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XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interações, Convergências 13 a 17 de julho de 2008 USP São Paulo, Brasil Controverso e contraditório: sobre Canaã, de Graça Aranha Prof. Dr. Mário Luiz Frungillo1 (UNICAMP) Resumo: Canaã, de Graça Aranha, sempre gozou de uma fama ambígua. Enquanto parte da crítica enfatiza seu caráter moderno e antecipatório do modernismo, a atitude dos próprios modernistas foi antes de rejeição que de reconhecimento. Junto ao público leitor, o romance passa por ser obra de irre- mediável chatice. Sendo livro de feitura eclética, em que se mesclam diversas tendências artísticas e de pensamento, parece obra destinada a nunca atingir um consenso a respeito do valor de sua contribuição, mas, por outro lado, não se pode negar que alguns dos defeitos tradicionalmente a- tribuídos pela crítica ao romance não resistem a uma leitura mais atenta. A pergunta sobre o lugar que o romance pode ocupar hoje em nossa tradição literária talvez tenha que partir justamente de suas contradições. Palavras-chave: Literatura Brasileira, Graça Aranha, Romance de idéias. Passado mais de um século da publicação do romance Canaã, de Graça Aranha, podemos nos perguntar se o livro ainda pode ser considerado parte do cânone vivo da nossa literatura, ou se terá se tornado uma relíquia, capaz de interessar tão-somente a especialistas que se ocupem daquele pe- ríodo dificilmente classificável da literatura brasileira que, à falta de melhor nome, levou o de pré- modernismo. Embora obra de concepção ambiciosa, que procura combinar um diagnóstico talvez definitivo sobre o Brasil e uma elaboração artística altamente sofisticada, o romance nunca chegou a gozar de unanimidade, nem entre o público leitor, nem entre os críticos. É verdade que, como romance de idéias, é imprescindível historicizá-lo. É verdade também que sua linguagem um tanto rebuscada e os diálogos construídos de forma a colocar idéias e con- cepções em debate podem dar uma impressão de artificialidade que o tornem estranho ao leitor cos- tumeiro de romance. Mas, como nota José Paulo Paes em seu livro sobre o romance (certamente uma das contribuições mais pertinentes a uma reavaliação da obra), comparada à de Coelho Neto, a linguagem de Graça Aranha é quase discreta (PAES, 1992. p. 37). Além disso, se uma obra como Lavoura Arcaica, com seu diálogos quase inacreditáveis, não desperta mais nenhuma estranheza, por que se deveria continuar a empregar um critério de julgamento que tem suas raízes no moder- nismo de 22 e que, de tanto ser utilizado, se tornou quase um cacoete, se não mesmo um preconcei- to? De fato, boa parte do mau conceito que o livro de Graça Aranha carrega consigo parece se dever à sua controversa participação no movimento modernista, marcada pela afoiteza e uma certa afoba- ção. Das rivalidades pela liderança e da rejeição que as vozes mais proeminentes do movimento lhe dedicaram saiu o autor maranhense com a pecha de bestalhão (remota alimária, no dizer de Oswald de Andrade). Outro dado que mais prejudica a leitura do livro do que ajuda a elucidá-lo é a tentativa de i- dentificar, no coro de vozes que falam dentro dele, o ponto de vista do autor. De um modo geral, na opinião da crítica, este ponto de vista se dividiria entre as personagens do imigrante Milkau e do Juiz Municipal Paulo Maciel. Tal afirmação vem corroborada pela comparação entre as idéias ex- pressas por estas personagens e os textos filosóficos do autor, especialmente A estética da vida. No caso do Juiz Municipal, acrescenta-se o dado biográfico: Graça Aranha realmente desempenhou aquela função na região em que se desenrola a ação do romance. Não é o caso de negar todas essas semelhanças. Pode-se acrescer a elas o fato de que fica desde logo evidente não haver nenhuma possibilidade de que Lentz, o outro imigrante que está o tempo todo a debater com Milkau suas i- déias, representasse este ponto de vista. Mas é necessário ter em conta que Canaã não é um ensaio

