que, por esse admirvel faro que a natureza concedeu aos ces e aos cortesos da fortuna, deu dous saltos de alegria apenas viu Mendona, chegando a tocar-lhe o estmago com as patas dianteiras. 9. - Parece que Miss Dollar ficou com boas recordaes suas, disse D. Antnia (assim se chamava a tia de Margarida). - Creio que sim, respondeu Mendona brincando com a galga e olhando para Margarida. Justamente nesse momento entrou Andrade. - S agora as reconheci, disse ele dirigindo-se s senhoras. Andrade apertou a mo das duas senhoras, ou antes apertou a mo de Antnia e os dedos de Margarida. Mendona no contava com este incidente, e alegrou-se com ele por ter mo o meio de tornar ntimas as relaes superficiais que tinha com a famlia. - Seria bom, disse ele a Andrade, que me apresentasses a estas senhoras. - Pois no as conheces? perguntou Andrade estupefato. - Conhece-nos sem nos conhecer, respondeu sorrindo a velha tia; por ora quem o apresentou foi Miss Dollar. Antnia referiu a Andrade a perda e o achado da cadelinha. - Pois, nesse caso, respondeu Andrade, apresento-o j. Feita a apresentao oficial, o caixeiro trouxe a Margarida os objetos que ela havia comprado, e as duas senhoras despediram-se dos rapazes pedindo-lhes que as fossem ver. No citei nenhuma palavra de Margarida no dilogo acima transcrito, porque, a falar verdade, a moa s proferiu duas palavras a cada um dos rapazes. - Passe bem, disse-lhes ela dando as pontas dos dedos e saindo para entrar no carro. Ficando ss, saram tambm os dous rapazes e seguiram pela Rua do Ouvidor acima, ambos calados. Mendona pensava em Margarida; Andrade pensava nos meios de entrar na confidncia de Mendona. A vaidade tem mil formas de manifestar-se como o fabuloso Proteu. A vaidade de Andrade era ser confidente dos outros; parecia-lhe assim obter da confiana aquilo que s alcanava da indiscrio. No lhe foi difcil apanhar o segredo de Mendona; antes de chegar esquina da Rua dos Ourives j Andrade sabia de tudo. - Compreendes agora, disse Mendona, que eu preciso ir casa dela; tenho necessidade de v-la; quero ver se consigo... Mendona estacou. 10. - Acaba! disse Andrade; se consegues ser amado. Por que no? Mas desde j te digo que no ser fcil. - Por qu? - Margarida tem rejeitado cinco casamentos. - Naturalmente no amava os pretendentes, disse Mendona com o ar de um gemetra que acha uma soluo. - Amava apaixonadamente o primeiro, respondeu Andrade, e no era indiferente ao ltimo. - Houve naturalmente intriga. - Tambm no. Admiras-te? o que me acontece. uma rapariga esquisita. Se te achas com fora de ser o Colombo daquele mundo, lana-te ao mar com a armada; mas toma cuidado com a revolta das paixes, que so os ferozes marujos destas navegaes de descoberta. Entusiasmado com esta aluso, histrica debaixo da forma de alegoria, Andrade olhou para Mendona, que, desta vez entregue ao pensamento da moa, no atendeu frase do amigo. Andrade contentou-se com o seu prprio sufrgio, e sorriu com o mesmo ar de satisfao que deve ter um poeta quando escreve o ltimo verso de um poema.Captulo V Dias depois, Andrade e Mendona foram casa de Margarida, e l passaram meia hora em conversa cerimoniosa. As visitas repetiram-se; eram porm mais freqentes da parte de Mendona que de Andrade. D. Antnia mostrou-se mais familiar que Margarida; s depois de algum tempo Margarida desceu do Olimpo do silncio em que habitualmente se encerrara. Era difcil deixar de o fazer. Mendona, conquanto no fosse dado convivncia das salas, era um cavalheiro prprio para entreter duas senhoras que pareciam mortalmente aborrecidas. O mdico sabia piano e tocava agradavelmente; a sua conversa era animada; sabia esses mil nadas que entretm geralmente as senhoras quando elas no gostam ou no podem entrar no terreno elevado da arte, da histria e da filosofia. No foi difcil ao rapaz estabelecer intimidade com a famlia. Posteriormente s primeiras visitas, soube Mendona, por via de Andrade, que Margarida era viva. Mendona no reprimiu o gesto de espanto. - Mas tu falaste de um modo que parecias tratar de uma solteira, disse ele ao amigo. 11. - verdade que no me expliquei bem; os casamentos recusados foram todos propostos depois da viuvez. - H que tempo est viva? - H trs anos. - Tudo se explica, disse Mendona depois de algum silncio; quer ficar fiel sepultura; uma Artemisa do sculo. Andrade era cptico a respeito de Artemisas; sorriu observao do amigo, e, como este insistisse, replicou: - Mas se eu j te disse que ela amava apaixonadamente o primeiro pretendente e no era indiferente ao ltimo. - Ento, no compreendo. - Nem eu. Mendona desde esse momento tratou de cortejar assiduamente a viva; Margarida recebeu os primeiros olhares de Mendona com um ar de to supremo desdm, que o rapaz esteve quase a abandonar a empresa; mas, a viva, ao mesmo tempo que parecia recusar amor, no lhe recusava estima, e tratava-o com a maior meiguice deste mundo sempre que ele a olhava como toda a gente. Amor repelido amor multiplicado. Cada repulsa de Margarida aumentava a paixo de Mendona. Nem j lhe mereciam ateno o feroz Calgula, nem o elegante Jlio Csar. Os dous escravos de Mendona comearam a notar a profunda diferena que havia entre os hbitos de hoje e os de outro tempo. Supuseram logo que alguma cousa o preocupava. Convenceram-se disso quando Mendona, entrando uma vez em casa, deu com a ponta do botim no focinho de Cornlia, na ocasio em que esta interessante cadelinha, me de dous Gracos rateiros, festejava a chegada do doutor. Andrade no foi insensvel aos sofrimentos do amigo e procurou consol-lo. Toda a consolao nestes casos to desejada quanto intil; Mendona ouvia as palavras de Andrade e confiava-lhe todas as suas penas. Andrade lembrou a Mendona um excelente meio de fazer cessar a paixo: era ausentar-se da casa. A isto respondeu Mendona citando La Rochefoucauld: "A ausncia diminui as paixes medocres e aumenta as grandes, como o vento apaga as velas e atia as fogueiras." A citao teve o mrito de tapar a boca de Andrade, que acreditava tanto na constncia como nas Artemisas, mas que no queria contrariar a autoridade do moralista, nem a resoluo de Mendona. 12. Captulo VI Correram assim trs meses. A corte de Mendona no adiantava um passo; mas a viva nunca deixou de ser amvel com ele. Era isto o que principalmente retinha o mdico aos ps da insensvel viva; no o abandonava a esperana de venc-la. Algum leitor conspcuo desejaria antes que Mendona no fosse to assduo na casa de uma senhora exposta s calnias do mundo. Pensou nisso o mdico e consolou a conscincia com a presena de um indivduo, at aqui no nomeado por motivo de sua nulidade, e que era nada menos que o filho da Sra. D. Antnia e a menina dos seus olhos. Chamava-se Jorge esse rapaz, que gastava duzentos mil-ris por ms, sem os ganhar, graas longanimidade da me. Freqentava as casas dos cabeleireiros, onde gastava mais tempo que uma romana da decadncia s mos das suas servas latinas. No perdia representao de importncia no Alcazar; montava bons cavalos, e enriquecia com despesas extraordinrias as algibeiras de algumas damas clebres e de vrios parasitas obscuros. Calava luvas letra da E e botas no 36, duas qualidades que lanava cara de todos os seus amigos que no desciam do no 40 e da letra H. A presena deste gentil pimpolho, achava Mendona que salvava a situao. Mendona queria dar esta satisfao ao mundo, isto , opinio dos ociosos da cidade. Mas bastaria isso para tapar a boca aos ociosos? Margarida parecia indiferente s interpretaes do mundo como assiduidade do rapaz. Seria ela to indiferente a tudo mais neste mundo? No; amava a me, tinha um capricho por Miss Dollar, gostava da boa msica, e lia romances. Vestia-se bem, sem ser rigorista em matria de moda; no valsava; quando muito danava alguma quadrilha nos saraus a que era convidada. No falava muito, mas exprimia-se bem. Tinha o gesto gracioso e animado, mas sem pretenso nem faceirice. Quando Mendona aparecia l, Margarida recebia-o com visvel contentamento. O mdico iludia-se sempre, apesar de j acostumado a essas manifestaes. Com efeito, Margarida gostava imenso da presena do rapaz, mas no parecia dar-lhe uma importncia que lisonjeasse o corao dele. Gostava de o ver como se gosta de ver um dia bonito, sem morrer de amores pelo sol. No era possvel sofrer por muito tempo a posio em que se achava o mdico. Uma noite, por um esforo de que antes disso se no julgaria capaz, Mendona dirigiu a Margarida esta pergunta indiscreta: - Foi feliz com seu marido? Margarida franziu a testa com espanto e cravou os olhos nos do mdico, que pareciam continuar mudamente a pergunta. - Fui, disse ela no fim de alguns instantes. 