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CONTRA DANÇAS NÃO HÁ ARGUMENTOS UMA DÉCADA DE ANDANÇAS FESTIVAL INTERNACIONAL DE DANÇAS POPULARES

Contra Danças Nao Ha Argumentos

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Livro comemorativo da 10ª ediçao do Andanças - Festival Internacional de Danças Populares, que se realiza desde 1996.

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CONTRA DANÇAS NÃO HÁ ARGUMENTOSUMA DÉCADA DE ANDANÇASFESTIVAL INTERNACIONAL DE DANÇAS POPULARES

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Contra danças não há argumentos

Uma década de Andanças - Festival Internacional de Danças Populares

1.ª Edição > Julho de 2006

fotografia João Henriques (excepto páginas 52 de Luís Daniel Louro; 31 e 78 de Nuno Margalha)

design gráfico Nuno Abreu

edição PédeXumbo

impressão Etigrafe

tiragem 2.000 exemplares

depósito legal xxxxxx/06

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00 Editorial Manuela Pires da Fonseca

00 Uma outra Cultura é possível Paulo Pereira 00 Conversas cruzadas Diana Mira, São Vicente, João Pires e Ana Martins00 Dois pés esquerdos António Pires 00 A minha Avó e a dele Luís Moura e Alexandre Matias 00 Lançar o futuro (dança e desfolclorização) Daniel Tércio 00 Ensinar dança(s) Mercedes Prieto Martinez00 O baile da bola Luís Fernandes 00 De fora e por dentro Gonçalo Oliveira 00 Comunidade tradicional e aldeia global Adriano Azevedo 00 Andanças por uma ecologia sensível Rui Leal e Graça Gonçalves

00 A PédeXumbo00 Números do Festival

Índice

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5Parece que é oficial: o Mundo padece de injustiça social e falta de solidariedade. No Andanças não sabemos o que isso é: há 10 anos que todos levam um bailinho por igual. Tão pouco somos esquisitos quanto a voluntários, aceitando-os com prazer em todos os tamanhos e feitios. Mas como funciona isto, perguntarão vocês? Como funciona isto, perguntamo-nos nós...

Porque estas coisas ficam sempre bem, na embalagem dos 10 anos resolvemos tentar perceber de onde veio, o que é, e para onde irá o Andanças.

Aparentemente veio do nada, mas lendo o Paulo descobrem-se fortes motivações, como se fosse o momento certo para algo germinar e crescer. O segundo capítulo reúne conversas apanhadas aqui e ali, afirmações que deixam antever uma mistura de acaso, amizades, diferentes motivações... Bom, mas quem chega pela primeira vez, que encontra? O António traz-nos a visão do jornalista que no Verão percorre todos os festivais do país e ainda se atreve a dizer que este nosso/vosso se distingue de todos os outros.

O Luís M e o Matias foram atraídos para o Andanças pela possibilidade de recuperarem experiências sociais das quais se sentiam expropriados. Ora o Daniel dá-nos algumas pistas que permitem contextualizar opiniões tão pessoais: o Andanças constituiu-se num espaço de desfolclorização que permite a cidadãos como eles serem protagonistas duma continuidade social. E a Mercedes conta como isso se faz: ela explica porque é que dançar num terreiro não é a mesma coisa que aprender técnicas de dança numa academia.

EditorialManuela Pires da Fonseca

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Ah e os músicos, não podemos esquecer os músicos! A maioria dos participantes dança, não toca, por isso talvez lhes escape que o Andanças possa também ser um espaço de partilha para quem gosta de tocar. Mas como se depreende de cada palavra do Luís F, para além de oferecerem música aos bailantes estes orfeus dão claramente música a si próprios!

Bom, mas o Gonçalo também mostra como é possível ir ter ao Andanças por acaso, sem saber dançar ou tocar, e ficar perdidamente encantado. Já o Adriano, trazendo-nos de volta à terra, descreve como também a população local se mesclou e cresceu com o Festival. Estas reacções são do mais saudável que há. O primeiro caso mostra como a simples exposição a um ambiente favorável contamina imediatamente o mais incauto; revela como alguém de fora se pode integrar tão visceralmente, que no final chega a pensar que sempre esteve ali e é nesse momento que vai partir! O segundo caso mostra como o sentimento pode ser recíproco e os que estão irremediavelmente se fundem com quem chega. Nunca será demais afirmar que esta ligação está no âmago do Andanças. Chegados aqui, falamos de desenvolvimento integrado dos que estão, e de perceber que tudo aquilo também somos/podemos ser nós, não é só Paisagem. Por bela que seja, e é.

E por isso e para o fim ficaram umas palavras felizes sobre a sustentabilidade ambiental do Andanças: é justamente por nos terem aberto as portas com tanta franqueza que devemos manter a casa como a encontrámos, e o Rui e a Graça mostram como é possível fazer isso sem dor. Dez anos permitiram-nos constatar o extraordinário impacto ambiental que eventos culturais com a dimensão do Andanças varrem sob o tapete. Nós sentimo-nos já parte deste lugar, pelo que a solução não deve/pode ser acabar com a Festa. Até porque essa seria a solução mais simples: o desafio é de facto integrarmo-nos melhor, buscarmos alternativas, sermos criativos. No fundo trata-se apenas de pensarmos no assunto. São palavras felizes porque o mais importante realmente está feito: reconhecer e assumir o problema; agora só nos falta resolvê-lo.

O Andanças é a prova viva de que foi possível recolocar as danças populares de pé: visto termos ficado a saber que um mundo melhor é possível, a partir de agora provaremos todos que é possível fazê-lo de forma sustentável.

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Uma outra cultura é possível!Paulo Pereira

Pretende com isso ser uma ilha al-ternativa onde não existe televisão, publicidade, comércio ou cultos, tendo como apelativo a descoberta do outro, a interactividade, a aprendizagem, o prazer de sentir em grupo a música, a dança, o teatro ou a descoberta da floresta e da montanha. A bem da verdade, existe um pouco de comércio (um mini-mercado que vende broa com mel...), uma televisão no Bar da Escola Profissional, e Missa ao Do-mingo, audível nos acampamentos... O Festival adaptou-se à vida da aldeia, assim como a aldeia se adaptou ao Festival. A descoberta do outro, de outras culturas, e essencialmente a descoberta das capacidades de cada um e de uma outra forma de viver a cultura, são as ideias centrais da filo-sofia do Andanças.

Claro que existem também propósitos mais práticos, como a redescoberta das danças que bailavam os nossos avós, sem ficarmos obrigados ao espartilho de fatos do século passado ou a coreografias artificiais. A dança deve ser uma festa, seja ela Salsa, Tango, danças Europeias ou Portugue-sas. E foi essa festa que quisemos recriar. Talvez ainda não tenhamos chegado lá, mas estamos certamente mais perto desse objectivo agora, que antes de haver Andanças.

Numa língua que não existe, numa dimensão por enumerar, o Andanças é sinónimo de utopia. Tem como preten-são ser um espaço alternativo onde a cultura participativa é valorizada: a dicotomia Baile versus Concerto as-sume todo o peso de uma afirmação cultural que entra em ruptura com o conceito de cultura mais habitual hoje em dia.

O projecto

O Andanças é, desde o início, um projecto que não se limita a ser uma produção cultural: a necessidade de organizar e produzir o Festival tem como mote a divulgação de formas de dança, mas também, mais abran-gentemente, de todas as formas de cultura participativa.

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Porquê a Dança?

Desde sempre, num tempo em que a história se perde na memória dos povos, a dança tem constituído um meio privilegiado de expressão cul-tural, estabelecendo as diferenças e semelhanças entre povos, países e regiões: em Cabo Verde e no Brasil; em Portugal e no Quebeque; na Ca-talunha e no País Basco; no País de Gales, na Irlanda e na vizinha Galiza; em França e na Bretanha; na Gasco-nha e na Polónia; podemos encontrar, entre todas estas culturas, pontes que as aproximam através da dança (Mazurcas, Quadrilhas ou Chotiças) e da música (Tamborileiro, Gaita de foles, Concertina, Rebeca ou Viola) mas que em cada local adquirem uma cor diferente, única, enriquecendo o nosso património universal comum e contribuindo para a diversidade cultu-ral do mundo.

Este processo cultural, contínuo e ininterrupto desde o seu início, corre o risco de se perder se etiquetarmos o passado como “tradicional” e lhe colo-carmos um cadeado.

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Em Portugal, os espaços naturais da dança e da convivialidade popular - os terreiros das aldeias, no final de mais um árduo dia de trabalho, as grandes romarias de Verão, etc. – têm vindo gradualmente a perder o seu lugar em favor da música Pimba, dos Reality Shows e da ida ao Hipermercado do bairro ou da cidade mais próxima, verdadeiras catedrais do consumo. A harmonia antes celebrada através da dança e da música, entre o ser humano e a Natureza, acompanhando os ciclos das estações do ano, do trabalho, da alegria, da vida, perde-se nestes meandros da mentalidade urbano-depressiva. Com tudo isto per-de-se também o sentimento profundo de pertença a um todo, em que quem toca e quem dança se junta para for-mar um colectivo que é muito mais que a mera soma das partes.

Ora quem já participou em movi-mentos contra-corrente (que fazem destas práticas a sua bandeira), seja em França, na Irlanda, em Espanha ou em qualquer outra parte do mundo, guardou certamente na pele o sabor inesquecível de viver uma experiência única de festa e partilha.

É essa experiência que queremos que todas as pessoas que participem no Andanças tenham a oportunidade de viver. Talvez assim, devagarinho, as danças voltem às ruas, e a cultura saia da sua redoma de vidro, forçosa-mente com estilhaços e muitos gritos, mas - também por isso - decididamen-te viva e reinventada, quebrando as engrenagens monolíticas do pensa-mento único e da sua lógica egoísta.

A organização

Ao contrário do que acontece na maioria dos projectos, festivais e produções, o Andanças tem uma organização horizontal em que cada um é indispensável e onde a respon-sabilidade é proporcional ao trabalho dedicado à sua realização. Só por isso o Andanças é possível: não se trata de um trabalho individual, mas colectivo.

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Em 2005, mais de �00 voluntários dividiram-se pelas diferentes tarefas necessárias para a realização do Festival: o controlo das entradas, o secretariado, a programação, as can-tinas, os parques de estacionamento, o som, o alojamento, os bares, a logística, etc. Em contrapartida, estes voluntários têm direito à entrada no Festival, a uma parte das refeições e, o mais importante, a sentir que fize-ram diferença. Para além da organiza-ção, também cerca de 700 músicos, monitores de dança e de actividades paralelas entram neste sistema trocal. Com efeito, todos os artistas participam no Andanças gratuitamen-te, sendo apenas compensados pelas despesas de viagem e alimentação durante a sua estadia no Festival; se não fosse a sua contribuição activa o Andanças seria impossível, já que os custos disparariam. É preciso notar que a organização do Andanças não conta nem com subsídios, nem com receitas de publicidade: o Andanças está completamente nas mãos dos voluntários e dos participantes em geral. Temos gosto em que continue assim.

O Andanças é portanto pertença de todos; de todos os que dão ali no duro, antes, durante e depois, daque-les que ofertam os seus saberes e as suas artes, dos que partilham os seus conhecimentos, dos corajosos que se atrevem a experimentar de tudo um pouco, da acolhedora população local que ajuda, organiza e ainda suporta uma semana inteira de algazarra infernal, das cozinheiras que nunca perdem o entusiasmo, dos músicos que se encontram por todo o lado a semear notas e harmonias, dos que vêm de longe e de perto, para parti-lhar alegrias, momentos e pedaços de vida, daquela Serra inesquecível, de uma beleza selvagem que esconde segredos sem par, do Sr. António e da Sara, do Branco e do Ricardo, da Caro-lina e do Nuno...

As Andanças

Pensado inicialmente como um es-paço itinerante, Andanças, a partir de 1��� o Festival sedentarizou-se no coração de Carvalhais. Também por essa altura muitos começaram a tratar o Festival como as Andanças, designação que nunca foi corrigida por se pensar que cada um pode ter a sua própria interpretação. Mas sem dúvida que a partir desta data o An-danças passou a pertencer de corpo e alma à pequena aldeia, cimentan-do-se a parceria com as entidades locais, com particular relevância para a Junta de Freguesia de Carvalhais, o Centro de Promoção Social de Carva-lhais e a Câmara Municipal de S. Pedro do Sul.

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O entusiasmo das pessoas da aldeia pas-sou a ser vital para a organização, princi-palmente na modificação das Andanças de forma a acolher um número crescente de participantes. Por exemplo, a diversifi-cação dos conteúdos do Festival ficou-se a dever, em grande medida, a propostas da aldeia que juntaram às Actividades Parale-las o artesanato, jogos populares, despor-tos e actividades na Serra, juntas de bois e gigantones. Ah, e o já famoso desfile final!

Este feliz desencadear de aconteci-mentos veio ao encontro do projecto Andanças inicial, o qual não tinha quaisquer pretenções a ser mais um festival de Verão onde os habitantes locais veêm passar o circo sem se en-volver na sua preparação e execução – formas modernas de colonialismo, onde os seres urbanos superiores mostram às gentes do Portugal pro-fundo como se fazem as coisas.

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Nas Andanças, a parceria com Carva-lhais e com a C.M. de S. Pedro do Sul é baseada numa confiança ilimitada e numa divisão de tarefas bastante eficaz. Apesar de ser algo totalmente novo para Carvalhais (chegou mesmo com alguma má reputação, rotulado como um woodstock moderno com resmas de drogados e freaks cabe-ludos), o Festival teve desde o início um acolhimento excepcional por parte das suas gentes. A população local participa hoje massivamente no fes-tival, seja na sua preparação e organi-zação, seja como participantes, seja como artistas. Neste aspecto, o Festi-val começa de facto a ter o ambiente das romarias, havendo milhares de pessoas que vêm à festa, para falar, beber, encontrar os amigos, ver um espectáculo, dançar, tocar...

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Participação

Aos participantes é sugerida uma presença activa no festival e não uma presença passiva, transformando a semana do Festival numa viagem única na descoberta de vontades há muito adormecidas ou mesmo esque-cidas. A originalidade do Andanças reside também neste aspecto, sendo cada um convidado a inventar o seu Andanças, a programar a sua viagem de porto em porto, da dança aos jogos tradicionais, do baile aos passeios na montanha, das oficinas de artesanato às oficinas de percussão, de desco-berta em descoberta, amealhando nesta rota aventureira novos gostos, danças, ritmos, amigos, rostos, sorri-sos, saberes e experiências. Tropeçar num concerto na Igreja de Carvalhais, ficar a tocar na cantina com músi-cos nunca antes vistos, dançar com um desconhecido, fazem parte dos momentos deste Festival. Pode, com propriedade, dizer-se que não há um Andanças, mas 15.000 Andanças.