Contradições Do Romance Canaã

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análise da obra de Graça Aranha - pré-modernista

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  • XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interaes, Convergncias

    13 a 17 de julho de 2008 USP So Paulo, Brasil

    Controverso e contraditrio: sobre Cana, de Graa Aranha

    Prof. Dr. Mrio Luiz Frungillo1 (UNICAMP)

    Resumo:

    Cana, de Graa Aranha, sempre gozou de uma fama ambgua. Enquanto parte da crtica enfatiza seu carter moderno e antecipatrio do modernismo, a atitude dos prprios modernistas foi antes de rejeio que de reconhecimento. Junto ao pblico leitor, o romance passa por ser obra de irre-medivel chatice. Sendo livro de feitura ecltica, em que se mesclam diversas tendncias artsticas e de pensamento, parece obra destinada a nunca atingir um consenso a respeito do valor de sua contribuio, mas, por outro lado, no se pode negar que alguns dos defeitos tradicionalmente a-tribudos pela crtica ao romance no resistem a uma leitura mais atenta. A pergunta sobre o lugar que o romance pode ocupar hoje em nossa tradio literria talvez tenha que partir justamente de suas contradies.

    Palavras-chave: Literatura Brasileira, Graa Aranha, Romance de idias.

    Passado mais de um sculo da publicao do romance Cana, de Graa Aranha, podemos nos perguntar se o livro ainda pode ser considerado parte do cnone vivo da nossa literatura, ou se ter se tornado uma relquia, capaz de interessar to-somente a especialistas que se ocupem daquele pe-rodo dificilmente classificvel da literatura brasileira que, falta de melhor nome, levou o de pr-modernismo. Embora obra de concepo ambiciosa, que procura combinar um diagnstico talvez definitivo sobre o Brasil e uma elaborao artstica altamente sofisticada, o romance nunca chegou a gozar de unanimidade, nem entre o pblico leitor, nem entre os crticos.

    verdade que, como romance de idias, imprescindvel historiciz-lo. verdade tambm que sua linguagem um tanto rebuscada e os dilogos construdos de forma a colocar idias e con-cepes em debate podem dar uma impresso de artificialidade que o tornem estranho ao leitor cos-tumeiro de romance. Mas, como nota Jos Paulo Paes em seu livro sobre o romance (certamente uma das contribuies mais pertinentes a uma reavaliao da obra), comparada de Coelho Neto, a linguagem de Graa Aranha quase discreta (PAES, 1992. p. 37). Alm disso, se uma obra como Lavoura Arcaica, com seu dilogos quase inacreditveis, no desperta mais nenhuma estranheza, por que se deveria continuar a empregar um critrio de julgamento que tem suas razes no moder-nismo de 22 e que, de tanto ser utilizado, se tornou quase um cacoete, se no mesmo um preconcei-to? De fato, boa parte do mau conceito que o livro de Graa Aranha carrega consigo parece se dever sua controversa participao no movimento modernista, marcada pela afoiteza e uma certa afoba-o. Das rivalidades pela liderana e da rejeio que as vozes mais proeminentes do movimento lhe dedicaram saiu o autor maranhense com a pecha de bestalho (remota alimria, no dizer de Oswald de Andrade).

    Outro dado que mais prejudica a leitura do livro do que ajuda a elucid-lo a tentativa de i-dentificar, no coro de vozes que falam dentro dele, o ponto de vista do autor. De um modo geral, na opinio da crtica, este ponto de vista se dividiria entre as personagens do imigrante Milkau e do Juiz Municipal Paulo Maciel. Tal afirmao vem corroborada pela comparao entre as idias ex-pressas por estas personagens e os textos filosficos do autor, especialmente A esttica da vida. No caso do Juiz Municipal, acrescenta-se o dado biogrfico: Graa Aranha realmente desempenhou aquela funo na regio em que se desenrola a ao do romance. No o caso de negar todas essas semelhanas. Pode-se acrescer a elas o fato de que fica desde logo evidente no haver nenhuma possibilidade de que Lentz, o outro imigrante que est o tempo todo a debater com Milkau suas i-dias, representasse este ponto de vista. Mas necessrio ter em conta que Cana no um ensaio

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    filosfico ou de sociologia. uma obra de fico em que as idias esto subordinadas sua coern-cia interna. Quer dizer: mesmo se o autor compartilha das idias expressas por algumas dessas per-sonagens, necessrio ver como tais idias se realizam na construo do enredo. O seu teste de ver-dade, a sua confirmao ou negao, dependem disso.