13. Mendona no disse palavra; no contava com aquela resposta. Confiava demais na intimidade que reinava entre ambos; e queria descobrir por algum modo a causa da insensibilidade da viva. Falhou o clculo; Margarida tornou-se sria durante algum tempo; a chegada de D. Antnia salvou uma situao esquerda para Mendona. Pouco depois Margarida voltava s boas, e a conversa tornou-se animada e ntima como sempre. A chegada de Jorge levou a animao da conversa a propores maiores; D. Antnia, com olhos e ouvidos de me, achava que o filho era o rapaz mais engraado deste mundo; mas a verdade que no havia em toda a cristandade esprito mais frvolo. A me ria-se de tudo quanto o filho dizia; o filho enchia, s ele, a conversa, referindo anedotas e reproduzindo ditos e sestros do Alcazar. Mendona via todas essas feies do rapaz, e aturava-o com resignao evanglica. A entrada de Jorge, animando a conversa, acelerou as horas; s dez retirou-se o mdico, acompanhado pelo filho de D. Antnia, que ia cear. Mendona recusou o convite que Jorge lhe fez, e despediu-se dele na Rua do Conde, esquina da do Lavradio. Nessa mesma noite resolveu Mendona dar um golpe decisivo; resolveu escrever uma carta a Margarida. Era temerrio para quem conhecesse o carter da viva; mas, com os precedentes j mencionados, era loucura. Entretanto no hesitou o mdico em empregar a carta, confiando que no papel diria as cousas de muito melhor maneira que de boca. A carta foi escrita com febril impacincia; no dia seguinte, logo depois de almoar, Mendona meteu a carta dentro de um volume de George Sand, mandou-o pelo moleque a Margarida. A viva rompeu a capa de papel que embrulhava o volume, e ps o livro sobre a mesa da sala; meia hora depois voltou e pegou no livro para ler. Apenas o abriu, caiu-lhe a carta aos ps. Abriu-a e leu o seguinte: "Qualquer que seja a causa da sua esquivana, respeito-a, no me insurjo contra ela. Mas, se no me dado insurgir-me, no me ser lcito queixar-me? H de ter compreendido o meu amor, do mesmo modo que tenho compreendido a sua indiferena; mas, por maior que seja essa indiferena est longe de ombrear com o amor profundo e imperioso que se apossou de meu corao quando eu mais longe me cuidava destas paixes dos primeiros anos. No lhe contarei as insnias e as lgrimas, as esperanas e os desencantos, pginas tristes deste livro que o destino pe nas mos do homem para que duas almas o leiam. -lhe indiferente isso. No ouso interrog-la sobre a esquivana que tem mostrado em relao a mim; mas por que motivo se estende essa esquivana a tantos mais? Na idade das paixes frvidas, ornada pelo cu com uma beleza rara, por que motivo quer enconder-se ao mundo e defraudar a natureza e o corao de seus incontestveis direitos? Perdoe-me a audcia da pergunta; acho-me diante de um enigma que o meu corao desejaria decifrar. Penso s vezes que alguma grande dor a atormenta, e quisera ser o mdico do seu corao; ambicionava, confesso, restaurar-lhe alguma iluso perdida. Parece que no h ofensa nesta ambio. 14. Se, porm, essa esquivana denota simplesmente um sentimento de orgulho legtimo, perdoe-me se ousei escrever-lhe quando seus olhos expressamente mo proibiram. Rasgue a carta que no pode valer-lhe uma recordao, nem representar uma arma." A carta era toda de reflexo; a frase fria e medida no exprimia o fogo do sentimento. No ter, porm, escapado ao leitor a sinceridade e a simplicidade com que Mendona pedia uma explicao que Margarida provavelmente no podia dar. Quando Mendona disse a Andrade haver escrito a Margarida, o amigo do mdico entrou a rir despregadamente. - Fiz mal? perguntou Mendona. - Estragaste tudo. Os outros pretendentes comearam tambm por carta; foi justamente a certido de bito do amor. - Pacincia, se acontecer o mesmo, disse Mendona levantando os ombros com aparente indiferena; mas eu desejava que no estivesses sempre a falar nos pretendentes; eu no sou pretendente no sentido desses. - No querias casar com ela? - Sem dvida, se fosse possvel, respondeu Mendona. - Pois era justamente o que os outros queriam; casar-te-ias e entrarias na mansa posse dos bens que lhe couberam em partilha e que sobem a muito mais de cem contos. Meu rico, se falo em pretendentes no por te ofender, porque um dos quatro pretendentes despedidos fui eu. - Tu? - verdade; mas descansa, no fui o primeiro, nem ao menos o ltimo. - Escreveste? - Como os outros; como eles, no obtive resposta; isto , obtive uma: devolveu-me a carta. Portanto, j que lhe escreveste, espera o resto; vers se o que te digo ou no exato. Ests perdido, Mendona; fizeste muito mal. Andrade tinha esta feio caracterstica de no omitir nenhuma das cores sombrias de uma situao, com o pretexto de que aos amigos se deve a verdade. Desenhado o quadro, despediu-se de Mendona, e foi adiante. Mendona foi para casa, onde passou a noite em claro. 15. Captulo VII Enganara-se Andrade; a viva respondeu carta do mdico. A carta dela limitou-se a isto: "Perdo-lhe tudo; no lhe perdoarei se me escrever outra vez. A minha esquivana no tem nenhuma causa; questo de temperamento". O sentido da carta era ainda mais lacnico do que a expresso. Mendona leu-a muitas vezes, a ver se a completava; mas foi trabalho perdido. Uma cousa concluiu ele logo; era que havia cousa oculta que arredava Margarida do casamento; depois concluiu outra, era que Margarida ainda lhe perdoaria segunda carta se lha escrevesse. A primeira vez que Mendona foi a Mata-cavalos achou-se embaraado sobre a maneira por que falaria a Margarida; a viva tirou-o do embarao, tratando-o como se nada houvesse entre ambos. Mendona no teve ocasio de aludir s cartas por causa da presena de D. Antnia, mas estimou isso mesmo, porque no sabia o que lhe diria caso viessem a ficar ss os dous. Dias depois, Mendona escreveu segunda carta viva e mandou-lha pelo mesmo canal da outra. A carta foi-lhe devolvida sem resposta. Mendona arrependeu-se de ter abusado da ordem da moa, e resolveu, de uma vez por todas, no voltar casa de Mata-cavalos. Nem tinha nimo de l aparecer, nem julgava conveniente estar junto de uma pessoa a quem amava sem esperana. Ao cabo de um ms no tinha perdido uma partcula sequer do sentimento que nutria pela viva. Amava-a com o mesmssimo ardor. A ausncia, como ele pensara, aumentou-lhe o amor, como o vento ateia um incndio. Debalde lia ou buscava distrair-se na vida agitada do Rio de Janeiro; entrou a escrever um estudo sobre a teoria do ouvido, mas a pena escapava-se-lhe para o corao, e saiu o escrito com uma mistura de nervos e sentimentos. Estava ento na sua maior nomeada o romance de Renan sobre a vida de Jesus; Mendona encheu o gabinete com todos os folhetos publicados de parte a parte, e entrou a estudar profundamente o misterioso drama da Judia. Fez quanto pde para absorver o esprito e esquecer a esquiva Margarida; era-lhe impossvel. Um dia de manh apareceu-lhe em casa o filho de D. Antnia; traziam-no dous motivos: perguntar-lhe por que no ia a Mata-cavalos, e mostrar-lhe umas calas novas. Mendona aprovou as calas, e desculpou como pde a ausncia, dizendo que andava atarefado. Jorge no era alma que compreendesse a verdade escondida por baixo de uma palavra indiferente; vendo Mendona mergulhado no meio de uma chusma de livros e folhetos, perguntou-lhe se estava estudando para ser deputado. Jorge cuidava que se estudava para ser deputado! - No, respondeu Mendona. - verdade que a prima tambm l anda com livros, e no creio que pretende ir cmara. - Ah! sua prima? 16. - No imagina; no faz outra cousa. Fecha-se no quarto, e passa os dias inteiros a ler. Informado por Jorge, Mendona sups que Margarida era nada menos que uma mulher de letras, alguma modesta poetisa, que esquecia o amor dos homens nos braos das musas. A suposio era gratuita e filha mesmo de um esprito cego pelo amor como o de Mendona. H vrias razes para ler muito sem ter comrcio com as musas. - Note que a prima nunca leu tanto; agora que lhe deu para isso, disse Jorge tirando da charuteira um magnfico havana do valor de trs tostes, e oferecendo outro a Mendona. Fume isto, continuou ele, fume e diga-me se h ningum como o Bernardo para ter charutos bons. Gastos os charutos, Jorge despediu-se do mdico, levando a promessa de que este iria casa de D. Antnia o mais cedo que pudesse. No fim de quinze dias Mendona voltou a Mata-cavalos. Encontrou na sala Andrade e D. Antnia, que o receberam com aleluias. Mendona parecia com efeito ressurgir de um tmulo; tinha emagrecido e empalidecido. A melancolia davalhe ao rosto maior expresso de abatimento. Alegou trabalhos extraordinrios, e entrou a conversar alegremente como dantes. Mas essa alegria, como se compreende, era toda forada. No fim de um quarto de hora a tristeza apossou-se-lhe outra vez do rosto. Durante esse tempo, Margarida no apareceu na sala; Mendona, que at ento no perguntara por ela, no sei por que razo, vendo que ela no aparecia, perguntou se estava doente. D. Antnia respondeu-lhe que Margarida estava um pouco incomodada. O incmodo de Margarida durou uns trs dias; era uma simples dor de cabea, que o primo atribuiu aturada leitura. No fim de alguns dias mais, D. Antnia foi surpreendida com uma lembrana de Margarida; a viva queria ir viver na roa algum tempo. - Aborrece-te a cidade? perguntou a boa velha. - Alguma cousa, respondeu