Acreditamos que o Andanças faz par-te do movimento alternativo global que nas acções práticas, mais que na retórica, prova que um outro mundo é possível. E nesse mundo a felici-dade não se mede pela quantidade de zeros da conta bancária de cada um, mas pelas amizades feitas, por tudo o que se descobriu e aprendeu, por aqueles pequenos momentos - minúsculos, mas que irão consti-tuir recordações por muito e muito tempo - pelas danças partilhadas, pelas músicas vividas com maior ou menor intensidade e, sobretudo, pelos milhares de sorrisos e cumplicidades semeados um pouco por todo o lado. Na realidade, os sorrisos satisfeitos e os corpos cansados fazem parte dos ganhos políticos do Festival: o capital humano acumulado durante a sema-na transforma-nos literalmente em capitalistas de almas! E talvez até os mais desatentos concluam que mes-mo sem comprar levam do Andanças muita coisa na bagagem...

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Conversas cruzadasDiana Mira, São Vicente, João Pires e Ana Martins

- A ideia de fazer um festival surgiu, antes de mais, por podermos ter um espaço para dançar, pelo prazer de ouvir, tocar ou dançar aqueles ritmos e sonoridades que acabávamos de descobrir. Ou seja, pelo prazer em primeiro lugar. Os objectivos de pre-servação e renovação de tradições são secundários naquilo que nos fez e faz mexer...

- Esta ideia de um pequeno grupo de pessoas meter as mãos à obra para conseguir algo que queria – mesmo que o que quisessem fosse divertir-se - é muito interessante. Penso aliás que isso distingue este festival de todos os outros: não se tratou duma empresa que viu ali um nicho de mercado, nem duma autarquia que precisava preencher a sua agenda de actividades culturais; a coisa come-çou mesmo de baixo para cima!

- De certo modo, o Andanças é como todas as festas de antigamente: as pessoas queriam um baile, juntavam-se, e faziam-no. Tão simples quanto isso.

- Mas olha que eu devo dizer que não achava interesse nenhum em dan-çar...

- E eu nem agora, depois destes anos todos, danço (oops... não devia dizer isto).

- É verdade, também nos atrairam outras coisas, como perceber que este tipo de danças podia fazer uma ligação a outras culturas, dava-nos o prazer de conhecer outros instrumen-tos, o folclore de outros países, outros ambientes, etc. Era portanto um meio que apelava à diversidade, à abertura aos outros.

O início...

- A ponte francesa. É preciso dizer que não se começou do nada, houve um modelo...

- Genetinnes (bolas, não sei se está bem escrito... tantos anos e ainda não sei se os 2 nn são antes ou depois...) é de facto uma referência obrigatória. O Andanças foi muito inspirado no fes-tival Le Grand Bal de l’Europe, bem no centro de França. Embora uma parte dos organizadores iniciais do Andan-ças adorasse este festival, e outra parte não achasse piada nenhuma, e uma outra parte nunca tenha sequer conhecido esse grandioso (e enfado-nho) festival dominado pela geração dos �0 (do século passado).

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- De qualquer modo, se o Andanças teve como modelo o festival de Ge-netinnes, de facto a história começa antes... com o programa “Erasmus”! Foi ao abrigo desse programa de intercâmbio de estudantes que o Paulo Pereira desembarcou em Bar-celona, onde contactou com um tal “movimento das danças tradicionais”, através do qual chegou ao festival de Genetinnes. No regresso começou por melgar os amigos mais próximos, que aliás o olhavam inicialmente com desconfiança quando a qualquer momento e em qualquer lugar come-çava a tentar ensinar uns passos de dança com coreografias estranhas... e o primeiro Andanças acabaria por se realizar no Teatro Garcia de Resende, em Évora, encostado à Etnia-Coopera-tiva Cultural.

...e a continuação

- Para a 2ª edição, o Andanças ru-mou ao Norte: a ida para o Maciço da Gralheira surgiu de (mais) um mero acaso, o qual pôs em contacto a Diana e o Paulo com a Ana Martins e o Padre João.

- O 2º e 3º Andanças realizaram-se em parceria com a Associação de Desenvolvimento Rural de Lafões no parque de Campismo da Fraguinha. Para muitos foram os mais especiais, talvez pela beleza natural da serra e a pequena dimensão do Festival. Foi talvez aí que nasceu o espírito do Andanças, aquele que “desculpou” a organização por uma falha de elec-tricidade numa das noites de baile (a festa fez-se na mesma).

- Mas a maioria dos actuais partici-pantes não passou pela Fraguinha, portanto o espírito do Andanças não pode vir dessa memória... Na minha opinião este espírito resulta antes da abertura do Festival a novos partici-pantes: como a primeira vez é sempre um deslumbramento, se tiveremos gente nova em cada edição obtemos um deslumbramento contínuo!

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- Desde o início que consideramos também um desafio conseguir que o Andanças interesse a diferentes ge-rações, mesmo que predominem os jovens: e é engraçado a grande quan-tidade de pais e mães e madrastas e namoradas dos pais e namoradas das mães que vêm ao Festival! Para não falar no público infantil...

- Mas continuando... à vista de um crescimento do Andanças que extra-vasava a capacidade do parque de campismo, e a Câmara Municipal de São Pedro do Sul já então seriamente envolvida, procurou-se nova locali-zação para o Festival. Com a Maria Sótera passámos por uma primeira hipótese de Manhouce, rapidamente descartada, e finalmente Carvalhais, num processo que deveria entrar para o “Guinness” pela rapidez com que foi feito e, acima de tudo, pela exemplar colaboração e relação de confiança que se estabeleceu entre a PédeXumbo e Carvalhais. Desde aí até ao presente o Andanças tem de-corrido no mesmo local (não obstante os recorrentes boatos de misteriosa origem que surgem todos os anos, e segundo os quais “As Andanças vão sair de Carvalhais!”).

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A Dança

- Logo de início o Andanças se distin-guiu do poderoso movimento de fes-tivais de dança em França. Em quê? Sobretudo nos pulos... Os fantásticos pulos com que todos dançam, as pisadelas quando chegam com os pés ao chão (ou ao pé do parceiro...).

E o prazer estampado com que a maioria das pessoas descobre como os corpos se movem: é algo muito bonito fazer parte de uma roda de um “círculo”, em que se vai mudando de par aceitando cada novo parceiro com um sorriso.

- Ah mas nós aqui também não nos conseguimos furtar a um ou outro participante que chega meio por en-gano: aqueles que confundem paixão com obsessão, pessoas que consi-deram ser a dança um fim em si... e melgam o parceiro por não saber os passos da polska, e criticam os que dançam aos pulos, e acham incrível que alguém possa não conhecer to-das as valsas de cinco tempos...

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São aqueles participantes que quando procuram par perguntam “sabes dan-çar esta?” antes de perguntar “queres dançar?” E se não souberes a mazur-ca a 35 tempos, ficas apeado!

- Pois, mas no Andanças cada um dan-ça como sabe. E como não é suposto haver público meramente espectador, pode assumir-se que não está ali nin-guém a julgar os movimentos dos que tropeçam em si próprios, só gente à espera de vez para entrar na roda...

- Às vezes também ouço perguntas do tipo “Isto dança-se? num concerto qualquer e espanto-me “Se se dan-ça? Claro que se dança! Se quiseres, mexe a cabeça, o rabo, as pernas e sobretudo o espírito, e dança lá como te apetecer”. É que no meio dos bailes por vezes cria-se uma ideia errada de que a coisa mais importante são os passos que se aprendem...

- Bom, esperemos que a diversidade na oferta de actividades no espaço Andanças seja bem explícita: há mais vida para além da Dança! A nossa maior ambição, no fundo, é tornar o acto de dançar em mais uma das coi-sas naturais da vida, e não algo que só se faz em determinadas ocasiões, ou em certas companhias, ou quando estamos vestidos de determinada maneira.

- A verdade é que à medida que come-çámos a organizar oficinas de dança e festivais fomos descobrindo, pela recepção e adesão das pessoas, que este tipo de dança social é um meio privilegiado de criação de laços entre as pessoas: aproxima-as, sugere um sentimento de união, de bem estar, de confiança, e de auto-estima. Isto é, descobrimos que a dança tem re-almente uma função social, não é só entretenimento.

A Organização do Festival

- O modo personalizado como tratamos as pessoas é certamente uma carac-terística do Andanças. Lembro-me de várias histórias. Certa vez telefonou-nos um potencial participante dizendo que gostaria de ir ao Festival, mas que não possuia tenda nem dinheiro para ficar num hotel. Dissemos-lhe que lhe emprestariamos uma tenda nossa; que se dirigisse ao secretariado, no mo-mento das inscrições, e que a pedisse. O senhor lá fez isso, e bem me lembro da cara dele de surpresa quando che-gou e tinha mesmo uma tenda com um rótulo com o nome dele!

- Os voluntários: a maioria envolve-se completamente, alguns são absoluta-mente fantásticos.

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Claro, há tarefas mais ingratas que outras, e também há perfis que às vezes não se adequam muito às tarefas escolhidas. Um pouco para ultrapassar isto as últimas edições já foram precedidas de reuniões gerais de voluntários onde se tenta dar algu-ma orientação e falar sobre a organi-zação e o modo de funcionamento do festival.

Estas reuniões servem também para ouvir sugestões dos coordenadores de equipa de anos transactos, no sentido de ir sempre melhorando o processo. Por isso as inscrições para o voluntariado têm que ser abertas com meses de antecedência (e fe-chadas um par de dias depois, porque rapidamente reunimos voluntários em excesso!).

- O pelouro da programação no An-danças é um dos mais complexos: seleccionar grupos de modo a diversi-ficar e representar o máximo número possível de estilos, conseguir que os músicos confirmem a vinda a tempo, resolver os buracos dos que faltam, tratar diplomatica mas firmemente algumas primas-dona, etc.

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- Também acontece estarem os mú-sicos em palco e falhar alguma coisa no som ou darmo-nos conta de que o grupo da tenda ao lado é tão potente que invade as outras tendas... E é verdade que há muitas alterações de última hora ao Programa, mas o que deveria surpreender é o esforço de actualização constante para suprir faltas e atender aos expectantes dan-çarinos.

- Todos os artistas participam sem receber cachet. Mesmo assim, todos os anos se têm que recusar alguns, dado o elevado número de propostas que recebemos. Também acontece não termos lugar para um dado grupo, e ele decidir ir na mesma como parti-cipante!

Aparentemente este espaço tornou-se mesmo importante na formação dos músicos: qualquer pessoa com um instrumento pode começar a tocar com o vizinho do lado, misturar-se com músicos profissionais, e mesmo estes trocam de grupo entre si de modo fantástico.

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- O que é curioso é que poderíamos pensar que no início teria sido difícil convencer músicos a virem tocar sem receber, mas nem por isso. Bom, no primeiro ano optámos (éramos ino-centes, inexperientes, e achávamos que íamos conseguir arranjar apoios... borregos!) por pagar a todas as pes-soas. E pagámos.

Mas desde o segundo ano que acor-dámos com os artistas (professores de dança, oficinas paralelas, grupos, ranchos), que viriam sem cachet. E sempre senti que fomos bem acolhi-dos, que os artistas também queriam um espaço como este...

- Esse é outro aspecto interessante: hoje em dia parece que quem não tem um subsídio, um apoio, não consegue fazer nada. Parece-me que o Andan-ças prova que é possível começar do zero e sem apoios. E hoje já quase conseguimos cobrir a totalidade das despesas com a bilheteira.

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Claro, poderiamos obter grandes lu-cros com publicidade e patrocínios no Festival, mas achamos que a ausên-cia de faixas publicitárias faz parte do tal ambiente que queremos preservar.

- Também é importante referir que muitas empresas aceitam apoiar-nos – no fundo, são voluntários que contribuem com a sua quota parte – prescindindo de contrapartidas publicitárias: por exemplo o senhor Armando Ferreira, da Solargus, que veio de propósito de Arganil assegurar o painel solar dos duches do parque de campismo.

Ou a Ecover, que contribui com deter-gente biodegradável para responder às nossas preocupações de poluição difusa nos lavatórios comunitários. Acho que também eles provam que há mais vida para além do lucro...

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Dois pés esquerdosAntónio Pires

No Festival Andanças toda a gente dança. Toda? Não. Enquanto há de-zenas de milhar de pessoas a dançar ritmos de todo o mundo durante alguns dias, há uma outra pessoa que só «anda»: eu, em trabalho de repor-tagem... Mas ao fim de meio festival, até eu me atrevi a entrar nas rodas. Desculpem lá as pisadelas.

O Festival Andanças é diferente de todos os outros realizados em Por-tugal. E não é diferente por causa da qualidade do cartaz ou da beleza do local, ou das condições, digamos, nas casas-de-banho (apesar dessas me-lhores condições serem uma realida-de... paralelamente às preocupações ecológicas que, por exemplo, introdu-ziram recentemente o bom hábito de incentivar cada pessoa levar os seus próprios pratos e talheres de casa).

É diferente porque o grau de partici-pação das pessoas - ia chamar-lhes público, mas não é esse o nome correcto e já se perceberá porquê - é incomparavelmente maior. A sua par-ticipação é real, activa, fundamental, necessária, a razão primeira deste Festival.

Vou falar de mim - coisa que não é muito correcta jornalisticamente, mas que aqui se desculpa devido ao es-tado de deslumbramento do escriba, e também como forma de melhor se perceber o que é o Andanças.

Como é que eu participo em concer-tos e festivais?... Assim: às vezes bato o pé a compasso; bato palmas no fim (nunca durante, que é foleiro); faço ritmos celtas com a caneta a percutir o bloco-de-apontamentos, como se fosse um bodhran, quando me entusiasmo mais com algum grupo irlandês; é raro mas às vezes até canto em coro; ponho os braços em X, quando ninguém está a ver, nos concertos dos Xutos & Pontapés; uma vez insultei em voz alta um exímio executante de guitarra portuguesa, não porque tocou mal mas porque to-cou demasiado pouco (e para grande embaraço de quem estava comigo); de outra vez gritei «é roubado! é rou-bado!» para o palco onde estava uma jovem banda portuguesa que copiava um famoso grupo de Manchester. E é só. Mas no Andanças sou obrigado a participar.