    Dizer que as idias expressas no romance se subordinam a sua coerncia interna significa considerar que no estamos tratando com um romance de tese, em que o enredo se construiria de forma a confirmar um diagnstico anteriormente feito. De fato, parece-me que este no o caso de Cana. S se pode tom-lo assim se no se leva em contra a intrincada construo da narrativa. Intrincada por que coloca as idias em debate sem decidir de antemo qual delas representa uma viso de mundo mais verdadeira, ou um diagnstico mais certeiro da realidade. Da decorre que o desenrolar da histria que vai indicar ao leitor a validade ou no dessas idias, sem prejulgamento identificvel no texto mesmo da obra. Intrincada tambm por que combina elementos e estilos hete-rogneos, conseguindo harmoniz-los de maneira a constiturem um todo coerente. Por fim, o livro tem uma concluso aberta, em que as questes colocadas no parecem receber uma resposta defini-tiva. disso que trataremos a seguir.

    O romance se inicia com a chegada de Milkau, um imigrante alemo, a um ncleo de coloni-zao no Esprito Santo. Na sua primeira noite ali, faz amizade com Lentz, um compatriota que tambm pensa em se estabelecer ali. Lentz pretendia de incio se permanecer na cidade, mas deixa-se convencer por Milkau a dividir com ele um lote de terra a ser cultivado por ambos. Nos captulos seguintes, os dois vo se familiarizando com a vida na colnia e debatem intensamente suas idias sobre a vida em geral e sobre o futuro da nova terra em que esto vivendo em particular. Embora a viso de mundo dos dois seja diametralmente oposta, as previses que cada um deles faz para o futuro constroem uma utopia a ser testada diante dos fatos.

    Ambos vm o Brasil como uma nova Cana, celebram sua natureza poderosa, sua fertilidade, sua beleza, seu grande futuro, mas divergem no que acreditam que esse futuro trar. Como partid-rio da fora e da crena na superioridade racial dos alemes sobre os nativos, Lentz acredita que, num embate inevitvel entre estes e os novos imigrantes, a vitria caber aos mais superiormente dotados pela natureza. O pas ir progressivamente se branqueando, e os costumes, a moral e mes-mo a lngua do mais forte prevalecero. No plo oposto ao de Lentz, Milkau ope ao culto da fora o do amor. idia de dominao do mais forte sobre o mais fraco, ope a crena numa fuso futura entre as raas. Durante toda essa parte do romance, sempre que os dois so confrontados com a rea-lidade que encontram, cada um deles a interpretar a sua maneira. Quando, por exemplo, os dois se do conta de que os funcionrios e trabalhadores brasileiros que atuam na colnia aprenderam a lngua do imigrante, Lentz v a um indcio de fraqueza, da incapacidade dos nativos em se impor e de imporem sua lngua. Da acreditar que, do progressivo domnio sobre eles, tambm a sua lngua tender a desaparecer, suplantada pela do imigrante. Para Milkau, isso era apenas resultado da se-gregao das colnias, mas no estaria longe o dia em que a lngua dos brasileiros dominaria e, mesmo que alterada pelo influxo das lnguas estrangeiras (de acordo com a sua idia de fuso) ainda assim seria nela dominante a ndole do portugus (ARANHA, 1969: 88).