Margarida; queria ir viver uns dous meses na roa. D. Antnia no podia recusar nada sobrinha; concordou em ir para a roa; e comearam os preparativos. Mendona soube da mudana no Rocio, andando a passear de noite; disselho Jorge na ocasio de ir para o Alcazar. Para o rapaz era uma fortuna aquela mudana, porque suprimia-lhe a nica obrigao que ainda tinha neste mundo, que era a de ir jantar com a me. No achou Mendona nada que admirar na resoluo; as resolues de Margarida comeavam a parecer-lhe simplicidades. Quando voltou para casa encontrou um bilhete de D. Antnia concebido nestes termos: 17. "Temos de ir para fora alguns meses; espero que no nos deixe sem despedir-se de ns. A partida sbado; e eu quero incumbi-lo de uma cousa." Mendona tomou ch, e disps-se a dormir. No pde. Quis ler; estava incapaz disso. Era cedo; saiu. Insensivelmente dirigiu os passos para Mata-cavalos. A casa de D. Antnia estava fechada e silenciosa; evidentemente estavam j dormindo. Mendona passou adiante, e parou junto da grade do jardim adjacente casa. De fora podia ver a janela do quarto de Margarida, pouco elevada, e dando para o jardim. Havia luz dentro; naturalmente Margarida estava acordada. Mendona deu mais alguns passos; a porta do jardim estava aberta. Mendona sentiu pulsar-lhe o corao com fora desconhecida. Surgiu-lhe no esprito uma suspeita. No h corao confiante que no tenha desfalecimentos destes; alm de que, seria errada a suspeita? Mendona, entretanto, no tinha nenhum direito viva; fora repelido categoricamente. Se havia algum dever da parte dele era a retirada e o silncio. Mendona quis conservar-se no limite que lhe estava marcado; a porta aberta do jardim podia ser esquecimento da parte dos fmulos. O mdico refletiu bem que aquilo tudo era fortuito, e fazendo um esforo afastou-se do lugar. Adiante parou e refletiu; havia um demnio que o impelia por aquela porta dentro. Mendona voltou, e entrou com precauo. Apenas dera alguns passos surgiu-lhe em frente Miss Dollar latindo; parece que a galga sara de casa sem ser pressentida; Mendona amimou-a e a cadelinha parece que reconheceu o mdico, porque trocou os latidos em festas. Na parede do quarto de Margarida desenhou-se uma sombra de mulher; era a viva que chegava janela para ver a causa do rudo. Mendona coseu-se como pde com uns arbustos que ficavam junto da grade; no vendo ningum, Margarida voltou para dentro. Passados alguns minutos, Mendona saiu do lugar em que se achava e dirigiu-se para o lado da janela da viva. Acompanhava-o Miss Dollar. Do jardim no podia olhar, ainda que fosse mais alto, para o aposento da moa. A cadelinha apenas chegou quele ponto, subiu ligeira uma escada de pedra que comunicava o jardim com a casa; a porta do quarto de Margarida ficava justamente no corredor que se seguia escada; a porta estava aberta. O rapaz imitou a cadelinha; subiu os seis degraus de pedra vagarosamente; quando ps o p no ltimo ouviu Miss Dollar pulando no quarto e vindo latir porta, como que avisando a Margarida de que se aproximava um estranho. Mendona deu mais um passo. Mas nesse momento atravessou o jardim um escravo que acudia ao latido da cadelinha; o escravo examinou o jardim, e no vendo ningum retirouse. Margarida foi janela e perguntou o que era; o escravo explicou-lho e tranqilizou-a dizendo que no havia ningum. Justamente quando ela saa da janela aparecia porta a figura de Mendona. Margarida estremeceu por um abalo nervoso; ficou mais plida do que era; depois, concentrando nos olhos toda a soma de indignao que pode conter um corao, perguntou-lhe com voz trmula: 18. - Que quer aqui? Foi nesse momento, e s ento, que Mendona reconheceu toda a baixeza de seu procedimento, ou para falar mais acertadamente, toda a alucinao do seu esprito. Pareceulhe ver em Margarida a figura da sua conscincia, a exprobrar-lhe tamanha indignidade. O pobre rapaz no procurou desculpar-se; sua resposta foi singela e verdadeira. - Sei que cometi um ato infame, disse ele; no tinha razo para isso; estava louco; agora conheo a extenso do mal. No lhe peo que me desculpe, D. Margarida; no mereo perdo; mereo desprezo; adeus! - Compreendo, senhor, disse Margarida; quer obrigar-me pela fora do descrdito quando me no pode obrigar pelo corao. No de cavalheiro. - Oh! isso... juro-lhe que no foi tal o meu pensamento... Margarida caiu numa cadeira parecendo chorar. Mendona deu um passo para entrar, visto que at ento no sara da porta; Margarida levantou os olhos cobertos de lgrimas, e com um gesto imperioso mostrou-lhe que sasse. Mendona obedeceu; nem um nem outro dormiram nessa noite. Ambos curvavam-se ao peso da vergonha: mas, por honra de Mendona, a dele era maior que a dela; e a dor de uma no ombreava com o remorso de outro.Captulo VIII No dia seguinte estava Mendona em casa fumando charutos sobre charutos, recurso das grandes ocasies, quando parou porta dele um carro, apeando-se pouco depois a me de Jorge. A visita pareceu de mau agouro ao mdico. Mas apenas a velha entrou, dissipou-lhe o receio. - Creio, disse D. Antnia, que a minha idade permite visitar um homem solteiro. Mendona procurou sorrir ouvindo este gracejo; mas no pde. Convidou a boa senhora a sentar-se, e sentou-se ele tambm esperando que ela lhe explicasse a causa da visita. - Escrevi-lhe ontem, disse ela, para que fosse ver-me hoje; preferi vir c, receando que por qualquer motivo no fosse a Mata-cavalos. - Queria ento incumbir-me? 19. - De cousa nenhuma, respondeu a velha sorrindo; incumbir disse-lhe eu, como diria qualquer outra cousa indiferente; quero inform-lo. - Ah! de qu? - Sabe quem ficou hoje de cama? - D. Margarida? - verdade; amanheceu um pouco doente; diz que passou a noite mal. Eu creio que sei a razo, acrescentou D. Antnia rindo maliciosamente para Mendona. - Qual ser ento a razo? perguntou o mdico. - Pois no percebe? - No. - Margarida ama-o. Mendona levantou-se da cadeira como por uma mola. A declarao da tia da viva era to inesperada que o rapaz cuidou estar sonhando. - Ama-o, repetiu D. Antnia. - No creio, respondeu Mendona depois de algum silncio; h de ser engano seu. - Engano! disse a velha. D. Antnia contou a Mendona que, curiosa por saber a causa das viglias de Margarida, descobrira no quarto dela um dirio de impresses, escrito por ela, imitao de no sei quantas heronas de romances; a lera a verdade que lhe acabava de dizer. - Mas se me ama, observou Mendona sentindo entrar-lhe nalma um mundo de esperanas, se me ama, por que recusa o meu corao? - O dirio explica isso mesmo; eu lhe digo. Margarida foi infeliz no casamento; o marido teve unicamente em vista gozar da riqueza dela; Margarida adquiriu a certeza de que nunca ser amada por si, mas pelos cabedais que possui; atribui o seu amor cobia. Est convencido? Mendona comeou a protestar. - intil, disse D. Antnia, eu creio na sinceridade do seu afeto; j de h muito percebi isso mesmo; mas como convencer um corao desconfiado? - No sei. 20. - Nem eu, disse a velha, mas para isso que eu vim c; peo-lhe que veja se pode fazer com que a minha Margarida torne a ser feliz, se lhe influi a crena no amor que lhe tem. - Acho que impossvel... Mendona lembrou-se de contar a D. Antnia a cena da vspera; mas arrependeu-se a tempo. D. Antnia saiu pouco depois. A situao de Mendona, ao passo que se tornara mais clara, estava mais difcil que dantes. Era possvel tentar alguma cousa antes da cena do quarto; mas depois, achava Mendona impossvel conseguir nada. A doena de Margarida durou dous dias, no fim dos quais levantou-se a viva um pouco abatida, e a primeira cousa que fez foi escrever a Mendona pedindo-lhe que fosse l casa. Mendona admirou-se bastante do convite, e obedeceu de pronto. - Depois do que se deu h trs dias, disse-lhe Margarida, compreende o senhor que eu no posso ficar debaixo da ao da maledicncia... Diz que me ama; pois bem, o nosso casamento inevitvel. Inevitvel! amargou esta palavra ao mdico, que alis no podia recusar uma reparao. Lembrava-se ao mesmo tempo que era amado; e conquanto a idia lhe sorrisse ao esprito, outra vinha dissipar esse instantneo prazer, e era a suspeita que Margarida nutria a seu respeito. - Estou s suas ordens, respondeu ele. Admirou-se D. Antnia da presteza do casamento quando Margarida lho anunciou nesse mesmo dia. Sups que fosse milagre do rapaz. Pelo tempo adiante reparou que os noivos tinham cara mais de enterro que de casamento. Interrogou a sobrinha a esse respeito; obteve uma resposta evasiva. Foi modesta e reservada a cerimnia do casamento. Andrade serviu de padrinho, D. Antnia de madrinha; Jorge falou no Alcazar a um padre, seu amigo, para celebrar o ato. D. Antnia quis que os noivos ficassem residindo em casa com ela. Quando Mendona se achou a ss com Margarida, disse-lhe: - Casei-me para salvar-lhe a reputao; no quero obrigar pela fatalidade das cousas um corao que me no pertence. Ter-me- por seu amigo; at amanh. 