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Ao fim de três dias de resistência já me atrevo a experimentar aprender um ou dois ritmos mais fáceis (dan-ças europeias - 1, 2, 3, 1, 2, 3, � – ou cabo-verdianas, porque já tenho algu-ma prática de concertos dos desapa-recidos Tubarões, o único grupo que alguma vez me pôs a dançar durante mais do que 37 segundos seguidos). Dança! Porque raio é que um gajo que não dança, que tem dois pés esquer-dos - e abençoado seja quem inventou a frase - e cuja barriga não ajuda, vai a um festival destes? Para participar, claro, e por muito renitente que esteja à partida. Aliás, e voltamos ao início, este é o único festival português em que toda a gente participa e em que todos os Participantes são o Festival. Está bem, está bem, nos outros o público também interage com o palco - mais palminha, menos palminha; mais isqueiro aceso, menos isqueiro aceso; mais gritinho histérico para a Britney, menos indicador e mindinho esticados para os Metallica, etc, etc... -, mas o Andanças é o único em que as pessoas que lá vão têm exacta-mente a mesma importância que os músicos ou os monitores de danças ou os contadores de histórias ou... ou...

O festival são eles, somos nós, os an-dantes, os dançantes, os bailantes... E os protagonistas não estão no palco, mas em todo o lado (ok, incluindo o palco). Basta ver, por exemplo, um concerto d’Uxu Kalhus - uma das me-lhores bandas portuguesas actuais - e tentar perceber a mecânica e a magia da coisa: observar como há centenas de pessoas a dançar, com sabedoria, o cocktail de desvairadas músicas que eles servem - desde a «Erva Cidreira» a uma versão delirante do «I Will Survive», de Gloria Gaynor, passando por gritos thrash-metal, funk, reggae... -, não se sabendo se devemos olhar para o palco ou para as pessoas que dançam ou, então, dançar também. E ver como a acor-deonista Celinada Piedade diz às pes-soas que ritmo vão tocar. E ver como fazem pausas maiores entre os temas do que é habitual, para as pessoas po-derem descansar os pés e o coração. E ver como tudo aquilo resulta num espectáculo belíssimo.

E depois o Andanças tem outras van-tagens: a música é geralmente muito boa - tanto nos concertos/bailes da noite como na música gravada (e às vezes também ao vivo) das oficinas de dança durante o dia -, o ambiente é fantástico e a animação é absoluta e contínua. Logo de manhã abrem as tendas - e estão sempre a funcionar cinco ou seis ao mesmo tempo. Ten-das por onde passam, ao longo do dia, milhares de pessoas que se repartem pelo que mais lhes interessa. E o cardápio é variado: ioga, meditação, tai-chi e artes colaterais a abrir a manhã e a fechar a tarde, para equi-líbrio do corpo e do espírito (pode-se até dizer que se o Andanças é uma mega-discoteca global, com várias «pistas», estes seriam os espaços de chill-out) e agitação total no resto da luz do sol...

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Com as danças irlandesas e o efeito Titanic dos jigse dos reels (com a tenda a quase ir ao fundo com o peso, mas com as pessoas a continuar a dançar mesmo assim - isto não acon-teceu, é uma figura de estilo!).

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Com a street dance, frequentada por crianças e adolescentes à procura dos melhores passos do hip-hop e com coreografias que parecem saídas do «Thriller», de Michael Jackson, ou de um qualquer teledisco do Puff Daddy. Com as danças brasílicas em que a música de Rita Lee convive com forró e samba e carimbó - «apaga o cigarro com o calcanhar», diz o monitor para explicar o passo (e é uma metáfora - não se pode obviamente fumar nas tendas das oficinas de dança...). Com as danças orientais, em que centenas de mulheres, quase mesmo só mulhe-res e muitas delas com os tradicionais cintos de moedas, aprendem a dança do ventre (nesta aula, o escriba, um bocadinho do lado de fora da tenda, sentiu-se completamente voyeur) ao som de darabuka e do ritmo sus-surrante das moedinhas. Ou com as danças klezmer, cujo monitor deseja que, um dia, judeus e muçulmanos possam vir a dançar juntos. E na aula de Sapateado e Ritmo dança-se com todos os músculos e ossos e órgãos, faz-se música com os pés e as mãos e percebe-se que os mesmos passos podem servir para vários tipos de dança. E nos Encontros do Umbigo ouve-se, no final, Madredeus e a seguir House e depois toda a gente entra em gritaria tribal. E... E... E...

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Concertos/bailes houve dezenas e para todos os gostos, sendo impos-sível falar de todos. Mas há, pelo menos, mais uma coisa também importante a referir: os músicos ficam no campismo, actuam sem cachet, participam nas coisas dos outros todos. Foi comovente ver os músicos italianos que andaram a pôr o povo «taranta» carregados de mochilas e instrumentos a perguntarem-me onde é que se apanhava a camioneta para S. Pedro do Sul. Nada, portanto, dos vedetismos de muitas estrelas rock que exigem mil toalhas brancas nos camarins ou fazem birra porque o ano do champanhe pedido à produção não corresponde exactamente ao desejado ou exigem um avião a jacto para ir de Almada a Cacilhas.

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Para todos os gostos, escrevi eu. Ima-gine-se só...Numa noite há o Rancho Típico de Manhouce, de ali de perto, com os seus trajes de festa e casa-mento, noutra há Isabel Silvestre (de outro grupo da mesma terra e mais conhecida pela sua colaboração com os GNR) a cantar temas religiosos na bonita igreja barroca de Carvalhais.

Numa há os Toques e Danças do Cara-mulo (projecto de Luís Fernandes, dos Cantautores, que aqui aplica à música tradicional - e aos jogos infantis, do lenço por exemplo, o mesmo método aplicado a José Afonso ou a Fausto: modernizar sem exageros supérfluos - é como se fosse um rancho conta-minado pelos cantores de Abril e não pelo António Ferro e o Verde Gaio).

Noutra há afro-reggae acústico e salti-tante com os Tropical Roots. Numa há um cheirinho da Zavala moçambicana com os Timbila Groove, noutra há uma máquina já muito bem oleada de música transmontana com os Galandum Galun-daina (com um leque tímbrico variado que, para além das gaitas, caixa e bom-bo, também já mete sanfona, bilhas, coros a três vozes), reforçados por uns Pauliteiros a puxar à dança ancestral.

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Numa há os seus primos de Lisboa, Gaitafolia, a atrever-se a tocar um fado com gaitas e a mostrar como a música do norte de Portugal está tão próxima da Galiza irmã, noutra há os Mu, com raparigas e rapazes a viajar por muitos lugares, à custa de violino e acordeão suaves e percussões sel-vagens.

Numa há os Biiris Babong a visitar a música dos ciganos de Leste com a ajuda de bailarinas «exóticas», noutra há os belgas Naragonia, que se atiram a boogie-woogies folk. Numa há os franceses Minuit Guibolles - ar-repiante o momento em que o violino imita as vozes de Tuva! -, vestidos com o equipamento do Carvalhais Futebol Club (é no campo da bola que estão as tendas) e que põem cente-nas de pessoas a dançar, noutra há Monte Lunai. Numa há Dazkarieh, um dos mais consistentes grupos por-tugueses, noutra há os Dobranoch, russos que estão entre o classicismo do Terem Quartet e a folia de Goran Bregovic, com um cimbalon, uma darabuka e uma tuba a puxar ao baile. E... E... E... E há um milhão de coisas mais: origamis à «BladeRunner» e percussões africanas no asfixiante, de tão bonito, cenário do Pisão. Uma rapariga de mitenes que enrola fios de lã colorida nos cabelos de uma meni-na. Os contos à fogueira, com Marco-Luna, um colombiano que protagoniza um misto de griot mandinga e stand-up comedy a pôr toda agente a fazer sons e gestos enquanto desenrola um líbelo fortíssimo anti-guerra. Um es-paço dedicado à Felicidade, com bolas de espelho, um aquaparque, uma cama no chão mas com cabeceira e pés; e um ritual paradisíaco-pagão.

Há um concorrido workshop de didge-ridoos. Há construção de caleidoscó-pios (a única droga psicadélica acon-selhável às crianças). Há um palhaço em andas num elegante pas-de-deux e que, depois, num trapézio, voa do céu à terra em fracções de segundo, «aaaah!»... E... E... E...

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A minha Avó...Luís Moura

A história dos ranchos no Andanças não foi inventada por mim. Quando eu fui pela primeira vez ao Andanças, na Coelheira, em 1��8, já por lá andavam os ranchos das redondezas de S. Pedro do Sul. Mas para contar como é que me tornei o “testa de ferro” dos ranchos no Festival, preciso primeiro da vossa paciência para contar uma história em tom de “quando eu era pequenino”.

É mesmo, quando eu era pequenino andei num rancho – O Rancho Folcló-rico da Lomba, Amarante – que infe-lizmente durou pouco. Mas mais im-portante que essa minha passagem efémera, de dois ou três anos por um grupo folclórico, foi a influência dos relatos da minha avó Rosa na cons-trução do meu imaginário em torno do modo de vida antigo, assim como no enquadramento cultural de diversos aspectos sociais, religiosos e mesmo estéticos dos meus antepassados.

Vivia mentalmente, através das histórias que a minha avó contava, os ambientes sociais dos trabalhos do campo, como as sementeiras, as regas, as cegadas (as ceifas), as desfolhadas, as vindimas, o ciclo do linho e as romarias. Ainda participei em algumas destas lavouras, como as vindimas, as “semeias” das batatas ou o urdir das teias (sim, que as mi-nhas avós eram ambas tecedeiras). Herdei alguns panos tecidos pelas mãos da minha Avó Rosa – Que Deus a tenha em bom descanso! Quando faço um esforço consciente, ainda consigo fechar os olhos e ouvir ecos dos homens lá da terra, a chamar os bois – “Lavra, boi lavra! Anda Russo, pró rego!” – ou nas vindimas, em que ainda participei, a chamar pelas ces-teiras: – “Ó cesteira, Uvas! Ó minha cesta! E as romarias a Santa Quitéria?

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Na noite de 2� para 30 de Junho por volta da meia-noite saíamos, novos e velhos, para percorrer a pé os cerca de dezassete quilómetros que se-param Amarante de Felgueiras. Sem saber muito bem porquê, adorava fazer esta romaria. Isto já para não falar nas matanças dos porcos, que pode ferir algumas susceptibilidades. Certo é que esta vivência, oleada pe-las memórias da minha avó, aguçou em mim a vontade, se não mesmo a responsabilidade, de procurar fazer (um dia) algo por esse legado cultural que forjava a identidade do meu povo. É a nossa diversidade que nos torna únicos e irrepetíveis. Essa é, para mim, a verdadeira riqueza. As músicas feitas pelo povo são, no meu modesto entender, o registo vivo e possível da sua história.

E então, o que é que isto tem a ver com o Andanças e com os ranchos no Andanças? Para mim, tem tudo a ver. Desde que senti pela primeira vez a ambiência dos espaços criados no Festival percebi que poderia ali criar um viveiro, uma estufa, com condições ideais, para cultivar “o que é nosso”.

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E, mais importante, da única maneira que me fazia sentido: devolvendo ao povo o que nunca lhe devia ter sido retirado, o prazer de reinventar em cada moda uma forma própria de a dançar e continuar, no conjunto da dança, a sentir a identidade do que é seu, e único. Era uma oportunidade óptima de, mais que preservar, reavi-var, reinventar o que durante décadas foi cristalizado nos “legítimos repre-sentantes” da nossa cultura popular – os ranchos.

Sabia que a tarefa ia ser espinhosa, mas sabia que tinha que tentar. Não podia desperdiçar as condições que ali se conjugavam. Acima de tudo encontrei uma mística por detrás das coisas que me apaixonou. Deixem-me falar do que vivi no meu primeiro Andanças.

Quem já foi a um destes festivais certamente sabe que o primeiro Andanças nos marca de uma forma diferente. Primeiro foi o sítio. O que eu andei para lá chegar! A Serra da Gralheira é linda, mas isola-nos da civilização num raio de cerca de vinte quilómetros centrados na Coelheira. Havia uma represa, que servia de banheira colectiva; eu montei a tenda no socalco de um riacho, junto de uma ponte improvisada que o atravessava.

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Os palcos, dois ou três, eram distribu-ídos por entre as árvores; a Casa de Abrigo do parque servia de recepção, bar e cozinha. Havia ainda uma pe-quena eira, onde funcionou um obser-vatório de astronomia improvisado.

Mas o que mais me marcou foram mesmo as pessoas e o sorriso indis-farçado com que se cumprimentavam umas às outras. E para dançar?

Espectáculo, nem era preciso conhe-cer ninguém, era só estender a mão e a moçoila aceitava (quase sempre) ou então nem era preciso, porque a maioria das danças eram de grupo e era só meter-se no meio dos outros e tentar acompanhar. E assim passei uma semana, muito próximo do meu ideal de vida.

Ok. Passada a euforia do festival, comecei a reflectir e percebi que tinha estado num ambiente onde era realmente possível viver a dança de uma forma social, partilhada e participativa. Aquele festival não era um espectáculo de danças, era uma experiência de danças. Danças do mundo, francesas, polacas, russas, brasileiras, espanholas e portugue-sas, claro.

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Claro... mas não era assim tão óbvio que as danças portuguesas fossem interessantes para serem dançadas no Andanças...

Desde logo, quem eram os monitores de danças portuguesas que estavam disponíveis para as ensinar? Ok. Até haviam alguns, mas para mim mais importante que ensinar as danças portuguesas era quebrar o tabu de que os ranchos são “os donos” das danças tradicionais portuguesas – “as genuínas”.

Por vontade de alguns inspectores de folclore, só se dançava o que é “genu-íno” e “cada terra, o que é seu”, com socas e tudo. Foi isso que mais me motivou: acabar com essa ideia pere-grina de que as danças portuguesas são (apenas) coreografias dançadas por ranchos em cima de palcos.

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Parece que estou a falar de uma coisa estranha. Dez anos passados já muita gente dançou o malhão ou o rega-dinho destorcido por uma guitarra eléctrica. Mas há dez anos, quantos o tinham feito?