    O embate entre as utopias de Lentz e Milkau vem precedido nas pginas iniciais pelo contras-te entre as terras situadas de um e do outro lado do rio. Inicialmente, Milkau se defronta com fazen-das em runas, incapazes de sobreviver aps a abolio da escravatura. Atravessando a ponte, en-contra uma colnia prspera, cheia de promessas. Um dos lados:

    [...] traduzia, na paisagem triste esbatida do nascente, o passado, onde a marca do cansao se gravava nas coisas minguadas. (ARANHA, 1969. p. 61).

    Do outro lado, o que se via [...] era uma terra nova, pronta a abrigar a avalancha que vinha das regies frias do outro hemisfrio e lhe descia aos seios quentes e fartos. (ARANHA, 1969. p. 61).

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    Mas, longe de significar isso a vitria dos novos habitantes sobre os velhos, como poderia

    pensar Lentz, ali havia de germinar o futuro povo que cobriria um dia todo o solo e a cachoeira no dividiria mais dois mundos, duas histrias, duas raas que se combatem, uma com a prfida lascvia, outra com a temerosa energia, at se confundirem num mesmo grande e fecundante amor. (ARANHA, 1969. p. 61).

    Durante os cinco primeiros captulos, predominam no romance as abstraes de Lentz e Mil-kau. At o final do captulo V, pouco h de realidade concreta no romance, e quase tudo que ali encontramos vem filtrado pelo ponto de vista de um e de outro, sem que o narrador d a qualquer um deles a razo, embora sua simpatia possa parecer estar do lado de Milkau. Ocorre apenas que, quase imperceptivelmente, vo sendo introduzidos alguns motivos que sero retomados a seguir e tornaro o desenrolar da narrativa mais complexo. Assim, por exemplo, quando esto chegando para o primeiro culto celebrado pelo novo pastor da comunidade, os dois amigos vem chegar a galope trs homens. Era o triunvirato judicirio da comarca, que logo demonstram a conscincia de sua superioridade sobre os demais:

    Olhavam os colonos como uma massa amorfa e subordinada, e o velho de moncu-lo, empertigado, esperava solene, silenciosos, os cumprimentos. (ARANHA, 1969. p. 118).

    A reao dos colonos antecipa o que est por vir: Por contgio e por instintivo sinal de respeito dos humildes colonos, as saudaes propagavam-se e da s se viam as cabeas abaixando-se na direo dos magistra-dos, que correspondiam desdenhosos. (ARANHA, 1969. p. 118).

    A partir do captulo VI o romance muda de tom. Se at agora tinham predominado as abstra-es de Lentz e Milkau, que do sustentao utopia pessoal de cada um, a partir de agora o ro-mance comea a ganhar tons realistas mais fortes, e embora ainda de tempos em tempos haja longos trechos digressivos, a ao passa a predominar sobre as abstraes. E a ao do romance comea a desmentir toda a construo utpica das duas personagens.

    A primeira idia a ruir por terra a crena de Lentz na superioridade dos alemes sobre os na-tivos. Aquele triunvirato judicirio que se mostrara to cheio de si no captulo anterior entra decisi-vamente em cena, secundado pelo escrivo Pantoja, que o chefe do partido da situao. Juntamen-te com ele, o Juiz de Direito, o Promotor e o Juiz Municipal aparecem na colnia para realizar o inventrio das heranas dos colonos, e o que se v um espetculo de prepotncia e opresso. Os colonos, pouco afeitos lngua do pas, so enganados e extorquidos sem piedade pelo escrivo, sob os olhares cmplices do Juiz de Direito e do Promotor, e impotentes do Juiz Municipal, compreen-sivo, mas incapaz de impor sua autoridade ao subordinado. Os colonos, que Lentz considera repre-sentantes de um povo guerreiro, superior, sucumbem cruel esperteza dos nativos, e at o fato de nunca terem aprendido a lngua do pas, que lhe parecera uma prova de sua superioridade, se revela uma desvantagem.