21. Saiu Mendona depois deste speech, deixando Margarida suspensa entre o conceito que fazia dele e a impresso das suas palavras agora. No havia posio mais singular do que a destes noivos separados por uma quimera. O mais belo dia da vida tornava-se para eles um dia de desgraa e de solido; a formalidade do casamento foi simplesmente o preldio do mais completo divrcio. Menos cepticismo da parte de Margarida, mais cavalheirismo da parte do rapaz, teriam poupado o desenlace sombrio da comdia do corao. Vale mais imaginar que descrever as torturas daquela primeira noite de noivado. Mas aquilo que o esprito do homem no vence, h de venc-lo o tempo, a quem cabe final razo. O tempo convenceu Margarida de que a sua suspeita era gratuita; e, coincidindo com ele o corao, veio a tornar-se efetivo o casamento apenas celebrado. Andrade ignorou estas cousas; cada vez que encontrava Mendona chamava-lhe Colombo do amor; tinha Andrade a mania de todo o sujeito a quem as idias ocorrem trimestralmente; apenas pilhada alguma de jeito repetia-a at a saciedade. Os dous esposos so ainda noivos e prometem s-lo at a morte. Andrade meteu-se na diplomacia e promete ser um dos luzeiros da nossa representao internacional. Jorge continua a ser um bom pndego; D. Antnia prepara-se para despedir-se do mundo. Quanto a Miss Dollar, causa indireta de todos estes acontecimentos, saindo um dia rua foi pisada por um carro; faleceu pouco depois. Margarida no pde reter algumas lgrimas pela nobre cadelinha; foi o corpo enterrado na chcara, sombra de uma laranjeira; cobre a sepultura uma lpide com esta simples inscrio: A Miss Dollar FIMLus SoaresCaptulo Primeiro Trocar o dia pela noite, dizia Lus Soares, restaurar o imprio da natureza corrigindo a obra da sociedade. O calor do sol est dizendo aos homens que vo descansar e dormir, ao passo que a frescura relativa da noite a verdadeira estao em que se deve viver. Livre em todas as minhas aes, no quero sujeitar-me lei absurda que a sociedade me impe: velarei de noite, dormirei de dia. Contrariamente a vrios ministrios, Soares cumpria este programa com um escrpulo digno de uma grande conscincia. A aurora para ele era o crepsculo, o crepsculo era a aurora. Dormia doze horas consecutivas durante o dia, quer dizer das seis da manh s seis 22. da tarde. Almoava s sete e jantava s duas da madrugada. No ceava. A sua ceia limitavase a uma xcara de chocolate que o criado lhe dava s cinco horas da manh quando ele entrava para casa. Soares engolia o chocolate, fumava dois charutos, fazia alguns trocadilhos com o criado, lia uma pgina de algum romance, e deitava-se. No lia jornais. Achava que um jornal era a cousa mais intil deste mundo, depois da Cmara dos Deputados, das obras dos poetas e das missas. No quer isto dizer que Soares fosse ateu em religio, poltica e poesia. No. Soares era apenas indiferente. Olhava para todas as grandes cousas com a mesma cara com que via uma mulher feia. Podia vir a ser um grande perverso; at ento era apenas uma grande inutilidade. Graas a uma boa fortuna que lhe deixara o pai, Soares podia gozar a vida que levava, esquivando-se a todo o gnero de trabalho e entregue somente aos instintos da sua natureza e aos caprichos do seu corao. Corao talvez demais. Era duvidoso que Soares o tivesse. Ele mesmo o dizia. Quando alguma dama lhe pedia que ele a amasse, Soares respondia: - Minha rica pequena, eu nasci com a grande vantagem de no ter cousa nenhuma dentro do peito nem dentro da cabea. Isso que chamam juzo e sentimento so para mim verdadeiros mistrios. No os compreendo porque os no sinto. Soares acrescentava que a fortuna suplantara a natureza deitando-lhe no bero em que nasceu uma boa soma de contos de ris. Mas esquecia que a fortuna, apesar de generosa, exigente, e quer da parte dos seus afilhados algum esforo prprio. A fortuna no Danaide. Quando v que um tonel esgota a gua que se lhe pe dentro vai levar os seus cntaros a outra parte. Soares no pensava nisto. Cuidava que os seus bens eram renascentes como as cabeas da hidra antiga. Gastava s mos largas; e os contos de ris, to dificilmente acumulados por seu pai, escapavam-se-lhe das mos como pssaros sequiosos por gozarem do ar livre. Achou-se, portanto, pobre quando menos o esperava. Um dia de manh, quer dizer s avemarias, os olhos de Soares viram escritas as palavras fatdicas do festim babilnico. Era uma carta que o criado lhe entregara dizendo que o banqueiro de Soares a havia deixado meia-noite. O criado falava como o amo vivia: ao meio-dia chamava meia-noite. - J te disse, respondeu Soares, que eu s recebo cartas dos meus amigos, ou ento... - De alguma rapariga, bem sei. por isso que lhe no tenho dado as cartas que o banqueiro tem trazido h um ms. Hoje, porm, o homem disse que era indispensvel que lhe eu desse esta. Soares sentou-se na cama, e perguntou ao criado meio alegre e meio zangado: - Ento tu s criado dele ou meu? - Meu amo, o banqueiro disse que se trata de um grande perigo. 23. - Que perigo? - No sei. - Deixa ver a carta. O criado entregou-lhe a carta. Soares abriu-a e leu-a duas vezes. Dizia a carta que o rapaz no possua mais que seis contos de ris. Para Soares seis contos de ris eram menos que seis vintns. Pela primeira vez na sua vida Soares sentiu uma grande comoo. A idia de no ter dinheiro nunca lhe havia acudido ao esprito; no imaginava que um dia se achasse na posio de qualquer outro homem que precisava de trabalhar. Almoou sem vontade e saiu. Foi ao Alcazar. Os amigos acharam-no triste; perguntaramlhe se era alguma mgoa de amor. Soares respondeu que estava doente. As Las da localidade acharam que era de bom gosto ficarem tristes tambm. A consternao foi geral. Um dos seus amigos, Jos Pires, props um passeio a Botafogo para distrair as melancolias de Soares. O rapaz aceitou. Mas o passeio a Botafogo era to comum que no podia distralo. Lembraram-se de ir ao Corcovado, idia que foi aceita e executada imediatamente. Mas que h que possa distrair um rapaz nas condies de Soares? A viagem ao Corcovado apenas lhe produziu uma grande fadiga, alis til, porque, na volta, dormiu o rapaz a sono solto. Quando acordou mandou dizer ao Pires que viesse falar-lhe imediatamente. Da a uma hora parava um carro porta: era o Pires que chegava, mas acompanhado de uma rapariga morena que respondia ao nome de Vitria. Entraram os dous pela sala de Soares com a franqueza e o estrpito naturais entre pessoas de famlia. - No est doente? perguntou Vitria ao dono da casa. - No, respondeu este; mas por que veio voc? - boa! disse Jos Pires; veio porque a minha xcara inseparvel... Querias falar-me em particular? - Queria. - Pois falemos a em qualquer canto; Vitria fica na sala vendo os lbuns. - Nada, interrompeu a moa; nesse caso vou-me embora. melhor; s imponho uma condio: que ambos ho de ir depois l para casa; temos ceata. - Valeu! disse Pires. 24. Vitria saiu; os dous rapazes ficaram ss. Pires era o tipo do bisbilhoteiro e leviano. Em lhe cheirando novidade preparava-se para instruir-se de tudo. Lisonjeava-o a confiana de Soares, e adivinhava que o rapaz ia comunicar-lhe alguma cousa importante. Para isso assumiu um ar condigno com a situao. Sentou-se comodamente em uma cadeira de braos; ps o casto da bengala na boca e comeou o ataque com estas palavras: - Estamos ss; que me queres? Soares confiou-lhe tudo; leu-lhe a carta do banqueiro; mostrou-lhe em toda a nudez a sua misria. Disse-lhe que naquela situao no via soluo possvel, e confessou ingenuamente que a idia do suicdio o havia alimentado durante longas horas. - Um suicdio! exclamou Pires; ests doudo. - Doudo! respondeu Soares; entretanto no vejo outra sada neste beco. Demais, apenas meio suicdio, porque a pobreza j meia morte. - Convenho que a pobreza no cousa agradvel, e at acho... Pires interrompeu-se; uma idia sbita atravessara-lhe o esprito: a idia de que Soares acabasse a conferncia por pedir-lhe dinheiro. Pires tinha um preceito na sua vida: era no emprestar dinheiro aos amigos. No se empresta sangue, dizia ele. Soares no reparou na frase cortada do amigo, e disse: - Viver pobre depois de ter sido rico... impossvel. - Nesse caso que me queres tu? perguntou Pires, a quem pareceu que era bom atacar o touro de frente. - Um conselho. - Intil conselho, pois que j tens uma idia fixa. - Talvez. Entretanto confesso que no se deixa a vida com facilidade, e m ou boa, sempre custa morrer. Por outro lado, ostentar a minha misria diante das pessoas que me viram rico uma humilhao que eu no aceito. Que farias tu no meu lugar? - Homem, respondeu Pires, h muitos meios... - Venha um. - Primeiro meio. Vai para Nova Iorque e procura uma fortuna. 