O início foi duro. Chegar junto de um rancho e dizer-lhe que gostávamos que eles fossem a um festival de danças tradicionais, mas que não era para dançarem em cima de um palco. Que era para eles ensinarem as danças às pessoas que lá estavam e que depois, à noite, ainda queríamos que fizessem um baile, tudo de borla. O que é que acham? Pois foi o que fizemos!

Justiça seja feita: os ranchos da região de S. Pedro do Sul foram pioneiros. Como disse ao princípio, quando cheguei ao Andanças eles já lá andavam. Estou a falar do Rancho de Negrelos, do Rancho de Valadares, do Rancho de Manhouce e o Rancho de Serrazes.

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Para tentar conseguir convencer ranchos de diversas regiões deste nosso canteiro, a PédeXumbo colocou entretanto em marcha um projecto – Viagens na Minha Terra - que tinha por linhas mestras o contacto com os ranchos de uma maneira muito informal, tentando aprender com eles algumas das “modas”, e convencen-do-os depois a ir ao Andanças ensinar as danças que apresentavam nos palcos, só que em formato de baile aberto. Estão a ver a ideia? Pois, nem os ranchos...

O problema estava em que o conceito habitual dos ranchos é o de “dançar para o povo”, e não o de “dançar com o povo”. Mas tínhamos que tentar e lá fomos. Começámos pela minha terra. Claro que convenci a Mercedes, a Inês e o Paulo que começávamos por Ama-rante por questões logísticas, mas no fundo queria era ver a minha região a ser a primeira a ser conquistada... Depois de umas garrafas de vinho “espadeiro”, que o Sr. Moreira fez questão de oferecer, lá ficou combina-do que iriam “arriscar”. Pronto, nesse ano foram a medo; no ano seguinte já acamparam durante todo o Festival. Seguiu-se Trás-os-Montes, Santarém, e Ribamar.

Hoje devo dizer que todas foram ex-periências muito positivas. Digo-o por mim, mas arriscaria dizê-lo por quan-tos temos feito estes encontros, quer por parte da PédeXumbo, quer por parte dos grupos contactados.

Tenho que ser honesto, para mim foi um projecto ganho a vários níveis. Primeiro, a nível do relacionamento humano; sob o ponto de vista cultural provou-se que de uma maneira sim-ples, até desorganizada, mas apaixo-nada, se pode garantir a presença de ranchos e, com eles, da dança portu-guesa, no Andanças.Por tudo isto só me resta dizer obri-gado a todos por me terem dado a oportunidade de viver a vosso lado os diferentes momentos do Andanças. Ah, mas falta dizer que no meio disto tudo e sem saber muito bem como, “criámos um monstro” – o Matias. Cada vez que me lembro dele, sentado a medo numa esplanada do Andanças de 2002 dizendo que gostaria que o rancho onde ele dançava um dia viesse ao Andanças... e agora está em todas – ganda Matias! Parecia que estava mesmo a pedi-las: foi só dizer-lhe que ele era a pessoa indicada para agarrar nos ranchos e parece que toda a vida tinha feito aquilo. Força Matias!

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... e a deleAlexandre Matias

Aquilo a que hoje chamamos riqueza folclórica portuguesa construiu-se a partir de actividades que já não existem ou se transfiguraram. Por exemplo, para muitos trabalhos de campo colectivos, como as vindimas, a malha do centeio, as desfolhadas de milho, etc, as famílias solicitavam a ajuda de amigos e vizinhos. A estes se juntava muita gente nova, não necessariamente pelo dinheiro ou pelo trabalho, mas pela tradição de cantar e dançar associada a estas actividades. As pessoas cantavam no caminho até ao local de trabalho, du-rante o trabalho, e no final. O final era especialmente importante, pois tudo acabava em grande bailarico: muitas vezes os senhorios da terra convida-vam quem possuisse instrumentos musicais (viola, cavaquinho, flauta, tambor, gaita de foles, acordeão, adu-fe, etc) para ajudar na festa.

Por todo o Portugal acorriam a festas locais e romarias numerosos romeiros vindos por vezes de terras distantes, percorrendo estradas e caminhos a cantar e a tocar, dançando mesmo grandes pedaços dos trajectos. Era isto a música e a dança populares, produzindo cada região a sua própria forma de cantar e dançar. Era assim que nos terreiros se fazia cultura, ou o que hoje se diz a “cultura tradicio-nal”.

Em meados do século XX surgem os ranchos, uma criação do Estado Novo que visava criar um espírito nacional feito de regiões que foram folclori-camente caracterizadas. A rádio e a televisão serviram para levar este folclore a todo o país.

Este movimento teve na verdade a mais-valia de promover inúmeras pesquisas e recolhas de tradições musicais pelo país fora. Nalguns ca-sos com critérios científicos (de que Michel Giacometti será o expoente máximo), noutros por iniciativa local, muitas vezes a cargo do senhor im-portante da terra que pretendia for-mar um rancho que rivalizasse com a região vizinha.

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Começaram então a organizar-se cortejos folclóricos, concursos, exibições nacionais: lentamente os ranchos tornavam-se cada vez menos genuínos.

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Às vezes a necessidade de preencher um programa obrigava um grupo muito bom em determinada dança a ter que inventar ou adoptar outras coreografias, simplesmente porque o público queria variedade. E estas deturpações tanto surgiam nas coreo-grafias, como nos trajes envergados pelo rancho. Facilmente se foi percebendo que estes concursos fugiam da tradição que supostamente pretendiam perpetuar.

Por fim os concursos redundaram no que hoje designamos como festivais de fol-clore. A Federação Portuguesa de Folclore assume aliás claramente o desígnio de manter a tradição cristalizada nos ranchos folclóricos, exigindo a cada rancho um estri-to rigor e postura “profissional” durante os espectáculos.

Ao assistir à actuação de um rancho em pal-co, muitas vezes o público ignora o percurso que levou à sua criação. E desconhece também o que esteve na origem daquelas coreografias, a razão das especificidades das várias danças. Por vezes os próprios ranchos se esquecem que essas mesmas coreografias nasceram da prática dos bailes populares, e que por isso mesmo não podem ser congeladas num determinado tempo.

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Imaginava um encontro nacional de salsei-ros e pensava que iria apanhar uma enorme “seca”, mas afinal quem foi surpreendido... fui eu. Fiquei fascinado com o ambiente do Festival, parecia um conto de fadas onde tudo e todos dançavam e tocavam com um enorme sorriso. As pessoas pareciam muito felizes. Eu meti-me também no meio das danças de roda, dos círculos, fui pisado, pisei, empurrei, pulei, gritei, cantei, vibrei com a magia do Andanças. Já tinha participado noutros festivais, de rock e folclore, mas esta era a primeira vez que sentia qualquer coisa como estar vivo. Mas quando mais me espantei foi realmente quando vi os ranchos: não acreditava no que via! Há mais de 16 anos que faço parte do rancho folclórico “As Salineiras de Lavos” da Figueira da Foz, com o qual percorri imensos festivais nacionais e estrangeiros. Nestes últimos anos, por exemplo, vivi muito a partilha de tradições de danças e canções entre os grupos presentes em festivais internacionais. No Andanças, contudo, era tudo isso e muito mais: ali estava representada a cultura tradicional de todo o mundo, sobretudo a tradição portuguesa e através dos ranchos folclóricos, mas ali os ranchos... ensinavam danças ao people!

Sempre adorei dançar e sinto uma alegria e energia enormes quando estou em palco com o meu Rancho. Nesses dois únicos dias em que descobri o Andanças disse para mim próprio: “O meu rancho tem que vir aqui”.

Conheci entretanto o Luís Moura, e conversá-mos durante algum tempo no meio do calor, regados com duas cervejas. Explicou-me com toda a alma as ideias dele e a filosofia do Festival, o que se vive, o que sente, o que se partilha... Durante tempos andei com um sorriso imenso no rosto só por aqueles dois dias. Nesse ano não voltei a saber nada nem do Andanças nem do Luís... nem da menina que namoriscava. O tempo custava a passar, mas aqueles dois dias mágicos andavam comigo e fervilhavam dentro de mim.

Como sabia em que altura se realizava o Fes-tival, voltei no ano seguinte. Mas desta vez fui preparado: fui de véspera montar a tenda jun-to de novos amigos das danças tradicionais (muito devo a eles), e ainda assisti a uma jam nesse domingo à noite. Voltei para Lisboa para trabalhar três dias, andei no emprego todo o tempo com o tal sorriso descomunal devido à bendita jam. Regressei a S. Pedro do Sul para o final do Andanças, quatro dias fantásticos. Voltei a encontrar o Luís, que me reconheceu e pediu desculpa por não me ter contactado, e lá conversámos de novo no meio do calor... e mais duas cervejas. A partir daí conheci realmente o Andanças: dormia cerca de �/5 horas por manhã, o resto do tempo era todo feito a dançar e a conviver, já não pisava tanto... já dançava de tudo... perdi peso... Senti-me tão próximo do Andanças que não queria acreditar. E confirmei que ali os ranchos são decididamente diferentes... a tradição já é o que era!

Bom, é certo que no esquema instituído os ranchos se têm que sujeitar às tais regras que os inspectores do folclore não deixam transgredir... Esses ranchos adquirem uma tendência para actuar como “grupo artístico” e exibem algum distanciamento para com o público.

Na verdade dessa maneira criam mesmo uma barreira entre o público mais idoso, o qual revive através do espectáculo de palco uma actividade social que caiu em desuso, mas que gosta de ver por lhe lembrar a juven-tude, e os jovens, que quando chega o rancho se afastam por se tratar de uma realidade que nunca experimentaram (e que ainda por cima entretanto se cristalizou em “tradição”, ou “coisa do passado”).

Dito isto, parece até que não aprecio um espectáculo de rancho. Pelo contrário: a dificuldade e variedade de passos, a energia transmitida, a coreografia em simultâneo, tudo isto me atrai num bom espectáculo em palco de um rancho português ou estran-geiro. Penso que no fundo sentia uma certa nostalgia por não poder usufruir de tradições vivas...

Em 2002 namoriscava uma menina que andava metida nas danças de salão (salsa), quando ouvi a palavra Andanças: ela, com o seu grupo de amigos salseiros, ia ao festival. Em dois dias de folga do meu trabalho decidi aparecer por lá e fazer-lhe uma surpresa.

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Lançar o Futuro - Dança e (Des)folclorizaçãoDaniel Tércio

Quando se fala em dança folclórica pensa-se em tradição. Por tradição entende-se normalmente uma re-alidade de cariz popular que teria tido origem num passado remoto e perdurado de forma mais ou menos genuína ate aos dias de hoje. Desta perspectiva decorre frequentemente que a legitimação actual da dança fol-clórica deriva do grau de acordo que tem com a tradição, isto é, com o mo-delo orginal e cuja prática se mantém “popular”. Mas esta perspectiva apre-senta dificuldades incomensuráveis, a saber: onde está a origem de um movimento do corpo? Que espécie de historiografia é capaz de estabelecer sem hesitações que esta ou aquela dança surgiu nesta ou naquela época e que era dançada desta ou daquela maneira precisa? Qual o critério para identificar o que é “popular”?

Na verdade a discussão das origens, mesmo que estimulante, pode cons-tituir um poço sem fundo ou, se se quiser, a busca do lugar onde nasce o arco-iris; uma quimera, portanto.

Uma dificuldade paralela tem a ver com a substância da tal realidade que se designa por dança. Na verdade, estamos a falar num objecto de de-finição complexa, que certamente é reconhecido pelos seus praticantes, mas nem sempre pelos que a ela assistem. Quando se fala em dança podemos concordar que esta envolve o corpo em movimento - movimento normalmente acompanhado por mú-sica - que pode ser realizado indivi-dualmente ou em conjugação com os movimentos de outros corpos.

Porém, é também comum acrescen-tar-se que não se trata de um qual-quer movimento. É, digamos assim, um movimento especial, seja lá o que isto queira dizer. A especialidade do movimento do corpo – que o autoriza pois a ser classificado como dança – pode ter a ver essencialmente com dois aspectos. Um deles é a existên-cia de um sistema de movimentos, isto é, um conjunto de passos codi-ficados e de regras de combinação comummente aceites entre uma co-munidade de praticantes; o outro tem a ver com o contexto em que aconte-ce o movimento.

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Frequentemente os “partidários” de uma ou de outra perspectiva discu-tem a respectiva predominância: os primeiros entendem que a dança só existe quando enquadrada por um sis-tema reconhecido de movimentos, do tipo do “ballet clássico” ocidental ou do “barathanatyam” hindú; outros en-tendem que é basicamente o contexto que faz do movimento um movimento dançado (por exemplo, um corpo mes-mo que aparentemente imóvel numa cena coreográfica pode ser lido como estando a dançar). Provavelmente as duas perspectivas não são incompa-tíveis. Na verdade, ambos têm razão porque o sistema de movimentos e o contexto de movimentos não se excluem mutuamente, mas antes se completam e interagem.

Uma amiga minha contou-me que, há uns anos atrás, em Buenos Aires, aceitou dançar um tango com um ve-lho dançarino argentino; como ela não conhecia os códigos da dança, não soube ler/corresponder aos sinais do par, o que fez com que ele a largasse no meio da sala com uma veemente reprimenda. Um pouco por causa des-te episódio – mas sobretudo porque adora dançar - ela aprendeu as dan-ças argentinas e tornou-se uma prati-cante convicta de tangos e milongas.

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Frequenta hoje as casas da especia-lidade que existem em Lisboa e no Porto, lugares onde só se entra com uma palavra-passe e que constituem uma espécie de ambientes “retro” ca-racterísticos. Portanto, o que a minha amiga fez foi adaptar, em determina-das circunstâncias, o seu corpo ao movimento característico das danças argentinas.

A incorporação passou não apenas pela aprendizagem de passos e pos-turas, mas também por toda uma encenação, que tem as suas perso-nagens, as suas tensões dramáticas e que cultiva certos rituais. Não se julgue, porém, que os ambientes que ela hoje frequenta são réplicas dos bordéis oitocentistas de Buenos Aires.

Mesmo que a referência seja essa, é certamente outra coisa aquilo que hoje se faz e sobretudo diferente a vivência que hoje, em Lisboa ou no Porto, se tem de tangos e milongas.

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Quer isto dizer que, quando se dança hoje em Portugal por exemplo uma pavana ou uma galharda, não se está a dançar tal como nos séculos XVI e XVII, mas sim a interpretar danças que, não obstante terem origens his-tóricas relativamente conhecidas, são realizadas por pessoas diferentes dos habitantes desses séculos, em con-textos diferentes.