    Mas tambm a idia de Milkau de que o futuro traria uma fuso harmoniosa entre as raas se revela pouco sagaz, fruto de um desconhecimento das verdadeiras relaes que se estavam estabele-cendo entre elas. Pois, como justificativa de sua atitude, tanto o coronel Pantoja quanto o promotor Brederodes invocam um patriotismo intolerante com a pouca disposio assimilacionista do imi-grante. O nacionalismo como um refgio de velhacos o que se v representado aqui, no faltando mesmo, na figura do Juiz de Direito, uma runa do nativismo romntico transformado em modo de vida. Depois de ter feito coro ironia com que o Juiz Municipal, nica voz discordante, encarava o patriotismo dos outros dois, ele, percebendo que sua atitude o comprometia diante do escrivo, con-ta que adotara o sobrenome de Itapecuru depois que Gonalves Dias e Alencar deram o grito de alarma pelo Brasil, pelo caboclo. (ARANHA, 1969: 153).

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    A narrao destes acontecimentos todos interrompera a da histria de Maria Perutz, que re-

    tomada logo a seguir, no captulo VII. Tendo engravidado do filho dos patres, Maria ser expulsa da casa por eles, temerosos de que o nascimento da criana viesse a perturbar seus planos de casar o rapaz com a filha de uma famlia abastada. Depois de buscar abrigo em vrias casas da colnia, e de ser rejeitada inclusive pelo pastor, incapaz de se impor aos escrpulos moralistas da irm (mais um motivo introduzido anteriormente, quando um dos presentes ao culto com que ele se apresentara comunidade dissera que a irm mete-se em tudo). Depois de passar alguns dias sendo maltratada pela dona da estalagem onde encontrara um abrigo precrio, reconhecida por Milkau, que a co-nhecera na festa de recepo ao pastor. Com ajuda dele ela deixa a penso e se emprega na casa de uma famlia que, no entanto, a despreza. Surpreendida no meio do trabalho pelas dores do parto, Maria d luz em pleno campo, mas desfalece e a criana devorada por um bando de porcos sel-vagens. Acusada de infanticdio, tem contra si toda a colnia e os j conhecidos personagens do promotor e do escrivo. Como acontecera anteriormente com os colonos extorquidos, tambm neste caso o Juiz Municipal no encontra maneira de se opor aos outros. No processo contra Maria se misturam, ao lado do dio do promotor Brederodes contra os colonos, o seu rancor contra a moa, a quem tentara seduzir e que o repelira. A esse dio junta-se o interesse do escrivo pela condenao de Maria, pois fora procurado pelo colono Schultz, que era de seu partido e a quem devia dinheiro. Este tambm pedira a condenao da acusada, que, segundo ele, era o desejo de toda a comunidade, revoltada com o crime da moa. Temos aqui mais um golpe nas idias que sustentam as utopias de Milkau e Lentz. Longe de demonstrarem a superioridade atribuda a eles por Lentz, os colonos se mostram mesquinhos, movidos por interesses baixos e por preconceitos desprezveis, que afinal nem se diferenciam tanto assim daqueles que o obrigaram fuga de seu pas natal. O narrador no deixa mesmo de atribuir o desdm com que Maria expulsa da casa do pastor pela irm deste represso sexual da professora solteirona, ciumenta da vitalidade ertica da mulher grvida. Mas, mais importante que isso, a insignificante Maria v-se envolvida numa trama feita dos mais diver-sos interesses, nenhum deles nobre, e nessa trama no havia lugar nem para a justia mais comezi-nha e muito menos para qualquer tipo de sentimento humanitrio.

    Retoma-se, nos dois episdios envolvendo a Justia, um motivo tambm introduzido nas p-ginas iniciais do romance: as esperanas suscitadas pela Abolio e pela Repblica no se cumpri-ram. No houvera progresso verdadeiro na situao anterior, e no jogo de interesses pelos quais se regiam as instituies no havia lugar para os devaneios humanitrios de Milkau. Este no deixou de sentir o golpe que davam em suas esperanas:

    A passagem da misria na nova vida de Milkau deixara o seu vestgio perturbador. No esprito dele uma melancolia teimosa se espraiava infinita, vaga, entorpecedora, e agora o pensamento rolava vertiginoso para o desnimo... No podia esquecer a desgraa de Maria. No h sofrimento, cismava ele, to insignificante que no cla-me aos que passam piedade e reparao com o alarido de cem mil bocas. No h desgraa pequena. Toda a dor imensa. (ARANHA, 1969. p. 170).