25. - No me convm; nesse caso fico no Rio de Janeiro. - Segundo meio. Arranja um casamento rico. - bom de dizer. Onde est esse casamento? - Procura. No tens uma prima que gosta de ti? - Creio que j no gosta; e demais no rica; tem apenas trinta contos; despesa de um ano. - um bom princpio de vida. - Nada; outro meio. - Terceiro meio, e o melhor. Vai casa de teu tio, angaria-lhe a estima, dize que ests arrependido da vida passada, aceita um emprego, enfim v se te constituis seu herdeiro universal. Soares no respondeu; a idia pareceu-lhe boa. - Aposto que te agrada o terceiro meio? perguntou Pires rindo. - No mau. Aceito; e bem sei que difcil e demorado; mas eu no tenho muitos escolha. - Ainda bem, disse Pires levantando-se. Agora o que se quer algum juzo. H de custar-te o sacrifcio, mas lembra-te que o meio nico de teres dentro de pouco tempo uma fortuna. Teu tio um homem achacado de molstias; qualquer dia bate a bota. Aproveita o tempo. E agora vamos ceia da Vitria. - No vou, disse Soares; quero acostumar-me desde j a viver vida nova. - Bem; adeus. - Olha; confiei-te isto a ti s; guarda-me segredo. - Sou um tmulo, respondeu Pires descendo a escada. Mas no dia seguinte j os rapazes e raparigas sabiam que Soares ia fazer-se anacoreta... por no ter dinheiro nenhum. O prprio Soares reconheceu isto no rosto dos amigos. Todos pareciam dizer-lhe: pena! que pndego vamos ns perder! Pires nunca mais o visitou. 26. Captulo II O tio de Soares chamava-se o Major Lus da Cunha Vilela, e era com efeito um homem j velho e adoentado. Contudo no se podia dizer que morreria cedo. O Major Vilela observava um rigoroso regmen que lhe ia entretendo a vida. Tinha uns bons sessenta anos. Era um velho alegre e severo ao mesmo tempo. Gostava de rir, mas era implacvel com os maus costumes. Constitucional por necessidade, era no fundo de sua alma absolutista. Chorava pela sociedade antiga; criticava constantemente a nova. Enfim foi o ltimo homem que abandonou a cabeleira de rabicho. Vivia o Major Vilela em Catumbi, acompanhado de sua sobrinha Adelaide, e mais uma velha parenta. A sua vida era patriarcal. Importando-se pouco ou nada com o que ia por fora, o major entregava-se todo ao cuidado de sua casa, aonde poucos amigos e algumas famlias da vizinhana o iam ver, e passar as noites com ele. O major conservava sempre a mesma alegria, ainda nas ocasies em que o reumatismo o prostrava. Os reumticos dificilmente acreditaro nisto; mas eu posso afirmar que era verdade. Foi num dia de manh, felizmente um dia em que o major no sentia o menor achaque, e ria e brincava com as duas parentas, que Soares apareceu em Catumbi porta do tio. Quando o major recebeu o carto com o nome do sobrinho, sups que era alguma caoada. Podia contar com todos em casa, menos o sobrinho. Fazia j dous anos que o no via, e entre a ltima e a penltima vez tinha mediado ano e meio. Mas o moleque disse-lhe to seriamente que o nhonh Lus estava na sala de espera, que o velho acabou por acreditar. - Que te parece, Adelaide? A moa no respondeu. O velho foi sala de visitas. Soares tinha pensado no meio de aparecer ao tio. Ajoelhar-se era dramtico demais; cair-lhe nos braos exigia certo impulso ntimo que ele no tinha; alm de que, Soares vexava-se de ter ou fingir uma comoo. Lembrou-se de comear uma conversao alheia ao fim que o levava l, e acabar por confessar-se disposto a arrepiar carreira. Mas este meio tinha o inconveniente de fazer preceder a reconciliao por um sermo, que o rapaz dispensava. Ainda no se resolvera a aceitar um dos muitos meios que lhe vieram idia, quando o major apareceu porta da sala. O major parou porta sem dizer palavra e lanou sobre o sobrinho um olhar severo e interrogador. Soares hesitou um instante; mas como a situao podia prolongar-se sem benefcio seu, o rapaz seguiu um movimento natural: foi ao tio e estendeu-lhe a mo. 27. - Meu tio, disse ele, no precisa dizer mais nada; o seu olhar diz-me tudo. Fui pecador e arrependo-me. Aqui estou. O major estendeu-lhe a mo, que o rapaz beijou com o respeito de que era susceptvel. Depois encaminhou-se para uma cadeira e sentou-se; o rapaz ficou de p. - Se o teu arrependimento sincero, abro-te a minha porta e o meu corao. Se no sincero podes ir embora; h muito tempo que no freqento a casa da pera: no gosto de comediantes. Soares protestou que era sincero. Disse que fora dissipado e doudo, mas que aos trinta anos era justo ter juzo. Reconhecia agora que o tio sempre tivera razo. Sups ao princpio que eram simples rabugices de velho, e mais nada; mas no era natural esta leviandade num rapaz educado no vcio? Felizmente corrigia-se a tempo. O que ele agora queria era entrar em bom viver, e comeava por aceitar um emprego pblico que o obrigasse a trabalhar e fazer-se srio. Tratava-se de ganhar uma posio. Ouvindo o discurso de que fiz o extrato acima, o major procurava adivinhar o fundo do pensamento de Soares. Seria ele sincero? O velho concluiu que o sobrinho falava com a alma nas mos. A sua iluso chegou ao ponto de ver-lhe uma lgrima nos olhos, lgrima que no apareceu, nem mesmo fingida. Quando Soares acabou, o major estendeu-lhe a mo e apertou a que o rapaz lhe estendeu tambm. - Creio, Lus. Ainda bem que te arrependeste a tempo. Isso que vivias no era vida nem morte; a vida mais digna e a morte mais tranqila do que a existncia que malbarataste. Entras agora em casa como um filho prdigo. Ters o melhor lugar mesa. Esta famlia a mesma famlia. O major continuou por este tom; Soares ouviu a p quedo o discurso do tio. Dizia consigo que era a amostra da pena que ia sofrer, e um grande desconto dos seus pecados. O major acabou levando o rapaz para dentro, onde os esperava o almoo. Na sala de jantar estavam Adelaide e a velha parenta. A Sra. Antnia de Moura Vilela recebeu Soares com grandes exclamaes que envergonharam sinceramente o rapaz. Quanto a Adelaide, apenas o cumprimentou sem olhar para ele; Soares retribuiu o cumprimento. O major reparou na frieza; mas parece que sabia alguma cousa, porque apenas deu uma risadinha amarela, cousa que lhe era peculiar. Sentaram-se mesa, e o almoo correu entre as pilhrias do major, as recriminaes da Sra. Antnia, as explicaes do rapaz e o silncio de Adelaide. Quando o almoo acabou, o 28. major disse ao sobrinho que fumasse, concesso enorme que o rapaz a custo aceitou. As duas senhoras saram; ficaram os dous mesa. - Ests ento disposto a trabalhar? - Estou, meu tio. - Bem; vou ver se te arranjo um emprego. Que emprego preferes? - O que quiser, meu tio, contanto que eu trabalhe. - Bem. Levars amanh, uma carta minha a um dos ministros. Deus queira que possas obter o emprego sem dificuldade. Quero ver-te trabalhador e srio; quero ver-te homem. As dissipaes no produzem nada, a no serem dvidas e desgostos... Tens dvidas? - Nenhuma, respondeu Soares. Soares mentia. Tinha uma dvida de alfaiate, relativamente pequena; queria pag-la sem que o tio soubesse. No dia seguinte o major escreveu a carta prometida, que o sobrinho levou ao ministro; e to feliz foi, que da a um ms estava empregado em uma secretaria com um bom ordenado. Cumpre fazer justia ao rapaz. O sacrifcio que fez de transformar os seus hbitos da vida foi enorme, e a julg-lo pelos seus antecedentes, ningum o julgara capaz de tal. Mas o desejo de perpetuar uma vida de dissipao pode explicar a mudana e o sacrifcio. Aquilo na existncia de Soares no passava de um parntesis mais ou menos extenso. Almejava por fech-lo e continuar o perodo como havia comeado, isto , vivendo com Aspsia e pagodeando com Alcibades. O tio no desconfiava de nada; mas temia que o rapaz fosse novamente tentado fuga, ou porque o seduzisse a lembrana das dissipaes antigas, ou porque o aborrecesse a monotonia e a fadiga do trabalho. Com o fim de impedir o desastre, lembrou-se de inspirarlhe ambio poltica. Pensava o major que a poltica seria um remdio decisivo para aquele doente, como se no fosse conhecido que os louros de Lovelace e os de Turgot andam muita vez na mesma cabea. Soares no desanimou o major. Disse que era natural acabar a sua existncia na poltica, e chegou a dizer que algumas vezes sonhara com uma cadeira no parlamento. - Pois eu verei se te posso arranjar isto, respondeu o tio. O que preciso que estudes a cincia da poltica, a histria do nosso parlamento e do nosso governo; e principalmente preciso que continues a ser o que s hoje: um rapaz srio. Se bem o dizia o major, melhor o fazia Soares, que desde ento meteu-se com os livros e lia com afinco as discusses das cmaras. 