Neste caso particular, há ainda que acrescentar que, quanto aos passos e posturas, nenhuma investigação his-tórica séria pode garantir exactamen-te como é que a coisa era executada, por muito que isto doa aos partidários da predominância dos sistemas de movimentos. O mesmo se passa com as assim chamadas danças folclóri-cas.

Nenhuma investigação histórica séria pode dizer com rigor quais os passos e o modo como eram executadas dan-ças como o vira, o malhão, a chula, o fandango (para só referir algumas), no princípio do século XX (para não ir mais atrás). Quanto muito, aquilo que as fontes históricas autorizam, é a descrição dos contextos e respectiva evolução.

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Neste sentido, pode dizer-se que as danças atrás referidas animavam, no amanhecer do século XX, os ca-minhos da romaria e o terreiro perto do santuário onde se reuniam os penitentes, que dançavam depois de cumpridas as promessas. Após a 2ª Grande Guerra, a romaria popular alterar-se-ia, pelo menos na sua forma tradicional. Conforme assinala Pierre Sanchis, a romaria tendeu a cindir-se: “por um lado, a ‘peregrinação’ popular, constituída por actos religiosos e sobre o qual o clero impõe progressi-vamente a sua exclusiva regulamen-tação, por outro, a ‘festa’, um conjunto de espectáculos e de manifestações (entre as quais um ‘baile’) organiza-dos por ocasião da romaria”.1 Com o avançar do século, as formas tradi-cionais de dança seriam tendencial-mente remetidas para espectáculos de ranchos típicos e festivais folcló-ricos. O aparecimento das emissões radiofónicas (na década de 30), e da televisão (nos finais da década de 50), o rápido crescimento de ambos os meios de comunicação, vieram alterar profundamente os espaços e os tempos para dançar. Com efeito, à medida que o século avançou, apa-

1 SANCHIS, Pierre (1�83) Arraial: Festa de um Povo. As Romarias portuguesas. Lisboa: Dom Quixote. Pág. 168.

receram espaços de convivialidade organizados em função da música e da dança e nasceram novas ex-pressões musicais, performativas e plásticas urbanas. Assim, foram fun-dadas colectividades e associações de danças de salão, surgiram grupos de capoeira ou de dança africana, e multiplicaram-se discotecas por todo o país, correspondendo a diferentes clientelas, de natureza etária, étnica e de condição social, que reflectiriam inevitavelmente diferentes comporta-mentos performativos.

Ao longo das transformações sociais enunciadas, as danças tradicionais foram sujeitas, no nosso país, a um processo de institucionalização – que se pode designar por “folclorização”.

Para tanto, houve três contributos ou mecanismos essenciais: (1) a acção propagandística do Estado Novo que levou ao aparecimento dos chamados “ranchos folclóricos”; (2) o programa de preservação do património imate-rial, sobretudo após a “revolução de Abril”; (3) a tipicização e estilização prosseguidas desde a década de ses-senta por efeito da indústria turística.

Estes mecanismos, quando temporal-mente concomitantes, funcionaram por vezes em tensão, mas acabaram sempre por compaginar a institucio-nalização da chamada dança folclóri-ca. Independentemente dos méritos ou deméritos do processo, a institu-cionalização da tradição introduziu dois paradoxos.

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Em primeiro lugar, ao fixar passos e regras operou como que congelando o devir temporal - o que é uma resis-tência ao próprio curso da História; ao registar os contextos, desautorizou a espontaneidade e a improvisação das práticas – o que é incompatível com a plasticidade dos ambientes sociais. A estes pode somar-se um terceiro paradoxo assinalado por Salwa Caste-lo-Branco, nos seguintes termos: “O floclorismo assenta num paradoxo: a essência ruralista dos conteúdo cria-se, institucionaliza-se e reproduz-se a partir dum quadro urbano.”2

Num conhecido texto, José Gil asso-ciava a dança ao “riso dos corpos”.3 Independentemente do alcance filo-sófico e antropológico da expressão, há certamente que preservar os aspectos lúdicos da dança. Há que reservar espaços e momentos de desconstrução de todas as institucio-nalizações. Nas práticas bailatórias e nas comunidades de corpos cons-troem-se novas identidades, que não têm que ser bem comportadas nem estarem em conformidade com para-digmas estabelecidos. Neste sentido,

2 Vozes do Povo. A folclorização em Portugal. Oeiras: Celta. P.7

3 Metamorfoses do Corpo. Lisboa : A Regra do Jogo.

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a dança é a performance da cultura, da cultura que olha sobre o seu pró-prio devir, que aceita e protagoniza as dinâmicas da História.

Uma das questões que se coloca ao festival Andanças – e certamente a festivais similares – tem a ver com isto mesmo: com o modo de lidar com as fixações institucionais, com a folclorização que teve lugar no século

passado. Na verdade, o século XXI, século da globalização exponencial, pode ser em certo sentido o tempo da desfolclorização.

Porém, na verdade, não é apenas hoje que “os tempos são outros”. Os tem-pos sempre foram outros.

E o Andanças, conforme a expressão o indica, é a dança que não pára, que não se detém em fórmulas nem se fixa neste ou naquele modelo. A dança que pernite também a descoberta do outro, situe-se este no plano geográ-fico ou no plano histórico. A dança contaminada, salutarmente contami-nada. Enfim, uma celebração da “ba-bel” cultural que é este nosso mundo globalizado.

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Ensinar dança(s)Mercedes Prieto Martinez

“Dançar é muito mais que dançar, é o li-bertar de amarras físicas, psicológicas, sociais, individuais, pessoais. A dança é um dos mais belos instrumentos de realização humana, é uma via de comunicação, linguagem universal, é a evocação de sentimento, de estados de espírito, da mente, é a fusão do corpo e da alma, emitida através do movimento do corpo que graciosamente flui no espaço e no tempo, invocando o poder da essência humana - o poder de viver em liberdade e com esta liberdade, controlada ou descontroladamente, sentir-se dono do seu corpo e invocar o seu poder e beleza, livre de precon-ceitos ou medos. Em suma, mais do que uma performance é algo que nos garante a sanidade, física e mental, há milhares de anos, e por todo o mundo” (Sessão 22 Programa Peso – Programa de Controlo da Obesidade, Faculdade de Motricidade Humana).

Nas últimas edições do Andanças, o número de participantes nas aulas de Movimento incluídas na programação tem vindo a aumentar de tal forma que já se torna difícil ter espaço nos estrados para se movimentarem à vontade! Isto, mesmo considerando que no caso de algumas danças quanto menos espaço, melhor...

Este é o resultado da especificidade do público que vem ao Andanças para participar nas actividades propostas, especialmente nas oficinas de dança: muitas destas pessoas não têm por há-bito praticar dança com regularidade, e algumas delas tomaram mesmo contacto com as diferentes técnicas corporais pela primeira vez no Andanças, decidindo depois inscrever–se em escolas e acade-mias ou procurando a dança com mais regularidade nos festivais e nos bailes que começam a ser comuns um pouco por todo o lado.

Muitos são os que afirmam ter muda-do depois da experiência “Andanças”.A que se deve esta transformação e o entusiasmo das pessoas que vão ao festival e que depois procuram as aulas de dança? Será que o método do ensino da dança aí praticado pode explicar este efeito? Será que o estilo de ensino praticado pelos monitores do Andanças se altera quando dão aulas sob toldos às risquinhas?...

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As danças no Andanças

A partir das �h00 da manhã as pes-soas começam a ocupar os oito es-trados de madeira acabados de varrer pela equipa do Nelito. Estes “par-quets” estão cobertos pelos toldos verdes e brancos do Sr. Humberto, de modo a poupar-nos ao sol e à chuva dos primeiros dias de Agosto.

O programa do dia oferece a possibili-dade de praticar diferentes formas de dança e outras técnicas corporais de aquecimento, alongamento e relaxamen-to raramente encontrados noutros even-tos. Simultaneamente acontecem no mínimo quatro oficinas: os participantes activos nesse momento devem escolher uma, sendo que se a opção não lhes agradar podem mudar-se de um estrado para o outro, a qualquer altura.

Nestas salas de aula tão originais não existem espelhos, nem linóleo, nem barra, e a temperatura ambiente nem sempre é a mais adequada. A falta de espaço, as interferências de som com os outros estrados e a dificuldade em ver e ouvir o professor, tão pouco ajudam o processo de aprendizagem, mas mesmo assim as pessoas vão aprendendo alguma coisa e estão bem dispostas, transpirando alegria mesclada de suor por todos os poros...

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Talvez o convívio e a predisposição para a diversão provoque uma in-findável panóplia de sensações e muitos momentos de pura inocência dançante (testemunho de Rodrigo) que desculpam os problemas atrás mencionados, assim como os atrasos e mudanças de Programação em cima da hora.

Perante estas condições pouco ade-quadas, como podem professores e monitores convidados ter sucesso? Dado que muitos são profissionais da Dança, que mudanças devem operar na transmissão da informação e no planeamento das aulas para passar de uma situação de aulas regulares com outros recursos materiais a au-las pontuais e com alunos que não conhecem e cada dia podem variar?

Ensinar a dançar

Eu dedico todo o meu tempo (profissio-nal e horas vagas!) a leccionar Dança, especialmente danças tradicionais internacionais. Esta experiência tem sido muito gratificante para mim, espe-cialmente porque sinto que estou a tra-balhar pelo bem estar físico e psíquico das pessoas. As modificações compor-tamentais que se observam nos alunos que passo a passo vão melhorando as suas habilidades motoras, mas espe-cialmente vão ficando mais sociáveis e sensíveis, tem sido uma experiência muito positiva. Mas tenho perfeita consciência de que a prática educativa é complexa e cheia de momentos iné-ditos, obrigando o professor a transfor-mar-se num artista ou num técnico que tem de desenvolver a sua experiência e criatividade para enfrentar as situações únicas, ambíguas, incertas e às vezes conflituosas, que configuram a realida-de de uma aula.

O ensino da Dança, como o de outras disciplinas, depende de muitas variá-veis, algumas das quais são a Forma da dança a leccionar, o Contexto no que está inserida a formação, os Recursos Materiais que estão disponíveis, a Po-pulação Alvo a quem é dirigida, o Tempo que se disponibiliza para a aula, e os Objectivos a atingir.

Quando o ensino é realizado de forma regular e em contextos onde o objec-tivo final é a aprendizagem de uma técnica específica de dança, o plane-amento da formação será diferente do planeamento de uma aula pontual cujo objectivo será sensibilizar, di-vertir e fazer transpirar um grupo de pessoas.

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O processo do ensino da Dança tem algumas singularidades em relação a disciplinas do foro cognitivo, já que o objectivo principal é o corpo em movimento. Assim, o professor deverá proporcionar exercícios e experiên-cias num ambiente descontraído que permitam ao aluno descobrir as suas possibilidades de movimento, de for-ma a também a melhorar sua consci-ência corporal e a auto-imagem. Toda a metodologia que envolve uma acção sobre o corpo deve chamar a atenção para as suas repercussões não só no corpo físico, mas também na totalida-de do individuo, já que a vida corporal e a vida psíquica são inseparáveis. São especialmente favorecidas pela prática da Dança as capacidades es-paciais (orientação, situação, laterali-dade, etc) e temporais (capacidades rítmicas) do indivíduo, assim como a sua coordenação geral e sociabilidade.

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Um outro aspecto muito importante na aprendizagem é a necessidade de repetição para se conseguir atingir a modificação de hábitos adquiridos, com o objectivo de executar de forma precisa e exacta o movimento preten-dido. Com efeito, o propósito final de uma aula de dança é a interpretação dos movimentos aprendidos com uma dinâmica equilibrada e económica, o que significa que os movimentos devem ser precisos e eficazes no sen-tido do mínimo esforço. Deve existir uma unidade na coordenação dos movimentos das diferentes partes do corpo para que se mobilizem com na-turalidade e espontaneidade de forma a equilibrar a força e a sensibilidade.

Quando realizamos aulas de dança em contextos diferentes dos de uma escola ou academia, como é o caso das animações pontuais no Andan-ças, cujo objectivo principal é sensibi-lizar as pessoas para valores como a multiculturalidade, a cultura participa-tiva, a tolerância, o respeito pelo meio ambiente e a cooperação entre todos, a Dança surge essencialmente como um meio e não como um fim. Neste contexto as formas de dança social, nomeadamente as danças tradicio-nais, populares e criativas, são pri-vilegiadas, por serem por excelência lúdicas e educativas.

O papel de um professor de dança no Andanças é de certo modo idêntico ao de um animador que deve actuar como um amigo e colega orientador de exercícios simples que criem di-nâmicas de grupo. Mais uma vez, são bons exemplos disto muitas das dan-ças de roda tradicionais fáceis e ale-gres de ritmo binário. As informações devem ser precisas e curtas; não há tempo para grandes explicações teó-ricas, pelo que se devem fazer breves contextualizações e demonstrações apenas para que os alunos percebam melhor o movimento. Os ritmos e os passos base a utilizar devem ser repetidos até os alunos os interiori-zarem ou ao menos se familiarizarem com eles para os poder utilizar nas diferentes coreografias e assim senti-rem que estão a DANÇAR! Por fim, tal como os momentos de aquecimento, também os de retorno à calma fazem habitualmente parte de uma aula no Andanças.

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A promoção e divulgação das danças tradicionais portuguesas é central ao Andanças, mas a opção por realizar um “Festival Internacional de Danças Populares” não deixa dúvidas: pre-tende-se estimular e sensibilizar as pessoas para que conheçam músicas e danças de outras culturas.

Sons oriundos da Estónia ou do Brasil, ritmos compostos, mazurcas, figuras de scottisch, abraço ao par, beijinho ao contrapar, tocar, cantar, ouvir, deixar-se levar, cumprimentar, gritar até ficar sem voz, andar com os pés descalços na terra!

A maioria dos professores opta por realizar uma aula descontraída com uma grande dose de humor onde os passos e movimentos a realizar são de fácil aprendizagem e podem ser praticados por pessoas que tenham dois pés esquerdos e idades compre-endidas entre os 0 aos 100.

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Não é tão pouco de descurar a impor-tância destas actividades serem rea-lizadas em grupo, que o professor/a conduz nas diversas figuras, passos e ritmos a seguir. Mas o mais importan-te é mesmo conseguir que o aprendiz ouça, descubra e sinta a música, o movimento e a relação entre sons e passos, numa viagem imaginária por diferentes países, culturas e épocas.