    O novo colono ver a tristeza minar cada vez mais a sua nova vida. Ele hesitar por um mo-mento, querendo ainda proteger o seu sonho do naufrgio, mas terminar por se entregar a realidade e a dedicar todas as suas foras para salvar a moa. E, como se fossem ambos faces da mesma mo-eda, seu abandono das iluses que o trouxeram para a colnia ter como conseqncia que tambm Lentz, vendo-se abandonado pelo companheiro de empresa passe por uma crise e abandone as suas.

    Fracassam, assim, ambos em suas utopias. O desenrolar do enredo no confirma as esperanas nem de um nem de outro, pelo contrrio, vai pouco a pouco desmentindo-as e revelando que repou-sam numa interpretao equivocada do mundo que os cerca. Mas evidente que no se trata do mesmo fracasso. Se a utopia da fora de Lentz termina aqui, a utopia do amor de Milkau vai conti-nuar. Levado pela piedade e pela convico de que, dentro do jogo de interesses que se formara em torno da acusada, seria impossvel salv-la, Milkau a retira da priso e foge com ela em busca, mais

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    uma vez, da realizao de seu sonho. Mas, depois de muito vagar, e de passar por um momento de desespero que quase destri a ambos, ele abandona s geraes futuras a realizao da sua utopia, e consola-se com o pensamento de que todos os sofrimentos so pontos de passagens necessrios para atingi-la. O romance termina, assim, em aberto, desesperanoso de ver realizadas num breve futuro as convices de Milkau, mas sem neg-las totalmente. S por isso, por essa pequena fresta aberta em meio ao pessimismo geral do livro, que se pode entrever alguma coincidncia entre o pensa-mento do autor e o da sua personagem. Mas, se assim for, um pensamento conscientemente posto em suspenso quando de trata de analisar o momento histrico em que ele se encontra. No reconhe-cimento de sua inviabilidade no se pode deixar de creditar ao autor uma certa dose de lucidez.

    No que no se poder reconhecer a mesma lucidez no tributo que o romance paga a sua po-ca no que se refere questo racial. Embora, como espero tenha ficado demonstrado acima, no se possa sustentar a viso de alguns crticos que veriam no romance a expresso de uma simpatia do autor pelos alemes e de um reconhecimento de sua superioridade sobre os nativos, uma vez que, ao contrrio, todo o transcorrer da narrativa se d no sentido de desmentir as idias de Lentz a esse respeito, no se pode negar que, ao tratar do futuro, suas consideraes a respeito da mestiagem tendem mais a uma avaliao negativa que a uma positiva. Esta questo tratada no romance atra-vs do dilogo entre Milkau e Paulo Maciel, o Juiz Municipal, que ele conheceu por causa do pro-cesso contra Maria Perutz. A viso que o romance proporciona do problema, e que vinha sendo a-bordada aqui e ali ao longo da narrativa, encontra sua elaborao mais acabada nesse dilogo. As-sim, podemos dizer que o mais provvel que nele se expresse at onde ia a viso que o autor tinha desse assunto. Seja como for, seus limites definem os limites dentro dos quais tratada a questo racial dentro do romance.