29. Soares no morava com o tio, mas passava l todo o tempo que lhe sobrava do trabalho, e voltava para casa depois do ch, que era patriarcal, e bem diferente das ceatas do antigo tempo. No afirmo que entre as duas fases da existncia de Lus Soares no houvesse algum elo de unio, e que o emigrante das terras de Gnido no fizesse de quando em quando excurses ptria. Em todo o caso essas excurses eram to secretas que ningum sabia delas, nem talvez os habitantes das referidas terras, com exceo dos poucos escolhidos para receberem o expatriado. O caso era singular, porque naquele pas no se reconhece o cidado naturalizado estrangeiro, ao contrrio da Inglaterra, que no d aos sditos da rainha o direito de escolherem outra ptria. Soares encontrava-se de quando em quando com Pires. O confidente do convertido manifestava a sua amizade antiga oferecendo-lhe um charuto de Havana e contando-lhe algumas boas fortunas havidas nas campanhas do amor, em que o alarve supunha ser consumado general. Havia j cinco meses que o sobrinho do Major Vilela se achava empregado, e ainda os chefes da repartio no tinham tido um s motivo de queixa contra ele. A dedicao era digna de melhor causa. Exteriormente via-se em Lus Soares um monge; raspando-se um pouco achava-se o diabo. Ora, o diabo viu de longe uma conquista...Captulo III A prima Adelaide tinha vinte e quatro anos, e a sua beleza, no pleno desenvolvimento da sua mocidade, tinha em si o condo de fazer morrer de amores. Era alta e bem proporcionada; tinha uma cabea modelada pelo tipo antigo; a testa era espaosa e alta, os olhos rasgados e negros, o nariz levemente aquilino. Quem a contemplava durante alguns momentos sentia que ela tinha todas as energias, a das paixes e a da vontade. H de lembrar-se o leitor do frio cumprimento trocado entre Adelaide e seu primo; tambm se h de lembrar que Soares disse ao amigo Pires ter sido amado por sua prima. Ligam-se estas duas cousas. A frieza de Adelaide resultava de uma lembrana que era dolorosa para a moa; Adelaide amara o primo, no com um simples amor de primos, que em geral resulta da convivncia e no de uma sbita atrao. Amara-o com todo o vigor e calor de sua alma; mas j ento o rapaz iniciava os seus passos em outras regies e ficou indiferente aos afetos da moa.Um amigo que sabia do segredo perguntou-lhe um dia por que razo no se casava com Adelaide, ao que o rapaz respondeu friamente: - Quem tem a minha fortuna no se casa; mas se se casa sempre com quem tenha mais. Os bens de Adelaide so a quinta parte dos meus; para ela negcio da China; para mim um mau negcio. 30. O amigo que ouvira esta resposta no deixou de dar uma prova da sua afeio ao rapaz indo contar tudo moa. O golpe foi tremendo, no tanto pela certeza que lhe dava de no ser amada, como pela circunstncia de nem ao menos ficar-lhe o direito de estima. A confisso de Soares era um corpo de delito. O confidente oficioso esperava talvez colher os despojos da derrota; mas Adelaide, to depressa ouviu a delao como desprezou o delator. O incidente no passou disto. Quando Soares voltou casa do tio, a moa achou-se em dolorosa situao; era obrigada a conviver com um homem ao qual nem podia dar apreo. Pela sua parte, o rapaz tambm se achava acanhado, no porque lhe doessem as palavras que dissera um dia, mas por causa do tio, que ignorava tudo. No ignorava; o moo que o supunha. O major soube da paixo de Adelaide e soube tambm da repulsa que tivera no corao do rapaz. Talvez no soubesse das palavras textuais repetidas moa pelo amigo de Soares; mas se no conhecia o texto, conhecia o esprito; sabia que, pelo motivo de ser amado, o rapaz entrara a aborrecer a prima, e que esta, vendo-se repelida, entrara a aborrecer o rapaz. O major sups at durante algum tempo que a ausncia de Soares tinha por motivo a presena da moa em casa. Adelaide era filha de um irmo do major, homem muito rico e igualmente excntrico, que morrera havia dez anos deixando a moa entregue aos cuidados do irmo. Como o pai de Adelaide fizera muitas viagens, parece que gastou nelas a maior parte da sua fortuna. Quando morreu apenas coube a Adelaide, filha nica, cerca de trinta contos, que o tio conservou intactos para serem o dote da pupila. Soares houve-se como pde na singular situao em que se achava. No conversava com a prima; apenas trocava com ela as palavras estritamente necessrias para no chamar a ateno do tio. A moa fazia o mesmo. Mas quem pode ter mo ao corao? A prima de Lus Soares sentiu que pouco a pouco lhe ia renascendo o antigo afeto. Procurou combat-lo sinceramente; mas no se impede o crescimento de uma planta seno arrancando-lhe as razes. As razes existiam ainda. Apesar dos esforos da moa o amor veio pouco a pouco invadindo o lugar do dio, e se at ento o suplcio era grande, agora era enorme. Travara-se uma luta entre o orgulho e o amor. A moa sofreu consigo; no articulou uma palavra. Lus Soares reparava que quando os seus dedos tocavam os da prima, esta experimentava uma grande emoo: corava e empalidecia. Era um grande navegador aquele rapaz nos mares do amor: conhecia-lhe a calma e a tempestade. Convenceu-se de que a prima o amava outra vez. A descoberta no o alegrou; pelo contrrio, foi-lhe motivo de grande irritao. Receava que o tio, descobrindo o sentimento da sobrinha, propusesse o casamento ao rapaz; e recus-lo no seria comprometer no futuro a esperada herana? A herana sem o casamento era o ideal do moo. "Dar-me asas, pensava ele, atando-me os ps, o mesmo que condenar-me priso. o destino do papagaio domstico; no aspiro a t-lo." Realizaram-se as previses do rapaz. O major descobriu a causa da tristeza da moa e resolveu pr termo quela situao propondo ao sobrinho o casamento. 31. Soares no podia recusar abertamente sem comprometer o edifcio da sua fortuna. - Este casamento, disse-lhe o tio, complemento da minha felicidade. De um s lance reno duas pessoas que tanto estimo, e morro tranqilo sem levar nenhum pesar para outro mundo. Estou que aceitars. - Aceito, meu tio; mas observo que o casamento assenta no amor, e eu no amo minha prima. - Bem; hs de am-la; casa-te primeiro... - No desejo exp-la a uma desiluso. - Qual desiluso! disse o major sorrindo. Gosto de ouvir-te falar essa linguagem potica, mas casamento no poesia. verdade que bom que duas pessoas antes de se casarem se tenham j alguma estima mtua. Isso creio que tens. L fogos ardentes, meu rico sobrinho, so cousas que ficam bem em verso, e mesmo em prosa; mas na vida, que no prosa nem verso, o casamento apenas exige certa conformidade de gnio, de educao e de estima. - Meu tio sabe que eu no me recuso a uma ordem sua. - Ordem, no! No te ordeno, proponho. Dizes que no amas tua prima; pois bem, faze por isso, e daqui a algum tempo casem-se que me daro gosto. O que eu quero que seja cedo, porque no estou longe de dar casca. O rapaz disse que sim. Adiou a dificuldade no podendo resolv-la. O major ficou satisfeito com o arranjo e consolou a sobrinha com a promessa de que podia casar-se um dia com o primo. Era a primeira vez que o velho tocava em semelhante assunto, e Adelaide no dissimulou o seu espanto, espanto que lisonjeou profundamente a perspiccia do major. - Ah! tu pensas, disse ele, que eu por ser velho j perdi os olhos do corao? Vejo tudo, Adelaide; vejo aquilo mesmo que se quer esconder. A moa no pde reter algumas lgrimas, e como o velho a consolasse dando-lhe esperanas, ela respondeu abanando a cabea: - Esperanas, nenhuma! - Descansa em mim! disse o major. Conquanto a dedicao do tio fosse toda espontnea e filha do amor que votava sobrinha, esta compreendeu que semelhante interveno podia fazer supor ao primo que ela esmolava os afetos do seu corao. 32. Aqui falou o orgulho da mulher, que preferia o sofrimento humilhao. Quando ela exps estas objees ao tio, o major sorriu-se afavelmente e procurou acalmar a susceptibilidade da moa. Passaram-se alguns dias sem mais incidente; o rapaz estava no gozo da dilao que lhe dera o tio. Adelaide readquiriu o seu ar frio e indiferente. Soares compreendia o motivo, e quela manifestao do orgulho respondia com um sorriso. Duas vezes notou Adelaide essa expresso de desdm da parte do primo. Que mais precisava para reconhecer que o rapaz sentia por ela a mesma indiferena de outro tempo! Acrescia que sempre que os dous se encontravam ss, Soares era o primeiro que se afastava dela. Era o mesmo homem. "No me ama, no me amar nunca!" dizia a moa consigo.Captulo IV Um dia de manh o major Vilela recebeu a seguinte carta: Meu valente major. Cheguei da Bahia hoje mesmo, e l irei de tarde para ver-te e abraar-te. Prepara um jantar. Creio que me no hs de receber como qualquer indivduo. No esqueas o vatap. Teu amigo, Anselmo. - Bravo! disse o major. Temos c o Anselmo; prima Antnia, mande fazer um bom vatap. O Anselmo que chegara da Bahia chamava-se Anselmo Barroso de Vasconcelos. Era um fazendeiro rico, e veterano da independncia. Com os seus setenta e oito anos ainda se mostrava rijo e capaz de grandes feitos. Tinha sido ntimo amigo do pai de Adelaide, que o apresentou ao major, vindo a ficar amigo deste depois que o outro morrera. Anselmo acompanhou o amigo at os seus ltimos instantes; e chorou a perda como se fora seu prprio irmo. As lgrimas cimentaram a amizade entre ele e o major. De tarde apareceu Anselmo galhofeiro e vivo como se comeasse para ele uma nova mocidade. Abraou a todos; deu um beijo em Adelaide, a quem felicitou pelo desenvolvimento das suas graas. - No se ria de mim, disse-lhe ele, eu fui o maior amigo de seu pai. Pobre amigo! morreu nos meus braos. Soares, que sofria com a monotonia da vida que levava em casa do tio, alegrou-se com a presena do galhofeiro ancio, que era um verdadeiro fogo de artifcio. Anselmo que pareceu no simpatizar com o sobrinho do major. Quando