No fundo, no fundo, o Andanças pre-tende que as pessoas atinjam o ponto em que se ultrapassam estilos e na-cionalidades e se sente o puro prazer e felicidade de dançar.

Depois destes 10 anos “das Andan-ças” podemos estar orgulhosos de termos conseguido pôr muita gente a mexer, muita gente que deixou de ter preconceitos em relação à Dança (ou aos respectivos corpos/graciosida-de?). Um bem hajam especial a todos os professores que dão o seu trabalho voluntariamente para que cada ano se realize o sonho de muitas pessoas.

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O baile de bola!Luís Fernandes /d’Orfeu Associação Cultural

Nunca fui a Carvalhais senão durante o Andanças. Nunca noutro momento entrei naquele recinto. Mas não será difícil imaginar o que ali se passa no resto do ano. Estou a ver os jogadores do Carvalhais Futebol Clube festejar os golos com estranhas coreografias de “An dro” com os mindinhos entre-laçados bem treinados desde a pré-época, em Agosto.

Tal só é estranho para os adeptos da equipa visitante que assistem, estúpi-dos, ao espectáculo a que os artistas da bola se prestam nesses momentos de alegria… Já o público da casa não só aplaude, como acaba por largar os guarda-chuvas (o futebol é um des-porto de Inverno) e engrossar a dança que se cria, espontânea, ao longo do campo. Isto, até que o árbitro apite para a bola ao centro.

E tudo recomeça. A bola é lançada em corrida para o extremo-direito que, ali pela zona da tenda 1, dá um nó-cego de mazurka ao adversário, o qual se torna par involuntário de tal bailar. Dali, cruza para a pequena-área, onde a tenda 6 sempre abarrota de gente a fazer muralha para a baliza. O lance é pelo ar, para aproveitar uma cabeçada vitoriosa durante a “7 Saltos”. A baliza está à mercê, mas desta vez a bola perde-se pela linha de fundo depois de o fiscal-de-linha assinalar indevi-damente um feed-back.

O adversário retoma o baile pela outra lateral. A propósito, é usual a descida dos extremos quando os adversários sobem pelo seu corredor, cumprindo os passos de uma “chapelloise” bem ensaiada. As incidências do baile são agora disputadas junto do quarteto defensivo habitualmente formado pelas tendas 2 a 5, onde predomina a marcação homem-a-homem (na pré-época é treinada com variantes). A táctica de circulação está bastante bem treinada nesta zona do terreno, onde perduram por toda a época des-portiva os imaginários sulcos feitos por andançantes de tenda em tenda, facto que acaba por guiar as jogadas de mais fino recorte e, sem que an-tes alguém tivesse pensado nisso, acabam por conduzir o Carvalhais às suas maiores vitórias.

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Acho que está na altura de os jornais desportivos começarem a fazer a cobertura do Andanças.

Lembro-me quando, há dois ou três anos, o festival foi antecipado para o início de Agosto (realizava-se sempre na última semana desse mès) por causa, pasme-se, de o fazer coinci-dir com os outros grandes festivais de Verão. Coincidir para preservar o ambiente – diziam -, evitando ser invadido por público em excesso. Isto seria simplesmente impensável na cabeça de quem organize qualquer outro festival.

O Andanças é suficientemente único para ser esganado num rótulo. Aliás, não tente vender-se o Andanças nas revistas da especialidade. Está visto que é muito mais que um festival. O Andanças não joga em campeonatos e não disputa classificações (em-bora ganhe sempre!). É um festival que chega a todos na sua exacta medida, sendo a oferta de tal forma imensa que é impossível duas pes-soas viverem o mesmo Andanças. O meu Andanças pessoal de 2005, por exemplo, magnificamente bem vivido, foi confrontado com igual número de concordâncias e discordâncias da boca dos meus mais próximos.

Criam-se espontaneamente momen-tos de folguedo nos lugares mais calmos, da mesma forma que os ter-reiros mais movimentados recebem, fora de horas, a mais pura das calmas.

E depois, a noite em que tocamos... Transportamos para cima do palco a proximidade criada em todas as outras horas com o público. Sem espanto, somos nós público daquele turbilhão de energia.

Praticamente nasceu em função do Andanças um grato trabalho de cria-ção da d’Orfeu: Toques do Caramulo. O crescimento e estofo do espectáculo, é no retomar dos palcos do Andanças, ano após ano, que reencontra as suas sinergias e se lança em novo ciclo criativo.

No percurso que trouxe Toques do Caramulo aos dias de hoje, desenvol-veu-se um repertório vasto de recria-ções e cada vez mais ousados arran-jos a partir do cancioneiro serrano, na ânsia de difundir um património musical retratado apenas nos conven-cionais formatos folclóricos. Danças e Toques do Caramulo, assim se chamava, surgiu em 2000 da parceria da d’Orfeu com um grupo folclórico – Associação Etnográfica Os Serranos - e incidia no repertório no seu estado puro, associado às próprias danças, com o qual chegámos a tocar para uma tenda vazia à mesma hora que os Rosa Paeda faziam abarrotar a tenda 6. Ainda não era o tempo das tendas cheias para nos dançar, como hoje acontece.

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Curiosamente, a característica de sermos dançados continua a reser-var-se para o Andanças ou, quando muito, a outras iniciativas com carim-bo PédeXumbo. Mas a nova vocação de palco de Toques do Caramulo levou em 2005 à sua, até aí, mais carregada agenda, com dezenas de concertos por todo o país, tendo-se comprovado a capacidade de chegar a alguns im-portantes palcos trad e world.

Foi no Andanças que este colectivo cresceu e ali viu marcadas as vira-gens do seu percurso, da mesma forma que assim terá seguramente acontecido com tantos outros. Falo de gente como Dazkarieh, Uxu Kalhus, Monte Lunai, Attambur, etc e tal.

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O que mais interessa perceber é que os grupos e os músicos continuam a fazer questão de ir ao Andanças, seja a que preço for. E o preço de ir ao Andanças é, como se sabe, com condições a léguas dos riders técni-cos habituais, arriscar ter ali um dos melhores concertos do ano.

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A PédeXumbo é parceira por vocação, não consegue livrar-se desse impulso de partilha. Não sabemos ainda hoje como foi aquilo de, na primeira vez que alguns de nós subimos ao Andan-ças, ainda na Gralheira, darmo-nos conta de descontos para sócios da d’Orfeu (como constava no livrinho-programa dessa edição), sem que alguém da PédeXumbo conhecesse, à data, uma alma de Águeda que fosse.

Cá está o motivo porque ninguém quer falhar a pré-época. Todos querem um lugar na equipa para o resto da temporada. E nisso de contar com todos, a PédeXumbo sabe-a toda.

Como não podíamos ter ficado, a par-tir daí, prisioneiros de muitas e boas andanças?

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De fora e por dentro - Eu, tu e o outro, aqui reunidosGonçalo Oliveira

Andanças de um principiante, 2001 (Capital Portuguesa da Utopia)

Carvalhais, 20 a 26 de Agosto

É estranho, muito estranho. O festival acabou ontem; hoje, uma nuvem de tendas levanta-se de sudoeste (não confundir com...) e o cheiro a terra faz-me perceber que somente mais alguns dias e a mãe natureza voltará a reinar por estas paragens ou, diria, andanças.

O tempo passou pelos pés num ápice. Ainda ontem era segunda, hoje tam-bém o é. É estranho, muito estranho. Amanhã quando acordar não irei ao Tai Chi, nem comprar o leite para o pequeno almoço.

Não irei cruzar-me alegremente com pessoas desconhecidas, que me baptizam com um bom dia que é puro exercício de relaxamento e felicida-de. Pois é, deixou de ser estranho, começo a sentir tristeza e nostalgia. Não irei tomar banho ao lago resplan-decente, não irei jantar ao som dos Dobranotch, não irei mostrar a minha pulseira laranja, conviva de tão belas noites, a ninguém, não irei viver da mesma forma. Nunca mais.

As roupas de, e não do, festival, os cortes (??) de cabelo, os piercings, as tatuagens, as pinturas faciais, a linguagem desbragada de formalis-mos, a amálgama de sons, culturas, valores e aventuras...

O martelar insistente dos chuveiros, albergues, casas de banho, mini-mercado improvisado, que agora são desprovidos da sua energia vital (a alegria contagiante dos dias que ago-ra não voltam mais) marca-me o com-passo da escrita de uma forma que me lembra as galés. Não sou escravo da escrita, mas dos bons momentos. É sempre assim, é estranho.

A Ana, a Sara, a Inês, a Patrícia, o Paulo, ainda dormem; o Ricardo já não mora aqui. A Joana está do outro lado do pinhal, deve estar a dormir também. O Nuno e o Fernando devem ter voltado à sua vida normal. Já não são guias pedestres, mas sim traba-lhador da pedra, que por aqui abunda em proporções dignas de assinalar, e advogado, respectivamente. É estra-nhíssimo.

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A simpática aldeia de Carvalhais vai voltar a ter sossego e a ficar esque-cida, pelo menos por mais um ano. Depois, tal e qual os saltimbancos, genuínos, que aqui assomaram vin-dos de toda a Europa, tudo voltará a ter sentido (a caneta que agora me emprestaram, visto que a minha aca-bou, é a prova viva de que aqui tudo é diferente). É estranhérrimo – penso que isto se possa dizer.

Não sei desvendar se as pessoas, todas – dos 8 aos 80, durante esta semana usam uma máscara ou se é realmente a sua verdadeira forma de ser que brota para o mundo numa explosão de honestidade. De facto, sendo um festival internacional de danças e saberes tradicionais, talvez seja um retorno às origens. Talvez. Somos felizes e isso deveria ser tudo, sem preconceitos, sem gravatas.

Agora, só isso me parece estranho. É hora de voltar à loucura do dia-a-dia, aos horários, às notícias, às refeições abundantes e a horas certas, aos electrodomésticos, aos transportes, ao curso, ao emprego. É estranho os condicionalismos que a nossa sociedade nos incute para que não sejamos estranhos à mesma.

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Bem, vou devolver a caneta, arrumar a trouxa e rumar ao tempo certo.

P.S. Será que posso continuar a andar com os pés descalços na terra ?!?

Andanças de um participante, 2005 (Capital Portuguesa da Babilónia)

Carvalhais, 1 a 7 de Agosto e até um pouco antes e depois

Bom dia! Bom dia! Ah, bom dia!

Eu trabalho (participo?!? organi-zo?!?! sou voluntário?!?) sobretudo nas manhãs. O que quer dizer que trabalho o dia todo e mais o início da noite, apenas não faço o resto da noite. Encontro os colegas, entre-tanto amigos, ao pequeno-almoço. Vêm em cima da pick-up - a mesma que recolhe o lixo e distribui instru-mentos pelos palcos no campo da bola - a tocar, a dançar e a pular. Eles fazem também o dito “resto da noite”. Contam-me as peripécias da noite anterior, de como às 6h00 da manhã houve uma jogatana de futebol entre músicos, voluntários e público (não sei se a distinção será assim tão fácil...) que foi atentamente relatado e difundido pelos seguranças nos inter-comunicadores.

Atravesso o Carvalhal: um dos toldos novos que comprámos caiu durante a noite. O barato sai caro. Até chegar ao campo de futebol sou interpelado por 30 pessoas e outras tantas questões.

Meto a mão ao bolso dos papéis que trago do lado esquerdo e no meio dos contactos, horários, mapas, convites, tabelas, senhas de refeição e danças, lá vou resolvendo/reencaminhando as questões. No outro bolso carrego (a expressão é mesmo esta) três telemóveis e um walkie-talkie. Pareço uma central telefónica em movimen-to. E é de movimento que se trata, sempre de um lado para o outro, a “apagar fogos”, não é à toa que per-tenço à equipa dos PTO’s (Paus para Toda a Obra).

É incrível a dimensão que este Festival tomou, mas mais incrível é perceber, a partir de dentro, do que ele é feito. De pessoas, sobretudo de pessoas. Idealistas, artesãos, vende-dores ambulantes, vegans, rastas, famílias, freaks, varredores do lixo, carpinteiros, músicos, informáticos, engenheiros, desempregados, crian-ças e adultos, locais, estrangeiros, velhos, nudistas, enfim é feito de toda uma amálgama de “gavetas” que ali não interessam para nada. Nada. Pode ajudar é certo, se pertencerem a uma das mais de 35 funções de voluntaria-do que, individualmente em � horas diárias de trabalho (alguns mais, outros um pouco menos), fazem com que este Festival seja possível.

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São �00 pessoas que, quais formigui-nhas, fazem tudo isto funcionar, com muito improviso à mistura, alterações e golpes de rins. Aprender fazendo, é um lema a ter em conta.

Mas se este Encontro (prefiro esta designação a festival), é feito de pes-soas, é também feito de histórias e de personagens, com nomes, nem sempre na boca dos contadores. E muitas são já personagens eternas do festival, como o Douglas à procura de pregos para fazer surgir mais uma mesa, a DªAna a desesperar com falta de comida na co-zinha, o Álvaro a dar conta das torneiras que desapareceram novamente, o João Pires a voar numa Vespa para ir ajudar no refeitório que precisa de fechar e ainda tem uma fila enorme, do Michael e da sua carrinha com o GB bem vincado a amare-lo que volta ano após ano, do senhor dos cavalos da Bretanha que deixei de ver, dos Eco-Primos (família e amigos que decidiram dar um empurrão, por livre iniciativa, à sustentabilidade do Andan-ças), da Diana a tentar convencer o dono de um cão sem trela o porquê dos cães não poderem entrar, do Dr. Adriano e dos convites, da Mercedes a mudar a grelha de programação 5 minutos antes do que estava programado porque o monitor ainda está a dormir na tenda nos braços de uma donzela, da “Tânia das Farturas” que de dia ajuda o pai e à noite é voluntá-

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ria na venda de senhas dos bares, do Mi-guel Bento que agora é Pramod, do padre e da missa no acampamento, da Celina que faz parte simultaneamente de cinco grupos que estão aqui (e como ela há ou-tros tantos), dos “fura-esquemas” que falsificam as pulseiras e tentam saltar o muro, da mãe que telefona para o secre-tariado para ver se encontramos a filha no acampamento, dos motoristas da Câmara que arranjaram um sítio só para eles almoçarem sem ter que passar pela fila do refeitório, da igreja que é aberta com uma chave que está à guarda de uma das senhoras cozinheiras, do Dinis e do Humberto que antigamente traba-lhavam no circo e que agora alugam as características tendas das risquinhas verdes e brancas que toda a gente pensa serem nossas, do Fernando a exasperar com o quadro eléctrico que vai disparar a qualquer momento porque alguns feirantes fizeram puxadas fora do seu controlo, do Sr. Gomes que encontro mui-tas vezes na noite com o seu foco a fazer a ronda à escola e que me conta com um sorriso estampado no rosto como foram as primeiras andanças, de como “demos para a mão do pessoal um par de enxa-das e pás e que se desenrascassem” e para seu espanto o pessoal desenras-cou-se mesmo e não só abriu espaço no terreno, como ainda construiu palcos e improvisou chuveiros e a coisa nunca mais parou...