    comum dizer-se que Paulo Maciel representaria no romance um alter ego de Graa Aranha. Mas ao analisar mais de perto a obra, o leitor se sentir tentado a se perguntar se o autor verdadei-ramente podia se identificar com a personagem que criara. Embora o apresente sob uma luz favor-vel, e emita a seu respeito alguns conceitos positivos, a ao da personagem no romance no parece de molde a oferecer uma imagem idealizada que Graa Aranha pudesse ter de si mesmo ao conce-b-la. Paulo Maciel um homem refinado e sensvel, e se mostra indignado diante da maneira pre-datria de agir de Pantoja, Itapecuru e Brederodes. Mas tudo que tem a opor-lhes so seus sentimen-tos, incapazes de se transformar em ao efetiva. Sua impotncia parece mais fruto do tdio de al-gum que, sentindo-se superior sociedade em que vive, prefere sonhar a agir. No por acaso, ele mais de uma vez profetiza a dominao do Brasil pela Europa ou pelos Estados Unidos, e se com-praz na inevitabilidade desta dominao do mais forte pelo mais fraco. Nisso ele est mais prximo de Lentz que de Milkau. Mas nele tal postura adquire uns fumos de evidente esnobismo, e at suas pretenses a juiz correto tm algo de diletante. Seu carter ablico no se casa bem com a imagem de intelectual impetuoso e combativo que a posteridade guardou de Graa Aranha. Paulo Maciel parece mais uma personagem tpica da belle poque, sonhando com a Europa e sentindo-se exilado numa terra brbara, do que uma imagem de seu criador. Alm do mais, malgrado suas veleidades de justia, no que se refere questo racial, Paulo Maciel um poo de preconceitos. Analisando a ascenso de um tipo como o mulato Pantoja diz:

    Era preciso formar-se do conflito de nossas espcies humanas um tipo de mestio, que se conformando melhor com a natureza, o ambiente fsico, e sendo a expresso das qualidades mdias de todos, fosse o vencedor e eliminasse os extremos gerado-res. Perfeito... Reparemos que Pantoja no um caso isolado. Os que tendem a nos governar, e que nos governam com melhor aceitao e xito, so desses mesmo ti-pos de mulatos. O Brasil , enfim, deles... (ARANHA, 1969. p. 210).

    Da a concluir que no h salvao possvel para o nosso caso, uma incapacidade de raa para a civilizao s um passo. No bastasse o conformismo de tais afirmaes para pr em d-vida a identificao de Graa Aranha com tal personagem, temos ainda, na resposta de Milkau um

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    ponto de vista mais arrojado, que suplanta o de Maciel, embora no consiga se alar para alm de um certo limite:

    Oh! no. Isto no se pode concluir dos meus pensamentos. A crise da cultura aqui motivada pela divergncia dos estados de civilizao das vrias classes do povo. preciso um pouco mais de identificao, como dolorosamente j se est fazendo. No h raas capazes ou incapazes de civilizao, toda a trama da Histria um processo de fuso: s as raas estacionadas, isto , as que se no fundem com ou-tras, sejam brancas ou negras, se mantm no estado selvagem. (ARANHA, 1969. p. 210).

    Os limites de seu pensamento vm a seguir, quando ele no concede mestiagem mais do que ser um estgio intermedirio, a ser logo superado, deixando embora vestgios nas geraes futu-ras:

    E no futuro remoto, a poca dos mulatos passar, para voltar a idade dos novos brancos, vindos da recente invaso, aceitando com reconhecimento o patrimnio dos seus predecessores mestios, que tero edificado alguma coisa, porque nada passa inutilmente na terra... (ARANHA, 1969. p. 210).

    Ao tentar prever o futuro, o romance parece menos feliz do que ao analisar o presente, ao me-nos no que se refere ao contexto interno. No que se refere ao externo, porm, ganha, aos olhos do leitor de hoje, uma surpreendente acuidade. Isso est, de algum modo, expresso j no carter fugiti-vo de Lentz e Milkau. Ambos se evadiram de seu pas, cada um por um motivo diferente. Lentz, por sentir que no poderia escapar das limitaes impostas pela sua classe. Quando sentiu sua liberdade ameaada pelos condicionamentos familiares e sociais, que estavam a ponto de obrig-lo a um ca-samento que ele no desejava, evadiu-se. Milkau, ao sentir que seu continente mergulhava na deca-dncia, veio buscar sua utopia no Novo Mundo. Ambos tm em comum a idia de que na Europa no poderiam encontrar espao para sua realizao individual. Respondendo afirmao de Paulo Maciel de que o pas seria branco quando conquistado pelas armas da Europa, ele diz:

    Essa Europa, para onde daqui se voltam os vossos longos olhos de sonhadores e moribundos, as vossas cansadas almas, cobiosas de felicidade, de cultura, de arte, de vida, essa Europa tambm sofre do mal que desagrega e mata. No vos deixeis deslumbrar pela exausta pompa da sua civilizao, pela fora intil dos seus exrci-tos, pelo lustre perigoso do seu gnio. No a temais nem a invejeis. Como vs, ela est no desespero, consumida de dio, devorada de separaes. Ainda ali se com-bate a velha e tremenda batalha entre senhores e escravos... No h calma para a conscincia, no h tranqilidade no gozo, quando ao vosso lado sempre algum morre de fome... uma sociedade que acaba, no o sonhado mundo que se reno-va todos os dias, sempre jovem, sempre belo. E ainda para manter tais runas, os governantes armam homens contra homens e entretm-lhes os ancestrais apetites de lobos com a pilhagem de outras naes. Tudo o que se apresenta flor da vida no corresponde mais aos fundamentos da Vida... As leis, nascidas de fontes impu-ras para matar a liberdade fecunda, no exprimem o novo Direito; so o escudo do perturbador do Governo e da riqueza, e quem diz autoridade diz posse, diz servido e destruio. (ARANHA, 1969. p. 211-212).

    Se levarmos em conta que estas palavras foram escritas em 1902, e que doze anos depois o continente mergulharia na pior das guerras que conhecera at ento, guerra que comeou a escrever a sangrenta histria do sculo XX, as palavras de Milkau nos parecem profticas. E se acrescentar-mos ainda o papel que idias baseadas numa filosofia da fora, como a de Lentz, desempenharam nessa histria, o romance de Graa Aranha comea a ganhar um interesse novo, talvez mesmo j para alm das intenes do seu autor naquele momento.

    A controvrsia a respeito de Cana provavelmente continuar. Deve-se reconhecer que parte de suas idias, especialmente aquelas que se referem questo racial, muito marcadas pela poca em que o romance foi escrito, envelheceram. No que se refere a elas, o romance tem mais o valor de

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    documento de um certo perodo da histria das idias no Brasil que o de literatura viva. o risco que se corre inevitavelmente ao se escrever um romance dessa natureza. Mas algumas idias feitas a respeito do romance no resistem a uma leitura atenta. A primeira delas de que se trata de obra enfadonha. No se trata, por certo, de leitura divertida. Mas o leitor deste comeo de sculo deveria estar mais acostumado a este gnero de narrativa, que no representa mais novidade e foi largamen-te cultivado ao longo do sculo passado. Tambm sua linguagem, apesar de alguns vos de estilo aos quais no faltaram as metforas lancinantes de que falava jocosamente Oswald de Andrade no oferece maiores dificuldades, superada a exigncia da criao de uma fala brasileira, coloqui-al, para o nosso romance. Nesse sentido se pode at, com alguma reserva, falar em um rejuvenesci-mento do romance. O mesmo se pode dizer a respeito de seu carter antecipatrio. Tendo falhado onde queria ser profeta, Graa Aranha conseguiu, talvez inadvertidamente, dar a um lugar comum de sua poca a idia de decadncia que produziu tanta literatura tornada hoje ilegvel pelo correr implacvel do tempo um acento proftico. Podemos conceder-lhe uma intuio aguda da extenso da crise no Velho Mundo, que desembocaria na catstrofe de 1914. Se juntarmos a isso o fato de que algumas promessas no cumpridas diagnosticadas com acerto no romance continuam incertas hoje, poderemos encontrar um novo motivo para ler o seu romance. Sem ser uma obra-prima, mere-ce mais ateno do que tem recebido.

    Referncias Bibliogrficas

    [1] ARANHA, Graa. Cana. In: Obra completa. Org. sob a direo de Afrnio Coutinho. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1969.

    [2] PAES, Jos Paulo. Cana e o iderio modernista. So Paulo: Edusp, 1992. Autor 1 Mrio Luiz FRUNGILLO, Prof. Dr. Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Departamento de Teoria Literria [email protected]