o major ouviu isto, disse: 33. - Sinto muito, porque Soares um rapaz srio. - Creio que srio demais. Rapaz que no ri... No sei que incidente interrompeu a frase do fazendeiro. Depois do jantar Anselmo disse ao major: - Quantos so amanh? - Quinze. - De que ms? - boa! de dezembro. - Bem; amanh 15 de dezembro preciso ter uma conferncia contigo e os teus parentes. Se o vapor se demora um dia em caminho pregava-me uma boa pea. No dia seguinte verificou-se a conferncia pedida por Anselmo. Estavam presentes o major, Soares, Adelaide e D. Antnia, nicos parentes do finado. - Fazem hoje dez anos que faleceu o pai desta menina, disse Anselmo apontando para Adelaide. Como sabem, o Dr. Bento Varela foi o meu melhor amigo, e eu tenho conscincia de haver correspondido sua afeio at aos ltimos instantes. Sabem que ele era um gnio excntrico; toda a sua vida foi uma grande originalidade. Ideava vinte projetos, qual mais grandioso, qual mais impossvel, sem chegar ao cabo de nenhum, porque o seu esprito criador to depressa compunha uma cousa como entrava a planear outra. - verdade, interrompeu o major. - O Bento morreu nos meus braos, e como derradeira prova da sua amizade confiou-me um papel com a declarao de que eu s o abrisse em presena dos seus parentes dez anos depois de sua morte. No caso de eu morrer os meus herdeiros assumiriam essa obrigao; em falta deles, o major, a Sra. D. Adelaide, enfim qualquer pessoa que por lao de sangue estivesse ligada a ele. Enfim, se ningum houvesse na classe mencionada, ficava incumbido um tabelio. Tudo isto havia eu declarado em testamento, que vou reformar. O papel a que me refiro, tenho aqui no bolso. Houve um movimento de curiosidade. Anselmo tirou do bolso uma carta fechada com lacre preto. - este, disse ele. Est intato. No conheo o texto; mas posso mais ou menos saber o que est dentro por circunstncias que vou referir. Redobrou a ateno geral. 34. - Antes de morrer, continuou Anselmo, o meu querido amigo entregou-me uma parte da sua fortuna, quero dizer a maior parte, porque a menina recebeu apenas trinta contos. Eu recebi dele trezentos contos, que guardei at hoje intatos, e que devo restituir segundo as indicaes desta carta. A um movimento de espanto em todos seguiu-se um movimento de ansiedade. Qual seria a vontade misteriosa do pai de Adelaide? D. Antnia lembrou-se que em rapariga fora namorada do defunto, e por um momento lisonjeou-se com a idia de que o velho manaco se houvesse lembrado dela s portas da morte. - Nisto reconheo eu o mano Bento, disse o major tomando uma pitada; era o homem dos mistrios, das surpresas e das idias extravagantes, seja dito sem agravo aos seus pecados, se que os teve... Anselmo tinha aberto a carta. Todos prestaram ouvidos. O veterano leu o seguinte: Meu bom e estimadssimo Anselmo. Quero que me prestes o ltimo favor. Tens contigo a maior parte da minha fortuna, e eu diria a melhor se tivesse de aludir minha querida filha Adelaide. Guarda esses trezentos contos at daqui a dez anos, e ao terminar o prazo, l esta carta diante dos meus parentes. Se nessa poca a minha filha Adelaide for viva e casada entrega-lhe a fortuna. Se no estiver casada, entrega-lha tambm, mas com uma condio: que se case com o sobrinho Lus Soares, filho de minha irm Lusa; quero-lhe muito, e apesar de ser rico, desejo que entre na posse da fortuna com minha filha. No caso em que esta se recuse a esta condio, fica tu com a fortuna toda. Quando Anselmo acabou de ler esta carta seguiu-se um silncio de surpresa geral, de que partilhava o prprio veterano, alheio at ento ao contedo da carta. Soares tinha os olhos em Adelaide; esta tinha-os no cho. Como o silncio se prolongasse, Anselmo resolveu romp-lo. - Ignorava, como todos, disse ele, o que esta carta contm; felizmente chega ela a tempo de se realizar a ltima vontade do meu finado amigo. - Sem dvida nenhuma, disse o major. Ouvindo isto, a moa levantou insensivelmente os olhos para o primo, e os dela encontraram-se com os dele. Os dele transbordavam de contentamento e ternura; a moa fitou-os durante alguns instantes. Um sorriso, j no zombeteiro, passou pelos lbios do rapaz. A moa sorriu com tamanho desdm s zumbaias de um corteso. Anselmo levantou-se. 35. - Agora que esto cientes, disse ele aos dous primos, espero que resolvam, e como o resultado no pode ser duvidoso, desde j os felicito. Entretanto, ho de dar-me licena, que tenho de ir a outras partes. Com a sada de Anselmo dispersara-se a reunio. Adelaide foi para o seu quarto com a velha parenta. O tio e o sobrinho ficaram na sala. - Lus, disse o primeiro, s o homem mais feliz do mundo. - Parece-lhe, meu tio? disse o moo procurando disfarar a sua alegria. - s. Tens uma moa que te ama loucamente. De repente cai-lhe nas mos uma fortuna inesperada; e essa fortuna s pode hav-la com a condio de se casar contigo. At os mortos trabalham a teu favor. - Afirmo-lhe, meu tio, que a fortuna no pesa nada nestes casos, e se eu assentar em casar com a prima ser por outro motivo. - Bem sei que a riqueza no essencial; no . Mas enfim vale alguma cousa. melhor ter trezentos contos que trinta; sempre mais uma cifra. Contudo no te aconselho que te cases com ela se no tiveres alguma afeio. Nota que eu no me refiro a essas paixes de que me falaste. Casar mal, apesar da riqueza, sempre casar mal. - Estou convencido disto, meu tio. Por isso ainda no dei a minha resposta, nem dou por ora. Se eu vier a afeioar-me prima estou pronto a entrar na posse dessa inesperada riqueza. Como o leitor ter adivinhado, a resoluo do casamento estava assentada no esprito de Soares. Em vez de esperar a morte do tio, parecia-lhe melhor entrar desde logo na posse de um excelente peclio, o que se lhe afigurava tanto mais fcil, quanto que era a voz do tmulo que o impunha. Soares contava tambm com a profunda venerao de Adelaide por seu pai. Isto, ligado ao amor que a rapariga sentia por ele, devia produzir o desejado efeito. Nessa noite o rapaz dormiu pouco. Sonhou com o Oriente. Pintou-lhe a imaginao um harm recendente das melhores essncias da Arbia, forrado o cho com tapetes da Prsia; sobre moles divs ostentavam-se as mais perfeitas belezas do mundo. Uma circassiana danava no meio do salo ao som de um pandeiro de marfim. Mas um furioso eunuco, precipitando-se na sala com o iatag desembainhado, enterrou-o todo no peito de Soares, que acordou com o pesadelo, e no pde mais conciliar o sono. Levantou-se mais cedo e foi passear at chegar a hora do almoo e da repartio. 36. Captulo V O plano de Lus Soares estava feito. Tratava-se de abater as armas pouco a pouco, simulando-se vencido diante da influncia de Adelaide. A circunstncia da riqueza tornava necessria toda a discrio. A transio devia ser lenta. Cumpria ser diplomata. Os leitores tero visto que, apesar de certa argcia da parte de Soares, no tinha ele a perfeita compreenso das cousas, e por outro lado o seu carter era indeciso e vrio. Hesitara em casar com Adelaide quando o tio lhe falou nisso, quando era certa que viria a obter mais tarde a fortuna do major. Dizia ento que no tinha vocao de papagaio. A situao agora era a mesma; aceitava uma fortuna mediante uma priso. verdade que se esta resoluo era contrria primeira, podia ter por causa o cansao que lhe ia produzindo a vida que levava. Alm de que, desta vez, a riqueza no se fazia esperar; era entregue logo depois do consrcio. "Trezentos contos, pensava o rapaz, quanto basta para eu ser mais do que fui. O que no ho de dizer os outros!" Antevendo uma felicidade que era certa para ele, Soares comeou o assdio da praa, alis praa rendida. J o rapaz procurava os olhos da prima, j os encontrava, j lhes pedia aquilo que recusara at ento, o amor da moa. Quando, mesa, as suas mos se encontravam, Soares tinha o cuidado de demorar o contacto, e se a moa retirava a sua mo, o rapaz nem por isso desanimava. Quando se encontrava a ss com ela, no fugia como outrora, antes lhe dirigia alguma palavra, a que Adelaide respondia com fria polidez. "Quer vender o peixe caro", pensava Soares. Uma vez atreveu-se a mais. Adelaide tocava piano quando ele entrou sem que ela o visse. Quando a moa acabou, Soares estava por trs dela. - Que lindo! disse o rapaz; deixe-me beijar-lhe essas mos inspiradas. A moa olhou sria para ele, pegou no leno que pusera sobre o piano, e saiu sem dizer palavra. Esta cena mostrou a Soares toda a dificuldade da empresa; mas o rapaz confiava em si, no porque se reconhecesse capaz de grandes energias, mas por espcie de esperana na sua boa estrela. - difcil subir a corrente, disse ele, mas sobe-se. No se fazem Alexandres na conquista de praas desarmadas. 