E poderia continuar, pois é infindável a lista de pessoas que dão ou já de-ram a sua preciosa ajuda a esta Babi-lónia de cheiros, amizades, danças e saudades e, claro, como não poderia deixar de ser, da aguardente com mel e da broa de milho.

O festival terminou (estava a ver que nunca mais era 2ªfeira!). Depois de no segundo dia ter dito que nunca mais voltava a fazer isto, agora tenho pena que tenha acabado. Sei que estarei cá novamente para o ano. Os amigos trouxeram-me ao festival pela primei-ra vez, e no festival fiz muitos mais amigos, que reencontro cada ano, alguns só aqui.

Agora vou finalmente conseguir tomar uma refeição descansado, posso até desligar o telemóvel, vou tomar banho à lagoa e tirar algum deste pó mais entranhado que não sai com banhos rápidos depois de 17 dias aqui, mas no fundo, no fundo, não consigo pas-sar sem isto. É especial, e ninguém sabe muito bem explicar porquê.Até já.

P.S. Está um rapaz a escrever em cima da mesa do refeitório que está na rua. Imagino se irá pedir-me uma caneta emprestada e... bem, é melhor esquecer.

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75Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do UniversoPor isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer,Porque eu sou do tamanho do que vejoE não do tamanho da minha altura…

Nas cidades a vida é mais pequenaQue aqui na minha casa no cimo deste outeiro.Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos po-dem dar,

E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.

Alberto Caeiro, O Guardador de Reba-nhos

Comunidade tradicional e aldeia globalO impacto do Andanças em Carvalhais e região envolventeAdriano Azevedo*

Longe vão os tempos em que as aldeias viviam encerradas em si mesmas, fechadas nas suas tradi-ções ancestrais e completamente presas à geografia e à ruralidade das gentes. Aldeia era sinónimo de atra-so estrutural, educação deficitária, vistas curtas, clausura. Hoje em dia a realidade é outra. O crescimento des-mesurado, desumano e insustentável das cidades fez com que a atenção se voltasse para pequenos lugares rurais mas aprazíveis, onde ainda é possível viver segundo as leis da natureza e com qualidade. Muitas forças estão por detrás das mudanças que se têm operado em diversas aldeias portuguesas. Forças políticas, forças da sociedade civil esclarecida, forças económicas e forças culturais.

Carvalhais é uma das freguesias do concelho de S. Pedro do Sul que mais tem crescido e evoluído nos últimos anos. Este crescimento não é fruto do acaso e tem contribuído para fixar a população aos lugares de origem, o que contraria a tendência para a desertificação que se vive em muitas aldeias do país. E a evolução e desen-volvimento de Carvalhais deve-se, sem sombra de dúvida, a múltiplos factores de várias ordens, onde assu-me particular destaque o Andanças, Festival Internacional de Danças Populares.

Pelo simples facto de acontecer em Carvalhais, há já vários anos, o An-danças contribui, sobremaneira, para imprimir à Freguesia e ao Concelho uma nova dinâmica.

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Através da dança, da música, das artes plásticas e dos percursos ser-ranos, este Festival promove e pos-sibilita a animação intergeracional e o turismo sustentável, abrindo novos horizontes e novas formas de viver e sentir a cultura, as tradições popula-res e o património natural.

De ano para ano o Andanças tem cres-cido em número de “andantes”, em qualidade, e em cobertura mediática. E o concelho de S. Pedro do Sul, no geral, e a freguesia de Carvalhais, em particular, passaram a ser um destino frequente para milhares de pessoas de todo o mundo, uma espécie de retiro cultural, ecológico e espiritual.

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Muitos são aqueles que, fora do período do Festival, regressam com familiares e amigos para passar fins-de-semana ou períodos mais longos de férias.

Outro aspecto de relevo a ter em conta é a mobilização de centenas de voluntários - da freguesia de Car-valhais, do concelho, do distrito e de vários pontos do país - em torno de um projecto – de um projecto único. O trabalho comunitário ganha, na altura do Andanças, uma materialização efectiva. Todos são solidários e tra-balham em conjunto, com confiança e espírito de sacrifício, sem olhar a retribuições monetárias ou protago-nismos individuais. Assegurar a rea-lização do festival é o único desígnio dos seus colaboradores e apoiantes.

A união de esforços, a mobilização de meios e a construção de parcerias com actores do sector público e pri-vado tem permitido um crescimento paralelo do Festival, da Freguesia e do Concelho. Ao longo dos anos o An-danças transformou-se num projecto cultural, social, económico, patrimo-nial e ambiental.

Cultural, porque possibilita programas alternativos de grande qualidade em torno de diversificadas manifestações artísticas e culturais. Social, porque tem ajudado a materializar um Centro Comunitário. Económico, dado que contribui para o desenvolvimento de pequenos negócios ligados à criação de empresas turísticas e à comercia-lização de produtos tradicionais, já para não falar no aumento do volume de negócios da restauração e hotela-ria locais. Patrimonial, pois permitiu recuperar muito do património exis-tente como os moinhos naturais da Ribeira de Contença, a transformação do Parque Florestal do Pisão em Bio-parque, a criação do Parque de Cam-pismo e futuramente um parque te-mático e um centro de interpretação ambiental. Ambiental, na medida em que fomenta práticas que contribuem para criar bom ambiente.

Em 2005 o Andanças pela Sustentabilidade ajudou a incutir e a pôr em prática princí-pios fundamentais ligados à separação dos resíduos e à reciclagem, à poupança de água, à eficiência energética e às energias alternativas.

Embora a semana do festival obrigue a um trabalho intenso e desgastante, o resulta-do final vale cada vez mais a pena. E isso vê-se nos rostos alegres e eufóricos dos andantes que regressam ano após ano, e sente-se através do ritmo contagiante das músicas e das danças que se querem populares, tradicionais e globais.

Graças ao Andanças, Carvalhais transfor-mou-se. Apesar de continuar fiel às suas tradições é, hoje em dia, uma aldeia global, conhecida além fronteiras e on-line no ciberespaço. Além do mais, tem tido flexibi-lidade para incorporar o novo e o diferente, aprender, crescer e desenvolver-se. De fac-to, a freguesia está no caminho do desen-volvimento sustentável, que mais não é do que a articulação equilibrada entre quatro vectores: o cultural, o social, o económico e o ambiental. Por vezes tal equilíbrio é difícil de conseguir, mas a união de esforços, par-cerias exemplares, o trabalho em conjunto e a vontade de fazer mais e melhor acabam por conduzir “quem se mete em Andanças” pelo caminho certo.

*vereador da Cultura da Câmara Municipal de São Pedro do Sul

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7�Este capítulo sobre o Andanças e o Ambiente fala de uma inesperada história de paixão e amor. O amor pela Vida. Uma recolha de dez peque-nas crónicas indiscretas de alguns convidados da boda interminável do louco e feliz casamento cigano que é o Andanças. O casamento de todos os casamentos: o casamento das origens com os fins; dos passados com os futuros; o casamento de todos os públicos; de todos os festivais; o ca-samento de todas as danças; de todas as músicas; o casamento de todas as culturas e solidariedades – do profis-sional com o voluntário, do rural com o urbano, do jovem com o idoso, do pagão com o religioso; do vereador com a cozinheira da cantina.

Um, dois, três. Um, dois...Andanças por uma ecologia sensível.Rui Leal e Graça Gonçalves

E, por fim, a procura de um casamen-to feliz no meio do difícil e eterno triângulo amoroso das pessoas com a vida e com a morte (ou, se preferirem, de modo mais prosaico, a procura de Sustentabilidade – o “triângulo das Bermudas” – do social, do económico e do ecológico).

É o pousar de um olhar voyer, com-posto que nem o de uma mosca, so-bre o festim de tudo e de todos, com o corpo, com a natureza e com o espíri-to – de cada um, dos outros e do lugar – através da magia da música. Alguns dez olhares pessoais de “ambientalis-tas” de coração e de profissão, sobre a Festa onde, por paixão, comemos, trabalhamos, dançamos e dormimos, uns com os outros ao colo da serra, embalados à distância pelos sonhos de todas as gaitas e percussões.

Onde, no enorme salão de dança no meio da natureza, pelo nosso pé e pela mão dos outros, sob o olhar gra-ve do pai Sol e os sorrisos cúmplices das estrelas, levados pela música e pela alegria, todos parecemos romper alguma barreira interior, libertar-nos um pouco mais e aprender a sentir e a fazer algo de bom à face da Terra, mãe.

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«En tiempos pasados, tantas de las especies que nos anteceden encon-traron su fin en el consumo desme-surado de sus recursos vitales o en una insoportable acumulación de sus propios residuos. Sin embargo, este mágico gran Poço Azul que todos ha-bitamos está vivo, y su vida va adop-tando las formas más convenientes en devenir. Así, lo que unos no pu-dieron soportar, lo que para aquéllos fue insoportable, se convirtió en ventaja para otros; así, el oxígeno que desheredó a los organismos anaero-bios, fluye hoy por nuestras arterias, permitiéndonos participar de la gran dança de la vida en evolución.

Cada célula alberga en su ánima la conciencia de este maravilloso mecanismo que encuentra en la humanidad el más perfecto canal de expresión, aquél que por fin le permi-te evolucionar a sí mismo, gozar por fin de reciprocidad consigo mismo. Los seres humanos somos a la vida toda lo que el autoconocimiento y la capacidad de autorrealización son al desarrollo de una persona. (...)»Gonzalo de Azcoitia

PROCURA-SE

5 DANZAS

Lacerta shreiberiPOR SE FAZER PASSAR ILEGALMENTE POR CROCODILO

A PRETO E BRANCO OU MAIS CORES

Foi visto a última vez no Pisão sem pulseira!

procure, fotografe, e peça o prémio ao Xerife no secretariado

RECOMPENSA

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«Descobri o Andanças em 2002, já tinha ouvido falar de um festival de dança... em São Pedro do Sul... E a curiosidade era grande... Quando fui, senti-me bem, senti que era aquilo que estava à procura para férias, era diferente, era descontraído, tinha muita música e dança, muita de for-ma espontânea. Adorei tudo, de tal forma que volto lá desde então. Adoro também a diversidade e o espírito que se cria, para mim as pessoas são mais amigas, mais simpáticas duran-te aquela semana... Parece até que, por um breve intervalo, estão mais em paz com a vida.

Acho que é um feito... também me pa-rece que é algo que se gosta ou não, com que nos identificamos ou não... para mim, que dou bastante atenção a tudo o que se prende com a organi-zação, acho que o Andanças se situa no equilíbrio, entre a organização e a falta dela, algo complicado... mas que a meu ver funciona, dando-lhe uma certa magia. (...)»Graça Gonçalves

«O andanças veio até mim através da minha “metade mais cara”, que insistentemente me falava deste festival, sem eu perceber porquê. Foi um exemplo de: primeiro-estranha-se-e-depois-entranha-se, e de que maneira, pois dei por mim envolvido como voluntário no Eco-Andanças, com grande gosto e dedicação! Este processo trouxe-me uma série de experiências que, a serem sentidas pelos mais diversos intervenientes da sociedade, concerteza resultaria num mundo mais justo e melhor.

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Refiro-me a dançar, promovendo assim o contacto entre as pessoas, e a libertação de energia de maneira racional tendo a sensação que se contribui para algo útil... (mesmo sen-do um verdadeiro pé-de-xumbo); falo do sentido de comunidade que se faz sentir no seio deste acontecimento em que toda a gente comunica entre si sem lugar para complexos, xenofo-bias ou outros agentes limitadores do desenvolvimento humano; e de parti-cipar como voluntário na organização deste evento: trabalhar para construir algo sem ter nada em troca a não ser o puro prazer vai contra todos os prin-cípios e valores que o nosso “sistema de consumo” nos incutiu. E é bem necessário trazer esta humanização às nossas actividades, o que cada vez parece ser mais difícil.»Luís Marcelino Silva

«Ancestralmente, as danças de grupo desencadeavam importantes dinâmicas de socialização e comuni-cação, traduzindo heranças culturais e artísticas dos povos. Progressiva-mente, acentuada pelo fenómeno da globalização, assistimos à redução do número de parceiros de dança até ao individualismo puro, imagem de marca das sociedades contemporâ-neas, em que se celebra a liberdade do indivíduo, mas que nos torna, invariavelmente, sós. Reverter estas tendências e recuperar as harmonias de conjunto tem sido um dos percur-sos da PédeXumbo, largamente di-fundido pelo Andanças. Multidões de desconhecidos que partilham ritmos e energias de forma voluntária e har-moniosa são símbolos e antevisões das sociedades sustentáveis, de paz e de equilíbrio, que tanto ambicio-namos. Dançamos o que nos vai na alma. Movemo-nos ao ritmo da terra e do coração.»Susana Ferreira

«Para mim, o momento mais impor-tante que tive no Andanças relaciona-do com o ambiente foi o nascimento do Eco-Andanças… faz este ano 2 anos que comíamos na cantina (já as paredes de cimento da cantina actu-al) e conversávamos animadamente sobre este fenómeno que é o Andan-ças. Eu e a minha cara-metade tínha-mos levado uma série de pessoas que iam pela primeira vez. Algumas dessas pessoas destacaram-se por, de tão maravilhados que estavam, quererem fazer alguma coisa pelo festival. Conversávamos sobre isso.