37. Contudo, as desiluses iam-se sucedendo, e o rapaz, se o no alentasse a idia da riqueza, teria abatido as armas. Um dia lembrou-se de escrever-lhe uma carta. Lembrou-se de que era difcil expor-lhe de viva voz tudo quanto sentia; mas que uma carta, por muito dio que ela lhe tivesse, sempre seria lida. Adelaide devolveu a carta pelo moleque da casa que lha havia entregue. A segunda carta teve a mesma sorte. Quando mandou a terceira, o moleque no a quis receber. Lus Soares teve um instante de desengano. Indiferente moa, j comeava a odi-la; se casasse com ela era provvel que a tratasse como inimigo mortal. A situao tornava-se ridcula para ele; ou antes, j o era h muito, mas Soares s ento o compreendeu. Para escapar ao ridculo, resolveu dar um golpe final, mas grande. Aproveitou a primeira ocasio que pde, e fez uma declarao positiva moa, cheia de splicas, de suspiros, talvez de lgrimas. Confessou os seu erros; reconheceu que no a havia compreendido; mas arrependera-se e confessava tudo. A influncia dela acabara por abat-lo. - Abat-lo! disse ela; no compreendo. A que influncia alude? - Bem sabe; influncia da sua beleza, do seu amor... No suponha que lhe estou mentindo. Sinto-me hoje to apaixonado que era capaz de cometer um crime! - Um crime? - No crime o suicdio? De que me serviria a vida sem o seu amor? Vamos, fale! A moa olhou para ele durante alguns instantes sem dizer palavra. O rapaz ajoelhou-se. - Ou seja a morte, ou seja a felicidade, disse ele, quero receb-la de joelhos. Adelaide sorriu e soltou lentamente estas palavras: - Trezentos contos! muito dinheiro para comprar um miservel. E deu-lhe as costas. Soares ficou petrificado. Durante alguns minutos conservou-se na mesma posio, com os olhos fitos na moa que se afastava lentamente. O rapaz dobrava-se ao peso da humilhao. No previra to cruel desforra da parte de Adelaide. Nem uma palavra de dio, nem um 38. indcio de raiva; apenas um calmo desdm, um desprezo tranqilo e soberano. Soares sofrera muito quando perdeu a fortuna; mas agora que o seu orgulho foi humilhado, a sua dor foi infinitamente maior. Pobre rapaz! A moa foi para dentro. Parece que contava com aquela cena; porque entrando em casa, foi logo procurar o tio, e declarou-lhe que, apesar de quanto venerava a memria do pai, no podia obedecer-lhe, e desistia do casamento. - Mas no o amas tu? perguntou-lhe o major. - Amei-o. - Amas a outro? - No. - Ento explica-te. Adelaide exps francamente o procedimento de Soares desde que ali entrara, a mudana que fizera, a sua ambio, a cena do jardim. O major ouviu atentamente a moa, procurou desculpar o sobrinho, mas no fundo ele acreditava que Soares era um mau carter. Este, depois que pde refrear a sua clera, entrou em casa e foi despedir-se do tio at o dia seguinte. Pretextou que tinha um negcio urgente.Captulo VI Adelaide contou miudamente ao amigo de seu pai os sucessos que a obrigavam a no preencher a condio da carta pstuma confiada a Anselmo. Em conseqncia desta recusa, a fortuna devia ficar com Anselmo; a moa contentava-se com o que tinha. No se deu Anselmo por vencido, e antes de aceitar a recusa foi ver se sondava o esprito de Lus Soares. Quando o sobrinho do major viu entrar por casa o fazendeiro suspeitou que alguma cousa houvesse a respeito do casamento. Anselmo era perspicaz; de modo que, apesar da aparncia de vtima com que Soares lhe aparecera, compreendeu ele que Adelaide tinha razo. 39. Assim pois tudo estava acabado. Anselmo disps-se a partir para a Bahia, e assim o declarou famlia do major. Nas vsperas de partir achavam-se todos juntos na sala de visitas, quando Anselmo soltou estas palavras: - Major, est ficando melhor e forte; eu creio que uma viagem Europa lhe far bem. Esta moa tambm gostar de ver a Europa, e creio que a Sra. D. Antnia, apesar da idade, l querer ir. Pela minha parte sacrifico a Bahia e vou tambm. Aprovam o conselho? - Homem, disse o major, preciso pensar... - Qual pensar! Se pensarem no embarcaro. Que diz a menina? - Eu obedeo ao tio, respondeu Adelaide. - Alm de que, disse Anselmo, agora que D. Adelaide est de posse de uma grande fortuna, h de querer apreciar o que h de bonito nos pases estrangeiros a fim de poder melhor avaliar o que h no nosso... - Sim, disse o major; mas voc fala de grande fortuna... - Trezentos contos. - So seus. - Meus! Ento sou algum ratoneiro? Que me importa a mim a fantasia de um generoso amigo? O dinheiro desta menina, sua legtima herdeira, e no meu, que alis tenho bastante. - Isso bonito, Anselmo! - Mas o que no seria se no fosse isto? A viagem Europa ficou assentada. Lus Soares ouviu a conversa toda sem dizer palavra; mas a idia de que talvez pudesse ir com o tio sorriu-lhe ao esprito. No dia seguinte teve um desengano cruel. Disse-lhe o major que, antes de partir, o deixaria recomendado ao ministro. Soares procurou ainda ver se alcanava seguir com a famlia. Era simples cobia na fortuna do tio, desejo de ver novas terras, ou impulso de vingana contra a prima? Era tudo isso, talvez. ltima hora foi-se a derradeira esperana. A famlia partiu sem ele. 40. Abandonado, pobre, tendo por nica perspectiva o trabalho dirio, sem esperanas no futuro, e alm do mais, humilhado e ferido em seu amor-prprio, Soares tomou a triste resoluo dos cobardes. Um dia de noite o criado ouviu no quarto dele um tiro; correu, achou um cadver. Pires soube na rua da notcia, e correu casa de Vitria, que encontrou no toucador. - Sabes de uma cousa? perguntou ele. - No. Que ? - O Soares matou-se. - Quando? - Neste momento. - Coitado! srio? - srio. Vais sair? - Vou ao Alcazar. - Canta-se hoje Barbe-Bleue, no ? - . - Pois eu tambm vou. E entrou a cantarolar a cano de Barbe-Bleue. Lus Soares no teve outra orao fnebre dos seus amigos mais ntimos.FIM 41. A Mulher de Preto Captulo Primeiro A primeira vez que o Dr. Estvo Soares falou ao deputado Meneses foi no Teatro Lrico no tempo da memorvel luta entre lagrustas e chartonistas. Um amigo comum os apresentou ao outro. No fim da noite separaram-se oferecendo cada um deles os seus servios e trocando os respectivos cartes de vsita. S dous meses depois encontraram-se outra vez. Estvo Soares teve de ir casa de um ministro de Estado para saber de uns papis relativos a um parente da provncia, e a encontrou o deputado Meneses, que acabava de ter uma conferncia poltica. Houve sincero prazer em ambos encontrando-se pela segunda vez; e Meneses arrancou de Estvo a promessa de que iria casa dele da a poucos dias. O ministro depressa despachou o jovem mdico. Chegando ao corredor, Estvo foi surpreendido com uma tremenda btega d'gua, que nesse momento caa, e comeava a alagar a rua. O rapaz olhou a um e outro lado a ver se passava algum veculo vazio, mas procurou inutilmente; todos que passavam iam ocupados. Apenas porta estava um coup vazio espera de algum, que o rapaz sups ser o deputado. Da a alguns minutos desce com efeito o representante da nao, e admirou-se de ver o mdico ainda porta. - Que quer? disse-lhe Estvo; a chuva impediu-me de sair; aqui fiquei a ver se passa um tlburi. - natural que no passe, e nesse caso ofereo-lhe um lugar no meu coup. Venha. - Perdo; mas um incmodo... - Ora, incmodo ! um prazer. Vou deix-lo em casa. Onde mora? - Rua da Misericrdia n.... - Bem, suba. Estvo hesitou um pouco mas no podia deixar de subir sem ofender o digno homem que de to boa vontade lhe fazia um obsquio. Subiram. Mas em vez de mandar o cocheiro para a Rua da Misericrdia, o deputado gritou: - Joo, para casa! E entrou. 42. Estvo olhou para ele admirado. - J sei, disse-lhe Meneses; admira-se de ver que faltei minha palavra; mas eu desejo apenas que fique conhecendo a minha casa a fim de l voltar quanto antes. O coup rolava j pela rua fora debaixo de uma chuva torrencial. Meneses foi o primeiro que rompeu o silncio de alguns minutos, dizendo ao jovem amigo: - Espero que o romance da nossa amizade no termine no primeiro captulo. Estvo, que j reparara nas maneiras solcitas do deputado, ficou inteiramente pasmado quando lhe ouviu falar no romance da amizade. A razo era simples. O amigo que os havia apresentado no Teatro Lrico disse no dia seguinte: - Meneses um misantropo, e um cptico; no cr em nada, nem estima ningum. Na poltica como na sociedade faz um papel puramente negativo. Esta era a impresso com que Estvo, apesar da simpatia que o arrastava, falou a segunda vez a Meneses, e admirava-se de tudo, das maneiras, das palavras, e do tom de afeto que elas pareciam revelar. linguagem do deputado o jovem mdico respondeu com igual franqueza. - Por que acabaremos no primeiro captulo? perguntou ele; um amigo no cousa que se despreze, acolhe-se como um presente dos deuses. - Dos deuses! disse Meneses rindo; j vejo que pago. - Alguma cousa, verdade; mas no bom sentido, respondeu Estvo rindo tambm. Minha vida assemelha-se um pouco de Ulisses... - Tem ao menos uma taca, sua ptria, e uma Penlope, sua esposa. - Nem uma nem outra. - Ento entender-nos-emos. Dizendo isto o deputado voltou a cara para o outro lado, vendo a chuva que caa na vidraa da portinhola. Decorreram. dous ou trs minutos, durante os quais Estvo teve tempo de contemplar a seu gosto o companheiro de viagem. Meneses voltou-se e entrou em novo assunto. Quando o coup entrou na Rua do Lavradio, Meneses disse ao m