No ano anterior tinha havido sepa-ração de lixo e algumas iniciativas de carácter ambiental, mas naquele ano esse aspecto parecia muito esquecido e, como ainda por cima a maior parte das pessoas que conver-savam tinham formação ambiental, discutíamos isso. A ideia surgiu muito espontaneamente e até de uma for-ma ingénua “e se propuséssemos à organização um Eco-Andanças?”… com alegria, a ideia começou a ga-nhar forma e pensámos numa série de actividades que poderiam ser pos-tas em prática. Passados uns meses contactámos a organização que nos abriu as portas todas (e as janelas) para a coisa crescer, e foi crescendo no ano passado.

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E todos atarefados, vimos a nossa conversa tornar-se independente das nossas cabeças. Já não éramos nós, eram crianças, jovens e adultos que separavam por si o lixo, que pediam informação sobre a compostagem, que não acreditavam nos brinquedos solares, que enchiam o Tampinhas e que olhavam admirados os duches aquecidos pelo Sol.

E era cheia de emoção que estre-mecia quando ia incógnita pelas várias zonas do festival e ouvia: “acho muito bem, finalmente este Festival também é ecológico”.»Rita Sá

«(...) O lado Eco é mais uma coin-cidência de tantas que acontecem no Andanças. O espírito Eco sempre esteve na equipa que organiza o Andanças, o que surgiu foi um grupo de amigos muitos ligados à área do Ambiente que propuseram ajudar a tornar o Festival mais sustentável em termos ambientais.

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Quem foi ao Andanças em 2005 por certo verificou que havia um grande “ruído de fundo”, avisos (poupe água, poupe energia), sacos de cor para separar o lixo, voluntários na cantina a “convidar” todos a separar tudo. Enfim, um leque variado de novas iniciativas, umas mais eficazes que outras, umas melhores que outras, mas sempre com o objectivo de alertar e, mais ainda, de alterar os nossos comportamentos. Alterá-los não apenas naquela semana, mágica para alguns, mas também no mundo real, no mundo cá fora...»Graça Gonçalves

«Agosto de 2005, a caminho de Car-valhais, cumprindo finalmente uma ideia antiga. Estrada bonita, curvas e muitos carros estacionados na ber-ma. Junto-me aos demais e procuro a amiga, carregada com mantas e sacos cama. Vou acampar no Andan-ças... coisa estranha. Tendas enca-valitadas umas nas outras e um vago cheiro a “verde”. Inicio o reconheci-mento: casa de banho, refeitório (ain-da vazio), mercearia (magnífica broa com mel), igreja bonita, tendinhas pinhal abaixo e o recinto das danças.

depositado num Aterro Sanitário demora 500 anos! a decompôr.

Signi�ca isto que se o Vasco da Gama já tivesse o hábito de abastecer as naus em supermercados ainda hoje estariamos a gramar os sacos dele...

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A hora do almoço aproxima-se e, num canto, abre-se a porta da recolha selectiva: numa pequena mesa alu-gam-se talheres e pratos reutilizáveis ou oferece-se serviço de guarda... à frente do refeitório os caixotes da recolha selectiva posicionam-se: orgânicos, plásticos/latas e vidros. A meio caminho, não vão alguns reguingar da mistura entre “lixo” e “alimento”, há ainda uma mesa onde o mais de alguns sacia a apetência de outros. E há sempre um sorriso a ajudar, a explicar ou mesmo a limpar a falta de atenção de uns quantos... e o sol queima, mesmo com a rede verde! Depois é a tarde abrasadora... o cante alentejano na frescura da igreja... o cheiro a terra queimada (nuvens imensas de fumo negro, por detrás dos montes, que ensombram a paz) e novamente se organizam mesas e contentores... para a organi-zação daquilo a que muitos chamam lixo. E no final, já pela fresca, um pé de dança no recinto, depois duma história contada ao calor da foguei-ra... e o recolher ao saco cama, antes do duche frio e sujo do dia seguinte... mas disso já não vou falar aqui.»Paula Gama

«(...) Cada bandeja del comedor de Andanças que separábamos en esos contenedores de plástico y orgánicos que se convirtieron en improvisado lugar de encuentro para todos noso-tros; cada vez que nos acercábamos hasta uno de los puntos de recogida selectiva de residuos a tirar nuestra basura; cada minuto dedicado a las energías “más sostenibles” aprove-chadas en algunos ejemplos realiza-dos a los que Andanças nos acercó; cada gota de agua no desperdiciada en baños y duchas; cada estreme-cimiento con que el humo y la lluvia de cenizas de los incendios asolaban nuestro corazón… es expresión de esa conciencia evolucionada. (...)»Gonzalo de Azcoitia

«Eram 10h00 quando começaram a aparecer algumas crianças com os seus familiares para mais uma manhã de actividades lúdico-pedagó-gicas. Das várias oficinas disponíveis, uma das crianças pede ao pai para fazer a oficina do Eco-Andanças. A realização desta oficina pressupu-nha, no entanto, um número mínimo de participantes que num Domingo de manhã era difícil assegurar.

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Com o objectivo de promover um olhar crítico e construtivo sobre o ambiente, após uma abordagem inicial teórica, as crianças eram con-vidadas a fazer um percurso à área envolvente para a realização de uma “auditoria ambiental”. Posteriormente os resultados desta “auditoria” forne-ceram pistas para o desenvolvimento de campanhas de sensibilização. Os produtos da oficina consistiam em diversos cartazes informativos sobre os cuidados a ter em relação à de-posição dos resíduos nos ecopontos existentes no recinto do Andanças e sobre a utilização eficiente do recurso natural água.»Susana Ribeiro

«O Sr. Cônsul Mindo Mais-e-Mais che-gou cinzento e direito a Carvalhais, na sua nave unipessoal. Ao entrar no Munsidanças, buzinopé que buzino-pé, e em metamorfose abrupta de buzinverso unilaranja transforma-se…em Zé ReduziZé ReduziZé.

Logo vai em busca do Beijo do Vento que patinava com Ovos Esmeralda. E com Seriluas Triluche e Estrelâncias Ourinémonas, vão todos velivolando pelo atrimundo!

Algodões Puros dançam com Ma-zurcas num frenesi estratosférico! E peixes das profundezas, comovidos, assistem ao Cinema Paraíso.E enquanto as Totemrugas-Dólmen buscam par, Dona Virgolina convida os seus pretendentes, envergonha-dos, para dançar!

Nestas circunstâncias o pai tenta convencer o filho a optar por uma actividade que não envolva a cons-tituição de um grupo de trabalho. Apesar das contrariedades, a vontade da criança de realizar a oficina é mais forte que o conselho do pai, e a criança imediatamente se mobiliza e inicia uma campanha de angariação de participantes. Apesar de não che-gar a haver quorum, a persistência e motivação desta criança “obriga-me” à realização da oficina que, pouco após o seu início, começa a despertar a curiosidade de outras crianças que iam aparecendo e que acabaram por se juntar ao grupo.

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88 Suspensas em amena cavaqueira, três Talac-Nhocas fazem o trilho do mistério; três Sirimpintis, em pose derretida, namoram de bicicleta e mochila às costas; quatro Teclas de Piano fogem numa Flauta-do-Mar.

Perdigotos Saltimbancos do Rino-Car-rocel dormem vestidos com um escu-do de abóbora (acamparam perto de uma chapelloise de gaitas de foles).

Fogem dois pensamentos de Barnabé minutos antes de três Caracóis-Naca-rados alcançarem três Búzios-Beiji-nhos na corrida da baixa-mar.

Um Espadachim Lunar protege a Lu-aluz (que guarda nas dancimúsicas os segredos dos lugares, os segredos das culturas).

No fim, o concerto das Tartalágrimas.

Zé saiu de Carvalhais. Mas já não ia cinzento e direito, ia esmeralda e laranja. Agora era o Zé ReduziZé Mais-e-Mais. Não foi de nave, foi a pé, que é multi-pessoal, e com ele, as Talac-Lâncias, as Sirim-Nhocas, as Pinrugas,e o Espadachim Lunar!E começou a nascera Lualuz,lá fora, no ConsuMundo.»Helena Tapadinhas

«A edição de 2005 celebra uma dé-cada de Andanças. Uma década que vai da pedrada no charco ao grande transatlântico que se tornou rito anu-al obrigatório para muitos... que cada ano trazem mais muitos.

A preocupação pelo impacto ambien-tal, também crescente, do grande evento cultural em que se tornou o Andanças levou-nos a querer iniciar um novo ciclo, ambientalmente mais sustentável. Este ano serão imple-mentadas muitas medidas sugeridas pelos que fazem o Andanças possí-vel, medidas tendentes a minorar o impacto ambiental local. Só assim conseguiremos uma integração real da música e da dança no mundo que queremos, como se o Andanças fosse apenas um momento normal das nossas vidas. Com impacto apenas na alma de cada um.»Manuela Pires da Fonseca (in folheto Andanças 2005)

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Esta preocupação com a sustentabilida-de ambiental concretizou-se, em 2005, na redução do uso de pratos e copos descartáveis (através de desconto no preço da refeição para dançantes com loiça reutilizável, do empréstimo de loiça sob caução, e da facilidade de depósito destas loiças num “Pratário”); na recolha selectiva de resíduos para reciclagem (de embalagens em todo o recinto do fes-tival; de orgânicos na cantina e cozinhas, encaminhados para compostagem e fer-tilização de agricultura biológica local; de óleos alimentares e de pilhas usadas); na instalação de cinzeiros em todo o recinto; na poupança de água (pela introdução de torneiras automáticas nas instalações sanitárias do parque de campismo); na sensibilização para a utilização de ener-gias renováveis (duche solar, produtos e brinquedos fotovoltaicos para demons-tração); na redução da poluição da água e do solo (através do uso de detergentes “mais amigos do ambiente”); no reforço da comunicação e informação ambiental (ao nível da sinalética em todo o recinto, da eco-formação/sensibilização dos voluntários, do acompanhamento diário do público e das eco-notícias no jornal Andanças) e nas actividades ambientais (jogos de descoberta da natureza, per-cursos de interpretação, visitas guiadas e oficinas para crianças).

A introdução e promoção gradual de melhores práticas ambientais no Andanças tem essencialmente três objectivos: i) reduzir os impac-tos ambientais locais e globais do evento, fazendo com que o festival toque na Terra de modo mais leve; ii) criar e fixar mudanças locais para a sustentabilidade, que se enraízem e dêem frutos; iii) difundir princípios e práticas que os dançantes levem consigo como sementes que podem germinar noutros locais. Espera-se, assim, contribuir gradual e natural-mente para o desenvolvimento de uma consciência e cultura ambientais mais sustentáveis.

Foram ensaiados alguns passos sim-ples. No entanto, face à dimensão, contexto local e reais impactos am-bientais do Andanças, o muito que foi feito é efectivamente pouco, em ter-mos de Sustentabilidade. Falamos dos impactos de transportar, alojar, dar de comer e de beber, luz e som para colo-car a dançar e entreter cerca de 5.000 pessoas/dia durante uma semana, numa pequena aldeia da serra, de uma freguesia com cerca de 1.700 habitan-tes, com toda a logística em termos de equipamentos e recursos materiais e humanos que isso envolve.

Um olhar mais atento percebe desde logo que há muito a fazer, tanto ao ní-vel do consumo de energia e recursos naturais, alimentação e usos da água, redução e separação dos resíduos, preservação da Natureza e Biodiversi-dade; como ao nível da monitorização e avaliação dos resultados, melhoria do desempenho local, e em tornar a mensagem mais eficaz para aumentar a consciência e participação do públi-co. Uma mensagem onde se procura trazer naturalmente o Ambiente para o nível do cultural e do sensível, de mãos dadas com o lúdico e o estético, dançando o prazer de viver ao som da música e da natureza.

«El Festival Andanças también evo-luciona, y lo hace ecológicamente (‘eco’ viene del griego “oikos”=casa), es decir, de acuerdo a las lógicas que animan las dinámicas domésticas de la casa que todos habitamos. Esta es la música de nuestras danças, este es el nuevo folklore que cada verano migra de todos los lugares del mundo para encontrarse y reproducirse en San Pedro do Sul, para después volver a dispersarse por el planeta poblán-dolo de un próspero canto a la Vida. Bailemos.»Gonzalo de Azcoitia

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Um, dois, três. Um, dois... Um, dois, três. Um, dois... E lá vão mais dez passos... Dez anos. Dez olhares pelas andanças das (in)sustentabilidades individuais e colectivas.

Aprender a dança da Sustentabilidade pode ser tão difícil e apaixonante como aprender a dançar... uma Ma-zurka?

“Dá-me a mão, que eu ajudo-te. Não penses. Sente a música e deixa-te ir: Um, dois, três. Um, dois... Um, dois, três. Um, dois...”

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A PédeXumbo

As actividades da PédeXumbo organi-zam-se em quatro eixos principais:

A. Programação regular

No Espaço Celeiros (Évora) - aqui se dinamizam diariamente aulas de dan-ça e música para miúdos e graúdos. De modo mais esporádico acontecem oficinas intensivas de 2-3 dias. Con-certos e bailes armam-se todos os fins de semana.

B. Sector Pedagógico

Aulas e animações para os mais pequenos aprenderem e poderem ensinar aos pais. Decorrem em esco-las básicas do concelho de Évora, nos Celeiros ou num qualquer terreiro ou adro, à sombra (Ex: Actividades para Pais e Filhos, Programa Jogar)

C. Os grandes eventos

O Andanças e o Entrudanças são, des-de há alguns anos, os encontros mais alargados da PédeXumbo. Acontecem apenas uma vez por ano e servem para concentrar aprendizagens e experiências conseguidas no âmbito das demais actividades; neste mo-mento servem também como ponto de encontro para muito boa gente...

D. Criação artística e Renovação de tradições

Empurrão decisivo para a criatividade – é à Residência de Músicos, ao Aqui há Baile e ao Tocar de Ouvido que muitos músicos e professores de dan-ças vão beber informação e buscar e propor inspiração.

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Números do Festival

Público1��6: 3�02005: 15.000

Número de oficinas1��6: 18 (6 propostas diferentes)2005: 313 (113 propostas diferentes)

Número de bailes, concertos e espectáculos1��6: 3 (2 grupos diferentes)2005: �0 (6� grupos diferentes)

Número de pessoas voluntárias+organização1��6: 72005: 550

Número de músicos e monitores oficinas1��6: �52005: 620

Número de refeições servidas na cantina 1��6: 802005 (para além dos restaurantes e bares do recinto): 13.578

Orçamento do Festival1��6: 6.000 euros2005: 315.000 euros

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© 2006 PédeXumbo.